“Uma nova voz obrigatória no universo do suspense familiar.”
Mary Kubica, autora de A GAROTA PERFEITA
“Uma nova voz obrigatória no universo do suspense familiar.”
Mary Kubica, autora de A GAROTA PERFEITA
ESPECIALISTAS LITERÁRIAS NA ANATOMIA DO SUSPENSE
the break
Copyright © 2022 by Katie Sise Todos os direitos reservados.
Design de Capa por Zoe Norvell
Tradução para a língua portuguesa © Vinícius Santos Loureiro, 2024
Diretor Editorial Christiano Menezes
Diretor Comercial Chico de Assis
Diretor de Novos Negócios
Marcel Souto Maior
Diretor de MKT e Operações
Mike Ribera
Diretora de Estratégia Editorial Raquel Moritz
Gerente Comercial
Fernando Madeira
Gerente de Marca
Arthur Moraes
Gerente Editorial
Bruno Dorigatti
Editor
Paulo Raviere
Adap. de Capa e Proj. Gráfico Retina 78
Coordenador de Arte Eldon Oliveira
Coordenador de Diagramação
Sergio Chaves
Designer Assistente Jefferson Cortinove
Preparação
Fabiano Calixto Revisão
Lucio Medeiros
Finalização
Roberto Geronimo
Sandro Tagliamento
Impressão e Acabamento Ipsis Gráfica
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Jéssica de Oliveira Molinari CRB-8/9852
Sise, Katie Ela não pode confiar / Katie Sise; tradução de Vinícius Santos Loureiro. –– Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2024. 320 p.
ISBN: 978-65-5598-355-5
Título original: The Break 1. Ficção norte-americana 2. Suspense I. Título II. Loureiro, Vinícius Santos
24-1021
CDD 813
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção norte-americana
[2024]
Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento ltda
Rua General Roca, 935/504 – Tijuca 20521-071 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil www.darksidebooks.com
Para todas as mulheres que tiveram um parto traumático
Para qualquer um cujo caminho para criar uma família tenha sido marcado pela perda
Para cada mulher que lutou contra a doença mental pós-parto
Rowan. Segunda-feira à tarde. 7 de novembro.
Eu me tornei uma escritora de mistério depois que mataram meu pai. O assassinato dele virou a chave dentro de mim. O questionamento, a imaginação, a trama: tudo isso é o que faço, o que sempre fiz. Ou, pelo menos, é o que digo nas entrevistas.
Mas, às vezes, fico deitada na cama no meio das horas longas e furtivas da madrugada e me pergunto se essa é a verdade por trás de tudo. Contamos a nós mesmos todos os tipos de histórias sobre o nosso passado. E talvez até nos convençamos de que são verdadeiras. Eu digo a mim mesma e a todo mundo que vivo nos mundos sórdidos dos meus romances por causa do esfaqueamento do meu pai. Que escrevo mistérios com heroínas que os resolvem porque nunca consegui resolver o assassinato dele.
Não tenho ideia se isso faz de mim uma boa escritora ou uma boa mentirosa.
Tenho poucas lembranças de quando me tornei mãe há algumas semanas, apenas de desmaiar na rua e ouvir sirenes enquanto sangrava. E, então, três dias atrás, perdi a cabeça e acusei nossa linda babá de 22 anos, June, de ferir nosso recém-nascido. Porém June não tinha feito nada. É por isso que a psicóloga Sylvie Alvarez está sentada aqui ao lado do berço da minha filha Lila, certificando-se de que estou apta para cuidar dela. Sylvie está tomando chá de lavanda sentada em um pufe de couro macio, olhando para o meu rosto enquanto meu marido, Gabe, perambula no fundo como um zagueiro de futebol. Ele é grande demais para
esse quartinho de neném com suas pequenas coisas, com nosso pequeno bebê. Dizem que ela é uma das melhores psicólogas de Nova York, e veio me ver como um favor, pois conhecemos sua colega de quarto. Gabe implorou que fizesse uma visita domiciliar para que não tivéssemos que levar o bebê na friagem.
