Darkson Brito de Freitas
INQUIETAÇÃO COM O SER E O ENTE EM MARTIN HEIDEGGER: IMPLICAÇÃO ONTOLÓGICA PARA A TEOLOGIA
DEDICATÓRIA
“Não agir com a razão é agir contra a natureza de Deus” (Papa Bento XVI)
EPÍGRAFE
Sempre procurei por ti, Mas não soube como procurar por ti. Tive que te perder, Para poder te sentir. Lancei-te para longe de mim, Joguei-te aos meus secundários planos. Assim te perdi. Deus desconhecido, Que me fez, Que faz, Que sempre fará. Deus conhecido, Que não atinado, Deixou-se ser criado, Deixou-se ser Manipulado, É a ti que eu fujo. Lanço meu olhar para ti, O olhar do meu último momento. É de ti que procurarei, Deus desconhecido.
(Darkson Brito de Freitas)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 05
CAPITULO 1 – INQUIETAÇÃO EXISTENCIAL EM MARTIN HEIDEGGER EM TORNO DO ESQUECIMENTO DO SER ......................................... 07 1.1 Sobre Martin Heidegger ................................................................................................. 07 1.2 A compreensão de Ser e Ente em Heidegger ................................................................. 11 1.3 Fenomenologia e ontologia em Heidegger ..................................................................... 21
CAPÍTULO 2 – IMPLICAÇÃO ONTOLÓGICA DO PENSAMENTO DE HEIDEGGER PARA A QUESTÃO DE DEUS NA TEOLOGIA..................................... 26 2.1 Importância da metafísica para a teologia ....................................................................... 26 2.2 A questão de Deus na teologia à luz da crítica onto-teológica de Heidegger ................. 30 2.3 Em busca de uma valorização da crítica de Heidegger para a teologia .......................... 37
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 47
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INTRODUÇÃO
A presente monografia investiga base da obra de Martin Heidegger considerando como temática principal a questão do Ser e do Ente. Consultou-se como obra principal Ser e Tempo e livros complementares [vide bibliografia] em suas implicações e desafios para a reflexão teológica concernente à questão de Deus. Partindo da diferença entre o Ser e o Ente em Heidegger, em função de sua preocupação com o Ser, são apontadas as definições conceituais e suas implicações metafísico-teológicas, assim como a reconstrução da metafísica em novas bases, mediante o método fenomenológico ao estudo do Ser. Heidegger toma o ser humano como escopo, como o ente que possui a abertura para o Ser. Partindo deste ente particular, analisando sua essencialidade enquanto ser-no-mundo, ser-em-situação e tendo como ponto de partida a analise do problema de natureza lingüística pois, para Heidegger, é através da linguagem que se dá a manifestação do Ser. Incumbir o sentido teológico à pergunta do Ser de Heidegger, indagando se Deus é somente um ente maior que os demais entes. A indagação de Heidegger sobre o Ser atinge de maneira direta a questão Deus, tendo em vista que a sua pergunta pelo “ser enquanto ser” passa primeiramente pela história das ontologias e na metafísica, por sua vez a introdução de Deus como o Ser supremo. Nesse sentido, é apresentada nesta monografia a relevância do tema sobretudo para a reflexão teológica, já que atinge o homem na sua condição existencial e transcendental. O pensamento de Heidegger, no tocante à metafísica, aborda algo novo, uma proposta de re-pensar o sentido do Ser, haja vista na história da filosofia, bem como na teologia a preocupação com o “ente”, seja “ente enquanto ente” ou o “ser do ente”. O sentido metafísico, pouco abordado dentro da teologia não é pertinente à pergunta pelo sentido do Ser, muitas vezes posicionando somente no sentido histórico existencial do Deus que se revela na humanidade, mas, amiúde, pouco discutido o seu sentido metafísico, um sentido mais fundamental enquanto tá metá tá physicá [que estão depois das coisas físicas] e com isso, o resultado do esquecimento do ser, gerando-se a preocupação de ter uma ontologia mais radical. A motivação para este trabalho é a forma como Heidegger questiona a história das ontologias, da maneira de ver que a discussão central estar no “ôntico” e não no “onto”, perceber que a teologia vir a ser onto-teologia durante toda a sua história e, com isso, colocar em questão o que a própria teologia pensa sobre o Ser e isto se torna importante, não só pelo
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fato de se problematizar, mas, sobre tudo, por estimular o pensamento teológico sobre o que se reflete enquanto Theós-logía, que pretende ser resposta para a fé que busca compreensão, enquanto pergunta ontológica, que não se confunde com o ente. O trabalho monográfico se divide em dois capítulos. O primeiro capítulo aborda uma pequena biografia de Heidegger e a estrutura de seu pensamento a partir da temática Ser e Ente e seu percurso na fenomenologia que o resultou como principal método de se estudar o Ser. Uma leitura teológica sobre o Ser em Heidegger há de expor, primeiro, o pensamento deste filósofo, no sentido do detalhamento do Ser, apontando o problema da “entificação” do ser. No decorrer, abordam-se conceitos e idéias que procuram, de forma mais geral e objetiva, elucidar tal diferenciação entre Ser e ente e como se dá sua distinção e em função de uma compreensão da totalidade da realidade do ser. No intuito de aproveitar a crítica de Heidegger para a problematização da questão Deus na teologia, introduz-se no segundo capítulo a importância da metafísica para a teologia e a preocupação com o Ser enquanto questão originária da metafísica, conduzindo mais este assunto para as questões que referem a Deus, já que o ponto alto da metafísica é o “Ser Supremo”. Em seguida faz-se a exposição do pensamento filosófico do segundo Heidegger, onde o autor fala do tempo das teologias, pois, este é o momento em que o autor percebe que a teologia tem uma leitura ôntica do ser de Deus. Com isso, busca-se demonstrar de que modo Heidegger problematizou e redirecionou a questão Deus, levando em consideração sua análise da história da filosofia e da teologia no que diz respeito ao próprio sentido do ente maior que os outros entes, tornando-se “onto-teo-logia”. Nesse sentido, tenta-se neste trabalho, evidenciar um possível caminho teórico para Deus através de sua ontologia fundamental, que tem como ponto de partida o ser-no-mundo [Dasein], com abertura para o Ser, dentro da sua realidade existencial enquanto Ser-ai que consiste na sua existência. Em busca de uma resposta teológica à crítica metafísica de Heidegger, apresenta-se, no fim do segundo capítulo, um breve posicionamento teológico a partir da concepção relacional do “ser-do-mundo” como transposição metafísica da doutrina da criação, peculiar do jesuíta alemão Peter Knauer. Ela abre o horizonte para uma resposta coerente à questão de Deus, haja visto que, para Heidegger, a questão Deus não está, desde já, resolvida. Tomando por base esses dois pensadores, percebe-se nesta abordagem monográfica, que há possível diálogo entre os dois conhecimentos que remetem a questão Deus, seja no campo filosófico ou teológico. É dessa forma que Heidegger acaba contribuindo para o enriquecimento da teologia com a sua reflexão sobre o ser e o ente.
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CAPITULO I INQUIETAÇÃO EXISTENCIAL EM MARTIN HEIDEGGER EM TORNO DO ESQUECIMENTO DO SER
1.1 Sobre Martin Heidegger Martin Heidegger nasceu em 1889 em Messkirch na Alemanha. Filho de Friedrich Heidegger (1851 – 1924) e Kempf Heidegger (1858 – 1927). Seu pai trabalhava fazendo barris e também era sacristão católico e sua mãe era decoradora da Igreja de São Martinho, ambos tinham uma vida eclesiástica. Heidegger era o filho mais velho e tinha dois irmãos: Mariele e Fritz. Entrou para o sacerdócio na Companhia de Jesus, mas abandonou durante seu noviciado. É na Faculdade de Teologia da Universidade de Freibürg onde o autor começa seus estudos. Através das aulas de filosofia, que fazia parte de seu programa de estudos, ele dá inicio ao seu caminho para a fenomenologia, e como obra primeira os dois volumes das Investigações Lógicas de Husserl, do qual esteve inteiramente dedicado por muito tempo à sua compreensão. Em seus estudos sobre a fenomenologia Heidegger fica cada vez mais ocupado nesta área e, além de sua dedicação, o fascínio o tomava, pois, a partir destes estudos, também foi levado a outras fontes como Franz Brentano, Aristóteles, Parmênides e outros. Com esse caminho do qual começa a traçar, ele abandona a teologia, devido a alguns contrastes com a ontologia, mas, ainda com interesses pela teologia especulativa. Com isso, para ele a tensão entre ontologia e teologia especulativa como estrutura da metafísica passa a ser seu espaço de questionamento. Heidegger é considerado um ícone para o movimento existencialista [alemão] que procurou reconstruir a metafísica em novas bases por meio da fenomenologia, aplicando-o ao estudo do ser. Ele esteve obstinado, por grande parte de sua vida, pela possibilidade que há o sentido do ser e as concepções ontológicas. Teve influência de vários pensadores do século XIX e XX como Søren Kierkegaard, Friedrich Nietzsche, Wilhelm Dilthey e Edmund Husserl1 o qual foi discípulo.
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Filósofo e Matemático alemão, que elaborou e sistematizou o método fenomenológico. Nasceu em Prossnitz aos 08 de abril de 1859 e faleceu aos 26 de abril de 1938.
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Husserl influenciou profundamente Heidegger. Aprendendo com ele o método fenomenológico. Em 1927 escreve a sua obra mais importante Ser e Tempo dedicando-a ao seu mestre. Este acabou não aprovando a obra, o que ocasionou o rompimento dos dois pensadores. Já Heidegger, por sua vez, influenciou muitos existencialistas, dentre eles Jean Paul Sartre,2 sendo que chega posteriormente a resultados diferentes e até mesmo opostos a Heidegger em sua obra O ser e o nada. Na vida de Heidegger existem muitos contrastes. Inscreveu-se no partido nazista (o NSDAP) em 1º de maio de 1933,3 tendo sido posteriormente reitor da Universidade de Freibürg e, depois de alguns anos, se demitiu do cargo se colocando contra a perseguição de caráter anti-semita. O ponto de partida do pensamento de Heidegger, necessariamente ontológica, é a especulação que conduz todo seu pensamento para o problema do ser, constatando que este problema foi estudado em todos os tempos, mas nunca resolvido. Pois, na realidade, não se estudara o ser, mas um modo particular de ser, citando como exemplos Platão com as idéias e Aristóteles com a substância. Com relação ao problema do ser, Heidegger percebe a complexidade das estruturas e definições para se chegar a uma possível afirmação: “a respeito do problema do ser, não só não temos a solução, como também o problema como tal é obscuro e confuso”.4 Dotado de uma riqueza de diálogo com a tradição filosófica, Heidegger debruçou-se sobre a história da filosofia, reconstruindo conceitos e idéias, redescobrindo a linguagem que até então não era muito clara no que diz respeito à questão do ser e até mesmo deturpada, atingindo as raízes da tradição ocidental no tocante a filosofia e teologia com a preocupação profunda ao problema do ser e de seu esquecimento e, por consequência, propondo novas perspectivas a partir de uma ontologia radical resgatando o seu sentido ontológico. A problemática em torno da percepção do ser é que ele nunca se manifesta diretamente ou de forma imediata, por isso, o mesmo precisa de um ente ou daquele ente para se manifestar. Ora, tendo cada coisa existente sua essência e cada ente os seus acidentes que
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Filosofo existencialista nasceu em Paris aos 21 de junho de 1905, estudou filosofia na École Normal Supérieure.
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Ano da chegada de Hitler ao poder. Essa fama de quem se comprometeu com o regime nazista, Heidegger nunca mais conseguiu rebater.
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HEIDEGGER, MARTIN. Essere e tempo. Milão, 1953, p. 14. apud: MONDIN, BATISTA. Curso de Filosofia. Vol. 3. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 187.
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o caracterizam na multiplicidade dos entes, Heidegger acredita que ao falar do ser como substância, idéia, verdade, estaria somente expressando um modo particular do ser, uma entificação do ser, que não desvela o ser enquanto ser. Heidegger pretende esclarecer o ente em sua temporalidade como sendo a reivindicação de seu primado no qual o homem se dispõe à preferência deste ente particular, em que sua pergunta acerca do ser se mostra como possível. Daí surge para Heidegger a interrogação sobre o que é o ente e que, consequentemente, estaria de acordo com o ser do homem. A resposta aponta para o que o pensador irá chamar de Dasein [ser-ai] daí em primeiro momento isto designaria o ser do homem ou, inicialmente, o modo de ser deste ente. O emprego do termo ser-ai [Dasein] indica uma transformação fundamental na maneira de pensar o ser do homem. A função da temporalidade é unir a essência com a existência. É nisso que se torna possível a unidade da existência do ser e que irá constituir a totalidade do homem. Este se encontra na relação com o passado do qual prende o homem, bem como o futuro que o impulsiona e, por fim, o presente do seu decorrer. É no próprio Dasein que essa tríplice ocorre, pois, enquanto ser-no-mundo, se vê mergulhado nos fatos ao redor enquanto Existentia, mas, percebe-se diante de si enquanto Essentia, capaz de mudar e de transformar suas possibilidades. Essas diferenças não estão cada uma por si, mas formam uma unidade que se transcorre em seu presente. Heidegger se utiliza de conhecimentos na filosofia da linguagem em seus estudos pois, para ele, a linguagem é a característica fundamental do homem e por meio da linguagem que ele difere dos outros animais. Dessa maneira, compreende que nem a antropologia nem a ontologia são praticáveis e compreensíveis sem a semântica, “pois através da linguagem se dá a epifania do ser”.5 Ora, para o pensador, a linguagem consegue exprimir de maneira direta o ser, não é apenas um sinal, mas, onde se origina todos os sinais, mas também aquilo que garante o ser das coisas, e a manifestação do ser “a palavra não é somente o sinal da coisa (como ensinava Aristóteles), mas é também aquilo que sustenta o ser de todas as coisas”.6 Heidegger e suas reflexões contribuíram de maneira importante à teologia do século XX e influenciando muitos teólogos, dentre os quais Bultmann. Sucedendo a influência de seu pensamento heideggeriano no século XXI. Em Heidegger surge uma nova reflexão
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MONDIM, BATISTA. Curso de Filosofia: Os filósofos do Ocidente. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 192.
