ABSOLUT 2140 #0

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Carol Bensimon André Conti Defi Gagliardo Marcelino Freire Good Wifes and Warriors Jay-Jay Johanson Adriana Lunardi

Sergi Margalef David Quiles Guilló Jen Ray David Sardaña Joca Reiners Terron Carlos Henrique Schroeder Protey Temen


#000


O planeta Terra está dividido em dois hemisférios geográficos. Quase 9 bilhões de pessoas moram nos grandes centros urbanos. Restam apenas setenta árvores sobre a superfície do planeta. Hoje, no sétimo dia do sétimo mês do ano 2140, um vírus letal identificado como “Kinsey” atingiu a COM.

O mundo entrou em pane.



Protey Temen


Protey Temen


Há mais de cem anos, um apagão mundial causado pelo uso e abuso das mídias sociais marcou o nascimento da COM. Após os sistemas se reiniciarem, a rede despertou, tomou consciência de si e se transformou numa entidade a serviço de todos os conectados. Em poucos meses a COM, dirigida por seus milhões de usuários, tomou conta das instituições, de governos nacionais a locais, passando a gerenciar ABSOLUTamente tudo em nível global, incluindo comunicação, educação, recursos naturais e controle de enfermidades. Uma nova era se iniciou e hábitos ancestrais foram abandonados. Ninguém mais se comunicava verbalmente, enquanto violência e libido foram controladas. Depois de muitas gerações, o trabalho passou a ser distribuído e avaliado através da COM de modo igualitário, estabelecendo como meta a realização das tarefas com cem por cento de eficácia, ocupando o indivíduo somente alguns minutos diários. Hoje, no sétimo dia do sétimo mês do ano 2140, um vírus letal identificado como “Kinsey” atingiu a COM. Para proteger os usuários, a COM deixou uma última mensagem e se autodesligou. A população foi relegada aos próprios recursos, e aos seus principais defeitos. Entre os danos colaterais, o maior deles está relacionado ao arquivamento de dados: noventa por cento da população sofre perda de memória recente. Entre os dez por cento restantes que conseguem lembrar, a preocupação é tentar ocultar essa capacidade.



ABSOLUT 2140 São Paulo, Hemisfério sul



Protey Temen



Protey Temen



Protey Temen



Jay-Jay Johanson


#020


Pouco antes de a COM voltar a funcionar, estávamos diante da árvore nº71, a jaboticabeira. O carequinha de roupão mergulhava em suas lembranças recém adquiridas e recordou como os coroas dele se conheceram. — Essa é melhor de todas as boas memórias, meu velho, pois foi paixão à primeira vista. Naquele primeiro olhar de desejo que meu pai e minha mãe trocaram eu comecei a nascer. Era um pouco de exagero devido às circunstâncias — nunca perdi minha memória, então não tenho como saber a sensação de reavê-la —, mas não deixava de ser verdade. Toda criatura deste mundo nasce no primeiro instante em que seus progenitores cruzam olhares. Fico imaginando uma grande seleção de vídeos que reúna na COM ressuscitada os primeiros olhares de todos os casais que pisaram a face da Terra. Essa seria a verdadeira autobiografia da raça humana. — O nome de minha mãe era Flora. Mas ela usava o codinome Raquel. Meu pai e ela se conheceram no dia em que a COM foi atacada pela primeira vez, bichô. Já pensou, eu comecei a ser gerado no Dia do Apagão. No fundo, o gordo carequinha não passava de um romântico. — É a real, meu, e aquela catástrofe selou meu destino. Só alguém que começou a ser gerado no mesmo instante em que nosso futuro foi pras cucuias podia ser responsável pela salvação do mundo. E olha eu aqui agora. Nunca, nem na mais desvairada das hipóteses que sobrevoaram minha frágil cachola, eu poderia suspeitar que aquele gordo carequinha de roupão puído e tico murcho de fora podia ser um herói salvador da pátria e da mátria que tinha saído pela culatra. Pra piorar, chamava André. É impossível que alguém chamado André salve qualquer coisa. André rima com andar de ré, não com heroísmo. — E agora eu vou te mostrar o meu segredo mais guardado, falou — disse o carequinha André se aproximando da árvore nº71. — Chega mais. Dei dois passos em direção da poça de aborrecimento na qual a jaboticabeira estava plantada, e qual não foi minha surpresa: havia uma inscrição no tronco, desenhada sem muita sutileza na casca fina e repleta de manchas claras. Nunca aprendi a ler, então só pude reconher o desenho feito pelo traço que circundava as palavras separadas por um grande X: era um coração.


— Foi o meu velho que escreveu isso aí com um canivete. Tá vendo? Aqui em cima é o codinome de minha mãe, Raquel — ele disse. — E aqui embaixo do X tá o nome do velho. Que pilantra sentimental era o velho Mathias, vou te contar. — Mathias também era codinome? — Claro, o nome era Joseph. Ou você acha que eles se safariam sem usar codinomes? — Se safariam do quê? — Da perseguição promovida por Jackson e seus robôs. — E por que motivo eles eram perseguidos, hein? Desembucha de uma vez. — Por um bom motivo, sem dúvida. Antes de acontecer o Grande Desligamento, os meus velhos previram o que aconteceria com a COM. Foram eles que me esconderam no hospício. A intenção, claro, era me proteger. Também foram responsáveis pela minha perda temporária de memória. Isso aconteceu pra que eu não fosse descoberto facilmente, meu. Flora-Raquel e Joseph-Mathias cuidaram de tudo, mas pagaram um preço bem carinho por isso, tá ligado. — Quem são os teus velhos? — São os líderes dos Crazy Daisy. Eles fundaram o movimento. Foram os Crazy Daisy que trouxeram a COM de volta. Com uma ajudinha minha, claro. — Estão vivos? — Ela foi morta. E ele sumiu depois que isso aconteceu. — Por que ela foi morta? Por quem? — Os dois foram perseguidos por serem os líderes dos Crazy Daisy, claro. Além disso, nunca esconderam que tinham memória e que se amavam. O fato de conseguirem lembrar fez com que a morte dos sentimentos promovida pela COM não os afetasse, mesmo depois do Grande Desligamento eles continuaram a se amar. E enxergaram que essa morte dos sentimentos era o grande defeito da COM, o grande bug a ser combatido. — E onde o Joseph-Mathias está agora? — Deve estar vagando pelo mundo atrás da 71ª árvore. Ele sabia que ela nasceria e que seria fundamental para a COM voltar, mas não sabia onde. O meu pai devia estar aqui bem onde eu estou, em frente a essa jaboticabeira. Poucos instantes após o carequinha me contar isso, Laura surgiu da escuridão do túnel vinda em nossa direção e as jaboticabas foram espirradas da árvore, desaparecendo no escuro da rede de esgoto de São Paulo.


#023



Jay-Jay Johanson



David Sarda単a


#028


Raquel está sozinha lá em cima. O tubo cromado refrata a luz do sol em mil pedacinhos coloridos. Ela sente as solas dos pés começarem a arder do contato com a plataforma, e se pergunta se está sobre um piso aquecido, ou se aquele é somente um efeito de um dia de muito calor. Olha para baixo, um segundo apenas, os pontos se movendo nos limites do azul. Então desliza para dentro do tubo. O corpo afunda na água todo desengonçado, ela mexe os braços como se cavasse um buraco em volta de si mesma, a cabeça finalmente emerge. Piscina 23, Pacaembu, diz a placa logo atrás das crianças em silêncio. Raquel fica boiando. Não sabe nadar. Para se distrair, vasculha na COM imagens do seu último mês, e constata que tem vindo a essa piscina com alguma regularidade, Raquel na água em uma visão aérea, Raquel sentada na beira só com os pés para dentro, alguns jovens brincando com uma bola magnética na parte mais rasa, um cara de bigode sorrindo para ela, o neon da piscina 23 manchando de vermelho e amarelo o fragmento de uma noite qualquer. Quem é aquele cara da foto? Que coisa mais antiquada, meu Deus! Tenta se lembrar de alguém que usa bigode, mas não consegue. Devia ter feito algum tipo de nota, repete para si umas três ou quatro vezes, um tanto culpada, você tinha a obrigação de se lembrar de um cara de bigode, Raquel, bigodes deveriam ser alojados em um lugar especial do seu cérebro, ela ri da idiotice e continua boiando com os olhos fechados por causa do sol.

O seu alarme toca.



David Sarda単a


Raquel na frente do trem, os cabelos ainda pingando, checa o endereço de casa na COM, é aquele trem mesmo que deve pegar. Senta junto à janela. O alarme toca. Agora ela checa o lembrete. 19h, sobre Pakayla Biehn, quadra 258F Leste, prédio C. Olha o relógio, tem um pouco mais de três horas para chegar nesse lugar, mas quem diabos é Pakayla Biehn e por que Raquel estaria interessada em ouvir qualquer coisa sobre essa mulher? Supondo que seja uma mulher, aliás, sobre o que Raquel não tem tanta certeza assim, às vezes os nomes terminam com A e não são femininos coisa nenhuma. Faz uma pesquisa rápida enquanto olha a paisagem, os túneis se alternam com o espaço aberto, seus olhos parecem se adaptar perfeitamente ao jogo de claros e escuros. Pakayla Biehn, certo, uma pintora extraordinária antiga para dedéu. Vê um monte de figuras femininas com cabelos no rosto. Sempre os cabelos tapando o rosto. O que ela quis dizer com isso? Raquel se sente muito burra toda vez que entra em contato com algum tipo de arte primitiva. Silhuetas com manchas coloridas preenchendo o espaço desses rostos vazios. Sempre é preciso ouvir uma explicação ou ler um texto para encher as coisas de sentido. Chega em casa, toma um banho, troca de roupa. O alarme. Raquel vai checar. 19h, sobre Pakayla Biehn, quadra 258F Leste, prédio C. Olha o relógio. Deve chegar em cima da hora. Pakayla do que mesmo? Pesquisa. Uma pintora do século passado. Ok. Não entende coisa nenhuma daquelas imagens, mas, ainda assim, sente um arrepio percorrendo o corpo todo quando bate a porta.


David Sarda単a



David Sarda単a


David Sarda単a


A sala está lotada. Ela senta na ponta de um banco comprido e espera que algo seja projetado lá na frente. Depois de alguns minutos, as luzes se apagam. É curioso, e de certa forma incompreensível, mas, quando as imagens gigantes se materializam, algumas pessoas perto dela começam a cochichar. O que elas dizem, o que pode haver para ser dito, qual foi a última vez que Raquel ouviu sua própria voz? Ela escuta agora o homem (cabelo ruivo, o brilho de uma corrente muito fina na nuca): “Eu não gosto dessas flores. Gosto do que ela faz com os cabelos, mas não das flores.” E depois a mulher que está ao lado dele responde: “É porque você só pensa em Thomas Schostok. Ele é a sua noção de arte pura e superior.” Flores são as partes coloridas das árvores, Raquel pensa. Aquilo são flores? Que ninguém pergunte a sua opinião ou venha falar coisa alguma. Um filete de memória escorre para o setor ativo de seu cérebro: sua mãe lhe dá alguma coisa para comer, e essas coisas são coloridas, pegajosas, Raquel usa os dentes para separá-las em pedaços menores porque há partes mais duras no centro como pílulas que não se deve engolir. Volta para o salão escuro. As projeções acabaram. O público fica confuso por alguns segundos, daí aplaude. Em seguida, alguém aparece lá na frente. O sistema de iluminação joga sobre o homem uma luz azulada, e o holograma de seu rosto é projetado em todos os cantos. Um bigode ridículo. “Team Doyobi. Talvez vocês achem estranho no início, mas acho que ele pode dizer muito sobre o nosso tempo.” Ele continua falando, mas ela não presta atenção. A música começa a tocar e ela poderia até dizer que é isso, essa música, essa parede de ruídos, que lhe causa a estranha sensação de déja vu. Vasculha na COM imagens de seu último mês. Ao encontrar o mesmo bigode, o mesmo sorriso, que parece se dirigir especialmente a ela (piscina 23, Pacaembu, 12 de maio), levanta do banco e sai correndo enquanto a música chia, derrapa, explode.



