Carmilla - Book Preview

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LE FANU

MAZZANTI








Originally published in French under the following title: Carmilla by Sheridan Le Fanu, illustrated by Isabella Mazzanti © Editions Soleil – 2014 In the Metamorphose collection directed by Barbara Canepa and Clotilde Vu Tradução para a língua portuguesa © Enéias Tavares, 2022

Diretor Editorial Christiano Menezes Diretor Comercial Chico de Assis Gerente Comercial Giselle Leitão Gerente de Marketing Digital Mike Ribera Gerentes Editoriais e Editores Bruno Dorigatti Marcia Heloisa Adaptação de Capa e Projeto Gráfico Retina 78 Coordenador de Arte Arthur Moraes Coordenador de Diagramação Sergio Chaves Designer Assistente Camila Suzuki Finalização Sandro Tagliamento Preparação e Revisão Retina Conteúdo Impressão e Acabamento Coan Gráfica

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (cip) Jéssica de Oliveira Molinari — CRB-8/9852 Fanu, Sheridan Le Carmilla / Sheridan Le Fanu ; tradução de Enéias Tavares ; ilustrações de Isabella Mazzanti. — Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2022. 192 p. Título original: Carmilla ISBN: 978-65-5598-160-5 1. Ficção irlandesa 2. Ficção fantástica I. Título II. Tavares, Enéias III. Mazzanti, Isabella 22-1199

CDD Ir820 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção irlandesa

[2022] Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento LTDA. Rua General Roca, 935/504 – Tijuca 20521-071 – Rio de Janeiro – RJ — Brasil www.darksidebooks.com


SHERIDAN LE FANU

ilustrado por

ISABELLA MAZZANTI

traduzido por ENÉIAS TAVARES





Eu te amo como se ama a abóbada noturna, Ó taça de tristeza, ó grande taciturna, E mais ainda te adoro quanto mais te ausentas E quanto mais pareces, no ermo que ornamentas, Multiplicar irônica as celestes léguas Que me separam das imensidões sem tréguas. Ao assalto me lanço e agito-me na liça, Como um coro de vermes junto a uma carniça, E adoro, ó fera desumana e pertinaz, Até essa algidez que mais bela te faz!

Charles Baudelaire*

*

As Flores do Mal. Nova Fronteira, 1985. 6. ed., p. 161. Trad. Ivan Junqueira.


Para Andreia, porque sem você este livro não existiria. Aos meus pais, meu irmão e minha irmã, por me ouvir e me apoiar. Para Artur, que um dia vai folhear este livro e pensar em mim. A Vanessa e Maria Giulia, porque sabem lutar.




sumário INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 CARMILLA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 BIOGRAFIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182


i n t ro d u ç ã o

MORTE, DESEJO E INOCÊNCIA “Somos mais sábios à medida que ficamos mais velhos? Parece-me apenas que nossas ilusões mudam, ano após ano, embora continuemos igualmente loucos.” Sheridan Le Fanu

As criaturas que povoam nossos pesadelos adentram o sobrado da consciência muito cedo. Para muitos, elas tomam a forma da escuridão que espreita embaixo de nossas camas. Para outros, ressurgem em nossos teatros oníricos com as faces dos monstros míticos de filmes e desenhos animados. Ou então, sorvem de nossos desejos e medos mais recônditos as figurações apropriadas para nos atormentar, na infância ou na idade adulta. Nesse entremeio, porém, entre a criança que fomos e o adulto que nos tornamos, há uma alma aventureira que anseia por afeto, aprendizado e autoconhecimento. Raras são as obras que conseguem dramatizar esse conflito, sobretudo porque o paraíso perdido da infância raramente se renova na terra desolada da vivência adulta. Com Carmilla, novela publicada pela primeira vez em 1872, o irlandês Joseph Thomas Sheridan Le Fanu (1814-1873) produziu um das mais belas fábulas sobre esse conflituoso período que vivenciamos nos anos que separam a infância da maturidade. Le Fanu une o imaginário das histórias de terror e horror, as lendas regionais sobre criaturas que voltam dos mortos e o afeto e o desejo entre duas jovens mulheres, um tabu no século xix que seria explorado

