penumbra Livro Primeiro
Saga alvura e trevas
JORGE NUNES
penumbra
JORGE NUNES
AGRADECIMENTOS:
Um grande obrigado aos meus amigos, mas em grande particularidade, ao PJ pela sua imensa paciência em me ter posto os capítulos a circular pelo Scribd, dando a conhecer a quem quis ler a minha história.
À Jennifer, uma personagem existente no livro, com o mesmo nome, e baseada nela. Foi quando te conheci que disse: Sim! Esta sem dúvida ficará no livro como sendo a Jennifer, amiga do Daniel.
A ti Flávia que sempre me apoias-te e tinhas o entusiasmo ao dizeres que esta história era fantástica.
À minha professora da minha escola, Soares dos Reis, Alexandra, que me fascinou ao dizer que este livro era cativante, embora tivesse alguns problemas. Ainda assim me incentivou a continuar e ajudou a divulgar este romance à minha turma do 12ºD1, e um abraço para os responsáveis da biblioteca da escola pelo apoio contínuo.
Ao meu primo Rui que ouviu pacientemente os meus desabafos e ideias quando estava prestes a desistir, ajudando com ideias importantes que aqui pus em prática.
A uma grande amiga que não esqueci para a ideia deste livro. Liliana, esta história é dedicada a ti! Aos responsáveis e redactores da Fórum Estudante que acompanharam este livros e o puseram a circular pelo seu site
Por entre sombras e desconhecido, descobri o que mais procurava. Estava ali, mesmo à minha frente, vulgar mas tão frágil. Era com a sombra que se movimentava, graciosamente, nas escarpas da noite e pela imensidão do perigo que representava no meu íntimo. Jorge Nunes
Prefácio Se não acreditarmos em nós, quando nos deparamos com algo surreal, que até nos faz quase cegar – algo que nos compromete a não sermos aquilo que pensamos para nos entregarmos a alguém que ao inicio não conhecemos – quem conseguirá fazer essa tarefa? Ao olhar para tal beleza quando ela surgiu vindo do nada, não me deixando mexer, pensar, e me obrigou a focar-me somente nela, sabia que não podia jamais resistir. Era uma sensação estranha mas era algo de tão ameaçador como de magnifico. Poderia definitivamente nunca ter escolhido esse caminho, e tais sentimentos, mas o momento da minha mudança provocou tudo o que passava nos dias que passavam demasiado rápido. Se a vida nos escapa há que aproveitá-la como nunca e se isso me ultrapassava ali, não havia nada de mal nisso. O mistério fazia parte da minha vida, quando ela caminhava graciosamente do meu lado e os arrepios não me deixavam menos nervoso.
Capitulo Primeiro
DESCONHECIDOS
Estava calor, um calor abafado e insuportável, quando me pus à espera da minha mãe, que me viria buscar no seu Mercedes negro e novo. Chegara a hora da minha mudança, uma mudança completa na minha vida, e só agora dava conta dos factores positivos, como os verões passados na praia quente e solarenga com amigos de infância, ou aquelas voltas a Katerown de bicicleta. Uma mala e uma pasta seriam as únicas coisas a levar para casa dos meus padrinhos, em Sutterfrin. Aquele lugar vira-me nascer, crescer, e ser quem sou agora, mas com as complicações financeiras também as discussões surgiram por tudo e por nada e o clima estava tão pesado, que parecia cair-me uma pedra na cabeça quando permanecia em casa, parecendo estar tudo contra o que eu mais desejava, um pouco de sossego. - Ainda estás a tempo de não ir! - Avisou-me a minha avó "Camila", como era conhecida lá na rua, estando quase a chorar com a minha partida.
A viagem seria penosa, demorada e muito quente, já que o interior do carro, bastante bonito, com pele de camelo num tom amarelado, tudo aquecia mais do que deveria, e, por mais de uma vez quase que assistira à sua total destruição por causa de pequenos incêndios. No entanto, via esta mudança como uma oportunidade de poder tornar-me melhor e principalmente por sair do inferno a que a minha casa se assemelhava. Os dias pareciam não ter fim, em que eu, era o alvo para todos os assuntos e conversas e assuntos, sem o mínimo interesse. Mantinha-me distante. No fundo já tinha a decisão mais que tomada, ao ponto de ser matriculado na escola mais popular da nova cidade, o Liceu de Awferid e pretendia fazer por lá algumas novas amizades. Ups! Bem, quando voltei a mim a minha avó estava a esbracejar e a gritar comigo, não levando eu duas palmadas por sorte, mas eu já estava habituado a este comportamento por parte da minha avó, até porque ela tinha razão.
Finalmente uma buzina rouca e bastante prolongada tinha-me chamado a atenção, continuando a minha avó a murmurar qualquer coisa entre dentes. - Vê se não ficas sem comer e se não apanhas frio Dani. – Acrescentou preocupadamente. Detestava aquele apelido, mas sabia que não me podia pronunciar em relação a isso. Ao menos agora iria ficar a ser chamado de Daniel ou Foller, mas não de Dani. De facto esse nome fora-me chamado uma única vez por um tio, agora a viver no estrangeiro, e ainda por cima numa desta do quarto ano, quando interpretei o papel de uma rapariga chamada Dani. Absolutamente repugnante. Maldita professora. Coitada! Lá ao longe uma luz cintilava no asfalto quente e a exalar fumo precipitado para o ar. Alguém me acenava. Decerto reconhecera a pessoa e a Harley Davinson que percorria ruidosamente a estrada em direcção a mim, parecendo uma gelatina depois de atacada por uma colher, tremendo por causa do calor, coisas da física que não percebia muito, e não gostava. O meu pai chamou o meu nome e logo reconhecia a sua voz grave e robusta, o seu tronco atlético e desportivo. Trazia um casaco de cabedal apertado até ao peito, umas calças verde alface que comprara no Havai, nas primeiras férias com a minha mãe, e tudo isso me fazia vacilar agora na escolha. Cheirava a gasolina num tom carregado naquela linda peça. Era uma das preferidas pelos rapazes da região e eu tinha sorte em me passear nela. Olá rapaz! - Exclamou com um sorriso entre dentes. - Estás grande. E a tua mãe como está? Parecia uma pergunta de provocação, pois ele sabia perfeitamente como ela estava, mas eu não me importei muito com a pergunta e então respondi de forma rápida e fechada. - Bem... – Pronto para bazarmos? - Questionou ele de modo bastante aberto e parecendo empolgado com a ideia. Momentaneamente um arrepio me atravessou as costas, que suscitou em mim um medo de morte. - Tu…. Sabes conduzir essa mota? Engasguei-me quando a pergunta saiu bastante baixa, de modo a que ele não ficasse tão zangado como eu sabia que ficaria, mas no fim, apenas um riso abafado saiu e ele sorriu.
- Bem... Acho que sim. Achas que podemos ir? Fiquei fascinado da maneira como a mota que movia com graciosidade ao passar por entre as faixas brancas da estrada algo velha. O vento passava por entre os meus cabelos meio espetados, de forma vulgar, e prontamente parecia que as minhas preocupações desapareciam como que fossem apenas lembranças de um momento mau e, que daí em diante ficariam fechadas numa gaveta do meu antigo quarto. Era livre como uma ave no céu, bem, não totalmente mas, por agora era, enquanto via as grandes montanhas que atravessavam o céu agora desprovido de quaisquer nuvens e os verdes campos com erva fresca faziam os cavalos que se viam parecessem maiores que o habitual, que se calhar ao tempo que ali estariam não parecia assim tão absurdo pensar daquela maneira. A sensação de estar a país das preocupações da minha antiga vida, era uma alegria, e eu estava disposto a esquecer o passado. Durante a viagem, que demoraria cerca de meia hora até ao largo onde viviam os meus padrinhos, eu e o meu pai não nos falamos e eu sabia que em princípio, tímido como ele era, não passaria muito dali. Senti-o diferente por causa da idade, é certo, mas não era só isso que me estava a deixar um pouco intimidado de estar ali. O distanciamento que permanecíamos embora eu estivesse a poucos centímetros dele, pareciam quilómetros que nos separavam, como se uma rede não me deixasse tocar-lhe e um vidro que não me deixava ouvi-lo caso ele falasse. Isso fez-me lembrar dos meus amigos e fiquei angustiado só de pensar, tentando não pensar que cometera um grande erro. Não era muito difícil pensar assim, pois eu era bastante pessimista. Passara então uns trinta e cinco minutos destes pensamentos e eu nem notara que o descanço da Harley estava no solo arenoso que sujava a pequena entrada da casa. A casa não era propriamente de ricos como eu estava habituado à minha, e as suas dimensões também não me esclareceram a tal conclusão. Tinha uma cozinha estreita que acabava numa janela com a persiana descida. Os quartos pareciam-se com os da minha antiga casa, com a pintura ainda fresca, cheirava-se perfeitamente. O mais pequeno, certamente onde eu ficaria também estava pintado, num tom meio avermelhado que não me seduziu muito, mas felizmente tive a notícia de que havia um outro bastante maior, e o meu pai levara para lá as coisas. Este figurava bastante o meu tipo, com a cor azulada a predominar por completo, alguns móveis, poucos e pequenos, e o mais interessante, uma televisão e uma data de cd's pendurados a pregos na parede por baixo de uma prateleira com uma aparelhagem de alto som, com duas colunas do lado e a mostrarem a marca da Sony. Perguntei-me que
estaria no quarto errado mas depressa percebia que seria mesmo onde eu ficaria nos próximos tempos, ou anos. Estava a viver um sonho antigo, não que não tivesse isto em Katerown mas aqui, isto era diferente, mais novo sem dúvida, e o melhor era que seria um quarto só para mim, não tendo eu de compartilhá-lo com nenhum irmão mais velho que se armava em mandão. Estou a falar do James. Era o meu único irmão e desde que atingiu os 18, atingira também a parvalheira, digo sem dúvidas. Enfim. A casa parecia abandonada, sem que alguém aparecesse para me dar as boas vindas, com tudo perfeitamente organizado. A meu ver tinha um aspecto de abandono na sala, algo perdida entre fotografias velhas e armários de loiças dos anos 50, e o tecto tinha buracos feitos pelos bichos da madeira. Tomara que não me caísse na cabeça. Suspirei. - Não está cá ninguém, pai. A minha afirmação mostrava arrependimento e eu senti-me vulnerável às expectativas que teria tentado pensar serem mais favoráveis que "o normal". Tinha a certeza que estava errado mas mesmo assim, as saudades apertavam. O meu coração contraiu-se dentro do peito e eu não conseguia respirar da forma correcta, soltando alguns soluços enquanto olhava em meu redor, vazio e sem vida. - Talvez estejam a chegar. Talvez... Aquele momento de pura hesitação por parte de Johan, deveria proceder-se devido a algo que ele sabia e não me contara. Sentia-se a eminência de uma derrocada na minha cabeça com aquele suspense e, por momentos, pareceu que eu ouvi uma voz feminina a rir-se. Tinha gente em casa mas eu não via clima vivo. A mudança estava a dar comigo em doido. Os risos voltaram a ouvir-se e desta vez nitidamente claros. Isto, porque depois disso um mar de gente saiu de trás das cortinas da janela da sala e começou-me a cantar os parabéns. Senti uma confusão de sentimentos a invadirem-me os sentidos e, num sentido de carácter união e tristonho, tornei aquilo num aconchego no meu coração. Contorci as mãos vezes sem conta e os meus ossos salientes obrigaram os dedos a fecharem-se contra o meu corpo, abrindo os meus olhos para deslumbrar toda a beleza genuína que me rodeava. Até aí, já nem me lembrava de algum dia ter participado numa festa, seja pelo que fosse, e quando havia o meu aniversário, apenas assistia a prendas de palavras amargas entre os meus país. Tanto só para mim, de gente que nem me conhecia. - Lamuriei-me estupidamente.
- Não dizes nada? Não gostaste? - Gritavam os presentes, sentindo-me eu completamente baralhado. Era tudo tão estranho, abstracto e deformado. Chegara até a pensar se estariam a gozar comigo para depois me porem a trabalhar. Nem tive tempo de pedir desculpas e fui a correr para o meu quarto depois de subir as escadas ainda que irregulares, que emitiam um ruído estranho, e percorrer um longo corredor cheio de imagens e fotografias de família. Tranquei a porta com violência e a paisagem tinha mudado radicalmente. Via parcialmente que iria chover em breve e por ali nada me agradava, com casas cinzentas e um cheiro a fumo vinha dos carros. - Mais valia não ter vindo para aqui! - Interroguei-me a mim mesmo, batendo com a mão na secretaria, ainda meia húmida do verniz que o meu pai passara, pois era carpinteiro. Uma profissão era certo, mas em relação às que haviam na minha antiga cidade, nada era. Eu estava habituado a médicos e engenheiros, numa cidade grande. Não sabia desvendar o verdadeiro motivo pelo qual tinha fugido da sala, mas naquele momento, o que eu mais desejava era que o amanhã chegasse. Ainda era de dia e pelo estado do sol, não deveria passar muito das cinco e pouco. Suspirei em sinal de cansaço. Só agora me dava de conta que tinha a pele eriçada. A temperatura descera bastante, pelo menos uns dois graus, e a temperatura não passaria dos onze graus antes. Decerto que a minha roupa era quente, usando eu uma camisola de malha que a minha mãe fizera antes de me mudar para cá. Um casaco desportivo da marca Adidas, fino mas com a intenção não de me aquecer mas de combinar com a camisola faziam o conjunto no meu tronco algo magro, mas que toda a gente dizia ser atlético, apesar de eu não achar. Por outro lado pensava que não seria mesmo verdade, até porque eu fazia musculação todas as sextas de manhã num ginásio ali à beira. As calças que usava eram de ganga, acabando com uma beira fina virada para cima. Não era a minha roupa favorita mas em breve as minhas melhores peças seriam, trazidas pela minha mãe. Não estava preocupado em relação a nada disso. Também não era pessoa que preocupasse com muitas coisas. Reparei quase sem crer na janela do quarto, virada para a restante cidade. A vista era autêntica e bastante original, nada do que vira até então em Katerown. Ao menos nem tudo me aborrecia ali, tomei eu atenção ao que pensava, com um pingo
de ironia nas palavras que vagueavam na minha cabeça, algo aturdida pelo cinzento do céu. As portas não abriam com facilidade, e vi que teria de recorrer à minha força para as abrir. Tinham um aspecto velho, com uma pintura branca pintada de fresco por cima de um cinzento-escuro e gasto, visto em algumas partes com falhas. Tinha buracos provocados pelos bichos da madeira e por fim ganhei coragem para abrir a tal janela, mas detive-me quando ela soltou um barulho de arrastamento encravado que me levou a encostar-me de imediato aos pés da minha cama, baixa e com cobertores extremamente coloridos. Um barulho semelhante a pequenas pedras começou a ouvir-se a bater nos vidros já embaciados, e eu soube que começara a chover. Não era mau aquele murmurar mas mesmo assim sentia-me incomodado. No meu interior, o meu coração palpitava de tal forma, que pensava ir desmaiar, pois não tinha comido. - Daniel? Está tudo bem? - Perguntou Moli, a minha madrinha, do lado de fora do meu quarto. Eu conseguia notar a preocupação na voz dela, mas nada disse. - O que se passou? Tivemos de mandar as pessoas embora! O que se passa? Insistiu ela, desta vez sendo o meu padrinho também falava, mas eu continuei calado, ouvindo bater a porta várias vezes. Era óbvio que estariam preocupados, e continuava assim, estando a noite a precipitar no céu aveludado de nuvens aglomeradas e pesadas. Ainda estavam a cair gotas do telhado. Não me levantei por um instante e o silêncio instalou-se pesadamente. Eu não sabia, mas tinha adormecido. Durante essa mesma noite, alguns sonhos ligeiros, não deixaram marca no meu consciente, mas que ainda assim me deixavam agitado, fazendo-me acordar por breves segundos, não dando noção de onde estava. Não havia necessidade de eu sonhar muito, pois nem era meu hábito realizar proezas semelhantes, e assim, as horas passaram sem que as minhas memórias me abalassem verdadeiramente. Saberia porém, que na manhã seguinte acordaria meio atordoado e com a sensação de extrema amargura, com algumas dores de barriga, que talvez, o que fariam, era acordar-me agora e pôr-me a assaltar o frigorifico. Tal não sucedeu e eu voltei-me para o outro lado, não me recordando de mais nada, até à manhã seguinte. Quando amanheceu, eu não ouvira nenhum dos meus dois despertadores que trouxera de Katerown.
- Daniel? Oh meu deus, ainda não abriste a porta? Reconheci a voz melodiosa da minha madrinha, mas, por agora, mostrava ser uma voz aflita e totalmente exagerada de preocupação. Afinal eu não estava tão… - Que horas são? – Quis saber eu, esperando alguma resposta do lado de fora da porta, que entretanto veio, mas em total sentido de reprovação. - Não interessa que horas são. Apenas sei é que estás meia hora atrasado. É o teu primeiro dia de aulas. Por favor levanta-te! Dei um salto da cama para o chão, tentando ficar de pé nem que fosse por cinco minutos, mas o corpo estava de tal forma adormecido que eu ainda cambaleei até à casa de banho, apenas para ver a minha figura triste. O meu cabelo, que já estava um pouco grande demais, meio avermelhado, com madeixas cor de amêndoa, que agora descobrira que tinha, estava completamente emaranhado sobre si mesmo e muito despenteado. Seria um dilema penteá-lo, pois era forte o suficiente para não querer recompor-se com água, e se fosse com gel então….ufa nem quero pensar! Duro como ficava, era a sentença de morte para o meu tempo livre, quando me dedicasse e torná-lo obediente para ele ficar direito e apresentável. Decidi que ficaria assim. Parecia uma estrela de Rock misturada com um mendigo que não tem com que se pentear, mas com certeza haveriam lá outros iguais a mim. Pensei eu para tentar não dramatizar. Seria um milagre eu conseguir chegar ao liceu em menos de vinte minutos e eu podia escolher entre ir de autocarro, ou ir a pé, mas ao sair da porta de casa, por onde saíra aos tropeções, reparei numa bicicleta estacionada mesmo junto ao portão. Não interessava de quem era e eu peguei nela, esperando que ninguém me visse a cometer aquele furto tão singelo, e depois de observar que o caminho estava livre, pus-me a dirigir em direcção ao liceu a grande velocidade quase encravando a corrente e mal me importava em ver a paisagem cheia de árvores e casas, algumas antigas que me circundavam a cada pedalada que dava. Pouco tempo depois, observei um grande edifício avermelhado e, apenas soube que aquilo seria uma escola pela grande tableta acima da porta principal, bastante arranjada com motivos vegetais. Espreitei a tableta e fiquei profundamente aliviado ao ver as palavras «Liceu» e «Awferid». Demasiado depressa para ter tempo de raciocinar, levantei a dianteira da bicicleta, de modo a virar-me o mais possível para o portão principal, e, ganhando velocidade, esgotei as minhas forças mortais para chegar a tempo da porta não fechar, estacionando a
bicicleta junto a uma arvore a que a prendi, e logo depois ajeitei a minha roupa e o cabelo, de forma a não dar nas vistas para não pensarem que estava demasiado desesperado. Estás com pressa rapaz! – Exclamou suavemente, quase em tom de troça, o porteiro, e eu fiz-lhe um ar de aborrecimento que ele entendeu logo. Afinal o meu “disfarce” não tina resultado. O interior da escola era frio e calmo, mas ainda assim conseguia ouvir os murmúrios de colegas meus a entrarem para as salas, ou não. Mesmo assim teria de encontrar a sala de físico-química, para não levar um aviso logo no primeiro dia. - És o Daniel Foller? Mostrava ser o tipo de rapariga que andaria sozinha na escola, tendo um elegante aparelho metálico nos dentes, que lhe dava uma aparência bastante razoável, exibindo com ele um sorriso bastante simpático e tímido, com olhos profundos de constrangimento. - Apenas Daniel se não te importares. – Pedi eu afavelmente, ajeitando a minha camisola larga, que me fugia das mãos e me fazia parecer um “baldas”. Não tirei no entanto, os olhos do chão, pois não estava habituado a falar com raparigas, aliás, desde que me lembro de existir, não falara com nenhuma até então. - És desta turma? Não havia por onde fugir à questão, mesmo que eu não pretendesse revelar-me já. - Com certeza. – Respondi em forma de murmúrio ainda que bastante audível, que percebi com o sorriso aberto dela. Aquela rapariga mostrava grande graciosidade, fazendo ao mesmo tempo um esforço notável para não mostrar vezes demais o seu “acessório”. - Queres ir comigo no próximo intervalo para ficares a conhecer a escola? Já sei todos os recantos! – Afirmou ela de maneira fulminante, parecendo bastante contente com a última a parte da frase, e, ao pensar em tais palavras senti-me a corar. Devia parecer um tomate no tempo ideal para se poder apanhar. Um convite. Não me apetecia, de todo, conhecer nada ali, para já. Mas teria de lho dizer de maneira a que não ferisse os seus sentimentos tão elevados, de poder ter alguém com quem falar e estar. Notava-se isso bastante bem, e eu tinha de sair dali ou morreria de timidez. - Obrigada, mas…pode ficar parta outra altura? Amanhã?
De certo que não fora a melhor frase a ser empregue ali, mas não estava disposto a colaborar com aquela nova desconhecida. - Não faz mal. – Amuou ela. – O meu nome é Anna. – Depois desceu o tom de voz, olhando para os pés. - Vemo-nos por aí. Agradeci novamente, mas já a rapariga de cabelo loiro, com uma saia aos quadrados verdes sobre fundo preto, se tinha afastado, indo na direcção das casas de banho, logo ali ao virar de uma esquina em que estavam afixados alguns papeis com avisos. Ela tinha ficado triste, mas eu não podia mesmo sair dali para lado nenhum. A sala não tinha ninguém, e algumas cadeiras estavam desocupadas, com a maioria em vista de terem pertences de alguém. Como era novo ali, decidi esgueirar-me para as cadeiras do fundo, as três únicas que pareciam não ter dono, mas dei conta de que todas já tinham coisas em cima delas, duas mochilas e uma capa, aparentemente velha e já rasgada que pus com cuidado em cima do parapeito da janela mais próxima, larga e fechada por um vidro que estava nitidamente sujo com pó. Tocara e eu estava super nervoso. Os meus colegas começaram a entrar, primeiro, um rapaz com sardas, meio aloirado e de óculos. Tinha uma pose intelectual com os livros de geologia e matemática debaixo do braço direito. Trazia uma tshirt às riscas verdes de dois tons, um mais cor da relva, muito vivo, e outro escuro, quase da cor do musgo. Era simples, e por isso, talvez fosse gozado como agora sucedia, quando um bruta montes com estilo skinhead e a esmagar uma lata de Coca-Cola o empurrou, deixando-o fazer cair os livros e folhas que trazia. Corri para ajudá-lo, e comecei a dar-lhe os livros espalhados pelo chão à minha volta. - Sou o Daniel! - Disse eu ao tentar que ele perdesse a timidez e o medo. - Ke...Kelvin..! - A sua expressão era tão inocente que até senti pena dele. Depois afastei-me e sentei-me de novo no meu lugar, prestando atenção ao resto da turma, notando que a maioria era tudo raparigas, para meu espanto. Uma expressão interessada chamou-me a atenção. Mostrava sinais de grande ansiedade e muito medo. Sim, era a rapariga do aparelho, e não tirava os olhos de mim. Baixei a cabeça e olhou fixamente para a minha secretária, com riscos e cortes editor por x-actos. Sabia que me observava ainda e senti-me a corar, sentindo as minhas orelhas a arder. Ela riu-se baixinho. Era engraçada, não podia negá-lo.
A entrada do professor saltou-me, ao mesmo tempo que me deixou com receio. Estava estático e recto como uma estátua ao sol. O meu peito doía-me e comecei a suar em pingos longos. - Tem calma, ele não te morde!
O sussurro da rapariga que me observava com um ar incisivo não me deixou mais descansado, mas abstraiu-me uns minutos da compostura rígida a que me propus reger, e agora conseguia sentir de novo os dedos. A aula seguiu com a apresentação do professor, de nome Kockin qualquer coisa, e começamos logo o trabalho a sério, com o estudo de um caso que desconhecia, não me interessando minimamente por aquilo. Tinha a ver com raízes, e não achava nada daquilo um pouco que fosse, de interesse, claro, era físico-química. - Agora... – Aquele compasso de espera fez-me ficar ainda mais nervoso quando o homem de cabelo quase branco e de óculos no nariz, começou a observar os presentes durante longos minutos, que na verdade foram breves segundos, mas que para mim, pareceram um tempo interminável, até que, a sua voz quebrou o silêncio cortante que invadia a sala. - Mr. Foller... – Estremeci de um salto na cadeira. Ele continuou com um ar entusiasmado. - Conte-nos por favor como é viver em Katerown. Eu nem sabia como reagir. Dei por mim a pensar em mil e uma formas de começar a explicação, que fosse breve e que cativasse a atenção de todos. Uma história de terror ou uma grande aventura em que eu seria o herói...Não, de certeza que não eram as mais distinguidas formas de poder ser aclamado o "maior da turma", por isso, cingi-me a explicar um pouco da minha experiência. - Katerown... – Comecei para que parecesse minimamente respeitável. - Tem sol, a maior parte do tempo não chove, há praias enormes para se poder passear ou apenas estar ao sol, grandes edifícios de empresas na parte mais central da ostentosa cidade... Olhava em volta e verifiquei que todos me observavam com olhares de admiração e especulação. Limitei-me a continuar, com um pouco mais de entusiasmo, não exagerando para não pensarem que fosse doido, ou coisa do género. - Vivi lá até este ano... - Hesitei em revelar as razões de me ter mudado, e contornei a situação de uma forma mais inteligente. - Mudei-me por causa do curso que quero tirar por aqui, para poder ser arqueólogo.
- Mas Mr. Foller... O que o meu professor acabara de fazer fora quase um crime. Tornou a minha confiança num autêntico fiasco. Perdera a vontade de continuar, suscitando em mim novo medo, com toda a sala a franzir o sobrolho na minha direcção em sinal de impaciência. Todos menos uma pessoa. A mesma que ainda me olhava com um sorriso aberto e inocente, deixando-me mais à vontade, mas mesmo assim, tensamente rígido. - Na sua antiga cidade haveriam árvores, certamente... Ouvi dizer que é um espaço muito verde! Ele tinha razão. Parecia conhecer muito bem o lugar de onde eu provinha, mas mais nada disse, para me dar nova oportunidade de falar, ao que não respondi, mas olhei-o em busca de poder interpelá-lo. - Sim, claro... A afirmação saiu baixa e penosa, dando-me a sensação de estar com uma expressão ridícula. A aula parecia um interrogatório para ambientalistas. Ainda faltavam quase quarenta minutos para o milagroso toque estridente, mas salvador, que me faria sair da "cadeira eléctrica". Mas de repente o clima foi cortado por uma batida seca e forte na porta, que virou todas as atenções na direcção do som, inclusive com a apreensão do professor que agora que mostrava muito direito, depois de arranjar o casaco, bastante brilhante e de cor cinzenta. Parecia um "smoking". A porta abriu-se e uns sonoros e pesados passos ecoaram na sala e nos corredores do exterior desta. De fato muito formal e com uma gravata azul turquesa, de porto severo e olhar furtivo, apresentou-se ainda que olhando para nós, um homem com os seus cinquenta anos. Certamente que seria o director ou alguém com muito prestígio ali, pela maneira como todos os presentes o olhavam com precaução, quase não levantando a cabeça para o fitarem nas faces pálidas. - Muito boa tarde meus senhores... Olhei de relance para o meu professor e notei que ele tremia a cada palavra proferida a nós. - Na próxima semana terão uma visita de estudo a um museu local. Verão uma exposição de várias catedrais românicas em fotografias emolduradas, que vos servirá
como introdução à disciplina de História e Cultura das Artes, o qual eu serei o vosso professor e director de turma. Esfregava as mãos ao dizer tal coisa e eu tive grande noção que ele estaria ali para nos preparar para um ano de pesadelo. - Obrigado pela atenção. Bom dia. E saiu porta fora em passo largo, quase não pestanejando, sempre com aquele ar rígido e de grande altivez. Decerto que seria um bom motivo para eu nem aparecer na visita, tendo inventado uma doença ou uma indisposição qualquer, que fosse bastante convincente. Além disso já tinha tido uma disciplina semelhante no ano transacto, mas não me desagradando de todo a ideia de ver catedrais. Teria de reflectir no assunto e preparar-me no caso do meu plano de falta falsa, desse para o torto. - Olá! - Chamou uma voz atrás do meu ombro. Logo atrás de mim, distanciada por trinta centímetros estava uma rapariga. Tinha uns olhos brilhantes e muito vivos, cor de amêndoa. Mostrava um rosto bastante perfeito com curvas bem delineadas nas faces algo rosadas. Tinha um sorriso fechado mas muito humilde e simpático, e reparei que a sua expressão mostrava um pouco de aflição e nervosismo, pois olhava sistematicamente. Parecia estar preocupada com algo ou com alguém. - Olá. – Repetiu antes de se apresentar. – O meu nome é Bella. Ouvi dizer que és o Daniel Foller. É verdade? Notei que ela quase me segredava tal pergunta, mas também reparei em todos os olhares de novo, pousados em mim, e agora nela, de forma quase mortífera. - Quando vieste para cá?
Aquela pergunta era tão directa como a que Anna me pusera ao perguntar o meu nome. Não percebia a razão mas, toda a gente parecia querer-me ali. No entanto, os olhos que controlavam aquela rapariga, tão frágil e curiosa, pareciam queimar-me o olhar e o corpo cada vez que o confrontava com algum receio. - Desculpa, não posso falar mais. O Edward está a olhar para aqui. Finge apenas que me foste chegar uma caneta do chão, porque ele parece zangado. Fiz-lhe um sorriso tímido e debrucei-me na cadeira para fazer o que me pedira. Não queria certamente ser odiado por ninguém.