6
Ibid.
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Hermenêutica em que o autor, através da analítica existencial, oferece um novo panorama da interrogativa sobre o homem. A partir da citação “A teologia fala de Deus, na medida em que Deus tem a ver com o Homem”,7 isso indica que o caminho para o homem compreender a si mesmo é depreender o lugar da revelação de Deus. Nessa perspectiva, o discurso de Deus passa pelo discurso do Homem, na medida em que o homem acolhe o Deus da revelação, e a teologia fala dEle com base no ato revelatório, fica claro que o espaço desta é a existência, do qual o homem se encontra. A teologia necessita da filosofia para falar do homem retirando dela uma conceituação correta que fale de forma mais fundamentada suas estruturas. Segundo o Teólogo Bultmann, Heidegger, em sua analítica existencial, nos traria uma melhor ferramenta para compreender e, portanto, determinar melhor essas estruturas, apesar de que Bultmann “[...] sempre alegou servir-se dela apenas como de uma conceitualidade neutra necessária para interpretar e exprimir a compreensão da existência própria do Novo Testamento”.8 Para Heidegger, o homem é esse ser de abertura, ser aí, ser-fora de si, além de si, e vive suas possibilidades com as quais escolhem, tendo sua existência compreendida de dois diferentes modos, autêntica ou inautêntica, ou seja, enquanto uma vive e decide, a partir de si mesma, a outra seria a partir das coisas do mundo, isso são possibilidades próprias, existenciais, estruturais do homem e sua realidade histórica será marcada por essas decisões.
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GIBELLINI, ROSINO. A teologia do século XX. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 38.
8
Ibid. 39.
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1.2 A compreensão de Ser e Ente em Heidegger O ponto inicial da investigação de Heidegger é, sem duvida, o problema do sentido do ser. Nesse intento, importa alcançar uma abordagem pertinente do sentido do ser. Assim, Heidegger esclarece essa investigação recorrendo ao longo da tradição metafísica que sempre se prendeu a uma compreensão ôntica, dominada pelo ente. Tal “entificação” do ser leva inevitavelmente ao esquecimento do ser ao invés da compreensão a cerca do estudo do sentido do ser, onde este não mais é tido como fundamento. O esquecimento do ser consiste justamente no fato de a metafísica clássica fixar-se no estudo do ser unicamente mediante o ente e não de interrogar-se pelo sentido do ser mediante contemplação do ser “em si”. O ser tido como fundamento não-tematizável dos entes se some, assim, por trás dos mesmos e desaparece, ou então, cai em esquecimento. Ora, o fundamento do ser se dava na metafísica na medida em que era necessária uma argumentação cuja base era explicar sua tese, o seu motivo, pois o ente era fundamentado no ser, assim como o ser era fundamentado em um ente supremo, ou melhor, havia uma exigência lógica para a sua explicação ontológica que desembocava em Deus como “causa primeira” (daí a denúncia heideggeriana dessa metafísica como “ontoteologia”). É nesse momento em que, para Heidegger, surge a emergência de falar do ser sem a preocupação com uma fundamentação ôntica, ou seja, pensar o ser a partir dele e não mais a partir de um ente. A preocupação usual e espontânea sobre a tentativa de refletir e pensar sobre o ser, pressupõe a possibilidade de analisá-lo e de situá-lo, de como ele se apresenta. Haja vista, o ser foi definido, desde o pensamento antigo até a época de Heidegger, como aquilo que se “presenta”, constituído segundo representações dos quais o ser está determinado pelo tempo. A questão agora é em que medida se dá esta determinação do ser enquanto a-presentar através do tempo. Pretende-se, neste capítulo, seguir uma nova acepção sobre o ser e o ente em Heidegger. Mediante seu estudo sobre o Ser e o Ente, o autor parte do termo grego do ente como physis que em português é traduzido filosoficamente por “natureza”. Seu correspondente em alemão, foi traduzido por Heidegger com “Dasein”, que quer dizer, em um primeiro significado, “ser-ai” no sentido do “ser-no-mundo”, da existência concreta. Outro termo crucial em Heidegger é o do tempo (“Zeit”). Pois para Heidegger, não há percepção do ser senão de forma situada, dentro de determinado estado delimitado de existência (Sosein). Tais vocábulos hão de ser considerados aqui não mais como gregos e alemães e sim heideggerianos, devido ao seu modo de refletir que indaga falar de uma
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ontologia mais original em busca do sentido do Ser. O problema para o qual alerta Heidegger, é como se dá o ser, como o ser pode ser refletido e pensado dentro de uma esfera radical da existência humana sem ofuscá-lo por trás dos entes. Pois, o Ser não é uma coisa, não é um ente, por conseguinte, não é nada de temporal.9 Como o Ser deve ser concebido além da ordem dos entes, também o Tempo não é uma coisa, por conseguinte, nada de “entitativo”.10 Ser e tempo não podem ser refletidos isoladamente porque ambos se permutam. A presença do ser se dá pelo tempo, mas o ser não é como algo que está no tempo, porque o ser não “é” uma coisa (característica ôntica). O que permanece é o ser como présentar, que é determinado pelo tempo, ou seja, pelo que tem impressão temporal. Para Heidegger, o ser é que se a-pre-senta, se manifesta como pre-sença (“An-wesen-heit”) e, somente nesse sentido assume impressão temporal. A essa dinâmica do fazer-se-presente, ele chamara adiante de “desvelamento”, pois, “o Temporal significa o transitório, o que passa no decurso do tempo”.11 Com isso, percebe-se que o ser não é apenas algo que está aí no mundo, algo que é ocasionalmente encontrado, mas algo que se dá no e pelo tempo como um presentar-se [an-wesend-sein]. A metafísica, melhor dizendo, a nova metafísica introduzida por Heidegger, em sua crítica da filosofia essencialista (pós-socrática), alega haver um único significado autêntico do ser: aquele cuja essência se encontra na temporalidade própria do homem e no dar-se do Ser, sendo vista disso o ser humano como único ser de abertura, capaz de elucidar o Ser. O ser que se encontra no oculto somente emerge na medida em que se desvela na realidade temporal do ente, pois qualquer outra forma de seu ser cairia no esquecimento. Para Heidegger, há uma situação que produziu um fracasso, o problema que gerou o esquecimento do ser visto à maneira como este foi compreendido no pensamento grego. Ora, enquanto em Heráclito tudo é um constante e dinâmico vir-a-ser, tudo está em transformação, está em um continuo devir, em Parmênides faz emergir o pensamento que o ser não poderia vir-a-ser, pois já o “é”, é imutávelmente uno e simples. Nota-se que em Parmênides, em um primeiro momento, denota o principio da não-contradição, pois, para ele, uma coisa ou “é” ou não “é”, demonstrando a realidade do ser e assim dispor a necessidade de pensar o ser, consequentemente o ser e somente o ser, estabelecendo pela primeira vez uma ontologia do ser – já que o não-ser não pode ser pensado.
9
Cf. HEIDEGGER, MARTIN. Sobre a Questão do Pensamento. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 9.
10
Cf. ibid.
11
Cf. ibid.
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Para Heidegger, o problema do ser, visto seu “status” ontológico, em seu decurso teve seu agravamento ao passar por Platão [enquanto idéia] e Aristóteles [como substância], ao estudarem somente um modo particular do ser pois, eles formaram um ponto indiscutível de uma pretensão à essencialidade do problema do sentido do ser, quer dizer, procurou-se uma concepção do ser a partir de uma de suas particularidades, dando-lhe qualidade ôntica, escondendo o sentido fundamental do ser, encobrindo seu princípio e em consequência assim seu esquecimento, definindo-o a um conceito. Ora, o conceito de ser para Heidegger é o mais vazio e universal de todos, ao contrário do que se falava do ser neste modo particular, o entificando e resumindo-o de tal maneira que veio a prosseguir na história das ontologias em cada época, estudando sempre os modos particulares do ser, com isso, sancionando o seu esquecimento. Assim, o ser em Heidegger apresenta-se por meio de uma compreensão crítica da tradição filosófica enraizada nos pós-socráticos. Nesse contexto, ele define a tradição metafísica teísta ocidental como “ontoteologia”, pensamento que reduz Deus a um ente – mesmo se refere a ele como o ente supremo a todos os entes, ou seja, devido à maneira de pensar a totalidade do ser como um ente absoluto. Heidegger procura dar um novo sentido ao ser já que, segundo ele, quando se falou do ente pensava-se estar falando do ser. A filosofia ou metafísica ocidental confundia, portanto, o ente e o ser: O conceito de ser, em Heidegger, não é comparável, ou não é comparável em muitos aspectos, ao conceito de ser ‘tradicional’, pelo que uma ‘introdução à metafísica’ como ‘introdução ao ser’ não o é mesmo que uma introdução à ciência do ente enquanto tal.12
Heidegger diz que a filosofia é fenomenologia humana e através dela procura compreender os fenômenos das realidades. A fenomenologia explicita o sentido do ser como o método pelo qual apreendemos os objetos do mundo naturalmente como tais. Dessa maneira chega-se a explicitar o pensamento como tal no qual a questão Deus, na esfera teológica, é relacionada à história do esquecimento do Ser. Mediante a crítica onto-teológica da confusão de Deus com e como um ente, Heidegger refere-se ao modo de como a metafísica e o pensamento ocidental discutiram a questão do ser, fundamentando o ser simplesmente no ente supremo [divino]. Tal onto-teologia acaba no esquecimento do ser precisamente por causa da
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Verbete “metafísica”. In: MORA, JOSÉ FERRATER. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 475.
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fusão cometida entre ser e Deus como “ser supremo” pensado, de fato, como um “ente”. Essa metafísica, que se pode também chamar de substancialista sufoca o próprio ser, não permitindo-o a pre-sentar-se. O homem é um ser ontológico, sendo assim, ele é o caminho fundamental para o “ai do ser” na sua condição temporal. O homem é passagem para o ser. Entretanto, isso também provoca uma ambiguidade na reflexão sobre o ser, assim, conhecer o ser só é possível quando se conhece o ser humano. Para Heidegger, o ser humano é privilegiado no conhecimento do ser pelo fato de ser “de linguagem” e, assim distinto das demais coisas. Heidegger faz a seguinte leitura do que significará, dentro do seu pensamento, a palavra “coisa”. As coisas tem sentido entitativo, porém o ser não é entitativo: A palavra “coisa”, “uma coisa” significará para nós agora aquilo que está em questão, em sentido eminente, na medida em que nela se esconde algo inelutável. Coisa terá aqui o sentido de questão.13
As coisas para Heidegger representam o entitativo, o existencial na temporalidade, tudo aquilo do qual podemos dizer que “é”, logo, o ente é este ou aquele, ou seja, o “sendo” [“Seiendes”], significando com isso o que existe, tendo sua entificação naquilo que designa o modo de como as coisas são. Ora, enquanto dizemos ente, visto dentro da concepção existencial, nota-se com atenção, o homem visto enquanto existência, como historicidade, ser de abertura e como este “ente privilegiado”, sendo o único capaz de “ser-fora” de si e um “ser-além”, cuja capacidade é de “poder-ser” e de “decidir-se, assim, diferenciando-se de todos os entes. O ente “é” por meio do qual o ser se mostra se a-presenta na realidade temporal. De início, o autor propõe que se sejam modificadas certas expressões e volta a dizer que o ente “é” e que o ser “dá-se”: “Não dizemos: ser é, tempo é; mas: dá-se ser e dá-se tempo. Primeiro modificamos com esta expressão apenas um uso de linguagem. Em vez de ‘ele é’, dizemos ‘dá-se’”.14 A partir destas proposições do “é” e do “dar-se”, surge o esforço para explicar esse “se” do “dar-Se”, como ele mesmo coloca como um “Se” maiúsculo, como sobrepujar em direção a questão de pensar o ser, que consiste em analisar do que o é concebido: “Procuramos tornar visível o ‘se’ e o ‘dar’ e grafamos o ‘Se’ maiúsculo”.15
13
HEIDEGGER. Sobre a Questão do Pensamento. op.cit., p. 10.
14
Cf. ibid., p. 11.
15
Ibid.