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I N TRODUÇ Ã O

artisticamente por poetas e pintores, numa das obras mais importantes ao imaginário vampírico. Entender um pouco da formação do autor e da concepção dessa obra basilar, sobretudo aos apreciadores de histórias de horror e aos investigadores do despertar da consciência, nos ajudará a adentrar os pórticos pétreos do castelo em que vive a narradora da novela, a jovem Laura, e seu pai: um par de gentis anfitriões que desavisadamente convidarão a morte a habitar sua casa. Nascido em Dublin, Le Fanu recebeu uma educação literária e artística desde cedo, sendo filho de pais protestantes que valorizavam a cultura e a arte. Em 1833, então com 19 anos, entrou no Trinity College de Dublin, onde chamou a atenção de seus mestres por seu talento com a escrita e com sua verve editorial. Cinco anos depois, já publicava alguns de seus textos no Dublin University Magazine, entre eles o conto “The Ghost and the Bonesetter” [“O Fantasma e o Ortopedista”], de 1838, um dos primeiros a chamar a atenção de seus contemporâneos pela estratégia literária utilizada: supostamente, esses contos pertenceriam ao padre católico do século anterior chamado Purcell, expediente que Le Fanu usaria em obras posteriores, incluindo Carmilla. Na década de 1840, Le Fanu se tornaria proprietário de jornais como Warden e Dublin Evening Mall, deixando assim de vez a perspectiva de atuar no campo de sua formação, o Direito. Casou-se com Susanna Benett em 1844, mulher que se tornaria sua parceira num dos períodos mais profícuos de sua produção como escritor e editor. Em 1858, Le Fanu fica viúvo e torna-se por anos um autor recluso. Em 1861, ele adquiriria o Dublin University Magazine, a publicação onde iniciara sua carreira e na qual lançaria boa parte de sua ficção seriada — produção posteriormente reunida em volumes únicos. Carmilla foi originalmente publicada nesse formato, na revista Dark Blue. Começando em 1871 e finalizada em 1872, a novela integraria o volume de contos e novelas In a Glass Darkly [Através de um Espelho Sombrio]. O que unia as cinco produções que compõem o volume era a sua moldura narrativa, que tinham o especialista alemão dr. Martin Hesselius, um ocultista e pesquisador de casos misteriosos, como força motriz. No início de cada uma das histórias, Hesselius detalhava a origem dos casos investigados nas páginas seguintes, o que dá às narrativas de tamanho variado um verniz de “realidade”, fortalecendo