Era um rapaz, branco da cor de mármore mais branco que existe, o que arrepiava-me. Quase não parecia ser humano e o seu rosto mostrava em grande parte, ódio serenamente controlado. Não gostava de mim, sabia-o, mas não pretendia que ele me fizesse mal, até porque ele deveria ter chegado ali primeiro que eu, pela sua estatura bastante corpórea e altiva, mesmo sem mostrar sinais da idade como rugas ou barba. Não teria tido barba em nenhuma altura, sabia-o pela face completamente lisa, que seria impossível poder ter por melhor que a tivesse cortado. Arriscava-me a dizer que teria uns vinte e poucos anos. - Obrigado. – Agradeceu Bella com um sussurro breve. O seu murmurar era tão suave como uma criança de dez anos, apesar de ela já ser uma rapariga bem desenvolvida. Era simpática, mas seria melhor afastar-me, pelo menos por agora. Ouvi-o quase rugir. Era estranho estar ali no meio dos dois. Finalmente a aula parecia estar a terminar aquando reparamos nos restantes que arrumavam as suas coisas à pressa, arrastando as cadeiras e soltando um barulhinho de fundo que me incomodava os ouvidos, assemelhando-se aquilo a um enxame de abelhas em ponto de caça eminente. Senti-me tonto e deixei-me ficar quieto na cadeira à espera de me acalmar. As minhas mãos tremiam e reparei que Edward passara mesmo atrás de mim, raspando o seu longo casaco de pele cinzenta nas minhas costas. Limitei-me a ignorar que ele estava ali e tentei não pensar que ele me viria pedir explicações pela conversa com a amiga dele. Depois a campainha tocou de forma prolongada, e até que todos saíssem, não mexi um dedo sequer. Só depois me levantei e arrumei o caderno na pasta de uma alça que trouxera. Teria agora que enfrentar o espaço interminável da escola, e eu precisava urgentemente de comer. Soltei um suspiro de alívio quando atravessei a porta da sala e não observei ninguém por ali perto para me interpelar. Senti de novo a minha cabeça no lugar, assim como todo o corpo e bocejei. Anna riu-se baixinho, estando mesmo atrás de mim. - És muito engraçado sabias? A voz era suave e eu conhecia-a, mas quando a conheci, vi que não teria proferido uma frase para que respondesse. Eu sabia que ela teria encontrado sim, o meu eu, que eu procurava manter na penumbra. Virei o rosto e olhei por instantes, a face divertida que conseguia observar, estando esta fixada em mim. Mostrava ter o semblante um tanto ou nada carregado de
receio, como se ainda não estivesse à vontade para se dirigir verbalmente a mim, deixando o seu olhar pregado na tijoleira do chão. - Estás bem? Percebi que tal questão fora posta pela expressão estúpida com que me deveria encontrar, ou por algum cabelo fora do seu devido lugar, dando-me a ideia de que faria figura de idiota ali. Mas porque é que eu estaria assim? - Como já disse, sou a Anna, Anna Lindsley. O nome era giro, mas nada irrelevante para mim. - Tens medo do Edward? Boa! O Edward. A conversa já não me estava a suar bem, pelo que comecei por parecer menos nervoso. Ele seria perigoso para mim, mesmo que isso à partida fosse mentira. Sabia-o perfeitamente. A rapariga de estatura média, tal como eu, remexeu num dos bolsos grandes da sua mala, vermelha e brilhante. Prestei atenção à situação. O seu cabelo longo cobria-lhe a face, e depois, olhou para mim com um olhar muito aflito. Com uma mão tentou uma vez mais alcançar algo e depois desistiu. Suspirei ao pensar que fosse buscar o telemóvel para depois me pedir o número, o que me deixaria extremamente aborrecido e irritado. Pelos vistos seria apenas um caderno esquecido na aula anterior, o que não constituiria tanto motivo de preocupação, e ela descansou depois de mo informar. O meu estado de espírito estava gelado e aborrecido, tendo a consciência de que nada estava ali a fazer com aquela rapariga que não via como tal. De facto, não passará muito tempo desde que começara a falar com Anna, e senti o meu cérebro a divagar e a agitar-me, quando uns dedos me irromperam os pensamentos sobre o almoço, como flechas. - Entrámos? - Perguntou uma voz aguda bem junto de mim e dos meus ouvidos, ainda meio tapados pela sensação de querer ter uma fuga rápida. Depois detive-me por instantes, para pensar no meu horário. Senti-me mais confiante, face à certeza de que a hora de sair para almoçar se aproximava, depois desta aula. Porém, esta aula teria de se realizar, o que era péssimo. De certo modo, a ideia de que sequentemente iria para casa, parecia deixar-me com um novo ânimo. O professor Gregory já estava sentado na sua secretaria de madeira americana. Tinha barba robusta, olhar erguido e uma expressão forte e vincada de impaciência nas
rugas que apresentava sob a boca e na testa. A aula começou sem percalços, ainda que tivesse de falar novamente em Katerown, onde me limitei a imitar as palavras proferidas anteriormente. Estava agora em ciências. Os olhares mostravam cansaço, quando alguns reviravam os olhos e ninguém prestava atenção. No fundo da sala, à frente, o rapaz que ajudara do ataque de um brutamontes, que felizmente agora tinha faltado, ainda se mostrava interessado, e para meu espanto, escrevia muito quando eu pronunciava algo da antiga cidade. Depois acenava com a mão e erguia o polegar em sinal de provação. Ao menos tinha um ouvinte, já não era mau. Quando a hora de saída chegou, ergui-me da cadeira e peguei na mochila, depois de dar um jeito ao cabelo, pois parecia-me estar a cair para a frente dos olhos.
Na verdade, teria de o cortar o mais depressa possível, pois já me chateava ter de aplicar gel todas as manhãs, e ele estava a começar a ganhar caspa, o que me atrapalhava, já que a minha roupa preferida tinha sempre preto, um inimigo altamente perfeito para o meu problema capilar. Quando encontrei a saída para o portão principal, fui directo para o exterior, cansado e com vontade de descansar um pouco. A bicicleta estava exactamente no mesmo lugar onde a deixara, e eu corri um pouco até chegar perto. Havia gente por todo o lado, muitos alunos, o que me iria dificultar a saída, mas a sorte estava comigo, e consegui colocar-me no passeio principal, a caminho de casa, num ápice. Como tinha tempo, pedalei devagar e olhei em redor, para observar toda a paisagem, cheia de casas bastante arranjadas e de cores vivas, árvores enormes e cheias de folhas, em cada um dos lados, sem muito trânsito na rua. O ar era fresco e fez-me apertar o casaco azul-marinho que eu trazia, ainda aberto. Parecia que a chuva estava para chegar, com nuvens negras a aglomerarem-se no céu e a fazerem formas estranhas no amplo espaço vazio e soturno.
A porta de casa dos meus padrinhos rangeu quando lhe dei um jeito com a perna, para que abrisse, pois estava meia empenada por ferrugem nas dobradiças velhas. A casa
precisava urgentemente de ter obras, mas, parecia que isso não aconteceria nos próximos tempos. Suspirei e entrei, em direcção à cozinha que permanecia silenciosa e escura, dando-me logo a razão pela qual a casa emanava a mofo. Agora percebia o porquê de quando chegara àquela casa, no dia em que supostamente, deveria ser o do meu aniversário, a casa parecia velha e assustadora. Os meus padrinhos trabalhavam todo o dia, até altas horas da noite, e deixavam sempre a casa fechada e desarrumada, como podia comprovar pela pilha de loiça suja em cima da banca e da mesa encostada a uma coluna, que dava também encosto para o sofá que se via imediatamente ao abrir-se a porta, com um pequeno espaço a separar a porta deste. O sofá era grande e tinha a forma de L, todo branco, agora meio sujo por causa do pó, apesar de ter um plástico a protegê-lo quase na totalidade. Havia restos de piza pelo chão e os tapetes, à entrada e junto à copa estavam gastos, muito decorados, é certo, com flores e formas geométricas, de um bordeau carregado, mas inacreditavelmente, cobertos de pó. Não gostava nada daquilo, e nunca fizera limpeza até agora, mas aquilo fizera-me tanta impressão, que decidi pegar numa vassoura. Teria de a encontrar primeiro, nos cinco armários à beira do balcão de granito, o maior que havia, junto ao forno de cor negra. No entanto isso não constituía problema para mim, até porque era bastante bom a encontrar coisas, e lá o encontrei, facilmente e no meio de alguns produtos de limpeza e aventais. Levantei mais pó do que o que limpei, mas a cozinha ficara bem melhor assim, achei eu para comigo próprio. Passara-se meia hora desde que comecei as limpezas, e agora apenas dispunha de meia hora para almoçar. Também não sabia cozinhar, por isso decidi comer a caminho do liceu, num dos cafés que havia até lá, ao todo três. Uma sanduíche e um sumo chegavam-me para aguentar toda a tarde e não cair a meio de uma aula qualquer. Eu era forte e na verdade, também não gostava muito de comer, pois queria-me manter em forma. Nunca fora gordo e não era agora que o iria começar a ser, certamente. Peguei nas chaves e dei um ligeiro jeito ao cabelo em frente ao único espelho de corpo inteiro que havia no hall de entrada. Depois peguei de novo na bicicleta, desta vez meio descuidado (apenas me apercebi disso a caminho da escola), e saí à procura do meu almoço de fast-food.
Permaneci atento a todos os nomes de ruas por onde passava, para futuramente, se gostasse do café, saber onde era e qual o seu nome. As montanhas que viam muito ao longe, e, por breves segundos fascinaram-me. Ali não era tudo tão mau como previra de manhã, com todas as perguntas sobre o meu "passado". Senti-me bastante confortável em cima da bicicleta cinzenta e alta, podendo passar por sítios estreitos quando aparecessem carros. Finalmente apareceu um café, de nome "Food & Friends", e gostei do aspecto da montra, cheia de bolos e bebidas em lata, dispostos lado a lado. Não estava cheio e foi fácil ser atendido rapidamente, dirigindo-me de imediato à esquina que me levaria directa ao liceu. Desta vez não estava atrasado. Tudo correra como planeara. Fui digerindo pequenas quantidades de fanta enquanto me aproximava do portão, agora visível. Estava bem mais bem-disposto e quase me desaparecera a ideia do martírio matinal. Havia uma leve brisa no ar, que me passava na face e me fazia levantar os pêlos dos braços em sinal de pequenos arrepios, já que a minha temperatura corporal era mais quente do que a aragem no ar, que fazia folhas nas árvores, grandes e robustas, agitaremse de um lado para o outro como forma de uma dança perfeitamente ensaiada. Com grande surpresa vi, parada e encostado ao muro que figurava uma das alas para o portão, o rapaz que tinha sido envergonhado de manhã, com este perfeitamente à vontade num grupo de cinco raparigas em seu redor, com cadernos e a fazerem grande alarido. - Génio da matemática! - Pensei com alegria e ao mesmo tempo com tristeza, simultaneamente a soltar um suspiro. Afinal a única fama que tinha era para uma rapariga, que não fazia propriamente o "meu estilo". - Daniel Foller certo? - Interrogou uma voz algo familiar, mas muito distante para que a reconhecesse. Virei a cabeça na direcção da voz e vi uma cara muito delicada, com uns grandes olhos azuis da cor do mar, cabelo aloirado com madeixas, e um capacete negro de motoqueiro. Trazia uma mochila, que, pela expressão de dor no seu rosto suado em forma de coração, a deveria estar a cansar muito. Estendi-lhe a mão para oferecer ajuda de imediato. - Importas-te? - A minha voz era fraca e rouca. Eu não estava a fingir. As palavras que tinha dito apenas me escapavam, como se de uma anel largo se tratasse, a fugir de um dedo demasiado fino para ele. Senti-me atónito perante tal conclusão, tão negativa.
A brisa leve e suave invadiu-me os sentidos. Os meus olhos abriram-se repentinamente. Notei nas folhas de uma árvore que se agitava, o mesmo nervosismo que tinha dentro de mim, quando um frio miudinho me trespassou. Dei um passo e ela afastou-se. Então sorri para a deixar mais à vontade. - Não te preocupes. Sim, acertas-te no nome. Não que seja algo de muito extraordinário. - Estremeci antes de fazer a questão que tinha em mente. - Como te chamas? Ela deu outro passo para trás, afastando-se ainda mais de mim, e começou a andar para trás sem que a que o seu lindo rosto se desviasse do meu. E depois desapareceu ao entrar na porta principal. Parecia um dejá-vu da primeira vez em que nos encontramos, quando ela quase me atropelara e desaparecia rua abaixo. Visto que a minha ajuda tinha sido dispensada e que permanecia sozinho à entrada do liceu, decidi-me por também entrar, tentando a todo o custo visualizá-la novamente por ali perto. Havia algo de fascinante naquela rapariga, algo que não sentira por nenhuma até então, e que me punha sem palavras, com as pernas a tremer. Sobrevivera. Um penoso sentimento de abandono percorria todo o meu corpo, originando os maus pensamentos de ter abandonado os meus país, o que me era ainda tolerável e suportável, mas pouco. Não sentia os braços há algum tempo e comecei a perguntar-me se seria resultado da brisa que me deixará os membros adormecidos, ou, por outro lado, bem mais grave e incompreensível, se aquela rapariga me tinha deixado assim, em tão mau estado. O que quer que fosse aquilo, deixava-me mais ciente de que agora estava na hora de entrada. Ao chegar à sala do primeiro piso vi que os meus colegas estavam muito contentes e a fazerem grande festa. - O que se passa? - Vamos mudar de horário! - Gritou Anna, com um tom totalmente eufórico. - Isso... é bom? - A minha pergunta parecia um clone de ironia e sarcasmo, o que quase ofendeu aquela rapariga que novamente baixou o olhar e se afastou. Senti-me vazio, o dia não podia estar-me a correr pior. - Sr. Foller, Sr. Foller! Alguém me chamava. Não seria com certeza um colega meu, e arrepiei-me só de pensar que tivesse feito algo de errado. Propus duas opções para, agora, o director do liceu se estar a dirigir a mim; a primeira seria, por ter chegado bastante atrasado à aula de
química de manhã, já depois do toque e depois de o porteiro se preparar para fechar a porta, e por não me ter apresentado a ele quando o deveria ter feito. Ou a segunda, menos grave, a bicicleta que estaria estacionada num sítio proibido ou fora do lugar, ou até pior, não poderiam entrar veículos desses no liceu. Endireitei-me para escutar o sermão que supostamente iria dar. - Estou muito contente por o ter por cá! - A sua ovação era tão sincera como as lágrimas de uma criança quando tem fome. Era ainda jovem, com um fato azul-marinho e uma gravata vermelha, com o nó mal feito, o cabelo muito liso e penteado classicamente, com pala e risca ao lado. Não passaria seguramente dos quarenta e cinco. Até o meu padrinho seria mais velho, com cinquenta e tais. Depois segurou-me o ombro com firmeza e aproximou-se de mim, ao que eu correspondi com curiosidade. - Então o seu pai encontra-se bem de saúde? Como está o Sr. Foller, seu pai? Apanhara-me de surpresa, pois não fazia ideia de que este pudesse conhecer o Sr. Evans. - Bem... Penso eu! - Ainda hesitei antes de lhe pôr uma pergunta. - Conhece-o? Ele soltou um riso abafado e dirigiu-se às escadas. - Venha comigo! - Mas... - Murmurei, preocupado com as aulas, ao que ele acenou a cabeça em sinal de reprovação, deixando-me aliviado. Depois segui-o até uma sala cheia de retratos e fotografias antigas, situada no piso inferior, mesmo à beira do bar. - Aquele ali era o seu pai! Não me aproximei para observar pela janela, enquanto o senhor Andrew falava. Tentava interiorizar uma decisão para futuramente poder suportar. Caso visse o meu pai, nas férias de verão, seguramente que ele viria com a mãe, mesmo que se tivessem separado, ou a ida até Katerown para lhe fazer as questões que inundavam o meu espírito de curiosidade. Ele falou muito. Muito mesmo, que quando entrei deveriam ser umas três horas e meia, e quando finalmente me mandou sair, o ponteiro das horas e dos minutos apontavam para as cinco horas. Hora de voltar a casa. Voltei as costas à sala, com o director a agradecer ainda e desloquei-me a grande velocidade para a saída. Estava cheio de vontade por regressar a casa. Estava tão entusiasmado, mas assustado com todas as informações, que desconhecia, do meu pai. Talvez pudesse satisfazer uma ou outra coisa que ainda me perguntava se seria possível. - Olá Daniel. - Exclamou Sally mesmo junto da minha bicicleta.
Sorri de espanto. - Olá... Sally, não é? - E acenei, enquanto ela me fixava o rosto com aqueles olhos azuis profundos e vivos. - Posso fazer-te companhia? Penso que tenha sido um pouco inconveniente a desaparecer como faço sempre. Ela devia estar a tentar arranjar maneira de pedir desculpas, contornando a situação. - De facto. - Mais uma vez peço desculpa. Ao aproximar-se de mim vi os seus cabelos lisos e brilhantes a ondularem, enquanto ela se movia graciosamente. Era formidável falar com ela. E tremi desde a ponta dos pés à cabeça. Ela baixou o olhar, havendo silêncio até sairmos das imediações do liceu, e perguntei-me se lhe deveria falar ou deixar que o silêncio imperasse, o que me estava a incomodar. Optei por falar. - Porquê? Não consegui dizer algo melhor, com o receio que ela não entendesse aquela pergunta tão sem sentido. Sorriu e encolheu os ombros. A seguir sentamo-nos num degrau do passeio ali à beira e Sally abriu o casaco roxo que lhe chegava aos pés. - Então ainda continuas a achar que sou maluca... Era a isso que te referias? - Parece que lês mentes! Lamento - E baixei o olhar em sinal de vergonha. O olhar dela mostrava serenidade e nenhum rasto de ódio, o que me fez sentir muito à vontade. Sabia que já não me sentia assim à muito tempo. Depois soltou uma gargalhada. - Bem... Fico aqui! - Respondeu suavemente ao tirar as chaves de casa. Com aquilo tudo nem me dera conta que tínhamos voltado a andar, com as bicicletas na mão. Olhei para a estrada meia reduzida a reflexos do sol, ainda fraco, que lhe batia. Em seguida reparei que a "minha" casa estava ali mesmo, a duas casas de distância. - É aqui que moras? - Quis saber com uma expressão demasiado ansiosa para não disfarçar o entusiasmo de ter Sally com vizinha. Como se não sentisse que aquilo não passaria de um desejo forte de estar perto dela.
Mas o que estava eu a pensar? Não conhecia aquele Daniel. Eu estava estranho, e isso deixava-me assustado, mais assustado que as perguntas da manhã daquele dia interminável. Depois ela virou-se para mim e olhou com curiosidade nos meus olhos. Senti-me pequeno à sua beira, e não olhei directamente para aquela desconhecida que queria tanto conhecer. Peguei na bicicleta e mexi no plástico que cobria o guiador. - Essa é uma bela pergunta! - Afirmou num tom quase inaudível, que me interroguei se estaria a dirigir-se a mim. O silêncio instalou-se e só foi quebrado com a resposta segura que ela deu. Entretanto, ainda suspirei profundamente para ouvir, tendo o olhar posto nos seus lábios, que agora se moviam. - É a casa da minha amiga Charlotte. Veio para cá passar férias e vou-lhe entregar as chaves que o meu pai lhe mandou entregar por causa de um carro dado como presente. Eles são grandes amigos! - Aborreci-te! - Afirmei ao tapar a cara com as mãos, estando com um ar enervado. Olhei-a muito rapidamente quase à toa, para depois fazer parecer o parvo que era. - Sou mesmo estúpido... Todos pensam que sou uma coisa e depois, faço perguntas festas - Continuei de mãos na cara, não conseguindo enfrentá-la, naquele ar quase angélico dela. - Não considerei um insulto, por isso não me sinto mal pela tua pergunta. Apenas penso que sejas um pouco tímido? Será a palavra certa? Apesar do que eu dissera, ela parecia estar bastante alegre, o que já não me surpreendia. Depois ela mostrou o seu sorriso aberto e perfeito, e abriu o pequeno portão verde, para percorrer ainda um pequeno caminho até à porta branca com desenhos em alto-relevo de anjos. Cerrei os punhos para me despedir, mas o som do "adeus" não saiu, e em vez disso, uma tosse rouca ecoou pela rua, deixando-me embaraçado. Ela despediu-se acenando. - Até amanhã... - Disse, deixando o meu coração a bater como uma metralhadora que não parava de disparar. Quase desmaiei ao sentir tudo a andar à volta. Pus um pé fora do passeio, e preparava-me para cair, quando... algo duro me abraçou e segurou. Sally segurava-me com as duas mãos à volta da cintura, quase colada a mim.
- Tens de ter mais cuidado Daniel... - Advertiu enquanto eu me sentava no passeio, quase não raciocinando com o que sucedera. Sabia perfeitamente que ela não teria tempo de me agarrar de tão longe que estava. - Como é que tu... O meu sussurro pareceu nem se ouvir. Sentia que uma coluna de pedra me amparara, e isso era quase impossível. Espantosamente a voz dela parecia tão brincalhona que se preparava para rir. Tentei encontrar uma solução para tal momento e deparei-me a pensar que tudo não passava de uma mistura de emoções. Uma vontade de sentir as suas mãos tão frágeis. Sabia que algo era impossível, e despedi-me com pressa, dirigindo-me a casa, já em cima da bicicleta. Éramos desconhecidos ainda. Havia tanta coisa a perguntar, e ficava nervoso só de pensar que no dia seguinte nos voltássemos a ver, para lhe questionar tudo que quisesse.
Capitulo Segundo CONCLUSÕES
A manhã seguinte estava sem vida, cinzenta e vazia. Não se ouviam pássaros a cantar e na rua, pouca sente se via, resultado, certamente, do clima algo aguaceiro de vez em quando. Mais uma vez acordara tarde, desta vez apenas por dez minutos, o que pareceu não preocupar ninguém, pois não ouvi alma viva a perguntar por mim. Teriam os meus padrinhos já saído? Não tinha dormido quase nada, ou melhor… nada mesmo. Durante a manhã não prestei grande atenção às apresentações dos professores de Geologia, Aritmética e, a uma disciplina que, penso ter sido Cidadania, mas não prestei atenção, no momento encontrava-me quase a dormir, mais para lá do que para cá. Estava esgotado. Enquanto permanecia meio deitado sobre os meus braços, receei ver de novo Sally, como acontecera no dia anterior. Isso estava decididamente a deixar-me ultrapassar todos os meus limites mortais. Já não era algo que pudesse controlar, e ao mesmo tempo sentia que estava muito próximo do precipício. Seria como um pedaço de metal a ser atraído por um íman com duas vezes mais força que eu. O pior de estar a parecer um aluno de infantário, era saber que ela estava ali algures; ainda não conseguira pensar numa maneira de me escapar àquele encontro inevitável, quando uma voz atrás de mim voltou a chamar-me, tal como na manhã anterior. - Bella? – A pergunta parecia mais como se estivesse a ver um fantasma, e logo virei o olhar para o seu lado, contactando que Edward não tinha vindo às aulas. - O Edward? – Questionei com assombro. - Ele já não está cá! Mudou de cidade e eu irei embora hoje. Queria só desejar-te boa sorte e dizer que… deverias tentar manter-te acordado, só por uns minutos. Mas tu é que sabes. No entanto, depois de ela falar senti um arrepio a passar-me a nuca num raio de frio que quase me causou tonturas. Estaria a pensar qual o significado de tudo aquilo. Teria Bella ficado ali apenas para me dizer aquilo? Teria Edward acabado com ela?
Certamente. A não ser que não tivessem nada um com o outro, o que era 99,9% improvável. Ri-me baixinho para mim mesmo, só de pensar aquilo, pois fazia-me arrepiar. Tinha o desejo de lho perguntar tais coisas, mas quando a fitei, parecia estar demasiado triste para que lhe dirigisse a palavra, e cortou a minha ânsia. Não via a rapidez do tempo passar, e eu ficava cada vez mais tenso. Fiquei admirado quando a campainha soou, por Edward não me ter olhado com aqueles olhos de… de, louco. Repeti que teria de ser forte, mas de nada serviu, ao quase esbarrar contar alguém de quem conhecia o rosto perfeito, que passou por mim a correr. - Desculpa! – Afirmei com atrapalhação, mas aquela cara estava tão descontraída que nem fez sequer um gesto mais severo, por um segundo que fosse. Depois os olhos azuis penetraram e apreciaram-me, parecendo estarem a fazer uma avaliação completa. - Muito elegante, sim senhor! - É! Quando o dia começa a ficar melhor com sorrisos reconfortantes. - Mantive os olhos no chão - Como o teu! Murmurei miseravelmente a meia última frase, ao tentar mostrar coragem. Não questionou nada daquilo, pelo que eu pensava que ela dissesse algo, ou que fosse ficar ofendida por ainda não nos conhecermos bem. Mas eu adorava estar com ela, era uma pura e bastante agradável verdade. Caminhamos a passos largos pelos corredores abertos e vazios, pelo menos por agora. Ainda tinha sono, mas nada que se comparasse com momentos anteriores, e tinha a absoluta certeza de que, o tempo passava mais depressa do que eu desejaria. Dei um jeito à ponta dos meus rebeldes fios de cabelo e suspirei antes que pudesse dizer alguma coisa, antes de passarmos pela sala do auditório. A forma como o receio de estar ali, ao seu lado, a sentir o seu cheiro, ao ver a sua postura perfeita e delicada, tinha desaparecido. Sentia-me quase renascido quando ela me olhava, o meu coração saltava do peito e a minha rigidez corporal permanecia constante em todo o corpo. A barriga ficava contraída e os braços tremiam a um nível quase idêntico a uma hipotermia. Não me importava de ficar ali congelado, dentro de um cubo, junto dela. O lugar ideal para a contemplar e ter a meu lado para todo o sempre. Abanei-me para que, assemelhando-se a um espírito impuro, todo aquele medo se evapora-se do meio interior, para eu poder respirar finalmente e me sentisse em liberdade. Liberdade era o que mais sentia naquele preciso momento, para sonhar, ser
real, comigo e com ela. Saltei do banco de plástico onde me sentara, bem preso à parede, quando uma janela mal fechada irrompeu no silêncio quase divinal, como um trovão em noite de tempestade, e eu amargurei-me.
Ainda não esquecera o agora lembrado "feliz episódio" em que Sally me salvava da queda, mas por outro lado, apesar do salvamento, eu ainda não tinha tido uma explicação plausível para o incidente feliz. Mergulhara mais uma vez num mar de perguntas, naquele assunto, e mesmo assim nunca conseguia encontrar uma pequena amostra de ficar sossegado, em pensar na impossibilidade daquela linda rapariga, quase esculturalmente perfeita, me ter agarrado de tão longe como eu a imaginara. Estava tenso e Sally notou isso nos meus olhos, bastante irritados. Ela conseguia vê-lo pela minha expressão carregada, como que a perguntar-me " o que se passa?" - Hum - dei voltas à cabeça à procura de uma frase que não fosse minimamente parecida com a que lhe fizera no dia anterior. Aquela palavra tinha sido como uma anedota. O canto da boca de Sally contraiu-se de repente. - Pergunta lá de uma vez o que te preocupa. Fala apenas da dúvida que tens em mente. - Ordenou. - O que disseste? Ela soltou um suspiro longo. - Estás bem? - Acho que não. Sally aguardou por qualquer palavra, que eu não proferi. Depois encostou a cabeça à parede e virou os olhos na direcção do relógio que estava por cima da porta que dava para o exterior do piso. Mostrou um ar severo. - O que tens afinal? - É que... sabes, por vezes penso que tu és algo diferente. Gostava que me explicasses como chegaste a mim ontem, tão rápido! - Ah! - A sua interjeição foi mais que audível, mas não me incomodou ao ponto de me envergonhar. - Não adiantaria de nada dizer que estavas meio atordoado, pois não? Revirei os olhos e ela não mais falou, olhando para a minha cara de um em um minuto, com intervalos para fitar os triângulos negros do chão granítico, de padrão
branco acinzentado. Sabia isso pelo aspecto arenoso dos pequenos pontos que surgiam em sequência, apenas quebrados pelos buracos em alguns sítios, poucos. - Olá! - A voz de Anna desanuviou o ar carregado que se mostrava entre mim e a rapariga especial sentada ao meu lado. Sally pegou na sua mochila e dirigiu-se à saída, estando notoriamente ofendida e não se despediu de mim. Depois ambas se olharam e o seu ar de espanto confessou timidez e em simultâneo surpresa por verem que talvez nunca se tinham cruzado sequer. Pelo menos perto de mim. - Importas-te que fique aqui contigo algum tempo? - Perguntou a voz tímida e engraçada daquela rapariga. - Pode ser. - Afirmei quase torcendo o nariz. - Hum, desculpa ter aparecido assim. Nós não falamos muito ainda. Mas peço-te imensa desculpa de novo. - Repetiu. Certamente que não me era estranho se de algum modo me idolatrasse. Nuns escassos segundos vi-a a levantar-se e a avançar também ela para a saída dali, mantendo-se imóvel a olhar para mim. Era óbvio que não quereria ficar ali à sua espera, e eu diz a vontade de acompanhá-la sabia-se lá para onde. - Suponho que queiras que não fale muito não é verdade? - Não... Propriamente Anna. Mas apanhaste-me de surpresa, só isso. A Sally não gostou muito. - Expliquei de maneira menos arrogante quando o meu olhar desviou o seu. Na tarde anterior tinha tido a informação de que o nosso horário mudara, mas estava tão à toa com isso, dado que quando soubera de tal notícia, tinha sido quase arrastado para o gabinete «secreto» do director. Não deveria passar do meio-dia, e confirmei-o quase certo não fosse o ponteiro dos minutos do grande relógio na parede, a indicar mais quatro minutos depois da hora. - Vais comer na cantina? - Questionou-me de maneira ofegante Anna, sem que eu tivesse resposta imediata. Raciocinei e disse-lhe que não daria. - Vais sempre a casa? - Quase... Mas hoje tenho mesmo de ir. Esqueci-me de um caderno. - Menti com grande à vontade. Sentia-me quase indisposto por aquilo, mas se ela soubesse o que iria pesquisar coisas sobre segredos paternais, não sabia o que seria melhor, a verdade ou esta mentira piedosa. Ela fez-me um esgar. - Estás mal disposto, não estás?
- Não tenho vontade de estar a falar de cinco em cinco minutos, só isso. Olhamo-nos com extrema dureza. O meu olhar deveria ser duas vezes mais rude do que dela. Depois ela olhou-me por cima do ombro, e em seguida tossiu. - Não tens fome? Decididamente eu não queria falar. Estava à beira de uma ataque de nervos. Olhei-a de forma vazia, e a minha expressão deveria ter-lhe percepcionado o meu estado de espírito crescente em sofrimento. Não sabia o significado daquilo. Ela Estava nitidamente desconfiada, mas limitouse a pegar nas coisas e acenou-me, sem nunca falarmos, sem nem sequer perguntas porque eu estaria assim. Quando a fitei, ela mostrava interesse ao quase revistar-me com os olhos, que me deixava em desconforto. Fixei o meu pensamento em coisas superficiais como o sol ou a natureza. Remexi-me na cadeira vagarosamente, e levantei-me rapidamente, tomando a noção de já não estar a ver Sally. Mas tive sorte. Sally ainda estava no piso inferior, junto à porta principal e a bater o pé contra a parede. Apressei-me a ir ao seu encontro, decidido a não estragar o nosso segundo encontro do dia. Porém ela fez-me um gesto de pura insatisfação com o olhar carregado. Parecia relembrada do aparecimento repentino de Anna. - Vou para casa. - Concluiu com o tom de voz altamente chateado. Estava a agarrar firmemente nos cadernos que trazia, parecendo as veias das suas delicadas mãos, os membros de um morto-vivo. Mantive-me atento ao caminho e a Sally enquanto caminhamos em silêncio até perto de uma rua que não me recordara de a ver até então. - Isto é desnecessário - Disse eu desesperadamente. Não retorquiu. Estaria a pensar o quão estúpido eu fora até ali? Quais seriam as hipóteses de encontrar alguém tão distraído como eu, que até deixa uma pessoa pendurada apenas pela chegada de outra. Vi-a a mexer os dedos em círculos, mas de repente, a minha curiosidade desfez-se. - Conheces aquela rapariga? - Não muito bem - Reconheci com absoluta certeza - Ela aparece do nada - Pensei eu, paralelamente às estranhas entradas em cena dela também. Comecei a aperceber-me de que estaríamos longe de podermos entender-nos naquela manhã fria e cautelosa. Apenas tinha a esperança que a tarde fosse melhor, e que não passasse tão rápido como a do dia anterior. Depois acenei-lhe, e ela seguiu pela rua,
vazia e larga, com caixotes do lixo de cada lado da mesma. Ia cabisbaixa e com uma das mãos num bolso. Eu teria de mudar isso durante a tarde, que só duraria uma hora e meia, com a aula de Educação Física, a minha favorita, em que, a minha turma iria jogar andebol contra a turma de Sally. Dissera-mo ainda na escola, antes de aparecer Anna, mas já quase nem me lembrara de tal boa informação, pois ela era da turma do professor Norrington, o da disciplina de manutenção electrónica e multimédia. Quando caminhei pensativamente até chegar à porta que se erguia perante a casa dos meus padrinhos, lembrei-me do número que Sally me dera na tarde anterior, para o caso de lhe querer ligar. - Decididamente que não - Adverti-me a mim mesmo, tendo pegado no telemóvel e preparando-me para o guardar. Mas surpreendentemente ele tocou. No visor mostrava o nome "desconhecido" e eu desliguei a chamada, por não saber quem estaria a ligar, e por ninguém ter o meu número, ainda recente. Seria engano de certeza. O resto de piza do dia anterior servia perfeitamente para o almoço que teria de ser devorado, pois tinha ainda uma pesquisa para fazer, acerca de um assunto que me estava a deixar em paranóia. Ouvira então uma mensagem a chegar à caixa de entrada do meu telemóvel, poupado na mesa, enquanto eu punha a piza num prato. Corri para ver quem seria, e desta vez a mensagem tinha número e conteúdo. «Olá.
