Wicked - Book Preview

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Na Estrada de Tijolos Amarelos

Pairando uns dois quilômetros acima de Oz, a Bruxa se equilibrava na jusante do pé de vento como se ela fosse um pedacinho verde de terra firme, arrancado do solo e arrastado com tudo pelo ar turbulento. Nuvens brancas e roxas prenhas de tempestades de verão se avultavam ao seu redor. Lá embaixo, a Estrada de Tijolos Amarelos serpenteava sobre si mesma, como uma corda frouxa. As chuvas de inverno e os pés de cabra dos arruaceiros haviam destruído parte da via, mas ela ainda levava inexoravelmente à Cidade de Esmeraldas. A Bruxa conseguia ver o grupo de amigos marchando, contornando valas, disparando em carreiras quando o caminho estava livre. Pareciam alheios ao próprio destino, mas não era função da Bruxa mudar isso.

Ela usou a vassoura como apoio vertical, descendo do céu como um de seus macacos voadores. Pousou os pés no ramo mais alto de um salgueiro-negro. Na base da árvore, escondidos pelas frondes, suas presas descansavam. A Bruxa prendeu a vassoura debaixo do braço. Com passos laterais e silenciosos, foi descendo aos pouquinhos por entre os galhos até ficar pouco mais de cinco metros acima do grupo. O vento chacoalhava os galhos pênseis do salgueiro. A Bruxa apurou os ouvidos e observou. Estavam em quatro. Ela conseguia ver o que parecia um Felino grande — um Leão, será? — e um lenhador brilhoso. O Homem de Lata catava lêndeas da juba do Leão enquanto este resmungava e se encolhia,

irritado. Um Espantalho ambulante perambulava por perto, soprando dentes-de-leão ao vento. A garota estava fora da linha de visão da Bruxa, escondida atrás da cortina ondulante dos ramos da árvore.

“Pelo que dizem, a irmã que sobreviveu é a doida, inclusive”, dizia o Leão. “Uma Bruxa biruta. De psicológico mais para lá do que para cá; possuída por demônios. Insana. É feia a coisa.”

“Ela foi castrada assim que nasceu”, respondeu o Homem de Lata, calmo. “Era intersexo, ou totalmente homem, sei lá.”

“Ai, cara, você vê castração em todo lugar”, disse o Leão.

“Só estou repetindo o que o falam por aí”, disse o Homem de Lata.

“Cada um conta uma coisa”, disse o Leão, aéreo. “O que ouvi é que a mãe dela não a amava. Foi maltratada quando criança. Ficou viciada em remédio por causa da doença de pele.”

“Ela quebrou a cara no amor”, disse o Homem de Lata. “Que nem a gente.” O Homem de Lata parou e levou as mãos ao peito, como se estivesse sofrendo.

“É uma mulher que gosta de ficar com outras mulheres”, disse o Espantalho, sentando-se.

“É a amante abandonada de um homem casado.”

“ Ela é um homem casado.”

De tão atordoada, a Bruxa quase escorregou do galho. Não estava nem aí para fofoca, mas tinha passado tanto tempo reclusa que ficou chocada de ouvir aquele monte de zés-ninguém aleatórios dando tantas opiniões vigorosas a seu respeito.

“É uma déspota. Uma tirana perigosa”, disse o Leão, convicto.

O Homem de Lata puxou com força desnecessária uma das madeixas da juba.

“Tudo é perigoso para você, covardão. Ouvi dizer que ela é uma defensora ferrenha da independência daqueles tais de winkies.”

“Não sei quem ela é, mas sei que deve estar sofrendo por causa da morte da irmã”, disse a menina, em uma voz melancólica intensa e sincera demais para alguém tão jovem.

A Bruxa sentiu um calafrio.

“Lá vai você sentir compaixão… Algo que eu com certeza não consigo fazer.” O Homem de Lata fungou com um tiquinho de cinismo.

“Mas a Dorothy está certa”, disse o Espantalho. “Todo mundo fica de luto.”

A Bruxa estava horrorizada com as especulações condescendentes. Deu a volta no tronco da árvore, esticando o pescoço para espiar a garota. O vento apertou, e o Espantalho estremeceu. Sem parar de vasculhar a cabeleira do Leão, o Homem de Lata se aninhou contra o corpo do felino, que o abraçou com carinho.

“Tem uma tempestade vindo aí”, disse o Espantalho.

A quilômetros dali, trovões ecoaram.

“Tem… uma… bruuuuuxa vindo aí”, disse o Homem de Lata, fazendo cócegas no Leão.

Assustado, o felino pulou no colo do Espantalho, choramingando, e o Homem de Lata se largou em cima dos outros dois.

“Queridos amigos, não acham que a gente devia se preocupar com a chuva?”, disse a menina.

O vento cada vez mais intenso enfim tirou os ramos do salgueiro da frente e a Bruxa conseguiu enxergar a garota. Estava sentada com as pernas encolhidas e os braços ao redor do joelho. Não era magricelinha, e sim uma menina robusta pelo trabalho na fazenda, de vestido xadrez em azul e branco e avental. No colo, um cachorrinho desgrenhado se encolhia e gania.

“Você está irrequieta por causa da tempestade, só isso. É normal se sentir assim depois de ter passado pelo que passou”, disse o Homem de Lata. “Relaxa.”

A Bruxa afundou os dedos na casca grossa da árvore. Ainda não conseguia ver o rosto da menina, só seus antebraços musculosos e a parte de trás da cabeça, de onde o cabelo moreno se dividia em dois rabinhos de cavalo. Será que merecia ser levada a sério ou não passava de uma sementinha de dente-de-leão perdida, arrebatada pelo vento rebelde? Se pudesse ver o rosto da jovem, achava a Bruxa, talvez descobrisse.