Ainda não consigo me lembrar do parto. Lembro dos bisturis, do sangue e da sensação de ar frio contra a minha pele enquanto me levavam às pressas para a sala de cirurgia. Gabe me contou a maior parte do que aconteceu, contudo tenho a sensação de que está tentando minimizar como foi ruim. Não apenas a cirurgia de emergência, mas a parte em que acordei da anestesia e os médicos colocaram uma menina berrando no meu peito e comecei a gritar com toda minha força sem parar. Como disse meu marido, comecei a me sacudir com tanta intensidade que foi necessário tirar Lila de mim e me sedar outra vez. Às vezes, não acredito em Gabe, mas acredito nisso. A única coisa que me lembro daquele lampejo momentâneo é de como minha filha era escorregadia e como tentar mantê-la segura em meus braços era igual a tentar segurar água. As lâminas cirúrgicas ainda estavam à vista, reluzindo freneticamente no canto da minha visão, e eu estava apavorada porque Lila era tudo o que sempre quis.
“Se você quiser falar sobre o que aconteceu com sua babá”, diz Sylvie, com sua voz suave como manteiga. “Se você estiver pronta para falar sobre June. Se você lembrar.”
Olho para Sylvie, para as rugas que ressaltam a pele ao redor de seus olhos. Estou equilibrada na beira da poltrona de amamentação, meu corpo enrolado como uma mola que poderia se libertar e escapar com Lila caso fosse necessário. Eu beijo o topo da cabeça de meu bebê, minha boca toca seu cabelo escuro e felpudo. Quero apertá-la contra meu peito e enterrar minha cabeça na curva de seu pescoço, inalar o cheiro de sua pele e jamais parar. Porém receio que Sylvie sinta que ainda há algo de terrivelmente errado comigo, e se ela achar que não posso cuidar de minha filha, então será o fim: vão tirá-la de mim. Ou me trancar em uma ala e entregá-la ao Gabe, e ele não a merece. Sei que é uma coisa horrível de se dizer.
“Claro que me lembro do que aconteceu”, digo, e na minha mente vejo a imagem de June: seu rosto ovalado com olhos verdes brilhantes, como o sol sobre a água do oceano, sua pele bronzeada suavizada pela juventude e pela genética que a favorecia, sua risada — tilintando, quase assim. June era tão magnética.
Sim , me lembro.
June está viva. Rowan, você não a matou, não é?
Fecho os olhos, o que torna tudo pior porque June ilumina a escuridão por trás das minhas pálpebras: uma mecha de cabelo claro sobre o ombro, pulseiras amontoadas em seus pulsos magros, de modo que ela retinia enquanto se movia de um cômodo ao outro em nosso apartamento carregando Lila. Pensar no que fiz com a babá parece tortura.
“June está bem agora, não é?”, pergunto a Sylvie, meu coração batendo forte, Lila quente em meus braços. Quente demais? Coloquei a palma da minha mão na parte de trás de seu pescoço, como já vi outras mães fazerem, para tentar descobrir uma febre. “Você me disse isso ontem”, comento, piscando. “Isso ainda é verdade, certo?”
Sylvie mergulha o saquinho de chá. “Sua babá está bem”, diz, como se não fosse nada.
Aquela janela aberta . E se eu tivesse feito algo a June naquela noite? Estava tão aterrorizada, tão certa de que a babá machucaria minha filha. “Você se lembra?”, Sylvie pergunta, me incitando com as sobrancelhas para cima, esperando.
Gabe desvia o olhar como se não pudesse suportar ouvir a história mais uma vez. Posso sentir a mudança de sua atenção como uma força física dentro do quarto, como uma correnteza. Ele não me olha mais nos olhos.
Bum . Algo bate na cozinha, e me assusto. Agora que afugentei June, a mãe de Gabe, Elena, está de volta. E está batendo panelas e frigideiras como se estivesse cozinhando, contudo é mais provável que esteja dando voltinhas na direção da porta fechada do quarto para ouvir nossa sessão de terapia. Quero minha própria mãe, mas ela está muito longe, comendo feijão verde cozido em um centro de idosos na parte rica da cidade.