Queria apenas convidar-te para uma ida no final das aulas até ao parque central. Podemos lanchar por lá, mas precisamos mesmo de falar. Um beijo da Sally.» Estava aliviado. Sentia-me ainda constrangido com o que, durante a manhã acontecera, e fiquei a olhar para aquela mensagem tão simples e ao mesmo tempo cheia de sentimento. Mostrava estar à vontade com aquelas palavras. Depois tirei a piza do forno e comi rapidamente, bebendo água, pois estava um ar seco. Um sumo só me traria mais sede, e aquilo era o ideal para aquela altura. Quando acabei de comer, pus a loiça dentro da copa. - Mas porque é que as coisas têm de ser assim tão difícil? - Perguntei indignado a mim mesmo. Ri-me e em seguida soltei um suspiro. Agora chovia muito ao de leve e manteve-se assim enquanto eu me dirigi ao quarto, para depois me deitar e olhar para o tecto, pensando no que tinha feito até ali, durante a manhã.
- Tolerância... Como hei-de tê-la se quando estou num momento bom, tudo se vira do avesso? Em tudo que me rodeava, o caos estava presente. Ouvia a voz de Anna a martelar na minha cabeça, e o rosto nítido de Sally que me fazia doer a cabeça para parecer estar a decidir qualquer coisa; era isso, eu teria de escolher. Apenas o meu interior subitamente nervoso e angustiado não me deixavam ficar mais descansado. Não queria magoar nenhuma das duas, pois ambas já me tinham ajudado muito a integrar-me na cidade e no liceu. Estava-lhes grato e sabia que se continuasse assim, perderia a amizade das duas. Sally como minha salvadora e Anna como minha admiradora, num plano de fundo em que eu apenas queria poder ser eu mesmo, sem tirar nem pôr. Virei o corpo e enrosqueime sobre mim mesmo, para descansar um pouco e pôr as ideias em ordem.
Talvez quando acordasse, fosse o sol que tanto queria que aparecesse, a dar-me a alegria e ajuda para o tempo escasso que dispunha de conseguir mudar, de fazer aquele dia parecer tão longo, porque era assim que desejava ver o sol a pôr-se, tranquilo e aconchegante para adormecer um pouco sobre o meu desassossego.
Capítulo Terceiro
MEMÓRIAS
Acordei desatinado e a dar comigo num estado intranquilo, tenso e a suar. Não consegui voltar a adormecer, ao que me pareceu terem sido cinco ou seis horas de sono. Depois, olhei rapidamente para o despertador e vi que ainda faltavam quase trinta e cinco minutos para o toque para a entrada da aula tão espectacular. Sally de um lado, golos do outro. Que mais poderia desejar? Era simplesmente aconchegante chegar àquela altura do dia, e o melhor, é que não me sentia tão negativo como o fizera de manhã, apesar do meu atordoamento ainda durar. O sol apareceu definitivamente na janela daquele quarto, único e singular, que eu tanto apreciava. A janela ferrugenta permanecia aberta, tal como a deixara quando me levantei, irradiando claridade solarenga para depois iluminar o compartimento que parecia pintado de azul-bebé, em que, os lençóis brilhavam e o castanho dos móveis estava com um tom castanho vivo, quase a fugir para o amarelado. Puxei pela memória para me lembrar tal situação, já que estava com uma nítida sensação de ter visto tal coisa semelhante. Seria pois, Katerown sem dúvida, a linda cidade do sol, porque era um sitio inigualável de claridade e alegria, que em deixava sempre com um sorriso nos lábios, quase como um pateta alegre. As nuvens porém, ainda permaneciam no céu azul, e tal se previam para os dias futuros, o que para mim era ideal pois a minha boa disposição, ou parte dela, voltaria. Os meus receios não quiseram voltar e quando cheguei à escola, Anna mostrava ter recuperado o bom humor e alguma auto-estima, num grupo de três raparigas que falavam com ela alegremente. - Isto é óptimo – Disse com a minha voz bastante entusiasmada. – Ao menos diverte-se e não repara tanto em mim. Em seguida semicerrei os olhos até os fechar, devagar, esperando que os raios de sol, quentes, se apressassem a chegar até à minha face, mas isso era ainda um pouco difícil com o vento forte a deixar-me desconfortável ao ar livre. Os meus braços começaram a arrepiar-se e a ficarem gelados, pelo que me tive de mexer para não ficar esfriado. Para isso, fiz um esforço para me voltar a recompor, até porque o que estaria a calhar bem, acabou quando a campainha tocou e eu me virei lateralmente para o portão a
ajeitar a mochila puma onde trazia a roupa para a aula, esperando que se tornasse mais confortável, pois era demasiado grande para os meus ombros finos. A aula de Educação Física finalmente chegara. Esperava que fosse tão emocionante como em Katerown, com um ginásio enorme, e uma professora gira e competente. A minha turma fez equipas e para meu espanto, quando a turma de Sally começou a treinar, ela não estava lá. Estaria certamente atrasada, o que me foi estranhamente incómodo, porque sabia que a sua ausência não era normal. Ela nunca se atrasava. - Vamos começar? - Questionou-me um colega alto e com um porte atlético demasiado grande para poder mostrar-me zangado. Ainda me arriscaria a arranjar problemas, e logo lhe acenei, olhando uma vez mais para o campo contrário à procura dela. Mas Sally não apareceu E senti-me triste. Teria ela desistido do jogo? Ou pior, do encontro? Que pensamentos tão sombrios e arrepiantes, podia senti-los. Tentei concentrar-me nos passes que teria de estar disposto a fazer, mas tudo saiu ao lado do que eu esperava e gostava. Quase nunca acertava na baliza, e quando o fazia, ou a bola ia ao poste ou à barra. Apenas me senti melhor quando um ressalto bateu em mim e muito devagar, com bastante sorte, entrou finalmente e ficou presa às malhas da baliza. Eu suspirei quando me vieram abraçar. - Olá Daniel! - Chamaram-me. - Tudo bem? - Estás bem? - Quis saber o mesmo rapaz que me alertara enquanto eu desapertava os cordões bastante grossos e apertados das sapatilhas, a caminho do balneário minúsculo. Em relação à ideia que tinha sobre Katerown, aquele cubículo era mesmo pequeno. - Hum... Estava a perguntar-me se a tua chegada cá tem sido tão calorosa como imaginava. A voz dele mostrava seriedade. - Como sabes que viria? Já não é a primeira vez que me felicitam. - Bem, és mesmo bem-vindo. - Exclamou ele, com pouco à vontade. Recompôs-se com facilidade e esbocei-lhe um sorriso fechado.
- Porque dizes isso? - Questionei com estranheza nas palavras. Estava perto de saber algo que tentava esconder há algum tempo, o porquê de me fazerem tais festas quando me conheciam. - O teu pai era um grande jogador. Todos tinham inveja dele, e quando soubemos que virias para cá, pensamos que um novo número dez fosse substitui-lo. Mas estou a ver que não estás em muito boa forma para seres igual a ele. Afastou-se a coçar a cabeça e já longe perguntei-lhe o nome, ao que ele respondeu em bom tom o nome John Mella. E riu-se num tom abafado. Quando o deixei de ver, permaneci sentado a recuperar memórias perdidas de um espaço amplo e com duas balizas no lugar das tabelas de basquetebol dos lados laterais. As que ali se apresentavam eram quase idênticas às do ginásio de Katerown, onde apenas a pintura em preto e branco se distanciava do que tinha em mente, de cor azul vivo. Sentei-me e permaneci ali, ouvindo as sapatilhas dos restantes a ecoarem sobre as paredes brancas e despidas. Quando a professora Mastés passou por mim, segurei a porta com uma mão, para que não batesse, e ao percepcionar que o balneário se esvaziara, corri para lá, vestindo-me rápido e medrosamente de me ter perdido. Tudo parecia igual e saí em direcção às escadas, algo perdidas do lado direito, mesmo ao lado da outra porta igualmente parecida à do balneário. Mostrava-me aborrecido, e como era óbvio, por causa do resultado e da ausência prolongada de Sally. Ainda por cima, o telemóvel ficara na mesa da sala, quando me preparava para sair de casa rumo ali. Quando cheguei finalmente à entrada da casa, ninguém estava lá, naturalmente. Pousei a mochila de desporto pesadamente no sofá e sentei-me nele, com uma postura de puro cansaço. A minha barriga fez um barulho esquisito quando pensei que talvez devesse ter respondido à mensagem que Sally tinha mandado, e que por isso, ela pudesse ter desistido de estar comigo. Deveria ter percebido que poderia não estar interessado em tal coisa, o que era completamente mentira... assim, não conseguiríamos ser amigos, e no ver dela, eu não passaria de um puto mimado e um bocado egoísta. Ela era genial. Era meiga, gira, com carácter e bastante atenciosa. A sua pele reflectia o sol e ficava clara parecendo vidro. No meu interior saberia que valeria bem mais que vidro, seria mais diamante em bruto.
Bem... Não haveria de cair o mundo por aquilo, mas sabia que algo do género já acontecera, com um amigo meu, quando, no ano interior em Katerown ficáramos de vir à praia, e no fim de contas, ele nem apareceu devido a uma laringite, algo comum por aquela zona. Estaria a lembrar-me mais de Katerown, do que a princípio o desejaria, e isso dava-me angústia. Lancei um olhar rápido para todos os recantos à procura de alguém que me tirasse dali, ou saberia que pelo menos quinze minutos perderia ali, até sair, se é que isso fosse possível. Tinha como último recurso o meu grito de pânico que incomodaria até os vizinhos ali à volta do liceu. Não havia problema, pelo menos por agora. Alguém soltou um ar de riso atrás de mim e olhei para enfrentar... A empregada. - Estás perdido? Encolhi-me contra a parede junto à porta e tremi de receio. Porém, ela sorria. - Já estava de saída. - Informei com a mão no manípulo da porta. Depois abri-a rapidamente e a última coisa que ouvi foi o seu riso quase maquiavélico. Aquilo era no mínimo estranho. Percorri os corredores que me lembrava, e consegui chegar perto de algumas pessoas, para meu alívio. Estas eram apenas raparigas, mas mesmo assim pareciam ser a minha fonte de confiança por ali. Onde se teria metido Anna? Ou o tal rapaz que falara comigo no jogo em Educação Física? Caminhei mais calmamente até ao bar, para poder lanchar. Tudo aquilo deixarame esfomeado, mas ir ali não seria definitivamente o local para ir uma segunda vez. Não havia ninguém e pedi uma tosta mista aquecida, para em seguida a meter no casaco, delicadamente embrulhada com guardanapos e num saco de papel pequeno. Seria o que iria abstrair até casa, pensei eu, e logo me pus a caminho, bastante desanimado. Durante quase todo o caminho, pelo meio de nuvens algo escurecidas, permaneci calado e calmo, apesar de o meu interior estar a disparar de tristeza e aflição; não saber como e onde Sally estaria constituía um dilema mil vezes superior a que se eu fosse atropelado por um camião numa noite de tempestade, ficando completamente despedaçado. Envolvido na confusão mais abrupta e incontestável, vivi de novo momentos igualmente traumatizantes, como guardo da minha mãe que caíra de um piso, percorrendo quase trinta degraus às voltas, e depois de ter ficado em coma, só recuperou
a memória numa nova queda, em casa, onde ficou com um enorme golpe na cabeça, a sangrar por tudo que era lado. Tentei explicar tais situações de medo e susto, e finalmente percebi que estava envolto numa onda de azar. Só podia ser isso. Primeiro a minha nova amiga não tinha aparecido, e eu, lembrava-me de uma situação idêntica em Katerown; depois o quase assassínio pela empregada meia louca que me queria fechar dentro do átrio dos balneários, bem, desta vez foi a primeira vez, e agora o eu lembrar-me da minha mãe e do terrível acidente que tinha tido. Seria uma ideia assim que me levaria a ter um acidente tão drástico?
Tinha uma sucessão de pensamentos negativos na cabeça, como fantasmas a arrombarem o meu cérebro, que de tão fraco que era, não aguentaria outra investida, sem que eu fizesse alguma asneira. Quando eu me comecei, não sei porquê, a chegar para perto de uma faca que estava no chão da sala, assustei-me com um bater agressivo na porta, uma e outra vez. Quem quer que fosse, estava com pressa, o que me deixou muito maldisposto, pois não queria estar um pouco no meu descanso de guerreiro... merecido. Mordi o lábio e uni as mãos, fechando-as uma contra a outra bastante firmemente, enquanto os dedos se enrijeceram para que não tivesse nenhuma atitude errada. No entanto, nem uma palavra me ocorria, demasiado dura, até porque nem era assim violento, quando tive a sensação de algo a arder dentro de mim, consumindo-me o peito, que fisicamente me estava a doer profundamente. Esse sentimento doentio só passou quando, por infortúnio me decidi a abrir a porta, estando uma estátua da cor do mármore mesmo ali, colocada em frente à minha porta. Não podia nega-lo, assustava-me ver aquilo, e jogo recuei para fechar a porta, mas apenas uma parte do pé se moveu, e o meu ser parecia petrificado ao ver ali aquela figura, com uns olhos ardentes e carregados de raiva, quase prontos a matar. Tinha uns cabelos loiros e bastante compridos, com a face bastante graciosa, quase igual a alguém que eu conheceria em qualquer lugar. Sally, sem dúvida, mas aquela imagem era nitidamente masculina, que tossiu antes que eu fizesse alguma coisa, depois Sally surgiu mesmo ao lado dele, o que me aliviou. - Olá! - Disse com alguma atrapalhação. - Este é o meu pai, Lethor, Marcus Lethor. O seu sorriso, bastante denunciado por um nervosismo plausível, fazia daquele rosto o melhor do meu dia. Ela estava mesmo ali, e era tudo o que eu mais desejava.
Mesmo assim permaneci calado, vendo Marcus, que aparentava uma idade bastante jovem, o que me deixou admirado. - Quantos anos tem o teu pai? - Sussurrei eu, na esperança de que ele não ouvisse a questão. Sally sorriu e olhou para o pai. Depois respondeu suavemente, em tom baixo. - Quarenta e dois. Mas ninguém lhe dá mais de vinte e três. Por vezes até pareço ser mais velha do que ele pretende... Já nos confundiram como namorados. Mal disse tal coisa soltou uma gargalhada tímida ao meu ouvido e eu ri-me com ela, não parecendo demasiado entusiasmado. Normalmente o meu riso seria extravagante e bastante audível, pelo que tive de fazer grande esforço para me conter ali. - Mas... Não entendo. Eu nunca o vi na escola. - Pois não. Ele não gosta muito de lugares públicos e a abarrotar de gente. É mais do tipo... caseiro, estás a ver? Expirei de alívio por aquele "senhor" não me querer fazer mal. - Tudo bem. Porque desapareceste e não foste à aula? - E que tal acabares com as perguntas? Que tal irmos sair? Recebeste a minha sms, espero. - Recebi, mas, ele vem connosco? Com um olhar repentino, o Sr. Lethor retirou-se e deixou-nos, sem que o seu olhar me deixasse mais seguro de mim mesmo. Ele parecia quase não humano, com toda a altivez e a postura rígida que tomara. Fez-me recordar as estátuas das exposições que teria visto dois anos, os quais detestei, mas que, ao contrário de todas elas, ele até parecia uma estátua simpática. Talvez me habituasse à sua presença, caso fizesse menção de querer assustar-me de novo, claro, sempre com Sally do seu lado para me salvar do impacto tão devastador. O seu sorriso e a sua expressão salvariam qualquer ser vivo, apenas era preciso acreditar que, com ela, haveria sempre sol, e um encontro esperava-nos. - Vamos? – Empolgou-se ela muito rapidamente, estendendo-me o braço para que saíssemos dali rapidamente. - Sim, vamos já. No mesmo instante, a minha barriga parecia gelatina, e um aroma diferente vagueava no ar, muito húmido que o céu trazia. De facto, o tempo estava instável, mas para minha sorte, ainda nem uma gota de chuva tinha caído até então. Não que não fosse propriamente necessário, mas, ali, naquela altura, a chuva viria estragar sentimentos e o espírito tão próximo que nos unia. Nada parecia deter-nos, e mais admirado fiquei ao ver
que um arco-íris estava a formar-se no céu. Via cores como o azul, a minha cor favorita, e quase que adivinhava a cor de Sally, por isso mandei-me a adivinhar. - Verde… Ela estava tão absorta ao que a rodeava que até me senti lisonjeado quando lhe falei, e, ao virar-me para ela, observei que também ela me observava. Era quase como um trocadilho montado num puzzle muito mal construído, pois se eu a estava a observar, teria de a observar para que soubesse que me observava. Basicamente, sabia que ambos fazíamos um gesto recíproco, e eu não me importava por ela estar a pensar em qualquer outra coisa e que não me ouvisse. Ali sabia que todos os meus sonhos se tinham tornado realidade. Sally fazia com que eu fosse diferente, não para mal, mas para que a minha diferença se complementasse com ela. A sua presença era indispensável, tanto a nível social como sentimental. Eu já não era mais o Daniel certinho que sabia que tinha sido, e apesar de eu nunca o ter mencionado, não me importava de ser mil e uma vezes rebelde com o único pedido antes de uma sentença de morte igualmente doloroso, de ter de ficar longe dela, daqueles cabelos ao ar, da voz melodiosa que me fazia parecer flutuar por toda a zona de Sutterfrin, e metade eu desconhecia. - Então aquele Marcus era o teu pai? Parece-me um pouco novo demais… Ela ficou atenta a tais palavras e olhou-se de lado, fingindo não perceber a minha questão. - Como assim? Porque achas isso? - Eu…, penso que… - Hesitei durante um longo tempo. A minha voz estava seca, assim como a garganta. Talvez aquilo se devesse ao ar seco e gélido que passava por nós enquanto caminhávamos pela rua. - Aonde queres ir? Conheço um restaurante muito bom para podermos ir jantar. - Ah… jantar? Eu estava mais virado para um lanche. É que não posso ir muito tarde para casa. - Não costumas ter gente em casa, porque estás assim tão nervoso? Agora é que estava a tornar-se tudo muito estranho. Como saberia Sally que os meus padrinhos viriam tarde, ao ponto de não ter ninguém em casa até de madrugada? Optei por não opinar desta vez sobre o assunto, até porque quando quisesse explicações, estas seriam acerca de tudo, sobre o salvamento, sobre isto, e sobre como ela saberia interpretar o que eu falava, com os pensamentos ligados às mesmas. Iria esperar por um momento oportuno, mas ali não, numa ocasião tão especial, não iria deitar tudo a perder.
Capítulo Quarto
FAMÍLIA
A velocidade dos passos a que Sally se propunha dar era tão grande que se continuasse assim, chegaríamos ao restaurante num piscar de olhos. O tempo, além de passar muito depressa, parecia estar contra nós, pois já o sol se começara a esconder por detrás de algumas nuvens de cor amarelada. Ouvíamos os pássaros cantar, agora que nos encontrávamos bem mais perto da “civilização”, pois a casa dos meus padrinhos estava praticamente num beco, a que apenas o autocarro viria, para levar alguns miúdos, contentes e alegres a cantar na sua ida a uma escola ao pé da nossa. O famoso jantar com aquela pessoa parecia eminente e eu esperava por isso mesmo, até Sally parar repentinamente, agarrou o meu rosto com as duas mãos extremamente frias e, vindo do nada, um beijo inesperado. Era doce e profundo, tal como os seus olhos, e depois afastou-se e começou a andar de novo, mexendo ainda mais freneticamente do que o habitual os cabelos e os dedos. Dava pena ver tal coisa, estando eu com medo de que ela se pudesse mágoas com tanta rapidez. Aliás, ela era rápida em tudo, menos quando estava atrapalhada. Estávamos em Sutterfrin, uma cidade não muito grande, mas que dispunha de centros comerciais a abarrotar pelas costuras, uma piscina pública e alguns prédios de empresários, que se diziam ser do pior que existia. Não me admirava que assim fosse, sabia perfeitamente que Katerown era sempre melhor em tudo, mas isso mudara com o beijo de Sally. Talvez... Não, quase de certeza que se a localidade onde estava a morar, valesse quatro valores em dez, a cidade do sol estava dez pontos acima dos próprios dez, o que para mim ainda parecia ser um pouco baixo para Sutterfrin. Quando me deparei com uma porta entrada, tendo por cima desta um letreiro vermelho com letras douradas, quase jurei que nos tínhamos chegado ao Mc'donalds, mas, ao espreitar o interior vi que o aspecto deste não se assemelhava a nada do que pensava até então. Haviam empregados a servir e pratos refinados a serem servidos. Quando custaria tal coisa? Uns trinta euros, no mínimo! - Não posso pagar-te estas coisas Sally, não sou muito, como hei-de dizer...Rico?!
O riso aberto dela fez-me sentir melhor e menos preocupado, fazendo-me descruzar os dedos, afastei os braços para os pôr ao lado do corpo ficando a parecer uma marioneta, e surpreendentemente ganhei vida com o segundo beijo de Sally, este mais demorado e com mais fulgor. Quase fiquei sem ar, mas ela tornou os seus olhos tão encantadores que era difícil resistir, e desta vez também eu a beijei, segurando-lhe no rosto com timidez para depois sentir uma vez mais os seus lábios perfeitos. - É aqui que a minha mãe trabalha. Não vamos pagar nada de nada, descansa. Ao ouvir tal coisa, a princípio nem sorri, ao tentar-me aperceber de que me esquecera de algo em casa, mas ali parecia ter tudo. - Não há problema – Sorriu uma vez mais. Quando a olhei com mais atenção, reflectiu em mim uma rapariga extremamente normal, vestindo uma camisola vermelha e calças de ganga normalíssimas, ou aliás, mais normal só na praia. Parecia absorta pelo estado do tempo, que lhe ondulava os cabelos soltos ao vento, a mostrarem algumas madeixas pretas, que eram poucas.
A princípio parecia seria e preocupada com alguma coisa que eu não conseguia decifrar, mas depois um ligeiro sorriso surgiu e mostrou o semblante bastante solto. Porém, a sua expressão mudou e ela estava a escurecer, ao mesmo tempo que fechou o sorriso. - O que se passa? Olhei-a de tal modo que quase caí no nervosismo que se podia ver nela, com os ombros bastante rígidos quando a toquei e ela se afastou um pouco. - Para onde vamos? Não conseguia fazer perguntas com nexo quando estava diante de um porto tão deslumbrante, com tanta ternura e que me fazia sentir mais presente ali do que nunca. depressa soube que estávamos já longe de casa, e que, tínhamos andado quase a tarde inteira para estar ali, com ela, num lugar que desconhecia, mas que ao mesmo tempo não me fazia tremer de medo, quase como se estivesse a chegar a Katerown de novo. Era óbvio que conseguiria deter no rosto dela a imagem de alguém que queria estar ali, comigo, mas de novo o receio veio, e como eu estava disposto a dizer-lhe aquilo mesmo, o que sentia ao estar perto daquele ser humano quase sobrenatural de beleza e harmonia.
- Em que pensas? - Perguntei com algum interesse, estando bastante chegado a ela – Não podia deixar de admirá-la. - Apenas a tomar uma decisão do que me apetece comer. - Não costumas vir cá? Afinal é o sítio onde a tua mãe trabalha. Os nossos olhos cruzaram-se quase simultaneamente, depois olhámos para o céu já escuro e desprovido de quaisquer nuvens ou estrelas. Também não havia lua, pelo menos assim não se via. Aquela questão suscitou nela um novo folgo e ela entrou, abrindo a porta discretamente, comigo a segui-la, agarrando eu a sua não bastante dura, talvez por causa da timidez. - A tua mãe já sabe que eu estou... contigo? - Se estás a deduzir alguma coisa, não continues com essa ideia porque estás a enganar-te. - Ajudas-te muito na decisão de eu ficar calado a noite toda. E agora o que vou dizer à tua mãe? Mostrava quase o corpo todo a dizer para sair dali, enquanto tremia a pensar no que a mãe de Sally me faria. Se o pai me tinha assustado com o olhar de caçador à procura de presa, o que seria de mim quando o membro mais protector da família me visse? Não me agradava sequer reflectir no assunto, e mantive a boca fechada como um velcro.
- Bem, não me vais decerto fazer mal, por isso descansa que ninguém te vai matar... Apenas se fores parecido com algo comestível aqui para o cardápio – A sua ironia chegava-me aos ouvidos em forma de um aviso do género " ou te comportas, ou viras frango no espeto." Acenei-lhe com a cabeça e engoli em seco duas vezes, quase não querendo saber se era verdade estar ali. Decerto seria um pouco de um filme de terror, e permaneci sentado na mesa que ela escolhera, num canto do restaurante, enquanto estava calado a sentir as ondas negativas a saírem de mim, sem que, lhe dissesse alguma coisa. Ouvi a porta da cozinha a abrir-se, e uma senhora com um ar bastante alegre, dirigiu-se à nossa mesa. Era baixa e devia aparentar os cinquenta e tais, nada que se comparasse ao pai de Sally. - Olá eu sou o Daniel! - Disse com o ar quase a falhar, mal me levantei da cadeira num salto. Não queria fazer más figuras ali à beira de Sally.
- Esta não é a minha mãe... – Sussurrou aborrecida aquela rapariga encantadora. - A dona Carmen já vem aí menina Sally. Então eu virei-me novamente para a porta, e um sorriso resplandecente de alegria e muita boa disposição disparou na nossa direcção, quase silenciando os meus medos. Usava uma camisa branca com mangas longas, e talvez a pele um pouco clara demais fosse a causa para ver aquela figura quase angélica surgir como um clarão. Ela era perfeita, e apercebi-me de que parecia quase da idade de Sally, ao que, ainda não tinha sabido a idade por falta de ocasião. Não parecia possível alguém ser mãe da rapariga mais gira dali, e ainda haviam bastantes por ali. O olhar fitou-nos e desconcentrou-me do lugar onde me encontrava. - Sejas bem-vindo Daniel - Congratulou suavemente, com a voz doce e igualmente aconchegante da sua filha. Ergui-me para lhe beijar a mão demasiado delicada e tremendamente frágil, pronto a parecer cuidadoso e bem-educado. Sabia que ela poderia chamar-me um puto pois o único receio que agora tinha era de perder a amizade de Sally, que me transformava numa pessoa diferente. Não queria que tal acabasse. - Mãe, este é o Daniel como já sabes... Ele é bestial. Carmen ficou com um ar pensativo e esforçou-se por esboçar um sorriso mais à vontade, sem que o meu rosto deixasse de olhar o seu olhar tão jovem. - Sally seria indelicado não apresentar além de mim, o Kev, não achas? - Kevin, mãe, o nome dele é Kevin. Tentei manter o olhar atento à procura de alguém tão singular como aquelas duas pessoas formidáveis, mas por agora só via casais de namorados. Cada vez que olhava para uma delas, a sua beleza parecia divina, parecendo eu demasiado rude para tal companhia. Não conseguia perceber onde poderia estar Kevin, se ali ou no exterior, ou até se nem estaria por ali e viria ali ter. - Não vejo o teu irmão - Encolhi-me para o lado de Sally para que a mãe não percebesse o quase estúpido em que me tornara naquela altura. Mas ela agarrou-me a mão, e desta vez, quase me arrepiei com o grau de frieza da sua. Em seguida ela olhoume com um olhar de pura satisfação e acenou a cabeça na direcção da entrada do restaurante Ele estava a sorrir, de uma maneira mais subtil do que eu esperava, o seu olhar mostrava uns olhos verdes com uma mistura de cinzento. Pareciam duas esmeraldas a brilhar com a luz do restaurante.
- Estou muito atrasado? - Provocou ele a mãe que o olhou com um olhar fingido de alegria. - Kev, este é o Daniel, o novo amiga do liceu da Sally. Deparei com uma expressão quase de repugnância em relação a mim. O sorriso que trazia tornou-se controverso e agressivo. Estava com um tão carregado como se eu fosse uma criatura a querer fazer-lhe mal. Observei-o depois a recuar dois passos, e desviou o olhar. Era um rapaz normal, quase como eu, não muito entroncado e usava uma roupa normal, tshirt e calças pretas, e tinha uma mochila de campismo. O seu cabelo era liso, quase tão liso como se tivesse acabado de sair do banho ou de algum lugar húmido. Não parecia tão jovem como os três membros que conhecera ali então, mas mesmo assim aparentava uns dezanove anos, o que para mim era considerado jovem. Com o olhar pregado em mim, Kevin esticou a mão e os dedos, de modo a que esta se mantivesse aberta, respondendo com brusquidão ao aperto forte que pouco depois ele me deu. Mal esses momentos passaram ele retirou-a e meteu-a no bolso das calças, de modo a que ficasse invisível. - Vão comer o quê meninos? - Interrompeu o momento a mãe de Sally com bastante bondade. Por infortúnio aquele episódio trouxera-me fome, ou melhor, transformara-a num género de vazio aos repelões pela barriga dentro. Parecia que viria a desmaiar a qualquer momento, não só pela presença de duas pessoas que me deixavam em plena vergonha, mas também pelo facto de ainda não ter comido nada. De certeza que não, fome não era, mas o cheiro a comida despertava uma sensação de desejo e ansiedade ao mesmo tempo. Eles não notavam a diferença mas como eu estava, mais cedo ou mais tarde iria fechar os olhos e cair para o chão. Tal sucedeu de seguida, mas, ao deslizar, comigo veio também um copo que, aparentemente me pareceu cair e partir-se, tendo eu caído por cima dos vidros pequeninos com o ombro. A princípio não senti nada, porque estava meio zonzo, mas ao darem-me água gritei de um modo agudo com o contacto de algo que quase perfurou a pele. Seria parecido com um pedaço de pele levantada, estando a carne a arder e a ferver, completamente insuportável. - Daniel tens de ser forte quando te arrancar estes dois vidros do ombro. Estás a sangrar muito.
No mesmo momento percebi que Sally estava aterrorizada, olhando de maneira quase com medo da ferida que fizera. Olhei uma vez para o ombro, e a mancha vermelha fez-me quase deixar o pequeno-almoço cá fora, o que não sucedeu. Na verdade não suportava ver sangue, e só queria que tudo terminasse, mas mesmo assim seria uma vantagem que uma "enfermeira" tão empenhada, me tratasse de todas as feridas e mais algumas. Porém, ao desviar o olhar na direcção do irmão de Sally, vi este último quase a querer espancar-me. Tinha os punhos cerrados e os olhos mostravam-se tão arregalados como se fossem sair das órbitas. Assustei-me e recuei no colo de Sally, embora parecesse meio deitado, paralisado. - O que é que ele tem? - Pensava eu para mim. Não era capaz de fazer a pergunta em alta voz. - Ele ficará bem, não te preocupes. E tu também. - Informou cuidadosamente Sally, sem que deixasse de tirar o guardanapo de tecido aveludado do meu ombro. - Preciso de água mãe, traz-me água por favor. Tal como o irmão, embora de maneira mais "soft", a mãe de Sally permanecia quase paralisada ali, a olhar-me, com um ar, não de quem queria matar, mas de quem está bastante abalado e perturbado com sangue. Afinal o que se passaria com eles? Teriam algum problema com sangue? Alguma fobia. Sentia-me mal se tal fosse possível, e assim teria de me acalmar para que o sangue parasse e não os incomodasse. Aquilo tinha de acabar depressa, e eu queria isso mesmo.