Mas quando ela pendeu a cabeça de novo para longe do tronco, a garota se virou, desviando o rosto.

“A tempestade está se aproximando, e rápido.” A expressividade da voz dela aumentou em compasso com a força do vento. Tinha uma veemência rouquenha, como a de alguém à beira das lágrimas. “Eu conheço tempestades, sei bem como chegam chegando!”

“Estamos em segurança aqui”, disse o Homem de Lata.

“Ah, pois não estamos mesmo”, respondeu a garota. “Esta árvore é a coisa mais alta nas redondezas. Se um raio cair, vai ser bem aqui.” Ela abraçou o cachorrinho. “A gente não viu um barracão mais para frente na estrada? Vamos, vamos, Espantalho! Se tiver raio, é você que vai queimar mais rápido! Vamos!”

E disse isso já correndo toda desconjuntada, com os companheiros cada vez mais desesperados em seu encalço. Quando as primeiras gotas pesadas de chuva caíram, a Bruxa viu: não o rosto da menina, mas os sapatos. Os sapatos de sua irmã. Eles cintilavam, mesmo à luz baça do entardecer. Cintilavam como diamantes amarelos, como pedras de âmbar sanguíneo, como estrelas abrolhadas.

Se tivesse visto os sapatos primeiro, a Bruxa nunca teria conseguido ouvir a conversa da garota com seus amigos. Mas os pés da jovem estavam escondidos embaixo do vestido. A visão fez a Bruxa se lembrar do porquê de estar ali. Aqueles sapatos eram para ser dela! Será que não era o bastante ela ter passado por tudo por que passara? Será que não merecia os calçados? A Bruxa se jogaria em cima da menina e arrancaria os sapatos daqueles pezinhos impertinentes na base da força bruta… se pudesse.

Mas o pé-d’água do qual o grupo de amigos fugia, cada vez mais próximo e rápido conforme avançava pela Estrada de Tijolos Amarelos, era mais preocupante para a Bruxa do que a jovem que tinha encarado uma tempestade e o Espantalho que corria o risco de pegar fogo por causa dos raios. A Bruxa não arriscaria se expor àquela umidade violenta e incontestável. Em vez disso, ela se abrigou entre as raízes expostas do salgueiro-negro, onde a água não podia chegar, e esperou a passagem da borrasca.

Ela sairia daquilo por cima. Sempre saía. O clima político de Oz a derrubara, a esturricara, a jogara para longe — como uma sementinha, a Bruxa tinha vagado por aí, aparentemente seca demais para criar raízes. Mas sem dúvida a maldição estava na terra de Oz, não nela. Oz lhe dera uma vida complicada, mas também não a tornara mais capaz?

O grupo havia escapado, mas tudo bem. A Bruxa podia esperar. Eles se encontrariam de novo.

A raiz do mal

Da cama desarrumada, a esposa disse: “Acho que chegou o grande dia, hein. De hoje não passa”.

“Hoje? Isso seria bem a sua cara, perverso e inconveniente”, disse o marido em uma provocação. Parou à porta e olhou para o lago, para os campos, para as colinas arborizadas mais além. Bem no limite de seu campo de visão, enxergava as chaminés de Barra do Arroio cuspindo fumaça do desjejum. “O pior momento para minha carreira de presbítero. Claro.”

A esposa bocejou. “Bom, não tem muito como escolher essas coisas. Até onde sei, né. O corpo só vai ficando maior e de repente assume o controle. ‘Ou colabora ou sai da frente, queridinha.’ Ele toma um rumo próprio e vai que vai, e aí não tem mais como parar o bicho. Sem chance .” Ela ergueu o corpo, tentando enxergar além da barriga protuberante. “Me sinto refém de mim mesma. Ou do bebê.”

“Então exerce algum controle sobre si mesma aí.” Ele se aproximou e ajudou a mulher a se sentar. “Pensa nisso como um exercício espiritual. Domínio dos sentidos. Comedimento, tanto corporal quanto ético.”

“Controle de mim mesma?” Ela riu, puxando-se para mais perto da beira da cama. “A esta altura, já não tenho mais um ‘mim’ para chamar de meu. Sou só a hóspede de um parasita. Cadê meu ‘mim’? Onde larguei essa pobre coitada?”

“Pensa em mim.” O tom dele tinha mudado; estava falando sério.

“Frex…” Ela o puxou para perto. “Quando o vulcão está pronto, não tem sacerdote no mundo que possa rezar pra impedir a erupção.”

“O que os outros presbíteros vão pensar?”

“Acho que vão se reunir e dizer: ‘Companheiro Frexspar, jura que permitiu que sua esposa desse à luz seu primogênito justo agora que a gente tem esse problema da comunidade para resolver? Que falta de consideração; puro sinal de falta de autoridade. Esteja destituído’”. A última parte foi uma provocação, porque ele não podia ser destituído. O bispo mais próximo estava longe demais para dar atenção especial a um clérigo unionista do interior.

“É que o momento não podia ser pior .”

“Acho que metade da culpa disso estar acontecendo justo agora é sua”, disse ela. “Convenhamos, né, Frex.”

“É o que dizem, mas sei lá.”

“ Sei lá? ” Ela riu, tombando a cabeça para trás. O desenho da linha que ia da orelha à clavícula da esposa fazia Frex pensar em uma concha elegante. Mesmo tendo acabado de acordar, com a barriga parecendo uma barcaça, a mulher era majestosamente linda. Seu cabelo tinha a aparência envernizada de folhas outonais à luz do sol. Ele se ressentia pelo fato de ela ter nascido em um ambiente tão privilegiado e admirava seus esforços para compensar o fato — mas, ao mesmo tempo, ele a amava.