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assim os efeitos de tensão, perigo e surpresa dessas histórias. A imagem de um livre pensador científico e de um investigador do mundo e de seus mistérios serviria de base para outros heróis similares, como o Abraham Van Helsing, de Bram Stoker (1847-1912), e o Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle (1859-1930). No caso de Carmilla, ao virarmos a página inicial da novela, passado o excerto narrativo de Hesselius, conhecemos a narradora da história, Laura, que conta a um leitor confidente um drama que aconteceu anos antes, quando ela está no limiar da adolescência. Órfã de mãe, Laura vive em um velho castelo da Estíria com seu pai, um inglês aposentado dos préstimos servidos ao Império Austríaco, e um grupo de empregados. Numa noite, uma imperiosa carruagem se aproxima do castelo, revelando uma enigmática senhora que, num ímpeto de urgência e desalento, revela ao senhor do castelo que precisa continuar viagem, embora seja obrigada a deixar a própria filha para trás, dado o seu frágil estado de saúde. Assim, Laura e seu pai, igualmente generosos e confiantes do bem que a presença da jovem trará à dinâmica de suas rotinas, acolhem a dama cujo nome dá título à narrativa. A partir desse ponto, preocupantes eventos, desaparecimentos inexplicáveis e uma série de gestos e diálogos insinuantes aproximam as duas jovens, com Carmilla atiçando dia após dia o interesse e o desejo de Laura, esta ainda ingênua dos tortuosos caminhos do mundo e de seus jogos de sedução e perigo. Enquanto a trama avança, algumas das perguntas sobre Carmilla e sua mãe, além de outros mistérios, trazidos à baila por um elenco variado de coadjuvantes, são respondidos, outros não, levando-nos muitas vezes a reler a trama em busca de explicações. Todavia, nesses casos, acontece conosco algo similar ao ocorrido com a protagonista e narradora Laura: ficamos mais entregues do que esclarecidos, mais fascinados do que temerosos, mais curiosos com os enigmas que Carmilla representa do que amedrontados diante das variadas artimanhas da jovem vampira e de seu histórico de crimes e mortes. Le Fanu partiu de várias fontes para sua criação. Acredita-se que o poema “Christabel” (1816), a longa balada de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), tenha influenciado o autor irlandês, sobretudo pela

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temática amorosa entre duas personagens femininas, além de outros contos sobrenaturais dos séculos xviii e xix. A força da obra está também na capacidade do seu autor em produzir uma ficção que tenha — de forma sombria e irônica — espelhado o conjunto de crenças, superstições e lendas que perpassam a Europa de seus dias. Le Fanu, por exemplo, sobretudo no pastiche que faz de textos científicos que formam seu doutor em assuntos arcanos, recorre ao Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenants de Hongrie, de Moravie, etc. [Tratado sobre as aparições de espíritos e sobre vampiros ou fantasmas da Hungria, Morávia etc.], de autoria do monge e erudito beneditino Augustine Calmet, texto publicado em 1749 e traduzido para o inglês no ano seguinte como The Phantom World; Or, The Philosphy of Spirits, Apparitions [O Mundo Fantasma; Ou, A Filosofia dos Espíritos, Aparições]. É desse apanhado de relatos — pretensamente verídicos — que Le Fanu retira o detalhamento, central ao clímax de Carmilla, da origem dos vampiros e de seu retorno a uma vida sobrenatural e amaldiçoada. Além disso, o fato dele alocar sua trama na Estíria, hoje um estado da Áustria centro-oriental, dava à sua narrativa o aspecto de exotismo e distanciamento que agradaria aos leitores ingleses. Essa escolha de ambientação pode resultar da leitura de Visum et Repertum (1732), de autoria de médico austríaco Johannes Fluckinger, ao detalhar o caso real do militar sérvio Arnold Paole (falecido em 1726), que teria supostamente levado mais de dezesseis pessoas à morte, e à lenda de que seu corpo fora encontrado conservado no túmulo, o que levou os aldeões de Meduegna, na Morávia, a decapitarem e queimarem seus restos mortais. Cabe também ressaltar a profunda influência que a história de John William Polidori (1795-1821) teria sobre Carmilla. Em 1819, Polidori escreve “O Vampiro”, conto inspirado diretamente pela figura e pela personalidade de Lord Byron (1788-1824), a quem ele acompanhava como médico e amigo. Diferente dos relatos anteriores, mais primitivos e distanciados da “civilização”, Polidori acomoda as lendas anteriores sobre criaturas mortas-vivas e sedentas de sangue em um ambiente social de nobreza e alta sociedade no qual o sedutor e enigmático Lord Ruthven faz suas vítimas. Nessa história, o vampiro não está mais espreitando

