No Princípio

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apresentam:

Soraia Silva Zou Mi Sabrina Cunha Yara De Cunto Laura VirgĂ­nia Alexandre Nas Ana Macara


No Princípio

Documentário de Espetáculo de Dança

http://cdpdan.blogspot.com/ Organizadora Soraia Maria Silva

Editora da Pós-Graduação em Arte CDPDan / Instituto de Artes / CEN / UnB Brasília, 2010 10 Edição - Agosto / 2010


“Querida Soraia, O seu e-mail e o que ele continha a respeito de seu trabalho (do espetáculo No Princípio) constituíram apenas mais uma confirmação da impressão que, no decorrer desses longos anos de nosso contato editorial e de amizade, veio se formando em meu espírito a respeito da sua dedicação ao estudo e à prática das artes do espetáculo, sobretudo da dança. Tenho certeza de que essa realização será do maior interesse, não só para os seus criadores como demonstração de seus pontos de vista e de suas práticas, como para o público que, ao assisti-la, colherá o desfrute da contemplação estética. Fique à vontade para utilizar as palavras que lhe dirigi na publicação que você pretende fazer. Você merece por sua seriedade, amor e dedicação à prática e a transmissão das artes – que mais do que quaisquer outras coisas são a expressão e a medida do ser humano – muito mais do que as minhas pobres palavras.” Jacó Guinsburg São Paulo, junho/julho de 2010



Primeiro Dia:

“No princípio, criou Deus os céus e a terra. Disse Deus: Haja Luz; e houve luz.” (Gn 1:1,3)

“Quando danço Deus gosta de criar formas e preencher os meus espaços vazios iluminando-os de vida” Soraia Silva Bailarina criadora, diretora e produtora do No Princípio, coordenadora do CDPDan/CEN/UnB/, professora orientadora na Pós-graduação em Artes da UnB, desenvolvendo pesquisa sobre dança.



No princípio havia um grupo. Pesquisadores e perseguidores da arte da dança. O que é dançar? Para quê e como dançar na contemporaneidade? Qual o espaço teórico, prático e artístico da dança na universidade? E a pesquisa em dança? E as fronteiras entre dança, teatro, literatura, imagem, memória, novas mídias? De um caldeirão de ajuntamentos de experiências e expectativas com a dança, o CDPDan (Coletivo de Documentação e Pesquisa em Dança



E r o s Volúsia da UnB) realizou o espetáculo de dança No Princípio (http://cdpdan.blogspot.com/) com o patrocínio do FAC. O espetáculo / documentário foi apresentado nos dias 23, 24 e 25 de junho de 2010, no teatro SESC Paulo Autran, em Taguatinga. Nesse espetáculo estiveram presentes os artistas: Ana Macara (artista convidada da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa), Soraia Silva (CDPDan/ UnB/Brasília), Alexandre Nas (CDPDan/UnB/Brasília), Laura Virgínia (CDPDan/UnB/Brasília), Yara De Cunto (artista convidada/Brasília), Zou Mi (CDPDan/UnB/Brasília), Sabrina Cunha (CDPDan/UnB/Brasília). No Princípio teve como argumento o primeiro capítulo do texto bíblico de Gênesis, no qual cada dia da criação foi interpretado por um dos artistas convidados. Durante o espetáculo cada bailarino criador falou, através de seus gestos e expressões cênicas, de sua tragetória e de seu credo como artistas dedicados à linguagem da dança, tendo como pano de fundo o texto bíblico como uma metáfora ao desenvolvimento de suas carreiras na dança. Durante o espetáculo, foram realizadas duas projeções: a animação cenográfica, realizada pela artista computacional Suzete Venturelli, e as projeções de partes do memorial / documentário de cada bailarino criador sob a edição de Márcio Garapa e Jorge Pennington. O objetivo geral do projeto foi desenvolver atividades integradoras entre os artistas da dança da cidade de Brasília, os bailarinos pesquisadores do CDPDan e outros bailarinos convidados de reconhecido mérito por suas atuações. Também consideramos importante o diálogo entre o fazer artístico da dança no âmbito acadêmico, ou seja, no