Toco a curva suave da unha de Lila. “Eu me lembro”, digo, porque de todas as coisas que não consigo me lembrar de antes do nascimento e do momento em que quase morri no parto de minha filha — o barulho dos monitores, todos aqueles rostos mascarados sobre mim — lembro-me exatamente do que fiz com June há três dias, a forma como senti seus ombros finos em minhas mãos, e a sensação de seus tendões e ossos como se fossem feitos de nada, como um esqueleto oco de pássaro que eu poderia esmagar entre as pontas dos meus dedos. Lembro-me de sacudir seus ombros e gritar coisas horríveis na frente de seu rosto bonito e retorcido:
O bebê desapareceu!
O que você fez?
Lembro-me de empurrar June em direção à janela enquanto ela lutava comigo. Não queria machucá-la, porém chegamos muito perto da janela do sexto andar, que estava aberta, pois eu ficava preocupada com a possibilidade de que Lila esquentasse demais. Ainda posso sentir, como um aviso repentino, o frio do vento. Foi um dos primeiros dias gelados de novembro, o ar carregado com a iminência do inverno, escurecendo já às cinco, fazendo com que pessoas como eu queiram chorar pela falta de luz do dia. E se eu não tivesse olhado para baixo naquele momento e visse Lila dormindo profundamente em seu berço, se não tivesse saído disso…
“A janela”, conto a Sylvie, precisando preencher o silêncio com palavras. “A janela principal de nossa sala estava aberta e eu estava empurrando June em direção a ela, pois eu estava muito chateada, não queria machucá-la ou qualquer coisa do tipo, estava apenas tentando descobrir de uma vez o que tinha acontecido com Lila. Lembro de como Gabe correu para a sala quando me ouviu gritar e que ficou paralisado quando nos viu. June estava soluçando, seu rosto melado de coriza”, digo. Não sei por que mencionei o detalhe da coriza. Talvez por ter sido a primeira vez que não achei a babá bonita. “Então, meu marido nos perguntou o que aconteceu e June correu em direção à porta. Gabe tentou impedi-la, mas ela passou por ele.”
Então ela abriu a porta do nosso apartamento, onde dois vizinhos já haviam se reunido no corredor por causa do barulho.
Ela me acusou de machucar o bebê de vocês, Gabe , disse a babá, e me envergonho ao lembrar. Sei que Sylvie está percebendo.
“Lembro que meus pensamentos pareciam desarticulados”, relato. “Era como se não conseguisse me ater a eles. Então, olhei para baixo e vi Lila, e ela estava bem.”
Minha garganta aperta. Lila se mexe em meus braços, soltando um choro sonolento que me puxa para fora do passado ensanguentado e para dentro daquele instante. Ao vê-la abrir e fechar a boca como um peixe, sei que ela quer comer. Ainda sou muito nova com a maternidade para me sentir confortável fazendo isso na frente de Sylvie, mas não posso deixá-la passar fome, então desabotoo minha camisa e a levo ao meu peito. A pega não está certa e estremeço de dor. O calor percorre meus membros.
Por sorte, Sylvie não diz nada. Nem Gabe, embora sinta que percebeu. Seria bom se ele viesse até mim, esfregasse minhas costas ou talvez me desse um copo d’água.
“O que a fez pensar que June tentou machucar seu bebê, Rowan?”, Sylvie pergunta, sua voz tão baixa que mal consigo ouvi-la.
Olho para Lila, para sua boca rosada se movendo até meu peito, nascida sabendo ser amamentada em algum lugar dentro de seu cérebro, apenas instinto. Olho para seu rosto perfeito. Escrevo por profissão, mas tenho apenas clichês para descrever minha filha:
Perfeita.
Tudo.
Celestial.
Minha.
“Não faço ideia”, digo em voz calma.
Sylvie se reacomoda no pufe. Não parece confortável. A mobília é deslumbrante, porém não é exatamente um ótimo lugar para sentar o corpo e descansar. Às vezes, quando olho ao redor, tudo parece errado, como se por acidente houvesse escolhido a vida errada — o homem errado? — e agora não posso abrir caminho de volta para tudo o que deveria ser. Mas isso não pode estar certo: amo Gabe e, sem dúvidas, amo Lila. Tudo é como deveria ser. E vou melhorar. Sim, eu vou. Tenho que acreditar nisso.
Rowan. Segunda-feira à noite. 7 de novembro.
Gabe acompanha Sylvie para fora do quarto de Lila.