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nas trevas de cemitérios, castelos e capelas abandonadas, e sim no seio da sociedade europeia, onde ele, disfarçado de nobre e usando seus poderes de sedução e persuasão, seduz jovens e as leva à morte. Le Fanu, por sua vez, mescla todos esses elementos em Carmilla, unindo pretensas lendas reais, a ambientação exótica da Estíria e o cenário gótico do castelo, do cemitério e da igreja abandonada, adicionando à sua fórmula cenas de corte e de interação social e familiar nas quais a nobreza se entrega a festejos noturnos opulentos e sofisticados. É nesse contexto que, saindo das trevas de uma estrada noturna, a carruagem que traz Carmilla e sua camarilha de falsários surge, numa assombrosa trama que reúne conflito, mistério e tensão. Vinte e seis anos mais tarde, outro irlandês, Bram Stoker, seguiria o modelo do conterrâneo no seu Drácula (1897), obra que consolidou o gênero e a imagem de vampiros e vampiras que usariam sedução, poderes animais e influência hipnótica para conquistar suas vítimas. Stoker, trabalhando muito próximo de Le Fanu, também faria remissões a dados e eventos disfarçados de teor científico — sobretudo nas falas de personagens como o alienista John Seward e o físico e investigador Van Helsing —, além de opor a paisagem distante do Leste Europeu à aparentemente segura capital inglesa e o perigo mortal do conde vampírico à sedução erótica de sua figura e de suas servas vampíricas. Tanto em Carmilla quanto em Drácula, figuras humanas perfeitamente adaptadas aos costumes sociais e familiares vigentes são poderosamente contrastadas a personagens, pensamentos e comportamentos que desafiam a lógica e a moral do século xix, estando mais próximos de instintos primitivos e, não raro, animalescos. Daí o fato dos vampiros de Le Fanu e de Stoker tomarem a forma de animais e de elementos naturais, indiferente de serem masculinos ou femininos. Além disso, a fim de fortalecer a tensão de sua obra, Le Fanu, e posteriormente Stoker, opta por montar sua história através de um intricado jogo de narrativas dentro de narrativas. É como se cada personagem tivesse uma história a revelar, um segredo a insistir, um drama a conceber. Ademais, no caso da obra precedente, a dimensão psicológica de sua personagem protagonista e a densidade investida nela por Le Fanu resultam num texto inegavelmente poderoso em seu drama e fascinante

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em sua estrutura. Em Carmilla, memória se dissolve em sensação, curiosidade, em pesadelo, e sedução, em horror, num jogo narrativo igualmente fascinante e assombroso, delicado e aterrador, terno e violento. Como poucas narrativas, trata-se de um livro conciso e denso, envolvente e poético, fantástico e aterrador, que resulta ainda mais pujante e vívido a cada leitura, indiferentemente de você o estar revisitando ou o adentrando pela primeira vez. Se este for o seu caso, ao terminar a leitura da narrativa de Le Fanu, talvez você tenha a impressão de já ter visto essa história em outro lugar, seja esse “outro lugar” um filme, um livro ou uma narrativa gráfica. Dado o impacto de Carmilla no imaginário vampírico posterior, de Bram Stoker a Stephen King, de Robert Louis Stevenson a Anne Rice ou de Marie Corelli a Stephanie Meyer, a história de paixão, desejo e perigo criada por Le Fanu continua ecoando até nossos dias em novos e renovados pesadelos ficcionais. A hoje consolidada recepção crítica da obra de Le Fanu não raro insiste nos temas da sexualidade, do erotismo e da subversão, elementos que sem dúvida fazem parte do enredo da história de Laura e de sua perigosa e encantadora hóspede. Entretanto, adentrar essa novela exclusivamente a partir dessa perspectiva seria perder muito do que a narrativa tem de marcante e sugestiva. O que nos traz a essa edição de Carmilla, mais uma das obras que a DarkSide® Books brinda ao público nacional com sua costumeira inventividade. E nesse caso, falo da escolha de uma edição francesa, ilustrada pela designer e artista italiana Isabella Mazzanti. Em sua arte, ao evitar lugares comuns, insinuações explícitas e exageros gráficos, Mazzanti investe no refinamento do traço, na hiperestilização das figuras humanas e animais e numa composição das cores que beijam as linhas do desenho, acariciam o fundo das páginas e se ofertam à retina de leitores e leitoras como afetuosos presentes visuais. Nesta ambientação gráfica, a leitura de Carmilla resulta menos em “tórrido caso de amor” entre duas jovens mulheres, dimensão presente mas não única à narrativa de Le Fanu, e mais em uma poética reconfiguração dos misteriosos caminhos do sonho, do afeto e do desejo.

