PODER ARCANO
tradução FLÁVIA SOUTO MAIOR
Co n f i e e m s e u c o r a ç ã o , q u e r i d o l e i t o r ; e l e s e m p r e o g u i a r á p a r a o n d e v o c ê p r e c i s a i r.
F l e c t e r e s i n e q u e o s u p e r o s , A c h e r o n t a m o v e b o . S e n ã o p o s s o d o b r a r a s v o n t a d e s c e l e s t i a i s , m o v e r e i o I n fe r n o .
“À f a n t a s i a fo i-m e a i n t e n ç ã o v e n c i d a ; m a s j á a m i n h a â n s i a , e a v o n t a d e , v o l v ê - l a s f a z i a , q u a l r o d a i g u a l m e n t e m o v i d a , o A m o r q u e m o v e o S o l e a s m a i s e s t r e l a s . ” Pa r a í s o , Da n t e A l i g h i e r i*
En e i d a , V i r g í l i o
* Tradução de Italo Eugenio Mauro, publicada em 1998 pela Editora 34. (Nota da tradutora.)
Antes, pensava-se que a profecia dos Temidos era um mito, uma história de vingança divina passada através dos séculos. Ela servia como um alerta do caos e da destruição que a Morte e a Fúria poderiam trazer se fossem libertas. Uma história da qual dois inimigos deveriam ter se lembrado antes de amaldiçoarem um ao outro em um acesso de raiva. Naquela noite fatídica, duas magias poderosas convergiram, impedindo cada parte de proferir — ou às vezes até de lembrar — a verdade completa. As maldições tiveram consequências ainda maiores, que ninguém havia previsto. Durante anos, demônios e bruxas aguardaram com tensão o dia em que tudo seria enfim revelado. Quando a meia-noite do dia esperado chegar, é aconselhável que se tenha um estoque de ambrosia e néctar em casa e que se reze para a deusa pedindo misericórdia.
Notas do grimório di Carlo
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vinte anos antes
s anciãs do coven quase nunca concordavam, salvo por duas questões, que eram consideradas suas maiores leis: o diabo nunca deve ser invocado. E, sob nenhuma circunstância, espelhos pretos devem ser usados para divinação. Como uma das melhores adivinhas da ilha, Sofia Santorini acreditava que algumas regras eram feitas para serem quebradas, ainda mais quando suas últimas visões ficavam sussurrando histórias perturbadoras em seu ouvido. Foram esses insistentes murmúrios sobre a perigosa profecia conectada à maldição que convenceram Sofia a roubar o primeiro livro de feitiços: o único grimório que explicava como divinar com magia obscura. O destino do coven poderia depender de suas ações, sancionadas ou não.
No entanto, no último encontro, o conselho não parecia tão desgostoso. Nem precisava. Sofia tinha sentido a mudança da magia da mesma forma que os pássaros sentiam a mudança de estação, ouvindo aquele alerta inato que dizia para voarem para longe, pela sobrevivência. Uma tempestade violenta se formava no horizonte. Não tinha asas e, mesmo que tivesse, ela se recusava a voar sem sua família.
Quebrar duas regras para potencialmente salvar dezenas de bruxas parecia a coisa certa a se fazer. Qualquer informação que Sofia pudesse reunir sobre a maldição antes que os Perversos ou os Temidos tivessem sua vingança apenas beneficiaria o seu coven. Com certeza as anciãs compreenderiam.
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Colocando o espelho preto no chão do templo da Morte, ao lado do livro de feitiços com letras metálicas, ela juntou as saias e se ajoelhou diante dos objetos. Sentiu um tremor que não tinha nada a ver com a pedra fria atravessando as camadas de musselina. Sofia encarou o espelho proibido, cuja superfície preta lembrava as águas calmas de um lago que certa vez visitara para coletar seixos novos para seus feitiços.
Mas esta superfície não tinha nenhum luar suave brilhando no alto, abençoando seu caminho. Na verdade, parecia devorar qualquer luz que ousasse tocar nela. Qualquer tipo de demônio poderia estar espreitando sob as profundezas desconhecidas, esperando para atacar.
Ela expirou para expulsar o medo. Era hora de fazer o que tinha ido fazer e depois voltar para casa, para sua família. Tirando uma adaga fina do bolso da saia, Sofia encostou a lâmina na ponta do dedo e pressionou até uma gota de sangue se formar, vermelha como os olhos do diabo.
Voltando a ficar em pé, ela andou até o altar no centro. Ninguém fazia magia no templo de uma deusa sem, antes de qualquer coisa, pagar tributo.
De cada lado do altar, o fogo crepitava nas tigelas de oferenda que ela havia acendido mais cedo. As espirais de fumaça serpenteavam pelo ar, como se a chamassem para entrar no submundo. Ela jurou ter sentido que havia olhos sobre si, observando das sombras, esperando para ver se ela era ousada o suficiente para cruzar o limite proibido. O olhar de Sofia percorreu a câmara silenciosa, recaindo sobre dois crânios humanos que ela havia roubado do mosteiro. Dias obscuros exigiam feitos ainda mais obscuros. Ela não hesitaria naquele momento.
Estendendo o dedo perfurado sobre a primeira das duas tigelas de oferenda, ela viu as gotículas de sangue chiarem e evaporarem assim que tiveram contato com as chamas. Sofia foi depressa para o outro lado do altar, e repetiu o gesto com a segunda tigela.
