Entre dois modus vivendi turbilhão

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Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica e V Jornada de Pesquisa e Pós-Graduação UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS 10 a 12 de novembro de 2010

Entre dois modus vivendi: arcaísmo e modernidade em Turbilhão, de Coelho Netto

Rafael Ferreira Campos Mendes (Bolsista PIBIC/UEG) Ewerton de Freitas Ignácio (pesquisador-líder) UEG – Universidade Estadual de Goiás, CEP. 75110-390, Brasil ewertondefreitas@uol.com.br e rafael5880@hotmail.com

Palavras-chave: literatura brasileira; experiência urbana; modernidade.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta dados conclusivos a respeito do Projeto de Pesquisa intitulado “Entre dois modus vivendi: arcaísmo e modernidade em Turbilhão, de Coelho Netto”, cujo objetivo era o de analisar as maneiras por meio das quais se efetivam as relações entre personagens de ficção e o contexto citadino no qual suas vivências se inserem. Henrique

Maximiano

Coelho

Netto

(1864-1934),

maranhense

de

nascimento – nasceu em Caxias –, cresceu no Rio de Janeiro, cidade que retrata em muitas de suas obras e em cujos espaços lutou ativamente em prol da abolição da escravatura, tendo sido, nesse aspecto, amigo íntimo de José do Patrocínio. Ao longo de 43 anos de produção literária, o autor de Rei negro escreveu mais de uma centena de, embora muitos não tenham passado pelo crivo do tempo, ou seja, nem todos se perpetuaram perante o gosto da crítica e do público leitor. A prosa de Coelho Netto apresenta características parnasianas, como a busca por um refinamento estilístico, uma busca por novos vocábulos – só a longos intervalos é que o autor usava a mesma palavra – e, também, um anseio pela adjetivação numerosa, rara e erudita. Nesse sentido, não é de admirar que críticos e autores vinculados ao Modernismo, estética que preconizava e valorizava a

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utilização de uma linguagem mais simples, mais direta, fossem reprovar o que, em Coelho Netto, se constituía como sua prática mais comum. Esse gosto do autor por vocábulos raros explica, em parte, o ostracismo a que se encontra submetida grande parte de sua produção, uma vez que muitos leitores preferem ler obras cuja linguagem seja mais direta, mais objetiva, mais simples e, justamente por isso, mais acessível. Interessante notar, nesse sentido, as transformações pelas quais passa, em relativo pouco tempo, o gosto do público, já que, em sua época, o autor de Turbilhão foi o escritor mais lido no Brasil.

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MATERIAL E MÉTODOS

A partir do momento em que se deu a aprovação do projeto de pesquisa, as

atividades

circunstanciadas

no

“cronograma

de

execução”

começaram,

imediatamente, a ser desenvolvidas. Para tanto, fizeram-se necessárias algumas leituras teóricas por parte do bolsista do supracitado projeto, uma vez que se trata da análise de uma obra que não se valida sem o apoio de uma bibliografia teórica específica. Dessa forma, para a consecução dos objetivos da pesquisa, quais sejam analisar a maneira pela qual o espaço citadino dialoga com as personagens de Turbilhão, foi pensada e posteriormente aplicada a seguinte metodologia: leitura atenta da obra em análise, após o que se procedeu ao início da pesquisa bibliográfica, por meio de cuja execução foi possível ao orientando compreender e assimilar a corpus teórico da pesquisa. Concomitantemente a essas tarefas, havia colóquios entre orientador e aluno bolsista, durante os quais promoviam-se discussões acerca da obra e explicações mais detalhadas sobre noções teóricas de maior complexidade e que porventura representassem maior dificuldade de assimilação por parte do já referido bolsista. Num segundo momento, deu-se a aplicação da teoria assimilada ao estudo da obra em análise. Ressaltem-se, nesse sentido, os seguintes autores, cujas obras servem como embasamento teórico-crítico à análise do romance em estudo: Osman Lins, com Lima Barreto e o espaço romancesco (1978) e a Antonio 2


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Dimas, com Espaço e romance (1997), obras que tratam da representação espacial de narrativas em prosa. Renato Cordeiro Gomes, com Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana (1994) e Fernando Cerisara Gil, com O romance da urbanização (1999), textos que versam sobre a questão da legibilidade do urbano por meio da leitura de textos ficcionais. Lewis Mumford, com A cidade na história (2004), Bárbara Freitag, com Cidade dos homens (2002) e Raquel Rolnik, com O que é cidade (1988), obras que versam tanto sobre a cidade como constructo histórico-social quanto em sua dinâmica socioeconômica e cultural, o que implica sua relação tanto com a literatura quanto com a cultura de um modo geral.