15
Em sua obra aqui referida Heidegger não manifesta muita preocupação com o ente, a menos o ente-privilegiado (o homem em seu ser aí = [Dasein]). Seu interesse maior é o ser, principalmente por que pouco se fala sobre o ser nesse sentido novo. O ser enquanto ser como algo não entitativo se desvela como ele “se dá”, é seu centro de preocupação. O ente, neste momento, tem como função a sua existencialidade temporal da maneira com o qual se percebe o ser a partir da disponibilidade do ente, como modo de pré-sentar e isso é o que abrange a esfera do humano na sua realidade histórica. Heidegger, entretanto, pergunta sobre a radicalidade última do homem por ele ser quem cuida do Ser em uma metafísica capaz de compreender esta dinâmica do “ser”. No intuito de trazer maior profundidade ao estudo da compreensão do sentido do ser, Heidegger parte do ente de um ser singular e concreto, e também do Dasein que é o modo de ser do existente humano na sua temporalidade. E como estudo da compreensão do sentido do ser deve partir da análise da existência da pre-sença: “A pre-sença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma”.16 Ao estudar ser e ente, Heidegger se utiliza das análises ontológicas e ôntica. Enquanto a análise ontológica visa à investigação do ser em sua totalidade, a análise ôntica visa à investigação de cada ente particularmente. Assim, determinada afirmação sobre algum objeto pode ser ontológica se fizer referência ao ser e suas possibilidades. Por outro lado, determinada afirmação é ôntica se fizer referência a algum ente específico. O “ser ai” [Dasein] detém a possibilidade de enunciar o ser. Embora o ser esteja no ente enquanto presença, não há nada no ente que se revele à natureza do ser. O ente não seria nada sem o ser, ficaria somente na privação absoluta do ser, e o ser, por sua vez, não teria aonde se pré-sentificar. Do ser não sabemos nada mas, enquanto presença do ser no ente através do dar-se, pode-se demonstrar como experimentamos e vemos este “dar-se”. Amiúde, em Heidegger confirma-se que ser não “é” e sim “dá-se” ser. Tempo não “é” e sim “dá-se” tempo.17 O Dasein designaria a manifestação do ser enquanto ente, enquanto ser que “ex-iste”18 na temporalidade.
16
HEIDEGGER, MARTIN. Ser e Tempo. 14. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 39.
17
Cf. ibid., 22.
18
Heidegger refere-se em seu sentido etimológico ao termo de existir como “ek-stásis”, o estar fora de si no sentido de que o ser enquanto ser além do tempo só pode manifestar-se enquanto ser no tempo, só pode “eksistir” no ente.
16
De início, Heidegger reflete sobre como pensar ele mesmo o “ser” no que lhe é próprio e depois pensa sobre o tempo refletindo no que lhe é próprio.19 Deixa-se todas as contradições das quais foram decorridas em seus vários conceitos e fundamentações, a tal ponto intenso, de serem possíveis de estarem separadas entre si, para depois em uma dialética reconstituí-las em uma unidade mais ampla. O intento do autor é desconstruir os encobrimentos, deixados por pensamentos que no decorrer das épocas, tentaram fixar uma conceituação de ser, no sentido de confundir com um ente, e com isso Heidegger trabalha de maneira útil o exame das coisas, para se pensar de forma aceitável uma ontologia fundamental do ser. Dizer “dar-se” seria o desvelamento do ser, ao invés do que afirmava Parmênides: εστι γαρ ειναι, “é, a saber, ser”,20 dando-lhe, assim, atribuição ôntica. Na sua Carta sobre o Humanismo Heidegger designa como algo impensado a proposição parmenidesiana que, torna o ser como algo entitativo, pois, o “é” do “é, a saber, ser” é diferente do “dar-se”. Manifestase nisso a preocupação heideggeriana em tal pensamento, pois no verbo εστιν, “é”, está oculto o Se do dar-se ser.21 As indagações posteriores dão-se em torno de como se dá o “Se”, como se desfazer destes ocultamentos que na história do pensamento ocidental somente pretendeu como pensar, mas não o “Se dar” enquanto tal, pois, é a partir do seu elemento historial que ele se caracteriza como um destino de um destinar e não de um acontecer como compreensão de uma forma indeterminada, para assim entender o seu “Se dar” como destino do ser. Em contrapartida, o autor percebe a necessidade de compreender o tempo em sua característica com o presente, não como o não-mais-agora e o ainda-não, colocando-o em uma unidade de pensamento. O tempo [kairós] em diferença da época [crónos] , o ser na história se destina em suas épocas, pois o ser em vista da fundamentação do ente se apresenta em suas várias sucessões epocais. Isso se nota nos dons da presença do ser. Para Heidegger, a época encobre as sucessões à destinação inicial do ser. Vê-se o ser somente como encoberto pelo ente. Época, para Heidegger, não é um lapso de tempo no acontecer, mas um traço do destinar ao que nas suas sucessões de “agora” o ser se destina. Se ambos se relacionam, Ser e Tempo em sua radicalidade são o caminho pelo qual o autor procura analisar a questão ontológica do ser e suas manifestações no ente.
19
Cf. ibid., 11.
20
Ibid., 14.
21
Cf. Ibid.
17
Não obstante, o caminho de Heidegger é apontar como essa destinação do ser se apresenta em sua radicalidade no tempo, em que o ser se presentifica, sendo o tempo o palco do presentar do ser. Tempo agora para ele é uma noção importante para a incorporação do ser em sua pre-sença. Começa, em seguida, a aproximar Ser e Tempo e constata essa relação como algo que poderia explicar o Ser enquanto Ser e não mais como manifestação de seu dom no ente (ou pelo menos para além), como ocorre na temporalidade. Da mesma maneira que se usa o jogo linguístico para falar do ser, o tempo também necessita dessa atividade. Do mesmo modo que acontece o dar-Se do Ser, sendo esse Se maiúsculo, com o tempo também ocorre, da mesma maneira, essa qualidade que faz do Ser algo próprio, também é para o Tempo. Heidegger conclui que “Tempo não é. Dá-Se Tempo”.22 O tempo tem como dinâmica um alcançar, nesse caso, um alcançar é um dar que se oculta no tempo autêntico e, assim, um dar de um dar.23 Tempo aqui está para além do espaço-tempo, em uma proximidade que recusa e retém, um alcançar o alcançar, onde a presença alcança e é alcançada no homem,24 homem como o endereçamento da triplicidade do tempo. É preciso entender tempo para compreender e analisar como Se-dá ser. O homem, como portador de linguagem, será nesse momento posto por Heidegger como destinatário do tempo, diante disso, o tempo não se dá sem o homem, é no homem que disposto no interior da abordagem pela presença, permite receber, o presentar que dá-Se, e conclui que “o tempo não é obra do homem; o homem não é obra do tempo ... Somente há o dar [...]”.25 Na época é que os entes determinam-se em suas formalidades e contingências, o destinar se comporta em função do ser, mas se caracteriza no tempo. Tempo é, nesse sentido, o lugar além do espaço-tempo em que o ser se mostra enquanto tal. Sendo o destinar o acolhimento do homem neste alcançar o tempo, se colocando nessa triplicidade alcançar do tempo o homem na sua condição humana se torna elemento próprio dessa realização, sendo o homem enquanto destinar e o espaço-tempo lugar onde repousa o elemento próprio do tempo autêntico. Isso torna os estudos de Heidegger sobre o Ser e Tempo mais inquietantes na medida em que o autor se deterá em analisar como se determina a unidade destas dimensões. 22
Ibid. 22.
23
Cf. ibidem.
24
Cf. ibid., 19.
25
Ibid., 23.
18
Por isso, o autor preocupa-se em grande parte dos seus estudos com o Tempo, pois a mutualidade de Ser e Tempo desloca o seu pensamento em uma linha que, a acreditar, seria o caminho possível para entender o ser enquanto ser, pois, com a sentença “ser não é’, “tempo não é” e sim “dá-se ser” e “dá-se tempo”, mostra-se uma relação recíproca refletida pelo autor. Heidegger discute isso em seu livro Sobre a Questão do Pensamento como uma interpretação lógico-gramatical, em que aquilo que é atribuído ao sujeito como predicado seria aquilo que se presenta, aquilo o que “está ai”. O acidente é atribuído ao ente, os entes na sua formalidade são e não dão-se. Com isso, o acidente seria um simples aspecto do ente, mas que nele estaria a presença do ser. Dessa forma, a estrutura dos enunciados traria, então, somente um à expressão do ente. Ora, o acidente em sua definição desde Aristóteles, é tudo aquilo que acompanha a substância como algo não essencial ou não-necessário por si mesmo, portanto o predicado de um sujeito, seria o acidente do mesmo, haja visto que o ente possui acidentes em sua formalidade. É como citar que “Pedro é magro”, o magro demonstra um acidente de Pedro e não a sua essência, e sim somente uma expressão que o ente traz consigo nãonecessariamente. Em contrapartida ao acidente, a substância possui um ato próprio do ser e, portanto, subsiste em si mesma, pois o acidente não dispõe de um ato próprio, mas o recebe da substância, com a qual é inerente. Então, dessa maneira, vê-se que o ente traz consigo seus acidentes, sendo isso sua expressão na temporalidade. Segundo Heidegger, a herança aristotélica se esquece do ser, firmando um olhar ao ente e dele falam enquanto nomeiam o ser, provocando uma grande confusão na história. O desvelar é tornar clara a tarefa de pensar o ser. É preciso elevar a tarefa da filosofia e a compreensão da teologia de sua historicidade para atingir o mistério do ser, ao seu desvelar-se originário através da linguagem. A linguagem vai se ocupar do desvelamento captando a diferença ontológica que há entre o ser e o ente. A reflexão ontológica sobre a linguagem é muito presente nas reflexões de Heidegger, pois o homem enquanto ente dotado de linguagem, unicamente tem a condição para a manifestação do ser no tempo, na forma de uma subjetividade em que seu sujeito se mutua com o predicado, ou seja, o acidente dentro da sua formalidade e contingência que, por sua vez, traz uma expressão do ente. Para Heidegger, o ser pode ser percebido enquanto fenômeno na linguagem e é nesse sentido que há a distinção [entre ser] enquanto ser do ente e [ser] enquanto ser. Tal distinção
19
acontece a partir do reconhecimento deste fenômeno da linguagem na hermenêutica. Dentro do fenômeno da linguagem, a hermenêutica procura trazer a interpretação adequada do fenômeno, sobre o qual refletirá a expressão e, sobretudo, a explicação da distinção ôntica e ontológica. É mediante a hermenêutica do fenômeno da linguagem que vincula o ser do ente ao ser do ser, que ocorre o desvelamento do ser no ente. E nisto consiste precisamente a diferença ontológica, na medida em que Heidegger acredita que há um “acordo” entre o Ser e ente, ainda que separados, estão referidos um ao outro. Na linguagem ôntica, como sendo o recurso que se encontra livre ao uso do “ser racional”,26 por meio da linguagem, ele fala sobre o estado das coisas, sem que tenha que apropriar-se do que diz. Já na linguagem ontológica, compreende-se o ser humano a partir da ‘abertura’ proporcionada pela apropriação de si-mesmo, ou seja, na possibilidade que revela e mostra no desvelamento o que diz o ente à palavra ou [logos] e que, ao aparecer, quer dizer desvelar na medida em que corresponde à escuta oculta do Ser. Portanto, a metafísica (de origem grega, e especificamente da tradição aristotélica e [neo-]escolástica) pensa o ser a partir do ente em sua totalidade sob o ponto de vista do ser. O ente participa do ser e o ser contém o ente. O ser como fundamento leva o ente a se apresentar, a desvelar em si e se 'presentifica' fundamentado no ser. Para Heidegger, a tarefa do pensamento seria então a entrega do pensamento, como foi até agora e a determinação da questão do pensamento, que o levaria a meditação do ser em seu sentido fundamental, ou seja, a pergunta radical sobre o ser. A diferença ontológica significa, formalmente, que o ser não é um ente; logo ele não pode ser pensado do mesmo modo que pensamos os entes. Por sua vez, a constituição ontoteo-lógica da metafísica indica o fato de ela nunca ter pensado a diferença entre ser e ente e, por isso, sempre pensou o ser como se ele fosse um ente possível. Por essa razão, ela se caracteriza em ser uma lógica que pesquisa o ser (ontos), determinando-o como se ele fosse uma causa primeira (Deus). O problema que emerge aqui é que, nessa concepção ontoteológica, o ser de Deus e o ser do mundo são abrangidos pelo mesmo horizonte ontológico e pressuposições linguísticas.27 Deus é pensado como um ente, mesmo considerado o “ser supremo”.
26
“Ser racional” aqui referido à animal racional, enquanto ser humano.
27
Cf. KNAUER, PETER. Para compreender nossa fé. São Paulo: Loyola, 1989, p.26. O autor denomina tal concepção de “substancialista” porque não é capaz de salvaguardar o absoluto de Deus. A respeito disso ver mais adiante (no cap. 2.3).