Capitulo Quinto
CONFIANÇA
Deveria estar a anos-luz de compreender aquela situação. Porque estava tão… aturdido e desconfiado para o motivo pelo qual os presentes, à excepção de Sally, me olhavam quase com medo? Era evidente de que não sabia nada acerca da família de Sally, ou até desta última – completamente frágil, como se fosse partir a qualquer momento –como se pudesse acontecer isso um dia. Desconhecia a essência de todo aquele aparato, se seria surpresa, medo, ou apenas uma grande ilusão da minha mente. Era difícil ter uma ideia fixa, onde conseguiria acumular todo o meu receio. Não podia deixar que eles tomassem uma atitude daquelas, mas mesmo assim, respeitei o seu momento… até não aguentar mais e quase sair porta fora. - Daniel – Exclamou Sally após um momento de fúria meu, enquanto tentava controlar-me para não ser mal-educado. Virei-me na sua direcção e ela estava inclinada junto a mim, quase estando a tocarme. Quando a contemplei, vi que os seus olhos, ainda que por pouco tempo, se tinham tornado bastante meticulosos. - Desculpa, Daniel! A minha mãe e o meu irmão não são assim. - Tudo bem – Respondi –Ao menos diziam o que se passa… De seguida Sally expirou em sinal de um pouco de compreensão. - Está bem, está bem – Concordou, deixando de me olhar como anteriormente. Tornei a manter a postura mais mole e cruzei os braços. A porta atrás de mim acabara de fechar, o que me fez apenas perceber que Sally fizera um sinal em direcção aos seus parentes, discreto mas visível. Depois ambos saímos do restaurante. Sally parecia transtornada com a confusão causada momentos atrás. Em plena via publica debruçava-se para conseguir fazer-me retornar o meu ar simpático, mas, mesmo assim parecia não o conseguir. Não iria haver discussão e ela olhou-me com os olhos afundados nos meus, ao mesmo tempo que me travava o caminho para me enfrentar. O sol há muito que se pusera, e, com todo o cenário de confusão, esquecera-me de quanto tempo permanecera fora de casa. Aproximadamente duas horas, que o relógio marcava como sendo oito e meia da noite. - Pois… – Tentou, com a voz a falhar-lhe de atrapalhação – Desculpa.
Virei o rosto, não querendo parecer zangado. Sabia que ela não tinha culpa de nada. - Obrigado – Disse ela, quando as suas sobrancelhas a formarem uma forma descontraída. – Então isso quer dizer que me perdoas? Ri-me. O rosto foi sincero e natural, sem esforço. Parecia que a tinha perdoado mesmo antes de o querer fazer. - Se houvesse maneira de ficar chateado contigo – Esperei – Estaria claramente à beira de estar em total insanidade. Esta última parte fez crescer-lhe um largo sorriso, e um pouco avermelhado de vergonha. Logo tentei arranjar forma de a deixar de novo à vontade. - Onde vamos agora? – Perguntei em sinal de brincadeira, com a voz num tom irónico, quase a rir-me. - Acho… – Disse com lentidão –, Não te posso confirmar… mas acho que está a ficar tarde para ires para casa… Sabia a que se referia. O olhar para o relógio tinha-lhe despertado o problema de, na verdade, eu estar mesmo atrasado para chegar a casa. Já passava das horas de jantar e eu não avisara ninguém. Porém, como os meus padrinhos chegavam sempre tarde a casa, deixei que a minha expressão fosse de extrema inocência para tal. - Talvez fosse melhor levar-te a casa. Não pretendo, de todo, arranjar mais problemas. - Problemas? – Perguntei com a voz bastante rouca. - Na verdade, apenas saí uma vez sozinha, esta vez. Não sei se devemos ficar mais tempo ou… - Tenho tempo. – Cortei-lhe aquele raciocínio, dando-lhe um beijo breve. - És muito mau nisto das surpresas. Acho que não me deves fazer isto mais vezes, senão… Sally parou de falar e as palavras ditas sofriam uma mutação a caminho do silêncio. - Ah, sim… E antes de mais, aquela vez em que me apanhas-te… - Bem, penso que te teria de dar uma explicação a qualquer momento, quanto mais não fosse, um dia destes – Mostrava bastante nervosismo, e depois apontou para trás de mim, desaparecendo de seguida. – Não hoje. Terei de te falar nisto numa altura
apropriada. Se quiseres voltar para casa eu levo-te, mas não falo neste assunto agora. - O silêncio imperou impacientemente. - De acordo, mas, importas-te de aparecer? Não entendo como fazes isto. A propósito – Acrescentei – Esta noite podias ir lá a casa. Observei-a para ver se estaria disposta a tal, para que não ficasse a pensar outras coisas; no entanto ela pareceu bastante agradada com a ideia, manteve o seu sorriso, apesar de me ter olhado mal lhe fizera a interjeição, meia surpreendida.
Sally apresentava ser muito mais do que eu podia observar nela. Não parecia ser uma humana qualquer, e era ao mesmo tempo uma rapariga cheia de segredos, o que despertava em mim a paixão que nunca tivera por ninguém. A sua mãe seria decerto mais velha, pelo que, de algum modo, conseguia aparentá-lo, e, em termos lógicos, isto era completamente normal. Voltei a falar a Sally, tendo alguma inveja por ser tão bela. Ela reparou e ficou calada. Eu estava demasiado absorto para ver o seu rosto que parecia um manto de neve em pleno Inverno, claro, mas em sintonia com a noite sem estrelas. Sentia-me diferente. Ao olhá-la, o meu ser estremecia. - A forma como me olhas parece ser de admiração – Sussurrou – Não quero que te prendas demasiado a mim, Daniel. Soltou as palavras como se fossem tormentos a saírem do seu interior. Estava em agonia. - Daniel… se eu te pedisse uma coisa e que não podias contá-lo a ninguém, guardavas segredo? A minha resposta não saiu prontamente. Sally ansiava que eu respondesse.
- Penso que… sim, acho eu. Mas depende da coisa que me pedirias. Alias, eu não gosto muito de guardar segredos, porque sou um pouco distraído – Pus as mãos no rosto – E posso cometer o erro de o contar. De uma forma descontraída, ela agarrou-me uma mão, segurando-a firmemente na sua, ao mesmo tempo que se preparava para me revelar algo. - Confiaria em ti para tal, mas tenho medo de me precipitar – Abanou a cabeça – Sei que estou a ser incorrecta, mas não nos conhecemos tão bem para te contar algo assim. Terás de descobrir isto sozinho. Eu dar-te-ei pistas.
Subitamente, senti-me gelado ao ver que Sally cerrara o sorriso como se tratasse de uma porta fechada a sete chaves. Assustei-me e ela retraiu-se. Era claramente a noção de que tinha ido para lá do limite do razoável, ao quase desprezar algo tão precioso como um segredo que aquela rapariga tinha para contar. Um “sim” em vez daquela frase incómoda, daria uma conversa mais que interessante. Pisquei os olhos com tanta força que comecei a ficar tonto. Era muito melhor ser eu a não querer ver a realidade do que sucedera. Ela tinha visto que era um mau começo, para ambos. Depois, os olhos de Sally pareceram apagados, com a íris num tom escuro e monótono, o que me surpreendeu; a minha «ideia» de boa noite seria um desfecho que acabaria no mínimo com o adeus que tanto tentara adiar. Sentia-o eminente. Fez-se silêncio de repente, e, apenas me senti consciente quando o barulho de um motor soou de rompante pela estrada fora. Os meus olhos recusaram-se a deixar de olhar Sally, e a principio pensei que até começassem a fechar-se de tão monótono que a noite se tinha tornado, sem conversa. - Tens alguma coisa contra motas? - Não – Repliquei de seguida. O meu tom de voz quase parecia um silêncio pensante. Depois a cbr600, amarela e preta, parou mesmo à nossa frente e a pessoa que a guiava tirou o capacete, passando-o a Sally e apontando para aquela bomba. Subitamente, fez com que a minha expressão parecesse sombria, mostrando-me de dentes cerrados e com o olhar atentar transmitir alguma ironia. - Consegues montá-la? - Mas o que te interessa isso? - Questionei com ferocidade - Afinal és tu que vais andar e não eu... Quem é aquele que te entregou o capacete? Os seus olhos começaram-se a semicerrar e o seu rosto mostrou um ligeiro tom avermelhado. Sally parecia prestes a sorrir timidamente. - Vamos? - Desviou o olhar para não responder – Vou levar-te a casa. - Não sei – Mantive o pensamento em seguimento do que me tinha dito. Será que não confiava em mim? Afinal o seu segredo teria de ser permanecido em sigilo, com a resposta negativa que lhe dera.
Senti-me envergonhado por tal; no entanto o momento não poderia ser para voltar atrás, e, talvez no dia seguinte eu pudesse saber qual era o mistério que ela guardava. Tentei pensar noutro assunto antes de nos dirigirmos à estrada. Pensei naquela companhia incrível, linda e resplandecente, querendo falar-me. Segurei a sua mão enquanto ela me olhava com alguma precaução, e montamos aquela quase "assassina". - Isto é horrível – Afirmei. Tinha demorado poucos segundos a compreender de que a brisa que passava através do meu cabelo em magotes, era na verdade um vento gélido e cortante, fazendo-nos quase tombar de tão forte que era. A mota estava em pleno andamento, e o ponteiro das velocidades não se afastava dos cento e vinte quilómetros. Assim, era preferível desfrutar da viagem enquanto ainda era tempo. Abri os olhos e Sally permanecia concentrada no manto negro com listas brancas que estavam a precipitar-se na escuridão. - Assusta-te? - Murmurou com a voz suave. - De vez em quando – A minha voz pareceu descontraída – Acho que quase voámos aqui. Andas com velocidade mas com suavidade, o que não me põe nervoso... – Sentia-me bem. Estávamos perto das árvores que rodeavam a minha rua. Quase sem se notar, Sally pousou um pé no chão, anunciando a nossa chegada, e eu, saí do seu veículo a cambalear, porque além da mítica Harley, esta seria a segunda moto em que andara, e a velocidade da cbr era estonteante. Estávamos agora ambos inclinados um sobre o outro. Sally mantinha as mãos nos bolsos; inclinei-me mais para lhe beijar a testa fria, com a minha mão direita a segurar-lhe o queixo. Sabia que me tinha de manter positivo em relação ao dia seguinte, pensar que ela viria à escola, provavelmente com muito receio disso é que o meu beijo saiu mais prolongado do que eu esperava. Era demasiado para mim, ter de esperar por ela. - Achas que gostas de mim ao ponto de não quereres que me vá embora. Admitiu ela em tom baixo, pondo as suas delicadas mãos à volta dos meus ombros. Fiz um esforço para me lembrar do primeiro dia em que a vira: aqueles olhos, aquela face... – Estás preocupado comigo - Disse entre dentes. Os meus dedos agarraram os seus braços com firmeza.
- A deslumbrar-te apenas – Esclareci, mostrando concentração nas palavras, pois estava claramente a mentir. - Confias em mim assim tanto? - Baixei o olhar para não responder. Ela sabia a resposta. - Preferes não responder a esperar que me vá embora, para ficares na ânsia de me veres amanhã, para saberes o que tenho para te contar? - Estás enganada. Olhei-a rapidamente e vi que o seu sorriso voltara. - Como posso sabê-lo? - Perguntou num sussurro. - Porque pensas assim? Depois o silêncio arrastou-se. Recusei deixá-la sair dali sem responder, procurando que ela não desaparecesse no instante seguinte. Mantinha os olhos pregados nela, como um caçador com atenção redobrada à presa. - Olha para mim – Disse, com grande reflexão que vira nos seus olhos – Sou uma rapariga estranha, à excepção de quando me beijas e eu a ti. Mas se eu olhar para ti... – Percorreu a sua mão pelo meu rosto, passando pelos meus ombros onde bateu duas vezes com alguma força – Tu tens uma imagem bonita, inteligente, sabes que mais cedo ou mais tarde isto terá de acabar não sabes? - Não acredito. - Se parares para pensar no que se passou hoje, verás como tenho razão. Não é vulgar nada do que se passou no restaurante. Apressei-me a responder-lhe, em sinal de conclusão. - Não te deixarei, seja o que for que tenhas para me contar. Confio plenamente em ti. Os meus sentimentos são mais fortes que eu – Tentava debater-me contra a despedida – E se não te vir mais? E depois, se eu souber que és demasiado importante para mim e tu não estiveres lá? - Jamais o faria. De repente desapareceu. Para mim tinha sido uma boa opção, já que não pretendia mais despedidas. A sua presença, por outro lado, era fundamental. Eu não iria desistir, e ela seria o que de melhor tinha agora. - Até amanhã - Concluiu com a voz a arrastar-se pela rua fora.
Capitulo Sexto
CONTOS E MITOS
Estava escuro como breu quando entrei em casa. Até ali tudo parecia perfeito, ou talvez não, pois não havia dúvidas de que tinha abusado da sorte, e agora a fantasia terminara. Mal entrei, vi surpreendido que as luzes, com um tom amarelado muito ofuscante, estavam acesas. Andando sob a ponta dos pés, comecei a subir as escadas que iriam dar aceso ao meu quarto. Os olhos da minha madrinha permaneciam impacientes e rígidos como se eu tivesse cometido um crime ou algo do género. Baixou o olhar e ficou quieta. A maneira como ali permanecia estava a incomodar-me e deveria expressar o querer de uma explicação. - Porque não avisas-te Daniel? - Está muito zangada? Eu não fiz de propósito – Baixei o olhar e o tom de voz. Ela apenas acenou com a cabeça, olhando fixamente para mim, tendo um sorriso tímido no rosto, onde uns graciosos olhos verdes brilhavam e percorriam o corredor para além de mim, até à porta. Aquilo sugeria-me desconfiança, e a minha madrinha virou costas, quase parecendo que não me estaria a ver ali. - Não voltará a acontecer – Prometi-lhe. Então ela virou-se, olhou-me ternamente, com um olhar meigo a desaparecer juntamente com ela, como se fosse uma miragem. Era um sonho. Acordara quase sobressaltado e a suar, olhando em redor, o quarto escuro e silencioso. A causa de tal sonho, não parecia ser importante, ou melhor, o aspecto que ali coincidia seria, que eu estava de consciência pesada por algo que não deveria ter feito, numa casa estranha e numa família que não era minha. Sabia que no dia seguinte tudo mudaria, para melhor.
Decididamente a noite não fora boa, não pregara olho após o pesadelo. A falta de barulho ou tipo de som deixava-me confuso em relação à situação do dia, ou falta dele, porque o meu quarto permanecia fechado e escuro. Escondi-me nos lençóis machos e convidativos a uma boa hora de sono repousante, mas no momento seguinte o
despertador tocou, marcando as oito horas a que teria de responder para não chegar atrasado. Eu não o desejava. Não me apetecia chegar antes de Sally, mas a ansiedade era tão grande que me limitei a ir para lá a pé, para ter tempo suficiente de chegar bem perto do toque de entrada. Havia sol por toda a parte, o que tornava aquela manhã absolutamente encantadora, com os ramos das árvores a dançarem com o vento ligeiro. O caminhar dos meus ténis fazia um barulho estridente, parecendo demasiado alto para quem passava e olhava de má cara para mim. Seria bastante melhor trazer a bicicleta que era silenciosa e bem mais rápida; estava com tanta vontade de estar com Sally, que até o próprio vento parecia querer que eu andasse devagar, vindo de vez em quando uma rajada forte que fazia com que parasse. Não foi propriamente rápido chegar à escola, e com toda a pressa que tinha, até pareceu bastante rápido para alguém que nunca tinha ido a pé para tal lugar. À medida que me aproximava do portão, cheio de gente, a minha respiração parecia aumentar a cada passo que dava, dando-me tonturas e dores de peito. Tinha as mãos a tremer e decidi mete-las nos bolsos para que não se notasse tanto o meu grau de nervosismo. O corredor principal mostrava-se para já vazio e bastante quente, o que ajudou a que eu relaxasse um pouco. Depois avancei e passei pelos cacifos nojentos e com desenhos de grafitis a inundarem todos os bocados de chapa que parecia envelhecida. Senti-me melhor à medida que me aproximava da sala da próxima aula, informática e computorização. Entrei calmamente e deparei-me com uma sala bastante maior que as do dia anterior. No entanto, completamente cheia de armários a abarrotar de esculturas no seu interior. A campainha pareceu demasiado aguda quando soou, provocando arrepios nos braços e fazendo-me cerrar o maxilar para me concentrar no quanto queria que aquilo passasse. - Daniel, Daniel! - Ouvi uma voz aflita chamar por mim e virei o olhar para o lado, observando que Anna se dirigia para mim quase de modo acidental. Por pouco não caiu ao chegar perto de mim. - Olá Anna – Suspirei e mantive uma posição de quem está muito atento – O que se passa?
O aparelho metálico apareceu, resplandecente como me lembrava dele. Não aquilo não era um sonho... - Viste a Sally? - Questionei olhando para a porta da sala preocupadamente. - Sempre a amiguinha loirinha – Sussurrou, tentando fazê-lo sem que eu desse por isso. No mesmo instante fingi não ter ouvido, ao que me tornei sério. - Não sei – Disse com amargura – Queres ir dar uma volta por aí? Reparei nos olhos dela e fiz-lhe um olhar de pura insatisfação. - Não posso. Ainda tenho que ver aqui o material para esta aula. É um pouco complicado. Ela virou a cabeça para mim sem no entanto nos olharmos, e assim acenou afirmativamente para no momento seguinte se dirigir ao seu lugar e não mais me olhar. Decerto este seria o último encontro verbal que teria com ela, embora soubesse que ela estaria a sofrer em silêncio, tão perto, e iria ser assim daqui em diante. Depois ainda a olhei, não conseguindo saber se estava bem e o que estava a sentir – Tão perto que estava depois, por ali, nos corredores do liceu. O seu cabelo negro estava delicadamente penteado para trás e parecia mais longo do que quando a conhecera. Todavia, eu não me esforçava para dar mais ênfase àquela situação, senão à presença próxima de Sally, logo após a aula que parecia nunca mais começar. Estava em pulgas para o toque de saída, e eu parecia estar num reino de felicidade eterna. Além da mentira que contara a Anna, o essencial de todo o "teatro" que fizera, tinha uma única explicação - Sally.
Tentei convencer-me que com o tempo todo aquele amuar dela passaria, não esperando que ela me odiasse para toda a vida, de modo a voltar a ver o seu sorriso. Os meus colegas foram entrando e, o rapaz a quem eu ajudara, parecia satisfeito nessa manhã, sem a companhia desagradável da sua "carraça mor" por ali perto. Eu via nele uma preocupação, mas não seria com certeza por causa deste último, mas por outra coisa. Reparei no seu semblante alguma fúria, mas fiquei aliviado por momentos depois, a sua expressão voltar ao normal. A situação de espera tornou-se menos desagradável quando um homem bastante novo, com uma camisola azul e umas calças de ganha, na moda, irrompeu pela sala para
se chegar ao lado da secretaria, onde pousou a pasta que trazia, aparentemente parecida com uma mala de PC. O sol escondeu-se um pouco atrás de duas nuvens teimosas que a meu ver, pareciam querer tirar toda a alegria que aquele dia trazia. Os arbustos em redor da rede metálica que separava os limites da escola, da estrada, estavam sempre a mover-se violentamente, e pouco depois, umas gotas minúsculas começaram a fazer com que o chão de cimento parecesse um dálmata às pintas. A chuva, no entanto, não parecia tão eminente como fora nos dias que se antecederam. Detive-me por momentos, adiando o desgosto por aquela água toda me vir a molhar os livros e a roupa que decididamente estava destinada a virar um monte de humidade abundante. Um sentimento de tristeza pareceu invadir a minha ansiedade. Os meus receios agravaram-se quando a aula tomava o rumo de trabalhos de computador, quando o professor Dinonn, um nome um tanto ou nada estranho, nos começou a explicar as funcionalidades de um programa novo de edição de imagens. No entanto, apenas abordou o assunto inicial, em que, eu já me tinha habituado por causa de uma experiência feita em casa. Quando a campainha deu sinal para a saída eu permanecia envolto nos meus pensamentos acerca de Anna. Quanto possível, tentaria manter a minha dignidade, para depois me dirigir a ela e tentar pedir-lhe desculpas, porque a final de contas, a culpa era inteiramente da minha responsabilidade, bastante vulnerável quando queria fazer as coisas bem feitas. - Não precisamos de estar assim – Disse-lhe tentando manter-me dócil mas palavras e na expressão da minha cara demasiado carrancuda para o momento. Não me olhou. Virava as páginas do caderno, acelerando cada vez mais à medida que o tempo passava. Daí a pouco apenas parecia ver uma página e não várias, tal era a velocidade. Quando se levantou, eu mantinha-me um pouco distante, não fosse o diabo tece-las e eu levar um estalo ou algo do género. Mas, subitamente, ela pareceu reconhecer o meu pedido, sincero, de desculpas, ao ponto de olhar fixamente para mim, com o mesmo olhar, compenetrado e entusiasmado com sua a tinha conhecido. Toda a raiva, ou fosse qualquer outra coisa, tinha passado. - Que idade tens Daniel Foller? - Fiquei admirado com a formalidade da pergunta, e fiquei engasgado nas palavras a responder. - Ah... Dezoito, porquê?
Não consegui perceber bem tal questão. Ela arrumava tudo e ficou de pé, mesmo após todos terem saído, incluindo o professor. Era permitido ficar na sala durante os intervalos, e a razão para tal... Muito simples: trabalhos em computador, e estava na altura de os começar a fazer, o que ainda não era acontecia na minha turma. - Conheces Capara? Apercebi-me de que provavelmente estava a falar de algo sobre cidades, o que não era o meu forte. A minha biblioteca cultural cingia-se apenas a música e pouco mais. - Não penso que conheça essa cidade – Respondi, um pouco envergonhado. Anna lançou-me um olhar de surpresa, que iria para além dos meus olhos. Bem lá no fundo, ela estava a relembrar-se de algo, e, eu parecia o espelho das memórias, ou melhor, os meus olhos. - Então... Mas vais à visita de estudo na próxima semana? O sítio que vamos visitar é bastante emocionante e assustador. - Não me parece que ir a uma catedral, velha e a cheirar a mofo dos zombies que por lá enterraram, seja propriamente "apelativo". - Fiz sinal com os dedos em sinal de aspas e a minha cara fez uma careta para mostrar o desagrado - Não vejo que seja proveitoso a qualquer sentido de conhecimento. Ela sentou-se com rapidez e vi que estava completamente entusiasmada com algo que talvez dissera. - Boa, finalmente alguém me compreende! Uma oportunidade... A sua face ganhou vincos leves nas bordas dos lábios, sabendo eu que se preparava para um sorriso aberto. Depois ela abriu o livro antigo, com letras douradas e a capa, velha e gasta a desfazer-se, num tom azul-escuro muito carregado.
Abriu-o mesmo no meio onde tinha uma marca com tinta uma marca com tinta de caneta preta, e mostrou-me a imagem de um edifício com duas torres, vários vidros e um grande portal. Certamente que era uma igreja. - Uma... Igreja? Porque queres que veja isto? - Primeiro, isto não é uma igreja - Parou para percorrer com os dedos a imagem, algo envelhecida num monte de letras em redor - É uma catedral. Ri-me baixinho com certeza de que aquela imagem era tolerante irrealista. Afinal onde é que uma catedral podia estar em plena cidade como aquela? Tudo à volta era tão...desenvolvido.
- Percebo... - Disse com um tom de sarcasmo. - Não gozes, isto não tem piada. Bem...voltando ao assunto, existem guardas, como hei-de explicar... "mitos", pode ser a expressão adequada à situação acerca desta catedral. - Oh, a sério? E agora vais contar que esta espelunca agrega histórias de mortosvivos e guardiães furiosos que matavam quem se atrevesse a assaltar a catedral! Por favor Anna, já não crédito em histórias de terror desde os seis anos. Após tal visão do assunto, ouvi um pequeno murmurar zangado e um ar rouco a sair da garganta daquela minha amiga. - Vais à visita? - Questionou de uma maneira rude com os maxilares a contraíremse. - Depende... Afinal o que é que esta catedral tem de tão manipulador e terrorífico? Não vejo aí nada de especial. Peguei no livro e virei a página à procura de algo sinceramente mais importante. - Ouvi dizer e li aí a confirmação – Esperou para se acalmar um pouco – Parece que existem criaturas da noite, nestas colunas de pedra que vês aqui. Notei imediatamente numa coisa que saltou à vista. Era uma estátua, de um morcego ou algo parecido, agachado e ao corpo metade humano, metade besta, em que os seus longos e musculados braços seguravam a cabeça de...Um homem. Estava em agonia e a figura ria-se com os olhos arregalados e sobressaídos. - Genial – Confessei com o meu sangue a correr-me nas veias a alta velocidade. Aquilo dava-me alguma adrenalina de ir ver a tal catedral. - O que podes dizer mais sobre estas estátuas? Estranhamente aquela figura quase humana, que, quase reconheci alguém nela. Porém não sabia quem seria, até porque a pedra estava gasta e com buracos ao longo da mesma. - Hum - Consentiu ela, ficando a olhar para a imagem - Interessante. Olhara-a detalhadamente. Permaneceu imóvel a quase tentar entrar dentro da imagem, como se aquele corpo permanecesse ali, à espera de retirar a alma daquele morto-vivo. - É só isso? Apenas um "Hum"? Boa, grande ajuda! - Espera – Pediu agarrando-me com simplicidade - ainda não acabei. - E então? - A minha voz parecia demasiado impaciente. Estaria a mostrar uma pessoa extremamente ridícula? Ou era apenas o estado de nervosismo para ver Sally que
me fazia permanecer em figura de estúpido? A opção que pensara em último lugar parecia mais razoável, pelo que tentei acalmar-me. - Gárgulas... As estátuas são magníficas e devem ter já perto de cem anos ou mais. - Explica-me tudo – Implorei ao chegar-me para perto dela, que pareceu não dar conta da minha proximidade. Mas tal não viria a acontecer, pelo menos agora. Estremeci quando ela pegou na mochila e sem eu contar se dirigiu depressa demais à porta. Depois saiu. - Espera, eu... Deixei a frase a meio, arrumei tudo e corri para ver onde é que ela iria. Mas ela desapareceu, tal como sucedera com Sally. Estaria eu a ficar maluco? A chuva aumentou de intensidade e ouvi os vidros abanarem com estrondo. As luzes falharam e percebi que se avizinhava uma grande tempestade, ou algo pior. Após tal momento, no exterior da sala, um numeroso grupo de alunos permanecia assustado e colocado junto a uma das salas que davam acesso a um estúdio que poderia albergar cerca de mil alunos. Lá dentro, lembrava-me de como era escuro e assustados, vazio e gelado, mas parecia que eles estariam dispostos a passar por tal provação, a favor de... Claro, só podia ser... - Rápido, rápido, venham para aqui e não entrem em pânico - Gritava o director da escola com mais dois ajudantes, que desconhecia, a tentarem todos evacuar o recinto. Vai passar por aqui um pequeno tornado e eu não quero perder tempo com pessoal perdido. Venham, venham. No mesmo instante, a imagem de Sally surgiu na minha cabeça e receei o pior. O meu coração batia mais depressa do que eu conseguia controlar, e a minha respiração ficou demasiado ofegante. Comecei a suar e via tudo à roda. Não podia ser. Sally estava em perigo, lá fora ou em algum lugar que não sabia. Limitei-me a não pensar e pressionei as têmporas para poder surgir algo com clareza, o que parecia ser uma missão impossível. Estava assustado, em estado de choque com a ideia de ela poder estar mal, ferida ou desaparecida. Então desatei a correr e passei pelos três responsáveis quando um grupo passava, e assim ninguém me viu quando me baixei no momento em que todos gritavam histericamente por causa de um trovão. Sabia que o tempo estava a passar e a cada momento podia ser a minha responsabilidade de não ter ido ter com Sally, a pô-la numa situação perigosa. - Sally! Sally, onde estás?
Reparei que seria escusado chamar por mais alto que fosse, com toda a chuva e o vento a fazerem barulho. O meu chamamento seria apenas um murmúrio no meio daquilo. Nunca a iria encontrar e os meus pensamentos lembraram a primeira vez em que a vira, sublime e bela. - Sou fraco – Pensei para mim. - Mas eu não posso desistir. Ela precisa de mim... A chuva era tão forte que me deixei derrotar pelo cansaço e pela falta de ar. Deitei-me junto ao portão da entrada, fechado e comecei a perder a respiração, com o vento a fustigar-me a garganta e as narinas. Onde poderia ela estar? Seria eu tão fraco para não conseguir salvar nenhum de nós? Então, lá ao longe, uma sombra aproximou-se...
Capitulo sétimo
REVELAÇÃO
Quando abria os olhos uma luz ofuscante fez-me virar a cara para me esconder. - O nosso campeão já acordou! Aquela voz parecia-me conhecida, mas com a luz, que me parecia estar demasiado próxima, não tive coragem para satisfazer a minha curiosidade. Tinha a garganta seca e custava-me engolir a saliva que quase me sufocava. Foi então que, por momentos, a imagem de Sally me apareceu, e eu levantei-me logo de seguida, ao que quase me deitei de seguida. Estava cheio de fios ligados a mim e tinha dores em todo o lado, com a cabeça a latejar. Parecia ter ido contra um camião. - Daniel….Daniel…. – Murmurou uma voz demasiado conhecida e meiga para que eu não me movesse para a ver. Sally estava ali, tal como estivera toda a noite. - O que aconteceu? Onde… estou? - No hospital. Oh Daniel, pregaste-nos cá um susto… O que te passou pela cabeça? Tentei abrir os olhos que queriam obrigar-me a dormir. Mas a sua mão, ligeiramente fria conseguiu que recuperasse um pouco as forças, a ponto de me por meio sentado com a almofada atrás das costas que me ajudara a pôr. - Oh não – Fiquei aterrorizado com a ideia – Os meus padrinhos, eles devem estar preocupadíssimos. Tenho que sair daqui! Mas Sally travou-me com o seu braço, de maneira a barrar-me mais o caminho que me separava a cama do chão. - Não vais a lado nenhum até o doutor Lehman te mandar para casa, e além do mais, eles estão aqui. - Quem, os meus padrinhos? Os dois? Oh não… O seu rosto estava perplexo de surpresa e ela arregalou as sobrancelhas, quase soltando um “oh”. Depois agarrou-me a mão que permanecia ligada, o que me causou algumas dores. - Quando estiveres bom, vamos fazer algo emocionante, mas sem maluqueira, combinado? – Deu-me um beijo suave e rápido a que eu quase nem tive tempo de responder.