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RESULTADOS E DISCUSSÃO

Como já se observou anteriormente, embora Coelho Netto tenha sido o romancista mais lido do Brasil, à sua época, sua obra, no presente, praticamente caiu no ostracismo, uma vez que, com exceção de O rei negro e de A capital federal, pouco ou nada se ouve falar do escritor. Desse modo, há poucos estudos tanto sobre o autor quanto sobre sua obra, o que, se por um lado torna a pesquisa interessante, por outro faz com que o pesquisador resvale num tipo de vazio crítico sobre o autor de Tormenta, fato que, em alguns momentos, acaba por dificultar o estudo. A respeito de parte de sua produção romanesca, pode-se constatar que a trilogia A capital federal (1893), A conquista, (1899) e Fogo-fátuo (1929), bem como seus romances “avulsos” Miragem (1895), Inverno em flor (1897), O morto (1898), Tormenta (1901) e Turbilhão (1906) representam, em conjunto, o essencial de sua ficção urbana, aspecto de sua produção que, diga-se, é menos explorado pela crítica do que sua ficção de moldes rurais, a exemplo de O rei negro (1914). A ficção urbana do autor de A conquista é predominantemente imaginativa – excetuando-se sua trilogia, escrita nos moldes de uma obra memorialista e, por isso, baseando-se nas experiências do autor na condição de ser humano engajado na causa republicana e abolicionista, na imprensa carioca ou, mesmo, como homem de letras que viveu no período compreendido pela Belle Époque. 3


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No que diz respeito ao enredo das obras de caráter mais imaginativo do que calcado nas experiências vividas pelo autor, percebe-se o fruto do trabalho de um observador do conjunto humano circundante nas ruas – principalmente a Rua do Ouvidor –, cafés, bares e teatros cariocas. Não raro, sua ficção também retrata cenas do cotidiano citadino, sejam cenas transcorridas nos bondes, centros de espiritismo, redações de jornais, casas de jogo, quintais de residências suburbanas. No conjunto, essa obra plasma, em mosaico, um amplo painel do conjunto urbano da, então à época, capital federal brasileira. A respeito de Turbilhão, nota-se que os fatos circunstanciados no enredo se constituem como frutos do livre curso da imaginação do autor, mas o espaço em que tais fatos se dão é um espaço tirado do plano da realidade e, nesse sentido, pode-se afirmar, também, que a obra resulta de uma observação empírica do universo nela retratado. A verdade é que Coelho Neto, nesse romance, alude ficcionalmente às mudanças que se verificavam no modo de vida da população do Rio de Janeiro na primeira década do século XX. Turbilhão, a despeito do sucesso inicial, acabou por cair no ostracismo, podendo-se afirmar que ainda não foi redescoberto, nem mesmo com o advento de estudos recentes, voltados para a Teoria da linguagem e para o contexto do Prémodernismo, desenvolvidos pelo setor de filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa, já que tais estudos, a despeito do mérito de resgatarem obras que, na atualidade, encontram-se olvidadas, ainda não se debruçaram, até o presente momento, sobre esse romance de Coelho Netto. O fato de o conjunto da produção do autor ter caído no esquecimento, segundo Mary L. Daniel (1993), pode ser explicado pelo motivo de ter sido publicado pela Editora Lello, na cidade do Porto, em Portugal, o que teria dificultado o acesso à sua obra, pelo público leitor brasileiro, nas décadas seguintes à morte do autor, mesmo com a publicação da Obra seleta de Coelho Netto, em três volumes, pela Editora Aguilar, no ano de 1958. Esse

fato

vem

justificar

o

recorte

realizado

neste

estudo:

resgatar/apontar/analisar uma obra romanesca que, a despeito de sua inegável qualidade, atualmente é ignorada pelo público leitor brasileiro e, também, por grande parte da crítica especializada. 4