“ Sei lá tipo você não sabe se é o pai da criança…” continuou ela, agarrando o estrado da cama; Frex segurou seu outro braço e a ajudou a se endireitar, “… ou sei lá no sentido de questionar a natureza da paternidade dos homens num geral?” A mulher enfim se levantou, parecendo um mamute, uma ilha ambulante. Avançando até a porta em passo de tartaruga, ela riu da própria piada. E enquanto ele se arrumava para a batalha do dia na casa de banho anexa, ouviu mais risadas.

Frex penteou a barba e oleou o cocuruto careca. Com um grampo de osso e couro cru, prendeu a parte de baixo do cabelo rente à nuca para manter os fios longe do rosto, porque naquele dia precisariam ler sua expressão à distância: não havia espaço para falta de clareza. Usou um pouquinho de pó de carvão para escurecer as sobrancelhas, depois ruborizou as bochechas magras com um toque de cera vermelha. Botou uma cor nos lábios. Um sacerdote bonito atraía mais penitentes do que um mais rústico.

No pátio que servia de cozinha, Melena flutuava devagarzinho — não com a gravidade normal da gestação, mas como se estivesse inflada, um balão imenso arrastando suas cordas pela terra. Carregava uma caçarola em uma mão e, na outra, alguns ovos junto com um tufo de cebolinha outonal. Cantarolava sozinha, mas em versos curtos. Nada destinado aos ouvidos de Frex.

Com a túnica sóbria abotoada até o pescoço e as sandálias amarradas sobre as calças justas, Frex tirou de seu esconderijo — o vão embaixo da cômoda — o relatório enviado a ele por seus colegas presbíteros de Três Cepos. Tinha guardado as páginas amareladas dentro de uma bolsa. Mantinha o documento escondido da esposa, com medo de que ela quisesse ir junto — para participar, caso fosse divertido, ou para sentir a emoção da coisa caso fosse assustador.

Enquanto ele respirava fundo, preparando os pulmões para um dia de oratória, Melena mexia os ovos na caçarola com uma colher de madeira. O som dos sininhos das vacas ressoava do outro lado do lago. Ela não parecia estar ouvindo; ou melhor, parecia estar ouvindo outra coisa, algo tocando dentro dela. Era um som sem melodia — como uma música onírica, lembrada por seu efeito, mas não pelas dissonâncias harmônicas ou retomadas. Ela sabia que o bebê seria uma criança dada à cantoria.

Melena ouvia Frex lá dentro — começando a improvisar, se aquecendo, convocando o fluxo de sentenças para sua argumentação, convencendo a si mesmo de sua retidão.

Como era mesmo o provérbio, aquele que a ama lhe entoava quando ela ainda era uma criancinha?

Bebê da manhã: infortúnio e afã; Nasce ferino o bebê vespertino. Da noite a criança? Vem sem esperança; E quando madruga O infortúnio a suga.

Mas ela se lembrou dos versinhos como uma brincadeira, com carinho. O infortúnio era o destino natural da vida, e ainda assim as pessoas continuavam a parir bebês.

Não, disse a ama, um eco na mente de Melena (e intrometida como sempre). Não, não, sua mimadinha sassariquenta. Ninguém continua parindo bebês, é óbvio. Quem faz isso são só as mulheres jovens demais para saber como a banda da vida toca. Quando entendem por completo a dimensão de sua natureza sombria (e que lerdinhas somos nós, mulheres, para aprender), secam de tanto desgosto — e, como seria sensato, botam um fim no ciclo da reprodução.

Mas homens não secam, argumentou Melena; podem continuar gerando filhos até a morte.

Ah, a gente pode até aprender devagar, rebateu a ama, mas eles não aprendem é nunca.

“O desjejum”, exclamou Melena, servindo os ovos em um prato de madeira. Seu filho não seria enfadonho como a maioria dos homens. Ela o criaria para desafiar o progresso constante do infortúnio.

“São tempos de crise para nossa sociedade”, recitou Frex. Para um homem que condenava prazeres mundanos, ele comia com elegância. A esposa amava ver a dança entre seus dedos e dois garfos. Suspeitava que, por baixo daquele virtuoso asceticismo, ele escondia uma ânsia pela vida boa.

“Todo dia é uma grande crise para nossa sociedade.” Ela tentou ser petulante, respondendo com termos usados por homens. E carambolas, ele nem notou o tom de ironia em sua voz.

“Estamos em uma encruzilhada. A idolatria cresce a olhos vistos. Os valores tradicionais estão em risco. A verdade, comprometida. A virtude, abandonada.”

Ele estava mais praticando seu discurso contra o espetáculo vindouro de magia e violência do que falando com ela. Havia um lado de Frex que tendia ao desespero; ao contrário da maioria dos homens, porém, ele era capaz de canalizar tal força em benefício da obra de sua vida. Com alguma dificuldade, ela se acomodou em um banco. Refrãos inteiros ecoavam sem parar em sua mente! Será que aquilo acontecia em todos os trabalho de parto? Era algo que ela gostaria de perguntar às mulheres futriqueiras que passariam por lá naquela tarde,

resmungando sobre sua condição. Mas ela não ousaria fazer algo assim. Era incapaz de esconder seu sotaque bonito, que elas achavam afetado — não soar ignorante a respeito de questões tão básicas já seria um bom começo.

Frex notou seu silêncio. “Está brava porque vou te deixar sozinha hoje?”

