A CAMINHO DA ILHA Para Wimer Bottura Jr.
A bússola que me orienta, nasceu comigo, Para sabê-la, fecho os olhos e me lanço afoito. O mapa que percorro, nasceu comigo, Os caminhos são turvos, mas os Fôlegos, são todos. Por isso, mesmo perdido, encontro o prumo e reinicio. Do lado de lá há um bosque de melodias que farei, Os pássaros de lá são as pessoas que convivi, Enquanto que deste lado vou embrenhado de fé cega E inconsequente vontade. A bússola que me orienta, nasceu comigo, O mapa, está comigo, comigo está o solidário, Do outro lado está a ilha onde canta a sabiá e outras vozes. No céu, os que voam, despem pérolas, Os que caminham, colhem cifras.
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A PRIMAVERA QUE VOS FALO Não vos falo de pássaros, seixos ou flores, Sigo minha rota para além dos muros, vou disperso sobre a relva. Não vos falo do sol que ao tocar, definitivamente, a pele alva Da manhã, revelou a temperatura das fêmeas. Vestido de lirismo e de alcova, procuro uma razão Para subverter borboletas que pulsam na árvore que transpira. Não vos falo da primavera didática dos livros, Nem a que visita os que tardam seu voo de nuvem. Falo-vos da primavera que não possuo E escorre para a mansidão solícita de um vaga. Falo-vos de segredos fugidos das grutas, Falo-vos do hábito sombrio dos becos. Das bocas que têm febre de seus amores E sede metafísica de poemas.
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Falo-vos, enfim, da primavera sadia, Recuada no calendário que não existe mais.
A QUÍMICA DA COMPOSIÇÃO Para Radamés Rodrigues
O que se busca além do caos É a inquietação sublime De uma confissão distante. Refletido em muito outros, Às vezes sou flagrado Na mesma canção Que numa outra forma a repito. Sei que tudo é química E que a imaginação Transpira uma prazerosa insanidade. Pelo fato da arte Tremular-se entre a pele e carne Nasce berne,
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Por isso é doída e cálida.
QUÍMICA DO VERSO
É quando o resoluto divaga É quando irrisório importa É quando a saúde é praga É quando a lâmina cega corta. É quando tudo é falta É quando a juventude é morta É quando a emoção exalta É quando escondo-me em retortas. É quando é sem compromisso É quando o vazio exorta É quando o verso é omisso É quando a mente fecunda aborta.
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ALGUMA PALAVRA
Palavra é barco Em água turva, Chuva num tacho parco, Naco de alma nua, Lua que cospe estrela. A palavra é límpida Na poesia das grotas, Tecendo em outras notas, Uma beleza líquida Na noturna sensação em vê-las.
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ÂMAGO Vêm do âmago, Da fonte íntima, Gotas dum mar em ondas. Vêm sinais na face Por onde riscos esguios Contorcem franjas instantâneas. Vêm frases que contestam Dos palanques circenses: Mazelas obvias de gente que pena. Vem o verso que transcendem
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O coração poetizado Varando os poros da pele.
Vem do âmago A confissão secreta Dos amores em camas alheias. Vem a palavra-faca Que fere fundo A alma sem escudo. Vem do âmago, O que fere fundo a própria alma.
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AMOR À PRIMEIRA AUSÊNCIA Ficaram momentos avulsos Nesta ternura que eu não tinha. É quando no peito se alinha Mil dores num mesmo impulso. Hoje são olhos vermelhos, São luas e luas dolentes Em seu vulto no ar de repente Perdido no túnel do espelho. Respiro seu perfume no vento, Exalo um queixume perverso
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Na sombra irreal da presença. Quando fustigo a flor do tempo, Pesadelos sangram no verso Por um amor à primeira ausência. AMOR, PERIGO MORTAL Amor de todo profundo, Emoção em chama, Calando bem fundo O peito que ama. Amor de fino cristal Na palma das águas É o perigo mortal No silêncio das vagas. Amor no teor da bebida É a delícia servida
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Em taças de vinho. Amor na boca da lua, A carne está nua Em seu burburinho. ANDORINHA Andorinha, Andorinha, Meu pensamento foi tecido De um canto que desconheço. Contundo, transpirei sobre a América, O suor lúdico das canções. Andorinha, irmã minha, Diz-me da visão que nos transcendem, Que nos rebentam num ponto de luz. Conte uma fábula e eu beberei do rio e da seiva, Apagarei incêndios impossíveis.