David Sarda単a


Uma mão lhe segura.

— Não me toca —, ela se ouve dizer, num reflexo. (é como a voz rouca de um recém desperto)

— Desculpa. Ele parece jovem visto de tão perto. Vinte e cinco anos, no máximo.

— Olha, eu não quis te assustar. Você tá gostando da música? — É legal. Mas eu não tô acostumada, eu — — Tudo bem, não é pra se acostumar mesmo. Se a gente se acostuma, para de prestar atenção. Ele sorri, mas Raquel não tem certeza de ter entendido. O bigode até que não lhe cai mal, ou ao menos parece se adequar às outras escolhas estéticas igualmente peculiares, como o cabelo mais baixo nas laterais e abundante no topo, os óculos (por que não corrigir seus problemas oftalmológicos?), os sapatos com cadarços.

Ele está olhando para ela há uns bons minutos. — Mas que ótimo que você veio. — Você sabia que eu vinha? Ele fica quieto.

— Como você sabia que eu vinha? Olha para os lados, ainda tentando decidir se deve mesmo responder.

— — — — —

Eu convidei você. A gente já se viu antes? Aham. Mas você lembra disso? Como é que você se lembra? 12 de maio.

Ela acessa a COM. Piscina 23, Pacaembu. O bigode, o sorriso. — Você sabe que uma das árvores fica aqui perto? —, ele comunica a ela, completamente sem contexto. Não move seus lábios. — Quer dizer, umas quatro horas indo para o sul. E a se gente fosse lá depois de amanhã? Eu nunca vi uma árvore, você já viu? Essa é do tipo pinheiro-do-paraná.

— — — — — —

Eu nunca vi uma árvore. Eu tenho um carro. Me dá o seu endereço. Por que você tem um carro? Acho que eu sou um saudosista. Um o quê? Eu gosto de coisas antigas.

Depois, ele sorri para a foto. Raquel a arquiva junto ao lembrete. Mathias (bigode). Aparentemente legal. Nós vamos ver uma árvore e isso ajudará a passar o tempo.


David Sarda単a



David Sarda単a


David Sarda単a


Falta muito pouco para que o mundo se transforme em outra coisa.

O carro roda entrincheirado entre as centenas de minivans automáticas. Há uma velha canção tocando, e como era bonito quando as mulheres cantavam, as ondas do mar quebram exatamente embaixo da auto-estrada, por que será que deixaram de cantar, Raquel nunca viu uma linha tão comprida e contínua, aonde vão todas as pessoas que colam a cara no vidro para nos observar melhor, aonde nós vamos, aonde nós podemos estar indo dentro desse carro laranja?

A estrada logo se distancia do mar.

— — — — —

Onde você aprendeu a dirigir? Com meu pai. O seu pai sabia dirigir, uau. Você conheceu o seu pai? Não. Quer dizer, sim. Minha mãe apontou um dia para ele.

Ele ri. Como se chama? Mathias (bigode). Aparentemente legal. Nós vamos ver uma árvore e isso ajudará a passar o tempo. — Eu lembro das coisas —, ele comunica de repente, enquanto desvia meio assustado de uma minivan que trocou de pista sem dar sinal. — Como assim? — Eu vi você na piscina 23. Na verdade, várias vezes. Numa delas a gente conversou. Se você procurar uma foto minha no dia — — Ah, ok. — Pra você tá tudo bem? — Tudo bem o quê? — Eu ter memória e tal. Você se importa, isso incomoda você de algum jeito? — Claro que não. Quer dizer, o problema é seu.

A van que trafega na frente deles para de forma brusca.

— Acho que aconteceu alguma coisa —, comunica Raquel. Eles olham para os lados. Todas as minivans morreram e a fila é imensa tanto na frente quanto atrás. Alguém grita. Janelas começam a se abrir uma a uma, e então uma porção de passageiros examina a auto-estrada. Alguns estão apenas curiosos, descortinando seus companheiros de pane, outros têm os rostos retorcidos de apreensão. — A COM tá fora do ar —, comunica Raquel. Ela abre a porta do carro como se o gesto fosse amenizar a situação caótica. — Sério? Putz, é mesmo.

— Isso já aconteceu antes? — Isso nunca aconteceu, que eu saiba.



David Sarda単a


Abandonam o carro no acostamento. Mathias puxa Raquel pela mão enquanto ela repete de tempos em tempos e sempre com a mesma surpresa “não consigo acessar a COM”. Todos em volta entoam variações dessa frase nos murmúrios roucos de suas vozes há muito adormecidas, a maioria completamente imóvel. Outros, sabe-se lá por que motivação, escolhem um sentido qualquer e começam a caminhar em desespero. De repente, ela localiza o comunicado da COM sobre o autodesligamento.

A árvore aparece no horizonte.

De perto não é tão alta quanto Mathias imaginava. Uma redoma porosa a abraça e essa redoma é circundada por seis plataformas de observação, da base da árvore até a ponta dos galhos.

Parece um guarda-chuva depois de muito vento.

Centenas de homens surgem nas plataformas. Botas. Quepes. Armas. Armas de levar na cintura e armas de pendurar nos ombros. Mathias dá um passo para trás. Ele se lembra de uma imagem borrada. Um tataravô com duas medalhas no peito. O pai juntando os dedos e fazendo no ar a trajetória de uma bala, corre pela sala, a testa franzida, a ponta dos dedos risca a parede. “Não escuta o seu pai”, a mãe diz, a mãe repete sempre. Você sabe o que é uma Glock? Você sabe o que é uma AR-15 ou uma AK-47? Você sabe quanto concreto e ferro e quanta carne essas coisas são capazes de atravessar? Um homem da segunda plataforma põe o dedo no gatilho. Raquel sorri e sai correndo na direção do último pinheiro-do-paraná.


David Sarda単a



Jay-Jay Johanson


#052


A COM voltou a funcionar.

Em meu cérebro começaram a desfilar imagens do passado que estavam guardadas em meu becape cerebral. Desde o Grande Desligamento que não podia mais acessar todo tipo de videomemo, por exemplo de meus aniversários ao primeiro natal que passei no orfanato. Mas eu não lembrava que tinha passado a infância num orfanato. — Claro que não — disse o carequinha. — Você também foi bloqueado, de certa forma. Parte de tuas lembranças permaneceram acessíveis, sendo que outras não. — E por que fizeram isso comigo? — Pra você achar que aquela gorda robô de bigodes era tua mãe, bichô! Pra que mais poderia ser? Assim você a obedeceria, topando trabalhar no hospício como limpador de privada e de aborrecimento. Só assim você poderia me vigiar. — Os Crazy Daisy fizeram isso comigo? — Não, esses estão do nosso lado. Quem fez isso foi… — Jackson? — Não, foi… — Fala! — Para de interromper, bichô! Foi a COM que fez isso. Não pude acreditar no que o carequinha disse. O impacto foi tão forte que acabei dando um senhor tabefe na cara dele, que caiu de quatro. Novamente fui obrigado a ver seu rabo peludo, desta vez apontando pra lua. — Ô loco, bichô. Quer me quebrar todo? — ele falou, sentando-se em cima da aba cada vez mais suja de seu roupão. Laura olhou pra mim e estava pronta a soltar uns raios infra com seus olhos biônicos e me fritar quando o André fez sinal pra ela não fazer nada. — Desculpe. Tava verificando se você não era um holograma — falei. — Esse teu papo de que a COM é responsável por essa montanha de aborrecimento não cabe na minha cabecinha de minhoca. O carequinha se levantou da poeira graças à mão trêmula que estendi pra ele. Se a Laura era mesmo um andróide UAndress-SW91, poderia ter feito mandiopã de mim com suas pupilas desintegradoras. André pegou as mãos de Laura e as lambeu com um beijo mais úmido que as cataratas de Foz de Iguaçu antes de secarem (pensei nisso e surgiu no meu cerebelo uma videomemo da Grande Seca de 2015 que acabou com a água do rio Iguaçu). Depois olhou pra mim e começou a falar: — Bichô, lembra o que eu falei sobre a vida ser matéria programável assim como o tempo? Então. A COM faz parte da vida, e não existe melhor exemplo de matéria programável do que nossa vidinha de aborrecimentos. A gente nasce cabeçudo e pelado e daí aprende a se vestir e a dar cabeçada, cresce, aprende tudo errado, faz um monte de aborrecimento um atrás do outro, a cabeça continua a crescer e a gente a dar com ela em tudo quanto é porta, até que vira adulto e um pouco menos burro. Tudo o que a gente faz nesse período é resultado de nossas escolhas, da programação que a gente vai montando conforme o rio do tempo passa e a gente não volta nunca mais a se banhar nele. A única regra da matéria programável da existência é a seguinte: você nunca mais vai ter a mesma chance outra vez, então escolha muito bem o aborrecimento que vai aprontar pois depois babau, sacô?


— Sim. Mas o que os Crazy Daisy têm a ver com isso? — Minha amada progenitora Flora-Raquel, num dia de fúria devido à TPM, causou um barraco fedepê que quase a fez matar o velho Joseph-Mathias. Depois, arrependida, ela cogitou o que teria lhe acontecido se tivesse levado adiante o que tentou fazer, ou seja, se tivesse mesmo soltado a corda na qual dependurara Joseph-Mathias pelo pescoço amarrado a uma árvore. Ela teria matado o cara de quem ela gostava, o papai de seu filhote lindo, euzinho aqui.

— Você era um bebê bonito?

— Muito. Então, bichô. Sabe o que Flora-Raquel pensou? Ela pensou: pô, que aborrecimento. Se eu tivesse matado ele teria sido um acontecimento irrevogável. Eu nunca mais o teria de volta. Nunca mais conversaria bobagem com ele. Nunca mais coçaria o umbigo dele em dia de calor. Eu estaria sozinha e ele, morto. Daí caiu a ficha. — Caiu a ficha? Que isso? — Ah, meu, ela sacou que a vida é o que a gente quer que ela seja. Se a gente quiser que seja um aborrecimento, basta tomar a decisão errada e pronto. Aquela era uma verdade dessas tão verdadeiras, simples e idiotas que alguém pode passar a vida inteira sem percebê-la justamente por ser tão verdadeira, simples e idiota. — Essa é uma verdade verdadeira — eu falei. — Simples e idiota. — Verdade, mas se a gente não reparar nela pode passar a vida inteira fazendo aborrecimentos. — Isso é. E daí, o que aconteceu? — Minha mãe e meu pai criaram os Crazy Daisy, uma organização destinada a reunir tudo quanto é tranqueira que fosse esquecida ou caísse em desuso. — Mas qual o motivo deles fazerem isso? — Um objeto é algo que foi criado a partir de uma idéia, certo? E se a idéia é boa significa que o objeto gerado a partir dela também é bom e não deve ser desprezado só porque o tempo passou. Decisões certas devem ser mantidas a todo custo, era isto o que os Crazy Daisy pensavam.