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Sobre o enredo de Turbilhão, tem-se uma ação que está centrada na trajetória de Paulo, órfão de pai, estudante de medicina, de baixa condição financeira. Sendo, como já se afirmou, órfão de pai, e morando com a única irmã, Violante, e a mãe, D. Júlia, esta sempre às voltas com achaques e doenças, o moço fica chocado, indignado logo no começo da narrativa, tão logo toma conhecimento do fato de que a irmã havia fugido de casa. Para os padrões morais e sociais da época, isso significava o fim da reputação de uma donzela, já que tal ato, sem uma imediata reparação – leia-se: casamento – faria com que a moça fujona ficasse relegada, fatalmente, à condição de uma meretriz. O rapaz, envergonhado, abandona os estudos, com o aparente propósito de não passar por situações vexatórias, promovidas pelo comportamento mordaz dos colegas de estudo. Como aparente decorrência do fato de ele dispensar muito tempo perseguindo prováveis pistas que denunciassem o paradeiro da irmã, ele também perde o emprego. Vê-se, então, numa condição de maior privação material, quando decide entregar-se às tentações e riscos do jogo. Nesse ínterim, sua mãe, cada vez mais doente, passa a penhorar suas antigas jóias – igualmente humildes, cujo valor é de cunho mais afetivo que financeiro – e a criada da casa, cujo filho havia morrido na Revolta da Vacina (1904), enlouquece –. Pelas filigranas do texto, percebe-se que o narrador atribui a causa da loucura da criada menos à perda do filho do que ao seu envolvimento em rituais espíritas, o que nos faz remontar ao preconceito religioso, mais fortemente perceptível em períodos mais remotos. No momento em que Paulo encontra a irmã no teatro, coberta de luxo, faiscante de magníficas jóias, acompanhada de uma senhora gorda, fica extremamente irritado e tem ímpetos de agredi-la verbalmente, chamando-a de vagabunda e prostituta. Tal ímpeto, porém, cede espaço ao encantamento que a visão da irmã, antes humilde e trajada com simplicidade e, agora, vestida de luxo e faiscante de jóias de pedras preciosas, lhe desperta. No dia seguinte, conhece o palacete em que Violante, mantida por um rico e anônimo senhor, passara a morar depois de ter fugido de casa e de ter passado uma breve temporada em Buenos Aires. Paulo não se dá conta, mas, implicitamente, pode-se notar que uma admiração pela audácia e coragem da irmã 5


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brota em seu peito, afinal ela teve a coragem de romper os laços com uma sociedade que, embora muitas vezes hipócrita e que se deixa pautar sob a égide de relações superficiais, pré-estabelecia o comportamento dos indivíduos cujo comportamento era considerado correto, íntegro, direito. A mãe, no entanto, devota e moralmente rigorosa, não consegue assimilar da mesma forma o novo modus vivendi da filha e se prostra na cama, doente. Aliado a esse dissabor, soma-se o fato de que Paulo expulsara a criada enlouquecida de casa e colocara, no lugar, sua amásia, para que cuidasse da mãe enferma. Tais desgostos são demais para o coração da pobre senhora, que morre dois dias depois de ter reencontrado a filha. Pano de fundo para as ações das personagens é a cidade do Rio de Janeiro de meados do século XX, com suas ruelas e becos, com seus palacetes e cortiços: um espaço de miséria mas, igualmente, de possibilidades de ascensão socioeconômica, embora com algumas ressalvas, já que, a depreender da narrativa, apenas mediante ações consideradas escusas e/ou imorais é que o indivíduo conseguiria ascender a uma melhor posição social e econômica, como é o caso de Violante, que enriquece às custas de sua prostituição. Acerca da constituição do espaço enquanto elemento narrativo, percebese que, conforme um interessante estudo de Osman Lins (1976), há narrativas em que o espaço se configura de modo impreciso e vago mas, mesmo assim, “intentase concentrar o interesse nas personagens ou nas motivações psicológicas que as enredam” (1976, p.65), o que justifica a imprecisão do espaço pela natureza intemporal, não-circunstancial da narrativa, uma vez que as relações entre espaço e personagem carecem de significado sócio-histórico. Osman Lins salienta, entretanto, que nas obras em que se nota esta ocorrência, pode haver maior profundidade literária do que naquelas em que a manifestação do espaço atua preponderantemente, citando como exemplo O Castelo, de Franz Kafka, em que “não se trata de um castelo ou de um verdadeiro domínio feudal, mas sim de uma grande simbologia. Imediatamente o próprio K. tomará conhecimento disso, integrando-se assim mesmo nessa totalidade mítica, pois é assim que o homem pode situar-se face à realidade global”. (KOKOS, 1967, p. 107 apud LINS, 1976, p. 65). 6