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Andorinha, já de manhãzinha, Meu pensamento alinhou-se no obscuro, Entre o tácito e a nuvem em si mesma, Não conspirei metas para esvoaçar o cântico, Tenho espasmos, vomito ideias. Andorinha, andorinha, voo, ando, levito, nem sei...
ÁRVORE
O que és além de árvore que me dá sombra? O que és além de mulher grávida de frutos? Quais segredos transpassam o verde dos cabelos? Que animais rastejam invisíveis em seus rastros mudos? Que outros trinam ou quais se ocultam debaixo dos teus músculos tesos?
O que és além de árvore? Barcos que flutuam no remanso dos rios? Instrumentos de corda?
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O ruflar percussivo duma África aflita? Elemento da astrologia chinesa? Alaúde? Leito? Moeda de troca? Bancos de Quartel? Refúgio de beijos secretos? Se tua transpiração renova o ar qual dependo, Tua carne será lenha, onde bichos insaciáveis sugam do teu leite viscoso. Tuas unhas crescidas de dentro, rasgam o solo, Explode o cimento duro, mas lentamente, quase imóvel. Ouço um apelo na boca dos anônimos, Nas estrelas da arte, nas cifras, nos cânticos, Na folha de papel onde escrevo minhas considerações E, que até há pouco, era apenas um papel nulo de ideias.
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BAILARINA A bailarina é pluma, Quando dança, levita, Quando levita, dança. A bailarina pousa. Talvez gueixa ou brisa, talvez ave. Onda absoluta em movimento Omitindo da noite
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O sobrevoo da aurora. Meus olhos nutrem no pesadelo O pesar do pesar, porquanto O desencanto é um velho apelo De um’ alma lavada em prantos. Vai menina com tua dança! Dê-me pés que mal tocam o chão, Faça-se fluídica, dê-me todo lirismo do mundo Para que a palavra escave a coisa não dita, Deixe que eu deite a vida Sobre essa ilusão espessa, E eu levitarei estático.
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BANDEIRA Na bandeira está uma pátria Com o estigma de suas cores E suas insinuações. Minha bandeira traz quatro tintas na estampa: Madeira rara, ígnea e mátria. Embora bocas impunes
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Enxuguem vômitos no tecido. Em seus contornos, O retângulo é sarça: Selva que se despedaça. O losango: Ouros gerais Extraídos, às duras penas, Nos garimpos de sangue. O círculo é o céu, é água marinha, Araras azuis, quase lendas. Mas a pomba branca que capturava a paz Riscou um voo verde: “Ordem e Pregresso” Sem mãos de extinção ou olhar expatriado.
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BAR, BERÇO DE LETRAS Vejo além da imagem, Burburinho de onda, Vidros que gelam balcões Como uma canção no berço. Vejo cadeiras vazias A espera de seus poetas Que descerão da lua
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Em vagões noturnos, Com o exaspero dos versos prenhes. Vejo novos poemas Em pálidos guardanapos, Homens, mulheres trocando versos Como trocassem beijos.
Vejo meus amigos Adestrando o lirismo Como bicho de circo. Não é um bar que vejo! Mas além da imagem: Um livro de autores distintos Embalando frases, como filhos.