ambiente da universidade com suas especificidades de produção de conhecimento e os artistas e produtores de dança independentes, visando uma aproximação dos fazeres e uma troca de experiências. A participação de cada artista convidado no espetáculo e no documentário teve o valor de um depoimento pessoal do artista na sua reflexão enquanto criador e intérprete da arte da dança. Gerir o espetáculo do ponto de vista da concepção e direção artística, como também ser atuante como bailarina criadora e produtora me pareceram tarefas complementares e fundamentais para o produto final, tanto na sua formatação cênica quanto documental. A equipe toda já havia trabalhado comigo em projetos anteriores, e esse é um fator interessante em se tratando de um projeto artístico no qual existem concepções pré-visualizadas do quadro cênico dançante a ser realizado. Nesse projeto contamos com um grau elevado de acaso da conjugação dos elementos a serem contracenados: música, memória, corpos em movimento, imagens de arquivo, animação cenográfica computacional, iluminação e figurino. Todos esses elementos se conectaram


interativamente no processo de criação. Cada bailarino pode entrar no seu universo criativo e começar a desenvolver suas idéias coreográficas, musicais e de figurino juntamente com o músico Glauco Maciel e a figurinista Flávia Amadeu, sob a minha coordenação. Foram realizadas, como preparação para os ensaios, aulas de integração do grupo, ministradas pela bailarina Lina Frazão. À música caberia a unidade narrativa das cenas, estando o processo de criação dessa diretamente vinculada ao diálogo com cada bailarino criador. Ao mesmo tempo realizava-se a captação das imagens para o documentário a ser projetado em cena, e a animação cenográfica. Essa última, assim como a edição final do documentário e a edição das imagens memoriais a serem mostradas na cena, partiram de uma concepção inicial. Para a animação cenográ-


fica: os temas dos sete dias da criação; para os documentários: o registro de fotos, cenas de dança e depoimentos de cada bailarino criador, com uma versão atualizadora do mesmo, ou seja: eles deveriam dar o seu depoimento em um ambiente que mostrasse o seu cotidiano e que, ao mesmo tempo, também remetesse, dentro do possível, à metáfora do seu dia de criação. Na segunda semana de maio realizei uma viagem a cidade de Lisboa, do dia 10 ao dia 17 de maio, com a equipe composta por mim e Márcio Garapa para a realização da etapa do documentário com a artista convidada Ana Macara, da Faculdade de Motricidade Humana em Cruz Quebrada, Portugal. Também foram realizadas trocas de experiências artísticas relacionadas à produção do espetáculo No Princípio como performances minhas com Ana em monumentos públicos da região de Lisboa, para comemorar o encontro do primeiro com o último dia. Essas imagens me pareciam importantes para o roteiro do espetáculo como um todo, o princípio e o fim como unidades de demarcação.


Também dancei a minha coreografia do primeiro dia para discussão com a Ana e o seu grupo de pesquisa. Duas perguntas foram geradas para fomentar o processo de criação dos bailarinos: 1 - quais foram as referências de movimento ou coreográficas que marcaram a sua tragetória na dança? 2 Como você percebe a metáfora do seu dia de criação no livro de Gênesis transposta para a sua própria vivência enquanto criador de movimento expressivo? Os sete dias da criação foram a inspiração para essa (re)flexão cênica na qual a partir da metáfora da gênese do mundo pudemos (re)fletir nossas danças e suas origens. Como bailarina eu trouxe como imagens para a minha


cena as experiências com Eros Volúsia (principalmente no figurino), Isadora Duncan e os Xavantes (o sexto e os adereços que uso em cena e alguns movimentos). Já o rebatedor de luz, também usado por mim em cena, foi uma referência direta ao “haja luz” do texto bíblico, à luz de Deus refletida para a criação do mundo, e ao meu desejo de aproximação da imagem filmada com a imagem da cena. Como diretora, coloquei-me no primeiro dia para ir motivando a criação do grupo. É nas trevas que resplandece a luz e o papel do diretor, do meu ponto de vista, deve conter essa luz inicial, mas que não deve ser muito forte. Mesmo quando todo o trabalho minucioso com a marcação e o registro eletrônico da iluminação foi perdido poucos minutos antes da estréia... Haja luz! E houve luz! Como produtora, preocupei-me em realizar adequadamente todas as etapas, fazer relatórios, pagamentos, cobranças... Como orientadora, penso que foi só mais uma provocação entre outras. Como expectadora gostaria de rever o espetáculo várias vezes e expectar as (re)flexões juntas de tantos seres criativos. Compartilhar esse gesto de criação com meus orientandos e companheiros de pesquisa em dança foi um processo rico e prazeroso e espero que esse registro possa gerar novos impulsos criativos.