Satisfeita por ter pagado o suficiente para a deusa lhe dar proteção, ela se virou e pegou os crânios, sem se importar com a marca dos dedos sujos de sangue que deixava no osso. Ajoelhando-se mais uma vez, ela posicionou os crânios nos pontos norte e sul do espelho, abriu o livro de feitiços e começou o cântico.
Por alguns instantes tensos, o espelho permaneceu imutável. Então, uma fumaça começou a espiralar de sua superfície. Devagar no início, depois pegando velocidade, como se os ventos do inferno sobre os quais
havia ouvido falar soprassem através de alguns círculos demoníacos, confundindo as pobres almas que fossem azaradas o bastante para estar ali.
“Deusa, conceda-me proteção.”
Sofia se inclinou para mais perto do espelho, ansiosa para aprender tudo que pudesse sobre seus inimigos. Qualquer informação seria valiosa, principalmente porque todas as lembranças estavam sendo consumidas aos poucos pela maldição, a cada lua cheia. Enquanto ela mantinha o olhar fixo no espelho, uma janela para o submundo se abriu, dando-lhe seus primeiros vislumbres do mundo demoníaco.
“Mostre para mim como quebrar a maldição.”
O espelho pulsou, como se a magia reconhecesse o pedido e concordasse em conceder tal desejo. No lugar da fumaça, imagens estranhas começaram a tremeluzir sobre o vidro escurecido, e Sofia logo se deu conta de que uma história estava sendo mostrada por meio de uma série de imagens. Ela soltou um suspiro silencioso. Apesar da magia proibida que havia usado, o que via era similar às suas visões usuais.
A magia fez as imagens saírem do espelho e girarem ao seu redor, como se ela estivesse presenciando os acontecimentos. Viu um trono escuro, um demônio furioso.
Pedaços de cenas familiares apareceram, mas a magia parecia não estar funcionando. Algumas imagens não se alinhavam à história deles ou ao que ela conhecia da profecia. Observou uma bruxa, que talvez fosse a Primeira Bruxa, amaldiçoando aquele demônio. A vingança e o ódio dela eram tão poderosos que Sofia quase podia sentir por meio da ilusão. Em seguida, ela viu um estranho poço com cristais: pedras da memória, milhares delas. Mais uma vez, a cena mudou abruptamente, focando em um pequeno chalé de frente para o mar. Uma jovem bruxa, que ela conhecia bem, tinha uma pedra da memória em uma das mãos e uma adaga na outra. A Primeira Bruxa também estava ali, entregando à bruxa a pedra que levaria embora o que ela queria esquecer. As imagens foram desaparecendo, precisando de mais magia para alimentá-las.
“Espere!”, gritou Sofia.
Desesperada para saber mais, ela pegou o crânio que estava no ponto sul e sussurrou um feitiço que fez com que ele se espatifasse, espalhando estilhaços de osso pela superfície escura, na esperança de que o espelho os usasse para alimentar mais imagens. E foi o que aconteceu. No
entanto, mais uma vez, o que viu não era exatamente o que esperava. Sofia contemplou sua ilha, depois foi invadida por vislumbres de outras cidades e de épocas desconhecidas, que tomaram conta da visão. As imagens só podiam estar erradas.
Mas… se não estivessem, tudo que as anciãs do coven contaram tinha que ser mentira. Incluindo de onde elas eram.
Era bastante absurdo; o que ela via não podia ser verdade. Determinada a desvendar o mistério, ela pegou o último crânio. Este tinha rubis nos olhos, um presente adicional da deusa que reinava sobre os mortos. Sofia estilhaçou o crânio e, no mesmo instante, foi jogada para outra época, em que a mesma jovem bruxa de antes parecia estar… Um toque bruto recaiu sobre o ombro da jovem, arrancando-a da visão.
Com o coração acelerado, Sofia piscou até o templo da Morte voltar a entrar em foco. Com medo do que ou de quem havia lhe arrancado da visão, ela pegou a adaga e se levantou. Sua atenção foi parar na pessoa que a havia interrompido. A figura tirou o capuz do manto que a cobria, revelando um rosto familiar e severo.
Os ombros de Sofia relaxaram e ela abaixou a lâmina. Por um momento de terror, achou que havia invocado um inimigo.
“Graças à deusa é você. Eu vi uma coisa incrível sobre a nossa maldição e nossa cidade. Sei quem é a filha da Primeira Bruxa, pelo menos, acho que sei. Você nunca vai acreditar no que vi.”
Sofia estava muito cheia de magia obscura, muito abalada pela verdade que havia descoberto, para notar o brilho perigoso nos olhos da outra bruxa.
“E nem você.”
“Não compreendo…”
Com um movimento do pulso e uma maldição pungente, a bruxa lançou um feitiço que jogou Sofia para trás. Seu crânio rachou contra o altar, fazendo-a ver um lampejo brilhante de estrelas que a deixaram estupefata por um momento. Antes que ela conseguisse pensar com clareza e proferir um feitiço de proteção para si mesma, a mente de Sofia se fragmentou como o espelho no qual a outra bruxa pisou, destruindo a verdade que ainda transparecia em sua superfície escura.
Sofia abriu a boca para gritar, mas não conseguiu fazer outra coisa além de falar em línguas. Logo, tudo que ela podia ver eram aquelas imagens estranhas que o espelho havia mostrado.
Se estava prestes tentar gritar pedindo ajuda mais uma vez, Sofia não se lembrava de qual era a razão para isso.