20
Deus seria, no pensamento metafísico, o ser supremo e na tradição do pensamento grego, genericamente falando, se pensou o ser como essência e como um fundamento primeiro: “a idéia para Platão, a energia para Aristóteles, a consciência para Descartes, a razão para Kant, o espírito para Hegel e a vontade de poder e o eterno-retorno, para Nietzsche”.28 Heidegger chama isso de “desdobramentos de gastos excessivos do ser”.29 Em Aristóteles, chama-se filosofia primeira de teologia por constituir-se de um saber que aspira a penetrar no “mais além de”.30 Portanto, metafísica é um saber que transcende o saber físico natural e sua percepção sensitiva. Heidegger chama atenção, mediante a diferença ontológica entre ser e ente de que o “Ser” só não escapa do pensar metafísico pelo fato de ele presentificar-se no ente. Não obstante, Heidegger não identifica simplesmente seu conceito do ser com o que a tradição metafísico-escolástica ou ontoteológica chamava de “Deus”. Para a teologia, que busca dialogar com o pensamento metafísico de Heidegger, põe-se aqui a pergunta de qual seria o proveito dessa “crítica heideggeriana” ao discurso metafísico-teológico tradicional. Após a recepção do pensamento existencialista de Heidegger na teologia protestante pós-liberal (Bultmannm, Ebeling e o.) e também em alguns teólogos católicos (sobretudo em Karl Rahner), a teologia contemporânea, tanto ocidental como latino-americana, grosseiramente falando, parece não descobrir mais provocação nenhuma ou alguma pertinência do pensamento heideggeriano para sua reflexão atual. Parece que isso se deve à falta de interesse pelos pressupostos e pelas implicações metafísicas da teologia enquanto tal e de sua crítica ao seu conceito de Deus em específico. No entanto, entende-se que através de uma retomada de uma “teologia natural”, diferenciada da tradição neo-escolástica, que era por excelência “onto-teológica”, a compreensão de quem se entende por “Deus” à base da mensagem cristã, isto é, particularmente por retomar o discurso da analogia mediante um pensamento relacional, isso é possível. Com relação ao Ser em Heidegger procura-se uma relação com o ente, pelo menos enquanto pressuposto para esclarecer o ser.
28
HEIDEGGER. Sobre a Questão do Pensamento. op.cit., p. 14.
29
Cf. ibid.
30
Verbete “metafísica”. In: MORA. Dicionário de Filosofia. op.cit., p. 467.
21
1.3 Fenomenologia e Ontologia em Martin Heidegger Quanto à noção heideggeriana de fenomenologia, nota-se que a própria ontologia só torna possível ser compreendida a partir da fenomenologia, assim como a ontologia é uma hermenêutica, pois a analítica fenomenológica atinge o esforço de interpretar o Dasein e tem por razão esclarecer o que diz respeito a ele como ente (ser-no-mundo). As bases de sua filosofia existencial influenciaram teólogos, dentre os quais, Rudolf Bultmann (1884-1976), que pretendia encontrar respostas na analítica existencial de Heidegger. Para Bultmann, é na analítica existencial de Heidegger que se encontra um instrumento válido para determinar as estruturas da existência.31 O interesse de Bultmann, era de ressaltar o caráter todo-envolvente do kerygma. A palavra de Deus somente se pregaria compreensivelmente à medida que ela alcançasse o seu ouvinte em toda a sua existência de forma integral, tal que, este não podia mais esquivar-se de uma decisão fundamental, não podendo ficar nêutro ou em cima do muro. A palavra o poria na situação de reconhecer sua própria condição humana em sua necessidade de redenção: Os existenciais heldeggerianos teriam um alcance universal e ofereciam as estruturas e os conceitos mais apropriados para a compreensão da existência humana revelada na mensagem do Novo Testamento.32
Mas, a questão fundamental da filosofia heideggeriana não é o homem e mas sim o ser, o sentido do ser. O ponto de partida necessário de toda tentativa de “determinar” o sentido do ser do ente em geral, era o homem como ser-aí ou Dasein,33 pois, de todos os entes, o ser humano é o único do qual, de fato, é exigida uma solução para o problema do existir. Assim, criando uma terminologia própria, Heidegger denomina o modo de ser do ser humano, nossa existência, com a palavra Dasein, cujo sentido é ser-aí, estar aí. Assim, o Dasein é o único que pergunta e é o único capaz de se questionar sobre o sentido do ser. A essa ontologia, Heidegger irá chamar de hermenêutica. Nesse sentido, o trabalho hermenêutico heideggeriano visa interpretar o que se mostra, o que se manifesta aí, mas que, no início e na maioria das vezes, não se deixa ver. Considerase o método fenomenológico e hermenêutico como conceitos que se referem à intenção de
31
Cf. GILBELLINI, ROSINO. A Teologia do Século XX. op.cit., p. 38.
32
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja: II Questões Hermenêuticas. 6.ed. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 88.
33
O lugar de sua manifestação.
22
dirigir a atenção para trazer à luz aquilo que se oculta naquilo que se mostra, mas que é precisamente o que se manifesta nisso que se mostra.34 Percebe-se, então, que com o pensamento heideggeriano nem o ente fundamenta o Ser, tampouco como este fundamenta o ente. O que há é uma reciprocidade na relação entre eles por intermédio do Dasein. Nisso, o “Ser” torna-se o meio para que se possa chegar ao “ente” e este sendo sua condição de possibilidade, pois é no ente que se desvela o Ser. Como essa compreensão para Heidegger é obtida unicamente pelo Dasein, pelo homem, essa “compreensão” se dá através do círculo hermenêutico, isto é, o Ser torna-se um conceito operatório pela compreensão. Daí, a compreensão de possibilidade do ser, na presença (Dasein), um ser lançado no mundo que tem o caráter de ser uma possibilidade. A analítica existencial vai desvelar a estrutura fundamental do Dasein como ser-no-mundo. O modo como Heidegger situa a questão do Ser, a partir da compreensão do Ser, e desde a temporalidade do Dasein, nos dá um novo modelo de fundação referido à circularidade hermenêutica e à diferença, sendo este o modelo da finitude. A fenomenologia hermenêutica já estabelece, no início da analítica existencial, o espaço da finitude como único campo para a filosofia, quando introduz a questão do Ser a partir da compreensão do Ser. Dessa posição inicial nasce a ontologia fundamental com seus dois teoremas, os teoremas da finitude: círculo hermenêutico e diferença ontológica.35
Ao tratar de círculo hermenêutico, isso nos remete, a termos, um alcance ontológico e que talvez o problema não seja em sair do círculo, mas em estar dentro de um modo adequado, capaz de obter consciência de nossos preconceitos desconhecidos, pois não implica necessariamente um juízo falso. Ora, compreender é o caráter ontológico original da própria vida humana. Compreender e interpretar aquilo que está em nossas realidades já é algo compreendido previamente conforme Heidegger. A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e compreensão prévia. A interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições. [...]. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já põe, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.36
Heidegger sustenta que só é possível pensar o ser através do Dasein, assim pensando o modo de ser do homem, cujo sentido é ser-ai, estar no mundo. Com isso, se dá a virada 34
O ser manifesta-se no ente.
35
STEIN, ERNILDO. Compreensão e Finitude?: Estrutura e Movimento da Interpretação Heideggeriana. Rio Grande do Sul: Ed. Unijui, 2001, p. 117.
36
HEIDEGGER, MARTIN. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 207.
23
ontológica, em ir ao ser por meio dos entes e não o contrário, quer dizer, o Ser como não é, mas agora como possibilidade, não mais como fundamento. Do contrário, a tradição mantinha-se de modo à entificar, por assim dizer, o Ser era fundamento. A partir desta problemática, se inclui a questão do Ser, na qual o Dasein é o ente que possibilita descobrir o sentido do Ser. Pode-se dizer que o Dasein é o ente que compreende o ser, o que significa compreendê-lo em sua existência e entender a existência como possibilidade sua, de ser ou de não ser si mesmo, com a qual está concernido. Se o Dasein é um ente, é um ente que põe em jogo o seu próprio ser”.37
Desta maneira, quando pensamos em ser e ente, percebe-se que há uma relação encíclica entre o pensado e o pensante, entre quem interroga, no caso o ente que somos, bem como o ser interrogado. Conforme Heidegger, não existe sujeito sem mundo, assim como não existe homem sem Dasein, e os outros entes, no caso todas as outras coisas seriam intramundanos,38 pois, somente o Dasein é aquele que, em seu próprio ser, tem a possibilidade de questionar. Por conseguinte, a essência de seu ser-aí é a sua existência. Em consequência disso, Heidegger expõe a fenomenologia porque se faz necessário compreender que nessa se tem a possibilidade de pensar Ser. Ora, para Heidegger, a fenomenologia irá tratar do velamento e do desvelamento, na abertura do ser-aí. A fenomenologia tem o significado de fazer ver o sentido das coisas a partir de si mesmo, quer dizer, a partir das coisas em si mesmas, deixando e fazendo ver por si mesmo aquilo que se mostra. A fenomenologia é, na realidade, uma investigação que busca a essência inerente na aparência.39 Ela, assim, faz jus, portanto, à sua etimologia no grego: φαινόμενouν: [aparência], ιογος [estudo], [tratado]. Trata-se de uma parte ou ciência da filosofia que analisa e estuda os fenômenos lançados à consciência, isto é, à essência das coisas. Na modernidade, a fenomenologia, a partir de Edmund Husserl e de seus seguidores, é caracterizada principalmente pela abordagem dos problemas filosóficos naquilo que constitui a natureza das coisas. Esse método tem como deliberação a volta “às coisas mesmas”. Com isso, se tem uma tentativa de reencontrar a verdade nos dados originários da experiência, esta 37
HEIDEGGER, MARTIN. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 13.
38
Que se situa dentro do mundo.
39
Vale ressaltar que o termo aparência assume duas concepções simetricamente opostas. 1º Ato de ocultar a realidade. 2º. Manifestação ou revelação da mesma realidade. Pelo segundo significado, a aparência é o que manifesta ou revela a própria realidade, de modo que esta encontra na realidade a sua verdade, a sua revelação. Aparência é qualquer coisa de que se tem consciência.
24
entendida como a intuição das essências. No entanto, isso surge como um questionamento no modo científico de pensar, uma crítica à metafísica, método este que formula uma compreensão de homem e mundo, nos orientando nesta relação sujeito-objeto no caso ser-nomundo. Heidegger, por sua vez, utiliza-se da fenomenologia para apresentar um novo modo de conhecer as coisas do mundo, diferentemente do modo metafísico. Em Heidegger, a fenomenologia irá tratar do velamento e do desvelamento na abertura do ser-aí. A fenomenologia tem o significado de fazer ver a partir de si mesmo, as coisas em si mesmas, no entanto, de deixar e fazer ver aquilo que se mostra. É na fenomenologia que se dá o acesso ao que se deve tornar o tema da ontologia. É isso que permite determinar o objeto da ontologia. Ora, a fenomenologia é a via e o modo de investigação para se determinar o que deve fazer parte da temática da ontologia. A ontologia somente é possível como fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno visa o ser do ente, enquanto aquilo que se manifesta seu sentido, suas modificações e derivações.40
Então, chama-se fenomenologia tudo o que pertence à forma de explicação e demonstração e, neste cabimento, o fenômeno é no que se constitui o ser. Sendo a fenomenologia a ciência dos entes, ela é ontologia. O ser mostra-se ocultando-se. Mostra aquilo que em seu próprio ato de manifestação, se vela. O ser se manifesta quando, a partir de si, é mostrado, assim, como em si se mostra. Então, é na essência humana (o ser-aí) o lugar privilegiado que se concerne em mostrar no ente o ser que em si se desvela. Sendo assim, é na fenomenologia hermenêutica que há uma abertura no ser-aí que permite que haja o questionamento pelo sentido do ser. A filosofia é ontologia fenomenológica universal, que parte da hermenêutica do seraí; esta, enquanto analítica existencial, dá o fio condutor de toda a problemática filosófica, fundamentando-a sobre a existência de onde brota toda a problemática e sobre a qual ela repercute.41
Então, se o Dasein é o único capaz de compreender, é nesse sentido que se está marcada a possibilidade do vir-a-ser em seu modo de ser no mundo. O homem só compreende porque já é pertencente ao ser. Pois, sendo o Dasein o único ente capaz de questionar e 40
STEIN, ERNILDO. Compreensão e Finitude?. op.cit., p. 170.
41
Ibid. 173.
25
dialogar, então, é assim que se faz capaz de interpretar a presença do Ser. Por essa razão, Heidegger designa o Dasein como sendo o lugar de manifestação do ser, pois é nesta manifestação que surge a questão o ser. O sentido do ser para a ontologia fundamental não é algo dado. A questão é que ela denota o resgate da pergunta pelo Ser, ora esquecida pela tradição filosófica. A questão agora é a de compreender o sentido do Ser que atinge a realidade humana. Em Heidegger, pode-se dizer que toda perspectiva que se tem à vista já é em si mesma uma compreensão e interpretação, como ele afirma: “A interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar isento de pressuposições”,42 pois pressupõe que o ser-aí já possua uma pré-compreensão daquilo que vai interpretar. A compreensão de Heidegger, enquanto circularidade hermenêutica, é a própria compreensão de que o Dasein e o Ser se articulam. Daí se dá esta circularidade que será capaz de perguntar pelo sentido do ser enquanto interpretação do ser-aí.
42
HEIDEGGER, MARTIN. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 207.