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Nesse sentido, pode-se perceber, em Turbilhão, que os espaços retratados na obra não são assimilados de forma objetiva pelas personagens. Muito pelo contrário: o contato entre personagem e espaço citadino circundante é sempre permeado por uma visão, por parte das personagens, que busca sempre relativizar as coisas ou, no limite, julgá-las de acordo os interesses particulares. Desse modo é que a mansão de Violante, claramente um tipo de prostíbulo – ainda que seja de apenas uma meretriz – é entrevisto como uma rica casa em que mora uma moça que, no máximo, é taxada de “vagabunda” (p. 152)1. Desse modo é que, até o momento em que não tem notícias da irmã, Paulo está extremamente irritado com ela, mas, no momento em que a encontra e que se encaminha até a luxuosa casa em que ela está morando, seus sentimentos com relação tanto a ela quanto ao que ela havia feito acabam se transformando, e a raiva cede espaço ao respeito e à admiração por tudo quanto Violante “conquistara”: A casa, de aspecto nobre, com todas as janelas fechadas, ficava ao fundo de um jardim sombrio, de sinuosos caminhos areados de saibro escuro. Duas alvas figuras de mármore destacavam-se na sombra das ramagens [...] Duas cegonhas de bronze flanqueavam a otomana de damasco amarelo, vivamente ensangüentado a flores de púrpura. Pelas paredes, floridas a ouro, sobre aveludado fundo carmesim, acumulavam-se retratos, grandes quadros pendiam mostrando paisagens tristes – campos de trigo esfumados pelo crepúsculo e gados que recolhiam e uma gravura idílica em que havia uma redouça, entre flores, unindo um jovem casal amoroso no mesmo balouço. O silêncio era absoluto como se tudo dormisse naquela casa. A criada apareceu com passos surdos, como uma sombra: - Pode subir. A senhora espera-o lá em cima. [...] Dirigiu-se para o suntuoso salão atapetado. O lustre cintilava a um raio de sol. O mobiliário era rico, adaptado à volúpia – moles divãs orientais sobre pelegos que formavam macia alfombra, de cores quentes; grandes almofadões de seda com borlas, fundas poltronas. Os consolos altos, esguios, com espelhos finos, eram todos dourados e rebrilhavam. Cortinas escuras temperavam a luz, quebrando a violência do sol que entrava por quatro janelas abertas sobre balcões. Na mesa do centro, incrustada de marfim, dentro duma linda jarra de porcelana, morriam rosas. Aroma tépido e voluptuoso impregnava o recinto. Os rumores da rua chegavam abafados, ensurdecidos, como se viessem de muito longe (p. 118).

Segundo Gisela Pankow, em O homem e seu espaço vivido (1988), nenhum espaço é subjetivo. Nesse sentido, o que faz com que Paulo reverta o sentimento 1

Todas as citações de Turbilhão, neste trabalho, referir-se-ão à edição feita pela Ediouro (s/d), e, para facilitar, indicaremos apenas o número da página ao fim da citação.

