A VIDA SEM BANHEIRO Em Porto Alegre, 474 famílias vivem sem local adequado para tomar banho e não têm vaso sanitário Em Porto Alegre, há pelo menos 474 casas sem banheiro. É isso que indica o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo de 2010, que define banheiro como “o cômodo que dispõe de chuveiro ou banheira e vaso sanitário”. Destas, 216 casas não contam sequer com vaso sanitário ou qualquer buraco que possa receber dejetos dentro de um local cercado por quatro paredes. De acordo com o IBGE, em todo o Brasil quase 200 mil famílias vivem nessa situação. Dentre as capitais, outras 13 têm a condição ainda mais precária do que a gaúcha: em Manaus (AM), o número é de 2.479, e em São Luiz (MA), 2.238 residências sem condições sanitárias mínimas. Já Vitória (ES) e Florianópolis (SC) apresentam os melhores números, com 55 e 60 casas sem banheiro, respectivamente. Mas a dimensão do problema não pode ser representada apenas com números. A falta de saneamento interfere na higiene e na qualidade de vida dos cidadãos. Essas são as condições de vida de parte dos moradores da Vila Jardim dos Coqueiros e da Ocupação Hospital, zonas Norte e Leste da Capital, onde a deficiência na rede de esgotos é apenas um dos problemas enfrentados na rotina de incertezas.
A vida no arroio: Vila Jardim dos Coqueiros
Na casa de Alessandra Monteiro há um banheiro: um cubículo de 1,5m², onde ficam um chuveiro e um vaso sanitário. Apesar de ser utilizado pelos 14 moradores da casa, não cabem duas pessoas no cômodo ao mesmo tempo. Quando alguém toma banho, o vaso fica encharcado, pois não há espaço para um box de chuveiro. O cômodo é separado da sala/cozinha por um lençol que serve de cortina, o que não evita que a água também escorra e molhe o restante da residência. Além de Alessandra e seus dez filhos, sua irmã e dois irmãos usam o mesmo banheiro. As crianças, cujas idades variam entre um e 17 anos de idade, moram com ela. As mais velhas frequentam a Escola Estadual de Ensino Fundamental Helena Schneider, mas os menores não vão à creche. Assim, os maiores se revezam estudando alguns de manhã, outros de tarde,
para que sempre alguém esteja em casa ajudando a cuidar dos pequenos. Katlin e Mara, de 15 e 14 anos, respectivamente, cursam o Ensino Fundamental e ainda não sabem o que farão quando saírem da escola. O Ensino Médio não parece ser uma opção para as meninas, que pensam em fazer curso de manicure. Para Alessandra, é difícil encontrar emprego, já que ela precisa ficar em casa com os filhos. Luan, seu irmão, tenta ajudar a prover a família, mas recentemente ele encontrou muitos obstáculos. Na última enchente que atingiu a comunidade, há cerca de dois meses, ele perdeu todos seus documentos, além de a família ter “perdido tudo”, nas palavras dele, com os alagamentos. O cartão do Bolsa Família, do qual eles são beneficiários, também foi junto com a água da chuva e do esgoto que invadiu a casa, o que tornou a situação ainda mais complicada. Apesar da precariedade, a família raramente desanima. “A gente é sempre alto astral, mas às vezes ficamos abalados”, diz Luan, lembrando também a queda de luz que atinge a comunidade com frequência quando chove, inutilizando os poucos alimentos estocados na geladeira. Vizinha da família, a menina Kimberli, de seis anos, interrompeu a história que contava com entusiasmo e ficou cabisbaixa ao lembrar dos efeitos da última chuva forte. “Minha casa alagou e minha mãe perdeu todos os meus brinquedos. Agora, eu só tenho umas folhinhas para brincar”, lamenta, enquanto cuida sozinha de seu irmãozinho de um ano, deitado numa cama na casa da tia deles. Apesar de vestir uma blusa curta e uma bermuda, a menina estava com calor dentro de casa, por isso havia saído para caminhar por uma ruela próxima. Quando recebeu atenção por parte da equipe de reportagem, Kimberli logo se empolgou e contou que gostaria de ir à escola, além de fazer questão de mostrar, orgulhosa, o irmão que ela mesma havia posto para dormir. As chuvas afetam muito os moradores da área de risco da Vila Jardim dos Coqueiros, cujos primeiros habitantes chegaram