Ela olhava fixamente, sem ver nada de verdade, quando a outra bruxa pegou o primeiro livro de feitiços e caminhou pelo templo devagar, sem olhar para trás, para sua amiga. O tempo todo, Sofia repetia em voz baixa uma frase, um cântico, uma benção, uma súplica.
Ou talvez fosse a chave para desvendar todo o mistério…
“Assim como é em cima, é embaixo.”
e uma só vez, velas ganharam vida pelo quarto do Príncipe da Ira.
Apesar de meus esforços para não sorrir para o demônio, meus lábios traidores se curvaram sozinhos para cima. Registrando a pequena ação de onde estava, na varanda, a atenção do príncipe passou à minha boca e permaneceu ali um pouco mais do que o necessário.
Seu olhar quente provocou outro tipo de calor que se espalhou sobre mim quando chamas com ponta douradas surgiram na lareira, queimando e crepitando com fúria.
Era uma sensação agradável, principalmente depois do frio que havia se alojado em meus ossos. Ver minha irmã no Espelho das Três Luas rompeu algo vital em mim.
Algo que eu me recusava a examinar naquele momento. Demorando-me ao lado da cama de Ira, com a túnica agora descartada aos meus pés, eu soube que não fora o pecado de seu nome que havia feito as chamas arderem em seu quarto. Era o desejo que ele estava tentando controlar; a paixão que eu havia inflamado ao escolhê-lo, sabendo exatamente quem ele era e ainda assim concordando em me tornar sua rainha perversa. Como ele já havia roubado minha alma, agora eu lhe oferecia meu corpo. Sem jogos ou laços de
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magia nos impelindo a ficar juntos. Sem me concentrar em Vittoria e na forma como meu coração doía cada vez que eu pensava no ardil de minha irmã.
Meus olhos ardiam com lágrimas não derramadas só de pensar em minha irmã, e eu tentava desesperadamente conter minhas emoções. Ira sentiria minha mágoa, e essa era uma conversa que eu não queria ter. Aquela dor poderia esperar até o dia seguinte, quando eu encontrasse minha irmã gêmea nas misteriosas Ilhas Mutantes e ouvisse o que ela queria me dizer.
Até lá, eu não queria passar nem mais um minuto me perguntando por que ela havia fingido a própria morte. Ou como pôde ter me magoado de forma tão terrível por tanto tempo. Eu já tinha dado a Vittoria meses de minhas lágrimas e fúria em minha jornada para vingá-la.
Tudo que eu queria naquele momento era ele. Ira. Samael. Rei dos demônios. O mais temido dos sete príncipes imortais do Inferno. General da Guerra e o diabo literal. Tentação e pecado em carne e osso. Um pesadelo para muitos, mas que, para mim, era como um sonho. E se o demônio amaldiçoado não rastejasse entre os lençóis comigo naquele instante, eu mesma faria um certo inferno.
“Vai ficar aí parado a noite toda, vossa majestade?”
Arqueei uma sobrancelha, mas a única resposta de Ira foi um leve estreitar de seus olhos dourados. Criatura teimosa e desconfiada. Só mesmo ele para questionar por que eu estava despida ao lado de sua cama em vez de libertar seus anseios mais básicos e carnais, como eu desejava.
“Se necessita de mais provas da minha decisão…”
“Emilia.”
O modo como ele pronunciou meu nome me preparou para a decepção. Seu tom de voz indicava que precisávamos conversar, e conversar era tudo que eu não queria fazer. Conversar levaria a lágrimas, e isso me obrigaria a confrontar como havia me afetado de forma profunda ter visto Vittoria. Eu preferiria mil vezes me perder nos beijos viciantes de Ira.
“Por favor, não”, pedi em voz baixa. “Estou bem. De verdade.”
O demônio parecia apreensivo, nada convencido. Certa vez ele havia me dito para querer, mas jamais precisar. Mas esta noite, eu queria e precisava com toda as minhas forças, e não me importava se
aquilo me enfraquecia. Torci para que ele não me mandasse para o meu quarto sozinha. Não conseguiria suportar a solidão. Precisava de conforto, de uma conexão. De um pouco da paz que só ele poderia me dar nesse instante.
Naquele momento, as cortinas leves que separavam o quarto da varanda agitaram-se com a brisa invernal, tentando-o a se juntar à sua rainha seminua. Era como se o próprio reino quisesse que nos uníssemos de uma vez por todas. Com velas tremeluzindo de leve e tecidos escuros, o ambiente transpirava uma sensualidade silenciosa. Era um cômodo feito de todos os tipos de sussurros: aqueles em que as palavras eram ditas com gentileza, com reverência junto aos lábios, e os sussurros de roupas deslizando pela pele.
Duas coisas que eu desejava vivenciar com esse príncipe de uma só vez.
Ira havia confessado para mim que acreditava no poder das ações sobre as palavras. Lembrando-me disso, entrei em ação. Ainda imóvel, ele observou enquanto eu me curvava e tirava as botas. Não tinha como eu saber se ele havia percebido minhas emoções relacionadas Vittoria e interpretado de forma incorreta, ou se ainda não confiava que eu queria completar o passo seguinte na aceitação de nosso casamento.
Dormirmos juntos era um dos dois atos finais necessários para nos tornarmos marido e mulher. Podíamos fazer sexo sem sermos casados, mas eu queria completar nosso laço.