26
CAPITULO II
IMPLICAÇÃO ONTOLÓGICA DO PENSAMENTO DE HEIDEGGER PARA A QUESTÃO DE DEUS NA TEOLOGIA 2.1 A importância da metafísica para a teologia A “metafísica”, em seu sentido originário em Aristóteles, se dá a partir da sua compreensão de “filosofia primeira”, ou seja, aquela que trata das questões além da física. Não será preocupação primeira neste trabalho traçar uma história da metafísica, mas refletir e levantar alguns pontos importantes de sua compreensão, além de refletir sobre sua importância e necessidade de estudo com suas considerações para a teologia cristã. Aristóteles chamou a filosofia primeira [prima filosofia] de “teologia”, na medida em que “deus” é compreendido como “causa primeira” de todo o ser.43 Segundo o filósofo, é a ciência que estuda o “ser enquanto ser” e o que propriamente lhe pertence. Então, a metafísica tem por finalidade examinar a totalidade das coisas quanto à sua essência. A teologia, propriamente dita, parte do dado revelado que busca compreender sua fé em sua relação com Deus, acolhida na palavra de Deus comunicada pela revelação enquanto “autocomunicação de Deus”, pretensão de verdade da mensagem cristã em sua origem bíblica e história de transmissão dessa palavra na tradição até sua pregação viva (cf. DV 9s). Ora, a metafísica propõe-se a examinar a totalidade das coisas44 e o intelecto humano. A busca dessa compreensão, não termina simplesmente no enunciado, como explicita Tomas de Aquino, mas na coisa mesmo.45 De acordo com a concepção cosmológica grega, a preocupação teológica em Deus resulta da necessidade da própria razão humana em incorporá-lo em suas indagações a respeito do “arché” do cosmo, pois a metafísica tem como objeto de estudo a ciência que estuda o ser enquanto ser e suas causas primeiras e princípios da natureza. No entanto, para muitos estudiosos ela não passa de uma abstração, reflexão e possibilidade, mas todas desembocam na preocupação das razões supremas das realidades.
43
Verbete “Metafísica” in: MORA, JOSÉ FERRATER. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 467.
44
A coisa será algo interpretado por Heidegger como o “ente” e não o “ser” propriamente.
45
“Actus credentis non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem” (AQUINO, TOMAS DE. Suma Teológica. II II q. 1 a. 2, ad 2m).
27
No intuito de obter um estudo mais concreto da metafísica, Batista Mondim afirma que tem que ser colocado em questão os métodos fenomenológicos, indutivos e dedutivos.46 Dessa forma, ter-se-á uma base mais sólida e concreta sobre o problema metafísico e um aspecto mais sistemático sobre o real. Com tudo isso, a metafísica levanta o que é muito importante para a teologia, na medida em que, ao considerar as causas primeiras como seu objeto, defronta-se com Deus enquanto superior Prima causa de todas as coisas. Não que propriamente seja a “causa primeira” a grande preocupação do objeto teológico, mas que a causa primeira resulta na pergunta pelo ser supremo que é Deus enquanto ser supremo sendo considerado aqui como Causa sui: “Causa sui é o poder de ser por si mesmo aquilo que é ou, como insiste Espinosa, a essência que é força para ser por si mesma o que ela é em si mesma”.47 A metafísica, em sua definição primeira desde Aristóteles, teve de discutir sobre a causa primeira das coisas, e isso pretendia ser ciência que estuda as causas finais, diferentemente da física que tem preocupação cientifica das materiais e eficiente. Justamente nesse ponto, vincula-se a questão de como ter conhecimento desse fundamento de toda a realidade se há de ser pensado como “absoluto”, “infinito” e “transcendente”. Em se tratando de Deus “por excelência”, também a teologia não pode esquivar-se da abordagem metafísica, pois, ela tem por definição estudar e explicitar aquilo que está relacionado e que aponta reflexões a Deus. Segundo Tomás de Aquino, Deus é o objeto da teologia,48 e o define desta maneira: Deus é o objeto desta ciência, porque o objeto está para a ciência como para a potência ou hábito. [...] Pelo que é Deus, verdadeiramente, o objeto desta ciência, o que também se demonstra pelos princípios da dita ciência, ou artigos da fé, de que Deus é objeto.49
46
Com relação a esses três métodos, será discutido mais adiante neste capítulo o dedutivo e o indutivo. É importante para a noção conceitual que seja colocado por parte da teologia que usou destes dois métodos em seus estudos e reflexões. Enquanto que a fenomenologia será abordada em um novo capítulo. Métodos referidos no livro autor. Cf. MONDIM, BATISTA. Introdução à Filosofia. 15.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 74.
47
CHAUÍ, MARILENA, “O Ser Absolutamente Infinito: O Absoluto na Filosofia de Espinosa”. In: OLIVEIRA, MANFREDO ARAÚJO DE; ALMEIDA, CUSTÓDIO (Org.). O Deus dos Filósofos Modernos. 2. Ed., Petrópolis: Vozes 2003, p. 94.
48
Existem controvérsias a respeito do objeto teológico ser Deus, pois isso implicaria que Deus estaria sujeito a uma ciência, e sim o objeto teológico seria a palavra de Deus. Aqui nesta monografia esta citada a definição de Tomas de Aquino, com intenção de dar força argumentativa para explicar que Deus é motivo de reflexão metafísica e teológica. Não será discutido neste trabalho o problema do objeto teológico.
49
AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica I q. 1 a. 7c.
28
A própria metafísica, no fim das contas, acaba sendo o que Aristóteles chama de “teologia natural”, cabendo-lhe buscar a “causa primeira” de todas as coisas. Ora, para Aristóteles, a “causa primeira” de todas as coisas é Deus. Logo, o objeto da metafísica é Deus enquanto “causa das causas”. Portanto, também a especulação metafísica nos leva a ter certa ciência a respeito das coisas divinas, enquanto Deus é a causa suprema de todas as coisas. Ora, se a teologia, por sua vez, não é senão a ciência de Deus, então, a metafísica, que também versa sobre Deus naquele sentido que precisamos, não deixa de ser, ela própria uma teologia. Contudo, por ser pautada unicamente pelos princípios da razão, damos a ela, um nome específico, a saber, teologia natural. Metafísica e Teologia, enquanto “sabedoria”,50 observa-se em ambas uma eficiência no dar fundamento à sua ciência, dar sentido ao seu saber. Por muitas vezes, houve crítica à metafísica, perguntando sobre o seu saber se realmente sabe, e que a teologia, por sua vez, alcança somente a níveis poéticos e simplesmente reduzi-la a um argumento em um campo da fé que não pergunta pela sua razão de conhecer, ambas situando na esfera do especulativo e na abstração. Mas como será colocado agora, se verá que a sabedoria de ambas é fundamental por atingirem a uma esfera bem maior que as outras ciências que norteiam somente o que está no campo físico, natural, sem que apontem para a realidade radical da existência humana. Teologia não é qualquer saber, ela se utiliza de métodos para melhor discutir e analisar seu pensamento. Aqui, Libanio/Murad apresentam dois métodos como sendo utilizados pela teologia em períodos diferentes, mas cada uma com sua eficácia científica que seria capaz de estruturar-se internamente, o método dedutivo e indutivo. O conceito básico para ambas é a teologia dedutiva que inicia sua reflexão a partir de princípios universais da fé e, por dedução, ir explicitando e aplicando em outras realidades.51 É o que se chama de [teologia de cima], que por via análoga, em relação dado revelado e realidades humanas, encontra pontos de semelhança e dessemelhança. Basicamente, a estrutura da teologia dedutiva52 é sistematizar e expor, dando-lhes explicações e relacionado-as mutuamente a todas as verdades da fé para que, de maneira relacional, possa trazer mais segurança em suas afirmações. Pode-se dizer que esta teologia usa da lógica do silogismo. 50
Para Tomás se trata de sinônimo ao conhecimento da revelação, ou seja, conhecimento a partir de Deus.
51
Cf. LIBANIO. JOÃO BATISTA; MURAD, AFONSO. Introdução à Teologia: Perfil, enfoques, tarefas. 5.ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 101.
52
Cf. ibid.
29
Assim como todo método tem seu limite, não seria por menos que a teologia dedutiva encontra esse seu limite, a partir do momento em que lhe são lançadas as perguntas da modernidade, no campo da subjetividade, da razão crítica, da racionalidade do pensar, das ciências positivas, etc, impondo-se as sujeições dadas para sua validade enquanto afirmação de seu conteúdo. Desta maneira, através da sua limitação, surge novo método procurando estabelecer novas regras para cobrir as rupturas e dar estabilidade em seu pensamento e, com isso, outro modelo de teologia. Através desta ruptura nasce um novo método chamado de teologia indutiva53 que tem por princípio iniciar uma reflexão a partir de questionamentos que nascem da realidade humana, trata-se de uma [teologia de baixo], que busque sentido na experiência existencial e a pergunta pelo sentido da práxis. Uma teologia diferente da européia, onde busca entender as realidades à luz da revelação, tendo como ponto de partida a própria experiência prática e histórica. Por sua vez, a metafísica também se utiliza desses métodos para sistematizar seu conhecimento. Ora, partindo do pressuposto de que a mente humana conhece, a priori, os princípios primeiros e as idéias universais, levava-se em consideração que o método dedutivo ajudaria na investigação metafísica. Mas, assim como a teologia, também a metafísica sofreu uma transformação a qual exigia uma mudança deste método, principalmente por partes dos modernos que refutavam as idéias, a priori, que se eleva há algo meta-empírico. Então, se na teologia se encontra também a sabedoria e se a metafísica, por sua vez, se integra ao saber teológico, como se viu anteriormente neste capítulo, que teologia é metafísica. Então, também a metafísica incorpora-se na sabedoria, logo, se incorpora à teologia. Se é na posse da sabedoria que consiste a nossa elevação de compreensão da palavra de Deus e se a metafísica, por seu lado, se inclui dentro da sabedoria, então, também através da aquisição da ciência metafísica, consistirá a teologia natural.
53
Cf. Ibid., 103.
30
2.2 A questão de Deus na teologia à luz da crítica onto-teológica de Heidegger A partir do chamado “segundo Heidegger”,54 pode-se discutir em uma abordagem maior a questão Deus, já que o autor em seus primeiros escritos teve como ponto de reflexão e objetivo de estudo o ser enquanto ser, sem mais preocupações ou até, antes, com desinteresse pela questão Deus, visto em obras como, por exemplo, Ser e Tempo e Sobre a questão do pensamento. O período em que Heidegger abrange mais a questão Deus se reflete em obras como Carta Sobre o Humanismo, O que é Metafísica? e A Constituição Onto-teo-lógica, fase em que o autor fala mais sobre do “Tempo das teologias” conforme Ernildo Stein.55 Nelas é possível dizer que pelo menos Heidegger não nega a existência de Deus. Isso por que o problema não é Deus e sua existência exatamente, mas como foi discutido Deus nas argumentações clássicas da metafísica (especialmente no período que segue à alta escolástica). O problema sobre a questão Deus atinge toda a metafísica, pois, na medida em que se discute sua fundamentação ontológica, viu-se que Deus foi conceituado como um ente maior (“ser supremo”) em relação aos demais entes. É nesta proposição que passará pela tradição da teologia, para investigar e compreender este momento em que a teologia se tornara, essencialmente, especulação metafísica. Dessa forma, não seria possível discutir a questão Deus como o faz na metafísica clássica. Stein afirma que em uma das etapas do estudo de Heidegger ele “estabelece a metafísica como onto-teo-logia e fixa como manifestação dessa onto-teo-logia em que Deus é o mais ente de todos os entes”.56 Ora, Heidegger procura tratar a questão Deus por outro viés, elaborando uma ontologia fundamental que busque investigar mais profundamente as raízes destes problemas a partir da filosofia pré-socrática. Por isso, ele pergunta pelo ser do qual, de antemão, só pode ser ele mesmo porque qualquer coisa transforma o ser em ente. Em suma ele trata o ser não como uma coisa,57 e sim como uma questão, mas nada de entitativo.58
54
Cf. Coleção dos Pensadores. Martin Heidegger. Vol XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
55
Cf. STEIN, ERNILDO. “O abismo entre Ser e Deus (A diferença ontológica recusa a diferença teológica)”. In OLIVEIRA, MANFREDO ARAÚJO De (Org.). O Deus dos Filósofos Contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 158.
56
Ibid., 156.
57
Cf. ibid., 9.
58
Cf. ibid., 11.
31
Com isto pode-se dizer que ele não é nem ateu e nem teísta. Por um lado, ele não concebe um Deus possível e improvável de tal modo que seria impossível lhe negar o ser. Mas Heidegger nunca relacionou seus estudos com a dinâmica do sagrado. O problema é a questão de Deus em si mesma. Dele, compreende que não seria possível falar sobre o ser sem referir a Deus, inclusive vinculado à sua proposta de desconstrução da metafísica clássica (platônica, aristotélica e sua recepção na filosofia medieval). É nesta radicalidade ontológica que se leva a questão Deus para outro viés, pelo qual não se considera Heidegger nem teísta nem ateísta. Assim, ele mesmo afirma, em uma de suas obras, que “não é apenas apressado, mas já falso no modo de proceder, afirmar que a interpretação da essência do homem, a partir da relação desta essência com a verdade do ser, é ateísmo”.59 E nem do teísmo “Todavia, com esta indicação não se quer já ter decidido, de maneira alguma, pelo teísmo [...]”.60 A partir destas afirmações conclui-se que a problemática primordial não é se Deus existe ou não, e sim como foi colocado a questão. Heidegger compreende esta problemática a partir da ontologia radical, que ele mesmo chama de “ontologia fundamental”. Kant afirmava que é impossível conhecer um conceito unitário do ser ou de um conceito universal de ser,61 pois o ser não está ao alcance do conhecer por não poder ser abordado de forma sensitiva ou positiva. O mesmo estaria para além, quer dizer, não podendo ser “entificado”. Em seu artigo supracitado, Stein afirma que Heidegger analisa atentamente em Os problemas fundamentais da Fenomenologia quatro teses sobre o ser.62 Nessa obra, Heidegger conclui que essas teses não podem ser levadas de forma severa, pois o problema seria a questão do sentido do ser como tal, enquanto não tiver sido posta ou respondida. É daí que emerge a necessidade de pôr a questão da diferença ontológica, pois com a distinção entre o ser e o ente e a tematização separada do ser, seria possível sair do domínio do ente.