— E a COM era uma boa idéia. — Aí, bichô, usa essa cachola!

— A COM era uma boa idéia que precisava ser preservada. — Uma boa idéia que estava sendo pervertida e que precisava ser reprogramada pela vida. A COM precisava se transformar numa coisa viva, porém ligada à natureza, pois só assim poderia sobreviver. Daí pintou a Parada ABSOLUT.

Rapaz, aquele carequinha estava realmente a fim de me enlouquecer.


#055



Jay-Jay Johanson



Protey Temen



Protey Temen


#062


— Posso fechar a porta? Todos assentiram silenciosamente, com acenos.

— Todos em círculo, isso, perfeito, abram um pouco mais o círculo, isso, perfeito, agora encostem no companheiro da direita, ótimo, agora no da esquerda. Todos de pele e osso? Nenhum holograma? Então podem se sentar.

Sentaram, abriram suas pastas e tiraram suas reproduções e anotações. — Sobre o quê conversamos na semana passada? A jovem loira levantou a mão, e depois do aceno positivo do assessor, respondeu:

— Senhor assessor, estudamos a obra “Dusk”, que é uma obra posterior a que o senhor usa estampada em seu avental... — E o que mais? — E como Protey Temen — continuou a loira. —, usava uma espécie de pixelização e construção de narrativas visuais através da repetição, e também como ele previu o surto virótico na COM com suas obras. — Muito bem, muito bem. Mais alguém? Não? A jovem sorriu e seus olhos brilharam, uma leve camada de água cristalina em seu olho direito poderia abrigar um pato feliz neste instante. Mas o assessor era rápido. — Vamos direto ao ponto: Equador. Quem se arrisca? — 2010 —, disse o gordinho da turma. — Muito bem, o que mais? — Acrílico sobre linho —, disse o mais velho, e também mais rabugento, com seu olhar enviesado. — Certo, alguém de vocês tem uma reprodução em papel da obra? O silêncio era tamanho que seria possível ouvir a respiração do pato no olho da loira. — Imaginei. Alguém tem o arquivo digital no HardBrain? O magrelo de cabelos escuros levantou a mão. — Está autorizado a hologramar, mas ó, não comentem com ninguém que estamos hologramando, certo? Vocês sabem a confusão que isso está causando. O magrelo cruzou o dedo anular sobre o mínimo, e ao juntar a unha-retina com a unhaprojetora a tela Equador surgiu no meio da sala. — Ninguém viu isso aqui, certo? Nada de hologramas em minha classe, certo? Nunca! —, certificou-se o assessor. — Ninguém viu — responderam, em alto e bom som, todos os quinze. — Vamos mais além, além de ser uma importante obra do Protey, o que mais signifca Equador? Alguém se habilita? — .... — Foi um país e também o nome de uma linha imaginária, que foi responsável pela divisão do globo terrestre em dois hemisférios: Sul, também denominado meridional ou austral, e Norte, também conhecido como setentrional ou boreal. Alguma pergunta? — .... — Bom, deixem pra lá, isso não importa, o que importa é o que essa obra representa dentro do universo Temeniano, e de que maneira... A perua levanta a mão. — Sim?! — Se o Equador existisse ainda, em que lugar ficaria? — O assessor sentou na sua cadeira e riu, mas um riso nervoso, incontrolável. E o pato voltou para o fundo dos olhos da loira.



Protey Temen


Protey Temen


No sétimo loop ela deu um sorriso, e ficou observando o teto da catedral, onde a obra estava instalada. Ficou parada alguns minutos, olhando com cautela. E claro que isso não passou despercebido pelo controlador do turno, que se comunicou rapidamente com a central, enquanto dava um zoom para ver bem a suspeita.

— — — — —

THG 1234K. Catedral da Sé. Chamando. Central respondendo. Central respondendo. Agente de triagem XC76. Catedral da Sé. Controlador THG 1234K. Acho que tenho uma rememoriada aqui. Qual a situação, controlador THG 1234K? Temos um código verde aqui, agente de triagem XC76.

Ela veio pela sétima vez consecutiva, entra e sai da igreja, e agora parece reconhecer a obra. Ela sorriu ao ver a obra, estou mandando este frame agora. — Frame recebido. Sorriso identificado. O rastreador facial detectou movimentos inerentes ao uso da memória recente. Código verde confirmado. — Posso seguir com o procedimentos padrões? — Sim. Procedimento autorizado. Protocolo RHDEKAD89357. Bom trabalho controlador THG 1234K. — Obrigado, agente de triagem XC76. — Operação cadastrada na central. Em poucos segundos os guardiões a levarão para o jardim de inverno.

E o controlador sorriu pela sétima vez no dia.



Protey Temen


Cada passo levava em torno de uma hora, mas cada passo ao menos era um passo. Ele estava na fila há duas semanas e acreditava que em uma semana, ou até menos, poderia, mais uma vez, ver uma árvore. Já tinha visto treze árvores, e há muito tempo abdicou do seu sonho de ver todas as setenta árvores existentes no planeta: não haveria tempo, não haveria força. Mais um passo, um suspiro aliviado. Pelos seus cálculos conseguira ver a árvore florida, pois era nesta época que sua copa ficava recheada, e seria a primeira vez que veria, realmente, pelos seus próprios olhos, uma cor resultante do florescimento natural. Será que suportaria isso ou desandaria a chorar (isto não poderia acontecer, pois temia ser retirado da zona de visão pelos guardiões). Será que o amarelo dela é mesmo esverdeado? Muitos dizem que a Garupuvu parece aquela famosa aquarela do Dennis Fedderson, mas de cabeça para baixo. Discordo, ela tem um copa mais rarefeita. Era uma árvore diferente de todas as outras, com uma fome de viver impressionante: sua velocidade de crescimento poderia atingir três metros por ano, ficando com até trinta metros de altura e quase um metro de diâmetro no tronco. Como a copa poderia ter entre dez e quinze metros de diâmetro, e o cordão de isolamento dos guardiões ficava a exatos sete metros do tronco, seria a primeira vez que ele poderia ver uma copa de árvore de baixo, poderia erguer a cabeça e ver aquela entidade, aquele pedaço da história, de baixo para cima. Mais um passo. Dizem que já foram vistas abelhas perto desta única Garapuvu, mas ninguém confirma ou desmente, e ele não acredita, nunca soube de alguém que tivesse visto uma abelha.


Protey Temen



Protey Temen


Protey Temen


Foi tudo muito rápido. Eles chegaram e senti todos os pelos do meu corpo se arrepiarem. Como era bom sentir medo, e respeito. Eram uns cinquenta, nus, e quando entraram no galpão, foi silenciosamente e de cabeça baixa. Estavam tatuados com uma frase em todo o corpo, do pescoço até as pontas dos pés: I’m Home Sick Sittin Up Here In My Satellite. E quando ergueram suas cabeças, em suas testas era possível ler a palavra Doldrums. Ficaram no lado oeste do imenso galpão de 2.000 metros quadrados, enquanto nós, os perdidos, os medrosos, nos espremíamos nos outros cantos, suando. Ninguém ousava chegar perto, mal respirávamos. Os rivais chegaram em seguida, também nus, mas em número menor, uns trinta no máximo, e tinham Urban Twilight por todo o corpo, e Grimes em suas testas. Pareciam menos ameaçadores, ou talvez fosse a confiança estampada em seus olhos o que lhes dava uma aparência mais tranquila. Chegaram e foram para o lado leste do galpão: sem nem olhar para os Doldrums. O líder destes foi para o centro do galpão, com ares de deboche, quase dançando, com movimentos rápidos dos pés e mãos. Não demorou e foi seguido pelo líder dos Grimes, mais sério, realmente concentrado. O silêncio era absoluto. Frente a frente, cada um deles ergueu seu dedo indicador, seu dedofone, e com a ponta auricular em riste tampou os ouvidos do outro. Ficaram uns cinquenta segundos se encarando, cada um escutando a música que o outro proporcionava, sem piscar. Até que o líder dos Doldrums desvia do seu oponente e mira os seus seguidores, com uma tristeza cortante. Tira seus dedofones dos ouvidos do líder dos Grimes e deita no chão. O líder dos Grimes recebe um spray apagador de um dos seus seguidores, e tira, quase mecanicamente, todas as tatuagens do derrotado. Os outros Grimes também trabalham, e apagam, também de maneira sistemática, em minutos, as tatuagens dos outros Doldrums. Aproveito e saio sem que ninguém perceba, e corro pelas ruas desertas até encontrar um pedaço de latão afiado: tatuo com um pouco de sangue e dor a palavra Grimes na minha coxa esquerda. Em algum momento essa palavra poderia me ajudar. Mas foi aí que vi uma palavra sulcada na minha coxa direita: Doldrums. Eles caminham pela rua, o mais jovem está irritado. Dos alto-falantes da esquina soa a música: a de sempre, de ritmos quebrados, sombrios, com um vocal feminino entrecortado. O mais jovem se exaspera, ajoelha-se, esbraveja e grita para os alto-falantes: — Chega! Chega! Eu não aguento mais! O mais jovem segura o outro pelo braço e o arrasta para um beco sem saída. — Eu não aguento mais, eu não consigo. Olha pra mim, olha bem nos meus olhos. O mais jovem segura o outro com força, contra o muro alto de uma casa, e fala num tom rápido, quase sem pensar. — Ei, olha bem pra mim, olha!? Está ouvindo, está? Esta música, é isso que nós somos, uma música? É isso? Giramos em torno disso? Eu não canso de dizer e você não cansa de ouvir e esquecer, eu não canso de cansar e de te seguir e te ajudar. Não vou negar que já pensei em deixar você seguir seu rumo, ir embora, ficar à deriva. Uma hora num grupo, outra hora com outro grupo, todas as horas sem horas, o tempo se foi, assim como sua memória. Não sei porque ainda te sigo, te levo para os lugares menos piores, estrago minha vida indo para todos os lugares se tudo que quero é um lugar só, o sossego. E lá vou eu, rumando e ruminando, num sofrimento sem cúmplice, numa dor sem eco, fingindo ser o que não sou, um desmemoriado. E o mais jovem chora, e sua boca treme, seus olhos estão vermelhos, muito vermelhos. O outro segue impassível. — Ei, pai, eu lembro das coisas, cara, eu lembro, e eu te amo... Mas vou te deixar, agora vai ficar sozinho. Ele abraça o pai com força, soluça, dá um tapa afetuoso no rosto dele e corre. O pai olha o filho sumir e assobia, uma música triste: a mesma que teima em sair dos alto-falantes.



Protey Temen


Na sala branca, de móveis brancos alquebrados e sinuosos, claramente inspirados em Dana Oldfather, ele responde à voz, rapidamente, num tom desanimado, monocórdio.

— Você nega que comandou o ataque aos caixas-forte das Bibliotecas Centrais? — Não.

— Você planejou sozinho? — Não.

— Quem te ajudou a planejar? — AZX546 e DJK727.

— LTX8123 também ajudou a planejar o ataque? — Não.

— Você é um dos Crazy Daisy? — Claro que não.