“Brava?” Ela ergueu as sobrancelhas, como se aquele fosse um conceito novo.

“A história avança sobre as pernas de pau de vidinhas individuais enquanto eternas forças maiores convergem”, disse Frex. “Não dá pra lutar nas duas arenas ao mesmo tempo.”

“A vida do nosso filho não vai ser uma vidinha.”

“Bom, não é hora de discutir isso. Está querendo me distrair da minha labuta divina? Estamos encarando um mal real aqui em Barra do Arroio. Eu não ia conseguir botar a cabeça no travesseiro e dormir à noite sabendo que ignorei isso.” Frex estava falando sério, e com a intensidade que a fizera se apaixonar por ele; mas a esposa o odiava por aquilo também, é claro.

“Ameaças vêm… depois vão e vêm de novo.” Aquela era a última opinião que ela ia emitir sobre o assunto. “Seu filho só vai nascer uma vez — e se esse aguaceiro aqui dentro de mim for qualquer indicação, acho que vai ser hoje.”

“A gente vai ter outros filhos.”

Ela se virou para que ele não pudesse ver a raiva em seu rosto.

Mas a mulher era incapaz de permanecer furiosa com ele. Talvez aquela fosse sua falha moral. (De modo geral, ela não era muito dada a se preocupar com falhas morais; ser esposa de um presbítero parecia gerar reflexões religiosas o bastante para um casal só.) Ficou em silêncio de repente. Frex continuou mastigando.

“É o diabo”, disse Frex, suspirando. “O diabo está a caminho.”

“Não fala uma coisa dessas no dia em que nosso filho deve nascer!”

“Quis dizer que a tentação paira sobre Barra do Arroio! E você sabe do que estou falando, Melena!”

“Palavras são palavras, e o que é dito é dito!”, respondeu ela. “Não exijo toda sua atenção, Frex, mas preciso de um pouco dela!” A esposa largou a caçarola com um estrondo na bancada construída rente à parede do chalé.

“Bom, digo o mesmo”, retorquiu ele. “Acha que o que me espera hoje é brincadeira? Como posso distrair meu rebanho desse bafafá espetaculoso de idolatria? Provavelmente vou voltar hoje à noite tendo perdido seguidores para um atrativo maior. Você talvez bote um filho no mundo. Eu estou na iminência da derrota.”

Mas ele parecia orgulhoso; ser derrotado em nome de uma preocupação moral maior lhe era satisfatório. Como comparar algo assim à carne, ao sangue, à bagunça e à barulheira de se ter um bebê?

Frex enfim se levantou para sair. Um vento soprava do lago, dispersando no ar a extremidade das colunas de fumaça da cozinha. Melena pensou que pareciam redemoinhos de água descendo pelo ralo em espirais cada vez mais estreitas e concentradas.

“Bom dia para você, querida”, disse Frex, embora estivesse com sua postura pública vestida dos pés à cabeça.

“Obrigada.” Melena suspirou. O bebê a chutou, lá no fundo, e ela precisou correr para a casa de banho de novo. “Viva em retidão, e vou estar pensando em você — minha base, minha proteção. Ah, e tenta não ser assassinado.”

“Que seja feita a vontade do Deus Inominado”, disse Frex.

“E a minha também”, disse ela, blasfema.

“Melhor dedicar suas intenções a algo que mereça”, respondeu o marido. Agora ele era o presbítero e ela era a pecadora, uma conformação de papéis que não lhe agradava muito.

“Tchau”, disse ela.

E preferiu o fedor e o alívio da casa de banho a ficar parada ali, acenando enquanto o esposo sumia de vista pela estrada que levava a Barra do Arroio.

O Relógio do Dragão Temporal

Frex estava mais preocupado com Melena do que deixava transparecer. Parou na primeira choupana de pescador que viu e falou com o homem apoiado no balcão da porta. Será que alguma mulher da região poderia passar o dia, e se necessário a noite, com Melena? Seria uma gentileza imensa. Quando o pescador concordou, Frex assentiu com uma expressão de gratidão, admitindo sem palavras que sabia que Melena não era muito querida por ali.

Em seguida, antes de terminar de dar a volta no Água Vil e de seguir para Barra do Arroio, ele parou ao lado de uma árvore caída e tirou duas cartas da bolsa.

O remetente era um primo distante de Frex, também presbítero. Semanas antes, o homem gastara tempo e valiosa tinta em uma descrição do que vinha sendo chamado de Relógio do Dragão Temporal. Frex se preparou para a missão sagrada do dia relendo sobre o relógio idolátrico.

Escrevo às pressas, irmão Frexspar, para registrar minhas impressões antes que sumam.

O Relógio do Dragão Temporal foi construído em cima de uma carroça e é mais alto que uma girafa. Não passa de um teatro itinerante capenga, equipado dos quatro lados com alcovas e palcos com teto arqueado. Na parte de cima, plana, fica um dragão

mecânico, uma traquitana de couro pintado de verde, garras prateadas e rubis incrustrados no lugar de olhos. A pele é feita de centenas de disquinhos sobrepostos de cobre, bronze e ferro. Sob as dobras flexíveis das escamas fica o esqueleto controlado por engrenagens. O Dragão Temporal gira em seu pedestal, flexiona as asas coriáceas (que soltam o que parecem guinchos) e cospe bolas sulfurosas de um fedor laranja e flamejante.

Abaixo se vê as dezenas de portas, janelas e alpendres, assim como bonecos, marionetes e miniaturas. Criaturas de contos fantásticos. Caricaturas tanto de plebeus quanto de membros da realeza. Animais, fadas e santos — nossos santos unionistas, irmão Frexspar, roubados de debaixo de nossos narizes! Fiquei furioso. As miniaturas se movem em rodas dentadas. Entram e saem pelas portinhas. São articuladas na cintura e bailam, brincam e burlam umas com as outras.