59
HEIDEGGER, MARTIN. Carta Sobre o Humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 356.
60
Ibid., 367.
61
Cf. HEIDEGGER, MARTIN. As Teses de Kant sobre o Ser. São Paulo: Abril Cultural, 1973. apud: STEIN, ERNILDO. Compreensão e finitude?. op.cit., p. 432.
62
“1. A tese de Kant: o ser não é um predicado real; 2. A tese da ontologia medieval (escolástica) que recua até Aristóteles da constituição ontológica essentia e Existentia; 3. A ontologia moderna: os modos fundamentais do ser enquanto res extensa natureza e res cogitans ser do espírito e 4. A tese lógica no sentido mais amplo de que todo ente pode ser tratado independentemente”. Citado in: STEIN, ERNILDO. “O abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 172.
32
É nisto que o autor acredita que a tematização do ser fora compreendida de forma tal que a metafísica clássica estava tematizando o ente, pois o problema, para Heidegger, estava em atribuir qualidade ôntica ao ser. A partir disso conclui que a metafísica não responde a verdade do ser, mas tem em vista somente o ente enquanto ente. Com isso, Heidegger entende como se moldou a representação plástica (antropomórfica) de Deus sobre o qual falou a metafísica e a teologia, colocando Deus não como um ser, mas como ente acima de todos os entes e subordinado ao mesmo conceito do ser e, ainda mais, posto de forma esplêndida, cujos méritos transcendem o normal que os outros. Podendo dizer que, vê-se unido ao ser como a dimensão grega da causalidade, da mesma forma na concepção bíblica da criação e concepções atribuídas a Deus como ser enquanto ato puro, sumo ente, perfeição absoluta, causa sui, motor imóvel e verdade suprema. É isso que o autor define como “ontoteologia”, pensamente que reduz Deus a um ente dandolhe interpretações como supremo às “coisas” e entre as “coisas”, no sentido de uma objetivação dEle. A partir dessas idéias sobre o ente e o ser, suas diferenças e da maneira como foram colocadas, Heidegger pergunta de onde se origina a essencial constituição onto-teo-lógica que, porventura, leva a uma interrogação fundamental de como Deus entra na filosofia. A entrada de Deus como uma espécie de “objeto” na metafísica clássica é um fato e Heidegger retorna não para tal metafísica propriamente dita, mas para dentro de sua raiz, com o intuito de compreendê-la em sua função de “refletir o ser enquanto ser” ou no entender de Heidegger, de “cuidar do ser” sem entificá-lo. Heidegger utiliza-se da noção de passo de volta em filosofia, pois está relacionada ao apontamento do impensado, sendo que o que foi pensado já recebeu seu espaço essencial, portanto: a diferença de ente e ser é o âmbito no seio com o qual a metafísica, o pensamento ocidental em sua totalidade essencial, pode ser aquilo que é. O passo de volta, portanto se movimenta para fora da metafísica e para dentro da essência da metafísica.63
O problema emerge no momento em que a metafísica se torna teologia. Heidegger o constitui a partir da entrada de Deus para dentro da filosofia. Portanto é correto chamar tal metafísica de onto-teo-logia. Poeggeler explica de forma sistemática como Deus entra na filosofia segundo Heidegger: 63
HEIDEGGER, MARTIN. A Constituição Onto-teo-lógica da Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 391.
33
“Ela (a metafísica) pensa o ente na sua totalidade conforme seu ser pensa este ser platonicamente ‘idéia’, modernamente como representação de objetos e, finalmente, como a vontade de poder. Assim a metafísica é a doutrina do ser do ente, ontologia. Essa ontologia aceita como evidente, para o fundamento do ser, a presença constante. O ente pode ser fundado no ser como presença constante e, por isso, também disponível. Mas o ser mesmo precisa de fundamento, para que possa ser constantemente presente. Assim, a metafísica procura aquele ente que, de modo especial, preencha a exigência da presença constante. Ela encontra esse ente no divino subsistente em si, no ‘theion’. Com isso, a metafísica não é só fundamentação do ente no ser, mas também fundamentação do ser no ente supremo, no ‘theion’, portanto, teologia. Justamente porque fundamenta, ela é uma ‘-logia’. Assim, ela é onto-teo-logia”.64
Ora, a partir disso, se percebe que esta ligação entre onto-teologia e metafísica acontece de duas maneiras: primeiro, no seu traço mais geral, o ente fundado no ser como presença constante e, segundo, o ente supremo que se encontra no divino que permanece em si. Esta presença do divino enquanto ente supremo indica que “Deus entra na filosofia como uma exigência lógica”.65 “Pelo fato de representar o ente enquanto ente é a metafísica em si a unidade destas duas concepções de verdade do ente, no sentido geral e do supremo. De acordo com sua essência ela é, simultaneamente, ontologia no sentido mais restrito e teologia. A essência ontoteológica da filosofia propriamente dita (prótete philosophía) deve estar sem dúvida, fundada no modo como lhe chega ao aberto o ón, a saber, enquanto ón. O caráter teológico da ontologia não reside assim no fato de a metafísica grega ter sido assumida mais tarde pela teologia eclesial do cristianismo e ter sido por ela transformada. O caráter teológico da ontologia se funda, muito antes, na maneira como, desde a antiguidade, o ente chega ao desvelamento enquanto ente. Este desvelamento do ente foi quem propiciou a possibilidade de a teologia cristã se apoderar da filosofia grega”.66
O pensamento exige um fundamento. E este fundamento é criado para que o ser sustente os entes na sua presença tendo em vista que na metafísica esse ser recebe o nome de transcendental. O ser seria o fundamento dos entes. Tal “ser” que os sustenta recebe o nome de transcendente, tendo este processo causal, enquanto “causa sui” que funda os entes pelo fato de ela fundar-se a si mesma. É o uno que permite o manifestar-se da multiplicidade dos entes e a recolhe. A crítica ao paradigma metafísico-clássico, por sua vez, se torna pertinente a partir do momento em que questiona o caráter onto-teo-lógico do pensamento metafísico, não em razão de algum ateísmo, mas pela própria experiência do pensamento, ou seja, da autoconsciência
64
POEGGELER, OTTO. “Metaphysik und Seinstopik bei Heidegger” (1962). apud STEIN, ERNILDO. O abismo entre Ser e Deus [...]. op.cit., p. 159.
65
STEIN. „O abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 160.
66
HEIDEGGER, MARTIN. Que é Metafísica?. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 261.
34
de sua racionalidade metafísica e da coerência de seu raciocínio. Nesse sentido, a crítica heideggeriana ao caráter ontoteológico da metafísica clássica demonstra na inconsistência lógica desse pensamento em sua busca de pensar Deus como ente supremo subordinando-o ao mesmo conceito de ser dos entes, sendo a unidade ainda impensada da essência da própria metafísica a partir da percebida diferença ontológica. Assim, parece possível pensar que Heidegger segue o caminho da ontologia, o qual passaria necessariamente por Deus. Ora, como sua ontologia estava sendo explicitada de forma radical, nessa passagem só se poderia conhecer a Deus como “ser” para além do horizonte de existência dos entes sem, contudo, se deter para com ele dialogar. Na verdade, em uma leitura um tanto contra-intuitiva a esse paradigma clássico da metafísica, a crítica de Heidegger ao seu caráter onto-teológico emerge como reivindicação do reconhecimento da antiga tradição judaico-cristã da inconcebilidade de Deus, tal como se encontra no pensamento de Santo Anselmo (“Deus é maior do que se pode pensar”, Proslogion 15). Não obstante, sendo capaz desse encontro, como qualquer pensador que adentre em questões sobre Deus, e nela encontrasse as possibilidades possíveis de Deus, para Heidegger, o mesmo não aconteceria, pois o mesmo poderia e deveria continuar ignorando Deus, não por indiferença, mas por não sentir necessidade dEle. Devido a essa posição é compreensível, à medida em que se leva em consideração, que o problema da metafísica clássica foi justamente de passar por Deus, pois, ao introduzir Deus (ente supremo) enquanto a exigência lógica para o fundamento do ser, distanciando-se o caminho em que se buscava o ser enquanto ser. Como vimos, à metafísica clássica pensou em fazer jus a Deus por introduzi-lo como princípio (arché) necessário do ser, como uma exigência lógica, o concebendo-o como ser supremo. Tal exemplar é a concepção de Aristóteles que identifica “Deus” com o motor imóvel, constituindo Deus como o ser em excelência, antes de qualquer outro. Por isso, tornou-se comprometida a sua busca do ser, uma vez que, pelo jeito que ela concebeu Deus, esse já não podia mais ser compreendido como o ser supremo, como se pensava, mas como o ente dos entes, porém, um ente. Devido à entrada de Deus na filosofia enquanto exigência lógica, Heidegger faz a crítica a essa admissão, pois ou o ser é transcendente ou transcendental como afirma Stein:67 “[...] ou o ser é transcendental e, portanto, é seu próprio fundamento, e assim teremos uma autêntica ontologia, ou o ser é transcendente que funda o transcendental, tirando-lhe seu
67
STEIN. „O abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 161.
35
conteúdo e entificando-o, e teremos uma teologia.” Eis aqui o problema filosófico que na verdade se fazia uma teologia, já que a metafísica transformou-se em teologia na medida em que colocou Deus como que uma “síntese final” sobre a fundação do cosmo. O problema da lógica no que se refere a Deus haja visto outrora discutido em Epicuro, no que se diz respeito ao problema do mal, representa aqui, uma problemática em que os atributos dados a Deus não conseguiam responder a tais questionamentos filosóficos, enquanto crítica, apresentando uma contradição ao que diz respeito à supremacia absoluta de Deus:68 “Ou Deus não quer eliminar o mal ou não pode; ou pode, mas não quer; ou não pode e não quer; ou quer e pode. Se pode e não quer, ele é mau, o que naturalmente deveria ser incompatível com Deus. Se não quer nem pode, ele é mau e fraco e, portanto, não é Deus algum. Se pode e quer, o que só se aplica a Deus, de onde então provém o mal ou por que ele não o elimina?”.69
Para Guilherme de Ockham, a metafísica não é propriamente nem ciência e muito menos ciência do ser, isso porque, se pode dizer, tem por objeto o ser como objeto primeiro enquanto primado de atribuição e Deus como objeto primeiro desse primado de ‘perfeição’. Ora, se a questão aqui é a perfeição, Epicuro, ao citar esse problema, percebe-se então que, a lógica não traria tanta certeza em suas sentenças, pois conforme Johannes Clauberg (Ontosophi, 1647, p. 288), a lógica não sabe nada (nihil scit).70 No entanto, para Heidegger, a postura da filosofia é criar uma ontologia real e não colocar Deus como uma exigência lógica, pois entender o ser por uma verdadeira ontologia não é possível em uma teologia, porque isso criaria uma dualidade ontoteológica na qual, na verdade, perderia a filosofia. Assim, como afirma Stein: “Ou afirmamos uma ontologia do ser ou nos contentaremos com uma teologia da criatura”.71
68
Este parágrafo tem como pretensão apresentar como é possível estabelecer certas contradições através da lógica cuja explicação é quase impossível. Essas persistem ainda mais com o silogismo de Epicuro em problematizar que a exigência lógica permitiu Deus na filosofia devido ao seu atributo de absoluto e perfeito, sendo que através deste problema poria tal questionamento.
69
ESTRADA, JUAN ANTONIO. A impossível teodicéia: A crise da fé em Deus e o problema do mal. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 113.
70
Cf. Verbete “Metafísica”. In: MORA. Dicionário de Filosofia. op.cit., p. 471.
71
STEIN. „O Abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 161.