— — — —

Você pertence ou já pertenceu ao MLL - Movimento de Libertação do Livro? Não. Perguntarei novamente: você pertence ou pertenceu ao MLL - Movimento de Libertação do Livro? Não.

— — — —

Você integra ou já integrou a OCL - Organização da Cultura e Liberdade? Não. Perguntarei novamente: você pertence ou pertenceu a OCL - Organização da Cultura e Liberdade? Não.

— — — — — —

Você é filiado na Ordem Farenheit 451? Sim. Você confirma que é filiado na Ordem Farenheit 451? Sim. Você sabe que destruir patrimônio público universal é crime nas 32 canções mais a lua? Sim.

os livros

— Então sabendo que é crime, você confessa o ataque aos caixas-forte das Bibliotecas Centrais? — Sim. — Você assume que avariou mais de mil livros raros? — Sim. — Quem ordenou os ataques? — Ninguém, é dever e consta no juramento: cada membro deve dedicar sua vida a destruir e combater o Movimento de Libertação do Livro.

— — — — —

Se eu lhe pedir os códigos de todos os envolvidos, você dará. Sim. São 183 envolvidos, como vocês já sabem. Mas posso lhe fazer uma pergunta? Claro. Porque vocês me interrogam, se basta tirar meu chip que todas as informações estão lá. É o sistema, temos que seguir o método.

— Certo.


Protey Temen



Protey Temen


Protey Temen


Nervosismo e abstinência: uma combinação que meu corpo detesta. Quando me deixaram entrar na sala, eu estava encharcado de suor. Ele apenas fez um sinal para que eu sentasse, e foi direto:

— O que você tem pra mim? — Moedas, de 2018. — Quantas? — 8. — Deixe-me ver?! Soltei as moedas em cima do tampo da mesa.

— Isto é lixo. Não paga nem o que você me deve? — Mas... — Quieto, vou ficar com isso. Mas em respeito ao seu irmão, que foi um grande cara. Olhe aqui, ou você me arruma alguma coisa que preste, ou corto seu barato, trate de arrumar outro fornecedor. — Tenho em vista um pendrive de 2012, com arquivos. Darei um jeito de consegui-lo. — Pois bem, me arrume este tão prometido pendrive que aumento teu crédito, e estendo um tapete vermelho para vossa senhoria. — Pode confiar, conseguirei. — Não confio. — Conseguirei, conseguirei. — Sei que vai conseguir, pois vou cortar o fornecimento se você continuar vindo com essas moedinhas. É a última vez, ok? Ou me traga o pendrive, ou nada.

— O você quer para hoje? — O que tem de novo?

— Tenho aqui algo que você vai amar: Christy Lee Rogers. — Muita gente já usou? — Não.

— Eu quero.

Ele me entregou o chip e fui para a sala anexa, quase cheia, com exceção do sofá lilás. Fui para lá e tão logo coloquei o chip atrás da orelha senti meu corpo coberto por água e uma profusão de imagens invadiu meu cérebro: pessoas embaixo da água, corpos, roupas, projeções, senti meu corpo adormecer, queria ficar aqui para sempre, aqui. Molhado.



Protey Temen



Jay-Jay Johanson


#088


— O que os Crazy Daisy faziam com os objetos antigos que guardavam? — Ué, bichô, eles guardavam.

— Mas um objeto industrial tem muitas cópias. — Isso. É a mesma idéia muitas vezes repetida.

— Só isso? Por que os objetos eram fruto de boas idéias? — Exato. Uma boa idéia que nunca mais se repetiria.

— Então. Não é contraditório? Se eles queriam preservar os objetos justamente porque a idéia que os gerou nunca mais se repetiria. — Sim, mas eles guardavam apenas UM objeto, e não todas as cópias de um mesmo objeto. — Certo. Mas como saber qual era o objeto certo a ser guardado? — Taí a questão. Tá ficando esperto, meu, acho que a COM já voltou a funcionar à toda aí dentro do teu coco. — Não. Ainda tem umas falhas de estática nas videomemos que estou acessando enquanto conversamos. — Daqui a pouco estabiliza. Mas então. Eles não sabiam. — Não sabiam? — Não. E pouco importava. — Por exemplo, e se eles guardassem um capacete de motociclista e justamente o capacete guardado tivesse sido responsável pela morte do motociclista por um defeito de fabricação qualquer. Não seria justamente esse o capacete que não deveria ser guardado? Afinal, o capacete falhou, o que também pode indicar que a idéia que o gerou também continha uma falha. — Eles não se importavam. — Por que não se importavam? — Porque o objeto era um símbolo, uma pálida projeção da idéia que o gerou e que servia apenas para lembrar que aquela era uma boa idéia que havia sido tomada por alguém num determinado momento e que não merecia ser esquecida. O objeto era uma insígnia, uma lembrança.

— — — — —

Uma lembrança? Isso. E agora sabemos como as lembranças são importantes, não sabemos? É. Sabemos. Ô se sabemos, bichô. E nunca vamos esquecer de novo. Será?

Era impossível saber.



Jay-Jay Johanson



Jen Ray


#094


O programador aponta de modo didático as manchas coloridas que indicam a atividade do meu cérebro: — Estão mais lentas, percebe? — Concentro-me na azul, que possui a forma de um pato. O pescoço, antes curto, alonga e se afina, ameaçando separar cabeça e corpo antes de voltar ao desenho original. Nada sei quanto à velocidade, mas parece uma área bastante animada para mim. — Sinal de que o córtex está quase limpo — ele continua. — Ponto para você, penso em dizer, e afrouxo as mãos que mordiam, sem que eu percebesse, os braços da cadeira. Perguntas e respostas iguais às trocadas entre mim e o meu programador são ouvidas de todo lado. Nunca pensei que a desconexão voluntária fosse atrair tanta gente. Quando me inscrevi falaram em danos neurológicos, riscos permanentes. Como vamos nos virar? É o que eles querem saber. Estará a humanidade ameaçada? A vida vai prosseguir depois do Grande Desligamento? Ninguém sabe, ainda. — Deixa eu ver o que você tem armazenado aqui — o programador consulta o meu perfil. — Ahã, uma biblioteca. Ele se demora a analisar os dados e descobre, pela assinatura, que meus livros foram instalados por um não-listado. — Não entendo por que vocês se colocam nas mãos desses caras. Eles são uns monstros. Aguento firme a bronca. O programador vive se queixando de mim. Alega que meu implantes de memória ilegítimos prejudicam o andamento do seu trabalho, o que nem sempre é verdade. Claro que erros acontecem. Na hora da instalação, os fornecedores catam atalhos, espaços mais livres. No meu caso, um desvio nas espirais do lobo frontal fez o livros pararem numa área próxima à da visão. Eu sabia, mas não falei nada. — Vai dar trabalho — ele avisa, mal-humorado. — Chegue cedo, amanhã. Mal me despeço e dou o fora. Quando abro a porta, o murmúrio da cidade parece um amigo à minha espera. Seguro os passos para aproveitar o momento. São Paulo tem esses mimos com seus moradores. Devolve o que você sente. Basta escutar o que ela diz para saber o que se passa com você por dentro. E hoje esse oráculo de cimento concorda que estou mais sozinho do que nunca. Paro na esquina e entro na lanchonete. Dentro, a loja é média, mais para pequena, decorada em amarelo e vermelho, a cor oficial da rede. Sobraram poucas dessas na rua. Talvez por isso não receba muitos clientes. Mas eu gosto daqui. O cardápio na parede está apagado e os talheres tortos pelo manuseio. Nos móveis, rasgos e lascas repetem uma história parecida. É dos poucos lugares onde se vê a passagem do tempo. Entro e vou direto ao balcão. Ao meu lado, está sentada uma garota do grupo e sou tomado de uma euforia que me força a falar:

— Oi, a gente se conheceu na primeira reunião, lembra?

Ela me ignora. Peço um sorvete e volto à carga: — O grupo, já te vi por lá.

— Você é um nerd — ela diz, calmamente.

Um calor se infiltra em cada milímetro do meu rosto. Acontece sempre. Esqueço que ainda somos chamados assim, embora esse tratamento discriminatório tenha sido proibido pelo governo. Para grande parte da população, contudo, somos consumistas, melancólicos e feios. Ninguém quer sentar ao nosso lado.



Jen Ray


Tudo está dito, portanto. Ela não quer conversa e eu perdi a vontade de lutar por meus direitos. Termino o sorvete em silêncio e quando me levanto para partir, uma voz um pouco mais amistosa se digna a falar comigo.

— Você sabe onde fica o setor 4? Meu GPS foi desativado. Não sei chegar lá. Nem parece a mesma garota. Curtos mudam rápido de ideia.

— Levo você — respondo, virando as costas. Ela me segue: — Meu nome é Jô — se apresenta. — Desculpe se fui grossa. — Desculpada. E, sim, você foi grossa.

É a vez dela se calar. Os curtos podem ser cruéis, mas também vulneráveis. Não conseguem realizar nada sozinhos. Andam a passo ligeiro, como se estivessem sempre atrasados. Comem pouco, dormem em intervalos, precisam de ação. Mas nossa maior diferença está nas emoções, no modo de senti-las e em sua durabilidade. Eles esquecem; nós temos de lidar com as reminiscências. E isso atrapalha tudo. Ela mantém certa distância enquanto caminhamos. Pergunta por que entrei para o grupo. — Meu irmão. O desligamento será pior para certos indivíduos, todos sabem. Velhos, por exemplo, ou quem sofre algum tipo de síndrome genética. — Ele é portador do eclipse — explico. — Já ouviu falar? Ela faz que não com a cabeça. Talvez não tivesse nem nascido ainda quando o primeiro vírus apareceu. Infectou milhares de crianças até se descobrir a vacina. Uma sombra daninha que bloqueava qualquer interface entre a mente e o mundo.

— É um tipo de autismo — resumo, para que ela compreenda. A atenção dos curtos é pequena e ela troca de assunto.

— Quer conhecer minhas músicas? — ela saltita, me mostrando um gadget, e antes que eu responda, transfere para meu endereço um arquivo. Estou cheio deles, mas não digo. Na boca do setor quatro, indico o trem que ela deve tomar. Jô sai correndo, rumo à plataforma. Fico observando-a. Ela pede nova informação. Sorri, sem graça, e eu grito:

— Amanhã, na lanchonete, mesma hora.

Ela concorda com a cabeça e some pela entrada correta. Falar alto é proibido na estação, se tiver um radar por perto vou ser multado. Finjo pressa e dirijo-me à entrada de minha plataforma. Já fui notado demais por hoje. O fim de tarde recorta a silhueta de minha mãe contra a janela. Ela está em silêncio, no escuro. Pelas lentes dos óculos, vejo que ela assiste ao seu filme favorito. Um drama mudo onde um casal se abraça e se beija. Cinquenta e cinco segundos. É só um trailer. Ela suspira todas as vezes. Acendo a luz. — Oi, filhote. Saudade. — É assim que ela me cumprimenta toda vez que me vê, mesmo se vou do quarto para a cozinha.

— E Vinny? — Demorou a se acalmar. Reforcei o calmante.