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Através do traço e das cores de Mazzanti, somos transportados para os reinos raramente visitados de nossas fantasiosa infância, inquieta adolescência e agridoce maturidade. Emoldurado por suas florestas de espectros, castelos de visões e bosques igualmente ajardinados e desalentadores, seremos levados por flores sangrentas e belas, cadeiras assustadoras que flutuam, monstros que se escondem embaixo da cama ou que se insinuam em cima dela, além de um compêndio de criaturas que vem não apenas para aclimatar a novela sombria mas também para amedrontar e fascinar nossas vistas. O livro original no qual Carmilla foi publicado alude a um “espelho sombrio”, “um ref lexo obscuro” — numa curiosa alusão a 1 Coríntios 13:12 —, um tipo de visão deturpada da realidade que tanto revela quanto vela, que tanto mostra quanto esconde, que tanto assusta quanto fascina seus espectadores, numa série de antagônicas contraposições comumente associado ao romance gótico do passado e às histórias de suspense e horror de hoje. No caso deste Carmilla, que chega ao público da DarkSide® Books com nova tradução do inglês e ilustrações encantadoras e perturbadoras, é nosso desejo que essa obra se desvele aos visitantes como o clássico do medo e do horror que tanto fascinou leitores e leitoras. Mas acima de tudo, que demonstre que no espaço dos nossos pesadelos — refletidos no sombrio espelho da ficção e da arte — pode a curiosidade estar abraçada aos doces territórios dos nossos sonhos, aos insuspeitos leitos da nossa maturidade, aos medos onipresentes da nossa infância. Enéias Tavares Silveira Martins, fevereiro de 2022

Enéias Tavares é professor de literatura na ufsm , tradutor e escritor. Pela DarkSide ® Books, publicou o romance Parthenon Místico, expandindo o universo da série Brasiliana Steampunk, e organizou O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e A Máquina do Tempo, de H.G. Wells. Em sua adolescência, sobretudo depois de ler e se apaixonar pelos vampiros de Flávia Muniz e Anne Rice, sonhava em conhecer a Estíria de Carmilla e a Transilvânia do Drácula. Parte desse sonho, acaba de se realizar. Saiba mais em eneiastavares.com.br.

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prólogo

ob a folha anexada à história que segue, o dr. Hesselius escrevinhou uma elaborada nota, acompanhada de uma referência ao Ensaio de sua autoria que trata exatamente do estranho assunto que este manuscrito ilumina. Nele, o doutor apresenta esse misterioso tema com seu costumeiro saber e acurada perspicácia, além de sua notável franqueza e objetividade. Este será apenas mais um volume entre os muitos tomos da obra deste extraordinário homem. Ao publicar o caso neste volume, com o simples propósito de interessar aos “leitores em geral”, nada adiantarei do que a inteligente senhora descreve. Afirmo ainda minha decisão de abster-me de apresentar qualquer revisão do afiado raciocínio do erudito doutor ou mesmo de reproduzir um excerto de sua declaração a respeito de um assunto que ele mesmo defende como “recoberto, por certo, por alguns dos mais profundos arcanos de nossa dual existência e de seus intermediários”. Ao descobrir esta folha, ansiei retornar à correspondência iniciada pelo dr. Hesselius, anos antes, com uma pessoa tão inteligente e cuidadosa como parece ter sido sua missivista. Entretanto, para meu grande pesar, descobri que neste ínterim ela morrera. Por outro lado, penso, tal dama pouco teria acrescentado à narrativa de sua pena. A história nas páginas seguintes foi comunicada, a meu ver, com conscienciosa acuidade.