Quem havia construído aquele Dragão Temporal, aquele falso oráculo, aquela ferramenta de propaganda da iniquidade que desafiava o poder do unionismo e do Deus Inominado? Os gerenciadores do relógio eram um anão e alguns lacaios de cintura fina que, todos juntos, pareciam ter capacidade cerebral suficiente apenas para passar o chapéu pelo público. Quem mais estava tirando vantagem daquilo além do anão e de seus rapazotes?

A segunda carta do primo o havia alertado de que a próxima parada do relógio era Barra do Arroio. Contava uma história mais específica.

O entretenimento começou com um tamborilar de cordas e um chacoalhar de ossos. A multidão se aproximou, extasiada. Para além da janela iluminada do palco se via uma cama de casal, com bonecos representando uma esposa e um marido. Ele estava dormindo, e ela suspirava. A mulher fez um gesto com as mãozinhas esculpidas sugerindo que o esposo era decepcionantemente pouco dotado. A audiência morreu de rir. A esposa foi dormir. Depois que começou a roncar, o boneco do esposo se esgueirou para fora da cama.

Nesse momento, o Dragão girou na base e apontou as garras para a multidão, indicando — de forma claríssima — um humilde furador de poços chamado Grine, que vinha sendo um esposo fiel, embora pouco

dedicado. Depois a criatura recuou e estendeu dois dedos em um gesto de “chegue mais”, separando da turba uma viúva chamada Letta e sua filha moça de dentes afiados. A multidão soltou uma exclamação e se abriu ao redor de Grine, Letta e a mocinha ruborizada, como se o trio tivesse sido afligido de súbito por chagas purulentas.

O Dragão voltou a repousar, mas cobriu outro dos arcos com a asa, que se iluminou para revelar o boneco do marido perambulando pela noite. Junto dele surgiu a marionete de uma viúva, de cabelo enroladinho e pele rosada, arrastando a seu lado uma filha reclamona de dentes bem afiados. A viúva beijou a marionete representando o marido e tirou suas calças de couro. Ele era equipado com dois conjuntos de partes viris, um na frente e outro pendurado na lombar. A viúva posicionou a filha no membro diminuto da frente e se ocupou do outro — mais cheio de presença — atrás. Os três bonecos se esfregaram em vai e vem, emitindo gemidinhos de prazer. Quando a viúva e a filha se satisfizeram, desacoplaram-se do marido adúltero e o beijaram. Depois deram uma joelhada em seus aparatos ao mesmo tempo, atrás e na frente. Ele girou com suas molas e dobradiças, as mãos tentando acalentar os membros doloridos.

A audiência explodiu em risadas. Grine, o furador de poços real, suava gotas grandes como uvas. Letta fingiu estar gargalhando, mas a filha já desaparecera de tanta vergonha. Antes do fim da noite, Grine foi encurralado pelos vizinhos inquietos e sua grotesca anomalia foi analisada de perto. Letta foi expulsa da cidade. A filha, ao que parece, sumiu por completo. Suspeitamos que o pior tenha acontecido. Grine ao menos não foi assassinado. Mas como saber em que medida nossas almas foram marcadas por terem testemunhado tamanho drama cruel? Todas as almas são reféns de seus invólucros humanos, mas devem se degradar e sofrer com indignidades como essa, não acha?

Às vezes, Frex tinha a impressão de que todas as bruxas itinerantes e os videntes desdentados e balbuciantes de Oz capazes de realizar o mais bobinho dos feitiços se juntavam no distrito mais afastado de Ermos Frisos na esperança de se estabelecer no ramo. Ele sabia que o povo em Barra do Arroio era humilde. Os moradores dali viviam uma vida dura

e de pouca esperança. Conforme a seca persistia, a tradicional fé unionista perdia força. Frex estava ciente de que o Relógio do Dragão Temporal combinava dois apelos, ingenuidade e magia — e que ele precisaria recorrer a suas reservas mais profundas de convicção religiosa para superar algo assim. Se sua congregação se provasse vulnerável à chamada fé indulgente, sucumbindo ao espetáculo e à violência… Bem, qual seria o próximo passo?

Ele venceria. Era o presbítero daquelas pessoas. Tinha arrancado seus dentes e enterrados seus bebês e abençoado suas panelas por anos. Se rebaixara em nome deles. Mendigara por aí com a barba descuidada e uma cumbuca, de vilarejo em vilarejo, deixando a pobre Melena sozinha no chalé do presbítero por semanas. Ele se sacrificara por aquela gente. Seu rebanho não podia se deixar levar pelo tal do Dragão Temporal. Tinham uma dívida com ele..

E assim o sacerdote continuou, com a postura ereta, a mandíbula cerrada e o estômago em uma revolta amarga. O céu estava marrom de tanta areia e partículas suspensas. O vento soprava acima das colinas soltando um guincho trêmulo, como se estivesse passando por uma fissura entre as pedras em uma colina além do limite da visão de Frex.

Nasce uma Bruxa

Era quase noite quando Frex enfim juntou coragem para entrar no desconjuntado vilarejo de Barra do Arroio. Ele suava litros. Bateu os calcanhares no chão e chacoalhou os punhos cerrados, gritando em tom rouco e cativante. “Vinde, povo de pouca fé! Juntai-vos enquanto é possível, pois a tentação se aproxima para tentar-vos duramente!”