Reparei que após me ter beijado o seu rosto mostrou alguma dureza. Mas o que estaria eu a fazer num hospital. Porque estaria ali toda a gente? Como é que Sally sobrevivera à tempestade? - Precisas de alguma coisa? Se quiseres algo pede-me que eu vou-te buscar. Tentei tomar uma posição mais rígida, mas com tantas dores vi que era impossível, optando pela expressão facial. Afinal a cara expressa bem o que sentimos, e eu mostrei um ar zangado, ou… tentei. - Preciso. – Mostrei impaciência batendo com um dedo solto na cama num batimento ritmado. - O que queres? – As suas mãos cerraram-se de imediato e ela fixou-me com o olhar a focar-me bem. - Conta-me a verdade! Acerca de ti e da tua família… Os seus olhos continuaram-me a fitar mas os seus dedos pararam. - De certeza que não queres saber, acredita. - Conta e logo veremos como reajo. Abraçou-me e falou-me ao ouvido de modo a que ninguém ouvisse. - Quando saíres daqui prometo que é a primeira coisa que farei. – Depois afastouse e sorriu abertamente, com a íris dos olhos a brilharem num azul brilhante. Parecia que o que prometera, iria cumprir, e, eu comecei a desejar, mais que o minha recuperação, sair dali rapidamente. - Quando posso ir-me embora doutor? O Sr. Lehman era um grande amigo do meu pai e até já tinham andando os dois naquela mesma escola, mas o meu beicinho de nada serviu. De qualquer maneira sabia que o seu temperamento era sempre assim, no que tocava a pacientes, ele nunca dava o braço a torcer se não tivesse a certeza da sua recuperação total, ou quando os exames assim o permitiam. “Respeita-te primeiro e o teu futuro será derradeiro” – Era o seu ideal de vida, desde que me lembrava que ele existia. Na verdade ele era pai, tinha três filhos, e, a frase era igualmente aplicada aos três. As pessoas adoravam-no e quase afirmavam que conseguia salvar pessoas que aparentemente já quase que estavam mortas, vejam lá o que elas são capazes de dizer quando estão desesperadas. - Amanhã já estarás pronto para ir à escola rapaz. O teu amigo é que foi muito corajoso, quando te encontrou deitado no chão quase a sofrer de hipotermia, pegou em ti e veio até aqui, no meio da tempestade. E olha que também não se encontra lá em muito
boas condições. Teve que suportar aquela chuva toda e o vento, Mas não é nada de preocupante – Disse ele ao analisar-me as narinas e a garganta com uma luzinha que me incomodava mesmo quando estava longe dos olhos. Detestava hospitais. Depois os meus olhos olharam surpreendentemente quem entrava na porta. - Olá. Então como te sentes? - Tu? Mas como…. - Hum – Parou a conversa com um som na garganta rouco, quase pedindo licença para me calar. - Ok desculpa. Mas… Tu salvaste-me e tu… - Oh não foi nada… estava por perto e não podia evitar o que estava a ver. No instante em que falávamos o doutor aproximou-se e deu uma palmadinha nas costas do meu aparente “salvador”. Mais estranho era impossível. - Eu sempre soube que aqui o Cullen era uma grande pessoa. Na verdade o pai dele, O Carlisle também é médico, como deves saber. - Nós não somos amigos. Respondi olhando de lado de lado para Edward. Ele porém parecia calmo e não me olhava com repulsa, como da vez em que o conheci. Estava admirado. Era verdade que já o tinha visto, duas vezes, não foram as melhores ocasiões, mas de onde eu o conhecia era de um livro que lera chamado crepúsculo. Contava a história de Bella, que também conhecera, mas que de momento não parecia estar presente. - Ela não pôde vir. Fica para amanhã. - Ok – Voltei a responder com dureza sem que ele desse algum sinal de que me queria comer ou algo assim. A sua expressão era quase de leveza, os braços ao lado do corpo e não cruzados, as mãos abertas e não com os punhos cerrados e um sorriso, que era o que me “intimidava” agora. - Bem a minha missão acabou, agora tenho que ir. E no momento seguinte, tal e qual Sally quando me salvara, saiu com rapidez. O momento de dureza passara e relaxei. Relaxei tanto que a única coisa de que me lembro a seguir a Edward, foi, a cara dos meus padrinho na porta do quarto. Quando acordei novamente deviam ser umas dez horas da noite. Estava escuro e frio. Cobri-me melhor e alguém me ajudou. Acordas-te querido. Como te sentes?
A minha madrinha. Sempre protectora e vigilante como sempre. Os seus olhos que permaneciam doces e não zangados. Agarrava-me com as suas mãos quentes e suaves, quase tão suaves como as de Sally. - Então já queres ir para casa? - Não. Ela retraiu-se. Depois olhou em volta e suspirou antes de falar. - Então Daniel? O médico já disse que te dava alta quando acordasses e agora não queres sair daqui filho? - Primeiro quero comer. Estou faminto. – E sorri juntamente com ela. O meu padrinho, mais fechado, também lá estava, a olhar por mim e…por Sally que estava numa cadeira ao lado da cama a dormir, debruçada sobre uma almofada alta. Nem imaginava o sacrifício para estar ali daquela gente toda. Realmente era um monte de problemas e sentia-me mal por tal. A seguir a comer, fomos para casa e Sally também lá dormiu, no meu quarto, enquanto eu dormi na sala, no sofá, o que não me chateou. Afinal tinha a minha “namorada” ali, ou era o que eu pensava da nossa relação atribulada. Na manhã seguinte acordei cedo e meio tonto. Tudo que acontecera eu lembravame. Até da presença do Cullen no meu quarto de hospital. Sally já se tinha levantado e andava as voltas pela sala, talvez à minha espera. - Olá – Cumprimentei, observando que ela andava em voltas, tensa e com as mãos atrás das costas. Decerto modo sentia-se tonto por isso. - Bom dia – Respondeu com os maxilares quase cerrados. Aquilo tinha saído com um sussurro demasiado longínquo. – Podes despachar-te para irmos? - Mas ainda são sete horas Sally. – Informei-a de maneira suave para que não se zangasse. - Posso perguntar-te uma coisa? - Claro. Pergunta o que quiseres. - Menos Daniel, muito menos. – Corrigiu com firmeza e arrogância nas palavras. Fitei-a com um ar aborrecido. O dia não estava a começar bem, mas mais zangado devia estar eu por ela ter fugido e eu ter ido para ao raio do hospital. - O que tens? Pareces tensa. E porque estás a falar comigo assim? Ela parou. Depois sentou-se ao meu lado no sofá, numa distancia de mais ou menos longe, pois o sofá era demasiado longo.
- O que te deu ontem? – Perguntou fazendo com as mãos o gesto de quem está maluco. - Isso pergunto eu. Desapareces e depois eu vou para te salvar… Ela interrompeu com um riso demasiado alto para aquela altura da manhã – Tens imensa piada. Salvares-me? Eu não precisava de ajuda. - Mas não estavas na escola. Onde te metes-te? - Hum… pois… - Pois, não tens resposta. Ela olhou-me surpreendida. - Não te lembras do dia que é hoje pois não? - Porque haveria de me lembrar? Alguma data de real importância? Eu que saiba não faço anos nem nada parecido. Baixou a face e olhou para as mãos que mantinha entrelaçadas. - Pensava que te lembrasses. – Disse quase chorando. Naquele momento senti-me péssimo. Ela estava mesmo triste e eu não sabia porquê. - Em vez de me preparares tu uma surpresa tenho eu de preparar uma para ti, e depois é esta a paga que tenho… – Confessou desanimada. Era claro! Os anos de Sally. E era mesmo verdade que na altura em que tínhamos ido para casa a pé ela me tinha dito a data, sabendo eu que era breve. Não tive coragem de contestar aquele estado. Não sabia sequer o que dizer. - Ok… parabéns? Mas não ficas zangada comigo, por… favor? – A minha voz sofria de alturas, baixando e levantando quando lhe fiz a questão. - Estava a brincar seu tonto. Claro que não estou zangada, mas podias-te ter lembrado. Dou-te um desconto por teres ido parar ao hospital por minha causa. – Agora sorria finalmente com os braços estendidos para que a abraçasse. Foi o que fiz. - Agora podes revelar o teu segredo? Ela sorriu e apertou-me com mais força. - Antes de começar a escola. – Prometeu. E saímos. A rua estava deserta, com o barulhos dos carros ao longe. Após dois quarteirões a andar ela desviou numa rua que eu desconhecia. Ao fundo reparei que se encontrava lá o seu irmão, e ela correu para junto dele.
Fiquei a observar tal coisa até que de um momento para outro ela estava de novo ao meu lado. Desta vez vira bem, ela não correra, ela voara, rápido com um trovão. Depois ficou muito quieta e comecei a ver a expressão de Kevin mudar. Da sombra quase mudou para a luz, ficando na penumbra, só vendo eu a sua cara, forte e robusta. O sol atingira quase metade da rua e comecei a ver o rosto dele mudar para um tom bastante escuro. Começara por pequenas manchas e gradualmente, umas lascas de pedra invadiram-lhe a face, deixando-a a brilhar como pequenas estrelas, mas o meu maior espanto foi quando Sally também se transformou. A sua cara em vez de ficar negra ficou mais branca que a neve, e também brilhava com o sol a embater-lhe suavemente. A seguir umas asas angelicais saíram das suas costas e ambos ficaram quietos durante breves segundos, reduzindo-se a meras estátuas. - Tu és…linda. – Disse boquiaberto. - Não te iludas. Se tu soubesses do que somos capazes… os monstros que somos…
Capítulo oitavo
ASSUNTO PRIVADO Era quase inexplicável o que estava a ver, o que sentia. Sally era ainda mais divina quando estava transformada, mais brilhante que qualquer estrela, irreconhecível é certo, mas ao mesmo tempo tão igual a quanto eu sabia que era. Igualmente Kevin mostrava um humano sem qualquer tipo de rancor comigo, com uma serenidade realmente reconfortante. Mas isso não estava a despertar tanto interesse com Sally o permitia. Seria como estar num outro espaço, numa outra dimensão, em que, tudo desaparecera, em que até eu permanecia alterado. - Quero que me prometas que isto não sai daqui - Pediu mal Kevin desaparecera com um movimento demasiado invisível para que o seguisse com o olhar. Olhei-a maravilhado com a possibilidade de nunca mais nos separarmos. - Não o faria mesmo que não o pedisses agora. - Tens a certeza? Olha que se isto for revelado, serei, ou alguém da minha família virá para te... – Hesitou para engolir em seco. Notei a sua voz a tremer quando terminou, sinal de que era algo que não queria certamente – Matarmos. Nesse momento permaneci petrificado. Como podia ela fazer tal coisa? Seria mesmo capaz daquilo? Depois afastei o olhar para ver a expressão de Kevin. - Já não voltará se é isso que procuras. Ele foi embora, e eu penso que isto não se devia ter sucedido assim e muito menos agora. - Porque dizes isso? Disses-te que confiavas em mim lembras-te? Podes ficar... descansada. Ela permaneceu imóvel, enquanto o bronze que lhe tapava a cara e os braços descobertos pelo top, começou a desaparecer pois ela aproximou-se da sombra. Parecia um ser de pedra, mas cuidadosamente trabalhado no mais puro bronze, como se valesse milhões de euros, e eu, não conseguia deixar de olha-la, muito mais naquela altura porque a sua beldade era duas ou três vezes superior à mesma que tivera, na forma humana. Era bom ter uma amiga valiosa como aquela, e ali, sentia-me seguro. - Estamos atrasados – Gritou ela com um tom rápido e agudo, ajudando a que eu estremecesse com o susto
- Pois... Mas não é o caso para tanto alarido. - Não? Surgiu um sorriso quase irónico na sua face demasiado perfeita. Os seus olhos eram azuis turquesa. - Estava a pensar na possibilidade de teres de ir sozinho para a escola hoje, é que, o sol não ajuda muito a que todos comecem a gritar pela escola a dizer que eu sou, digamos, um monstro horrendo? Fiquei zangado com tal observação. Fechei os olhos e quando os abri, eles ardiam de tanta irritação. - Não digas parvoíces. Sempre que te vejo pareces mais bonita desde da primeira vez que te conheci. De repente desapareceu, arrastando com ela, os meus olhos na sua direcção, que não se habituaram a olhar algo que não ela, pois ela reapareceu a quase cem metros de distância de mim, sob uma outra sombra de um toldo. Olhou-me, com a íris na penumbra, que se mantinha demasiado desfocada para olhar a sua cara. Sentei-me e permaneci ali, sentado à espera de algo, não sabia bem de quê. - Prometes-me uma coisa? - Perguntou, só para concluir aquele momento sublime. Não me mexi. Depois de alguns momentos ela apareceu sentada ao meu lado. Parou com cuidado para não me assustar, e depois, falou num tom demasiado maternal. - Não te queria mostrar isto assim, tão friamente – Fez uma pausa para gesticular em direcção a si - compreendes que isto para ti é perigoso? Acenei com a cabeça rapidamente, não vendo qualquer alteração no seu rosto que estava frágil e sereno – A surpresa não tinha sido tão desagradável e em vez disso, queria que o dia do seu aniversário fosse inesquecível. O seu sorriso, os seus olhos, tudo em si fazia-me pensar que teria de fazer deste dia o melhor de todos, para ambos, e por isso decidi não ir às aulas para estar com ela. - Nem penses. Tudo em mim diz que não fiques aqui. Se o fizeres eu desapareço e nunca mais nos falamos. Colocou-se de pé e puxou-me para junto de si. Abraçou-me fortemente e depois senti um beijo demorado e demasiado caloroso para que fosse apenas um beijo despedira-se de mim.
Esperava que fosse por breves momentos. - Fico à tua espera para almoçar-nos – Afirmou a sorrir abertamente. Depois largou-me e saiu da rua, dirigindo-se para outra transversal e com alguma gente. No momento seguinte pus-me a caminho. Se iria chegar atrasado, não valia a pena correr e assim, andei mais ou menos quarenta minutos para chegar, no que o normal seria apenas trinta. Senti um frio quando o sol voltou e me aqueceu um pouco. Vi na minha cabeça as recordações que tinha de Katerown, e, por mais estranho que fosse, já não sentia vontade de lá estar. Assim soube que tivera uma decisão, e que, se quisessem, eu poderia ficar a viver com os meus padrinhos, apesar de a sua ausência me ser algo estranha. Eles lá sabiam que eu estava com eles, para me deixarem comida no frigorífico. Aquela casa era tão vazia como um penhasco sob o vento gelado do mar. Era deserta e fria, quase sombriamente abandonada. Há muito tempo que eu não era tão... sentimental. Sem nunca me desviar muito dos meus propósitos, fui andando pelo passeio deserto de gente. Quase não conseguia ter coragem para estar na escola, pois o meu desejo era estar apenas com Sally, e sabia o seu segredo, apesar de não saber muito o que significava a sua aparência., ainda queria mais.
Nunca lembrava de alguém que fosse tão meigo e compreensível como ela o era. - Esperarei por ti, não vou a lado nenhum Daniel – Ouvi a sua voz tão perto que a podia sentir no meu ouvido, e virei-me, não vendo ninguém. De facto a sua presença era tão casual que parecia estar sempre comigo. Depois despachei-me e senti-me livre para tudo. - Nada de disparates, e não te esqueças do que prometes-te. - Confias em mim ou não? Eu não conto nada do que mostras-te ou do que és. Será o nosso assunto privado. Era quase impossível ficar sem pensar, sem me querer mexer com Sally dali, com ela tão perto. Queria abraça-la, poder tocar-lhe e levá-la para um lugar longínquo. Durante aquela manhã ouvia gente a falar, a comer, pelo que, podia observar pareciam ser novos alunos que tinham dourado para o liceu, tal como eu, em que me mantinha quieto. Bem mais gente que na rua, sem arrepios e também sem uma companhia que tanto desejava ter.
Andava muito cuidadosamente e fui até ao bar, onde comprei um lanche e me sentei numa mesa, redonda e demasiado grande para permanecer lá apenas uma pessoa. Logo, o bar estava às moscas, e eu parecia estar num espaço interminável, com paredes enormes e luzes que em número reduzido, quase conseguiam chegar de um lado ao outro do tecto. Eram apenas quatro e situadas paralelamente umas às outras. Tinha agora um caderno debaixo do braço e a pasta, meia vazia e pendurada num ombro, no que senti alguém puxar-me e a minha imaginação voou para poder ver... o rapaz que tinha gozado com Kelvin. - Olá minorca, agora eu e tu vamos ter uma conversinha – Garantiu com as suas mãos a agarrarem-me a roupa. Baixei o olhar. Sentia-me a ferver, mas não tinha motivo para me querer meter em confusões. Não podia andar à porrada. - O que se passa? Estás com medo? - Perguntou com gozo na cara sarcástica. Voltei-lhe as costas, largando a minha roupa das suas mãos enormes. - Deixa-o – Gritou uma voz aguda atrás de nós. Virei-me e Kelvin permanecia com a não direita pousada nas costas do grandalhão. Esperei que eles percebessem que o sítio não era ideal para confrontos, afastandose um pouco e sabendo que estava a ser o mais cobarde dali. Depois ouvi um estrondo e quando me voltei, vi estendido o grande rapaz a contorcer-se de dores, e Kelvin a sacudir as mãos. Decidi que podia finalmente olhar para o resto das pessoas que ali se tinham agrupado para verem o espectáculo. Se ele me olhasse com violência eu sairia dali, como um cobarde ainda mais do que o que fora. Toda a gente se riu. Rapazes e raparigas pareciam ter ouvido uma autêntica anedota, e, aos poucos todos saíram, ficando apenas eu e Kelvin. Cheguei à conclusão de que o seu sorriso era mais de que irónica. Finalmente tinha-se vingado, apesar de eu não saber como. - Acho que não gosta de mim – Confessou a rir-se. Senti-me amedrontado de estar ali. Pus as mãos nos bolsos. - Os gigantes não são nada de especial...bem, ao menos já tenho uma resposta para o facto de ele estar no chão agora... É fraco e medricas. - Pára com isso – Pedi com algum desespero. Riu-se abafadamente e desviou o olhar dele.
Como ele não tinha um ar zangado, eu iria na mesma embora, pois a hora da aula de geografia a aproximar-se. No caminho da sala B54, no piso dois, ouvi alguém a quase chorar atrás de mim. Logo que entramos para a sala de aula, verifiquei que quem me seguia era uma rapariga que estava mal tratada. Tinha o cabelo despenteado e a roupa muito larga, como se a tivessem puxado. O professor andava entre as mesas a pôr folhas em todas elas. O toque ainda não soara e agora apenas um barulho de cadeiras a arrastarem-se se ouvia. Não tirei os olhos da rapariga, que se sentou na mesa ao lado da minha, que começou a arrancar folhas do caderno de maneira frenética. Vi que também a cadeira do meu lado se arrastava, mas o meu olhas pousara na rapariga, concentrando-se no que poderia fazer para a ajudar. - Olá – Disse de maneira a começar uma conversa. Ela olhou-me de repente, parando de chorar por breves segundos. Estava tensa e afastou-se para o extremo da secretaria, pondo a sua posição completamente rígida e direita. Mostrava rosto esguio e os seus olhos tristes eram escuros e brilhavam por causa das lágrimas que lhe escorriam da cara. Eram cristalinas e escorregadias, daí caírem com bastante frequência. O cabelo, ruivo e encaracolado permanecia muito quieto, mesmo quando ela se movia. Após uns momentos, olhando mais algum tempo, ela sorriu um pouco. - Que queres? - Começou de forma agressiva – Não te conheço e não me parece que seja agora que te vá querer conhecer. Os meus olhos cruzaram-se com os seus. Ela parecia tão confusa como eu, depois de me ver sorrir. Não tinha uma ideia precisa, mas sabia que teria de dizer alguma coisa. - Sou o Daniel – Balbuciei. Ela voltou a sorrir de maneira estranha. - Oh, pois, todos devem saber quem tu és. A escola toda fala de ti por causa do teu pai. Olhei-a pelo canto do olho. Sabia que era verdade e que, talvez por isso estivesse a responder assim. - Não sei – Persisti calmamente – Apenas queria ajudar, e porque motivo choras? Ela pareceu descomprimir um pouco do nervosismo que a assolava.
- Sou a Jennifer – Respondeu - Apenas estou assim porque cai lá fora e está-me a doer bastante a perna - Tentou explicar, estando em grandes dificuldades. - Estás bem? Queres ajuda... eu levo-te à enfermaria... Ergueu a mão para me mandar calar, pois o professor aproximava-se. Por sorte, ele não ouviu nada e começou a falar para a turma, indo para a parte da frente da sala onde começou a escrever no quadro, rapidamente, qualquer coisa sobre o planeta terra, ao que nós voltamos a falar. - És daqui? Quero dizer, de Sutterfrin? - Felizmente – Respondi-lhe com grande agrado. Decididamente, estar ali era muito bom, quase como se nascesse naquela cidade. Perdi-me em pensamentos. O sorriso dela era quase tão bonito como o de Sally, mas como é evidente, Sally era única. - Viste a tempestade de ontem? Até assustava – Perguntei tentando estabelecer diálogo. - Assim não vais lá, Daniel – Brincou a rir-se baixinho. - Já tiveste esta disciplina antes? Ela olhou para o outro lado para não se rir. - O quê, Geografia? - Sim. - Não gosto deste tempo – Uma exclamação quase inaudível vinda da minha parte. Parecia uma parvoíce estar a falar de tempo com uma rapariga. Por alguma razão, ela parecia estar a gostar daquilo. O seu rosto parecia-se ter transformado num mar de curiosidade e alguma irritação. Mesmo assim não falou. - Não te apetece falar? - Quis saber com tom preocupado. Tentei olhar mais uma vez a sua face tensa... e percebi que talvez tivesse acertado no pensamento. - Não é isso. Estou chateada e não é contigo. Não quero que leves a mal...mas o dia começou mal – As sobrancelhas ficaram-lhe carregadas como se estivesse a sofrer. Parecíamos distanciados do que se passava durante a cuja, e eu, conseguia observar ligeiramente concentrado, que a aula se aproximava do final.
Escrevíamos nos cadernos apenas por rotina, tentando libertar a tensão do momento. Entretanto tentei perceber o que se passava com ela e, após algum tempo de silêncio, um bilhete surgiu mesmo em cima das páginas em que escrevera, notando eu que, Anna estava a olhar-me com alguma raiva. Certamente de que seria uma mensagem sua. É assim que me queres pedir desculpa? Não gostei daquela frase azeda quando li tal coisa.
Aquilo poderia ter causado facilmente um ataque de ciúmes em Anna, pondo o seu estado de humor em chamas, mas se não fosse por causa de Jennifer era por causa de Sally. Anna tinha-se prendido demais a mim e sabia que aquilo já não era assim tão normal. Irritei-me no fim e pensei. Evidentemente, peguei noutra folha e escrevi também apenas uma frase: Ela chama-se Jennifer. Está mal e não tens nada de ficar assim. Não tens nada comigo. Mesmo ao chegar ao fim, olhei-a e ela quase se "rasgava" de tanta inveja. Senti que era isso mesmo que ela sentia, e depois, não liguei. Após tal reflexão, ela empurrou-me e arrancou-me a folha do meu caderno, violentamente, deixando-o meio pendurado na mesa. Não queria que ficássemos assim, mas a presença constante de Anna, estava a deixar a minha cabeça perdida. Parecia quase um fantasma que me seguia quando eu não queria. - O que se passa? - Murmurou Jennifer. Abanei a cabeça e revirei os olhos, ficando ela muito admirada. - Não te preocupes. Coisas sem importância – Quase gritei. Anna olhou os meus olhos num curto mas demorado tempo infernal. À minha cabeça vieram mil perguntas sobre o que estaria a pensar. Depois gelei, e com tal constrangimento estremeci. Ela percebeu quase como sentindo o meu medo no ar. »»»»»» Quando a aula terminou, já com Anna fora do alcance, para me olhar bruscamente ou até mesmo interromper, ouvi uns rumores estranhos acerca de uma rapariga, com a mesma aparência de Sally. Repentinamente ela passou mesmo à minha frente e com alguém que me deixou com pele de galinha.
Era Kelvin, que falava com ela muito concentradamente. Enervei-me por me sentir traído e quase ia começar a correr em direcção aos dois, quando Jennifer me travou. - Não te preocupes. É só uma conversa – Disse calmamente. Depois, Sally olhou-me, como se pressentisse que a vira. - Não te esqueças do nosso assunto... – Murmurou. Fiquei a pensar por momentos naquilo. Estaria ela a contar o seu próprio segredo a um desconhecido? Onde iria…?
Capítulo nono
GIGANTES
A manhã era calma, mas com aquela visão tudo em que eu acreditava morreu. Uma conversa? Que tipo de conversa teria uma rapariga "cor de bronze" e um rapaz super agressivo, que se fazia passar por coitadinho só para ter a atenção de toda a gente? Já me tinha vindo à ideia que Kelvin e o tal grandalhão estavam combinados acerca daquela cena de pancadaria inesperada no bar. Mas... seria verdade? - Daniel – Interrompeu Jennifer. Desviei o olhar da agora rua vazia, já que ambos tinham desaparecido há algum tempo, e fitei o seu olhar. Mostrava estar a franzir as sobrancelhas mas mostrava uma distância considerável. - Diz. - Pareces mais pálido que um fantasma. Porque não te acalmas e deixas de pensar no que viste? Fiz uma respiração, a princípio acelerada, e depois quase deixei de respirar. Ela esboçou um sorriso. - Vem. Vou levar-te a um lugar que quando estou assim, ajuda-me a relaxar. Assim posso contas-te o que tanto queres saber sobre o porquê de estar assim. E também podemos conversar à vontade, sem aquela tua amiga, a de aparelho. Referia-se claramente a Anna. - Espera – adverti com ela já à frente – Deixa-me só avisar a Anna de que me vou embora. É que ela não ficou lá muito satisfeita com a nossa mini-conversa lá dentro. Pisquei-lhe o olho e entrei de rompante na porta grande. Depois abanei-me antes de ir falar com ela, e ela estava mesmo ali, sentada num banco, cabisbaixa. - Dá-me um momento para te poder explicar, sem que facas algum tipo de drama. Anna fez-me uma careta demorada e olhou de novo o chão. - Por favor, isso não! - Se não me deixas sequer aproximar de ti, falar, como queres que possamos ser amigos? Eu senti-me na obrigação de compreender tal desabafo, que acabara com a minha desistência para a podes ouvir. - Tudo bem.
Anna retirou o olhar furtivo que me lançava, com o olhar ainda sombrio. - Já não estou zangada. - Pois, já deu para eu perceber. Ela comprimiu os lábios por um momento. A seguir riu-se. - Eu estava a ser ciumenta. Mas sabes que és especial. Abanei a cabeça de forma afirmativa aclarando as ideias. - É um pouco complicado falarmos agora. Fica para mais tarde. Levantei-me. Depois pus-lhe a mão na cabeça enquanto Anna se mantinha a sorrir. Isto fez desaparecer o mau estar entre nós. Sabia-o. Quando o momento chegou ao fim, ela observou-me a sair e acenou-me. Rapidamente pus-me ao lado de Jennifer. - Foste rápido. - Nós aqui andamos sempre um pouco à pressa. Tenho a certeza de que descobrirás isso. - Oh – Exclamou tentando expressar um sorriso, onde apenas o horror a atrapalhava. - Não é verdade, é? Fiz um pouco de suspense e de seguida fiz um gesto de quem lava as mãos de culpa. - A partir daqui terás de saber isso por ti. Suspirou. - Como é ter duas raparigas atrás de ti? Aquela pergunta apanhou-me quando menos esperava. Ri-me para não mostrar nervosismo. A verdade é que nunca pensara na situação daquela maneira, tão... positiva. - De que falas? - Desviei eu a carga da questão. - A sério. Quando elas olham para ti – Tornou mais claro – A Sally e a Anna, não é bom? Esboçou um ligeiro sorriso, com a sua cara graciosa. - Talvez Jennifer – Disse, agarrando os dedos e pondo-me às voltas com eles. Antes de responder, pusemo-nos a caminho por uma rua que não conhecia. - Desculpa – Disse num tom envergonhado. - O sítio de que falas-te fica muito longe daqui? Parecia um bebé a precisar da mãe para não se perder.
- Estás a pensar que te vou raptar ou coisa assim? Podes estar descansado que não sou nenhuma psicopata que te quer tirar os órgãos nem nada parecido. - Espero bem que não – Afirmei em tom de brincadeira. No fundo estava mesmo apavorado com o lugar para onde nos guiava, porque tínhamos acabado de entrar num sítio muito estranho. Era parecido a um túnel mas que, apenas dava para ver bastantes arcos de longe a longe, e 2o fundo, uma luz tremeluzia. Quase jurava ser um aqueduto por onde estávamos a passar, pois além das luzes e arcos, poucas e muito pequenas, eu tinha água a entrar-me nas sapatilhas. Por mais que andássemos a água nunca desaparecia e a escuridão também não, ao que, me comecei a inquietar um pouco. - Estás com medo? - Perguntou ela a andar muito direita à minha frente. Assustei-me quando vi algo a passar à nossa frente, que fez barulho e água a salpicar um pouco. De resto não se ouvia alma viva, além dos nossos passos molhados. Seria quase de certeza um rato. - Não propriamente medo – Menti - Mas este lugar é estranho. - Tens razão, mas não será mesmo aqui que ficaremos. Nem eu gosto deste lugar, mas para se ir para um sítio melhor, por vezes nós temos de longe a longe passar por coisas que não gostamos, nem de ver. A palavra "nós" não me caiu muito bem no estômago da forma como ela o dissera. Estava mais confuso que antes. Afinal, ia com uma estranha para um lugar que nem conhecia, e não era propriamente possível, para uma pessoa no mínimo, chamada normal. Finalmente a luz negra parecia desaparecer de repente. Era como se um outro lado da cidade aparecesse. Era algo belo, com um lago no meio, árvores em redor, verdes e frescas, e ao longe uma rocha enorme, com marcas e fendas absorvidas pelo tempo, em que, uma queda enorme de água aparecia. - Onde estamos? - Entusiasmei-me ao olhar para uma realidade tão mágica. Jennifer deixou o cabelo cair-lhe pelos ombros e ficou com ele quase tão belo quanto Sally. Parecia-se quase gémea desta, na face e no cabelo, mas a cor da sua pele era normal. A seguir ela foi até junto de uma rocha, que parecia ter algo escrito, e encostouse a ela suavemente.
- Greentree... é o nome que lhe dou. Este é o único sítio onde posso relaxar, em unidade com a natureza e em conjunto com o meu estado de equilíbrio, que aliás, preciso. De certeza que seria como ela contava. Tudo ali estava em contacto com o verde e o mais puro que existia. Se não tivesse a certeza de que estava acordado, por causa de uma ligeira dor de cabeça, diria que aquele lugar com certeza fazia parte de um sonho que estava a ter. Mas... onde poderia eu encaixar ali? - Agora tenho de te contar algo muito importante. É acerca daquele rapaz que estava com a Sally. - Como sabes quem eles são? Como sabes os seus nomes? Quem és tu? - Os gigantes... já ouvis-te falar deles certamente... – Presumiu com um olhar sério enquanto eu lentamente me sentei ao seu lado, lembrando o que Kelvin me dissera no bar: "Os gigantes não são nada de especial" - Tinha dito em tom de brincadeira e ironia. - Sim, lembro-me de algo assim. O Kelvin falou-me disso, mas apenas disse algo em tom de troça e brincadeira. Porque sabes tanto sobre ele? - Se me ouvires vais perceber logo tudo... - Mas tu só agora vieste para cá. Como os conheces? Não entendo... – Interrompi ainda com as ideias meias trocadas sobre ela. - Com licença..? Tu não podes estar um pouco calado para eu falar? - Gritou enervada. Cai em mim para ver que o momento estava mesmo a cair-lhe mal. A minha confusão tornava tudo aquilo uma confusão e estragava a curiosidade sobre aquele assunto, que, Anna começara e Kelvin também. - Em 1910, aqui mesmo em Sutterfrin, e aqui perto, numa parte da floresta, houve um conflito entre duas famílias rivais. Rivais e não normais... Fez uma pausa para passar com os dedos a areia grossa que inundava o chão pedregoso. - Viviam quase juntos uns aos outros. Apesar de serem amigos, os Ridell tinha um estilo de vida muito diferente dos seus rivais Blanchett, e assim, passavam o tempo a ver quem conseguia ser melhor, até que... uma noite, quando a noite atingiu o seu ponto mais sombrio, algo apareceu a invadir aquele lugar, e logo souberam que não se tratava de um elemento da tribo a vaguear pela floresta... Olhou-me com os olhos a quase reflectirem o que contava.