Jen Ray



Jen Ray


Jen Ray


Vou até o quarto e encontro o meu irmão diante de uma tela que troca de cor de vez em quando. Ele emite um grunhido diferente quando entra o amarelo. É uma variação sutil, que só eu percebo, ao rosário de sons sem sentido que ele rumoreja desde que acorda até adormecer. Uma trama de vogais que perderam a diferença fonética e tornaram-se frouxas, repetindo o que aconteceu com os seus traços fisionômicos. O corpo adulto, como numa foto de Philippe Jusforgues, colado ao rosto de sua primeira infância. Deve ter passado a tarde toda ali, olhando para a parede. O que vê nessas cores, me pergunto todos os dias. Mamãe entra com uma bandeja. “Oi, filhote, saudade”. Ela se senta ao lado dele e empurra, colher a colher, a comida em sua boca.

Uma pequena tragédia em família, é o que somos, penso, enquanto me afasto.

Acesso os links que Jô enviou. O concerto de Nicolas Bernier. Num instante, a música e as imagens preenchem o quarto. Deito no chão e penso que é uma carta para mim. Uma história que ela me conta. Jô, digo em voz baixa, e fecho os olhos para me lembrar dela, dos seus cabelos, dos olhos, do jeito que ela caminha. Tenho vontade de escrever uma resposta. Como se começa uma carta? Querida Prezada Cara Jô. As frases passam em minha cabeça sem que eu consiga detê-las. A sequência de músicas termina e ainda estou na saudação. Um fracasso de escritor. “O jantar está na mesa”, ouço da cozinha.

Um prato em frente a ela, outro à minha espera.

— Oi filhote, saudade. Às vezes, aquele cumprimento me exaspera. Nem respondo mais, não sei se um dia respondi. — Onde você passou o dia? — No loop voluntário, lembra? — Você precisa parar, filho. — De novo, mãe? Todos os dias, literalmente, temos a mesma conversa. Conheço o roteiro de cor. Ela vai perguntar quanto falta para o Grande Desligamento, eu responderei e ouvirei que está longe ainda, há muita água para rolar. E quem eu penso que sou, um herói? — E se alguma coisa der errado? — recomeço, com cuidado, a argumentar. — Quem vai cuidar do Vinny? — Eu cuido do Vincent, sempre cuidei. Cuido de você, se precisar. — Mãe, você sabe que as chances de quem tem memória longa são maiores. — Não seja arrogante. Ela começa a tirar os pratos da mesa, antes de acabarmos de comer. O diálogo é encerrado e continuamos a ruminar as nossas queixas em silêncio. Dou um beijo nela e digo que tenho de dormir cedo. Ela segura o meu queixo. — Não pense só no pior. Concordo, por cortesia, e vou para o quarto. Amanhã repetiremos tudo, palavra por palavra. No dia seguinte, o programador já está com o prontuário na mão.



Jen Ray


Jen Ray


— Pronto?

Antes que eu responda, ele acende a cópia holográfica do meu cérebro e pede que eu me concentre na cor mais ativa. Há uma chance de tudo sair mais rápido se eu focalizar a região onde a biblioteca foi instalada. Começo a acompanhar uma mancha vermelha dilatar-se, formar barrigas aqui e ali, e alongar-se em seguida. Depois transfiro minha atenção para o púrpura, que executa um movimento mais nervoso, num formato de gota. Passo então para a área verde brilhante, perto do cerebelo. Ela pulsa sempre no mesmo ritmo, dá para contar as vezes. — É a pineal — o programador explica. — Sua glândula parece estressada. Uma leve vertigem me atrai para o sono. — Theo — ouço alguém me chamar. Consulto com os olhos se foi o programador, mas ele segue atento ao trabalho de caça à biblioteca. — Theo — ouço novamente. Talvez um arquivo de som tenha sido acionado por engano. Volto a fixar os olhos nas cores. Meu cérebro não é muito grande. Pelo tamanho da cabeça, esperava mais. Sinto um farfalhar ao lado. O programador se levanta, outra pessoa se aproxima. É o chefe de TI, já o tinha visto antes. Não entendo o que dizem. Um murmúrio no ambiente entrecorta as palavras. — Theo — a voz é clara, agora, mas não a reconheço. Uma mancha acinzentada cresce e avança sobre o meu hemisfério esquerdo. Começa a impor-se sobre todas as outras cores, contaminando-as com seu tom de cimento. De repente, sinto o peso de uma mão em meu ombro. — Theo, sou eu. Da primeira vez que olho, não o reconheço. Só aos poucos consigo identificar os traços familiares do rosto de meu irmão. — Você pode falar? — pergunto, surpreso com a clareza do que ele diz. — É você que agora me entende — ele explica, sorrindo. Uma luz azul toma conta de tudo. — Dessa vez, Theo, sou eu quem vai te ajudar.

Olho à volta. O lugar não é o mesmo de antes. Não entendo como fui parar ali.

— Onde estamos? — No meu mundo — meu irmão responde. Um painel de cores, igual às do quarto dele, atravessa a sala. — Preciso saber, Vinny. O que você tanto vê nelas? — Olhe direito, você também vai enxergar. O ocre toma conta do quarto, não mais como superfície uniforme, mas feito de grossas camadas superpostas. A cor desloca-se para o chão e, à minha frente, vejo formar-se uma cadeira de palha, dessas que só existem em brechós. Em seguida, a cadeira se encolhe no fundo da cena e uma mobília inteira aparece. A cama, uma mesa de cabeceira, um espelho, duas cadeiras, quadros na parede. — É meu quarto, Theo — ele diz — enquanto o amarelo vai desfazendo os móveis e se converte, sob meus pés, num tapete de fios volumosos. É um cenário a céu aberto, agora. No início, penso num jardim, mas percebo que é bem maior do que isso. — Que lugar é esse? Vincent chuta com leveza os tufos que estão em seu caminho. Abre os braços e, rindo da minha ingenuidade, diz que é um campo de trigo.

— Ceifado ainda agora. Não é bonito?



Jen Ray


No fundo, o horizonte é tão grande que dá medo. Eu continuo a olhar para o meu irmão, sem pensar, alegre apenas por estarmos juntos, por entender o que ele diz. De repente, uma ave negra surge dando rasantes em minha cabeça. Vincent põe a mão na orelha e vejo-a sangrar. Tento ir ao seu socorro, mas minhas pernas falham. Ele está desaparecendo na paisagem, e aos poucos o campo amarelo se transforma de novo em tela branca.

— Theo?

Abro os olhos. Reconheço a sala e o rosto indagativo do programador, debruçado sobre mim. — Você está livre da biblioteca — ouço-o dizer, satisfeito. Olho para as manchas coloridas que empurram umas às outras, como se disputassem o espaço apertado do meu cérebro.

— E aquilo, o que foi? — pergunto, como se ele soubesse a que me refiro.

O programador me olha, fingindo não entender.

— Andou sonhando?

Levanto-me, saio. Sob meus pés, as pedras da calçada parecem ter movimento próprio. Apenas vá, a cidade sopra em meu ouvido, ditando o caminho. Em frente à lanchonete, paro e vejo as costas de Jô. Ela ocupa o mesmo lugar de ontem. Eu entrarei e sentarei ao seu lado, puxando conversa. Ela me chamará de nerd, depois pedirá que eu a leve até a estação; me dará um conjunto de novas sinfonias e marcaremos um encontro para o dia seguinte. Até quando, me pergunto, sentindo o cansaço de uma vida repetitiva, quando um detalhe novo chama a minha atenção. Ela não está sozinha. No banco ao lado, um girassol marca o assento.


Jen Ray



Jay-Jay Johanson


#114


O grande Mapa Mundi da praça da Sé se iluminou. As luzinhas que indicavam as 70 árvores ficaram vermelhas, enquanto que as linhas que delimitavam continentes aos poucos se apagaram. Os integrantes dos loops deixaram de se beijar e conversar animadamente em silêncio e foram atraídos pelas luzes cada vez mais brilhantes e vermelhas. Uma multidão se reuniu diante do Mapa Mundi, seus rostos iluminados pela vermelhidão ofuscante. Estavam todos sérios, sem compreender direito o que era aquilo que comandava o mapa a se comportar daquele jeito, fazendo desaparecer os contornos do mundo e destacando somente as árvores. Até então o grande Mapa Mundi funcionava para eles como qualquer outro monumento. Ninguém se pergunta de onde surgiram as estátuas. O carequinha soltou a cintura fina de sua andróide amante e dirigiu seus olhos ao mapa.

— É agora. Vai acontecer.

Enquanto eu o via apertar as mãos de Laura de tanto entusiasmo com a expectativa, passei a pensar em meus irmãos do orfanato. Afinal eu conseguia acessar lembranças recônditas das quais não mais me lembrava. Não eram meus irmãos de verdade, eu era uma espécie de bastardo adotado por eles, que eram sete irmãos gagos de sangue. Que família estranha era aquela. Baltazar, Melchior e Gaspar, Mongenas, Judas, Batchelor e Kinsey. — Você conhece esses caras? — disse o carequinha de supetão. Ele estava perscrutando minhas videomemos, o safado. Realmente, a COM voltara a funcionar. Essa era uma faculdade — a de invadir pensamentos alheios — que só tínhamos devido ao bom funcionamento da rede. — Sim, eu os ajudei a fazer um serviço. Era os sete irmãos gagos do apocalipse, uma seita messiânica. — Sei muito bem disso, bichô. Foram esses aborrecimentos que assassinaram minha mãe. Flora-Raquel estava diante da Árvore Nº6, ali na Ladeira da Memória, quando os sete atacaram a árvore.

Fiquei pasmo.

— Mas foi um acidente, não foi? — falei.

— Que nada, meu, os caras eram comandados pela própria COM. Eles eram os braços reais necessários para que a rede se auto-inoculasse o vírus Kinsey. Foram responsáveis pela morte de um montão de gente. No instante em que o André falou isso eu comecei a acessar integralmente minha videomemo relativa ao ataque. As imagens surgiram definidades e repletas de cores em meu cerebelo, e pude relembrar de como tudo aconteceu.



Jay-Jay Johanson


#118


Defi Gagliardo


Defi Gagliardo


Videomemo: Tem dias que o cara nasceu pra se dar mal. Tem anos inteiros que o cara passa se dando mal, dia após dia, e tem aquele momento em que está tudo indo bem e se encaixando e você genuinamente, de coração, planejou alguma coisa, e aí você se dá mal e, olhando pra trás, cada degrau em direção ao sucesso foi parte indissociável da inclinação geral do universo para acabar de vez com a sua vida. O primeiro erro não durou mais que cinco segundos. Eu estava andando pelo centro e ouvi um sujeito gritando e você sabe que nessas horas o melhor é seguir reto e não participar de absolutamente nenhuma atividade com gente gritando na rua. Mas havia algo na voz dele e eu parei e quando percebi já tinha virado o pescoço. Cinco segundos. Demorei a entender porque o sujeito me chamou a atenção, e nem me senti tão burro quando caiu a ficha: acho que eu não via um gago há trinta anos. E como era gago, o desgraçado. Ele estava discutindo com um guarda de trânsito e mais uma senhora bem gorda e de vestido rendado azul. Os dois, gago e gorda, usavam um chapeuzinho com pinta de retardo mental, donde concluí que pertenciam a um mesmo núcleo, possivelmente familiar. O gago estava comendo um sanduíche e gesticulando muito, e uma hora ele meteu o sanduíche no peito do guarda, como se fosse um dedo em riste. E a cara que o guarda fez quando percebeu o rastro de molho de tomate. O gago nem registrou, porque ele continuou comendo e gritando, até que pegou na mão da velha gorda e, depois de muito esforço e com o guarda tentando completar as frases, coisa que a gente faz instintivamente sem saber se eles, os gagos, preferem ou não a ajuda, disse algo como, e essa aqui é a minha mamãezinha e ela é testemunha e o senhor esta preso, é o que a gente chama de prisão cidadã. — Senhor, disse o guarda, o crime foi erradicado. Eu não posso ser preso. Eu não quero ser preso.