As palavras eram arcaicas, talvez até ridículas, mas funcionaram. Logo chegaram os taciturnos pescadores, arrastando as redes vazias enquanto vinham do cais. Logo chegaram os fazendeiros de subsistência, cujas propriedades áridas haviam gerado pouco naquele ano seco. Antes mesmo que ele começasse, todos pareciam mais culpados que o próprio pecado. Seguiram o presbítero até os degraus periclitantes de um pequeno estaleiro para reparo de canoas. Frex sabia que todos esperavam que o tal relógio do mal chegasse a qualquer instante; a fofoca era contagiosa como a peste. Ele gritou para despertar os presentes da sedenta expectativa.

“Vós sois tolos como criancinhas estendendo a mão para encostar em brasas belas! Sois como crias de um ventre draconiano, prestes a mamar em tetas flamejantes!” Eram imprecações obsoletas tiradas direto das escrituras e não tiveram muito efeito; ele estava cansado e longe de sua melhor forma.

“Irmão Frexspar”, começou Bfee, o prefeito de Barra do Arroio, “será que o senhor pode dar uma amenizada no sermão até a gente ter a chance de conferir com os próprios olhos a nova forma fresquinha que a tentação pode assumir?”

“Vocês não têm têmpera para resistir a novas formas de tentação”, disse Frex, cuspindo.

“O senhor não foi nosso hábil instrutor ao longo desses anos todos?”, retrucou Bfee. “A gente mal teve uma oportunidade decente de nos provar contra o pecado! Mal podemos esperar para… para passar pelo maior teste espiritual de todos.”

Os pescadores riram e vaiaram. Frex intensificou a força do olhar fulminante; assim que ouviram rodas desconhecidas transitando pelos sulcos da estrada de pedra, porém, todos viraram a cabeça e ficaram em silêncio. Ele tinha perdido a atenção da audiência antes mesmo de começar a falar.

O relógio vinha puxado por quatro cavalos e escoltado por um anão e seu bando de rapazotes. O telhado amplo era encimado por um dragão. E que criatura! A pose era a de um ser prestes e saltar, como se tivesse sido imbuído com vida. A superfície da construção era decorada em uma miríade de cores e enfeitada com folhas de ouro. O queixo dos pescadores foi caindo conforme a geringonça se aproximava.

Antes que o anão pudesse anunciar a hora do espetáculo, antes que os jovens imberbes pudessem sacar os bastões com que se apresentariam, Frex saltou para cima do primeiro patamar da coisa — um palco dobrável.

“Por que esta coisa é chamada de relógio? O único mostrador de relógio que exibe é plano e sem graça, perdido no meio da distração de todos esses detalhes. Além disso, os ponteiros não se movem: vejam por vocês mesmos! São pintados de modo a apontar sempre um minuto antes da meia-noite! Tudo o que veem aqui é movido por engrenagens, meus amigos. Isso eu garanto. Vão testemunhar campos de milho brotando, luas crescendo e minguando, um vulcão cuspindo um pano vermelho bordado com lantejoulas da mesma cor — tudo mecânico. Com tantas coisas tiquetaqueantes, por que não instalar um par de ponteiros funcionais no relógio? Por quê? Pergunto a vocês… Sim, a você, Gawnette, e a você, Stoy, e a você, Perippa. Por que o relógio não é de verdade?”

Mas eles não estavam ouvindo — Gawnette, Stoy, Perippa, nem mais ninguém. Estavam ocupados demais encarando o relógio, cheios de expectativas.

“A resposta, é claro, é que o relógio não mede o tempo mundano, e sim o tempo da alma”, continuou o sacerdote. “O tempo da redenção e da condenação. Para a alma, cada instante está sempre a um minuto do julgamento.

“A um minuto do julgamento, amigos! Se morrerem nos próximos sessenta segundos, iam gostar de passar a eternidade nas profundidades sufocantes reservadas aos idólatras ?”

“Mas que bafafá, hein?”, disse alguém nas sombras — e os presentes riram. Acima de Frex (que virou a cabeça para ver), surgiu de uma portinha uma pequena marionete de cachorro saltitante, com pelo escuro e encaracolado como o cabelo de Frex. O animal balançava em uma mola, e sua vozinha esganiçada era irritantemente aguda. As gargalhadas aumentaram. A tarde caía, de modo que era mais difícil para Frex saber quem estava zombando dele, quem estava gritando para que ele saísse da frente para que pudessem enxergar.

O presbítero não se moveu, então foi empurrado sem cerimônia para longe. O anão se apresentou de forma poética.

“Nossa vida é uma série de atividades sem significado. Chafurdamos na vida como ratos, nos arrastamos por ela como ratos e como ratos somos jogados no túmulo quando chega a derradeira. De vez em quando, por que não ouvir a voz da profecia ou ver um milagre se desenrolar diante de nossos olhos? Sob a aparente farsa e indignidade de nossas vidas de rato, ainda há um humilde padrão e um bocado de significado! Se aproximem, bons amigos, e descubram o que um pouco mais de conhecimento é capaz de trazer para sua vida! O Dragão Temporal vê diante e além e dentro da verdade dos lamentáveis anos que têm para viver aqui! Testemunhem o que ele tem a mostrar!”

A turba foi chegando mais perto. A lua estava alta no céu, sua luz parecendo o olho de um deus irritado e vingativo.

“Chega, me soltem”, gritou Frex; era pior do que ele tinha imaginado. Nunca fora maltratado pela própria congregação.