“Tchau, dra. Alvarez”, digo às costas de seu suéter de caxemira bege, e ela se vira. Seus olhos parecem fundos sob as luzes do teto.
“Tchau, Rowan”, retribui.
Ela não se despede de Lila. Permaneço na porta, observando Gabe e Sylvie atravessarem o corredor, suas sombras persistentes, escorregando pelas paredes e pelo chão de carvalho antes de desaparecer. Balanço com a Lila. Mesmo com tudo o que aconteceu nas últimas três semanas desde que ela chegou a este mundo, seu olhar de olhos abertos me faz sorrir: meus lábios se curvam quando ela fixa o olhar para mim, um sorriso secreto que significa algo diferente de tudo que já significou.
A mãe de Gabe aparece depois que Sylvie vai embora. Ajeita o cabelo cacheado atrás da orelha e examina o meu rosto.
“Elena, oi”, cumprimento, um pouco estúpida. Não sei como falar com minha sogra depois do que fiz com a babá. Sei que ela acha que enlouqueci, que não estou bem o suficiente para cuidar do bebê. Posso sentir isso. Seguro Lila com força, sem querer lhe passar minha filha.
“Posso segurá-la?”, Elena pergunta.
Mordo o lábio. “Não”, respondo. Limpo a garganta. “Sinto muito”, acrescento, mas não lhe passo Lila e não digo mais nada.
O rosto de Elena fica corado. “Está na minha hora”, diz, olhando para Lila como se quisesse dizer exatamente o oposto.
“Obrigado por fazer o jantar”, digo, sentindo culpa.
Uma vez, Elena disse que Gabe gosta de seus sanduíches cortados na diagonal e me arrependi de lhe contar que nunca tinha feito um para ele. Sempre pensei que cuidava dele de outras maneiras, porém agora não tenho tanta certeza. Talvez Elena sentisse que faltava algo em mim.
“Como foi a terapia?”, pergunta Elena, com a voz um pouco trêmula.
Gostaria de pensar que ela não tem direito à resposta, mas todas as vezes que quero desgostar de Elena, penso em sua amizade com minha mãe, em como a visita rigorosamente duas vezes por semana, levando-lhe palavras cruzadas. E se minha mãe estiver se sentindo bem, Elena a busca do centro de idosos e a leva ao jogo de bingo semanal em um porão da igreja em nosso bairro, e então elas vêm nos ver depois para tomar chá. Minha mãe apenas fica lúcida metade do tempo, mas gosta de visitas e sou grata por isso. Isso toma conta de mim agora — aquela calorosa sensação de ser grato a alguém.
“Correu tudo bem”, digo a Elena, querendo lhe dar um pouco mais, mas exausta demais para entrar no assunto. “Simplesmente não posso acreditar que fiz isso com June”, digo mais para mim do que para Elena. “Ela estava apenas tentando nos ajudar.”
“Talvez você não precise de uma jovem complicando as coisas por aqui”, comenta Elena, com os dedos brancos envoltos na alça de couro de sua bolsa.
“Elena, por favor”, digo, erguendo Lila mais alto. “Você não pode mesmo pensar que isso é culpa de June.” Elena estava indiferente com a babá desde que havia começado suas horas noturnas de meio período aqui, o que me deixou mal. Era quase óbvio para a mãe de meu marido que estávamos substituindo sua presença autoritária por alguém que estávamos pagando. Elena abre a boca para dizer alguma coisa, mas então Gabe retorna após acompanhar Sylvie. “Pronta?”, pergunta à mãe.
Minha sogra me dá um beijinho na bochecha e eles vão embora. Na ausência deles, olho ao redor do nosso apartamento e mal o reconheço. Nós temos muitas versões de todas as coisas de bebê. Há um balanço para Lila na cozinha para que possamos comer enquanto ela dorme com a mão fechada sobre sua cabeça, e outro na sala de estar ao lado da janela principal onde escrevo meus romances. Há dois pares de tapetes de brinquedo sob
uma meia-lua de animais de pano pendurados, duas chupetas azul-turquesa e dois berços para quartos diferentes em nosso apartamento. Quando colocamos Lila em um desses berços, rezamos para que continue dormindo. Então, quando a bebê não dorme, o desespero desce sobre nós, uma respiração fria implora para que nossa filha descanse, o desejo visceral de ficar debaixo das cobertas com ela e de não acordar é tão forte que poderia me engolir inteira. Gabe me disse que eu não deveria mimá-la, trazendo-a para a nossa cama, e é nesses momentos que percebo que ele não sabe nada sobre mim e Lila. Isso me assusta, mas não tanto quanto deveria.