Por causa da maneira como tínhamos nos conhecido — eu o invoquei em Palermo e depois, em um acidente, o prendi a mim por toda a eternidade — e pelo fato de nós dois termos jurado odiar um ao outro e nunca termos compartilhado mais que alguns beijos, era compreensível que fosse essa a fonte de sua apreensão.
Vários meses antes, eu também diria que aquela noite era improvável. Mas isso foi antes de eu reconhecer que havia mais em nossa história. Que eu queimava por ele com tanto ímpeto quanto as flores rosa-douradas ardentes que eu podia invocar com a ponta dos dedos quando quisesse. Outra coisa que eu teria pensado ser impossível, e mais um mistério para resolver, assim como a verdade de quem eu realmente era. Mas isso poderia esperar. A única coisa na qual eu queria pensar era em me apropriar de meu rei demoníaco.
Flocos de neve começaram a cair ao redor dele, salpicando de leve os cabelos escuros e os ombros largos, mas ele pareceu nem notar. Os elementos árduos do inverno nunca o incomodavam, mas era provável que isso se devesse ao fato de ele ser uma força da natureza em si mesmo.
Olhei em seus olhos intensos enquanto passava a anágua pelos quadris e a tirava, jogando-a em cima da túnica. Ira quase ficou sem fôlego quando notou que eu não estava usando roupas de baixo. Com as mãos cerradas em punho, os ossinhos dos dedos ficaram brancos pela tensão. Não era exatamente a reação que eu esperava ao tirar a roupa.
Com a testa franzida, repassei nossa conversa, lembrando-me com cuidado de cada palavra. Depois de me enganar e me convencer a fazer um acordo com ele, para garantir que nenhum de seus irmãos se aproveitasse de mim quando entrei no submundo pela primeira vez, eu tinha perguntado se ele ainda me considerava sua.
Agora, parado com rigidez do lado de fora do cômodo, na neve, sem fazer um único movimento para se juntar a mim dentro de seu quente e convidativo quarto, fiquei preocupada de tê-lo entendido mal. Ele havia dito apenas que não precisava de tempo para pensar. O que, tecnicamente, não significava que ele me considerasse sua
“Você mudou de ideia?”, perguntei.
Ira analisou meu rosto com a expressão fechada.
“Você me escolhe de bom grado. Sabendo quem eu sou. Do que sou capaz.”
Não eram perguntas, mas fiz que sim com a cabeça.
“Sim”, reafirmei.
“E essa decisão não tem nada a ver com a sua irmã?”
Ele me observou com cuidado, e eu soube que estava tentando sentir a mínima mudança em minhas emoções. Ira não me levaria para sua cama se acreditasse que qualquer força além de meu próprio desejo estivesse me conduzindo a ele. Por uma das primeiras vezes desde que nos conhecemos, eu oferecia a ele nada além da verdade. Se tínhamos alguma esperança de seguir em frente juntos, os jogos entre nós precisavam terminar.
“Eu te quis naquela noite na festa de Gula. E antes disso… você se lembra de quando usou magia para remover a intoxicação de mim enquanto treinávamos contra o pecado dele? Também te quis naquele
momento. Isso tudo aconteceu muito antes de eu ver Vittoria.” Obriguei-me a continuar olhando nos olhos dele para provar que estava falando sério. “E hoje me dei conta de que, durante todo esse tempo, você sempre me ajudou. Seus métodos podem nem sempre ter sido os ideais pelos padrões mortais, mas tudo que você fez foi para me ajudar. Eu quero você , e isso não tem nada a ver com mais ninguém.”
Após uma longa pausa, que me deixou tensa e com medo da rejeição, ele enfim caminhou da varanda para o quarto, diminuindo aos poucos a distância entre nós. Sua atenção vagueou dos meus olhos para os meus lábios, até mergulhar mais para baixo e observar meu corpo.
Uma selvageria de trincar os joelhos adentrou seu olhar enquanto ele me devorava mentalmente, centímetro por centímetro, pausando naquela área pulsante entre minhas coxas que, de repente, ansiava por ele. Um gemido baixo retumbou em seu peito, confirmando que ele sentia meu desejo.
Meu desejo mais sincero era que ele permitisse que aquela fera, qualquer que fosse ele, fosse liberta naquela noite. Queria experimentar cada coisa perversa e depravada com as quais ele só havia sonhado.
Ele abriu um sorriso repleto de promessa pecaminosa, indicando que estava mais do que disposto a ir em frente.
Mesmo com o gelo da tempestade em seu corpo, senti tudo, menos frio, quando ele se aproximou. Entre seu olhar escaldante e a forma silenciosa com que traçava cada uma de minhas curvas, como se tramasse todas as coisas que estava prestes a fazer… Era quase suficiente para me fazer derreter bem ali.
“Conte-me todos os seus desejos obscuros, Emilia.” Ele inclinou meu rosto para cima. “Todas as fantasias que deseja tornar realidade.” Seus dedos acariciaram de leve o ponto pulsante em meu pescoço antes de levar a boca à minha, o beijo um mero roçar de lábios que me deixou sem fôlego e cheia de desejo. Ele se afastou e contornou meu corpo aos poucos com as mãos. “Juro que vou realizar todas elas.”
Meu foco pairou sobre a extensão de roupas finas e o corpo rijo escondido sob elas.
“Tenho algumas ideias.”
Seu novo olhar indicava que ele também tinha algumas ideias interessantes.