O relógio apresentou uma história sobre um homem devoto no âmbito público, com barba que lembrava lã de cordeiro e cabelo escuro e cacheado, que pregava sobre simplicidade, pobreza e generosidade enquanto escondia um baú cheio de ouro e esmeraldas — no ventre retrátil da filha de rostinho delicado de uma família de sangue azul. O sacana foi empalado em uma estaca de ferro de forma nada delicada e servido a seu rebanho faminto como Lombo de Presbítero Assado.

“Estão apelando a seus instintos mais básicos!”, gritou Frex, de braços cruzados e o rosto vermelho de fúria.

Mas já estava quase completamente escuro, e alguém se aproximou por trás para silenciá-lo. Envolveu seu pescoço com o braço. Ele se virou para ver qual maldito paroquiano tinha tomado tal liberdade, mas todos os rostos estavam cobertos por capuzes. Ele levou uma joelhada nas partes baixas e se encolheu no chão, caindo de cara na terra. Alguém o chutou bem na bunda, e ele cagou nas calças. O resto da multidão, porém, não estava olhando. Estavam apenas uivando de rir de algum outro espetáculo apresentado pelo Dragão Temporal. Uma mulher simpática com um xale de viúva o agarrou pelo braço e o puxou para longe — ele estava humilhado demais, sofrendo demais para erguer a cabeça e ver quem era.

“Vou esconder o senhor na adega, vou sim, cobrindo sua cabeça com um saco de aniagem”, anunciou uma devota. “Porque se a coisa seguir nessa toada, vão vir atrás do senhor com forcados! Vão te procurar no seu chalé, mas não no meu porão.”

“A Melena…”, resmungou ele. “Vão encontrar minha…”

“Vou cuidar dela também”, disse a vizinha. “Disso nós mulheres damos conta, acho!”

No chalé do presbítero, Melena lutava para manter a consciência enquanto duas parteiras entravam e saíam de foco a sua frente. Uma era esposa de um pescador e a outra uma velha com deficiência; elas se alternavam para enxugar o suor de sua testa, espiar entre suas pernas e mexer nas quinquilharias e tesouros que Melena tinha conseguido trazer de Jardim Colwen.

“Mastiga essa pastinha de folhas de pinhecrim, meu chuchuzinho, mastiga. Vai estar inconsciente num segundo”, disse a esposa do pescador. “Relaxa, deixa o bebezico vir com tudo e pronto, amanhã cedo já vai estar tudo nos conformes. Achei que você teria cheiro de água de rosas e orvalho, mas no fim fede como qualquer uma de nós. Mastiga, chuchuzinho, mastiga.”

Quando alguém bateu à porta, a idosa, que estava ajoelhada diante de um baú para vasculhar seu conteúdo, ergueu o rosto com uma expressão culpada. Depois deixou a tampa cair com um estrondo e fingiu estar rezando, de olhos fechados e em posição de oração.

“Pode entrar”, falou.

Uma moça de pele suave e rosada surgiu.

“Ah, ainda bem que já tem alguém aqui”, disse a jovem. “Como ela está?”

“Quase acabada — assim como o trabalho de parto”, respondeu a esposa do pescador. “Acho que vai mais uma horinha, só.”

“Bom, me pediram para dar um recado: os homens estão bêbados e atrás de confusão. Foram agitados por aquele tal dragão do relógio mágico, e agora estão querendo acabar com o Frex. Foi o que o relógio disse. Pode ser que cambaleiem até aqui. Melhor a gente levar a esposa dele para outro lugar mais seguro… Ela dá conta de andar?”

Não, não dou conta, pensou Melena, e se os aldeões acharem o Frex digam para matar ele bem matadinho por mim, porque nunca senti uma dor absurda dessas a ponto de me fazer ver vermelho. Podem matar meu marido por me fazer passar por isso. E, com o pensamento, ela deu um sorrisinho em um momento de alívio e desmaiou.

“Então deixa ela aí e vamos dar no pé!”, disse a jovem. “O relógio disse para acabar com ela também, com ela e com o dragãozinho que ela vai dar à luz. Não quero me envolver com isso.”

“A gente tem uma reputação a zelar”, disse a esposa do pescador. “Não podemos abandonar essa senhora chique sozinha no meio do parto. Não me interessa o que o relógio disse.”

“Alguém aí quer comprar umas rendas legítimas de Gillikin?”, disse a velha, outra vez debruçada em cima do baú.

“Tem uma carroça cheia de feno nos campos dos fundos, mas a gente precisa fazer isso agora”, disse a esposa do pescador. “Vamos, me ajuda a ir lá buscar o trambolho. E você, velhota, pode ir tirando a fuça desses lençóis aí. Vem, pode ficar limpando essa testinha cor-de-rosa aqui. Agora, agorinha, porque a gente está indo nessa.”

Alguns minutos depois, a velha, a esposa e a moça puxavam a carroça de feno por um caminho raramente usado, ladeado por evônimos e samambaias das matas outonais. O vento estava mais intenso. Assoviava por entre os cumes desprovidos de árvores das Colinas de Pano. Melena, esparramada sobre mantas, ofegava e gemia em um estado de inconsciência induzido pela dor.

Ouviram uma turba embriagada passar, com suas tochas e seus forcados, e as mulheres aterrorizadas ficaram em silêncio enquanto ouviam os xingamentos ébrios. Depois passaram a avançar com mais urgência

até se depararem com um bosque coberto de neblina — os limites de um cemitério para corpos não consagrados. Viram lá dentro a silhueta borrada do relógio. O anão o escondera ali — o homenzinho não era nada bobo, e havia suposto que aquele canto específico do mundo seria o último lugar ao qual os locais agitados iriam naquela noite.

“O anão e seus rapazotes também estão bebendo na taverna”, disse a moça, sem fôlego. “Ninguém pode deter a gente!”