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BARALIRISMO No bar, No bar hรก, No bar hรก lirismo. No baralirismo. Hรก baralirismo,
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Há lirismo no bar, Ah! No bar, ali, Há lirismo no bar. No bar há lirismo No bar há ali, Bar (a lirismo) Há lirismo no bar.
CABEÇA Há o universo imerso no poder da criação: Descobrimentos, máquinas robotizadas, Imagens virtuais… O estigma que pisoteia o solo, Inventou outros animais,
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Os que voam, os que correm, Semideuses nos púlpitos das nações. Cabeças que retratam Uma escrita exata, Elementos químicos E soluções e vacinas… A ficção verossímil, O impossível real, A palavra que fere E a palavra que salva. Na ebulição do pensamento Nascem tiros, contendas, guerras, Ulcerações expostas, Câncer social, Fome, degradação e medo… A cabeça cria, cura, escreve, Abre fogo, jorra água E se fosse um quebra-cabeça Ela própria não saberia montar.
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CIDADANIA(?) O sêmen da pressa, dança no útero urbano duma cidade que açoita o dorso frio das manhãs. O coração das ruas, pulsa com exasperação para que as pessoas possam resvalar os seios de pedra.
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Os homens e as mulheres bailam no ventre urbano, engravidando o PIB das nações, enquanto o suor evapora-se no asfalto. As pessoas cumprem seus deveres, aos trancos e barrancos, mas amanhecem nos quintais, sofrendo o refluxo dos relógios. As pessoas adoecem, ainda assim, tecem o dia a dia, rezando a saúde dum futuro incógnito. No entanto, eis a serpente humana nas fileiras da espera, Eis os enfermos nutrindo seus males na contingência dos leitos, Eis os professores atônitos e alunos ausentes em si mesmos. Os lobos públicos surgem vestidos de fina lã das ovelhas enquanto aspiram cadeiras de gabinete, mas seus dentes de sabre rasgam a carne das pessoas e depois arrotam seus votos. Os que esculpem essa metrópole com argamassa e sangue,
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afagam os impostos como cachos de espinho para depois beberem a lágrima compulsiva das cidades. Os cidadãos fundem-se num só corpo mestiço, contorcidos na teia repleta de excessos e se olham e se falam e se calam diante da indignação que excede os sonhos. As pessoas são sangue, vias são veias, os traçados do asfalto desenham os esqueletos sinuosos. A lua da cidade é ave noturna em anônimo voo, olho que vislumbra solene, o direito dos homens que está de plantão no bocejo da noite, o dever que está atado em mãos farpadas da injustiça. Por isso os galos invisíveis solfejam no alvorecer, a cidadania agonizada no sofisma de seus governantes.
CIDADE A cidade palpita asas Sobre o organismo que pulsa, A desumanidade escorre Seu suor pelo piso.
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A busca esvazia casas Com ímpeto e repulsa, A humanidade recorre Ao seu traçado impreciso. A cidade devora datas, Os relógios têm fome, A pressa, hora marcada.
As Notícias dão tapas Em nossos nomes O organismo pulsa. Mais nada. CO{R}PO DE BAR Homens líquidos derramados nas mesas, Escoam o mote, o borbulhar da espuma. Suas convicções estão estigmatizadas Na verve angustiada da realidade imaginária.
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O bar murmureja risadas plenas, Enquanto se lapida a pedra da palavra. Homens ávidos e grávidos de poesia, Arquivam temas, bêbados de tudo. O bar é um co(r)po repleto de (ad)versos Escorridos em taças que (con)versam. Baraliristas absorvem as letras dissolvidas Nos balcões úmidos como um coração poetizado.
COLMÉIA Para Gabriel Medeiros
Tão lento quanto exato, O bicho da seda tece O mais inigualável tecido.