As feições da cara estavam vincadas de modo a fazerem uma forma facial intimidadora, com os dentes quase a saírem dos maxilares, tal era o modo como os tinha arreganhados. Fiquei assustado, mas ao mesmo tempo estava curioso para saber como tudo acabava e para saber quem é que andava nas redondezas da história intrigante de Jennifer, e por isso não interrompi para qualquer tipo de questão que a pudesse desviar da sua concentração para contar semelhante ao que sabia. - A besta estava solta - Continuou com nervos a transmitirem-se pelos seus olhos inquietos e furiosos - Andava rápido e era quase invisível. Depois uma das crianças, de uma das famílias, penso ter sido dos Ridell, foi levada por ela e então, com o medo a pairar, e o medo instalado, aceitaram ajudar-se uns aos outros, e fizeram tréguas para acabarem com a tal coisa. - Ah. - Diziam ser " A águia da noite". Saíram para se dividirem num raio de dois quilómetros, mas não encontraram nada. - E onde é que o Kelvin encaixa nisto tudo? - Se nunca ouvis-te o nome inteiro desse tal Kelvin, devias ouvir. Ridell, ele chama-se Kelvin Ridell. Isso explica algumas coisas de que te estou a falar. Os "gigantes" não são apenas uma determinação que ele ou alguém deu à gente grande. - E então? - Se o Kelvin andou à luta com um rapaz grande, isso será uma péssima notícia. Foi isso que aconteceu? - Perguntou timidamente, pondo-se numa posição mais recta enquanto me olhava. - Sim, ele deixou o rapaz enorme no chão para me defender. Que mal pode isso trazer? - Então, a conversa que ao bocado viste, já me preocupa... - A quem o dizes. Mas porquê? - Daniel, a Sally e o Kelvin não são bem o que julgas que eles são. Não que eu me importe com... a Sally, mas o caso do teu amigo já é muito mais grave. Poderá estar a passar um mau bocado. Fiquei apavorado com o que dissera sobre o que Sally poderia ser, o que não sabia que era, mas se não era, então o que era? O que quisesse. Desejei poder saber o que ela sabia a respeito dos "conhecidos" amigos que tinha.
- Continuando; Vieram a encontrar, dias depois, a família dos Blanchett, o corpo da criança desaparecida, quase a mais de cinco quilômetros daquilo que tinha estipulado, e quando o rapaz a encontrou, viu também a besta mesmo atrás dela, para o levar também. No entanto isso não foi possível porque uma armadilha foi montada e o membro da família veio acompanhado para se poder proteger. Juraram matar a besta e, em conjunto as duas famílias concordaram em queima-la à luz do sol, pois sabiam que era demasiado para ela. Percebi de imediato de que falara criatura idêntica ou mesmo sendo, um vampiro. - Vampiro? Como é que aqui há vampiros? Jennifer riu-se abafadamente. - Ninguém aqui falou nisso. Os gigantes não são vampiros. Relaxei um pouco. - Então o que é essa besta de que falas? - Gargulas - O que é isso? Levantou-se para explicar. - Tens algo que pertença à tua amiga? - Penso que tenha - Disse retirando da minha pasta e remexendo uma pulseira de que Sally se esquecera, e dei-lha. Jennifer tinha o cabelo tão grande que até para ela se mover, tinha de o afastar porque lhe fazia os movimentos mais lentos. Era esculturalmente branca e quase não usava maquilhagem. Nos olhos parecia ter impresso um diamante verde, muito vivo e claro, que me hipnotizava e me deixava tonto. Mesmo assim, concentrei-me para a sua explicação. Ela mexeu-se com suavidade pela areia e pôs-se de frente para mim, atraindo-me a olhar fixamente e a não fazer qualquer pergunta pelo meio. Eu acenei e jurei para mim que não iria estragar aquela explicação. Assustava-me que ela me mandasse embora e que me perdesse naquele "segundo mundo". E ela começou. - Em tempos remotos foram humanos, mas tinham um grande inimigo, os morcegos ou vampiros. Vampiros, são morcegos grandes e não os sugadores de sangue dos filmes, se é que me entendes. Depois de um ser mordido, não se transforma em vampiro humano, mas em metade humano, metade morcego. Isto dizendo por outras
palavras: o tronco, as pernas, os abraços e a cabeça são humanos, mas com asas e cauda de morcego. - A Sally é assim? - Não. A tua amiga é diferente. A Gargula que é, não descende das mesmas que existiam. Não foi mordida por um morcego, mas sim por um vampiro-morcego. - Sorriu timidamente a olhar para os dedos das mãos. Senti-a tremer. Fiquei confuso com o nome dito e levantei as sobrancelhas em sinal de dúvida. - Não percebes. Pois está certo, já devia prevê-lo. - Tu prevês coisas? - Parecia uma pergunta totalmente de tempo inapropriado. - Não. É uma maneira de dizer. - Continua. - Obrigado. Bem, sendo mordida por um destes, tomam formas diferentes, douradas, azuladas ou até cinzentas! Agora já sabes o que os gigantes são. - Gargulas! Estou metido num mundo à parte – Brinquei, tentando achar um pouco de piada naquele pesadelo. Ela foi mesmo junto à água, onde passou os dedos e fez pequenas ondas que se dispersaram à medida que perdiam força. No fim olhou-me com responsabilidade acrescida. - Estás metido num monte de sarilhos.
Capitulo Décimo
FERIDAS - Vejo que estás mais calmo – Verificou Jennifer quando se preparava para sair dali. - Sim, estou, mas claro, calmo não é bem como me sinto. Depois de tudo que disses-te... Ela agarrou na minha mão e olhou para o chão, preparando-se para falar. - Se precisares de mim sabes que estou aqui. E quanto mais, podemo-nos tornar grandes amigos. Somos da mesma turma e tu ajudaste-me, por isso estou em dívida para contigo. Se calhar... Fiquei ansioso por saber o que ela estaria a planear. O jeito dela fascinava-me os sentidos e em perspectiva, queria saber mais. Podia pôr-lhe a alcunha de "professora" sem que ela se ofendesse com isso. - Que tal vires até minha casa para um jantar? Assim conhecemo-nos melhor. - Sim – Concordei com alegria e um sentimento de grande leveza a invadir-me - Aceito. Estranhamente, o vento tornou-se agressivo e as pedras pareciam começar a sair do lugar. Era de tanto nível que tive de me agarrar à rocha com os dedos bem vincados para não ir para o lago. Mas, Jennifer nem um milímetro se mexeu, e, virando-se para o lado oposto ao rio, para onde ficariam as maiores árvores e a parte mais sombria da floresta, ficou estática, com as mãos fechadas e a respiração irregular. Estava a ver algo que a assustava, talvez. - Daniel, sai daqui! Foge – Gritou vindo na minha direcção a gesticular e a apontar para o lado de onde viéramos. - Mas... – Não entendia a razão para estar assim. O que viria aí? Então comecei a correr e decidi não olhar para trás. Por outro lado ainda vacilei para poder ajudar Jennifer no que a preocupasse e, por momentos parei a olhar para ela. Porém, um nevoeiro intenso apareceu e não vi mais nada, nem me lembrara de conseguir sair dali. Acordei no pátio da escola, com milhares de gente à minha volta, mas não sabia porque razão. Jennifer não estava, Anna, não estava, e Sally... segurava a minha cabeça nos joelhos. - Sentes-te bem Daniel? - Perguntou ela de rompante. - Sim. - A minha voz parecia normal, o que me deixou mais descansado.
A cara de Sally estava dura.
A seguir, Jennifer apareceu, visivelmente cansada, assim como Kelvin, com uma pedra na mão, que, apesar de pequena e redonda parecia ser extremamente perigosa. Jennifer agachou-se e de uma maneira delicada puxou a minha mão; imediatamente me doeu. Jennifer permaneceu concentrada em mim, de maneira protectora, quase não sentindo eu a sua preocupação. - O que aconteceu? - Suspirei. - Nada de mais – Disse mentindo. No entanto, a sua cara estava seria e dura; os maxilares cerrados demonstraram a ferocidade de algo que a preocupava e que, talvez tivesse acontecido. - Não precisas de te preocupar – Declarou - O pior já passou e tu estás bem. Vai tentando levantar-te para ver se estás bem fisicamente. Se tens alguma coisa partida. Estremeci quando Sally a olhou por cima do ombro, o que me enervou. - Está tudo bem – Insistiu Jennifer. - Porque és tão teimosa? - Reclamei chateado. Sally decidiu falar. - Jennifer, é melhor que saias daqui porque ele está tenso. De certeza que já está zangado o suficiente por estar nesta situação, e, neste momento, não irá mesmo desistir de te fazer perguntas. - Pois - Concordou plenamente - Trata dele! - É o melhor que sei fazer - insistiu Sally. Os lábios de Sally formaram uma linha de tão fechados que estavam, mas por fim, acenou e saiu dali, por entre a multidão que não me deixava respirar. Um repentino ardor e fraqueza fizeram-me ceder os sentidos. Apesar de estar bem desperto, levantei-me da altura em que o nevoeiro aparecera, e Jennifer sumia no interior. Observei as feições de Sally. O seu rosto estava com uma determinação diferente, enquanto ela me mantinha aconchegado. Sentia um vago tormento no meu ombro direito, mas estava convicto a não me deixar habituar pela dormência que ele tentava levar adiante. Já sem forças, podia apenas ter uma aparência de como estava frágil ali no meio. Se Sally não me mantivesse acordado antes, nunca teria visto Kelvin a sair quase sem se ver do meio da multidão. Sorri um pouco e pareceu que antes de sair, os seus olhos me pediam desculpa de algo. - Pronto, já estamos a sós – Suspirou de alívio – E agora já sei o que andas a fazer.
- Não há problema – Disse-lhe com um sorriso atrevido – Não estás zangada. Mas podia – Repeliu a minha ideia – Mas, sei que não sou só eu a cometer erros. Ela mostrou um sorriso vincado. A sua repentina calma estava-me a deixar embalar cada vez mais, em contacto com o tempo quente. Não conseguiria permanecer muito mais tempo em consciência do que estava a dizer. O único sentido de tudo, além do meu bater do coração, era a suave respiração dela, e dos agora murmúrios à nossa volta. Não via a possibilidade de haver algum nervosismo ou outro sentimento na sua cara. Ela de certeza que pensaria, ao menos, mas de forma clara e profunda. Sem o demonstrar. - Como podes fazer tal coisa? - Interroguei admirado – E a Jennifer, o Kelvin... Não acabei a frase de propósito. Para a pôr à prova, já que conseguia ler a maior parte das coisas que eu pensara até então. Seria certo de que isso não era nada difícil, porque ela era... diferente. - Controlo... auto controlo – Revelou-me – Não me importo com a confusão. - Penso que isso te pode tornar um pouco fria demais, logo, se eu estiver muito em apuros, que farás? O mesmo que agora? - Certamente - As suas mãos tremiam um pouco, mas tentava permanecer firmemente concentrada - Não irá acontecer nada de tão grave, podes ter a certeza. Afinal já te salvei um monte de vezes. Senti-me na obrigação a olhar para cada sítio que me doesse, para verificar se estava em muito mau estado; mas tinha profunda noção que essa tarefa me levaria a não me mexer novamente. O seu sorriso era mais do que tranquilo. - Hum. Isto está razoavelmente mau, mas eu dou-lhe um jeito de qualquer das formas. Os meus dotes de cura passam para muito daquilo do normal – Murmurou – É bom saber que, graças a ti, a vida pode ser compensadora e até as feridas como estas posso curar, que por vezes não consigo sequer vê-las – Fez deste modo o diagnóstico do meu braço - Um dos inchaços que tens cura-se em dois, três dias mas o resto só mesmo com uma pequena cirurgia. Determinei que não podia correr perigo, e que se havia alguma confiança entre nós os dois, teria eu de ser o primeiro a dar-lhe verdadeiramente a minha.
Em seguida levantou-me e segurou-me nos braços, à procura de táxis. De todas as maneiras, eu não olharia para o braço. - A Jennifer meteu-te num grande sarilho. Terei de lhe dar uma palavrinha – Disse e eu logo estremeci, pensando em mais confusões – O que pretendo será apenas saber as razões para o qual ela te fez isto. Não vejo lógica, e no entanto faz-te isso quando quer amizades. - Não sei se fez por mal... – Discordei daquelas palavras de puro ódio – Como se ela tivesse culpa. Teve de o fazer em segundos, e o cenário não era razoável para nenhum dos dois. - Se o dizes, acredito em ti. Voltou-se na minha direcção, olhando de lado o meu braço. - Parece estar melhor – Examinou com apenas um pouco de vermelho a aparecer no lugar de uma ferida aberta que jorrava sangue, antes - Estás pronto para outra. O cheiro do meu braço era diferente. Mas não me fez causar qualquer impressão, olhando para o aspecto quase saudável deste. - Mas.. Como? - Reclamei quando ela me agarrou mais forte e deu um salto de um pequeno degrau. Mantive-me junto a ela porque era confortável – Porque não me curas-te como deve ser? Precisavas mesmo disto? Os seus olhos viraram-se para o braço, novamente. - A Jennifer contou-te mesmo, não foi? - Tudo mesmo. Pelo menos acho que sim, e eu não te julgo por isso. Mostrou nervosismo e enervou-se porque me apertou e eu senti-me sufocar. - Estás... a sufocar-me – Queixei-me. - Desculpa - Soltou os braços para eu me acomodar de novo. Tinha uma força incrível, mas não era demasiada para que tivesse medo. - Sei que isto é-te estranho, vindo de uma desconhecida - Esboçou um sorriso largo e amável - Mas tenho que dizer algumas coisas à Jennifer, apesar de a conhecer bem, é um objectivo neste momento, que não posso deixar escapar. É um pouco mau, eu sei – Murmurou com um som quase inaudível – Tudo isto fez-me tomar algumas medidas em relação a ti e a tudo que tu conheces, ou por outras palavras, podes estar metida num monte de...
- Sarilhos. Já ouvi isso antes. Mas não vejo algum problema em me dar com uma gargula?! É isto que és não é? Além disso, não percebo bem o que és e como tens estes dons todos, velocidade, força e mudas de cor e tudo. - Nisso és o primeiro a ver como sou, e o único que sabe a verdade. - Ninguém mais sabe? - Perguntei surpreendido. Jennifer não mentira, quero dizer, ainda não sabia a sua resposta. - O Ed estava certo. Ele pensava que tu fosses perigosa para mim e agora podemos estar a correr perigo. O diminutivo de Edward pareceu soar demasiado bem. Conheciam-se? Vi na minha cabeça quando Edward tinha ido ao hospital – Tão sinistro como ele era, seria capaz de também pensar assim, nunca se sabia. - Percebes o perigo de que te falei há já tanto tempo? Abanei a cabeça com a teimosia de que era feito. Ela suspirou. - Eu sou assim. Eles são assim. - Eles quem? Sei que o Edward é vampiro, e quem mais? - A Jennifer. Ela não é humana... como tu pensas – E olhou para longe. Depois riu-se, tentando gozar. - Ah, estou a ver. E agora? - Agora, tenho de resolver este assunto com ela - Depois relaxou e expirou fortemente - Esta é a única parte que me assusta nisto tudo. Penso que em termos gerais, será a melhor forma de encarar está situação. Enquanto falava, tentou verificar se eu estava em condições de permanecer em pé. - Estou bem – Quis desvia-la – Eu posso andar. - Vamos para minha casa. Apesar de estares com o braço curado, ainda pareces estar confuso. - Com certeza senhora-chefe – Disse com um sorriso a que ele respondeu rindose também. Em contacto com a pele de Sally, o chão era extremamente quente. Parecia ser bom estar tanto de um lado como do outro. O corpo dela poderia ser frio, mas fazia-me estar acompanhado e sempre seguro.
Normalmente isto deveria ser uma sensação sentida por uma rapariga, mas, que mal faria se fosse eu a senti-lo? Era sinal de que eu estava profundamente inserido no mundo que nos abordava aos dois, e assim, o dia não parecia ser tão obstante em que, todos os segundos contavam, distantes de nós. Desta vez, Sally não se tinha ficado apenas pelo meio próprio ou de bicicleta, para não ir a pé para a escola. Tinha uma mota. Muito idêntica à do meu pai, negra e prateada, com dois lugares e com uns assentos demasiado convidativos para não querer ir com ela. - Vamos para minha casa. Lá repousas e depois quando tiveres pronto, vens embora, vês na altura. E o tempo foi curto, aliás, demasiado curto para que pudéssemos ter tempo de falar, estando em quase envergonhado por ela me ter encontrado naquele estado. - Agora ficas aqui e quando eu voltar, vemos o que fazer - Disse segurando a maçaneta da porta. - Onde vais? - Não te preocupes – Disse sorrindo - Thomas, Miriam estão em casa. O Kelvin saiu, mas de certeza que a companhia dele não deveria ser muito.. Positiva para ti. Sempre que Sally decidia ficar longe de mim, não parecia que fosse por muito tempo. Notei que a sua face, apesar de tranquila, estava perfeitamente preocupada. A cor do seu rosto parecia descontrolado, vermelho e um pouco duro. «Não saias», aconselhou-me quase a mandar, uma voz rouca e a tremer. «Hei-de obedecer», disse-lhe com o olhar para uma janela, acenando de seguida. A claridade era bastante, mas não tanta para que ele se detivesse a ficar. Em comparação com o seu tom brilhante, o compartimento enorme, com armários clássicos e uma grande mesa no meio, parecia mesmo triste. Os seus olhos diziam tudo, e saber o que iria fazer assustou-me. Saiu rapidamente e vi-o, através da porta que passara antes. Fiquei feliz pois estava mais calmo. Foi um pouco angustiante, mas sabia que ele precisava disso. - Ele vem rápido. - Olá. Desviei os olhos e vi, lívida que dois seres extremamente brancos se aproximavam. Era estranho vê-los ali, a descerem as escadas que ficavam ao fundo da sala. Thomas e Miriam estenderam a mão, prontos a agarrarem.
Capitulo Décimo Primeiro
HIPÓTESES
Thomas foi o primeiro a avançar. A princípio diria que tinha uns dezassete anos. Usava uma tshirt preta e cinzenta às riscas, demasiado curta, mas que lhe assentava perfeitamente no corpo esguio que apresentava. O seu cabelo, meio avermelhado, condizia com os olhos escuros e que cintilavam um quase castanhoavermelhado. - Não tenhas medo, nós tratamos de ti – Disse pousando delicadamente a sua mão na minha. - Pareces precisar de comer. Iremos preparar-te algo para te alimentares. Não parecia assim tão mau. Sendo Thomas uma pessoa simpática e Miriam tão bela – Tinha uns olhos com contornos negros, onde um cinzento cintilante lhe brilhava na íris, e o cabelo, um pouco extravagante, pois era todo liso atrás e em crista na parte frontal. Eu não podia estar melhor. Iria habituar-me e obedecer-lhes, na sua companhia, apesar de talvez também ver que algo me incomodava: serem iguais a Sally. Mas agora a questão era outra; quem eram eles? Irmãos, primos? - Posso fazer uma pergunta? - Questionei encostando-me à porta da entrada, grande e forte. - O que quiseres – Respondeu Miriam ao puxar-me para o sofá onde me sentou e me deu duas almofadas, uma para pôr atrás da cabeça e outra para segurar o braço, anteriormente ferido. Se fossem gargulas, nada de mais haveria em ser amigo de umas quantas. Sem problema! - Estavas a pensar perguntar... – Insistiu Thomas com um prato de massa e carne picada posto à minha frente, numa mesa minúscula e entrada que ali havia. O vidro central, dava visão para uma madeira envernizada e bastante clara. Comecei a comer de forma desastrosa, pois estava esfomeado, ao que eles quase fizeram o seu "Ah", de admiração, e estavam boquiabertos. Quando dei de conta, parei abruptamente e recompus-me. - Ah, pois... – Reflecti por momentos se iria ou não perguntar. Qual seria a sua expressão se lhes perguntasse que eram uns seres que só existiam na imaginação do povo da idade média?
- Estás cansado não estás? - Voltou Miriam a falar-me. - Gostaria mesmo de descansar um pouco – Menti. Não queria nem um pouco fechar os olhos, antes porém de estar com Sally. Não tinha a certeza de ser seguro render-me ao cansaço. Poderia acontecer-me algo na presença deles, o que não me agradava de pôr essa mesma ideia no cérebro que se esforçava para trabalhar com clareza. - Posso? - Pedi olhando Miriam, que me olhava também, com curiosidade nos olhos claros e amigáveis que me apontava. - Estás à vontade. Mas antes de dormires gostávamos de te dizer que, a Sally não demorará mesmo nada. Quando acordares já cá estará. - Obrigado – E depois deitei-me e fechei os olhos, começando a sentir um ligeiro calor, reconfortante, em todo o corpo. - Quem é ela? A Sally passou-se? E se ela descobrir? - Murmurava Thomas para Miriam que apenas soltava um "Hum" de longe a longe. Depois começaram a falar mas não percebi nada, pois falavam muito rápido. Passados uns momentos, ouvi algo bater duramente num bocado de madeira que logo estalou. - Calma, assim ainda partes a mesa - Gritou quase a sussurrar. - Ela parece uma boa aliada para nós. E se nós... Tremi. Ele continuou com outra forma de falar, mais suave e aparentemente mais satisfeito. - Talvez a Sally o tenha trazido para aqui, por nós. Vai prendê-lo e a seguir fazemo-lo um de nós, forte e perfeito. Parece ter grandes capacidades e, como é novo, todos irão venerá-lo. Não lhe poderão tocar e saberão que fomos nós a transformá-lo. Seremos fortes e todo-poderosos. Era surreal estar ali. Abri os olhos e mantive-me quieto e calado, mas sabia que não me iriam ver, pois estavam atrás, junto a uma porta, a tal por onde tinha saído. "Transformar" em quê? O que seriam eles capazes de verdadeiramente me fazer para serem tão poderosos? "O mais novo"? - Sem a reunião com Sally e sem a sua permissão nada faremos. Não te esqueças da nossa condição: somos invisíveis no meio das pessoas porque somos idênticos a elas. Se o transformássemos seríamos iguais aos outros. Como achas que te controlarias? Ainda és muito novo e o meu dever é ajudar-te. Se lhe quiseres fazer isso, primeiro matas-me!
Thomas rugiu baixinho e suavemente, e depois pareceu-me ter saído, pois tudo ficou em silêncio... Adormeci.
Tinha martelos na cabeça quando me levantei repentinamente. Má ideia de certeza. Apesar de zonzo, sabia perfeitamente que me encontrava em casa de Sally. Aparentemente, não estava lá ninguém, e após um longo momento de concentração, lembrei-me. O sol estava ainda no céu, mas já bastante baixo, o que adivinhava a proximidade da penumbra que me assustava. Fui vagueando e procurei a porta de saída, mas não a encontrei. Não estava na sala onde tinha adormecido. As paredes eram agora vazias, mas amareladas, e o chão, coberto com alcatifas cheias de cores e padrões. O padrão central era de um cão com três cabeças, que me lembrou Cerebro, o famoso cão que guardava as portas do inferno. Aquilo não me dava uma boa sensação no estômago. Havia apenas armários pequenos ao fundo, e o quarto não tinha janelas, que dava uma noção de prisão permanecer ali. Havia ainda uma cama pequena e baixa ao meu lado, que estava sem cobertores, e apenas o colchão, já velho e gasto se via. De certeza que não ia ali há muito tempo, e a zona onde me encontrava era desconhecidamente estranha. - O meu quarto... – Aclarou as minhas ideias, Sally, ao aparecer atrás de mim, que me fez saltar de susto. - Importas-te de ser normal? Assustas-me sempre. Riu-se pondo-me a mão. Depois beijou-me com intensidade e empurrou-me para o chão. - Normal não dá para ser, mas posso tentar. - O que estás a fazer? - Perguntei amedrontado. - Dar-te as boas vindas. - Mas aqui... Não é boa ideia – Atrapalhei-me. - Menino maroto - Respondeu a brincar com o que lhe dissera - Não é nada disso que te vou fazer. Como achas estar aí em baixo? - É um pouco... Almofadado, acho eu. Ela deitou-se ao meu lado e ficou a olhar o tecto vazio e puro. - Demorei muito? - Mais do que devias. O que fizeste?
Sally olhou-me com um ar de quem não quer contar alguma coisa. - Fui até perto de GreenTree... Mas correu tudo bem. Fiquei apreensivo quanto aquilo. - O que lhe disses-te? - Nada. - Como nada? Se foste lá, tens de ter feito alguma coisa ao estar com ela. Ela riu-se e tapou a boca. - Pois, lá está, não estive com ela. - Explicou por fim com rigidez. - Não entendo – Deixou-me a pensar. A conversa parecia um pouco despropositada depois de uma ausência que me tinha custado tanto. Seria suposto estarmos a falar de outra coisa, mas também sabia que a visita que ele tinha feito, ou deveria ter feito, iria revelar algo que eu pudesse desconhecer. - O Thomas e a Miriam trataram-te bem? - Bastante - Reflecti durante algum tempo a conversa que tinha ouvido - Ele deram-me de comer e a seguir adormeci. - Parecias mesmo cansada. Mas agora sabes que tens de ir para casa. Olhei-a de relance e ela nada fez. Nada disse. Percebi mal aquela frase tão certa, como se ela não me quisesse ali. - O que estás a tramar? Não posso ficar aqui porquê? Ela ficou a pensar. Pensei que estivesse a ganhar tempo para me dar uma resposta segura, uma boa mentira. Porém, comigo isso não iria acontecer. - Responde – Gritei. Continuou calada. As sobrancelhas juntaram-se em sinal de que não gostara do tom de voz que lhe sugerira.
- Não. Não quero que vás, mas à conta de uma noite em que chegaste tarde, ficaste com a consciência pesada e não dormiste. Queres vir para as aulas a cair de sono? - Pensando assim, até parece que tens razão, mas gostava mesmo de ficar. Quase não tive tempo nenhum contigo – Amuei tentando que ela percebesse a minha situação - Pode ser? - Desde que não te cause problemas de mais...
- Adoro-te - Disse com um à vontade supremo, que parecia encher o quarto de alegria e intimidade. - Já somos dois. Desde o primeiro momento, acredita. - Não tenho dúvidas. Queres ir sair? - Perguntou esticando-me a mão para que eu a agarra-se, prontos a sair dali para um lugar divino e onde pudéssemos estar sozinhos. - O que é uma gargula? O que é que vocês são? Ambos paramos. Ela baixou a mão e sentou-se no colchão, onde ficou demasiado rígida a olhar-me com ar incrédulo. - Porque perguntas isso agora? É assim tão importante? - Gostava Apenas de saber com o que lido. Afinal eu namoro com uma gargula... – Revirei os olhos e sorri. - Queres que comece por onde? - Pelo início. Mas passa a parte histórica, quero dizer, se tiveres a tua própria história conta-me. - Isto vai demorar. Vais chegar tarde. Fica para amanhã. Não queria mesmo que ela deixasse aquilo a meio. Então, pousei o meu queixo na sua cabeça e abracei-a de modo protector, tentando assemelhar a minha força à dela. - Se insistir ficas zangada? Gostava mesmo que contasses. Afastou-me e fitou-me como se eu fosse uma boneca de porcelana. Reflecti durante segundos o gesto e percebi que iria dizer-me algo. Teria de revelar. - Não, mas não irei dizer nada. Amanhã chegas à escola e dormes nas aulas. Já sei como é... Eu sei o que acontece sempre que isso acontece, e não é por experiência própria – Disse com gentileza. Depois tornou-se mais dura e agressiva. - Não posso mesmo contar hoje. MIRIAM! A figura mágica da minha nova "amiga" apareceu no corredor à entrada do quarto, mesmo ao lado das escadas que estavam mesmo por trás de nós. - Podes levá-lo – Disse quase de imediato quando chegou à nossa beira. - Obrigado. Virei cedo para irmos. Miriam olhou-a e ela sorrindo-lhe, saiu de casa, ficando à minha espera na porta. Quando sai, um Ford Mustang prateado, tipo jipe, estava parado dentro de uma pequena brecha entre aquela casa e outra, a cair de podre, com trepadeiras e bocados de cimento a degradarem-se em tons de verde musgo. - UAU! É...Teu? - Perguntei, com grande surpresa e satisfação.
- É da Miriam. Posso levá-lo durante horas que ela não se importa, desde que, claro, lhe encha o depósito. - Que bestial! É de quantos lugares? É enorme...Para aí uns nove? - Sete – Corrigiu - E dá para pôr atrelados. Dá muito jeito para grandes viagens – Explicou. Fiquei surpreso e curioso com a história do atrelado. - Vais para muito longe em viagens? - Já fui a quase todos os sítios... Brasil, Venezuela, Austrália, Antártida. Andei pelos Pirinéus, Himalaias, Hawaí, entre outros... muitos outros. - Quanto tempo demoras até lá? - Queria que me revelasse algo sobre ser gargula. Poderia ir a vários lugares sem se cansar muito, achava eu. - Considera a hipótese de eu te começar a dizer algo do que faço... Qual achas que seria a tua reacção? Demorei a pensar. Talvez até mais do que deveria, pois a pergunta era fácil e directa, e pedia a mesma fórmula simples de resposta, mas eu tinha bloqueado. Não tinha culpa. Com certeza saberia a resposta mal ela desvia-se os olhos. Aquilo mexia com o meu sistema nervoso. - Se essa hipótese, como dizes, fosse possível, quereria ir contigo mas próximas viagens - Confirmei com tristeza. Ela olhou-me seriamente e levantou-me a cabeça para me fitar mais cuidadosamente. As suas mãos pareciam seda. - Porque ficas-te assim? - Só poderei saber isso amanhã não é? - Provoquei com esperança que dissesse um «Não» bem redondo. Iria ela conseguir cair na minha ratoeira? - Quem te disse que não te contava isto hoje? - Brincou com os meus pêlos dos braços, puxando-os suavemente com intenção de não magoar. - Contas? - Se te portares bem levanto um pouco o véu da questão. Ora... O que achas que uma gargula é? Tive um esfriamento só de pensar numa pessoa que me tinha olhado com tanta intensidade e força, que me congelava até o medo. - Os vampiros têm algo a ver com a tua história? - Em parte…Posso dizer que sim. Se não soubesses quem sou agora, talvez a nossa proximidade pudesse ser muito mais perigosa. Ainda pode vir a ser, consoante a nossa relação e as pessoas que nos rodeiam.