36
Dessa maneira, Heidegger parece deixar Deus para traz, pois talvez seja uma possibilidade de possibilitar-lhe o ser. E, por causa da sua entificação, a metafísica esquece-se do ser. Com isso Heidegger “lhe assaca o rebaixamento de Deus, para um objeto de valorização ética, que o põe na projeção de valores da subjetividade humana”. 72 Entretanto, o fim da metafísica não significa o fim do pensamento.73 Dessa forma, percebe-se que no pensamento do segundo Heidegger existia uma possibilidade de se pensar Deus de maneira diferente da tradição metafísica ocidental. No entanto, essa maneira heideggeriana de se pensar Deus caracteriza uma possibilidade de assimilação ao nada concebido diferentemente da tradição metafísica ocidental. Pois a possibilidade de conceber Deus no segundo Heidegger apresenta, por outro viés, o encontro com o verdadeiro ser. Assim, parece dizer que ele fechou o caminho direto, teórico para Deus da sua ontologia fundamental, pois é neste rebaixamento de Deus que Stein concorda que Deus tornou-se um objeto de valorização ética, pondo-se na planejação de valores da subjetividade humana.74 O mais duro golpe contra Deus não é que seja tido como incognoscível ou que sua existência seja apontada como indemonstrável, mas que o Deus tido por real elevado ao valor mais alto. Pois esse golpe não vem daqueles que estão em volta e não crêem em Deus, mas dos fiéis e seus teólogos, que falam daquele que é o mais ente de todos os entes sem nunca terem a idéia de pensar no ser mesmo, para com isso tomarem consciência de que este pensar e aquele falar são, sob o ponto de vista da fé, simplesmente a blasfêmia de Deus, quando se imiscuem na teologia da fé.75
Nesta perspectiva, Heidegger demonstra radicalmente que qualquer representação teórica sobre Deus é equivocada, portanto, não passa de ilusão e confusão ontológica. Isso, no entanto, não quer dizer que a questão Deus esteja resolvida. Mas Heidegger mostra que o caminho metafísico-clássico ao conhecimento de Deus está obstruído pelo próprio pensamento e conceito – sempre ontoteológico – de Deus. Nesse intuito, Heidegger quer abrir um caminho diferente do da metafísica ocidental clássica, caminho para uma abordagem fundamentada em um patamar que esteja para além de teísmo e ateísmo.
72
Ibid.
73
HEIDEGGER, MARTIN. O Fim da Filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 270.
74
Cf. STEIN. „O Abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 161.
75
Ibid., 162.
37
2.3 Em busca de uma valorização da crítica de Heidegger para a teologia Ora, é justamente essa a inspiração principal do padre jesuíta Peter Knauer em seu livro Para Compreender nossa Fé (referência em nota). Ele opõe ao que chama de ontologia substancial ou substancialista uma ontologia relacional que vai ao encontro da crítica de Heidegger à medida que desconstrói a confusão de Deus com[o] um ente. Knauer, em sua teologia fundamental considera que, para compreender a mensagem cristã,76 suas afirmações de Deus sejam de caráter propriamente teológico ou filosófico, ou seja são coerentes apenas “[...] quando procuramos compreendê-las não por compromissos ou atenuantes, porém radicalmente”.77 A concepção relacional do ser do mundo de Peter Knauer emerge, nesse contexto, como um atendimento implícito ou silencioso à voz crítica de Heidegger, pois o autor abrange uma perspectiva sobre o ser a partir de uma teologia relacional que tem como proposta preservar a incompreensibilidade de Deus mediante releitura da doutrina da criação do nada do mundo. Em sua pretensão de ser palavra de Deus, de acordo com Knauer, a mensagem cristã pressupõe ser possível dizer quem seria “Deus”, anterior à adesão do ouvinte dessa palavra à fé. Para tal, surge o problema de como falar de Deus diante da própria tradição de incompreensibilidade de Deus. Perguntada à própria mensagem cristã, ela remete à compreensão do ser no mundo como um ser criado do nada, ou seja, como ser totalmente dependente de Deus. Reinterpretando a doutrina escolástica de Deus desde Anselmo e Tomás de Aquino, Knauer procura dar um sentido ao discurso de Deus pela via aposteriori. Para o autor, a recepção metafísico-clássica da tradição bíblica de Deus sofreu tendência de leitura substancialista. A concepção substancialista do ser, originariamente própria do pensamento grego, concebe ser do mundo e ser de Deus sob o mesmo conceito do “ser”. Assim, Deus é conceituado como parte do mundo, mesmo sendo considerado seu “ser supremo” ou “ipsum esse subsistens” (Tomás de Aquino). Sendo subordinado aos conceitos de nossa linguagem que abrangem a nossa realidade de mundo, Deus acaba perdendo sua suposta divindade e caráter absoluto.
76
Neste caso a radicalidade de ambos tem como propósito a busca da compreensão. Apesar de, em Heidegger, estar o problema do caminho ontológico e Deus como caminho necessário, em Knauer está em questão a “palavra de Deus” como palavra que, se realmente fala de Deus, entendida em seu sentido último. A razão de se referir a Knauer aqui se dá pelo fato de ambos os autores buscarem, ainda que por caminhos e pontos de partida diferentes, pensar o ser do mundo e Deus em sua radicalidade.
77
KNAUER, PETER. Para Compreender nossa Fé. São Paulo: Loyola, 1989, p. 19.
38
Contrário a tal ontologia substancialista, numa concepção relacional do ser, concepção metafísica, porém, veiculada pela pregação cristã, Deus é concebido como “inconcebível” (cf. 1Tm 6,16; Vati. I, DH 3001) de tal modo que qualquer confusão do ser de Deus com o ser do mundo há de ser desconstruída como equivocada. Enquanto costuma-se primeiro conceber a coisa em si, o ente, como existente e sua relação a outro posterior numa ontologia relacional, é a própria relação que constitui o ser de algo. É nesse sentido que Knauer reinterpreta o discurso da criação do mundo definindo “Deus” em consequência como “sem quem nada é”.78 Tendo como ponto de partida “criado do nada”, propõe que no lugar do inimaginável “nada”, entenda-se ‘absolutamente’ ou ‘totalmente’. Assim, a expressão do nada como “totalmente” criado significa que em tudo em que o ser do mundo se distingue do não-ser, ele é criado. Tirando do ser criado do mundo o “criado”, nada sobraria do mundo, pois, para Knauer, “ser criado” é sempre “ser criado do nada”, ou seja, “ser totalmente criado”.79 Ser e ser criado coincidem absolutamente na compreensão do ser do mundo. Ora, somente a ontologia relacional salvaguarda a divindade de Deus comprovando que o mundo apenas existe enquanto relação real, mas de forma unilateral e totalmente diferente de Deus, pois ‘totalmente’ refere-se à respectiva realidade concreta. |Nesse sentido, para Knauer, o ser criado do mundo haveria de ser compreendido coerentemente como um “ser totalmente relacionado a ... / totalmente diferente de ...”, sendo que os pontinhos representam que “Deus” não é o resultado de uma conclusão, dedução ou síntese desse raciocínio, mas, o “para-onde”, ou seja, “termo constitutivo” [terminus ad quem na tradição escolástica] de tal relação subsistente que é o mundo. Deus em si não é objeto de conhecimento e sim o mundo em sua total dependência dele. Dessa forma, “ser” (= relação) e “não-ser” (diferença) do mundo se interpenetram indissoluvelmente, constituindo o que tradicionalmente se chama de “contingente”. Também para Heidegger, esse “nada” não é o não-ente da antiga tradição metafísica, tampouco é o oposto do ente verdadeiro da tradição cristã. Na verdade ele se desvela como o próprio ser do ente, desse modo o nada heideggeriano não é negativo. Sua positividade surge por que: ser e nada se co-pertecem, mas porque ambos – vistos a partir da concepção hegeliana do pensamento – coincidem em sua determinação e imediatidade, mas porque o ser mesmo é finito em sua manifestação do ente, e somente se manifesta na transcendência do ser-aí suspenso dentro do nada.80 78
KNAUER. Para Compreender nossa Fé. op.cit., p. 23.
79
Ibid., 21.
80
HEIDEGGER. Que é Metafísica?. op.cit., p. 241.
39
Com isso, a questão é que o “ser não se deixa representar e produzir objetivamente, à semelhança do ente. O absolutamente outro com relação ao ente é o não-ente”.81 Aqui, Knauer tira conclusão diferente ao supor que há apenas uma “diferença ontológica” entre “ser do mundo” que inclui tudo que existe em seu estado de “ente” e o ser de Deus que em nada converge com o ser do mundo. Por essa razão, conhecimento de Deus no modo de sua ausência no mundo só pode ser estabelecido pelo uso radicalmente análogo da linguagem em que tudo remete a Deus sem subordiná-lo ao conceito. Deus sempre há de ser entendido como “além de”. Só numa analogia unilateral, o ser de Deus é preservado em sua inconcebilidade e, ao mesmo tempo, desconstrói-se o caráter onto-teológico da metafísica, criticado pro Heidegger.82 Com isso, Knauer insiste em uma compreensão conciliadora da questão Deus com o conhecimento do ser do mundo afirmando que “Deus é aquele ‘sem o qual nada existe’, pois é a partir disto que, para entender Deus tem que passar pelo nosso ser criado, pois “Com relação a Deus, só entendemos nosso próprio ser criado, isto é, o que é distinto dele, que a ele remete”.83 Penzo,84 com relação à questão do nada e suas implicações, argumenta que há um profundo sentido teológico no fenômeno do ser-aí, compreendido através do não-ente, que é o autêntico ser que independentemente do [Dasein] se oculta e se revela. Com isso, Giorgio Penzo considera que, entendendo a questão assim, apreende o nada de Heidegger ao sagrado, levando em consideração o ser-nada de Heidegger como ocultação, logo, não possibilitador de certeza como descreve Penzo:
81
Cf. ibid., 246.
82
KNAUER. Para Compreender nossa Fé. op.cit., p. 26.
83
Ibid., 24.
84
Giorgio Penzo, filosofo, filólogo nascido em 05 de janeiro de 1925. Tem como interesse niilismo europeu a partir do reconhecimento das formas de pensamento de Heidegger e Jaspers e comparação com Nietzsche, que fez um diagnostico mais agudo, para chegar ao anarquismo individualista. O problema como o niilismo é inserida, no entanto, de acordo com Penzo, o maior problema do nada, tematizada de uma maneira diferente do que a metafísica tradicional, em especial a tomista. Tendo como centro de sua reflexão a ‘teologia da morte de Deus’. Enciclopedia Multimediale delle Scienze Filosofiche, disponível em http://www.emsf.rai.it/biografie/anagrafico.asp?d=595. Acesso em: 26 de jan. de 2011.
40
Entende-se assim, porque o ser em sua dimensão originária de subtrair-se e esconder-se implique também o fenômeno do risco, que é filosófico e teológico ao mesmo tempo. O subtrair-se comporta a impossibilidade que o intelecto tem de “explicar” a natureza do ser. Este pode ser tratado apenas pelo “compreender”, que como dissemos, representa, junto com a situação afetiva e a linguagem, a abertura ontológica do ser-aí. O compreender tem a missão de esclarecer aquele horizonte do real que foge ao conhecer. No compreender abre-se a realidade do sagrado. Trata-se de um sagrado que é mais originário do que o da metafísica. Se esta última é a história do esquecimento do ser, será consequentemente a história da perda do autêntico sagrado, que, enquanto não tematizável, cai no âmbito do nada... Heidegger põe o problema do sagrado sem encerrá-lo numa resposta decisiva. 85
Assim, Penzo interpreta o ser em Heidegger como tendo uma dimensão sacral e divina, pois, para ele, é fácil perceber porque Heidegger não opõe fé e saber, revelação e razão, tendo que, “no âmbito do ser-nada [...] encontra implicitamente certa legitimidade o discurso sobre as diversas figuras que assume o Deus da metafísica em suas múltiplas expressões”.86 E, seguindo o pensamento de Heidegger, pode-se afirmar que “a teologia não é ciência como as outras, dado que seu objeto é a fé que, enquanto possibilidade existencial, inaugura uma relação que supera o conhecer como explicar”.87 Em uma análise a partir da filosofia da religião, ela [a religião], como fenômeno humano histórico, tem seu ponto de partida de seu esforço de compreensão no humano. Na sua abertura para o todo e como determinante na sua vida, ela acaba colocando Deus como sua referência fundamental. Portanto, para Penzo, Deus, em primeiro lugar, é um problema da razão e não da fé e a religião como fenômeno, do qual aponta para Deus, não pertence à vida racional e sim a realidade existencial, colocando-se na esfera do emocional e ético. Com isso, não se pode estabelecer racionalmente o ateísmo e o teísmo, pois Deus não é objeto de demonstração e sim de confiança. A problemática da questão Deus dificilmente se limitará a uma preocupação qualquer, sendo que atinge profundamente toda a história da humanidade. Com isso, torna-se difícil sair ileso deste problema [Deus], inclusive Heidegger. Desse modo, vê-se a importância deste percurso em Heidegger que tem como ponto de partida a problemática das relações entre teologia e fenomenologia. Esta foi explicada em Heidegger, quanto à questão do ser, mediante sua ontologia fundamental.
85
PENZO, GIORGIO. “O Divino como o Não-dito”. In: GIBELLINI, ROSINO. Deus na filosofia do Século XX. op.cit., p. 305.
86
Ibid., 307.
87
Ibid.