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Uma colmeia com suas medidas, Milimetricamente, iguais: É fábrica, é casa, é reinado. Mãos sonoras esculpem O som que o coração solfeja, Até que alma sangre exausta. Eu canto invenções alheias Como numa inveja santa, Quiçá fosse eu o criador Eu ouço invenções alheias, Embebido de vasto prazer, Sentido a dor que nem é minha. ELEMENTO ÁGUA Ocre é o sangue que corre a longa artéria, Locomotiva líquida no trilho que pulsa,
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Gemido presente na maiúscula onda, O rio segue seu curso como pranto avulso. Verde é a sede que bebe a inexata matéria, Dentes mordem a carne que repulsa, Ritmo intempestivo da fera que ronda, Que em seu passo, salta em longo impulso.
O aventureiro, o pirata, o descobridor, o náufrago... Corromperam o vasto ventre do mundo, Galopando, a esmo, o cavalo azul do oceano. A vida, enfim, eclodiu do manifesto aquático: O que caminha sobre a terra, da água é oriundo, O homem polui o influi. O homem é insano! ELEMENTO AR Há o plano de voo instintivo Aos que migram para o oeste,
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Há balões no sopro de Deus, Asa delta a flutuar no ar arredio. Há vendavais açoitando as nuvens, Que bailam vadias no horizonte, Dançarinas informes, à deriva, Na brisa entre os cabelos da mata. Há respirações invisíveis na cratera: Ebulição de gases, vapor sobre o carvão, Hélios, neônios, monóxidos, carbonos… Há pensamentos que se evaporam no ar Até as memórias, voejam ao longe, Até a rima, às vezes, se dispersa no vento.
ELEMENTO TERRA Descem cabelos vegetais da virgem
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Sobre a colina da pele maciça, Tua carne abriga a criatura vária, És o giratório planeta dos três reinados. És a pedra, a argila, o monte e a vertigem, És a terra seca a areia úvida, o pó caliça, De ti descendemos desde a origem primária, Distintos e idênticos em seus estados. Elemento simbólico de um mapa astrológico, Nações divididas pela babel dos povos, E dedos que forjam, com rancor, o metal bélico. Nossa sobrevivência segue um padrão ilógico Em nome da subversão e experimentos novos Enquanto dana-se em ti esse silêncio cético.
ELEMENTO FOGO Salto efêmero da criatura cálida
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E seja pássaro, inseto ou bala, Ilusão acesa a esquentar a sala, Fogo brando de existência pálida.
Na boca viva, o vômito é ácido, Um dragão faminto lambe a colina, Um inferno vaza e tudo é ruína, O fogo é fúria do guerreiro impávido. Se o fogo deita desolação à selva Arrebenta, fere, destrói e cessa, Também devolve renascimento à relva. Se o fogo incita as paixões mais rudes, Vicia, tolhe, enciúma e estressa, Também promove amores, à miúde.
ENTÃO ATÉ JÁ
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Para Aline Romariz
Sei que existem ventos Que rasgam a pele, Pés que saltam para além das linhas. Nas entrelinhas, revela-se Um sentimento diluído, Fervido e núveo. Leio e releio meus poetas o tempo todo, Choro com e por eles, Seus versos, são meus versos, São minhas suas lamúrias. Há muitos que caminham nas nuvens Com os pássaros secretos, Outros que batem em minha porta, Outros ainda que sentam em estantes, Como existem os que leio num visor.
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Quando um poeta nos diz, até já, Uma cratera se abre feito corrosão, A criação fica ressentida, O rio perde o curso, a chama, profusão. Não posso seguir completo se nos faltar os versos: Os seus, os meus, os nossos.
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ESPERANÇA
Ainda há expectativa dos cristais da aurora suarem sobre a pétala o suor dos Caules. Ainda há cabeças que espalham manhãs sob o imenso chapéu da aurora. Ainda há sede de amores límpidos com límpidos são as águas que rebentem da
Saliva das grutas. Ainda há brandura na brisa espessa como há candura no sono da criança. O verão ainda respira o sol de janeiro. As pessoas ainda têm expectativa dos presságios.