Ela está aqui. Ela está bem.
Isso é o que digo a mim mesmo uma e outra vez quando seguro Lila perto — perto demais. Tenho que ter cuidado, pois é uma bebê muito delicada. Não consigo tirar os olhos dela, com muito medo de que, se desviar o olhar, desaparecerá como poeira. Quando adormeço, sonho que ela se foi. Sonho com acidentes indescritíveis, com médicos e enfermeiras me trazendo bebês diferentes um após o outro e colocando-os com muita brutalidade em meus braços, depois puxando o cobertor para revelar um recém-nascido que não é Lila. Nos meus sonhos, a polícia vem. E me dizem que os médicos sentem muito, porém a lâmina entrou muito fundo, atingindo Lila onde não deveria. Acordo gritando por ela.
Calma, Rowan. Tenho que melhorar. Preciso. Tento respirar, me concentrar nas engenhocas de segurar bebês chamadas de andadores, mas seus tons amarelos e verdes neon se desfocam. Lila tem apenas três semanas de idade e não está nem perto de estar pronta para andadores, então os animais de plástico nos olham dos cantos do quarto com olhos arregalados e sorrisos perturbados. Ontem, Gabe bateu o pé em um dos andadores. Rowan, pelo amor de Deus, não precisamos da caridade das pessoas , disse, xingando baixinho, irritado por eu ter aceitado os andadores de presente e por eles estarem ocupando tanto espaço, e bravo comigo, em geral, por não aguentar o tranco. Posso ver o desgosto por mim em seus profundos olhos castanhos. Gabe gosta que as coisas sejam bonitas e serenas. Mesmo quando éramos jovens, virava o rosto para longe de qualquer coisa desagradável e eu costumava pensar que era porque também era um escritor e nós
somos muito sensíveis, sem dúvida. Porém agora não tenho tanta certeza. Agora, me pergunto se não é apenas um pouco cruel estar tão indisposto a olhar para os cantos escuros.
É claro que não precisamos de caridade , respondi de volta, mesmo que tenha passado uma vida inteira reunindo coisas velhas, dizendo obrigado quando meus amigos da faculdade assumiram grande empregos e me doaram roupas e bolsas de segunda mão enquanto eu estava tentando viver como romancista.
Pelo menos Gabe e eu compramos apenas um carrinho. Pelo menos não esbanjamos com tudo. Enquanto eu ainda estava no hospital, Gabe devolveu o outro, pesado, que tínhamos escolhido a princípio e encontrou uma versão menor que caberia no saguão do nosso apartamento. Acho que percebeu que nossos vizinhos não aceitariam bem um carrinho perdido no corredor, bloqueando a saída de incêndio e deixando farelo de cereal. Nossos vizinhos são mais requintados do que nós. Pelo menos, mais requintados do que eu. Elena está dizendo algo para Gabe na porta, mas não consigo entender.
Sinto falta da babá. Sinto falta de como era o nosso apartamento quando ela estava aqui, e é nisso que estou pensando quando a ideia me vem à cabeça: preciso ir até June, encontrá-la, me desculpar. Por que não pensei nisso antes?
Vou para o meu quarto, direto para a minha cama. Embalo Lila em um braço, afasto os cobertores e entro neles com ela. Então, deitei minha filha sobre o lençol, e ela parece tão pequena em seu macacão branco, seus membros magros se mexendo, suas mãos se abrindo. Gabe chega à porta do nosso quarto e espera, sua forma escura contra o retângulo quente de luz, sua mão grande descansando preguiçosamente na moldura de madeira. “Rowan”, diz com voz calma, a palavra pesada com algo que não consigo captar. Queria saber no que estava pensando. Tenho certeza de que não consegue acreditar a que ponto chegamos: uma psicóloga verificando se estou bem o suficiente para cuidar da nossa filha recém-nascida. Mas, tratando-se de Gabe, nunca se sabe. Às vezes, o olhar revela seu julgamento. Não costumava estar na ponta desse olhar, então talvez seja apenas que agora a pessoa que ele vê está muito mudada: os círculos sob meus olhos, o cabelo emaranhado, a flacidez da pele. Estrias vermelhas e brancas me
entalham como um ataque de urso, da parte inferior da barriga até os seios. Meu estômago ainda está inchado e ainda estou sangrando. Penso nas minhas amigas que não conseguiram engravidar, e fico tão grata por ter Lila, de verdade. Mas isso é normal três semanas após o parto?
