Contos dos Meus Sonhos - Ngola Mufasa

Page 1


Ngola Mufasa

2


Os Contos dos meus Sonhos

Título original: Os Contos Dos Meus Sonhos Copy right © 2020 por Ngola Mufasa

Edição: Fernando Evambi Capa: Ivandro José/iDesigns92 Revisão: Sílvio Muxima do Assobio & A. L. Dark Foto do autor: Ivandro José/ChamART Diagramação: Fernando Evambi Adaptação da capa: Ivandro José/iDesigns92

Entre em contacto com o autor: Facebook: Ngola Mufasa Instagram: i.chipululo119 Telemóvel/whatsapp: 944 775 250

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sobre quaisquer meios existentes, sem a autorização do escritor e do editor.

3


Ngola Mufasa

“OS CONTOS DOS MEUS SONHOS é uma obra bastante interessante, traz consigo o que muitos contos não trazem: o factor educativo da vida. É uma obra embuída no espírito de resgate dos valores culturais, éticos e morais, trazendo consigo a relevância dos conhecimentos passados de geração à geração através do Onjango”. - Sílvio Muxima do Assobio (Escritor, professor de Língua Portuguesa e várias outras áreas do saber) “OS CONTOS DOS MEUS SONHOS, é uma novela que apresenta um paradoxo temporal real e bastante contundente. A maneira como o enrredo desenrola, os olhos de qualquer leitor, saciar-se-ão pela linguagem muito própria do escritor, e nossa em um contexto social. Livro recomendável para ler e perspectivar um paralelismo literário, e assim outros mundos ganham vida e o leitor viverá neles único de um”. -A. L. Dark (Professor, escritor e palestrante) “Uma obra recheiada de aventuras e lições valiosas a cada conto, com técnicas enusitadas, para colocar o leitor numa viagem inexistente, cujo gosto não é suportável pelo paladar, a fim de adociar o corpo inteiro, estando o leitor propenso a um diabete que proporcionará agrado, já que a doçura não será fatal, muito pelo contrário, proporcionará novos aprendizados e novos mundos que apenas existem em Greenland e especialmente no livro OS CONTOS DOS MEUS SONHOS”. -Abel Pataca (Escritor e membro da ALEK) 4


Os Contos dos meus Sonhos

5


Ngola Mufasa

Ă€ Ana Malengue e Suriela Chipululo

6


Os Contos dos meus Sonhos

AGRADECIMENTOS Para que esta obra fosse produzida, foi necessário, primeiro, que eu tivesse vida e acesso ao ar que respiro. Consequentemente, agradeço à Deus que me dá a vida e o ar que respiro, força e motivação. Endereço agradecimentos aos meus pais, Analdino Chipululo e Eunice Chipululo, que muito ajudam e contribuem para a minha formação académica e como pessoa. Agradeço à minha irmã, Alice Chipululo, por ter sido a minha primeira leitora e fiel companheira nalguns momentos, a quando da manuscrição do livro e por me ter corrigido inúmeras vezes a forma correcta de pegar a esferográfica enquanto se escreve, e a forma correcta de escrever a letra “s”. Agradeço também aos meus colegas, amigos e membros da ALEK, que me motivaram mais do que qualquer uma outra entidade individual ou colectiva, a terminar a presentre obra. Por último, mas não menos importante, quero agradecer à três pessoas que muito contribuíram directamente para a edição, estética e digitalização do livro, os quais são: Fernando Evambi, Ivandro José e Mauro Rodrigues. À estas entidades, o meu muito OBRIGADO!

7


Ngola Mufasa

“Os sonhos falam em nós o que nenhuma palavra sabe dizer.” “De que vale ter voz se quando não falo é que me entendem? De que vale acordar, se o que vivo é menos do que o que sonhei?”

Mia Couto

8


Os Contos dos meus Sonhos

Existe uma realidade escondida e tímida, que os humanos insistem em dizer que não é real. Ngola Mufasa

9


Ngola Mufasa

10


Os Contos dos meus Sonhos

NOTA DO AUTOR Antes de morrer, eu quero me certificar de que nunca morrerei – tanto na dimensão espiritual, quanto na dimensão física. Esta obra literária é só mais uma das várias contribuições para este processo de certificação da minha imortalidade (física), porque o artista vai, mas a sua obra e o seu legado ficam. Desde o processo de idealização à escrita, o livro Os Contos dos Meus Sonhos foi um grande desafio para mim, porque escrevi em menos de vinte dias. Deixei de lado todas as outras obras, para começar a escrever esta – este livro é o meu primeiro a ser publicado, mas é/foi o sétimo a ser escrito e idealizado. Eu acredito que esta obra terá contribuído para alguma coisa no quotidiano do leitor, do mesmo jeito que contribuiu para o meu status quo. Este livro, é um livro de contos, escrito de uma forma excepcional. Cada vez que eu me sentava para escrever os contos dos sonhos do Zitúu, eu pensava sempre em viver e presenciar os sonhos e a vida normal do Zitúu, e assim produzir estética. Porque, eu acredito que, a beleza das artes nos conectam, também, de certa forma, ao Criador, o Deus supremo. Procurar entender os pensamentos e intenções do autor desta obra, é uma condição sine qua non para se entender a mesma. Cada conto deste livro foi escrito para entreter o leitor, porém cada um carrega consigo, um momento qualquer – uma página, um parágrafo ou mesmo uma linha –, com uma intenção lúdica, que se manifesta, muitas vezes, pela interpretação subjectiva.