Podíamos discuti-las em outros lugares, mas nisso estávamos bem-aventuradamente unidos. Puxei-o para mais um beijo, querendo apreciar o momento por toda a eternidade. Logo, o beijo doce tornou-se voraz, pois nenhum de nós estava satisfeito com a lentidão e a delicadeza. Éramos seres alimentados pela raiva, pela paixão. E eu queria que a nossa primeira vez juntos fosse tão explosiva quanto nosso temperamento.
Se Ira desejava me conceder cada desejo obscuro que eu tinha, eu esperava que ele estivesse preparado para acompanhar o meu ritmo. Mordisquei seu lábio inferior e, com um gemido de aprovação, ele respondeu na mesma moeda.
Ira logo declarou guerra em minha boca e batalhou como o general que era, sem fazer prisioneiros. Havia propriedade em seu beijo, havia posse. E eu fazia o mesmo. Ele era meu . Cada centímetro de sua alma perversa, cada batida firme de seu coração pertencia a mim.
As mãos dele acariciavam meu corpo e um calor doce se depositou bem no fundo de minha barriga, espalhando-se a cada passada gloriosa de seus dedos calejados. E justo agora ele estava totalmente vestido…
Arranquei seu paletó, depois puxei a barra da camisa e a rasguei, tomada pela necessidade de vê-lo, de senti-lo pele com pele.
Ele interrompeu o beijo, afastando a boca, entretido.
“Por mais tediosas que as virtudes costumem ser, a paciência pode se provar válida nesse momento.”
“Neste caso, eu esperava que você fosse mais habilidoso com o pecado. Se eu me lembro bem, foi você que me perguntou uma vez se que gostaria de ver o quanto você poderia ser perverso.” Voltei a atenção para ele, escondendo meu sorriso enquanto seus olhos piscavam. “Isso é mesmo o melhor que pode fazer?”
“Está me desafiando?”
Ergui um ombro, sabendo muito bem o que estava fazendo e gostando da reação que havia provocado nele. Dado o volume em sua calça, ele também não pareceu se importar. Demônio perturbado.
“E se estiver, o que você vai fazer?”, perguntei.
“Vá para a cama, milady .”
A voz dele era suave, mas não havia docilidade no comando. Dei passos ousados para trás até encontrar a cama e me inclinar sobre ela,
afundando os dedos na manta cor de ébano posicionada com muito bom-gosto na beirada. No passado, tinha imaginado qual seria a sensação do pelo tocando minha pele nua.
Estava prestes a descobrir.
Ira fez um sinal com o queixo, indicando que me queria toda sobre a cama, não apenas na beirada. Com o coração acelerado de expectativa, eu me levantei e deslizei pelo colchão enorme, contendo um gemido quando o pelo macio deu lugar aos lençóis de seda fria. A sensação era melhor do que eu imaginava. Luxúria e imoralidade misturadas com algo um pouco selvagem e indomável.
Bem como o mestre de sua Casa de Pecado.
Ira desabotoou a calça, olhando em meus olhos. Um desafio por si só para ver se eu estava mesmo preparada para o que estava por vir. Sua calça caiu no chão e sua rigidez surgiu livre, intimidante e tentadora, ávida por mim.
Mordi o lábio inferior, quase submetida ao desejo enquanto o assimilava. Deusa do céu, ele era lindo. Minha atenção passou de sua rigidez gloriosa para o restante de seu corpo. Mais de um metro e oitenta de puro músculo, com uma pele bronzeada que brilhava com vitalidade, preenchiam minha visão. Ele era um estudo de caso do poder masculino somado à beleza brusca.
Ele se aproximou e meu foco mudou da serpente metálica tatuada em seu braço para a tatuagem na coxa esquerda: uma adaga virada para baixo com rosas gravadas na superfície.
Não consegui distinguir os desenhos geométricos de seu cabo, e quando Ira envolveu a si mesmo com a mão tatuada e movimentou o pulso, minha mente esvaziou. O demônio me lançou um olhar presunçoso, como se soubesse exatamente o que sua provocação sedutora estava fazendo. Que a deusa o amaldiçoe . Eu queria substituir sua mão pela minha. Melhor ainda, queria usar minha…
… Um estalo violento dividiu o ar como o chicote de um deus zangado, e o quarto de Ira, assim com o demônio que era seu dono, desapareceu, substituído por um cômodo vazio, frio, sem luz alguma.
Foi uma mudança tão drástica que eu não entendi de imediato que era real. Pisquei rápido, tentando me ajustar à escuridão repentina. Sombras se moviam pelo que eu sentia ser um espaço pequeno, quase se retorcendo umas sobre as outras em um desvario.
Senti arrepios nos braços quando o ar frio se tornou cortante.
Só podia ser mais uma ilusão estranha. Eu já tivera algumas, mas nenhuma delas tão vívida assim. Elas desencadeavam toda vez que Ira e eu nos envolvíamos em atos românticos, de modo que essa devia ser a razão para o que estava acontecendo. Praguejei pelo momento importuno da intrusão, odiando que o passado de alguém tivesse me tirado do meu delicioso presente.
Tentei massagear as têmporas, mas não consegui mover as mãos. Levantei os olhos e notei um par de algemas ao redor dos meus pulsos. Puxei-as, mas estavam presas no teto. Correntes retiniam a cada movimento, o som hostilizava meus nervos rapidamente desgastados. Sangue e ossos . Olhei para baixo. Nesta visão eu estava nua, como em minha realidade atual. Que maravilha. Havia saído de um sonho para entrar em um pesadelo.