Talvez não seja a minha aparência — talvez devesse dar mais crédito a Gabe. Talvez o casamento dificulte as coisas para todos os casais, torne as bordas mais afiadas e embote a superfície, de modo que não seja mais algo perfeito e brilhante. Ou talvez ele esteja me olhando assim porque sente medo. De qualquer forma, é muito difícil observá-lo sem pestanejar, então desvio o olhar, meus olhos encontram alguém mais indulgente. “Lila Gray”, digo para minha garotinha e posso sentir meu marido endurecer na porta quando acha que não posso vê-lo. “ Li-la-aah Gr-a-ay ”, repito, adicionando as sílabas, deixando as palavras se alongarem como fios desenrolados, minha voz beirando um gemido que achava que nunca acertaria. Mas acho que deve vir com o território.
“Rowan”, repete Gabe, desta vez com um tremor mínimo. Não ergo os olhos.
Gray é meu nome de solteira. Gabe e eu sempre dissemos que o usaríamos quando tivéssemos filhos, mesmo quando tínhamos vinte e poucos anos e perambulávamos pela parte baixa de Manhattan em jeans rasgados, camisetas e tênis Converse, entrando e saindo de cafeterias e bares quando sentíamos vontade, quando estávamos escrevendo de manhã, dormindo à tarde e trabalhando em bares à noite.
Caí em uma crise depressiva quando ficamos noivos. Já tive uma antes, quando era pequena, outra quando era adolescente e depois mais uma na faculdade. Elas estão impressas na minha vida como manchas de tinta e às vezes Gabe as usa contra mim quando precisa. Certa vez, disse que se preocupava em ter filhos comigo, pois temia que após ter nosso bebê eu poderia cair outra vez naquele profundo poço de desespero e não conseguir sair. Quando contei à minha mãe sobre aquela preocupação, ela disse, Você sempre voltou, Rowan. Contudo, agora é difícil para minha mãe sempre ser persuasiva o suficiente para me lembrar das coisas que preciso que me lembre. Sua demência veio com rapidez — ela era minha e, de repente, não era mais.
Eu costumava pensar que Gabe lançava meu estado mental de volta contra mim pois, no fundo, tinha medo de ter filhos. Contudo talvez sentisse medo de mim e possivelmente estivesse parcialmente certo nisso. Veja o caos em que estamos agora. Mas não somos todos vulneráveis a um colapso mental? Estamos todos andando por aí com esses grandes cérebros que podem falhar, dividir, reprimir, obcecar ou ficar insanos a qualquer momento.
“Você gosta dela?”, Gabe pergunta. Por alguma razão ridícula, penso primeiro em Lila em vez da psicóloga.
“De Sylvie?”, pergunto, e Gabe confirma.
“Gosto”, digo. Meus dedos tocam a pele translúcida das pernas de Lila. Traço os padrões rendados que o sangue faz sob a superfície, imaginando as veias e todos os perfeitos sistemas em operação dentro de seu minúsculo corpo. “Embora esteja talvez um pouco calma demais”, acrescento sobre Sylvie.
“É provável que seja parte de seu trabalho”, comenta Gabe com um encolher de ombros. “Mas, sim, ela tem uma calma quase irreal, especialmente para uma nova-iorquina.”
Isso me faz sorrir — ele me entendendo e concordando comigo. “Você me culpa pelo que aconteceu com June?”, pergunto, as palavras saindo da minha boca antes que perceba o que estou dizendo.