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Ainda há alguma ternura em socorro ao amor que agoniza em sua anorexia. Ainda há passarinhos obstinado a procura de algum horizonte perdido no Poente. Ainda há esperança, porque há de ter cura as feridas do mundo. Apesar da desesperança, apesar de tudo. A esperança tem esperança ainda.
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FILOSOFIA DE BAR Os copos hidratam os corpos: Copos evaporam poesia, A poesia que não foi dita, A poesia mais bonita Que poderia ser dita E nunca foi escrita. O poema não necessita ser dito Não carece ser escrito, Nem precisa ser bonito, Só precisa ser aflito. Os baraliristas, aflitos que são, Inventam poemas de antemão, Para matar a sede imortal, Na sequidão das bocas, Bocas que falam de suas musas,
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Musas que nem existem. FLUÍDICO Um dia estarei entre dois portais, em fotos e vídeos, No chão que não mias pisarei, Nas ruas que me ausentarem, No compasso de um relógio antigo. Estarei fluídico como um fantasma errante, Serei a lembrança distante de uma flor esquecida. Um dia serei memória, Uma canção na rádio, Um livro na estante, Uma luz na lágrima extinta. Um dia falarão de meu nome Como uma agridoce ausência E cantarão meus temas, E meus poemas
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E os meus silêncios. Um dia serei história, Um caso, uma crônica, Qualquer piada. Serei memória, Um dia, serei nada.
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GOTAS Líquidos evaporam-se, transformam-se, Desfazem-se e sopram no ar invisível: A chuva, o banho, a enchente, O café, o perfume, a cachaça e outras gotas. Por gotas que se espalham Em batuques lentos, deitam-se ao chão, Gotas ululando em potes, Recipientes vazios e desprezados. Olhos lacrimejam águas de sentimento, Ódio, rancor, medo, amor, saudade e outras gotas, Gota por gota enchendo um oceano, Lágrimas humanas lavando uma alma.
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O orvalho é gota que a manhã fria preserva E depois as entrega ao sol Quando a madrugada devolver a neblina ao chão O sereno se encarregará de preparar a cama E o sol a beberá impiedosamente. Gota por gota.
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HORAS Passam silenciosamente em fuga, Ligeiras na contagem, Feito o torpor do sono, Estagnado no invisível, Batendo asas permanentemente, Feito asa que não finda. Quem seria seus cúmplices? O relógio com sua matemática exata Alinhada em meu pulso? Ou em surda sonoridade Do tique-taque do quartz? Ou ainda o próprio tempo que cavalga
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Seu dorso e o traz nas rédeas Como um cavalo soturno. Passam sobre a pele que se desfigura, Refletem no espaço a figura mutável, Extrapolam a imagem vaidosa Que inocentemente se adora Sem se dar conta que as horas passam, Levando a infância, a juventude e os restos da vida, Para além da vida ou noutro espaço sem tempo.
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IDA(DE)
Iden Tidade De Ti. Ida de mim À idade Do fim. Iden Tidade De tudo.
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Ida de tudo À cidade Do fim.
INCÊNDIO A língua da chama Subia em pelos púbis, Entre o atrito carnal E o orvalho ardente Dos amantes. Para que haja fogo, Basta uma centelha à palha seca, Um fio de fogo em papel esparso, O leve toque do beijo incendiário.
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JANELA FECHADA Deve existir uma parede clara com uma moldura Onde se vê uma casa simples entre o campo e a nascente, Com crianças na varanda. Deve ter um criado-mudo, um telefone de tecla luminosa, Um leito com lençol estampado de flores vermelhas, Um urso de pelúcia marrom. Os olhos da imaginação visitam a sala de onde vejo móveis de mogno. Um imenso tapete persa.