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HORROR PRECOCE “Há um motivo para que as coisas sejam como são.” Bram Stoker, Drácula

qui, na Estíria, embora não sejamos ricos sob qualquer perspectiva, habitamos um castelo ou schloss, um tipo de palácio. Com uma pequena renda nesta parte do mundo, pode-se viver muito e bem. Oitocentas ou novecentas libras por ano fazem maravilhas, algo que em nosso lar nos colocaria bem abaixo de pessoas abastadas. Meu pai é inglês e eu recebi um nome inglês, embora nunca tenha visto de perto a Inglaterra. Mas aqui, neste lugar inabitado e primitivo, onde tudo é tão pouco dispendioso, não vejo como mais recursos poderiam elevar nossos confortos ou mesmo nossas extravagâncias. Meu pai viveu anos a serviço da Áustria e aposentou-se com boa pensão e excelente patrimônio, podendo comprar por quase nada esta residência feudal e a pequena propriedade na qual foi edificada. Nada pode ser mais pitoresco ou mais solitário. O castelo fica em um pequeno cume rodeado por uma floresta. A estrada, muito velha e estreita, passa em frente à sua ponte levadiça, que eu nunca vi alçada, e seu fosso de água é habitado por carpas e visitado por cisnes,

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que flutuam em uma superfície clara, tomada de lírios d’água. E sobre tudo isso se ergue nosso castelo, com seu frontão de infindas janelas, suas torres e sua capela gótica. A floresta abre-se numa clareira irregular e um tanto rústica, bem diante do nosso portão, e à direita um íngreme pontilhão também gótico dá continuidade à estrada. Abaixo dele, um riacho serpenteia em sombras profundas até se embrenhar na floresta. Eu avisei que este é um lugar muito solitário. Julgue você se falo a verdade ou não. Olhando do pórtico do castelo em direção à estrada, a floresta em que nosso lar foi construído se estende quinze milhas para a direita e doze para a esquerda. A aldeia habitada mais próxima fica a cerca de sete milhas. Já o castelo habitado mais próximo, com suas inúmeras associações históricas, é o do velho general Spielsdorf, que fica a vinte milhas. Para chegar à primeira, vira-se à esquerda. Ao segundo, à direita. Eu disse “a aldeia habitada mais próxima” porque a apenas três milhas a oeste, isto é, na direção do castelo do general Spielsdorf, fica uma aldeia em ruínas, com sua pequena e pitoresca capela, agora sem telhado, no mesmo pátio em que se encontram os carcomidos túmulos da orgulhosa família de Karnstein, hoje extinta. Essa família já foi proprietária do castelo também desolado que, no meio da floresta, tem vista para as ruínas silenciosas dessa aldeia. A respeito da causa da deserção deste local tão peculiar e, ao mesmo tempo, tão melancólico, há uma lenda que corre e que contarei a você em outra oportunidade. Devo agora dizer-lhe, para o seu próprio espanto, quão ínfimo é o grupo que constitui os habitantes do nosso próprio castelo. Não incluo empregados ou dependentes que ocupam quartos nos prédios anexos à construção principal. Meu pai é o homem mais doce da superfície da Terra, mas ele está envelhecendo. Quanto a mim, na data de minha história, tinha apenas dezenove anos. Desde então, se passaram oito anos. Assim, eu e meu pai formávamos a família principal do castelo. Minha mãe, uma dama da Estíria, morreu quando eu ainda era criança. Já nessa época, tinha uma governanta bem-humorada, que ficou comigo desde sempre. Nem consigo lembrar de uma época em que seu rosto rechonchudo e bondoso não constituísse uma imagem familiar em minha memória.