Soltei um longo suspiro. Minha respiração saiu em pequenas nuvens brancas, e depois ficou tensa. Que estranho . Ao contrário de outras ilusões, parecia que eu tinha algum controle. Não era como entrar em uma lembrança ou ver o passado da perspectiva de outra pessoa. Estreitei os olhos.
Se aquilo não era uma ilusão ou lembrança…
“Pelos sete círculos do Inferno, o que está acontecendo?”
O som inconfundível de uma bota raspando na pedra fez meu pulso acelerar e eu senti uma pontada forte de medo.
“Ira?”
Em algum lugar próximo, um fósforo foi riscado. O som precedeu o cheiro de enxofre que se espalhou pelo ar. Uma pequena chama tremeluzia do outro lado do espaço, mas quem quer que houvesse acendido a vela havia desaparecido como um passe de mágica. Sacudi as correntes mais uma vez, puxando com o máximo de força que pude, mas elas não cederam nem um centímetro. A menos que eu arrancasse minhas mãos, não escaparia até meu sequestrador me libertar.
Para aplacar o pânico que aumentava, estreitei os olhos para tentar ver alguma coisa na semiescuridão, tentando encontrar alguma pista da minha localização ou do meu sequestrador. Estava em uma câmara de pedra, acorrentada em uma espécie de alcova.
No centro do espaço principal havia um altar esculpido a partir da pedra clara que compunha as paredes e o chão. Palha e ervas secas ocupavam o piso. Era um pouco parecido com o mosteiro de minha cidade, onde minha amiga Claudia trabalhava com os mortos, mas não muito.
Pensar naquelas câmaras incitava lembranças dos espiões mercenários invisíveis que me assombraram por lá. Parecia que fazia uma eternidade que eu havia encontrado um demônio Umbra. Lutei contra um calafrio. Se eu nunca mais visse um daqueles demônios horripilantes, teria uma vida boa e feliz.
“Quem quer que esteja aí, revele-se.”
Agitei as correntes. O eco do metal retinindo foi a única resposta que recebi, embora pudesse jurar ter ouvido um leve som de alguém respirando por perto. Não vi nenhum sopro de respiração, mas sabia que aquilo não significava que eu estava sozinha. Ira nunca me pregaria esse tipo de peça, ainda mais considerando o que estávamos prestes a fazer, o que excluía a possibilidade de isso ser algum tipo de preliminar demoníaca.
Reuni uma falsa coragem.
“Até quando estou acorrentada você tem medo de falar comigo?”
“Não tenho medo”, uma voz grave e com sotaque soou na escuridão.
Perdi o fôlego. Eu já tinha ouvido aquela voz, mas não me lembrava onde. Não era Anir, o aliado de confiança de Ira. Nem parecia nenhum dos irmãos do príncipe demoníaco. Aquele sotaque era da minha ilha no mundo mortal. Tinha certeza disso.
“Se não está com medo, então não tem motivo para se esconder de mim.”
“Estou esperando novas ordens.”
“De quem?”
Um silêncio desconfortável pairou entre nós. Era difícil simular autoridade estando nua, acorrentada e falando com um sequestrador fantasma, mas tentei mesmo assim.
“Quem quer que seja, seu mestre logo vai estar aqui. Não há necessidade de guardar segredo.”
“Você não precisa se preocupar comigo.”
Uma frase que todo assassino e criminoso provavelmente disse a suas vítimas pouco antes de cortarem suas gargantas. Engoli em seco. Eu precisava que ele continuasse falando para me lembrar quem ele era, e havia
descoberto que perturbar uma pessoa fazia com que ela reagisse, mesmo se não quisesse. Ira e eu tínhamos usado este método um com o outro nos últimos meses, e eu poderia beijá-lo em agradecimento pelo treino.
“Seu mestre ordenou que permanecesse nas sombras?”
“Não.”
“Hmm. Entendi.”
“O quê?”
“Você não passa de um pervertido que gosta de observar suas vítimas, sabendo que elas não podem vê-lo. Diga uma coisa, você está se tocando agora? Imaginando qual a sensação de minha pele enquanto acaricia a sua? Por que não chega mais perto?”
E me deixa dar uma joelhada na sua virilha até ela ir parar em seus pulmões .
O homem se materializou na minha frente com um olhar de pura provocação no rosto. De fato, não era um demônio, mas isso não me tranquilizava. Respirei fundo.
“Domenico Nucci.”
O jovem que vendia arancini com sua família em Palermo me encarou com intensidade. Garras com aparência mortal surgiram na ponta de seus dedos e depois se encolheram, lembrando-me de que ele não era mais humano do que eu. Eu tinha quase esquecido que o homem que eu havia pensado que minha irmã gêmea estava cortejando em segredo era um transmorfo. Lobisomem, para ser mais exata. Criaturas temperamentais, na melhor das hipóteses, e, com base no que eu me lembrava de seu pai ter me dito, eu tinha acabado de provocar um recém-transmutado. Eu não fazia ideia de quanto controle ele tinha sobre o seu lobo, mas apostaria que não era muito.
Os olhos de Domenico, que costumavam ser de um castanho quente, brilhavam em um tom de lilás sobrenatural ao se firmarem em mim, confirmando minha suspeita. Ele estava prestes a se transmutar.