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Quando sinto o cheiro do alho na panela quente, Acesso a cozinha como um fantasma E virtualmente degusto das delícias de lá: Mordo as frutas da fruteira, bebo do vinho nos lábios da tua boca, Depois sinto a excitação da minha libido Quando vejo-a entre perfumes e espumas cosméticas Sob o vapor que ofusca o vidro quase translúcido. E o sol visita seu quintal junto aos passarinhos E a lua na janela espreguiça o braço que cintila Minha solidão nutri o sonho fértil O meu delírio viaja na imaginação Por isso sinto-a real como se existisse No apartamento do prédio que não moro.
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JANELA Da janela a vejo nos dias Em que o sol compõe de surdina As rendas da neblina Numa manhã tardia. Da janela nascem outros Todos de igual simetria, Efeitos de fotografia, Pérolas no casulo das ostras.
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Da janela, folho estrelas Quando a luazinha é clara E parca é a luz da sala. A frustração é de não vê-la, É a resignação de não tê-la, É a solidão que me cala.
NOCTIVAGO O que embriaga é a noite vestida de lua, É a lua despida no leito de nuvens, Mas a sede é tanta que a noite, por si, não dá conta. O que embriaga não é o chope, Mas a ilusão que habita os bares, Mas a sede é tanta que a noite se finda sempre insaciada. O que embriaga é a música decantada
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No sonho disperso Da poesia inacabada.
O LÍRIO DO LIRISMO Quantos bares cabem no lirismo? Quanto lirismo no lírio? Quantos poetas bebem versos? Quantos títulos, li nos rótulos, Dos litros e livros? Quantos lírios bebem a seiva da palavra? Quantas palavras escorreram no suor dos copos? Para que o lirismo umedeça livros hipotéticos.
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POETA AUSENTE Não! Poeta, não pode ausentar-se, Eis a noite repleta e pálida, Sabes, que só verso possui a tinta renovadora Numa aquarela reservada ao poetas. Não, poeta, não posso viver Como os que misturam sombras,
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No piso escuro do cimentado Das calçadas alheias deste mundo. Não, poeta, não posso ver a cadeira vazia A mesa posta, com um prato a menos, A ausência do poeta nos encontros de um bar, Deixa os outros sem um dos braços da verve criativa.
PELÚCIA A rua era play grond, os olhos tinham sede, Sede sadia de açude novo. De certo os euro-descendentes, Eram preconceituosos; suas crianças, nem tanto, E assim roçávamos a pele.
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Respiro o ar quente da memória E todo dia e redesenho outras franjas No tecido flácido do rosto. Atravesso relógios, distraído das horas, Onde o espelho recua em suas asas O braço invisível do baú de lembranças.
Estendo a mão à minha sombra Para abraçar o menino em mim mesmo. Vestido da máscara que acelera os homens, Atravessei o túnel infalivelmente, que me envelhece. A pelúcia da infância aquece Minh ‘alma, E é o menino que fica por lá, Pois quando o menino assume por dentro, O velho remoça por fora.
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POEMA QUE FAÇO ENQUANTO MEM ILUDO Para Kleber Santiago
A sensação do amor recém-nascido, veio à noite e moveu-se breve, Bebeu a lua em neve. De súbito, pousou mas leve E floriu-se no verso amanhecido.
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Na inspiração que o tempo prolonga dentro da canção oblonga, Veio o canto sem nexo na antessala, feito o ritmo que se alonga No verso que me cala.
Veio na verve adoentada o remédio composto, a agridoce sensação de mosto,
De repente faz-se descomplicada, com uma surpresa no sinal do rosto E uma maravilha quase parada.
Veio, por fim, na soma de tudo, para revelar o que estava mudo, Para sondar o que estava inquieto e, tudo fica estreito, no peito
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agudo, Enternecido pelo extenso afeto. No poema que faço enquanto me iludo.
VERSOS AZUIS
Para Cel Bentim
Rasga o peito a faca fria, Fio de aço no sangue eloquente, Mas o poeta larga no verso, Suas vermelhidões.