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Era madame Perrodon, natural de Berna, cujo cuidado e boa natureza até hoje compensam parcialmente a perda de minha mãe, de quem nem tenho lembrança, tão cedo a perdi. Ela, minha ama, ganhou a terceira cadeira em nossa pequena mesa de jantar. Havia ainda uma quarta, que pertencia à mademoiselle De Lafontaine, uma senhora que atuava, no seu linguajar, como “tutora governanta” e que falava francês e alemão. Já madame Perrodon era fluente em francês, mas tinha um inglês bem ruim. Também por isso, eu e meu pai insistíamos em falar nossa língua todos os dias, em parte para evitar que ela se perdesse para nós e também por orgulho pessoal. O resultado disso foi uma Babel interiorana da qual visitantes costumavam rir e que não tentarei reproduzir nesta narrativa. Além delas, havia duas ou três amigas minhas, quase da minha idade, que me visitavam vez ou outra, por períodos curtos ou longos. Esses eram nossos habituais recursos sociais, mas é claro que havia visitas ocasionais de “vizinhos” que moravam a apenas cinco ou seis milhas de distância. Mesmo assim, posso garantir, minha vida fora sempre bastante solitária. Minhas governantas tinham tamanho controle sobre mim tanto o quanto você possa imaginar, sobretudo bancando as damas sábias diante da menina um tanto mimada que eu era, cujo pai permitia a ela quase tudo.

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A primeira vez em que vivenciei um evento que produziu uma impressão terrível sobre minha mente, de fato algo que nunca se apagou, foi justamente um dos primeiros incidentes do qual tenho lembrança. E por certo algumas pessoas o acharão tão insignificante que nem deveria ser registrado nessas páginas. Mas você entenderá, muito em breve e gradativamente, porque o menciono. O quarto das crianças — assim era chamado, embora eu o tivesse só para mim — era uma grande sala no andar superior do castelo, com um telhado de carvalho íngreme. Eu não devia ter mais de seis anos quando, certa noite, acordei e olhei em volta do cômodo, não vendo a minha cuidadora. Tampouco estava lá minha ama, o que fez com que me encontrasse sozinha e inquieta. Eu não tinha medo, pois era uma daquelas crianças felizes que são severamente mantidas na ignorância das histórias de fantasmas, dos contos de fadas e de todas as tradições que nos fazem cobrir os olhos quando as portas se abrem de repente ou diante do tremeluzir de uma vela que, ao queimar, vai fazendo a sombra da coluna da cama dançar na parede em direção aos nossos rostos. Mas fiquei aborrecida e irritada por me descobrir, conforme pensei, negligenciada e comecei a choramingar, preparando-me para uma forte explosão de choro quando, para a minha surpresa, vi um belo rosto, embora solene, olhando para mim do lado da cama. Era uma jovem que estava ajoelhada, com as mãos sob a colcha. Mirei-a com um olhar de prazer e satisfação, parando de choramingar. Ela, em resposta, me acariciou com as mãos, deitou-se ao meu lado na cama e puxou-me em sua direção. Senti-me imediata e deliciosamente aliviada e voltei a adormecer. Mas então fui despertada por uma sensação semelhante a duas agulhas cravando profundamente em meu peito, o que me fez chorar bem alto. A jovem recuou, com os olhos ainda fixos em mim, e então deslizou ao chão, escondendo-se, pensei eu, debaixo da cama. Agora eu estava, pela primeira vez em minha vida, muito assustada e gritei com toda a minha força e ímpeto. Governanta, cuidadora e tutora entraram correndo. Porém, ao ouvir minha história, fizeram pouco caso, tentando me acalmar como podiam. Todavia, mesmo naquela idade, pude notar que seus rostos estavam pálidos e com uma aparência incomum de ansiedade. Elas olharam embaixo da cama e

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CAR MI L L A

ao redor do quarto, embaixo das mesas e dentro dos armários. A governanta sussurrou para a minha cuidadora: “Ponha a mão perto de onde está a menina: alguém certamente se deitou ali, e não foi você. O lugar ainda está quente”. Lembro-me da babá me acariciando, enquanto as três examinavam meu peito, onde lhes disse que havia sentido o aguilhão, e declarando que não havia nenhum sinal visível de que tal coisa tivesse ocorrido comigo.