Prendi a respiração, esperando que desse o golpe fatal. Parecia que ele ia se aproximar, com a mandíbula trincando por estar se contendo enquanto a raiva irradiava dele como um sol furioso. O lobo respirou fundo várias vezes e girou os ombros, rompendo a crescente tensão. Com um movimento de sua mão com garras, algumas das sombras se libertaram do desvario e me cercaram, criando uma espécie de robe.
“Onde estamos?”, perguntei, ignorando a estranheza do robe que se acomodava sobre minha pele e o fato de o lobisomem ter feito essa magia sem ao menos sussurrar um feitiço.
“No Mundo das Sombras.”
Absorvi a informação em silêncio. Durante a minha infância, a nonna Maria nos ensinou sobre os transmorfos e sobre algumas outras criaturas mágicas. Segundo as histórias de minha avó, os lobos travaram guerras sobrenaturais contra os demônios no mundo dos espíritos, o que deve ser o que ele quis dizer com Mundo das Sombras.
Eu sempre havia imaginado que o mundo dos espíritos estaria cheio de fantasmas assustadores e etéreos atravessando paredes, como eram retratados em novelas góticas. Mas aquilo era bem diferente da minha imaginação. Domenico era totalmente corpóreo. E eu, com certeza, podia sentia o peso das algemas geladas que apertavam minha pele.
Também senti algo que não tinha sentido antes: o leve zunido da magia no metal. Aquelas não eram algemas comuns; tinham sido enfeitiçadas para afastar meus poderes.
Dei uma leve incitada em minha fonte de magia e, como eu suspeitava, atingi uma barreira que me impediu de invocar fogo.
Tive a sensação terrível de que sabia quem era o mestre dele, e não queria que minha magia estivesse limitada em nosso encontro. Olhei para o meu sequestrador. Nunca ouvira falar de lobos transportando pessoas com eles para o mundo dos espíritos e, até aquele momento, não acreditava que isso fosse possível, ainda mais para um lobisomem recém-transmutado. Domenico devia ser imensamente poderoso. Um futuro alfa em formação.
“Meu corpo físico ainda está nos Sete Círculos?”, perguntei.
Domenico me percorreu com o olhar, seus olhos perdendo um pouco daquele brilho transmorfo.
“Está.”
Não sabia como aquilo era possível, e o olhar do lobisomem indicava que não responderia outra pergunta sobre o assunto. Sabendo como ele seria perigoso caso se transformasse em lobo, deixei para lá. Ele já havia me dado informações importantes de que eu precisava.
Meu corpo ainda estava no quarto de Ira, e o demônio, sem dúvida, estaria procurando uma forma de me trazer de volta. Se eu não conseguisse escapar sozinha, teria que aguardar até ele buscar minha alma
e liberar seu poder. Qualquer um que fosse tolo o bastante para atacar sua noiva em sua Casa real merecia sentir o pecado que lhe dava nome. Eu quase sorri, imaginando a carnificina que ele provocaria para fazer justiça, mas me contive.
“Está muito frio aqui.”
“Eu não acho.”
Eu queria esfregar meus braços, forçando o calor a voltar para o meu corpo, mas não conseguia devido às correntes. Domenico me observava de perto, com um brilho ameaçador adentrando os olhos. Um movimento errado e ele prensaria os dentes em minha garganta, fossem quais fossem as suas ordens. Ele estava muito mais volátil do que da primeira vez que o vira, embora provavelmente isso se devesse à transmutação. Eu havia ouvido falar que lobos jovens às vezes levavam anos para amadurecer por completo.
Incapaz de tolerar seu olhar silencioso, pigarreei.
“Quando eu te vi no mosteiro após o ‘assassinato’ de Vittoria, achei que estava orando por ela. Mais tarde, descobri que você estava lá porque havia transmutado pela primeira vez. Você não suspeitava mesmo do que era antes daquele dia?”
Um músculo em sua mandíbula se contorceu.
“Você sabe o que é, Emilia?”
Não deixei de notar que ele disse o que e não quem . Eu tinha minhas suspeitas, mas ele não precisava saber quais eram.
“Sei que sou sua prisioneira. Sei que Ira vai te perseguir e arrancar membro por membro seu se alguma coisa acontecer comigo.”
Sorri, deixando meus lábios formaram uma curva cruel e perversa. O lobo pareceu se dar conta de que ele podia ter me acorrentado e limitado minha magia, mas que não era o único predador naquela câmara.
“E não há um mundo sequer em que você possa se esconder antes que ele te encontre”, continuei. “Isto é, se eu não te pegar primeiro. Ira é o misericordioso de nós dois. Não se esqueça disso.”
“Ora, ora, irmã.”
Mesmo que eu já estivesse esperando isso, de certa forma, ouvir a voz da minha irmã gêmea fez meu coração se apertar de dor. Minha atenção foi parar no outro lado da câmara, recaindo de uma vez sobre Vittoria.
Minha irmã deslizava pelo pequeno cômodo como um fantasma do passado, usando um longo vestido branco que fluía atrás dela como se levado por uma brisa imaginária. Havia uma qualidade onírica em sua presença, mas ela era tão real quanto eu e Domenico. Olhei para ela com atenção, procurando algum ferimento, embora soubesse que era ela que controlava o lobisomem, e não o contrário.
Lágrimas fizeram meus olhos arderem quando tudo ficou claro. Vittoria estava mesmo ali. Viva. Era difícil acreditar que fazia apenas uma ou duas horas que eu havia descoberto que ela não estava morta. Apesar de sua traição, eu queria envolvê-la nos braços e nunca mais soltar.