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que passa a nutrir pela irmã, após sua fuga, não é o fato de tê-la reencontrado, ou de saber que ela está bem, mas, sim, porque fica embasbacado ante a beleza e sofisticação da casa que ela agora possui. Note-se, ainda em relação à descrição da sala, que se trata de um ambiente cuja luz é filtrada pelas cortinas, cujos ruídos são abafados pelos tapetes, um espaço, por fim, “adaptado à volúpia”, ou seja, a uma casa de meretriz, corresponde esse espaço, carregado de seda, poltronas, divãs, com muito dourado, com muito brilho. Ressalte-se que a casa fica um tanto afastada da rua, uma vez que, para se chegar até à porta, tem que se atravessar o jardim que se passar por “sinuosos caminhos”. Essa expressão, aliás, parece metaforizar os caminhos das próprias vidas das personagens de Turbilhão, uma vez que não se trata, mais, de caminhos rígidos ou de atitudes previsíveis. Ao contrário: o que ditam os novos rumos dos destinos humanos são, cada vez mais, a força de vontade e a influência do capital. Na casa da irmã, Paulo fica tão deslumbrado com o luxo e o encanto do que vê que os sentimentos que sente por ela, por um breve momento, chegam a confundi-lo: Um perfume cálido errava no ar. Havia no silêncio um quê de sedução, um convite misterioso: era o ambiente lascivo que sugeria e vergava ao amor. Paulo não se atrevia a avançar – olhava tolhido, perturbado, sentindo o prestígio inelutável da mulher, a influência poderosa da carne como se ali não estivesse a irmã, mas uma mercenária que o fosse arrastando, vencido, para o amor lúbrico que todo aquele interior aconchegado e discreto insinuava (p. 120).

Desse modo, o rapaz que entrou, meio ressabiado, na casa de luxo em que a irmã passou a morar, não é o mesmo que sai. O que entrou era receoso e ainda em dúvida quanto ao que sentia pela irmã – raiva? Curiosidade por seu novo modo de vida? – mas o que saiu tinha certeza do que sentia: admiração, já que havia sido “comprado” pelo brilho de tudo quanto vira. Em outro momento, ao pensar no que a irmã fez, Pensou em Violante com simpatia. Afinal, que podia ela esperar? Pobre, casando não passaria da vida insípida que levam todas as mulheres, na monotonia enfadonha dos afazeres domésticos, mal-amanhada,

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envelhecendo, mortificando-se no trabalho insano, arrastando a fecundidade penosa, sempre rodeada de filhos, talvez brutalizada pelo marido, sofrendo privações entre as quatro paredes de uma casa. Assim, não – era livre, tinha todo o gozo, podia saciar-se à larga, sem preocupar-se com a sociedade com a qual rompera abertamente (p. 116).

E quanto às descrições dos espaços citadinos e as relações que se podem estabelecer entre eles e as personagens do romance? Cumpre, antes, discorrermos um pouco acerca da cidade enquanto realidade histórica.

As primeiras cidades (MUMFORD, 2004) surgiram na

Mesopotâmia, em torno de 3500 a.C., aquelas pelas quais os homens abandonaram seu modo de vida nômade, espacialmente errante. Nesse período, o domínio da técnica do tijolo cozido (matéria-prima utilizada na construção das cidades) correspondeu a uma verdadeira reviravolta na vida das pessoas, na medida em que possibilitou uma nova maneira de pensar o habitat. Tijolos e mais tijolos justapostos: a grande construção, erigida por meio de milhares de tijolos, marcou a constituição de uma nova relação entre homem e natureza, na medida em que houve o surgimento de uma nova forma de ocupação do o espaço natural, bem como de sua transformação, uma vez que o produto do trabalho do elemento humano passou a vigorar num cenário em que, antes, o natural figurava como paisagem única. Para Raquel Rolnik (2004), a cidade, na atualidade, exerce cada vez mais influência sobre o campo, na medida em que há, como decorrência das conquistas da modernização, um tipo de “urbanização” (p. 20) na mente dos habitantes de áreas rurais. Nesse sentido, há, sempre em menor proporção, espaços verdes, naturais: a natureza cede espaço, desse modo, às construções de asfalto e concreto da grande cidade. Em relação à representação ficcional da cidade em textos literários brasileiros, pode-se constatar que, desde o advento do Romantismo, o universo citadino tem figurado, de modos diversos, no contexto da nossa literatura. Desse modo é que, no período romântico, com a tomada de consciência de nossa nacionalidade, houve a configuração de uma preocupação temática no sentido de valorizar a terra, a paisagem e o homem que a habitava, o que condicionou e