há 20 anos, pois é cercada pelo arroio Passo das Pedras. Chamado de “valão” pelos moradores, o arroio, que dá nome ao bairro onde se localiza a vila, é formado por um esgoto cloacal extenso, que começa no Morro Santana e termina no rio Gravataí. A área ao redor do valão pertence à Prefeitura -- mais especificamente, ao Departamento Municipal de Habitação (Demhab). Segundo o Demhab, em torno de 15% das famílias residentes na vila vivem nessa região. Para chegar até a margem, é necessário passar por áreas de chão coberto por lixo. É tanto entulho que, em alguns lugares, é impossível ver a terra onde se está pisando. Para os moradores,
viver cercados por detritos não é exatamente um problema. Muitos deles têm empregos relacionados à reciclagem, realizada lá mesmo na vila. Enquanto os pais trabalham, as crianças brincam com naturalidade em meio a pilhas de escombros, restos de madeira e dejetos em geral, incluindo sapatos usados, pedaços de pano, comidas apodrecidas, brinquedos quebrados, nuvens de moscas e, ocasionalmente, ratazanas. Elas não têm medo de cair no esgoto e, quando necessário, entram nele para “cortar caminho”. Para quem cresceu no Jardim dos Coqueiros, nada é mais comum do que a sujeira. Devido ao acúmulo de lixo, o arroio transborda quando chove e invade as casas que ficam no seu entorno. Em setembro, uma enchente atingiu a vila e afetou 200 famílias que moram nas cercanias do arroio. As doações recebidas pela Defesa Civil e pelo Demhab não foram o suficiente que atender às necessidades. Hugo Mellnig, agente comunitário e integrante da Associação Comunitária Jardim dos Coqueiros, não culpa os órgãos públicos pela falta de recursos: “Nenhuma cidade está preparada para uma situação dessas.” Mas, a vida na Vila dos Coqueiros não se resume a desastres. Água encanada e esgoto já são uma realidade há dez anos, apesar da existência de lei municipal que proíbe o investimento em áreas de risco. Para Hugo, o dinheiro gasto com essas instalações não foi desperdiçado. “O que foi investido em saneamento é economizado em saúde. Com melhores condições, as pessoas adoecem menos e têm mais capacidade para trabalhar e estudar”, argumenta. Essa conquista, porém, não é suficiente para que o entorno do arroio na vila Jardim dos Coqueiros seja considerado um lugar apropriado para moradia. Alguns meses atrás, um incêndio provocado por um curto circuito elétrico atingiu dez casas, queimando parcialmente algumas e destruindo outras. Nessa ocasião, o Demhab providenciou casas novas para a maior parte das famílias atingidas pelo fogo. De acordo com Hugo, as que moram muito próximas ao arroio, no entanto, não foram beneficiadas, devido à possibilidade de alagamento assim que comece a chover. A Prefeitura confirma que o Departamento não pode instalar casas em áreas de risco, justamente para não contribuir com situação que possa gerar insegurança ou insalubridade aos habitantes. O cheiro do esgoto se mistura com o de excremento dos cavalos e impregna toda a área, não sendo possível escapar do odor nem mesmo dentro de casa, mas os moradores não parecem senti-lo. Recentemente, houve uma força-tarefa organizada pela população para despoluir o valão e seus arredores, o que colabora para que, no futuro, ele não transborde com tanta
facilidade. Além disso, de acordo com a Prefeitura, o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) realiza manutenção periódica do curso d'água. Jucelaine Mendes de Jesus teve parte de sua casa atingida no incêndio e reclama por não ter recebido ajuda na reconstrução. Foi necessário improvisar para reerguer a sua moradia de duas peças, sem banheiro. “Quando eu preciso mijar, é só pegar um balde”, explica com naturalidade. A casa divide espaço no terreno com a de sua mãe, e para tomar banho Jucelaine vai até onde mora a prima, também na área de risco da vila. Logo que ela se mudou, sete anos atrás, dividia com seus três familiares apenas uma peça. Agora, há uma sala/cozinha e um quarto com duas camas na pequena estrutura de madeira mal pintada de azul, cujo interior pode ser avistado de fora através de frestas nas