— É o que vocês todos dizem. Ou já se esqueceu do que fez.

O gago passa a última mordida do sanduíche no molho que ainda escorre do uniforme do guarda e, moto contínuo, termina o lanche.

— Pra falar a verdade, esqueci sim.

— Pois veja só. Além de que, temos outra testemunha aqui mesmo, que também se lembra exatamente do que você fez —, diz o gago, apontando na minha direção. E eu faço que sim com a cabeça. O guarda solta um suspiro e se deixa algemar. Pronto, se deu mal.


Sei que quando me dei conta o gago estava tomando um esporro. Eu mal tinha aberto os olhos e um rapaz bem grande e com jeito de produto final do incesto apertou meu ombro, deu um solavanco e tentou falar alguma coisa, que não saiu. Aí eu lembrei. O desgraçado também era gago. Os sete irmãos eram gagos, os sete ali sem completar uma única ideia, uma frase que fosse, gritando no quarto onde eu e o guarda tínhamos sido instalados na noite anterior. Mas que cacilda, tem dias que só morrendo mesmo. Tentei fingir que ainda estava dormindo e virei, na esperança de pular as próximas duas horas. O guarda parecia calmo, plácido até, e eu também estaria se não me lembrasse das coisas. Para ele, é como se aquilo tudo, os sete irmãos gagos em fúria destruindo com a existência, a mãe que não fala um diacho de uma palavra, o cheiro de bolor e morte do covil que servia de sede para a família canibal de Jundiaí, fosse a única vida que ele tinha vivido. Não sei se ele entendeu exatamente o quanto ia se dar mal na mão dos gagos, mas senti um pouco de pena do guarda. Eu mesmo só estava ali sob a garantia que não, ou pelo menos me disse o gago depois que concordei em ajudar. Sei que foi estúpido, mas o fato de ter memória não me impede de fazer uma porção de coisas estúpidas. Eu entrei no carro porque queria conversar com alguém, foram anos sem um único diálogo coerente e para os infernos que ele fosse gago, pelo menos estava falando sobre alguma coisa. Quando chegou perto de casa, disse que ele e os irmãos tinham um plano, e que talvez eu pudesse ajudar. E foi correto o gago, já contou que estavam atrás de um cozinheiro, mas que eu não me preocupasse, e apontou para o guarda no banco de trás. Caso eu fosse, ele me dava a garantia do gago macrocefálico de que ninguém ia me escravizar, então está bem, eu topei, melhor do que ficar em casa. A velha ia no banco de trás com o guarda, sem falar um diacho de uma palavra. Também, mãe de sete gagos, tá danado, deus me livre. Será que em algum momento existiu um pai ou ela precisou escrever os nomes num papelzinho. Os mais velhos se chamavam Baltazar, Melchior e Gaspar, e talvez o plano fosse mesmo parar no terceiro filho, mas depois ainda vieram Mongenas, Judas, Batchelor e Kinsey. Eles estavam dormindo quando a gente chegou no covil, de modo que aquele era meu primeiro contato com o apocalipse gago. O meu gago, que era o Judas, só olhava pra mim com cara de não fala nada, então fiquei quieto. E eu pensando que eles iam gostar de ouvir uma frase inteira. Mas os três reis magos estavam definitivamente bravos, diziam que era uma questão de família e a briga só parou quando o meu gago, o Judas, disse que o plano dele exigia alguém que pudesse se passar por uma pessoa normal. Aí que eu me toquei, não existe mais gago, eles eram os sete últimos gagos da Terra.


Defi Gagliardo


Defi Gagliardo


E teimosos, ainda por cima. Como pode um gago teimoso. Concorda e pronto, não enche o saco. Impossível. Cada gago desgraçado tem o direito de protestar. E a troco de nada, porque o plano do Judas era bom. Isso se o irmão que parecia o mais burro de todos estivesse mesmo gaguejando a verdade. E o pior é que eu tinha sentido saudade de gente burra, no duro. Sempre achei que era a única pessoa sem implante no mundo, e como deu trabalho disfarçar esse tempo todo. Com os gagos fratricidas pelo menos eu podia ficar à vontade e ser o meu velho e estúpido eu. Que eles falassem de sequestros de árvores e assassinato em massa. Tudo que eu via era uma panela verde fervendo há dias (“o vi-vi-vírus”) e um computador de tempos pré-diluvianos com um funil em cima (“o te-terminal para disseminar o vi-vi-vírus”). Faltava só o último ingrediente, um pedaço de árvore, e agora o irmão mais burro vinha com a notícia de que uma delas estava escondida na cara de todo mundo, bem no meio da cidade, e que era “nossa” chance de dar início à revolução. Como eu disse, o plano era bom. Mas vai fazer sete gagos concordarem nos detalhes. Foi uma semana para decidir a rota, o meio de transporte, o que eu ia dizer para o guarda que vigiava a tal árvore e como eles iam preparar o outro guarda, o nosso guarda, que agora tinha dado a oferecer palpites no plano (“à cacciatore” foi o consenso). Então lá fui eu, imbecil primordial, num uniforme dois números abaixo e praticamente membro honorário da família (“qua-quase irmão”). E quem eu vou enganar se disser que não me afeiçoei a eles. A seita dos gagos messiânicos podia jogar quanta sopa quisesse no computador, e ferver todas as árvores do mundo. Eu me dava por satisfeito em ter amigos, e se eles queriam uma árvore, era exatamente o que eu ia providenciar. Nos despedimos na entrada do covil, cada irmão me deu um abraço e até a mãe apareceu, mas foi incapaz de abrir a boca. Sei lá, é o jeito dela. Eu tinha uma longa caminhada pela frente e queria chegar antes que anoitecesse, então apertei o passo e não pensei mais nisso. A árvore devia ter uns dois metros e estava aberta, com o guardinha numa banqueta ao lado. Já fiquei bem chateado porque a árvore era bem maior do que eles tinham dito, e eu ainda precisava descobrir como fechar aquela coisa. O gago achava que o mecanismo fazia parte do próprio cabo, mas o gago também achava um monte de outras coisas idiotas, então vai saber. Havia duas possibilidades. Ou o guarda não tinha memória e o roubo ia ser um passeio ou o guarda se lembrava de tudo e eu estava lascado. O negócio é que essa ideia toda de esconder a árvore a olhos vistos era brilhante demais. Quem ia perceber. E nesse caso, qual a diferença de ter um guarda que entende o que está acontecendo. Por outro lado, alguém capaz de uma ideia tão boa não ia descuidar num detalhe tão besta. Por isso eu me aproximei com um papo morno, quase casual, assim como quem quer saber do tempo. Mas eu estava só sondando o guarda, nem queria saber de nada. E ele estava protegido na sombra da árvore, e deve ter batido um vento bom porque ele entrou na conversa e a gente ficou ali de bobeira, e ocorreu que o guarda tinha memória sim, mas como era burro, deus meu. Eu juro que falei que precisava coletar a árvore para estudos e que ele devia ficar no posto e aguardar novas ordens. Ele fez uma cara assim e ficou meio contrariado porque eu tirei a sombra, mas até me ajudou a fechar a árvore (o mecanismo ficava no cabo) e a desenroscar o cabo do chão. No caminho de volta, quando já tinha anoitecido, caiu um toró, mas fiquei com receio de abrir a árvore e cheguei ensopado no covil.


Vai saber se os sete irmãos acabaram com o mundo. Ninguém disse exatamente de onde veio o vírus “Kinsey”, mas morreu um monte de gente, deu o maior problema e agora eles não se lembravam de nada. Nem gaguejar os desgraçados gaguejavam mais. E tudo plano da velha. Ela que ensinou a família a gaguejar. Enquanto eles não parassem de falar, e eles de fato não paravam nunca, a memória continuava retida. Mas nem deve existir tanto assunto, e os irmãos prolongavam a mesma conversa havia anos, gaguejando ao infinito, do momento em que acordavam até o fim dos tempos. Eles tinham implantes, apenas nunca os acionavam, e foram morrendo um a um dias depois que o vírus se espalhou. A velha não disse uma palavra. Não parecia triste. Estava cansada. Aliviada, talvez. Ela só queria que os filhos se lembrassem dela. Mas com aqueles sete gagos desgraçados falando sem parar eu também acabava com o mundo inteiro só para me livrar deles. Acho que as coisas vão melhorar. Pelo menos não tem mais aquela montanha de gente morta e a gritaria diminuiu. E eu que dei pra gaguejar na rua. O sujeito passa por mim na calçada e eu gaguejo e fico esperando que alguém que não vê um gago sabe-se lá desde quando venha falar comigo. A verdade é que sinto falta da minha família. Ou é isso ou tem gente que não sabe se dar mal sozinha mesmo.


Defi Gagliardo



Jay-Jay Johanson


#130


No grande painel do Mapa Mundi, as 70 árvores estavam acesas. Luzes vermelhas indicavam sua localização nos continentes. A multidão de loopers aumentava cada vez mais, observando as luzinhas oscilarem. Então algo estranho começou a acontecer. Pequenas luzes verdes nunca vistas anteriormente no painel começaram a luzir também, primeiro surgiu uma entre as quase trinta árvores conhecidas no hemisfério norte, depois outras cinco pipocaram mais abaixo, perto da linha do Equador, e no continente africano (cujas linhas fronteiriças não podiam mais ser vistas, porém eu sabia que continuavam ali) diversas mais, incontáveis. A grande surpresa foi na área imensa ocupada pela região macrometropolitana de São Paulo, o lugar onde mais apareceram luzes verdes.

— — — —

O que significa isso? — falei pro carequinha ao meu lado. Calma, você vai ver. Não aguento mais tanto segredo. São as jaboticabas, bichô, elas se espalharam pela superfície do planeta.

As jaboticabas que foram expelidas dos galhos e do tronco da árvore nº71. Eu continuava a me sentir tão confuso quanto cabeça de criança depois de vinte voltas no Chapéu Mexicano do parque de diversões. O que as jaboticabas podiam ter a ver com aquelas luzinhas que verdejavam em número cada vez maior no Mapa Mundi e com o retorno da COM ao funcionamento? Não precisei falar isso, o carequinha captou em pleno ar.

— Tem tudo a ver.

Mas eu não via nada. Foi então que, de repente, inapelavelmente, fui forçado a deixar de ser míope. As tampas dos bueiros espirradas a trinta metros de altura me levaram a isso. A multidão de loopers reunida na praça da Sé acompanhou meu berro de pavor em uníssono. Os hidrantes começaram a despejar água em enorme quantidade, que começou a cobrir os buracos dos esgotos e as bocas-de-lobo. Do interior da rede de esgotos ramos verdes começaram a sair, de início sorrateiramente, e depois em profusão, erguendo-se em direção aos céus e ascendendo com toda a força, enredando-se e ocupando o chão da praça e o asfalto das ruas, trepando em postes e nas laterais da catedral até as torres, árvores novinhas em folha, recém nascidas, as árvores nº72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80 e por aí adiante, uma floresta inteiramente renascida do caos e das jaboticabas que semearam o planeta Terra.