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Nasce no vate a obstinação Da fala escrita pelo dom da palavra, Seu peito rasgado pela faca metafísica, Ressuscita híbridas flores sobre pele. O poeta nasce, morre todo o dia E todo o dia renasce, como ciclo infindo, O poeta mancha a folha em branco Com versos azuis que sangram.
QUADRAS
Se o sol se pôr, Levante a lua, Coloque-a na rua E a troque de cor.
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Se a brisa é torpor, Feche a janela, Se esqueça dela, Ligue o ventilador.
Se faltar fulgor, Lace uma estrela, Até então tê-la Sob seu cobertor.
Se tudo for dor Rascunhe o papel À caneta ou pincel E desenhe um amor.
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RAMAGEM
Sou poeta que escreve com pena de cacto, Ferido de poesia, penosa e breve onde me debato. Ah! Se as palavras fossem uvas no cacho,
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Ah! Se fossem doces meus dias, eu degustaria Poesia na ramagem. A dor que transpiro, caĂda na relva, nutri a semente, Rega os frutos na pĂĄgina branca onde suspiro.
RUĂ?DO
Leve objeto de porcelana quedando no piso, Barulho de chuva arranhando o vitral,
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Passo marulhado no corredor, A respiração de quem dorme, Cães invisíveis, uivando no vento, Lápis sobre o áspero papel rascunho. Não existe silêncio que seja absoluto, Mas os ruídos mudos, Pequenos toques, como goteiras, Como o avião em voo distante, Como criança mórbida que chora, Como uma porta que fecha devagar. Quando estou absorto, pensando um poema, Não ouça a vizinhança flutuante, Nem seu murmúrio habitual, Não ouço o rádio alheio Com aquela anti-música esquisita, Deixo-me ouvir com ouvidos de dentro.
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Há outro mundo depois do muro, atrás da porta... Não há lá nem cá silêncio que seja absoluto, Sempre haverá estalidos ainda que sejam ínfimos, Um sopro fantasma roçando paredes, Sempre haverá, no silêncio, um barulho inaudível, Silêncio nada mais é que uma força de expressão.
SIM E NÃO
A mis,
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A missão, A miscigenação. Sim, Assim, Assimilação.
Ser, Não ser, Sim e não. Eis a questão!
SONETILHO O corpo que toco,
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O toque que canta, O nó na garganta, A dor que estoco. A corda que vibra Em dedos inquietos Enquanto ele dribla Acordes repletos. O carma, o caco, O vício, a sina, A alma em chama. O trecho, o naco, A ideia, a usina, O final da trama. SONETO À BRASÍLIA
Estampa na insígnia da terra capital,
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Bandeira recente, com tintas de sangue Dos braços construtores dos seus migrantes, Um Brasil ofegante costurado no mundo. Símbolo do poder implícito e amor cabedal, Covil de gravata, o antro das gangues, Atores no palco: ofensas, desplantes, A revelia dum povo já tão moribundo. És Brasília, o que há tanto a subverter, Juscelinamente, és um filho tupi, O centro bendito de todo o reinado, És Brasília, esfinge forjada no alvorecer, Solene princesa dos palácios daqui, Seu futuro é cego mas também é alado.
TESOURO
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Meu tesouro só eu o conheço, Pensando bem, nem eu o conheço, Sempre esqueço que é visível, Que é risível, que está do avesso, Meu tesouro é veemente, Está silente como um estouro, Em polvorosa costura o verso, Ínsita a prosa em rio submerso. O meu tesouro, quando o exponho, Acolhe sonhos, faz-se canoro. O meu tesouro não tem ferida, Não tem medida ou algum desdouro. Faz-se preciso em minha arte: Vênus e Marte e amor conciso.
VEJO
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Para Raimundo Lonato
Serão minhas As linhas Das estrelas? O que dirão As pedras De meus segredos? Como contê-las Em meus suspiros, Aos bandos, precipitadas...