- Quais pessoas? Haverá alguém que... - Para já ainda não, mas irei ter de estar sempre junto a ti. A minha presença nesta cidade poderá influenciar a decisão de outros. - Estás em perigo? - Não me agradava que aquela situação fosse possível. Teria feito com que Sally, a rapariga que mais amava, pudesse estar a correr um perigo demasiado grande por minha causa. Seria talvez melhor deixar de falar com ela e poder entreter-me com outros amigos como... Anna. De facto poderia dizer que não estava a ser justo com uma pessoa que apenas queria ser feliz e ter alguém com quem falar. - Temos alguém que pode vir para cá e termos de fazer de tudo para que isso não suceda. O Thomas e a Miriam poderão ajudar e o Kelvin, mas em relação à minha mãe, poderá não ter tanta sorte, apesar de com outro, poder ter poder suficiente para se proteger. - De quem falas? - Ainda é cedo para que... Te possa contar. Prometo que se tiver oportunidade seguramente te direi. Agora, está mesmo na hora de ires…
Capitulo Décimo Segundo
HISTÓRIA VERÍDICA
O jipe era confortável e, parecia mesmo o Mercedes da minha mãe. Ainda que estivesse apavorado com o momento sinistro, nada temia demais porque Sally estava ali comigo, a olhar sem distracções para a escuridão que nos antecedia. Não havia maneira de fugir. Estávamos ali os dois, num carro, no meio do nada e calados. Nenhum de nós cedia. O que estaria Sally a esconder para não se abrir comigo? - Vais falar ou vamos continuar assim, calados e "amuados"? - Queixei-me com indignação. As suas mãos mexiam-se de maneira a que o volante deixava, mas ao mesmo tempo que eu falava, elas tomavam uma forma mais marcada, ainda que de maneira esforçada. Não me esquecera de que ela era muito mais frágil do que eu pensava. Na verdade só estava com uma força superior à minha quando era para me proteger. - Lembras-te do que a Jennifer te disse acerca do Kelvin, e de tudo o que tinha a ver com a família que encontrou a criança? Eu ainda sei que tu não percebes-te isso muito bem. - Tens razão. Fiquei confuso em relação a isso. - Com medo... Talvez? Não a olhei porque aquilo era uma verdade incontornável, e, se ela me compreendesse, saberia que estaria a minha amizade em causa com ela. A estrada parecia irregular. Um escuro e um cinzento claro estavam a cintilar enquanto corriam e o jipe os deixava para trás, como se eles pedissem ajuda e nos, não quiséssemos ligar. Seria essa a minha maneira de ver a nossa verdadeira situação, ou a situação de Jennifer e Kelvin? O que poderia eu fazer para conseguir integrar-me de modo amistoso num filme que me envolvia de medo? Tinha a certeza de que ela me protegeria e não podia cair na escuridão. - Quem são o Thomas e a Miriam? - Questionei-a de repente. O seu olhar era terno e muito caloroso. Era bom demais poder desfrutar de uma relação tão próxima e compreendida. - São meus irmãos. Vieram para cá quando nos conhecemos.
- Mas tu disses-te que só tinhas o Kevin... Porque não disses-te alguma coisa sobre eles também? - Perguntei a levantar uma das sobrancelhas com desconfiança. - Lembras-te quando nos conhecemos? Quando falamos pela segunda vez? Perfeitamente, e agradeço por esse momento... Sally tossiu e afastou-se no banco, fechando ainda mais os punhos no volante. O ponteiro estava a bater nos cem quilómetros por hora, nada a que não tivesse habituado, mas, ela preparava-se para mudar a velocidade para bastante mais. - Por causa deles, os Nirvan podem vir a castigar-nos por falta de conduta para com a nossa espécie. Os Nirvan são três elementos que têm poder sobre todas as famílias de gargulas. Se temos estas habilidades, muito se devem a eles. Quando me transformei... – Estava triste e com medo – Eles ajudaram-me. Um dos malditos Ridell apanhou um outro irmão meu, o Ivan. - Ele estava a invadir-lhes a aldeia – Supus com a ideia a vaguear entre a sua família e a história de Jennifer. Pelos vistos, o mito era bem real, e Jennifer não me contara tudo. Teria Sally ido a GreenTree para lhe dar uma repreensão por causa da verdade que procurava omitir? Deixei-a continuar sem mexer um segundo os meus lábios. - Ele apenas estava à procura de um caminho, quando foram atrás dele. O Ivan não gostava de alguém que o pudesse enfrentar, ou até que o pudesse enervar, e, na verdade, até o ajudaram, pois estava à procura de alimento – Entrevi com medo. A minha voz tremeu e falei muito baixo, não a encarando. - Matam humanos - Engoli em seco com o receio de estar ali. - Nada disso, e não tenhas medo. Nada faria para te assustar, ou fazer mal. Desculpa-me. E não, não nos alimentamos sequer de carne, apenas de muitas das gargulas que vês, foram humanos como eu, que adormeceram na escuridão da noite e outros em plena luz do dia. Apenas comemos uma vez por ano, o vosso ano, e apenas comemos frutos vermelhos como amoras e frutos silvestres. Mas, o Ivan não teve alternativa, e além disso já não se alimentava de carne desde a data em que foi transformado, que seria mais ou menos há quinhentos anos. Virei-me na direcção de casa fazendo sinal com a cabeça, ao tentar fugir para fora do carro. Ouvi Sally a murmurar demasiado alto atrás de mim, ainda no interior do jipe. - Não percebo o que dizes, Sally – Disse com um som de ameaça.
- Lá em casa, és mais vulnerável a todos, de seres prisioneira, para te poderes movimentar - Afirmou mordendo o lábio inferior como sinal de apreensão, dirigindo-se devagar e delicadamente a minha casa, enquanto eu abria o portão. - Claro, sem margem de dúvidas – Retorqui com um sorriso malvado. - Tenho que ter alguma liberdade. Desconheci o som radiante de Sally, apesar do que lhe dissera a tentar impor-me. O som fez com que me sentisse mais estúpido do que quando a conhecera. Entretanto, abri a porta ferrugenta, e meti o meu casaco para ainda do cabide que estava junto à mesma, do lado de dentro, olhando Sally a trancar as portas do jipe com uma chave a distância. Dei-lhe espaço para que passa-se e desimpedi o caminho, ao que ela se precipitou com um movimento de pura satisfação. - Ora, ora! - Observei com alegria e surpresa. - Tenho tempo! - Retorquiu ela - Espero não estar a incomodar. O seu olhar escuro e penetrante pousou em cada canto, e em mim, com uma concentração indecifrável. - Não, não há problema. Só não quero que fiques desapontada, e pouco tempo. Sally esboçou um rasto de sorriso. - Em relação a estar desiludida, ainda nada posso apontar, quero dizer, por fora a casa é bela. Mas em relação ao segundo ponto... Olhou-me com descontentamento. Era claro que não iria ficar por muito que desejasse. Sally poderia estar a fazer "bluff" e o meu desagrado permanecia inalterável. - E sabes que prometi estar cedo em casa – Acrescentou com o olhar na porta. Depois abanou a cabeça e saiu porta fora, voltando segundos depois com um livro muito antigo. Talvez estivesse mesmo disposta a ficar, ou não traria aquilo para dentro. A não ser que, me fosse dar uma alergia com o pó que aquilo fazia voar. - É velho – Verifiquei estupidamente, pegando com cuidado o objecto que ela tinha. Mostrava estar ansioso, como se ela fosse contar-me um conto antes de eu adormecer. - Podes confirmar – Respondeu Sally. - E o tem aí? - Interroguei olhando-a com medo ascendente, pois permanecia de pé. - Segredos e histórias – Disse, com a voz a oscilar entre o baixo e o normal.
Porém ouvi-a com bastante clareza e percebi-a. As folhas do livro enrugado na capa e mas beiras, parecia tão frágil quanto eu as imaginava. - Então e o que conta a história? - Muita coisa! - Sorriu. Era fácil para ela estar sempre alegre – Da minha família. Da minha espécie. - Boa – Entusiasmei-me - Ainda por cima conta coisas sobre a vossa espécie. Conta por favor! Apontou com o indicador para a primeira folha. - Este é o meu tetravô. É um homem... Era um homem sem igual, que tratou de todos os que aí existiram. Aí começou a nossa "existência". - Era o principal – Tentei com precaução – É muito importante para vós não é? Quis completar com ainda mais perguntas. - Sim. - Ah. Fico admirado por ainda teres isto. Fitou-me devagar, atraindo o meu ser até ela para ficar a adorá-la. - Isto foi mais um empréstimo dado. - Um belo "roubo" – A minha voz exprimia uma calorosa brincadeira – E ninguém deu conta do desaparecimento dessa preciosidade... Realmente és uma pessoa e tanto! Acenou com a cabeça, de uma maneira a brincar com a situação, remexendo no meio do livro como se procurasse alguma coisa. - Daniel, aceitarias que este álbum fosse também um álbum teu? É que tenho ainda um espaço para uma fotografia, e gostaria de a preencher. Subi de novo o olhar, extasiado. - Eu e tu então. A seguir saí dali e fui até uma gaveta junto ao telefone, que se abriu com mais força do que eu esperava, espalhando papéis por todo o lado. A minha foto apareceu e eu recuperei-a, sem ter tempo para arrumar o resto. - Acho que isto ficaria melhor contigo - Disse-lhe. Reflecti como eu gostava de olhar para a fotografia com a imagem dela lá espelhada. - Teimoso – Murmurou Sally por entre dentes. - Mas vais contar-me a história ou não? Não podia esperar mais, com os nervos de decifrar aquele mistério.
Sally olhou-me por uns segundos e não pude parar para pensar sequer em como a noite se prolongava. - Um pouco – Acabou por concordar – Penso que o meu irmão Thomas, não me olhará da mesma maneira quando souber do sucedido. Desde então, falará comigo de uma maneira estranha e distante, já o conheço! Acho que ele não voltará a deixar o livro por mãos alheias. O resto dos presentes neste livro foram alguns tios, o meu avô e mesmo no fim, apareço eu e depois os meus irmãos – Percorreu o livro a correr e chegou à penúltima página, onde ela era pequena. - Eras mesmo linda – Congratulei-a com ela a corar. Ela
ajeitou-se
um
pouco
e
recostou-se
no
sofá
onde
estávamos.
Momentaneamente fechou o livro e pousou-o, cerrando o maxilar pronta a falar. - Posso contar a história ou não? Então o que aconteceu foi que, há muito tempo... - Que idade tens agora? - Interrompi depois de ouvir o "há muito tempo". - Os mesmos que tu... - Continua então. Era só mera curiosidade – Resmunguei. - Como estava a dizer, há muito tempo eu estava a sair da escola e já era de noite. A lua mal se via, porque estava quase a chover e havia muitas nuvens. Depois de algum tempo sozinha, meti-me num beco, e, pensei que me tinha dirigido ao certo, pois a minha casa ficaria após esse beco, mas não era o beco que esperava, e este não tinha saída – Demonstrou um rosto bastante triste. - Se não quiseres continuar não faz mal – Assegurei notando a sua dificuldade em voltar ao passado. - Nem pensar! Já não posso voltar atrás. Agora conto tudo. - Estou a ouvir-te – Brinquei, ainda que bastante tenso pelo que viria aí. Ela tomou nova coragem e inspirou, agarrando os joelhos com firmeza e grande força. - Eu era jovem e um pouco tímida, apesar de ter bastantes rapazes interessados em mim. Era bastante atraente, até para mim, quando olhava o espelho. Devia pensar ser a rainha da escola, pois nenhuma das outras raparigas tinha o meu estilo e, algumas até tinham inveja... Olhei-a com grande confiança e orgulho. Se antes era linda, agora deveria ser bem mais. Haveria agora alguém com inveja, ainda?
Miriam era simpática, mas deveria ter tanta inveja como as amigas que ela tivera no passado... Ou estaria enganado? Pensava que não. - O beco era escuro e decidi sair dali, mas, alguém se moveu e, atrás, dos lados e à frente apareceram homens e rapazes loucos para me terem – Estava envergonhada, mas mesmo assim quis continuar - E eu assustei-me imenso. Logo desatei a fugir para trás e consegui-me esconder atrás de um caixote ali ao pé, mas eles encontraram-me. Usavam capuchos negros e alguns deles tinham tatuagens estranhas, que pareciam morcegos curvados sobre si. Depois pegaram em mim e puxaram-me para dentro de uma das portas de ferro que estavam junto à parede, quase omitidas de olhos humanos. Na verdade, os tijolos da porta eram os mesmos da parede circundante, e assim ninguém dava de conta. Lá dentro, era tudo medieval, com espadas e escudos, e, após um dos homens, de cabelo curto e claro, olhos de serpente e uns braços fortes, me ter empurrado abruptamente para o meio do pátio aclarado apenas por tochas, vi um trono. - Um trono? Um trono de rei? Quem eram eles afinal? - Perguntei com o sangue a fervilhar-me nas veias. Nesse momento Sally agitou-se como se estivesse acabado de sentir um calafrio. O clima tinha ficado gelado desde que ela começara a contar a verídica história, e por isso, fui ver se estava alguma coisa aberta, mas não era esse o caso. O frio teria sido provocado pelo nosso medo e angústia. Ao menos ela ainda ali estava, e ao meu lado. - Lembro-me como se fosse hoje, o que ele falou... – Reflectiu com o olhar pregado ao chão, olhando em frente com os olhos bem abertos e vermelhos de sangue. - Chamava-se Raüs e era o mais poderoso. Ao lado apareceram os outros dois, Lexis e um, que penso ter sido o irmão dele, e o mais razoável a níveis de violência. Os três riam-se – Aí contraiu-se e afastou-se de mim, e eu não entendia o porquê de tal acto – E fizeram-me no que sou hoje, mas não de uma maneira muito... Amigável, até porque dei bastante luta, mas em vão. Fiquei fragilizado com a sua tristeza em ter de contar tudo aquilo. Não era coisa que eu devesse ter feito, mas a curiosidade falou mais alto. - Se soubesses o quanto me arrependo em te ter obrigado a isto... A contar o que não queria...
- Fui eu! - Interrompeu pondo-me os dedos suavemente nos lábios para que não falasse mais – A tua companhia faz-me bem. Sinto-me verdadeiramente humana, a cem por cento – E sorriu.
Agora eu sabia que chegara a hora. Com ou sem habilidades, eu seria muito mais que um namorado para Sally. Teria de a proteger com a minha própria vida, e isso não mudaria nada, porque sabia que se fosse possível alguma coisa, apenas seria que o nosso futuro fosse eterno, para ambos.
Capitulo Décimo terceiro
O ELO MAIS FRACO
Sabia que o assunto poderia estar arrumado a níveis de conhecimento para mim. De entre tanto que eu poderia pensar ou querer, parecia não existir nada no meu mundo que me obrigasse a esforçar a querer tanto como Sally no meu presente. Por vezes, fixava o olhar no tecto, e outras vezes olhava em direcção à janela, vendo a chuva que entretanto começara a cair, como se quisesse deter-me dentro de casa, naquele manto de negrume da noite fria e solitária. - Gostas de que tipo de comida dentro da tua "dieta"? - Perguntei. - A comida não é o importante para mim neste momento, muito melhor seria que deixasses de pensar no que te passei através da minha história, ok? - As alfaces e as frutas são frescas! - Já alguém te disse que és um pouco, chatinho? - Questionou com alguma hesitação, não pretendendo insultar ou incomodar-me, porque eu estaria em estado de choque, supostamente. - Então? A sua expressão era de alívio e não mais se alterou. - Então que tenho de ir andando... – Fez uma careta – Não posso adiar mais a minha ida, e tenho de resolver isto o mais rápido possível, enquanto ainda é tempo. - Penso que estejas a pensar em ir a outro sítio – Tentei. Olhou uma vez para mim e os minutos passavam a velocidade da luz. - Tentas-te – Acabou por concluir. Ajeitou o cabelo e esticou-o, parecendo transformar-se num anjo durante alguns instantes. O que quer que tivesse a pensar, reflectia num espaço interminável entre nós, que me deu um nó no peito, estando eu tão envolvido quanto ela. A sua morte, sem margem para dúvidas tinha "agarrado" a ela algo que eu não entendera. Era algo que certamente me faria tremer quando ela contasse. A voz suave irrompeu nas sombras do suspense. - Desculpa, sei que tens de dormir. - Não há problema algum, mesmo. Eu quero que fiques.
Riu-se, soltando uma gargalhada que eu conseguia prever o que estaria para acontecer. - Alguma coisa que me queiras dizer, a mais? Soltei um ruído idêntico a quem desiste com o cansaço. - Não sei ao certo... Ela falou abertamente. - Amanhã falamos melhor... E depois desapareceu como se fosse um fantasma. Ela era tão rápida! Como não tinha ninguém em casa, como era habitual, decidi apenas que tomaria algo leve e em seguida iria para o compartimento mais feliz da casa - o quarto - aquele que me transformava os dias mágicos que vivia quando estava com Sally, em puros momentos reais, cheios de pensamentos e memórias. Nunca tinha tempo para comparar a minha vida com a de Katerown, onde o sol iluminava até os dias mais sinuosos de tristeza e preocupação. Saberia de antecedência que, após uma noite, ou parte dela, tão especial, iria custar-me adormecer, a recordar todos os segundos que vivera. Optei por pegar num livro que estava a ler, sem grande entusiasmo, e sentei-me na cama, estando vestido com a mesma roupa que tinha até ali. Teria de ler apenas um capítulo para conseguir adormecer, tal era a extensão do capítulo, basicamente cerca de vinte e nove páginas. Achava que o meu espírito tinha acalmado, porque com Sally ficava profundamente nervoso, e parecia que todos os meus "mecanismos" de auto-controlo tinham cedido ao tempo, o próprio, apagado e silencioso, onde apenas a chuva irrompia por pequenos murmúrios lá fora, como se quisesses dizer-me algo que eu não entendia. Teria Sally ido mesmo embora? Propus-me a desvendar a minha curiosidade e abri a porta, retraindo-me e arrependendo-me com o susto de tanta chuva e trovoada, ali tão perto. Teria obrigatoriamente de pensar sobre tudo o que ela me tinha contado, mas ainda havia muitas dúvidas a desvendar. Sendo Kelvin um rapaz tão vulgar, porque poderia eu achar o seu comportamento agressivo, se a única coisa que quisera fora salvar-me de um inimigo que iria esmagar-me? - Amanhã irei falar com o Kelvin e com a Jennifer - Pensei com indecisão incompreendida na última hipótese, pois não sabia se Sally iria deixar que eu fizesse tal coisa, com ela tão próxima de mim, mas, porque poderia eu pensar tal coisa? Não teria a
minha própria liberdade? Sally perceberia, e saberia que Jennifer não constituía um perigo tão grande. Momentos após tal pensamento, o meu telemóvel vibrou, apontando para uma mensagem acabada de chegar. Abri-a devagar e reconheci facilmente o número, não não imediatamente, porque já teria tido uma mensagem, já fazia algum tempo. Gostei de estar contigo. Apesar de ter ficado triste, não te preocupes porque sabia o que estaria a fazer, pois isto não poderia continuar. Sempre que estou contigo ponhoponhonos aos dois em perigo. Existem inimigos que conseguem captar a minha presença a mais de oitocentos metros. Poderiam facilmente apanharapanhar-me, ou a ti. Estás seguro por está noite e amanhã estamos juntos. O Thomas está a rondar a casa e se alguma coisa se aproximar da tua casa, eu mandomando-o avançar. Até amanhã. Optei por não responder, ficando a olhar o ecrã iluminado na luz trémula do candeeiro. Era mais que certo, que a paisagem não deixaria o meu raciocínio fluísse demasiado rápido para não me preocupar. Sally tinha o poder para ouvir o que pensava e por isso, não precisava de um monte de caracteres para me perceber. No entanto, escrevi algo muito sucinto acerca do assunto dos Ridell. Os Ridell são uma família de quê? São humanos humanos ou são míticos? Não vejo no Kelvin algum tipo de ameaça. Olhei ansioso o telemóvel, esperando que ele vibrasse, mas nada deu, a não ser o sinal de falta de bateria, ficando todo negro momentos após o aparecimento do mesmo. Optei por deixar a curiosidade e uma boa ou mesmo melhor explicação para o dia seguinte, na escola, querendo dormir sem forçar para que os meus olhos lutassem. Podia ter a certeza que Sally já estaria à minha espera à porta de casa, e, desta vez afligime. Os meus padrinhos estavam em casa, e eu esquecera-me de avisá-los da presença de Sally, por isso, vesti-me à pressa e desci as escadas, vendo-os calmamente a tomarem o pequeno-almoço, com o meu lugar na mesa, ainda vazio. Mal falavam, e quando eu me apresentei, bati violentamente com os pés no chão, e eles olharam-me irrequietos. - Não fiques constrangido – Disse o meu padrinho calmamente - Se fizemos muito barulho perdoa-nos. Não demos de conta que já estavas acordado.
Logo de seguida, um barulho de um motor de carro soou muito perto, fazendo entrar o som por todas as janelas que permaneciam abertas. - A tua amiga vem-te buscar? - Perguntou ele. Tentei pensar em arranjar uma boa mentira para não revelar que Sally estava mesmo ali. Quando peguei na maçã que permanecia no certo a meio da mesa, está escorregou-me e ambos notaram o meu nervosismo. - Com pressa para sair? - Brincou a minha madrinha sabendo o que se passaria. Afinal ela tinha a intuição feminina com ela. Era normal. - Talvez, mas nota-se tanto? Nada pude dizer com mais sentido, denunciando-me. Levantei depressa a mochila presa na cadeira e o casaco negro de couro fino, para o vestir rapidamente. - Ela é tua amiga e não nos contas nada... – Estava desconfiado o meu padrinho, de que aquilo fosse mais que amizade. Ele sentia uma ligação estranha nos meus olhos que tremiam. - Boa sorte Daniel – Exclamou quando eu me afastei para abrir a porta, ainda fechada à chave. Tentei o mais possível não fazer nenhuma expressão de desespero, porque estava desesperado para sair dali. Abri a porta, com esta a arrastar-se e a arranhar o chão castanho de tijoleira nova, e, em segundos apenas conseguia deslumbrar a pessoa que estava dentro do jipe, no meio de um nevoeiro cerrado, que, apenas me deu possibilidade de ver ao chegar ao pé da viatura alta. - Sally!? - Quase gritei de indignação. Um sorriso veio na minha direcção, demasiado atrevido. - Diz... – Falou ela. Eu olhei rapidamente para trás, alcançando de seguida a porta do lado do passageiro, à frente, para onde entrei sem se notar a porta fechar. O rosto dela permanecia intocável. - Então? - Interroguei querendo tentar manter uma postura firme, no meu ser trémulo, por a ter ali, tão bela. - Não sabia. Trincou um dos lábios a pensar na besteira cometida. - Espera apenas um bocado para que te possa dar um excerto de porrada! Tomou uma postura à vontade, comigo a ficar paralisado por saber o que estaria a querer com aquela minha atitude tão assustadora que estava a comportar-se educadamente. Inquietei-me no banco ao lado do seu.
- Os Ridell há muito que não são normais – Ousou dizer entre dentes. - O que disses-te? Falas-te dos Ridell ou foi só impressão minha? - Perguntei com curiosidade. Ela semicerrou os olhos e olhou-me furiosamente. - Não posso compreender o que se passa. Se aqueles duendes não se puserem a abrandar a marcha, teremos de actuar... E tu não podes estar metida no meio deste assunto – Afligiu-se. - O que queres dizer com isso? Estás a chamar-me de fraco, é? - Não é o que pensas. Apenas te achamos como se fosses... O elo mais fraco. Enervei-me e decidi que iria ficar sem lhe falar mais, pronto para seguir até à escola a pé. Como poderia eu estar ao lado de um ser tão único e sensível, quando por vezes ele era frio como pedra? A noite anterior tinha corrido bem, até bem demais, o que me remetia apenas para um sonho. - Como conseguis-te chegar ontem a casa depois de teres saído de lá debaixo de toda aquela chuva? Ela ficou a olhar-me com admiração. - De lá? E chuva? Mas eu não apanhei... Espera lá! De que é que estás a falar? - Pensava que tinhas estado lá em casa – A minha ideia tinha contornos certos. Teria sonhado com aquilo. - Apenas fui a tua casa para te levar, e não estava a chover. Viste um álbum da minha família e depois fui embora – Explicou. - De noite? - Estava cinzento o tempo, mas ainda era de dia, lá para as sete da tarde. Quis voltar ao assunto dos Ridell, mas pareceu-me que ela não estava interessada em falar daquilo. Seria? Depois optei por tentar.
- Vocês andam zangados com algo que aconteceu há tanto tempo? - Olhei-a tentando focar-me nos seus olhos rígidos e bastante escuros, em comparação ao azul vivo que era habitual - O que é um elo mais fraco para a vossa espécie? - Insisti. - Não é nada contra ti, a sério, não te preocupes. Nós sabemos o que fazemos. - Como não me hei de preocupar? - Perguntei com extrema dureza - Sally, tu podes estar a correr demasiado risco e muito perigo.
E se eles vos quiserem fazer mal de novo, caçando outro da vossa família, por exemplo, e depois... - Nós somos mais e mais fortes - Assegurou a resmungar, começando a encostar o jipe para estacionar - Não vai acontecer nada. Eles apenas gostam de implicar, também faz parte do esquema deles. - Sally! - Gritei. - O que foi que fiz agora? Estou só a aclarar-te os olhos. O meu pensamento foi dividido entre ela e Jennifer, a minha amiga misteriosa. - Como é possível que... sejas assim? Tu sabes que pode não ser assim Sally! A conversa provocava-me dores de cabeça. Ela calou-se e ficou quieta. - O que posso eu fazer mais? - Retorqui. Um arco-íris mostrou tímidos prismas de algumas claridades de várias cores. Logo pude ver a expressão demasiado ofendida dela. - Talvez... Pudesses não te envolveu tanto – Pediu. Eu não acreditava no que ouvia, e agora nem sabia como me podia dirigir a ela para responder-lhe. - Como Queres que me afaste? Já sei o teu segredo e tu disses-te que confiavas plenamente em mim. Se estás em perigo ou seja lá o que for, eu também, porque estamos juntos nisto! Sentia que seguia sozinho naquela carruagem, em que a tempestade se avizinhava. Poderia vir a afundar-me numa escuridão sem fim, em que eu cairia e nunca encontraria chão. Depois ela pousou a mão na minha e ficamos a olhar-nos eternamente até eu estremecer bom o retornar à realidade. - Estás pronto? Agora as aulas esperam-nos!
Capítulo Décimo Quarto
OS NIRVAN
Desta vez quase não havia gente à porta da escola. Umas duas pessoas no máximo apareciam e vi-as ir para dentro das grandes portas castanhas e velhas, parecendo estarem a fugir de nós. Não nos olharam, mas quando chegamos perto de alguém, todos iam para as aulas. - O que se passa? - Perguntei com aflição ao olhar para Sally, mas ela nada dizia e continuou a andar. - Lembraste de eu te falar que a vossa espécie pode ser outras habilidades? - Sim, e o que tem isso? - Neste momento... – Pareceu tentar concentrar-se – Alguém está a controlar esta gente toda. Tem um poder enorme! Olhei-a assustado. Propus esconder-me atrás do seu corpo esguio e bastante elegante. - E essa pessoa está aqui? - Perguntei olhando todos os cantos. - Para já, aqui estamos seguros. Eles nunca se aproximam demais de humanos ou lugares públicos, com a vossa espécie. Mas neste caso não estão à procura de ti ou de algum de nós, mas sim de outra pessoa que não consigo identificar. Querem aniquilá-la e pensam como o hão de fazer. É horroroso. Tentei não pensar muito no assunto, mas havia algo que me incomodava. Após isso pus-me à frente dela e ela parou. - Já disseste que consegues saber o que nós pensamos, mas, e os "outros", como o fazes? Ela sorriu com alguma ironia. - Faço-o muitas vezes, e até estou a fazê-lo agora. Sei que a pessoa em questão tem poder, mas não sinto a sua presença nestes ou outros corredores. Consigo saber melhor os pensamentos dos da minha espécie do que os pensamentos dos humanos que por vezes falham. Aqui sei que está uma gargula nos corredores, ou um vampiro, e que não está propriamente sozinho. - Os Nirvan? - Perguntei completamente apavorado – Só podem ser eles!
- Ou algum dos outros vampiros. Não sei se será possível podermos sair em segurança dali. Vou tentar que o Thomas ou Miriam te possam vir buscar e levar-te para um local seguro. - Não! - Gritei com a adrenalina a correr-me no coração e em todo o corpo que nesse momento se arrepiava. Sabia que era perigoso, mas até não era mau de todo - Não te vou abandonar! - Não te deixo ficar aqui! É demasiado arriscado. Queres morrer e queres que eu não cumpra a minha promessa de te proteger? Sorri-lhe porque sabia o que pensava a seguir àquela frase. - Era mesmo isso que estava a pensar: também te vou proteger... – Disse com a voz mais do que segura. - Ah... Não conseguirias! - Brincou ao olhar-me gravemente. Era notável a sua revolta e o poder do seu sorriso fazia-me sentir ainda mais tonto e fora de mim. Agarroume a mão e encaminhou-me à porta da sala, virando-me costas e olhando para ambos os lados do corredor. Tinha um sentido de protecção patente no seu rosto divino. - Entra – Ousou murmurar. - Não vou a lado nenhum sem ti - Avisei ao agarrar-lhe o braço, quase chegando à mão fria e fechada. A porta abriu-se e eu fui projectado para o seu interior, com a minha turma toda a olhar para mim. Não podia ser... Mais uma vez eu ficava fora de um assunto que Sally queria verme afastado. Não consegui falar, nem sequer mexer um pé, mas reparei num olhar demasiado carregado, ao fundo da sala, com uma sombra obscura sobre a face e uma feição de assassino. - Ora, o menino chama-se Daniel Foller, não é? Olhei de repente para a mesa demasiado alta à minha frente, com uma mulher de tacões altos e um vestido verde com flores azuis, extravagante e bastante comprido para os braços finos que apresentava. Era a professora de línguas e permanecia atenta ao meu comportamento bizarro ali. - Posso... Sentar-me? - Perguntei com vergonha não a encarando. Por dentro apetecia-me estar lá fora, mas a minha maior sentença encaminhada a uma aula
interminável de noventa minutos numa sala quente e totalmente abafada de gente a escreve e falar, num ruído insuportável de aguentar. - Olá – Dirigi-me a Edward que estava sentado ao lado da minha mesa vazia - O que fazes..Aqui? - Não podias ter deixado a Sally ir – Resmungou com o olhar pregado na professora. - Não podia fazer nada, ela empurrou-me – Enervei-me solenemente. A professora falou do fundo. - Esse é o Edward e vai permanecer aqui mas aulas de línguas. Veio da outra turma porque estavam já sem vagas. Edward espero que te dês bem com ele – Pediu com alguma agilidade nas palavras. - Preciso de falar contigo – Pedi com a conversa a correr da melhor forma, pelo menos a começar bem. - Tudo bem mas agora não posso porque tenho assuntos para acabar em minha casa. Talvez amanhã, eu vou estar por aqui a acabar trabalhos. - O que é que os Nirvan querem daqui? - Perguntei sem lhe dar tempo para começar a escrever. A cadeira foi arrastada, provocando a atenção de todos os presentes, que o olharam sem expressão patente. A professora não prestou muita atenção e quase lhe lançou um olhar meigo, para continuar a falar. - Como sabes dos Nirvan? Não é suposto tu saberes de nada disto... - Mas sei, e quero a verdade. Anda por aí algum deles, a rondar a escola e eu não quero que aconteça nada à Sally. Sabes onde estará a Jennifer? Preciso de me encontrar com ela também. Prefiro ajudar e morrer, do que vê-las a desfazerem-se em almas do outro mundo reais. - Podes fazer-me um favor? - Pediu a segredar. - Sim, podes pedir. Se for para ajudar eu faço. Ele olhou a janela e o meu caderno de capa dura uma vez. Depois atirou-o contra a janela e um estrondo fez-se ouvir e sentir, com o vidro a estatelar-se por toda a parte. Todos correram para ver o que se passaria, nomeadamente, "lá fora", e, rapidamente saímos dali, sem que ninguém nos visse, tal foi a rapidez de Edward. Seguimos para o lado direito, para onde ficava a porta principal, correndo ele ao meu lado sem falar mas com algum esforço para acompanhar a minha lentidão.