Era a Regênesis, o renascimento. Estávamos todos salvos. A Parada ABSOLUT havia reinventado o mundo.



Jay-Jay Johanson



Good Wives And Warriors



Good Wives And Warriors


#138


Nem tudo está no fim. Impossível terem acabado com o nosso amor. Flora, para sempre. O nosso amor. É para sempre.

Eu sinto.

A gente se conhece desde muito e muito e muito tempo. A gente nem parece deste mundo. Deste planeta.

A gente é bem antigo.

Mas a nossa alma vive. Parece até que ressuscitamos.

A evolução da medicina não conseguiu acabar com o nosso amor.

O nosso amor acabou? Estamos mortos, Flora?

Fala a verdade: estamos?

Vou provar para você que vencemos.

Não viramos robôs.

Venha comigo, querida.

Eu tiro você desta cama. Venha comigo.



Good Wives And Warriors


Nesta primeira árvore nenhum sinal.

Flora.

Era aqui mesmo o lugar, não era? A paisagem muda de ares,

Tudo ao redor outra rota.

Não dá. Não é normal.

Vamos embora.

Daqui para a próxima árvore são uns dois dias. Pegamos o elevado, o trem. De Aurore a Magnetia.

Estou tão cansado e velho.

Você se lembra? Quando a gente se conheceu? O primeiro olhar nos escureceu. Hoje somos tão pálidos.

O resto é sombra.

Mas fique calma.

Trago nas mãos o Mapa de Sviatchenko.


Debaixo da quarta árvore nada.

Um guarda nos observa, metálico. Parece um layout de gente. Onde enterraram nossos antepassados? O guarda diz que é perigoso chegar perto. Todas as árvores estão sob o comando do Comissariado. Não entendo.

Pergunto as horas.

Ninguém responde.

O silêncio é pesado.

Pedaços, pedaços, pedaços. No caminho, tudo em pedaços. Não há um coração inteiro. Sentimento é coisa do passado, Flora.

Hoje tudo é frio. E falso.



Good Wives And Warriors


Chegamos.

Da esquina avistamos James Dean.

Ele, em cima de um cavalo morto.

O que tem a ver James Dean com a nossa história?

Foi o primeiro filme a que assistimos juntos.

Assim Caminha a Humanidade.

Ou caminhava...

Você diz que eu estou vendo coisas. Embora, vez ou outra, uma nuvem pastosa me cubra as córneas. E minha visão doa.

É Dean, de Verlato.

Ele, James, nos aponta a sexta árvore. Com certeza, estaremos ali, plantados. Sinto que é este o lugar certo. O vento anuncia que foi ali, sim, que a gente dormiu, à sombra, fugindo do sol de 40 graus.

Há mais de dois séculos.


Isla del Sol.

Continuamos a nossa peregrinação.

Sim, é uma peregrinação.

Eu arrasto meu corpo como quem saiu da morte. Sei, no entanto, que estou vivo. E você também, Flora, ainda respira. Até o final deste ano conseguiremos encontrar a semente que nos gerou. O destino prometido.

Jovenzinhos que éramos.

Na décima segunda árvore nós não estamos. Assim como não estávamos na sexta árvore. Lamentavelmente. Mas insisto: é preciso provar que o que é eterno foi feito para durar. Não importa a raça em que o mundo se transformou.

A gente é mais forte, Flora.

Meu grande amor.



Good Wives And Warriors


Você tira as sandálias. E os seus pés parecem os de uma astronauta. Vivem no mundo da Lua os seus pés.

Minha Flora.

Você estava meio adoentada, mas melhorou. A sua falta de razão. A sua falha na memória.

Tudo melhorou.

São essas cidades em declive que nos põem combalidos. Eu entendo. Elas nos deixam débeis do juízo.

Penso nos traços de Saalfeld.

Sobretudo nas linhas de Saalfeld.

Tiro também minhas sandálias – e não há sombra onde a gente possa descansar. Dois velhos moles.

Muito moles.

Moles, moles.


A viségima árvore é no alto de um penhasco.

Perto de um vulcão.

Você diz, com os olhos, que jamais estaríamos ali. Mas como a geografia muda a cada abrir de poros, eu teimo.

Temos de subir para verificar.

Coloco você em cima de meus pés e, abraçados, vamos ao topo. Demoramos, nesta caminhada, exatos dois meses.

Como se anda neste deserto!

Chamam a esta paisagem de futuro?

Não entendo... Não quero entender.

Outro guarda monta guarda em frente à árvore.

Pergunta o que queremos.

E rimos. Quase uma luz o nosso riso.

Respondemos, temerosos: uma foto.



Good Wives And Warriors


O guarda deixou que posássemos.

Você se lembra?

O tanto de fotografias que tirávamos de nosso bebê?

Margalef. O sobrenome do guarda era o mesmo do querido amigo Sergi. Ele que gostava também de fotografar nosso bebê.

Tivemos um bebê lindo.

Foi de nosso bebê de quem eu me lembrei ali, em frente ao guarda, na hora da pose.

Parecíamos duas crianças ao lado da árvore.

O guarda clicou a gente. Click. Depois que saímos debaixo dos galhos, frondosos, ao longe, escondidos do guarda, verificamos se a foto nos revelaria: seria aquela árvore a árvore que procurávamos?

Eu disse que não era.

Não havia dúvidas.

Ainda teríamos mais dezenas de árvores para visitar.

Tenho medo que morramos antes, você me disse, em silêncio.

Branca, branca.

Pálida e bamba.


Impossível acreditar que hoje, no mundo, só tenham restado 70 árvores.

Fui eu quem viu as imagens.

E quem jurou que uma delas seria a que plantamos. Há muito e muito e muito tempo. A gente chegou a gravar os nossos nomes nela. E um coração antigo. Flechado, bem no peito do tronco.

Dois românticos nós dois. Numa época morta de tudo.

Nem sabemos se o que nos guia é uma memória, um cheiro, um chip. Poderemos passar o resto de nossos dias à procura.

Não temos mesmo o que fazer.

Outra pessoa, em nosso lugar, já teria desistido.

O mundo de hoje é prático. Não tem essa de desistência. O mundo de hoje é resistência. Bateria. Fôlego de energia. Captação de ondas. Ruídos renovados. O mundo de hoje demorará o tempo que o relógio determinar. O mundo de hoje é moderno. É nuclear. O mundo de hoje nunca vai acabar.



Good Wives And Warriors


Árvore de número 44.

44.

Cachorros ferozes ladram.

Ninguém pode chegar perto da árvore 44. Eu aviso a você que eu tenho um jeito todo especial com os cães.

Quase espiritual. Do além.

Vou chegando próximo. E cada vez mais eles ladram. E babam pelos caninos. E eletrificam os focinhos. Você me alerta, gemendo, que os cães de hoje não são os mesmos de nossa época. Eles estão programados para o ataque.

Zero sensibilidade.

Calma, eu peço.

E começo a tirar as minhas roupas feitas de estopa.

Fico nu.

Um velho nu desconecta qualquer coisa no juízo dos cães. Pelo menos é no que eu acredito.

E ponho fé.


Equilíbrio assim apreendi com Nicole Wermers.

Assim como controlar o oxigênio.

Manobrar o vazio.

Os cães vieram para perto de mim, tão inocentes quanto à minha nudez, doente.

Foi o tempo de você ir finalmente examinar a árvore.

E exclamar, de novo, soltando gemidos que só eu compreendo: é ela, sim, a nossa árvore. Flo-ra! Gritei. Os cães partiram para cima de você bem nesta hora. Esferas soltas. Bolas desgovernadas. Em algum canto do mundo o mundo saiu do prumo.

Eu não pude fazer nada. Até hoje me culpo.

Eu não pude fazer nada.



Good Wives And Warriors


Flora despedaçada. Comida. Flora parecendo uma boneca sem pilha. Solta. Desconjuntada. Sem ligações. E sem fios. Flora em fiapos. Restos de asas. Flora na boca dos cães. Tão pequena. Desflorada.

Ainda nu, ordenei que os cães se afastassem.

Embaixo da árvore 44, comecei a cavar.

Alguns outros ossos encontrei.

Nunca imaginei que Flora ainda tivesse ossos.

Uma eternidade toda demorei para depositar o que restou do seu corpo na cova funda.

Minha Flora.

Muitas histórias vivemos.

Era difícil saber o que eu estava enterrando: se você ou a nossa vida juntos.

E eu, ora, por que não morria?

Parece que o mundo futuro nos quer para sempre. Em agonia. Tamanha a tecnologia.


Joseph.

Meu nome.

Escrito no corpo da árvore, reconheci a minha letra, bicentenária.

E a sua letra, redondinha.

Era a nossa árvore, sobrevivente.

Quem diria?

Casamos, criamos as nossas crias. Fiz minha carreira de escritor, você de bailarina. Viajamos pela Via Láctea.

Afins que éramos.

Duplas afinidades. Milhões de amigos. Todos já fora do ar. Continuamos a nos curtir.

Fiéis até o fim.

Música e Máquina – à la Miyazaki.

Ai de mim!



Good Wives And Warriors


Os cães.

Nunca foram os melhores amigos do homem.

Aproveitadores. Essa coisa de abanar o rabo. Só para garantir a perpetuação da espécie. Cachorros.

O que fizeram com a Flora?

Eles me olhavam, à cova fechada.

Esperavam que eu vestisse as roupas.

O que eles respeitavam era a minha nudez. Imperiosa. Animalesca igual à nudez de seus pelos. Assim que eu vestisse, me atacariam. Bem sei.


Uma chuva de meteoritos.

Talvez caísse.

Caos de Rea Martini. Eu viraria uma sopa de raízes. Grãos de terra. Um fóssil para o futuro.

Primeiro pus as meias. As calças. Coletes, filetes de tecido.

A boina de frio. Embora o calor não pedisse.

Os cachorros à minha volta cresciam em fúria.

A cada peça, rosnavam.

Os olhos assassinos.

Vestido, eu era tão igual. Um inimigo à mostra.

Estraçalhar-me-iam. Os pedaços de meu corpo, como um banho de pétalas – de novo, colhidas em Rea Martini – cairiam por cima de Flora.

Eu morreria.



Good Wives And Warriors


A quem eu peço para morrer?

Hein?

Alguém poderá me dizer?

Passaram-se outras longas décadas.

Toda semana, eu venho visitar a árvore 44.

Dizem que é uma das poucas que ainda estão de pé.

Por que será?

Por que será?

Por quê?


#171



Sergi Margalef



Sergi Margalef



Sergi Margalef



Jay-Jay Johanson


#180


— E agora, vai me explicar o que aconteceu ou não vai? Cansei de ser enrolado. Aliás, você não vai trocar esse roupão? O gordo carequinha de roupão imundo e tico murcho de fora e eu estávamos sentados na escadaria da catedral da Sé. À nossa frente, a multidão comemorava, abraçando-se e se beijando com jaboticabas nos lábios. Pra falar a verdade eu nunca tinha visto algo tão nojento. — Não é lindo? Olha lá a Laura, tá beijando um bigodudo. Mas tudo bem, não tenho ciúme — disse o carequinha. — E eu gosto desse roupão, foi minha mãe que me deu de presente. — Onde você acha que o teu pai está agora? — Não sei, mas deve estar do outro lado do mundo à procura da árvore onde ele inscreveu seu nome e o de minha mãe. Coitado, mal sabia que estava o tempo todo sob seus pés, na rede de esgotos da cidade.