Segundo Dia:

“Fez, pois, Deus o firmamento e separação entre as águas debaixo do firmamento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez.” (Gn 1:7)

“O ar é o Espírito e separa a água celestial da água terrena. A dança é a expressão corporal que veio do Espírito.” Zou Mi Bailarina criadora, mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes da UnB, desenvolvendo pesquisa sobre a respiração na dança chinesa.



O segundo dia da criação é a representação entre o celestial e o terreno. Ou seja, entre as águas de cima e as águas de baixo,como as nuvens e os rios. Por isso na preparação foi usado como base as diversas danças chinesas que envolvem tecidos de manga longa. Esse tipo de adereço é comum na Ópera de Pequim, que sempre foi uma inspiração não só para mim, mas para quem valoriza a dança tradicional chinesa. Quando recebi a parte da separação das águas na peça, imediatamente associei as muitas possibilidades que a roupa de manga longa poderiam trazer. O movimento do tecido pode representar em certos momentos as águas ou o vento que representa o Espírito que fez a separação. As referências bíblicas que narram


a separação das águas foram a base de todo meu trabalho. Esse texto bíblico foi muito importante como inspiração e pelo seu valor emocional que trouxe para a apresentação. Apesar de a intenção ser exatamente essa o resultado superou minhas expectativas. Exemplo claro foi o ocorrido no final de uma das apresentações em que expectadores disseram que não gostaram apenas dos movimentos mas também se sentiram tocados pelos valores que estavam por trás dos movimentos da dança a tal ponto que choraram de emoção. Outro aspecto importante do trabalho foi a música tradicional chinesa que toca durante a apresentação. Essa musica fez parte da minha infância e dos meus primeiros contatos com a dança e mais queridas memórias. A música começa com o som do vento e em um momento eu mesmo canto a melodia da música. Ouve também na minha execução da dança um profundo trabalho de respiração, assim, em cada movimento procurei manter um fluxo de ar especial muito relacionado com a intensidade em que era realizado cada tipo de movimento e tentando também acompanhar a firmeza e a suavidade em que se movia o tecido. Esse trabalho foi uma grande lição de criatividade e trabalho em equipe. Representando vários tipos diferentes de influências artísticas assim como diferentes processos de criação que me foram de lição sobre o universo da dança. O espetáculo No Princípio representou uma fusão de gêneros artísticos que me ensinou a criar e a trabalhar com variadas influências e experiências.




Terceiro Dia: “Que as águas que estão debaixo do céu se juntem num só lugar, e apareça o chão seco.” (Gn 1:9)

“O ser humano é um espaço de possibilidades entre a vida e a morte sobre a terra. A dança é expressão do ser humano nesse espaço e além.” Sabrina Cunha Bailarina criadora, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes da UnB, desenvolvendo pesquisa sobre literatura-vídeo-dança.



O processo inicial foi realizado com o diálogo com o músico Glauco, nossas conversas deram-se pessoalmente e via e-mail, abaixo transcrevo um trecho do que sugeri à ele: Música de inspiração e sugestão: Água e vinho de Egberto Gismonti. “Atenção para os primeros vinte e três segundos: som de piano e outro som metálico que para mim parece uma porta de ferro se abrindo… pode ser bem interessante citar este pedaço da música em alguns momentos repetidos. Também gosto das vozes de fundo.” Assim, compartilhei com Glauco um pouco do que estava pensando para a criação do solo do terceiro dia – terra, a partir do versículo bíblico: “Que as águas que estão debaixo do céu se ajuntem num só lugar, e apareça o chão seco” delineai o


que chamei de pontos coreográficos, que foram divididos também em sete momentos assim como os dias da criação da Gêneses e em sintonia com a proposta do trabalho: 1- A terra imóvel – apenas a presença em cena; 2 - A terra desperta - Movimentos internos no plano baixo, sem deslocamento no espaço; 3 - A terra/semente - primeira explosão de movimentos internos no mesmo local; 4 - A terra crescendo - as raízes crescendo embaixo da terra, movimentos mais aparentes externamente com mudança de plano: baixo e médio, ainda sem deslocamento no espaço; 5 - A terra rachada - Deslocamentos no espaço, explosões, seguidos de movimentos suaves; 6 - A terra/mulher em pé - plano alto sem deslocamento no espaço; 7- A terra em pé - dança com movimentos pequenos internos sem deslocamento no espaço. A luz faz a figura desaparecer aos poucos enquanto dança. No início, me propus o exercício de coreografar o solo de sete minutos para levar à cena. Durante os ensaios, percebi que o resultado estava sendo bom e que