Ao que retorquiu a velha: “Então a senhorita anda espiando os homens pelas janelas da taverna, sua putinha?”. Ela abriu a porta que ficava na parte de trás do relógio.

Uma alcova de teto baixo se revelou. Pêndulos balançavam agourentos na penumbra. Imensas rodas dentadas pareciam prontíssimas para fazer picadinho de qualquer invasor que se metesse entre elas.

“Venham, coloquem a mulher aqui”, disse a velha.

Com a aurora, a noite de tochas e bruma deu lugar a imensas nuvens gordas de tempestade decoradas com esqueletos dançantes feitos de relâmpago. Vislumbres do céu azul surgiam aqui e ali, mas às vezes chovia tão forte que as gotas pareciam mais de lama do que de água. As parteiras, espremidas de gatinhas no fundo da estrutura do relógio, enfim viram sua labuta chegar ao fim. Protegiam a criança da água que jorrava por uma goteira.

“Olha só, um arco-íris”, disse a idosa, apontando com a cabeça.

Um lenço enfermiço de luz colorida flutuava no céu.

Mas o que era aquilo que viam conforme limpavam a pele do bebê de todo o vérnix e sangue? Seria só um truque de luz? Afinal, depois das tempestades, a grama parecia mesmo brilhar com uma cor mais intensa, e as rosas vibravam em seus caules e se regozijavam em insana glória. Mas mesmo com tais efeitos de luz e atmosfera, era impossível negar o que se apresentava diante das parteiras. Sob os resíduos dos fluidos da mãe, a pele da criancinha cintilava em um escandaloso tom baço de esmeralda.

Ela não chorou, não berrou com o ultraje típico dos recém-nascidos. Apenas abriu a boca, respirou e voltou a pensar com seus botões.

“Bora gritar, diabinho”, ordenou a idosa. “É sua primeira tarefa.”

Mas o bebê se furtou de suas obrigações.

“Ora, outro menininho teimoso”, disse a esposa do pescador, suspirando. “E aí, a gente mata?”

“Não seja tão maldosa”, falou a idosa, “é uma menina.”

“Claro que não”, disse a jovem, que parecia exausta. “Olhem direito, acho que tem um piruzinho ali.”

Por um minuto elas discutiram, com a criança pelada e exposta diante delas. Só depois de uma segunda e uma terceira limpeza é que ficou claro que era mesmo uma menina. Talvez durante o parto alguns resíduos orgânicos tivessem se acumulado e secado rápido na fenda de suas partes baixas. Depois de seca, concluíram que era uma bebê perfeita, com uma cabeça longa e elegante, antebraços bem-acabados, um bumbuzinho muito beliscável e dedinhos perspicazes com suas minúsculas e afiadas unhas.

E pele de um inegável tom de verde. As bochechas e a barriga exibiam um rubor rosado, e havia uma sombra bege ao redor das pálpebras bem fechadas e uma aura fulva na cabeça indicando o padrão de uma eventual cabeleira. Mas, de forma geral, a aparência da menina era vegetal.

“Ah, pronto, tanto esforço para isso”, disse a moça. “Uma bolotinha de manteiga de ervas. Vamos matar? Já sabem o que as pessoas vão dizer.”

“Acho que ela amadureceu demais e passou”, disse a esposa do pescador, procurando uma cauda residual antes de contar os dedinhos dos pés e das mãos. “Fede a merda.”

“Esse cheiro é de merda, sua tonta. Você está agachada no meio de um verdadeiro chiqueiro.”

“Ela é doente, é ruinzinha, por isso a cor. Enfia ela aí na poça, afoga essa ratinha. A mãe nunca vai saber. Fraquinha como é a mulher, vai ficar horas apagada.”

Elas riram. Passaram o bebê de uma para a outra, aninhando o corpinho entre os braços para testar peso e equilíbrio. Matar a menina era a coisa mais misericordiosa a se fazer — a questão era como .

Mas a garotinha bocejou, e a esposa do pescador, sem perceber, ofereceu o dedo para que ela chupasse, e a bebê arrancou a falange com uma mordida certeira na segunda junta. Quase engasgou com o jorro de sangue. A ponta decepada voou de sua boca e caiu na lama como se fosse um carretel. As mulheres despertaram, entrando em ação. A esposa do pescador deu um salto para agarrar a menina pelo pescoço, e a idosa e a jovem partiram em sua defesa. O dedo foi recuperado do meio da porcariada e guardado no bolso de um avental, provavelmente para depois ser costurado à mão da qual tinha sido arrancado.

“É um pauzinho, ela acabou de perceber que não tem um”, berrou a moça, e rolou no chão de tanto rir. “Ai, boa sorte para o garoto idiota que tentar tirar uma casquinha dela! Ela vai arrancar a jovem piroca imberbe e guardar como lembrança!”

As parteiras saíram de seu abrigo dentro do relógio e deixaram a bebê no seio da mãe, com medo de levar a cabo o plano misericordioso e a bebê lhes arrancar mais alguma coisa às mordidas.

“Talvez ela morda a teta da mulher… Isso vai fazer Nossa Alteza Desmaiadinha acordar num instante.” A velha riu. “Mas caramba, que bebê, provando sangue antes mesmo de mamar o leite da mãe!”

Depois deixaram uma panelinha de barro cheia de água por perto e, quando a borrasca deu outra trégua, deram no pé para encontrar seus filhos, maridos e irmãos — que xingariam e nos quais bateriam se fosse possível, ou enterrariam caso contrário.

Nas sombras, a criança encarava acima de si o dente reto e oleado de uma das engrenagens do relógio temporal.

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