- O que foi aquilo? Porque fizeste aquilo? - Temos de sair daqui, tenho que te pôr em segurança. - Eu sei... – Parei para me acalmar – Proteger-me. Ele riu-se e contraiu os braços. Notei que não estava contente com algo sem ser aquele problema. - Não é isso que a Sally pensa. E eu sei o que faço. Mas se quiseres ficar aqui tudo bem, eu não irei ficar à espera de te ver morrer, por isso, vou agir. Tal como não quero que a Bella se magoe, também não quero que algo te possa acontecer. Sentiria-me culpado comigo próprio, até porque Sally...é minha amiga. - Não há outra maneira de contornar isto sem precisarem de lutar ou serem violentos? Edward fez um esgar, com o rosto a contorcer-se no pálido que mostrava. Parecia um cadáver demasiado...vivo para estar ali. - A nossa natureza é assim Daniel. Eu não sou muito pela violência, mas, se um vampiro não se pode render aos seus inimigos, quem poderá então? Nem a nossa rapidez nos salva. Não há saída para ninguém. Senti o tempo passar por nós, embora de maneira mais lenta do que se fosse eu a percorrer os caminhos da escola, por entre salas, e longas portas que nos faziam estar a percorrer um género de labirinto, talvez para ganhar tempo. No entanto sentia-me quase abençoado por Edward me estar a ajudar, permanecendo ao meu lado, ou a minha frente com a intuição e a coragem necessárias para que nada nos acontecesse. Era um anjo ali, rente a mim, um ser que se alimentava de sangue, sem ter vontade alguma, ou até talvez sim, de ser o meu sangue para alimentar-se. Realmente o momento era angustiante e eu sabia-o pelo ar de frustração dele. - Ouve o que te vou dizer com atenção, se queres que tudo corra bem – Fitou-me com simpatia e falou devagar - À tua frente há uma porta. O que terás de fazer é sair e atirar-te para o chão, como se estivesses morto. Neste caso, o Raüs, um dos Nirvan, está lá fora a patrulhar o local, e quando te vir irá ter contigo. Quando vires que isso sucede, deixa de respirar completamente e ele pensará que estás mesmo morto, pois a sua visão é turva e fraca. Ele guia-se pelo cheiro, e como tens um cheiro idêntico ao meu, nada te fará. - E se ele... – Estava assustadíssimo com a ideia de me salvar assim.
O vampiro que tanto temera sabia como me devia portar e estava disposto a ajudar. Não o iria deixar mal, pois quem poderia perder com isso era eu. Mas, onde estaria Sally. - Edward? - Chamei com algum receio, mas ele fitou-me com preocupação – Obrigado. A seguir ele virou uma esquina e deixei de ouvir barulho. Não sabia de onde viera ou para onde iria mas mais uma vez iria salvar-me a vida quando... Sally me chamou de longe, do outro lado do corredor. Tinha Jennifer ao seu lado, completamente fantástica, tal como ela, que foram pelo mesmo lado de Edward. Estava sozinho. Depois ouvi um estrondo e ouvi vidros a partir. Vinha do lado de Edward e iria jurar que ouvirá rugidos de fúria para lá da parede. Tentei concentrar-me no meu destino e na minha missão – Salvar-me. Saí e caí pelas escadas, ficando estatelado no chão com um golpe no braço não previsto. Não era aquilo que planeara, e Edward não falara em sangue à beira de gargulas. O que iria Raüs fazer ao chegar perto de mim? Iria pôr àquilo mais credibilidade ou iria condenar-me? Mas nada sucedeu. O homem, já com alguma idade, veio de facto até à minha beira e olhou em volta, à procura de talvez ter caído num truque. Tinha uns olhos carregados de sombras, e tinha uma cor numa mistura de sangue com ocre, que lhe fazia ter uns lasers a olharem-me fixamente. Não tive medo ao início e não me movi. Se continuasse assim tudo acabaria da melhor maneira, mas, estaria o cheiro a contribuir para o afastamento dele, ou se ele me detectasse não iria controlar-se, como um vampiro? Quem me dera não estar ali. O braço estava inchado e eu, num momento de distracção mudei ligeiramente a posição, escondendo o braço para baixo do corpo, e tentei assim diminuir o tempo para ele se ir embora.
O céu tinha escurecido e as formas das nuvens formavam castelos de formas negras e que, ao chocarem, estariam a avisar-me para um confronto eminente. Sucedeu.
Senti o cheiro de Sally a aproximar-se, mas não via nada. Ouvia, os mesmos rugidos, cada vez mais próximos, e, depois de um breve momento, observei uma figura humana a sair pela janela, projectado e desamparado. - Que fazes? - Perguntou o desconhecido a sangrar dos lábios. Não era o suficiente para me fazer desmaiar, mas dava-me enjoos. - Desapareçam – Gritou Edward ao aparecer de relance ao meu lado – Estás bem? - Murmurou. - O Raüs... – Disse como aviso. - Já se foi! Estás a salvo – Retorquiu ao endireitar-se para verificar o espaço. Afligi-me ao não ver Sally e o resto dos meus colegas. - Onde estão todos? Espera, queres dizer que elas... - Não! - Não o quê? - Olhei-o vagarosamente, reparando em tudo. - Está tudo bem. Agora temos de ir cuidar dessa ferida. Vou-te levar ao Carlisle, ele faz-te o curativo adequado a isso. Não podia crer. Eu a ser curado por Carlisle Cullen, pai daquele vampiro "gentil"? Teria Edward a ideia de me transformar em vampiro agora? Formei uma face carrancuda e afastei-me dele, ao que ele me olhou surpreendido. - Sentes-te mal? - Perguntou tentando tocar-me. Parecia incrível ele não saber o que eu pensava. Estaria a mentir ou era mesmo verdade de que não conseguia saber nada? - Tu não consegues saber o que eu... - Penso? - Riu-se – Com sangue humano não posso saber os pensamentos humanos, mas só com sangue. Fico com sede e depois tenho de me controlar – Explicou. Queria esperar mesmo por Sally e Anna. Não sabia quanto mais tempo estaria tão calmo ao lado de um vampiro. No fundo sabia que era mais forte do que eu querer tanto estar ali, com ele, como pôr-me a salto, pois tinha a certeza absoluta que quando saísse dali o sonho acabaria.
Capitulo Décimo Quinto
CAÇADORES E CAÇADOS
Não parecia que o nosso caminho fosse impedido por alguém que aparecesse. Mostrava ser sinistro e vazio, quase como um bosque sem vida, a parecer. Edward e Sally caminhavam a par, comigo empoleirado no braço de ambos. Não andavam, corriam, e corriam mais rápido que uma chita, quase duas vezes mais rápido que o próprio vento. Porém a velocidade era tão acumulada, que eu teria de querer morrer para me largar dali. Para onde me levariam? Eu não queria que me deixassem em algum lugar abandonado. - Vão-me abandonar durante quanto tempo? - Perguntei amedrontado com aquela impressão. - Nem um segundo – Mencionou claramente Sally, fazendo-me acreditar com a minha inocência que me levava tantas vezes a fazer figura de estúpido. Num ápice, vi de novo casas, brancas e vazias por fora, que me remetiam até à minha rua, mas, num desvio claro, vi claramente que não era ali o nosso destino. Olhava sufocadamente o tempo frio e cortante que me fazia encolher sobre a roupa, com toda a rajada de vento a trespassar-me a pele. Não havia vida, carros ou pessoas, e a manhã transformava a claridade num segundo de pura insatisfação. Poderiam eles conseguir livrar-se dos Nirvan sem que algum acabasse em agonia de sangue e guerra? Após estes momentos percebi que Sally me olhava, demasiado ansiosa para me falar algo, que na companhia de Edward não podia. Ele percebeu, parando de repente e seguindo por um atalho oposto ao nosso. Tão rápido como tinha aparecido, estava ausente. Mas o comportamento dele entendia-se. - Temos de nos preparar. Vamos falar com a minha mãe! Ela vai saber dizer-nos como lidar com os Nirvan. Eu, o Thomas e Miriam, juntamente com a minha mãe, iremos manter-te longe do perigo. Não podemos correr riscos de seres exposto a que eles te queiram também fazer um de nós, apesar de seres um potencial à altura. Senti-me resfriado só de pensar que poderia ser tão belo como ela. Se Edward tinha dezassete anos e eu uma idade idêntica, permaneceria assim para sempre? Ou poderia ser jovem e atlético, imune à dor e duramente assustador – Esta
parte não me agradava, mas à beira com todos os pontos demasiado promissores, sentiame normal 2o pensar nisso. A minha vida estava num turbilhão de coisas e sabia que não tinha solução senão despedir-me serenamente de Jennifer, Anna e Kelvin. - O meu irmão Kevin já está preparado fisicamente para enfrentar qualquer coisa, mas vocês vão ficar por aqui, terão de ir para Katerown, uma cidade aqui perto - Disse ela quase se esquecendo da minha história. Mas não se lembrava mesmo que Katerown era a minha cidade natal, e que eu voltaria para a minha antiga vida. Iria também ficar sem ela, tristemente e obviamente. Ela olhou-me com tristeza e continuou a andar, comigo a não querer avançar mais. Se tivesse de desistir pelo que tínhamos, eu ficaria ali à procura de uma norte fraca e vulnerável. - Acho que é só um até já. Não irás desaparecer desta "vida". Se for possível eu volto para lá e ficamos a viver lá os dois. Abandono tudo e... - Não quero isto para ti! O teu lugar é junto dos da tua espécie. Se isto for o melhor eu aceito – Menti com o coração a "sangrar". Logo vi a sua casa. A linda casa que tinha quartos aconchegantes e salas enormes. Quanto tempo ficaria fora de casa? Era tão triste pensar negativo que a minha inocência e curiosidade que antes tinha sentido, tinham chegado ali, a um poço sem volta. - Iremos conseguir sobreviver ou o poder deles e tanto assim? Ela sorriu ao lembrar-se de algo. - O Lexis já não faz parte do grupo – Assegurou contente – Só temos dois com que nos preocupar. Fiquei perplexa extasiado a ouvir aquele horror. - Ele está... - Sim, ele está morto! - Carregou a palavra morto como aquilo fosse um triunfo fácil. Sabia que tinham quebrado a promessa que tanto tinham, de não se aproximarem instintivamente de um humano, apesar de ele ser meio de ambos, e não humano a tempo inteiro. Ouvi as palmas que ela bateu ao ver que eu estava com medo. - E há mais! - Informou com júbilo. - O que foi? - Quis saber ainda que receoso.
- Geramos uma guerra. Com o Lexis morto, vieram mais dois bem mais poderosos e que nos dão ainda mais vontade de continuar com esta, digamos, brincadeira!
Não estava a gostar daquele tom. Parecia uma personagem de um serial killer à beira de poder acabar com mais uma vítima da sua lista que está riscada e manchada de sangue inocente. - Quem...São? - Fiquei curioso e engoli com dificuldade, começando a suar abundantemente das mãos. Tinha as pernas a tremer e as costelas comprimidas aos pulmões. - Octávius e Endy Hill, da família Hill, uma extensa geração de condes e damas sangrentas e caçadores de vingança extrema - Explicou como se tivesse a contar uma história - Está noite não terá precedentes e sabemos também que eles começaram logo a procurar-nos. - Virão até aqui? - Possivelmente – Assumiu disposta a entrar em casa de rompante. - Aqui – Gritou Kevin mesmo ao nosso lado, junto a um alçapão secreto, feito com areia colada na porta que o tapava. Depois seguimo-lo e descemos um túnel escuro e que ia dar a uma sala estreita e com velas acesas, mostrando uma outra porta numa das extremidades. Miriam e Thomas estavam ali com a mãe de Sally, encostados a uma das mil estantes de livros velhos e gastos, de onde tinha vindo o álbum que ela me mostrara, e que lá permanecia meio tombado. - Estás disposta a colaborar mesmo? - Questionou ela, agarrando-me na face quente e ansiosa. Nem pensei duas vezes e disse logo que sim, não imaginando o que viria a seguir, mas mesmo assim, disse que sim. - Sei que irá ser estranho dizer-te isto mas, sei também que a tua personalidade te porá... a salvo. - Diz de uma vez - Pedi com alguma urgência acumulada na voz aguda que parecia ser a de uma rapariga, pois ela olhou-me e não percebeu aquele tom. - Terás de andar a esconder-te deles. Serás como uma presa que eles seguirão, cheios de raiva e fome – Disse, achando eu que se estava a divertir com aquela situação. - Mas tu queres que eu morra ou quê? Nem penses...
- Então quando eles vierem cá, irás ser o primeiro a ser aniquilado – Respondeu com prontidão e ironia, com os olhos ardentes a verem todos os meus reflexos, pensamentos, ou qualquer outra coisa. Iria ceder para me afastar de tudo o que mais queria, e mesmo assim, não estava longe de um perigo ainda maior: a minha própria morte. - Não brinques – Pedi com grande monotonismo mas palavras. Queria realmente um pouco de acção, mas assim não. Depois da tal discussão acalmei e olhei para Miriam e Thomas, que nos esperavam com um ar cansado. De certeza que tinham de ter algum tempo para pensarem um bom plano, prontos a fugir, ou não. - Teremos de os tentar afastar daqui. Se eu for com o Daniel, eles virão atrás de nós, e como são mais, mais hipóteses temos de conseguirmos engendrar um meio ataque - Dizia a mãe de Sally. - Eu arrisco - Gritou Miriam pondo-se a meu lado. - Nem pensar! - Reclamou Sally – Não podemos pensar em expormo-nos assim. - Podemos tentar, o importante é não deixá-lo em perigo – Concordou Thomas pondo-se também do meu lado. Sally estava furiosa e puxou-me para o lado dela, como se eu fosse um boneco. - Olhem! Olhem para ele e digam-me o que ele pode fazer para nos proteger... Olhei para o tecto branco da sua sala, ouvindo os pássaros cá fora. Tentei de novo não me mostrar constrangido por ser tema de discussão naquela família. Após ela falar, os seus dois irmãos avançaram em pequenos passos e ficaram a pensar. - Não há tempo para podermos discutir. Eles podem aparecer a qualquer momento, e podem vir a fazer-nos prisioneiros nas catedrais de onde saímos quando nos transformaram – Pensavam com grande concentração. Estavam cabisbaixos e com os braços mais rígidos que pedra ao sol. Saímos a correr, direitos a uma carrinha negra, como se fosse um cofre-forte para não se poder vandalizar, e com uma mochila demasiado grande, entrei nela, segurando um casaco que Thomas me emprestara, mas sabia que mais tarde teria algo meu. Miriam decidiu ficar por perto da minha casa, para podes dar informações a Sally, e então, Kevin ficou comigo na viatura, com a própria Sally a conduzir, desperta e atenta a qualquer movimento em volta da carrinha.
- Tudo irá acabar bem – Assegurou-me Thomas mostrando o seu blazer cinzento. No entanto, mostrava demasiada segurança, como se soubesse que eu não aguentaria sequer dois dias longe dali. - Sabes que és importante para mim não sabes? - Perguntou Sally a olhar profundamente o espelho retrovisor da carrinha, onde o meu rosto aparecia. Tanta era a força do olhar que o meio do espelho rachou. Soubemos que Levard, o irmão do falecido Lexis, tinha na nossa direcção, seguindo pelo atalho da floresta. Traria com ele os dois elementos que mais rapidamente revistavam o terreno, como se fosse tudo conhecido. - Não demorarão – Pensou alto Kevin a olhar para o lugar de Sally. Eu sentia tensão entre os três e sabia que estavam com Algum receio. Tal como eu, num grau mais elevado claro. - Deixemo-lo no outro lugar - Fez a proposta Sally, pensando em algum sítio, talvez, e profundamente secreto para mim, pois eu não o conhecia. Mudaram de rumo mais rapidamente de que eu desejava, comigo a desequilibrarme nas inúmeras curvas, numa estrada feita à "postreori", em terra e delimitada por um trilho junto a curtas escarpas muito aguçadas. A morte, mais uma vez estava eminente. Havia uma entrada negra e escura, longe de tudo, no meio do vazio, onde ninguém podia viver. Via vegetação, mas o calor era demasiado, e apenas se sabia que era dia pela claridade vista ao longe, sobre terra árida e algumas árvores secas, que provocavam as sombras rasteiras das mesmas. - Eles chegaram – Concluiu Sally, pronta a atacar. Assustei-me e comecei a tremer, mas eles pegaram em mim e fecharam-me num túnel de catacumbas muito abaixo do solo, com imagens de sangue e outras dirigidas a uma histórias que eu tentava descobrir. Conseguia ouvi-los falar quando os outros chegaram. - Onde está ela? - Perguntou uma voz horrível. Era a mistura de rouco com velhice. Ecoava nos meus ouvidos e eu recuei com a percepção de estar demasiado perto. - Não te preocupes. Eu protejo-te – Dizia Sally através do pensamento, chegando até mim por entre as paredes lisas e escuras, com grades aqui e ali, e pedra por vezes a aparecer. Aquele local tinha sinais de vítimas sangrentas no tempo. Talvez, no início, certamente.
- Não iremos esperar. Diz-me onde estão e ninguém sofrerá – Aconselhou outra vez, mais delicadamente mas ligeiramente ameaçadora. - Não sabemos – Respondeu Thomas secamente. Ouvi um rugido e depois algo bateu fortemente no chão. Era Sally. Estava a queixar-se com dores e, eu queria sair. Estava desesperado para saber o que tinha acontecido, e ela não falava. - Deixa-me sair – Murmurei-lhe, e logo a porta ao fundo daquele compartimento se abriu, não saindo eu pois uma imagem horrenda, pálida e alta apareceu, o que me fez recuar de medo. Thomas e Sally estavam pendurados como pequenas coisas nas pontas dos dedos pontiagudos, daquele homem de idade incompreendida. Depois deitou-os ao chão e ajeitou a voz, pronto a dizer-me algo, e eu olhei-o com agressividade, projectandome contra ele e parando meio segundo depois, paralisado e com grandes dores no peito. - Quero... E repito apenas uma vez, quero que me digas onde ela está, a tua amiga, onde está? - Rugiu fortemente. - A quem te referes? - Perguntei por entre dentes, mal conseguindo respirar. O outro elemento avançou sobre mim e mostrou o seu corpo, a princípio delgado e depois um monte de músculos. - Posso esmagar-te em menos de uma piscadela dos teus olhos, a modos que me digas o que queremos. Onde está a rapariga de aparelho? Não podia ser. Anna? Mas, porquê? Mesmo assim não dirigi palavra. Nada mesmo. Não iria entregar-lhes nada, e assim, tinha uma proposta que há muito temia. - Eu vou com vocês! - Declarei aproximando-me deles. - Não te queremos para já... Sabemos que ela, te disse coisas acerca de nós – Declarou, ficando demasiado rígido, na sua roupa escura, onde uma capa corria por cima de uma camisa com um lenço aveludado e umas calças brilhantes num tom acastanhado. Sem dúvidas que eles eram de algum estatuto bastante elevado. - Se ele não nos diz, podemos usá-lo como isco para estes virem ter connosco – Propôs o seu companheiro com grande felicidade – Será fácil – Terminou. - Pois será! E a seguir apagou-se tudo.
Capitulo Décimo Sexto
AJUDAS E VINGANÇA
Senti-me zonzo mal abri os olhos. Entrara num local escuro e demasiado distante para que soubesse onde estariam todos os outros. Ouvia vozes, a ecoarem, que vinham e iam, mais fortes e mais fracas, mas nunca constantes e de maneira a que conseguisse dialogar com elas. Entre mim e o real haveria no mínimo, um fosso de mais de mil memórias, sentidos e sonhos. Os sonhos falhavam, onde o coração mandava que desistisse de poder viver aquela aventura de doidos. Acreditei que podia salvar-me quando um súbito atordoamento me levou a outra dimensão. Nesta, já Sally e Edward estavam bem visíveis, com mais três elementos à sua frente, sangrentos e completamente satânicos, com capas e expressões de troça para com os dois. O espaço já não era negro, mas via perfeitamente uma floresta em redor, com pinheiros e árvores centenárias. - Sally! - Gritei uma vez, tentando alcança-la, mas ela fugia, assim como sucedia com Edward. Estava tão assustado quanto eles, e sobressaltei-me ao ver que os outros três avançavam sobre eles, com Edward a ser perfeitamente vulnerável a qualquer um dos seus oponentes. Não havia magia mas apenas o poder da mente no embate entre as personagens presentes, como um tabuleiro de xadrez com o rei, que indicava como sendo Sally. Edward era uma torre e iria ser retirada do jogo a qualquer instante – era uma questão de tempo. Sabia que não aguentava esperar sem lutar, sem os tentar ajudar, ao vê-los ali tão aflitos, a lutarem para me protegerem. - Foge Daniel, vai embora – Gritavam e deixavam-me quase morto de medo de nunca mais os ver. - Daniel! - Chamou alguém, e eu voltei a mim, abrindo os olhos e vendo fortes luzes por cima de mim. Não queria estar assim, a ser exposto, e voltei-me para o lado. Preciso que fiques acordado – Pediu a voz simpática. De seguida uma sombra incomodou-me. - Não – Resmunguei ainda não querendo enfrentar os monstros que me queriam matar. Curiosamente não me sentia amedrontado com aquela voz e apesar de ter medo, sentia-me estranhamente seguro.
- Sou Carlisle. Preciso que acordes para te poder examinar – Pediu com alguma insistência. Levantei-me sem prestar atenção a que estava ligado a fios, e logo me magoei. Sentia que estava a ser picado por abelhas e que elas nunca me deixariam em paz, com o ferrão dentro da minha pele. Aquilo fazia-me tanta impressão que me deitei de novo em algo bastante macio. - Calma – Aconselhou ao apontar uma luz para os olhos – Aparentemente estás fora de perigo. Não há problema...
- O que se passou? Onde me encontrou? - Perguntei continuando com os olhos fechados e a voz a falhar, de tão fraca que era. Ele não falou. Ouvi frascos ou algo de vidro a ser mexido. - Eles conseguiram encontrar-te e tirar-te de lá, mas, para isso fizeram-se prisioneiros. - E a Anna? - Sobressaltei-me ao lembrar-me das palavras do conde cheio de raiva. Ele sorriu de maneira a que eu ouvisse. Depois tossiu e ficou calado durante alguns momentos, longos momentos. Pareceu-me, mesmo que assim não o fosse. - Não a apanharam...ainda! - Disse com serenidade na voz suave. Finalmente decidi pôr-me lentamente e meio sentado com a almofada a ficar junto à minha cabeça. Consegui abrir os olhos enquanto os piscava muitas vezes, que deu para ainda observar o cabelo loiro e a pele pálida no rosto do Sr.Cullen. - Admirado? - Perguntou virando-se lentamente para mim, em cima de um banco rotativo, com os olhos brilhante e os dentes a cintilar. Queria falar de algo importante sobre os Nirvan, mas ele começou a falar antes de mim. - Foi por um triz que não aconteceu algo de pior. Se o Edward não tivesse chegado à tua beira antes de te levarem, nem sei! Os Nirvan são muito mais poderosos que nós, e nunca os deves subestimar. Quando eles se lembraram de te levar podias ter, ou sido transformado, ou eles matavam-te certamente. - Onde é que eles foram? - Perguntei para afastar aquele mau sentido da conversa, esperando uma resposta que não englobasse sangue e confrontos. - Foram a um local, tratar de um assunto urgente. Daqui a pouco sairás daqui com a Sally – Segredou – E tenta não te expores demais a eles, porque eles virão à tua procura. Não me acreditava naquilo. Mas eles nunca desistiam? O que teriam Edward e
Sally feito para eles não os seguirem? Ali estava profundamente exposto a apanharemme, ou nem por isso? Senti-me de novo cansado e deitei-me, onde tudo voltou a escurecer durante grande tempo. Quando me pareceu clarear, já via uma janela branca e velha, e estava deitado na minha cama, no meu quarto. Desta vez havia sol, não muito, mas mesmo assim sol, que me fazia arder os olhos. Voltava à realidade dos meus dias escolares, mas era fim-desemana. Olhei para o despertador e o relógio ainda marcava nove horas da manhã, demasiado cedo para um dia em que não iria fazer nada. Desci para tomar o meu pequeno-almoço e ainda estava tudo calmo, sem ninguém, e eu não gostei daquele ambiente. De repente, os meus braços gelaram quando me virei na direcção da porta, que trazia uma pequena abertura de luz, mas também uma sombra humana, parada e calada. Tentei de novo subir as escadas mas quando estava a começar a subir o primeiro degrau, a figura apareceu mesmo à minha frente e tapou-me a boca, ficando eu quieta e não podendo gritar. - Não tenhas medo, sou eu! – Apresentou-se Sally, com o rosto a surgir na penumbra da luz frouxa. No meio daquela escuridão, a cara dela, tendo um pouco de luz, estava mais branco que a própria pedra da parede, mais fria que o gelo. - Porque vieste? - Falei baixo quando ela me tirou a mão da boca e se afastou novamente. - Tens de ir ter com a Jennifer e com o Kelvin. Nós não podemos ir até lá assim sem aviso – Explicou com alguma pressa. Pensei por uns segundos, ainda meio com sono. Aquelas palavras passavam por mim como flechas que não me tocavam. O tempo parecia demasiado demorado para que eu pudesse estar a ter uma imensa conversa com pés e cabeça, e não podia querer saber mais nada, pelo menos para já. Se me dessem um dia de descanso, ainda era pouco para todo o medo que tinha tido sossegar. - Porque haveria de ir lá agora? Tenho sono e de certeza que me perderia até lá – Disse-lhe com surpresa e algum medo de não conseguir completar aquilo que ela queria. - Vai arranjar-te e eu levo-te até lá dentro. - Qual é a pressa afinal? - Resmunguei já mais atento. - Não é um problema, mas sim, mais um... pedido de colaboração – Respondeu e eu notei que lhe custava admitir que precisava de ajuda.
- E o Edward? Não te pode ajudar? - Por favor... e quanto mais, ele foi embora. Não conseguimos ter força suficiente para ter esta guerra! Se formos sozinhos, perdemos, e eu irei desaparecer ou morrer de certeza. Os Outros não terão piedade. Como um relâmpago, fez-se luz na minha cabeça e eu acordei de vez. Virei-me para o lado de cima dos quartos e comecei a subir rapidamente, mas ela agarrou-me violentamente pela mão e parou-me, quase deixando-me cair pelos dois degraus que subira. O seu alcance era demasiado longo. - Espero lá fora no jipe. Não te demores por favor. É importante chegares lá rápido – Pediu, beijando-me num segundo. Quando ele saiu apressei-me a ir para o quarto, onde apenas tinha tempo para pôr uma camisola mais fina do que aquela de lã que tinha, do pijama. Depois desci as escadas e diz grande alvoroço, pensando estar a acordar os meus padrinhos, mas nesse momento não tinha tempo para ter cuidado. Sally esperou e quando me sentei, senti as rodas grandes do jipe a rodarem no asfalto aquecido, soltando cheiro a queimado enquanto ela dava meia volta, de volta a Greentree. Não queria muito ir até ao local onde por causa da história de Jennifer, quase tinha morrido. Por outro lado, estava contente por vê-la de novo, e o meu amigo Kelvin também, que mais tarde veria com certeza. Como sempre o tempo foi curto, e quando vi as grandes árvores, o meu coração saltou de emoção. Já não estava chateado mas sim com vontade de ver toda a natureza que estava à volta de Jenny. Corri rapidamente até junto da árvore onde outrora me tinha encostado e sentado, e quando lá cheguei, observei a cascata a correr, e a árvore convidou-me a sentar-me na sua sombra fresca. - Olá! - Cumprimentou Jennifer ao aparecer de longe, vinda com um passo lento e o vento a fazer-lhe o cabelo agora mais escuro, voar. - Preciso de falar contigo. Preciso que venhas comigo para irmos com a Sally a algum lugar. Ela parou e ficou quieta a olhar para trás. Estava a captar algo que eu não ouvia. - Não posso ir contigo. A Sally não pode contar com a minha ajuda. O Kelvin também não vai – Exclamou com grande certeza, - Porque não? - Quis saber, um pouco indignado com aquilo. Se ela não vinha, Kelvin podia querer ajudar. Ela não podia negá-lo a ir. A decisão não era sua. Ele já não
aparecerá mais – Murmurou a encostar-se também à árvore, com a cara a ficar tristemente infeliz - Eles não o perdoaram. As lágrimas correram-me pelos olhos, embora não quisesse mostrá-las, mas aquilo era mais forte que eu. Por minha causa ele tinha sido morto e eu não podia provar mais disso, não agora, nunca mais.
Após ter limpado as lágrimas com as mangas da camisola, fiz uma cara séria e revoltei-me, com a pele da cara a ficar quente e vermelha. Tinha de me vingar. - Se não vens tudo bem, também não mereces o mesmo destino dele. Sozinha tratarei disto – Gritei ao voltar pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. - Daniel! - Gritou e fez-me parar e olha-la de lado – Se te quiseres vingar, vinga-te também por mim. - Com todo o prazer – Conclui a conversa com um sorriso de pura ironia – Os Nirvan nem sabiam com quem se tinham metido. Edward e a família vingarse-iam por mim, se lhes pedisse, mesmo que não gostassem muito de mim. Corri para junto de Sally e pedi-lhe o local onde estariam os Nirvan, ao que ela me olhou com medo. Ela não me conhecia tão agressivo. Mas eu queria aquilo e ela tinha de me apoiar, pois o interesse da vingança ou fosse o que fosse, partira de si. - Voltamos a minha casa – Propôs com cautela – Lá encontraremos o Edward de certeza, e, juntamente com a sua família poderemos retomar o nosso plano. Depois daremos a volta ao nosso espaço limitado e podemos ver como fazer a emboscada. Mas há um senão... Se algum deles detectar a nossa presença, terá duas hipóteses: ou esconder-se e chamar os outros, ou aniquilar algum de nós, caso esteja sozinho. Nunca te esqueças que a força deles, não sendo física, é muito superior a qualquer um de nós. Se quiserem, num segundo acabarão vitoriosos. - Chega de pensar – Disse-lhe ameaçando as mangas – Eu quero vingança! Seja de que maneira for. A ida para lá pareceu menos longa que aquela que tínhamos feito, e, dirigi-me logo à família de Sally, chamando-os à atenção da morte de Kelvin, a que todos se revoltaram. - Traremos a nossa honra e vitória connosco – Rugiu Thomas, com Miriam no seu encalço enquanto se moviam rapidamente pela floresta negra e silenciosa. Mais atrás, eu e Sally estávamos juntos, juntos e unidos para lutar, para a paixão e simplesmente naquele momento sabíamos que nada nos podia travar. Lentamente, Edward e Bella
também apareceram, estando Bella mais agressiva, quase que transformada num elemento da família. A nossa força crescia a olhos vistos, e, sabíamos que se o futuro existisse, o nosso amor não iria terminar, pois queríamos que assim fosse, e o desejo de tão forte que era, parecia incontrolável.