poderia funcionar, mas ao mesmo tempo contrariava a minha crença da dança genuína, ao qual me referi à cima, continuei, afinal era um exercício de repetição e composição contínua, elementos relevantes da dança e sempre de importante contribuição para o meu interesse de pesquisadora. O tempo passou e num belo dia, ou melhor, noite de ensaio, após o retorno à casa, enquanto dormia, uma dor terrível no pulso esquerdo começou a consumir o meu ser, de modo à levar embora o sono e deixar-me a girar na cama tentando, sem sucesso, encontrar um apoio para o braço esquerdo que ao menos confortasse a dor. No dia seguinte entre as ações cotidianas, a dor comigo estava inconsolável, e na crença de que o corpo aguenta, continuei a deixar para depois, relutando e estendendo o limite do suportar. No fim do dia encontrei-me com o antebraço esquerdo imobilizado. Resultado, a coreografia que estava compondo, quase pronta, foi para o ar. A vida, como sempre, foi mais forte do que todas as representações. Voltei para o lugar onde mais me encontro na dança: a improvisação, que a partir de então assumiu um significado mais profundo - improvisar em dança significa elaborar constantemente tudo, tomar decisões, reelaborar, ransformar, prossseguir, seja como for, dar-se às pausas, respirar e. Não vejo confim entre vida e improvisação na dança. Agradeço à dançarina Soraia Maria Silva ao convite para participar deste trabalho que me proporcionou uma singular experiência de criação, levando-me à reflexão mais uma vez sobre a dança de improvisação. Durante os três dias de espetáculo pude compartilhar com o público e com os colegas dançantes, a dança que acontecia a cada noite compondo o terceiro dia dentro do trabalho.



Quarto Dia:

“Haja luzeiros no firmamento dos cèus.” (Gn 1:14)

“A dança é a luz como aspiração, um caminho, uma referência, conduzindo para a plenitude do ser humano.” Yara de Cunto Bailarina criadora convidada, participou do Ballet do IV Centenário (SP), foi diretora do grupo de dança contemporânea “Asas e Eixos”, na década de 70. Agraciada com a Ordem do Mérito Cultural em 2001.


A dança que hoje está sendo discutida requer um novo discurso para falar de si mesma e refletir sobre sua potencialidade. As práticas em dança foram renovadas, o olhar sobre o corpo em movimento propõe algo mais, ele instiga, investiga e passa a ter uma fonte renovada dividindo seu campo com outras áreas de informação como a psicologia, a antropologia, a tecnologia e outras mais. Apresentar o sentimento gerador do movimento a criação e a construção de uma certa corporeidade serão sempre desafios que a dança contemporânea tenta resolver com práticas renovadas. A proposta de sermos responsáveis pelo nosso gesto próprio, sem interferências fez com que aprofundássemos nas nossas raízes e no nosso princípio gerador d e



força, energia e aonde nossos sentimentos e sensações nos conduziriam ao contexto da cena. “Gênesis” – O princípio de tudo estava implícito na memória intelectual e na memória do gesto de cada um. Cada intérprete criador falou de sua trajetória através do seu gesto autoral tendo o texto bíblico como metáfora simbólica. No meu caso específico posso dizer que ultrapassei os limites físicos impostos por problemas de atrofias e artroses e pela idade avançada. Foi mais que um desafio, foi um novo olhar nas possibilidades que essa diversidade de corpos, formações, pensamentos, propõe trazendo dessa maneira e de uma forma viva e real um caminho para a pesquisa de como trabalhar a memória das pessoas que construíram e/ou estão construindo a dança contemporânea em Brasília. O ponto de partida para o meu processo de criação foi provocar e/ou acordar movimentos que faziam parte da minha memória corporal, trazendo a tona o emocional dessa memória e o simbólico do texto bíblico. Muito mais tempo seria necessário para que o desdobramento do trabalho no meu corpo atrofiado pudesse ser refeito. Mas foi gratificante e no meu ponto de vista serve até de interesse, como estudo, verificar como a memória corporal, a formação e a trajetória artística persistem no tempo e podem, ser ativadas e reconstruídas. O meu processo coreográfico teve como base traduzir a emoção contida na memória da minha vida e ao mesmo tempo trazer o simbólico que o capítulo da Gênesis me inspirava. O fato de usar uma espada foi uma alusão aos luzeiros indicados no versículo de Gênesis 1:14. As etapas do