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justificou o surgimento de narrativas que retratavam tanto cenários campestres quanto cenários caracteristicamente urbanos. Partindo desse pressuposto, segundo o qual as bases da ficção brasileira se consolidaram como uma resposta a uma busca de expressão nacional (CANDIDO, 2002), com o advento da modernização e o conseqüente acentuar do processo de urbanização e seus efeitos, houve, por parte dos romancistas, uma preocupação mais voltada para o retrato das mazelas sociais, fossem num contexto citadino, como nos demonstra a prosa de Lima Barreto, fossem num cenário rural, como nos atesta parte da produção de Monteiro Lobato. Desse modo, desde o período que se convencionou denominar de “prémodernismo”, a cidade tem sido descrita, literariamente, em todas as suas peculiaridades, seja pela prosa, seja pelas formas poemáticas da literatura brasileira. Referindo-se aos romances que têm a cidade como palco das ações circunstanciadas em seus enredos, Renato Cordeiro Gomes, em Todas as cidades, a cidade, afirma que os livros que realizam uma leitura do urbano plasmam um “livro de registro da cidade”, amplo livro que é um verdadeiro “labirinto: um texto que remete a outro, que por sua vez conduz a um terceiro, e assim sucessivamente” (1994, p. 24). Haveria, nessa diversidade textual acerca do urbano, tanto textos que se referem a uma cidade repleta de significados positivos, quanto obras que apontam para a carência de finalidade de um cenário citadino cuja configuração, labiríntica e impessoal, espelha a desorientação a que submete seus habitantes, na medida em que nada mais parece haver entre as personagens e o contexto urbano que as rodeia, a não ser a babélica estupefação de um universo citadino fechado em si mesmo. Para Roland Barthes (1987), a cidade pode ser entendida como texto, como fonte de leitura. Nesse sentido é que tece considerações que vislumbram a cidade por um prisma que a considera exclusivamente significante, e destituída, portanto, de uma distribuição funcional da sua trama urbana. Desse modo, a cidade é percebida não em suas peculiaridades geográfico-espaciais, mas, sobretudo, como um discurso, que fala e se faz entender aos seus habitantes.

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Considerando as idéias do teórico francês, pode-se afirmar que alguns modernistas brasileiros – como Mário de Andrade, Pagú, Oswald de Andrade, dentre outros – realizaram uma “leitura” do contexto urbano de São Paulo, cujas transformações presenciaram in loco. Salvaguardadas as devidas proporções, essa mesma leitura do urbano, mas tendo a cidade do Rio de Janeiro como “texto”, foi realizada por Lima Barreto, João do Rio e, em sua vasta produção romanesca, também por Coelho Neto. Tanto no contexto paulista quanto no carioca, esses escritores escrevem/inscrevem, em suas obras, histórias ficcionais que registram as aceleradas transformações, de ordem social, econômica e cultural, pelas quais passam a cidade. E quanto ao espaço narrativo, entendido em termos teóricos e conceituais? Ou, dito de outro modo, como entender a representação espacial numa dada narrativa? Tratando justamente desses aspectos, o teórico russo Boris Tomachevski, num estudo publicado pela primeira vez em 1925, afirma que há motivos livres e motivos associados vinculados á noção de fabula e trama. Conforme o crítico formalista, “dá-se o nome de fábula a um conjunto de acontecimentos ligados entre si e que nos são comunicados no decorrer da obra”. (1965, p.34). Isto é, fábula é aquilo que se conta, ao passo que a trama, sendo uma construção totalmente artística e individual, é o modo mediante o qual se narra uma determinada história. À primeira correspondem os acontecimentos que formam o enredo, e a segunda o modo de sua aparição, a disposição que lhes deu o autor no processo de montagem de sua história. Por motivo associado, Tomachevski entende aqueles que, se excluídos da narrativa, comprometem seus nexos de causa e efeito. Antonio Dimas exemplifica essa concorrência citando que, no romance A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, não se poderia omitir o fato de que a escrava fugitiva possuía “acima do seio direito um sinal de queimadura, mui semelhante a uma asa de borboleta” (1987, p.34), visto que é justamente devido a esse ferrete que Isaura será reconhecida em um baile em Recife e, posteriormente, conduzida de volta ao Rio de Janeiro. O motivo livre, ao contrário do motivo associado, pode ser descartado, uma vez que sua eliminação não põe em risco a organicidade global da fábula, embora possa desestruturar a trama. São importantes na medida em que constituem 11