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VIRGO DOBRADO Dois homens vinham em direções opostas, Mas no mesmo sentido, O primeiro escrevia poemas, O segundo escrevia poemas, Em suas mãos nasciam letras Que tatuavam séquitos papéis. Dois poetas bebiam luas, Sugavam do sol as primeiras manhãs, O primeiro trazia palavras no córrego das emoções, O segundo costurava palavras com a lã das estrelas, E assam, versos saltavam como peixes. Virgo dobrado em mapa austral, Agosto, setembro, braços dados à virgem, Duas vertentes manipulando ideias, Duas nascentes descendo o mesmo rio,
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Dois invernos buscando primaveras onĂricas.
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VIRGO
Quem produz a base das personas? O gênio, O sentimento? O silencioso rio? Quem produz o básico impulso? No pulso, fogo próximo ao pavio? Quem domina o urso introspectivo E açula à emoção, um algoz desafio?
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VOZES DO ALÉM Para Pablito Morales
Uma voz soprou nos ouvidos, fluídica canção Seria uma nova harmonia cuja as notas divagavam, Desesperadamente solícitas no desordenado espaço da criação.
Será que os mortos, escrevendo uma canção, Esqueceram-na viva nas cifras? Ou será que as notas musicais, tropeçaram umas nas outras Involuntariamente e desse atrito sonoro, criou-se o sublime cântico.
Seja lá o que for, compartilhei dessas viagens A reproduzir no verso, alucinações,
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E que a partir de então, tornei-me cúmplice.
O CÉU Será que o azul que o sol quara na amplidão É a linha espessa de uma fronteira, Onde as aves não tocam e os olhos não vão E as estrelas são deusas sob a esteira? Será que o azul tinto que suspende a lua Tece o segredo na verve dos poemas, Onde a beleza com leveza flutua Por palavras soltas, ora, sem algemas? Manhã fria de brisa extinta, céu falho, Feito poça exposta no vão dos becos, Entoa um canto com sede do universo. Suponho o céu, o mistério que me valho, Vendo chuva, borbotões em solos secos
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Escorrendo como sangue sobre o verso.
A TERRA Tudo que caminha ou voa da terra é fruto, O que não é etéreo como os gases são, Aparecerá à terra em seu estado bruto: Pedra, argila, solo, asfalto, poeira, chão… A luz desenha sombras nas silhuetas, A ecoar no vento, o sinal das línguas Ou onde palpitam asas de borboletas Que voejam trôpegas e quase às mínguas. Mãe doando seu leito aos filhos famintos, Servindo até o sangue de suas entranhas, Construindo criaturas do seu solo. Mutilada por seres de maus instintos,
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Resistindo como quem no fundo estranha. Então, por quê destruir o que é colo. O MAR Não pelos saveiros que juntam seus peixes Como se arremessassem a prataria No espelho turvo de vidro cintilante, Com tal encanto que até me queima as veias. Não pelas criaturas mais submersas, Que povoam reinos, feito a Atlântida E outros ocultos no bojo do ventre Que me seduzo como quem vê sereias. Não pela tua beleza em cor marinha: Do verde ávido, do azul mítico Que admiro como algo que é puro viço. Não pela efervescente escuma na areia
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Que eu me flagro hipnotizado e mudo Mas sim porque te amo por tudo isso.
MANA ELIANA Ô mana Eliana, A vida nos chama À luta bendita E aflita do ganha pão. A vida, Eliana É chicote em chama, Atrito de pedra Na prega da minha mão. A ausência é uma ponte tão longa O tempo respira saudade, O amor no meu peito é covarde, É covarde e ressoa e anda e ecoa E se alonga como acorde de violino Num solo sentimental.
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Mudo, impotente, Ausente e tudo, Sou teu irmĂŁo irreal.
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