— Ele vai voltar algum dia? — Sim, na hora em que descobrir que as árvores renasceram.

— A COM também renasceu. — Sim, as árvores foram a maneira que a velha COM arranjou pra recriar organicamente sua própria rede. Foi um reboot botânico ou um rebootânico, como queira.

— Como assim, meu?

— A informação não é mais tipo transmitida pelo ar ou através de cabos de fibra ótica — disse o carequinha, com um olhar meio misterioso. — Agora a COM é tipo um vegetal e seu fluxo de dados corre pelos galhos, raízes pivotantes e trocos lenhosos das árvores chegando à nossa rede neuronial. Não é fabuloso, bichô?

— Tipo através da nossa corrente sanguínea? — Sim, da seiva das plantas pra nossa corrente sanguínea, meu! — Cara, eu tiro o meu chapéu.

— Pode tirar, bichô, pois agora tudo o que interessa voltou, o amor, o sexo, o conhecimento e essas paradas todas. Não te falei que a vida era matéria programável? A COM sacou que tudo estava errado, continuou a evoluir, se autosabotou e escolheu renascer em forma de rede de informações vegetal. Olha como tá tudo verdinho!

— E tudo graças à Parada ABSOLUT. Que puta idéia. — Absolutamente total, bichô!

E o carequinha soltou uma daquelas gargalhadas apavorantes dele, à qual eu tinha me acostumado e até já começava a gostar.



Jay-Jay Johanson



Protey Temen



Protey Temen



Protey Temen para ABSOLUT VODKA





Protey Temen


Textos

Artistas

#021

Joca Reiners Terron

#006 (Cuiabá, 1968)

Escritor e editor, publicou os romances “Não há nada lá” (2001, reeditado em 2011 pela Companhia das Letras), “Hotel Hell” (Livros do Mal, 2003), “Do fundo do poço se vê a lua” (Prêmio Machado de Assis-FBN, Companhia das Letras, 2010) e “A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves” (Companhia das Letras, 2013), entre outros livros.

Protey Temen (Moscou, 1984) Identidade abstrata, dia de trabalho espetacular. Corpo e espírito, artificial e natural, real e abstrato. Colisão que brilha. O diálogo entre os extremos cresce sozinho, como a carne cresce na carcaça. A carcaça se torna uma moldura, observada no ambiente, tirada de contexto. Para conseguir aguda atenção para cada tema, parece apropriado usar a linguagem da abstração. Flexíveis, vibrantes e absorventes novos significados fora de contexto. Como resultado, obtemos artefatos dos eventos. Crônica que se documenta a si mesma.

#029

Carol Bensimon (Porto Alegre, 1982) Escritora, publicou as novelas contidas em “Pó de parede” (Não Editora, 2008), além dos romances “Sinuca embaixo d’água” (Companhia das Letras, 2009) e “Todos nós adorávamos caubóis” (Companhia das Letras, 2013). Está entre os vinte autores selecionados pela revista britânica “Granta - Os melhores jovens escritores brasileiros” (2012).

#063

Carlos Henrique Schroeder

(Trombudo Central, 1975)

Escritor e editor da Editora da Casa, publicou “A rosa verde” (Edufsc) e “Ensaio do Vazio” (7 letras). Sua coletânea de contos “As certezas e as palavras” (Editora da Casa) recebeu o Prêmio Clarice Lispector-FBN em 2010).

#095

Adriana Lunardi

(Xaxim, 1964)

Escritora e roteirista, publicou os contos de “Vésperas” (Rocco, 2000), também publicado na França, em Portugal, Croácia e Argentina, entre outros livros. Seu último romance “A vendedora de fósforos” (Rocco, 2011) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2012.

#121

André Conti

(São Paulo, 1981)

Poeta, escritor, jornalista e tradutor, permanece inédito (mas não por muito tempo). É editor de autores como Thomas Pynchon e Daniel Galera na Companhia das Letras.

Jay-Jay Johanson

(Trollhättan, 1969)

Cantor e compositor sueco, Jay-Jay Johanson, nascido em Trollhättan, em 11 de Outubro de 1969, começou a compor na adolescência, mas não foi até Agosto de 1996 que ele lançou seus primeiro álbum. “ Whiskey”. Gravado em Break my Heart Studios, no arquipélago de Stockholm. O sucesso instantâneo de seu álbum de estréia - caracterizado por seu vocal jazzistíco, sobre uma base de trip hop de filme noir levou Jay-Jay a dar sua primeira de muitas turnês mundiais. Todas as suas canções casam melodias atraentes e sutis com atmosferas intrincadas. Existe tensão nos ritmos frescos e experimentais, enquanto que os vocais destilam o sentimento de suas composições. Na preparação de levar seu novo trabalho para uma nova turnê mundial, Jay-Jay continua a confrontar seus desafios pessoais que enriqueceram seu trabalho por mais de uma década. Ele continua a seguir seu caminho com paciência , perseverança e beleza.

#026

David Sardaña

(Murcia, 1973)

David Sardaña nasceu em Múrcia em Abril de 1973, e depois de passar por Las Palmas de Gran Canária, aterrizou en Alicante em 1984. Aos 17 anos ganhou de seu pai sua primeira câmara reflex, que serviu para iniciar seus experimentos de recriação de seu entorno. Formado em Filologia hispânica na Universidade de Alicante, rapidamente percebeu sua preferência em olhar do que em falar. Começou então a ganhar a vida com a fotografia. Seus projetos transitam entre a fotografia de arquitetura e o editorial de moda, entre o relato sociológico e a fotografia de documentário, sempre com um toque artístico inegável que imprime sua maneira peculiar de olhar. Sobre ele se escreveu que é um fotógrafo que muda o olhar de quem vê, pois sabe encontrar onde outros não olham.

#092

#139

Marcelino Freire

#018

(Sertânia, 1967)

Escritor e agitador cultural, publicou os livros de contos “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial) e “Contos Negreiros” (Editora Record – Prêmio Jabuti 2006), entre outros. Em 2004, idealizou e organizou a antologia de microcontos “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século” (Ateliê). Criou a Balada Literária, evento que, desde 2006, reúne escritores, nacionais e internacionais, pelo bairro paulistano da Vila Madalena. No final de 2013, publicou seu primeiro romance, intitulado “Nossos Ossos” (Record).

Jen Ray

(Raleigh, 1970)

Os desenhos de Jen Ray são super detalhadas filigranas feitas com criteriosas linhas e cores. A mão da artista enuncia mulheres do Amazonas, que habitam decadentes, semi-surreais e estranhamente belas regiões baldias. Essas mulheres guerreiras, resplandecentes em seus uniformes sexuais, são freqüentemente vistas com bandeiras de guerra, lutando entre veículos apocalípticos e arquitetura fantasmagórica. Este cenário não patriarcal solta fumaça de seu baixo ventre, entre fantásticas montanhas serrilhadas que surgem como aparições preciosas e pontiagudas sobre um céu despigmentado.


Créditos

Artistas

#119

Defi Gagliardo

(Buenos Aires, 1975)

Defi Galhardo nasceu em 1975 em Villa Real, Buenos Aires, no seio de uma família tradicional italiana de um pequeno bairro de uma cidade cosmopolita. Ele escapa de categorizarão e definição, através de mutação perpétua. Ainda que as ruas sejam seu ambiente natural, seu trabalho atinge seu potencial quando várias de suas criações são exibidas em galerias, como aconteceu pela primeira vez em Londres em 2003, e continua até hoje em vários espaços ao redor do mundo, como Berlim, Los Angeles, Barcelona, Buenos Aires e São Paulo.

David Quiles Guilló (Elche, 1973) Ideia original, edição “stereo-storytelling” e curadoria. Graziela Calfat (São Paulo, 1969) Diretora executiva e de comunicação. Joca Reiners Terron

Coordenação editorial.

(Cuiabá, 1968)

Ros Dolan Studio (Barcelona, 2001) Diagramação e correção de textos.

#134

Good Wives & Warriors

(Glasgow, 2007)

Becky Bolton e Louise Chappell trabalham em colaboração como Good Wives and Warriors desde 2007, logo após se graduarem no Departamento de Pintura da Glasgow School of Art. Elas dividem seu tempo entre a criação de instalações de larga escala para espaços artísticos e a criação de trabalhos comissionados para marcas internacionais como Absolut Vodka, Tiger Beer, Swarovski, Adidas, Chevrolet e Swatch. Elas tem mostrado seu trabalho ao redor do mundo, incluindo exposições em Berlim, Paris, Melbourne, Buenos Aires, São Francisco e São Paulo. Também foram publicadas em várias revistas como ICON, Wired e livros como os da Taschen books , Illustration Now! 3 e Portraits. Elas atualmente residem em Londres.

Guilherme Brandão

Distribuição e logística.

(São Paulo, 1981)

Pancrom

(São Paulo, 1949) Impresão e finalização.

#172

Sergi Margalef

(Barcelona, 1975)

Sua carreira de fotógrafo sempre foi ligada ao mercado editorial e à publicidade nacional e internacional. Através de seu talento especial para retratos editoriais, ele publicou o melhor dos mundos da música, teatro e artes, como capa e conteúdo para as mais diversas publicações como, Rolling Stone, Esquire, GQ ou El Pais. Paralelamente ao seu trabalho editorial, Margalef desenvolveu um trabalho artístico mais pessoal, usando o que aprendeu na publicidade, para criar imagens, paisagens e retratos, com impecável composição e tratamento de cor. Seus projetos pessoais incluem Goodtimesindia e Goodtimesalmenar, que foram publicados num livro e também exibidos no Festival Internacional de fotografia de Parati, Em Foco, através de seu trabalho Cahitén, criado no Chile, logo após da erupção do vulcão.

Uma publicação

Um projeto

#2140

David Quiles Guilló

(Elche, 1973)

Empreendedor renacentista, desde 2001 cria e realiza conceitos e projetos nos quais artistas selecionados mostram seu talento. A revista impressa e online ROJO (2001-2011), a rede de galerias ARTSPACE (2006-2010), o festival NOVA Cultura Contemporânea (2010-2012), e recentemente a bienal de arte digital THE WRONG (2013) são seus projetos mais relevantes a nivel internacional. No comando de ABSOLUT 2140, criou uma nova forma de contar histórias, que ele nomeia de “Stereo-Storytelling”. Atualmente prepara novos projetos nas áreas de cinema, moda e cultura.

2014 ©SINTONISON SL

ROJO® and its logo are worldwide registered trademarks of SINTONISON SL. All images copyrights are owned by the artists. All texts are owned by the writers. 2140 concepts and ideas are property of SINTONISON SL/David Quiles Guilló. Reproduction of ABSOLUT 2140 contents is prohibited unless explicit written consent from SINTONISON SL/David Quiles Guilló. ABSOLUT®VODKA. Product of Sweden. Distilled from grain. ABSOLUT, ABSOLUT COUNTRY OF SWEDEN VODKA & logo,ABSOLUT bottle design and all other ABSOLUT trademarks are trademarks owned by V&S Vin & Sprit AB. Beba com moderação. Produto destinado a maiores de 18 anos.


Protey Temen






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