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reforços marginais cujo objeto central é o de caracterizar uma determinada ação: se diurna, noturna, calma, frenética, etc., e também as personagens: seu físico, manias, gestos, aptidões, caráter etc. Vinculados aos motivos narrativos, estão as motivações narrativas, que podem ser homólogas ou heterólogas e que ocorrem toda vez que se puder relacionar a descrição do espaço narrativo aos estados de ânimo das personagens. Desse modo, se o protagonista está alegre em meio a um local em que se realiza um velório, essa sua alegria funciona como uma “motivação caracterizadora heteróloga”, já que há uma oposição entre dois estados (alegria e tristeza). Se, ao contrário, o protagonista se encontra triste, nesse mesmo local em que se realiza um velório, temos um exemplo de “motivação caracterizadora homóloga”, visto que há uma convergência de um estado em relação a dois seres (espaço e personagem). Desse modo é que, logo no início da história narrada nas páginas de Turbilhão, na manhã seguinte à noite em que Violante foge de casa, Paulo sai de casa em busca da irmã. Nesse trecho da obra, o leitor depara-se com a seguinte descrição do cenário urbano: A cidade, depois da noite de chuva, muito arejada e lavada, tinha um aspecto asseado e agradável. O sol tépido brilhava num puro azul e, pelos telhados vermelhos do casario, aqui, ali, clarabóias dardejavam ofuscantes. Um realejo melancólico resmoneava ao longe [...]. Os montes, muito azuis, tinham uma nova alegria. A Tijuca, desanuviada, cravava o seu cimo no céu; e o parque em frente, denso, denso e verde, parecia de um arvoredo tenro: lisa era toda a folhagem, como nascida naquela manhã; a grama verdejava viçosa, como se por ali houvesse andado a primavera mondando as plantas, recolhendo versas e ramalho para mostrar, em todo o esplendor da beleza, a sua residência mais amada (p. 31).

Paulo segue em desespero, elucubrando as possibilidades do que poderia ter acontecido à irmã. Na pior das hipóteses, imagina-a deflorada por algum homem sem escrúpulos e depois abandonada à própria sorte. Nesse misto de sentimentos contraditórios e sufocantes – odeia e sente a falta dela – é que entrevê a configuração de um dia claro, ensolarado, em que o verde parece ser mais verde do que já é: um dia bonito e alheio ao desespero do protagonista. Temos, nos termos de Tomachévski, um exemplo de motivação caracterizadora heteróloga, já

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que, à tristeza e desespero de Paulo, contrapõe-se uma cidade ensolarada, alegre, bela. Mais adiante, ele nota que Passarinhos cantavam em ramos, iam dum a outro, perseguindo-se; uniamse no ar como trocando beijos e lá iam, de novo, juntos, d’asas frementes, metiam-se num meandro folhudo, onde, por certo, tinham o ninho agasalhado. Folhas caiam girogirando, flores murchas manchavam a relva, amareleciam ou ensangüentavam as alamedas (p. 32).

Novamente, o protagonista vislumbra uma paisagem citadina que, de tão ligada à natureza, chega a parecer bucólica. Que cidade é essa de que só se enxerga o lado agradável? Acreditamos que essa forma de se descrever o lado “paradisíaco” da cidade cumpre a função de agravar ainda mais o estado de ânimo do referido protagonista, já que ele acaba por, fatalmente, contrapor seu estado entristecido e desanimado à alegria da paisagem que o circunda, de modo a sentirse ainda mais vilipendiado pela irmã, ainda mais macambúzio com os rumos que, literalmente da noite para o dia, sua vida passa a tomar. E assim ocorre em outras passagens: o Rio de Janeiro descrito em Turbilhão, apesar de ser uma cidade-palco de misérias e desigualdades sociais e econômicas, é pintado com tintas vivas, fortes e alegres, como se a paisagem natural se sobrepusesse – como de fato se sobrepõe – aos dilemas pessoais e aos problemas, sejam individuais, sejam coletivos, o que, de certa forma, acaba por denotar um certo tipo de indiferença, seja das pessoas com relação aos problemas das outras, seja delas com relação ao que a sociedade espera do indivíduo. Nesse sentido, não é gratuito o fato de que as personagens sempre agem em favor de si mesmas, passando por cima de tudo quanto lhes fique à frente: Ritinha trai o companheiro com um homem que julga melhor; Violante rompe com os padrões sociais e morais em nome do dinheiro, prostituindo-se e acumulando capital enquanto é nova e bonita; Paulo trai a confiança do amigo Mamede tomando-lhe a mulher, Ritinha, e assim por diante.