trabalho foram sendo direcionadas primeiramente, e no meu caso específico, para a descoberta das possibilidades físicas, o que se deu a partir de um método de improvisação, que levou a descoberta e definição do estilo estético. Não havendo outra possibilidade de trabalho que não se desse no Plano Vertical, tentei usar o Espaço como ação integradora do movimento que eu fosse desenvolver. De certa forma, em todo o processo, fiz emergir o emocional inconsciente para então buscar uma comunicação com o corpo procurando que a predominância da crítica não interferisse no processo que se buscava. As mudanças foram pequenas e contínuas e se processaram ainda após o término do trabalho. Observei mudanças em todos os intérpretes do primeiro ao último dia o que me dá a impressão de que apenas estamos iniciando um trabalho A dança de cada um se auto definia a cada dia revelando ainda nossas densidades como seres humanos autores de uma caminhada única.



Quinto Dia:

“Criou, pois Deus os grandes animais marinhos e todos os seres viventes que rastejam, os quais povoam as águas, segundo as suas espécies; e todas as aves, segundo as suas espécies. E viu Deus que isso era bom. “

“Antes um animal – sou Ser humana animal – meu corpo DANÇA e multiplica minhas criações que são pequenas criaturas reais de Deus. ” Laura Virgínia Bailarina criadora, mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes da UnB, desenvolvendo pesquisa sobre literatura-vídeo-dança.




U m a Margarida, uma joaninha, uma girafa e um hipopótamo no jardim humanizado do Éden. Quando aceitei o convite de Soraia Silva para “No princípio”, com a proposta de ser o quinto dia da criação, pensei falar os sons dos animais junto com a movimentação, lugar conhecido que venho experimentando há anos. “Não”- disse Soraia, você tem que estar junto com uma trilha, um videodocumentário e uma animação cenográfica”. Então refleti - já que tenho que dançar com elementos já gravados de antemão, vou me utilizar de momentos da memória, minha e da História da Dança. Foi assim que surgiu a coreografia do quarto dia. Primeiro, selecionei trechos de coreografias que tinham como tema animais . Os ecolhidos foram: “O envelope” de David Parsons; “Beach Birds for Camera” de Merce Cunnigham; “O Lago dos Cisnes” e “Arien” de Pina Bausch. Junto com o executor, Glauco Maciel, da trilha pesquisamos as músicas desses espetáculos. Depois, pensei nas estéticas que eu já havia dançado como sapateado, jazz, bale clássico e moderno e no texto fantástico/alegórico que a história da criação propõe parece que os animais surgem como mágica. Daí fazer um show de mágica mas como tudo que é humano não é perfeito, o show não saiu com todas as marcações técnicas, penso que poderia agora executar de um modo onde não dependesse disso mas aí seria outro show, continuemos com o Jardim humanizado do Éden e as suas imperfeições caídas.




Sexto Dia:

“E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face da terra; e toda árvore, em que há fruto que dê semente, servos-á para mantimento.”

“Da idéia a conformação, dual e complementar, que se re-cria no movimento, disseminando a inspiração primordial...” Alexandre Nas Bailarino criador, mestrando do Programa de Pós-graduação em Artes da UnB, desenvolvendo pesquisa sobre vídeo-dança.



A referência à criação do homem, em Gênesis, é o ponto de partida para a elaboração de composição coreográfica de sete minutos que integra o espetáculo No Princípio, dirigido por Soraia Silva. Mas como, em tão pouco tempo, construir uma tessitura dançante de um texto metafórico tão profundo e tão estudado por teólogos, historiadores, e que norteia padrões de conduta de milhões de pessoas? Parte desse desafio consistiu na evocação de uma tradução poética, sob forma escrita, do texto base. O que reverbera em mim esse texto? Revisitar os meus