paredes. O local foi bastante afetado pela última grande enchente, mas quando a Defesa Civil ofereceu duas cestas básicas aos moradores da área, Jucelaine disse que havia gente precisando mais do que ela e se negou a ficar com parte dos mantimentos. O olhar triste da moça que segura a filha de três anos nos braços não esconde seu maior sonho: “Quero sair logo desse inferno”, confessa. A Prefeitura desenvolve um plano de reassentamento para os habitantes da vila, a partir de recursos do programa Minha Casa, Minha Vida. Estava previsto que os moradores da área de risco passariam a morar em apartamentos construídos na Avenida Manoel Elias, na Zona Norte. Pouco depois de a obra ser concluída, porém, outras pessoas ocuparam o local. Por enquanto, os habitantes da vila Jardim dos Coqueiros não têm para onde ir. Por isso, permanecem nas casas de madeira, nas ruas sem asfalto, nas moradias sem banheiro, nas suas vidas cercadas pelo esgoto. As crianças brincam no meio do lixo e entram de pés descalços no arroio. Os adultos enfrentam dificuldades para conseguir emprego e se livrar do vício das drogas. Apesar dos problemas, a alegria não abandonou seus moradores, que deixam os rádios ligados no último volume tocando pagode e se encontram nas ruelas para escapar do calor de dentro das suas casas. Adalibi dos Santos, morador há 15 anos, garante que nada mudou e duvida que irá mudar. Quando chover de novo, vai alagar de novo. E os habitantes reconstruirão de novo suas casas e tentarão recuperar seus pertences, enquanto esperam por uma chance de escapar da vida junto ao valão.
Chuveiro é artigo de luxo: Ocupação Hospital
Quando Elisete Terezinha dos Santos quer dar banho nas suas filhas pequenas, ela precisa encher um balde com água da mangueira e aquecê-la no fogão. Em sua casa, não há chuveiro nem pia, mas ela afirma que conta com um banheiro, apesar do Censo do IBGE considerar a peça apenas como “sanitário”. A instalação é um pequeno compartimento, separado da casa principal, que contém um vaso sanitário. Na verdade, se encontra uma caixa de madeira com uma tampa de vaso, sob o qual há um buraco de aproximadamente um metro. Os excrementos ficam acumulados ali mesmo, embaixo do piso. Além das duas meninas de três anos, Elisete e o marido são pais também de um menino de cinco. A dona de casa tem outras duas filhas mais velhas, de 12 e 14 anos, que vivem com o pai delas. Ela sonha ter as filhas de volta em sua casa, mas para isso precisa ampliar sua moradia. Elisete se mostra otimista: quando chegou na ocupação, tinha apenas uma peça cedida pelo Demhab. Agora, já conta com um quarto, doado pela bisavó de seus filhos, e constrói um quarto para o menino. A habitação não tem pia, mas a família quer construir encanamentos, para que possam ter água corrente. “O difícil é conseguir canos, a gente só tem os que cata na rua”, explica Elisete. Essa situação precária não é exceção na Ocupação Hospital, erguida em torno do esqueleto de uma antiga construção, onde vivem cerca de 300 famílias. Lá, a água não é regularizada e é escassa, “um dia na vida e outro na morte”, de acordo com o morador Breno Ilo. Na casa em que vive com a mulher e o filho de 14 anos, o esgoto também é um buraco no chão. Por estar numa área baixa, no encosto duma colina, o terreno alaga facilmente e os excrementos transbordam, fazendo com que a família precise construir barragens ao seu redor, para evitar que fezes inundem o pátio da casa. Agora, a latrina já está praticamente lotada e Breno ainda não tem solução para o problema. Na frente da sua moradia corre esgoto a céu aberto, que vem de outras casas através de pedaços de canos e que segue a inclinação do terreno. Há várias pequenas fossas como essa, sendo a mais comprida uma que termina no pátio de um dos moradores. Há uma rede de esgoto que faz a maior parte de seu caminho por baixo da terra e emerge numa área com grama próxima à Avenida Protásio Alves, no caminho para Viamão, onde deságua num bueiro. Apenas quem mora mais perto da avenida pode utilizar esse encamento, pois as casas mais afastadas não conseguem alcançar a rede.