“ Não ”, responde sem hesitar, como se tivesse que convencer a nós dois dessa única coisa. “Você está diferente desde o parto. A culpa não é sua. É muita coisa — você perdeu muito sangue”, observa, “e foi tão ruim .” Lágrimas enchem seus olhos escuros, me surpreendendo. Gabe chorou apenas uma vez na minha frente durante todo o nosso relacionamento, e isso aconteceu há apenas algumas semanas no hospital quando acordei e o vi segurando Lila ao lado da minha cama. “Você só tem que colocar sua mente de volta no lugar”, afirma, e então as lágrimas param e se torna sólido outra vez, como sempre. “ Integrada ”, diz. “Não foi essa a palavra que Sylvie usou? Foi um trauma o que aconteceu, assim como os médicos disseram. Você foi para outro lugar”, continua. “É quase como se você fosse outra pessoa, como se tivesse esquecido quem todos nós éramos. Foi…”
Ele faz uma pausa. Falou demais e sabe disso. Sou inundada pela culpa. “Sinto muito”, desabafo. “Vou ficar mais forte. Eu vou.”
“Não é sua culpa”, repete mais uma vez. “Você quase morreu no parto de Lila.” Soa como uma fala que ele escreveu em um roteiro ou para os vários programas de tv que escreveu antes de roteirizar o filme que mudou sua carreira. Não soa como algo que jamais pensei que aconteceria conosco.
Ficamos quietos por um momento. E então digo, suavemente e apenas porque parece justo: “Foi um trauma para você também”. Dou um tapinha no lugar vazio na cama porque quero que ele venha até nós.
Quero sentir como é deixá-lo entrar no mundo secreto meu e de Lila, quero que pertença ao nosso universo, pois sei que, no fundo, precisa fazer isso ou então não vamos sair dessa. “Venha”, o exorto. Tento parecer calorosa e convidativa, mas soa um pouco desesperado. Desço os olhos sobre Lila. Os dedos de seus pés são como pequenos confeitos e fico maravilhada como são pequenas as unhas de seus pés, e então imagino como vou começar a pintá-las quando ela tiver três anos. Talvez antes.
“Por que está sorrindo?”, Gabe pergunta, ainda parado na porta.
“ Ela ”, digo quando ele não entende. “Estou sorrindo por causa de Lila.” O rosto dele está imóvel. “Venha se deitar conosco”, o convido, com um tremor na voz do qual não gosto, o mesmo que percebo, às vezes, em reuniões com meu editor quando nos sentamos com as equipes de marketing e vendas e tento ser mais animada, mais inteligente, mais adorável. “Gabe, por favor”, o chamo, mas é difícil encará-lo por um período significativo de tempo com Lila atraindo meu olhar como um ímã.
“Rowan”, diz Gabe. O telefone dele toca, e acho que Lila e eu perdemos sua atenção, no entanto ele enfia o telefone no bolso da calça de moletom e se abaixa na nossa cama. Vejo as linhas em sua pele morena, seu cabelo escuro amarrotado e grudado em lugares que não deveria. Se o bebê não estivesse aqui, eu estenderia minha mão para tocar seu ombro, seu estômago, outras partes. Contudo ela pesa três quilos e pode muito bem ser uma rocha por tudo o que coloca entre nós.
O aquecimento se arma com um estrondo, cheirando a fumaça mais do que deveria. Olho para Gabe para ver se percebeu o ocorrido, mas ele não parece incomodado com isso. Está olhando para mim como se não
soubesse o que fazer, e então desliza em nossa direção. Ele é grande — 1,90 m — e quando se aproxima o colchão afunda e ofego, preocupada se Lila vai rolar para o espaço vazio e será esmagada. Nada disso acontece, entretanto meu pulso continua o mesmo, e volto aos lençóis de hospital encharcados, a camisola que não cobria o suficiente. Balanço minha cabeça para clareá-la, mas ainda está lá: a maneira como meu corpo — tudo de mim, dos pés aos dentes — não conseguia parar de tremer.
Gabe se apoia em um cotovelo. Sua camiseta cinza sobe e posso ver a curva de seu bíceps, seu antebraço flexionado. Sempre amei suas mãos e tento me concentrar nelas agora para afastar as imagens do hospital. Toco o inchaço no estômago de Lila. “Acho que me lembro de chegar ao hospital”, comento. “Continuo pensando na camisola.”
Gabe abre a boca como se quisesse dizer algo.