próprios processos de criação anteriores, serviu como apoio para a elaboração dessa “tradução”. Na maior parte das vezes, surgiram imagens em meus devaneios. A princípio desconexas; mais adiante, interligando-se, desfazendo-se, sendo acrescidas de outras e subtraídas de outras mais. Até que, em determinado ponto, formaram um quadro, meio mosaico, mas com uma lógica que eu compreendo e consigo organizá-las numa forma escrita. Entretanto, somente essa tradução não forneceu os elementos suficientes para dar ignição à minha pesquisa coreográfica, por outro lado ampliou o espectro de imagens mentais. Já com a introdução da composição musical desenvolvida por Glauco Maciel, uma espécie de roteiro de imagens mentais começou a se delinear e a pesquisa de movimentos começou a ser mais profícua, gerando pequenas células de movimento; ao mesmo tempo em que promovia a re-elaboração das imagens mentais. Esse trânsito incessante de imagens e movimento, ao longo do tempo, foi se configurando em unidades motoras/sensórias/


expressivas que foram se encaixando, como em um quebracabeça; compondo um roteiro dramatúrgico delineado, porém aberto; onde, em cada ensaio, aprofundaram-se as intenções de determinadas movimentos e, ao mesmo tempo abriu-se espaço para o surgimento de outros. Esse itinerário imagético inicia com a condição do homem ancestral, que em seu processo adaptativo às condições do ambiente, desenvolve artefatos/aparatos que o auxiliam em sua sobrevivência. Aqui a figura do ser sendo moldado/esculpido pelo Divino ganha proeminência, tendo como fonte de inspiração as obras de Rodin. E a criatura também se torna criador, modificando-se, reconstituindo-se e alterando as configurações à sua volta. Até que por fim, chegou-se a configuração cênica dançante. Quando da apresentação da coreografia no ambiente de teatro, várias alterações foram feitas, tendo em vista o design de luz e a projeção de imagens; portanto, novas adaptações ao ambiente. Ainda penso que a obra não está finalizada, mas em processo. Na situação de intérprete-criador, várias dúvidas sobre a eficácia do discurso corporal no tratamento do tema me assolam. Entretanto, com a apreciação das imagens filmadas do espetáculo, percebo novo campo de possibilidades a serem exploradas. E, assim, a espiral se move, o corpomente se reinventa em cada estação.



Sétimo Dia:

“Abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera.”

“O início é o momento da geração, é o que nos empurra para o futuro, nos faz viver”. Ana Macara Bailarina criadora convidada, professora da Faculdade de Motricidade Humana (Lisboa/1994).


Uma peça tendo como temática comum as imagens, emoções e paixões associadas à Criação do Mundo está, necessariamente sobrecarregada de significados e simbolismos. Significados e simbolismos partilhados por muitos e diferentemente vivenciados por outros. Criar um espetáculo de concepção colectiva sobre uma temática simultaneamente tào simples e tão complexa, tão fascinante e tào bela, tão unânime e tão controversa foi o grande desafio lançado por




Soraia Silva ao delinear o projeto No Princípio. Após o espectáculo pudémos realmente aperceber-nos da unidade criada pelos figurinos, ambiente visual dos vídeos e diaporama, bem como pela música, perfeitamente adaptada a cada um dos momentos, mas também da riqueza originada pela variedade resultante de perfis altamente diversificados de cada criador/intérprete. A minha participação com a criação do sétimo momento, dedicado à contemplação do sétimo dia, foi particularmente enriquecedora, ao permitir-me contracenar com seis bailarinos cuja presença a cada momento criou novos estímulos. A possibilidade de bem apreciar todo o espectáculo e finalmente, de certo modo interagir com o protagomista de cada cema foi um privilégio muito grande, e mostrou-me a possibilidade de colaborar eficazmente com pessoas de formação e experiências tão diversificadas, mas em que uma linguagem comum nâo conhece fronteiras. A metáfora da criaçào do mundo aparece aqui como perfeita como indicadora de um futuro em que a colaboração entre os pares só nos poderá engrandecer e aproximar do infinito.


Ficha Técnica: Direção Geral: Soraia Silva Assistente de Direção: Alexandre Nascimento Bailarinos Criadores: Ana Macara, Alexandre Nas, Laura Virgínea, Sabrina Cunha, Soraia Silva, Yara De Cunto, Zou Mi. Composição musical do espetáculo: Glauco Maciel Edição e Produção do Vídeo Documentário “No Princípio”: Márcio Garapa e Jorge Pennington, assistente: Victor Nascimento. Animação Cenográfica (arte computacional): Suzete Venturelli Fotografia: Ricardo Padue / Diogenes Rossi / Márcio Garapa Locução: Juçara Batichoti Figurino: Flávia Amadeu Luz: Carlos Eduardo Peukert Divulgação: Bruno Lehx

Programação Visual:

David Mesquita www.davidmesquita.com.br




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