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A governanta e as outras duas damas que cuidavam do berçário ficaram no quarto, sentadas a noite toda. E desde então, uma delas sempre ficava à postos no local. Isso até eu atingir a idade de quatorze anos. Passada essa noite, fiquei muito nervosa por um longo tempo. Chegaram a chamar um médico, pálido e idoso. Lembro-me bem de seu rosto, comprido e taciturno, talvez marcado pela varíola, e também de sua peruca castanha. Por um bom tempo, a cada dois dias, vinha ele me dar remédios, que obviamente eu odiava. Na manhã seguinte a essa aparição, eu estava num tal estado de terror que não suportava ficar sozinha por um segundo, mesmo durante o dia. Lembro de meu pai chegando em meu quarto e ficando ao lado da cama, conversando animadamente comigo, fazendo várias perguntas à enfermeira e rindo muito de uma das respostas dela. Ele me dava tapinhas no ombro e me beijava, dizendo-me que eu não deveria ter medo, pois aquilo não passara de um sonho e que não poderia me machucar. Mas não senti alívio algum, pois sabia que a visita da estranha jovem não era um sonho. E aquilo me deixava terrivelmente assustada. Quanto à babá, esta sim me consolou um pouco, garantindo-me que era ela quem viera e me olhara e que se deitara ao meu lado na cama, e que eu devia estar entre o sono e o sonho por não ter reconhecido seu rosto. Mas isso, embora confirmado pela ama, não me satisfez totalmente. Lembrei-me, no decorrer daquele dia, de um venerável velho em uma batina preta, entrando no quarto com a babá e a governanta, e conversando um pouco com elas e depois comigo, de forma muito atenciosa. Seu rosto era muito doce e gentil, e ele me disse que todos iriam orar. Ele juntou minhas mãos e pediu que eu repetisse, suavemente, enquanto eles oravam: “Senhor Deus, ouve todas as nossas boas orações, pelo amor de Jesus”. Acho que essas foram as palavras que usou, pois muitas vezes as repetia para mim mesma, e minha babá continuou por anos exortando-me a repeti-las em minhas orações. Eu me recordo bem do rosto doce e pensativo daquele ancião de cabelos brancos e batina preta, parado naquele quarto imponente, pétreo e rude, com a mobília defasada em trezentos anos e o pardo

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filete de luz que entrava por uma pequena abertura de treliça, o que dava ao todo uma sombria atmosfera. O homem se ajoelhou, com as três mulheres o imitando, e orou em voz alta com voz fervorosa e trêmula, pelo que me pareceu durar um longo tempo. Desconheço minha vida antes deste evento, e por algum tempo depois dele, tudo é igualmente obscuro. Porém, quanto às cenas que descrevi, elas ainda assolam minha mente, como isolados pictogramas de uma fantasmagoria feita de sombras.

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Ambientada em um remoto castelo do Leste Europeu, a novela Carmilla — publicada mais de duas décadas antes de Drácula — viria a se tornar uma das obras mais marcantes da literatura vitoriana de horror. Na trama, acompanhamos a narradora Laura revelar aos seus leitores os eventos que circundam a chegada da misteriosa Carmilla, uma jovem aparentemente frágil que se mostrará sedenta por sangue, paixão e vida. Com nova tradução do texto de Sheridan Le Fanu feita por Enéias Tavares e arte exuberante da italiana Isabella Mazzanti, Carmilla é um clássico que nunca perde sua capacidade de assustar e seduzir, numa trama terrífica na qual inocência, sangue e desejo se fundem em uma inquietante valsa vampírica.


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