A ocupação existe há sete anos e é a segunda a ser construída naquele local. Antes deles, um grupo menor já havia invadido a área e sido expulso sob a alegação de que a construção do Hospital Montepio continuaria. No entanto, como as obras permaneceram inacabadas, novos moradores chegaram. Entre eles Márcia Gomes Corrêa, uma das primeiras a se mudar para lá. Por já ocuparem a área há mais de cinco anos, Márcia acredita que as terras tenham sido conquistadas por usucapião, mas lembra de ter ouvido um comentário de que o hospital havia requerido a posse de volta. “Se a prefeitura nos oferecesse um novo lugar para morar, nós iríamos embora, sem problemas, mas nenhuma solução foi apresentada. O pessoal mora aqui porque precisa”, sustenta. Em dezembro de 2010, a Prefeitura decretou aquela como uma Área Especial de Interesse Social (AEIS), mas não há previsão de regularização ou reassentamento dos moradores nesse momento. De acordo com a vereadora Sofia Cavedon (PT), que trabalha com a comunidade pela conquista de melhores condições de vida, a área pertence à massa falida do Montepio dos Municipários, que agora quer o terreno de volta. Segundo ela, caso os habitantes sejam forçados a sair das terras, é preciso que a Prefeitura garanta outro lugar para eles. Próxima à casa de Márcia vive Adriana Miranda, com seu filho de quatro anos e o marido, que no momento está hospitalizado. Apesar de não saber exatamente qual problema aflige o companheiro, a mulher relata que os pés do marido incharam, alcançando um ponto em que ele não conseguia mais caminhar. Então, eles tentaram atendimento no posto de saúde próximo à comunidade e chamaram a SAMU. Sem sucesso. Um vizinho que tem carro os levou até o hospital. Agora, ele está impedido de trabalhar, o que dificulta a situação da família. Esse, porém, não é o único problema enfrentado por eles. Em sua modesta casa não há banheiro. Eles tomam banho na casa de um sobrinho, que mora com a mulher e o filho pequeno. O acesso à luz elétrica se dá através de instalações ilegais, chamadas de “gatos”. A água é “puxada” pelos moradores de um único acesso fornecido pelo Departamento Municipal de Águas e Esgotos. Após diversas mobilizações, a área foi inserida no Programa Consumo Responsável, que começou a instalação provisória de água, feita pelo Dmae. Outra conquista recente da comunidade foi o início de um levantamento a respeito do quadro social das famílias e o cadastramento e numeração das casas, realizados pelo Demhab. Uma das moradias mais estruturadas da comunidade é a de Irene da Silva e sua filha de 16 anos. Em sua casa, há um banheiro com vaso sanitário ligado a uma rede de esgoto. Não
existe botão de descarga, mas um balde de água pronta para ser jogada no vaso após o uso. É também um balde que faz o papel de pia e chuveiro. Atualmente, porém, elas passam por dificuldades, pois o marido de Irene morreu atropelado por um caminhão seis meses atrás. Ela é beneficiária do Bolsa Família e procura “fazer uns bicos aqui e ali”, como faxinas e reciclagem, enquanto a filha está no colégio. À tarde, quando a menina está em casa, a mãe precisa tomar conta dela. A jovem sofre de hiperatividade grave e depressão profunda, o que a torna violenta. Após brigar com colegas, ela já foi expulsa de mais de um colégio e atualmente cursa a quarta série do Ensino Fundamental. Apesar da tragédia recente da morte do marido, Irene é alegre e falante. Ela reconhece que vive em melhores condições do que muitos de seus vizinhos, entre os quais o vaso sanitário é quase artigo de luxo. Os moradores da comunidade, assombrados pelas vigas da construção que ameaçam com o desalojamento de suas casas, não têm como fugir da miséria em que vivem. A ocupação é o local que encontraram para viver. Ao mesmo tempo em que desejam moradias adequadas, não concordam em sair das terras sem que tenham uma alternativa para melhorar suas condições de vida. Permanecem na ocupação por falta de perspectivas, mas não sabem como se livrar do esgoto a céu aberto e dos ratos que trazem perigos para a saúde, nem como evitar os alagamentos causados pela chuva. Para quem aprendeu a viver com a falta de direitos básicos, dignidade e moradia adequada, a falta de banheiro é apenas mais uma entre tantas outras precariedades.