41
Loparic88 concorda que é com a proposição de Heidegger quanto ao objeto da teologia sendo a fé, distinguindo-a das outras ciências, que surge a pergunta que é a tarefa científica da teologia, à qual Loparic responde: Não há de fabricar um sistema de proposições objetivamente verdadeiras, mas a de cultivar a fé, melhor, a fidelidade a Deus. No seu conteúdo, a teologia dirige-se não ao intelecto, mas a existência fiel. Por isso, a teologia nunca é uma teoria especulativa sobre Deus, mas uma ciência prática de fidelidade à Deus, portanto, sempre uma ciência aplicada. A sua única fonte de legitimação é a fé não a experiência ou a razão.89
Knauer, que a partir da nossa realidade de ser criado, mostra que se deve falar de Deus sempre em sentido referente de uma analogia real (“analogia entis” reinterpretada) e unilateral, pois é através do análogo que a linguagem encontra um modo mais coerente de falar de Deus “[...] num sentido referente (= análogo). Esta é a nossa maneira mais perfeita de utilizar a linguagem”.90 Vê-se concordância com Loparic, ao falar que não há como criar proposições objetivamente verdadeiras sobre Deus, dessa forma Knauer conclui que “Deus não poderia ser parte de um sistema”,91 porque “Deus não se ‘enquadra’ no prisma de nosso conceito de realidade”.92 Por isso só se pode falar de Deus por analogia. Ora, o falar análogo de Deus pressupõe que, é a partir da compreensão relacional da criaturabilidade do mundo que nota a incompreensibilidade de Deus por que é “aquele sem quem nada é”. Conforme Knauer, dEle somente compreende-se o que difere dEle, quer dizer, tomando por base nosso ser criado. A problemática que é levantada quando falamos de Deus e que surge quando passa por Ele é justamente o que se pode extrair verdadeiramente em um falar de Deus no horizonte da razão humana que possa fundamentar uma resposta que haja coesão tanto para a filosofia, quanto para a teologia.
88
Zeljko Loparic, filósofo, historiador nascido em 3 de dezembro de 1939 na Croácia, naturalizado brasileiro. A referência à Loparic deve-se no que se refere ao segundo Heidegger, provavelmente seu interesse neste filosofo ao fato de ter sido além de aluno deste, bem como ter participado como ouvinte de um seminário sobre Heráclito proferido por Heidegger no semestre de inverno na universidade de Freiburg. Este período Loparic descreve como “quatro meses inesquecíveis” na introdução de seu livro Heidegger Réu.
89
LOPARIC, ZELJKO. Heidegger Réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Campinas: Papirus, 1990, p. 166.
90
KNAUER. Para Compreender nossa Fé. op.cit., p. 25.
91
Ibid.
92
Ibid.
42
A questão da analogia para afirmar qualquer coisa, comparamos com outras. O pensador, quando reflete algo, cria um caminho que, por muitas vezes, leva a negatividade da coisa pensada ou a outro caminho. Desse modo, vê-se o caso de Nietzsche quando falou de Deus. Pensara um rumo que o pudesse substituir a algo, sendo que esse algo substituído tenha força suficiente para fundamentar o seu pensamento. Com isso, declarou a morte de Deus, entretanto, como consequência, não só a ausência, mas o niilismo absoluto, pois, com isso, todos os conceitos e valores que giravam em torno dEle acabariam. No entanto, ao criar essa proposição, cujo niilismo acabaria como todos os valores tradicionais, restaria ao homem estabelecer novas regras e valores. Ora, como isso teria que criar um novo caminho perante aquele produzido anteriormente com o propósito de superação. Assim, “Nietzsche encontra a superação do niilismo na idéia do eterno retorno. Esta é a idéia das idéias”.93 Com isso, Heidegger deu novo rumo à filosofia numa direção cujo sentido subjetivo permitiu que se criasse uma maneira diferente de conceber a questão Deus. Esta se expressa em Nietzsche quando proclama a ‘morte de Deus’. Nisso se constitui a idéia do niilismo, pois com Friedrich Nietzsche se “... desvela uma corrente que perpassa os séculos e que, em nosso século, se cristaliza no niilismo, cuja síntese é o grito: ‘Deus está morto!’”.94 A partir desta afirmação, Heidegger aplica a seguinte hermenêutica: O ‘Deus cristão’ perdeu seu poder sobre os entes e sobre a determinação do homem. O ‘Deus cristão’ é ao mesmo tempo a representação exemplar para o ‘além-sensível’ em geral e suas diversas interpretações, para os ‘ideais’ e ‘normas’ para os ‘princípios’ e ‘regras’, para os ‘fins’ e ‘valores’, erguidos sobre o ‘ente’, para lhe darem em sua totalidade um fim, uma ordem e – como sinteticamente se diz – ‘dar 95 um sentido’.
Ernildo Stein acredita que, mais do que passar por Deus deixando-o pra trás após a análise crítica da metafísica como ontoteologia, Heidegger vai mesmo em busca de Deus: Apesar de sua crítica, por vezes áspera, das teologias e cristandades, a pergunta por Deus surge em Heidegger de uma espécie de temor sagrado de quem procura o advento de Deus além e mais ao fundo das culturas existentes, viciadas pela metafísica.96
Como um novo caminho Stein insiste em afirmar que:
93
ZILLES, URBANO. Filosofia da Religião, 6.ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 177.
94
STEIN. “O Abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 165.
95
Ibid.
96
Ibid.
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Afastado de toda a tradição teológica ocidental, culpada pela desdivinização (incluído-se a própria teologia cristã por causa de sua aliança com a metafísica), Heidegger tateia à procura de um novo caminho para Deus. Seu pensamento situa-se muito mais aquém de toda a Filosofia e Teologia, “para experimentar a abertura e a presença do ser que seja uma teofania de pura experiência e que capte em estado nascente o ser mesmo no qual aparecer o ‘Deus’ como presença concreta do “absoluto no todo”.97
A teofania enquanto a manifestação de Deus parece ter um possível paralelo que aparenta ser o Dasein de Heidegger, pois atinge o homem na sua realidade existencial, na sua temporalidade, haja visto que o “ser” se desvela no “ente”. Comparando essas questões, teofania e Dasein, vê-se que é possível fazer uma leitura que se pode colocar Deus em um novo caminho de Heidegger e dar um novo sentido que possa falar do “ser” não enquanto “ente”, pois ambas sugerem o homem como seu lugar. Conforme Stein, Heidegger tem uma leitura a partir do sagrado como condição única que o homem teria enquanto experiência. Existe agora uma diferença entre manifestação e fenômeno, a respeito do qual o autor faz interrogações da seguinte maneira: Como se dará essa manifestação do sagrado? Qual será o sinal decisivo e indicador da vinda de Deus? Será um acontecer fenomênico? Experiência mística? Ou uma recuperação da “Ur-Erfahrung”, experiência originária da humanidade? 98
Acrescenta ainda Stein a Heidegger sobre esse novo caminho do qual fala em razão dessa condição de experiência com o sagrado: Heidegger parece que abre um novo caminho, quando sugere a inserção do homem no ser como condição única da experiência do sagrado. A possibilidade de comunicação com o sagrado seria um existencial do próprio Dasein, enquanto inserido na ilimitada abertura do mistério do ser que, como transcendental, suscita o próprio homem como seu ‘lugar’ e seu ‘pastor’.99
Heidegger é o filosofo que procura sempre dialogar e que compreende que filosofar é sempre ser iniciante. E, olhando para a história da filosofia, percebe o que Hegel um dia chamou de “galeria de opiniões”.100 Por isso, Heidegger é aquele que perpassa muitos textos e
97
FABRO, CORNELIO. El problema de Dios. Barcelona: Herder, 1962, p. 75. In: STEIN. “O Abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 165.
98
Ibidem, 168.
99
STEIN. “O Abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 168.
100
HEGEL, GEORG WILHEM FRIEDRICH. Prelações sobre a história da filosofia I – Obras vol. 18. Frankfurt: Suhrkamp, 1988, p. 30. Apud: CASANOVA. MARCO ANTONIO. Compreender Heidegger, Petrópolis: Vozes, 2009.
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obras. E, para falar do sagrado, Stein conclui que “[...] Heidegger constata, ao fim de uma longa peregrinação pelos textos dos poetas Rilke, Trakl e Hoelderlin: ‘O sagrado certamente ali aparece. Mas Deus fica longe dele”.101 É na verdade do ser que se indica o cogitar da essência do sagrado e é “apenas a partir da essência do sagrado pode-se pensar essência da divindade. E só na luz da essência da divindade pode ser pensado e dito o que deve designar o nome ‘Deus’”.102 É nesta perspectiva que, no ponto que não se deve ou não se pode ultrapassar do dizer e do não dizer, Heidegger procura alcançar ir para além do teísmo e ateísmo, da filosofia e da teologia, do ente e se abrir para o ser a partir de uma ontologia radical.
101
STEIN. “O Abismo entre Ser e Deus [...]”. op.cit., p. 166.
102
Ibid.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão do Ser em Martin Heidegger implica uma nova visão dentro do panorama do pensamento moderno do séc. XX para se pensar de forma mais radical sobre o problema metafísico do Ser e suas implicações ontológicas. Heidegger não foi um filosofo entre outros no interior da história da filosofia contemporânea. Ele representa um ponto de referência fundamental não só para o pensamento filosófico em geral e o existencialismo em específico, mas também para a teologia e sua abordagem da questão de Deus, pois, no seu desdobramento, ele nos trouxe um novo paradigma para uma percepção dos desafios teológicos mais essenciais. A radicalidade de sua crítica à onto-teologia permitiu à teologia revisitar suas premissas metafísico-ontológicas de seu discurso sobre o ser do mundo e de Deus, premissas essas originadas em um pensamento substancialista julgado equivocado em si mesmo por Heidegger pelo fato de quando se pensava estar falando do Ser, na realidade, estava-se falando do ente. O modo como ele trabalhou a metafísica, não a descartando em seu início, mas, como todo grande pensador, tecendo a partir da sua raiz fundamental, abriu [ou: pode, ainda hoje, abrir] um novo caminho também para a teologia. Com vista aos levantamentos obtidos mediante abordagem nesta monografia, surgem várias indagações e outros problemas ou conflitos referentes à reflexão teológica de fundo que se põe como questionamento fundamental a qualquer teólogo – se ele o percebe. O pensamento heideggeriano, por conflitar nossa concepção de Deus, às vezes a estimulando, torna-se requisito importante para se pensar melhor o próprio empreendimento teológico. Como resultado da abordagem realizada neste trabalho, entendendo a teologia como “palavra de Deus”, falar de Deus não é possível senão a partir do ser humano que primeiro se confronta com a pregação cristã e, a partir daí, se pergunta quem é Deus de que ela fala para, só então, dialogar com outros pensamentos de Deus. Pois quando falamos do ser enquanto ser, falamos de nossa existência em primeiro lugar sem poder identificar sua totalidade ou sua essência com “Deus”. Discutir sobre essas questões nos remete à crítica de Heidegger que impõe a teologia a acolher uma correta conceitualidade. Não que Heidegger tenha a verdade em seus conceitos, mas o método aplicado, para que se possa fazer uma estruturação melhor dessas questões fundamentais, ajuda à reflexão teológica livrar-se de seu vício de subordinar Deus ao conceito do nosso ser.
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Ora, é neste entendimento que a teologia, ao perceber que na medida em que fala do homem, fala de Deus, a sua existência não é mera especulação, pois, estudando o ser de Heidegger, também se pergunta pelas suas estruturas existenciais, tendo em vista que a igreja e a teologia tenham utilizado o método analítico existencial para se obter uma melhor compreensão e resultado dos conceitos e estruturas úteis para o entendimento da existência humana revelada nos textos sagrados. Se pensássemos em Martin Heidegger da mesma forma análoga em que Tomás de Aquino pensou Aristóteles, hoje Heidegger poderia ser uma nova perspectiva para a teologia, tendo como escopo este novo paradigma, do qual sua ontologia fundamental possibilita esta adaptação. Ou isso não seria uma agregação indevida para a teologia, pois em dado momento, somente ser outro caminho o de Heidegger? Penso assim porque a teologia apropria-se de Heidegger em alguns momentos, pelo menos como e pode perceber isso em Bultmann (e Rahner) quando o mesmo traz para dentro de seu pensamento a analítica existencial de Heidegger e outros elementos de sua filosofia existencial. Surge uma interrogação se, com a sua preocupação com o ser no sentido de desconstruir a onto-teologia, Heidegger, em ter que passar por Deus, não teria se aproximado ao pensamento teológico, quando tratou sobre o nada substancial, pelo menos no que diz respeito à teologia mística, quando menciona o sagrado como abertura do homem para o ser, sendo esse ser, o não Deus, mas caminho para a pergunta por Deus. Considero que as polêmicas geradas das teses heideggerianas sobre a tradição metafísica, faz barulho devido, à forma de como a conhecemos e nos foi passado esse conhecimento sobre o modo de pensar metafísica. Com a reconstrução da metafísica, apesar de seu intuito por eliminá-la, considera-se a palavra “reconstruir” ato hermenêutico devido, é que na medida em que se apropria e de forma inovadora, perante aquilo que foi visto e pensado no passado, nos permite uma articulação radical com o pensamento atual. A preocupação maior de Heidegger é, sem dúvida, o Ser e o problema ontoteológico causado pela metafísica, no tocante à entificação do ser. Mas, depois de ter encontrado caminhos novos quanto ao ser, ao homem e a Deus, leva-se a cabo que nada está resolvido. Com isso, no tocante do seu pensamento resta-nos entender melhor, procurando definir maneiras e métodos que se aproximem da sua percepção, do seu pensamento sobre esse tema tão complexo que repercute não só na filosofia como também na teologia – como se pretendeu demonstrar.
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