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CONCLUSÕES

Interessante notar que o enredo de Turbilhão frustra, em certo sentido, as expectativas do leitor que espera ver, no romance, a transposição do que, na maioria dos casos, ocorre com as moças que, àquele tempo, resolviam traçar os rumos do seu destino fora da rotina do casamento ou da vida religiosa. Nesse sentido, até certo ponto, Violante, na medida em que é caracterizada como uma moça bela e tola, sonhadora, que passava os dias sorridente, debruçada à janela, configura-se, aparentemente, como uma moça que se dará mal após ter fugido com um homem, pois seria desvirginada e perderia, assim, a honra e o respeito. Engano: ela não fugira por amor, mas por um desejo de ascensão socioeconômica e por uma sede de liberdade, de ser dona de seu destino, mesmo que a contrapartida disso fosse a perda de sua suposta honra. Outro ponto interessante é que Paulo, ao ver a irmã envolta em luxo e riqueza, prontamente deixa de julgar a atitude dela como inerente a de moças sem juízo: ela passa a representar o modelo de audácia e coragem de que ele mesmo se julgava incapaz. Além do que, algum dos figurões com quem ela mantinha contato poderia, mesmo, “arranjar-lhe alguma colocação...” (p. 102). Talvez, se tivesse sido publicado cem anos antes, o enredo do romance poderia ser taxado de inverossímil. Mas, no Rio de Janeiro de meados do século XX, uma cidade que vivia a Belle Époque e que começava a se modernizar em ritmo acelerado, já é perfeitamente cabível que uma moça, mesmo às custas da “honra” de seu nome, possa traçar, por si mesma, os rumos de sua vida. A respeito das transformações que a capital fluminense – e, à época, capital do país – passava, José G. V. de Moraes, em seu Cidade e cultura urbana na primeira república (1994), registra aspectos responsáveis pelas mudanças inerentes ao modo de vida dos habitantes das cidades, quais sejam as transformações modernizadoras pelas quais os aglomerados urbanos passavam. O autor afirma que não só o espaço físico se transformava, mas também a mentalidade, os modos de agir e as concepções morais. Desse modo, as personagens de Turbilhão plasmam, se não uma reabilitação, ao menos um novo olhar sobre o que é considerado como mundanismo 14


Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica e V Jornada de Pesquisa e Pós-Graduação UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS 10 a 12 de novembro de 2010

e amoralismo numa sociedade que, embora cada vez mais afeita aos contornos de um modus vivendi cosmopolita, afinado com a modernidade, ainda se deixa marcar por estruturas arcaicas, típicas de uma civilização de molde e extração patriarcais e conservadores, controlada por uma oligarquia baseada na economia rural. Nesse

sentido,

as

personagens

do

romance

são

modernas

e

individualistas, mas convivem numa sociedade que, mesmo em transformação, ainda é controlada por códigos de honra e de boa conduta – principalmente para as mulheres –, uma vez que toda sociedade de cunho patriarcal sempre cobra mais das mulheres do que dos homens. De um ou de outro modo, as personagens de Turbilhão, vivendo um verdadeiro turbilhão de transformações, são egocêntricas e fortes: ousam romper códigos, ousam ser o que realmente querem ser. E nisso também reside a grandiosidade desse romance.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. A aventura semiológica. Trad. Maria de Santa Cruz. Lisboa: Edições 70, 1987. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainard. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CANDIDO, Antonio. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2002. DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2. ed. São Paulo: Ática, 1978. FREITAG, Bárbara. Cidade dos homens. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. GIL, Fernando Cerisara. O romance da urbanização. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. MORAES, José G. V. de. Cidade e cultura urbana na primeira república. São Paulo: Atual, 1994. MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Trad. Neil R. da Silva. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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NETTO, Coelho. Turbilhão. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: análises literárias. Campinas: Papirus, 1988. ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1988. TOMACHEVSKI, B. et. Al. Teoria da literatura: formalistas russos. 4. Ed. Porto Alegre: Globo, 1978. _____ Thematique. In TODOROV, T. (org) Théorie de La literature. Paris: Seuil. 1965.

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