“O quê?”, pergunto, nervosa. O zumbido do aquecedor preenche o ar entre nós. Nosso quarto fica muito mais quente do que o resto do apartamento.
“Não havia tempo suficiente para vestir a camisola”, diz Gabe. “Não até muito mais tarde. Cortaram seu jeans e a cobriram com um cobertor.”
Engulo. A sensação quando você perde um arquivo no computador e nada do que fizer vai trazê-lo de volta.
“Talvez esteja apenas misturando esse momento com o que aconteceu depois”, diz Gabe com cuidado, “quando tudo já tinha acabado.”
“Quando o que já tinha acabado?”, pergunto. “O parto?” Que maneira estranha de dizer isso.
“Sim”, responde Gabe, seu corpo se inclinando sobre nós, fazendo a cama afundar outra vez. “Depois do parto.”
Me aproximo de Lila, querendo colocá-la no meu peito, mas sabendo que devo compartilhá-la também com Gabe.
“Deveríamos dormir enquanto ela está dormindo”, comenta Gabe, seus olhos vagando pelo rosto de Lila. “Ela é tão linda”, ele diz, e eu juro que está prestes a chorar de novo. Isso me deixa desconcertada. “Poderíamos dormir algumas horas antes de sua amamentação noturna”, sugere com a voz rouca, engolindo de volta qualquer emoção que estivesse lá.
“Tudo bem”, respondo. E afasto os cobertores com os pés, quente demais.
Gabe apaga o abajur e o quarto fica escuro. Eu o sinto acomodando-se ao lado de Lila, porém o fato de ele dormir ao lado da bebê me deixa muito ansiosa. E se ele cair em um sono profundo e rolar? Seguro-a e a coloco sobre meu peito. Ouço o som da respiração de Gabe, sentindo o peso sólido de Lila sobre mim enquanto meu próprio peito sobe e desce.
Penso na babá outra vez, imaginando-a em sua inconfundível combinação de blusa branca de gola alta e jeans largo, vestindo-se sem parecer em nada com os outros tantos jovens de Nova York, com cortes à máquina, cabelo descolorido, piercings no nariz e vestidos curtíssimos.
June tinha um estilo retrô, como uma versão de vinte e poucos anos de Blake Lively com longos cabelos loiros com luzes e pele dourada.
E se eu for até ela hoje à noite?
Sei onde mora, os bares e lojas da vizinhança que gosta, pois realmente a escutava todas as vezes que saímos com ela e Harrison, que agenciava a carreira de roteirista de Gabe. De volta àqueles encontros duplos no final da noite estrelada de Nova York, eu era alguém totalmente diferente: minha personalidade de romancista best-seller, acho, alguém inteligente e talvez até glamourosa. Alguém que June poderia ter admirado. Desde que Lila chegou, tudo está tão diferente. Eu estou tão diferente. Fico com muito medo o tempo todo.
Deveria ser eu a me desculpar com June. Lido muito melhor quando é pessoalmente, quando posso me explicar, e, no fim das contas, o que poderia piorar a situação caso visse a babá outra vez? Qualquer coisa que pudesse dizer ou lhe fazer não seria nada em comparação com o que já fiz.
Meus pensamentos se suavizam enquanto estou deitada aqui, de olhos abertos, contando as rachaduras no teto, traçando a teia de aranha das linhas com meu olhar. Várias e várias vezes.
Sim .
É isso o que vou fazer — me encontrarei com June hoje à noite. Vou esperar até Gabe adormecer e então vou sair para encontrá-la. Porque faz sentido lhe dizer pessoalmente que sinto muito, para vê-la outra vez.
Só dessa vez.
QUE VAI ASSOMBRAR A SUA MENTE
Após um parto traumático, Rowan O’Sullivan mergulha em uma crise profunda. Com o agravamento gradativo de sua condição mental, ela acusa a babá June de atos quase indescritíveis. Diante de um cenário de dúvidas, June desaparece sem deixar rastros. Para descobrir o que aconteceu e proteger seu bebê, agora Rowan precisa matar os segredos sombrios que fecundaram em sua mente, neste instigante thriller que aborda a saúde mental materna de maneira dolorosa, profunda e imprevisível. UMA MÃE, UM BEBÊ E UM SUSPENSE ARREBATADOR