Era um milagre abençoado pela deusa.
“Vittoria.”
Mal passou de um sussurro, mas ao ouvir o som da minha voz, os lábios de minha irmã gêmea se curvaram em um sorriso familiar e cheio de malícia. Se eu não estivesse acorrentada, teria caído de joelhos. Vê-la no Espelho das Três Luas era uma coisa; tê-la na minha frente era estarrecedor. As palavras me faltaram quando minha irmã se aproximou, observando-me com curiosidade.
“Vamos desacorrentar você para ver que truques aprendeu.” Seus olhos cor de lavanda brilhavam, lembrando-me de que ela havia mudado por completo. Aquela não era a garota dos olhos castanhos iguais aos meus. A jovem que amava criar suas próprias bebidas e perfumes. Aquela estranha era outra coisa. Algo que fazia os pelos finos de meus braços se arrepiarem. “A deusa sabe que eu mesma tenho alguns para mostrar. Transmorfo?”
Domenico se moveu com uma velocidade sobrenatural e agarrou meu cabelo, forçando minha cabeça para o lado. Ele levou o nariz ao meu pescoço e deu uma boa fungada, provavelmente para memorizar o meu cheiro caso eu tentasse escapar. Contraí os músculos devido à dor repentina, mas consegui conter o grito.
Ele rosnou. Quando aproximou a boca do meu ouvido, o som estava longe de ser humano.
“Tente qualquer coisa idiota e eu vou arrancar mais do que apenas seu coração mortal, Bruxa Sombra.”
“Chega, cachorrinho” repreendeu Vittoria. “Não seja muito duro. Ainda.”
Antes que eu pudesse absorver a mágoa que aquela declaração gerou ou me perguntar como as coisas poderiam ficar mais duras, além de eu estar acorrentada, Domenico me empurrou para longe e, fazendo outro movimento de mão preguiçoso, abriu as trancas de minhas algemas. Minhas contenções caíram no chão emitindo um ruído tão agourento quanto a lâmina de um executor descendo sobre o condenado. Era isso, esse era o momento que eu temia, e para o qual me sentia completamente despreparada.
Com o coração acelerado, virei as costas para o lobisomem enfurecido e encarei minha gêmea não morta, fortalecendo-me quando nossos olhares se encontraram e nos encaramos.
Vittoria tinha deixado que eu acreditasse que ela estava morta durante meses. Assassinada de forma violenta. Permitira que eu descobrisse seu corpo sem coração, violado e ensanguentado em uma tumba. Sua “morte” tinha acabado com o meu mundo e destruído quem eu era no nível mais básico. O ardil de Vittoria era uma ferida que nunca se fecharia de verdade; ela deixaria cicatrizes emocionais em minha alma e em meu coração para sempre.
Mesmo vendo-a parada diante de mim, viva e bem, não havia esperança de algum dia voltarmos a ser o que éramos antes . Muita coisa tinha se passado entre nós para apenas esquecermos e seguir em frente, e aquilo, mais do que qualquer outra coisa, era algo que eu lamentava. Não importa quanto eu desejasse que fosse diferente, nós duas havíamos mudado de maneira irrevogável. E eu não sabia ao certo se as peças de nossa nova vida ainda se encaixariam.
Para enfrentar a dor crescente em meu peito, pensei em meu prometido. Em como minha irmã gêmea também havia arruinado esta noite. Em vez do sofrimento, concentrei-me na fúria, na ira que me movera em meu próprio inferno pessoal. E todas as emoções, à exceção de uma, desapareceram. Se eu conseguisse sentir preocupação em vez de pura ira, talvez o sorriso triunfante de minha irmã tivesse me causado certo desconforto. Mas ela estava prestes a descobrir que não era a única que podia provocar apreensão. Era hora de Vittoria temer a mim .
Mergulhei em minha fonte de magia, aliviada por sentir o enorme poço de poder que crepitava sob minha pele. Se minha irmã queria ver do que eu era capaz, eu ficaria feliz em lhe mostrar.
“Você tem cinco minutos para se explicar.” Minha voz era mais fria do que o ar que nos cercava, mais fria do que o mais perverso círculo do Inferno. Juro que as sombras pararam e logo desapareceram, escondendo-se do grande acerto de contas que sentiam estar por vir.
“Senão?”, perguntou Vittoria.
Meu sorriso era um belo pesadelo. Pela primeira vez, Vittoria franziu a testa, como se tivesse acabado de se dar conta de que havia uma falha fatal em seu plano. Monstros podiam ser criados, mas nunca domados.
“Senão, cara irmã, você vai conhecer a bruxa que me obrigou a me tornar.”
Duas maldições. Uma profecia. O acerto de contas que todos temiam.
Em Reino das Bruxas: Poder Arcano, desfecho épico da trilogia da premiada Kerri Maniscalco, Emilia se depara com uma revelação impressionante sobre sua irmã, Vittoria. Determinada a enfrentar os fantasmas do passado, ela busca não apenas conquistar o sedutor Ira em corpo, mas também em coração e alma. No entanto, o enigmático demônio não pode lhe prometer tudo. À medida que alianças se formam e se desfazem, facetas anteriormente não exploradas dos personagens que conquistaram nossos corações desde o primeiro livro são reveladas. Preparese para se despedir desta odisseia no coração do inferno.