11


Ngola Mufasa

No conto, a título de exemplo, do sonho do pesadelo do Zitúu, é uma representação clara sobre como o nosso ódio – representado na serpente –, entra em nós mesmos, nos corroe, desgasta e consome, e depois vai embora, sem dizer nem deixar alguma coisa. Há um dos contos, em que no meio da narrativa eu coloquei a seguinte frase: “Os sonhos falam em nós o que nenhuma palavra sabe dizer”; gostaria de informar que este pensamento pertence ao grande escritor moçambicano Mia Couto – desde já recomendo os seus livros como sugestão de leitura –, e não é obra da minha criação. Greenland é uma cidade dos sonhos, existente apenas em minha mente. Resolvi criar uma cidade e espaço para produzir alguma coisa mais criativa, e criar uma semelhança em todas as minhas narrativas. Procurei, ao máximo, usar uma linguagem simples e de fácil entendimento, para que todas as faixas etárias consigam ler e entender a obra sem muitas dificuldades. Existem palavras, dentro da narrativa, que fui adulterando o sentido das mesmas, como por exemplo, usei, maior parte das vezes, a palavra “Tempo”, para significar “Idade”, pois as crianças da aldeia do Zitúu não podiam conhecer palavra “Idade”, por motivos que nem eu sei. Usei, também, as palavras “Momento” e “Instantes”, na vez do verdadeiro sentido da palavra “Tempo”. As histórias não foram escritas de forma sequencial, e do mesmo jeito que todas têm semelhança, nenhuma tem a ver com a outra. Cada personagem, cada espaço e cada acção, existem apenas na mente do leitor, pois não são factos reais. Aliás, são, mas no mundo da Inexistência. 12


Os Contos dos meus Sonhos

Sumário

PRÓLOGO……………………………………………………...14 A FORMIGA PREGUIÇOSA……………………………….…16 O SONHO DOS CHOROS: CHOROS DOS GRILOS ............... 23 MORCEGOS DE OLHOS ESCUROS E ALMAS… ALIÁS, ASAS CORTADAS ..................................................................... 28 A BORBOLETA DA BERTA ..................................................... 39 A FÚRIA DO PRIMO-JOÃO ...................................................... 53 AS DOUTRINAS DA NOSSA ALDEIA .................................... 65 OS JOGOS DO JOJÓ .................................................................. 69 O CANECA EM PLENA SECA ................................................. 81 O KIAME ENTRE AS TREVAS ................................................ 95 “SE EU SOUBESSE…”, MAS NUNCA SE SABE ................. 104 O SEGREDO DOS EMBONDEIROS ...................................... 109 COMO AS CORES FORAM COLORIDAS............................. 115 SEJAMOS TODOS FORMIGA ................................................ 125 O NADA TAMBÉM É ALGO .................................................. 135 BIOGRAFIA .............................................................................. 137

13


Ngola Mufasa

PRÓLOGO O sonho é a narrativa de uma realidade inexistente: incoerente, algumas vezes. O desejo de ver como realidade o que sonhamos é uma utopia, das grandes; porém eles continuam a ser reais no mundo da inexistência, essa é doutrina de Greenland. O Filho-Tito [lê-se mesmo: “Filho-Tito”], tem na aldeia o trabalho e a responsablidade de transmitir aos mais novos os contos, as lendas, adágios, as histórias da nossa aldeia e, sempre que restar algum tempo, das outras bandas de Greenland. Para o nosso mundo os sonhos representam um símbolo muito importante: é a comunicação dos nossos ancestrais para conosco. Eles, segundo o que nos conta o Filho-Tito, no período nocturno, enquanto todos na aldeia dormem, passam por todas as casotas para dar sonhos. Aqueles que no passado foram maus para as suas famílias e para a aldeia, são perdoados no Além pelos seus maus actos, porém têm a reponsablidade de distribuir pesadelos às crianças que não comportaram-se bem durante o dia; os ancestrais que foram bons no passado oferecem sonhos alegres e confortáveis às crianças que tiveram uma boa conduta durante o dia. “Os adultos não sonham e nem podem!”, exclama o Filho-Tito. Ele nunca nos diz o porquê, antes, nos diz que toda criança que souber o porquê dos adultos não sonharem, torna-se muda, cega e surda. Uma vez o Kiame tentou perguntar ao Filho-Tito, enquanto estávamos no Onjango1, mas eu tive de interromper, lhe dando um tapa quase discreto na perna esquerda, antes mesmo de ele soltar a 1

Local onde são realizadas reuniões de assuntos diversos, na Cultura Ovimbundu.

14


Os Contos dos meus Sonhos

quarta palavra da sua “ex” pergunta: não seria bom ter um melhor amigo surdo, mudo e cego. Para ser bem sincero, todos nós estaríamos (surdos, mudos e cegos) caso o Filho-Tito dissesse a resposta, o que nunca faz; mas o melhor, é sempre, nos limitarmos em não perguntar. Durante o dia, procuro ao máximo me comportar bem, para ter bons sonhos; durante a noite, temo que eu não tenha me comportado bem e por isso ter maus sonhos. Odeio os pesadelos da nossa aldeia, não são como qualquer um que possas imaginar: são bem piores. Mas os sonhos bons são muitas vezes melhores que a Realidade Real, dentro deles é tudo diferente e incomum, porém agradável e surreal. Já conversei com objectos, animais e fiz até coisas que na Realidade Real não me é permitido. E sempre que possível, no Onjango à noite, conto ao Filho-Tito os contos dos meus sonhos:

15


Ngola Mufasa

A FORMIGA PREGUIÇOSA Na nossa aldeia é fundamental que as crianças respeitem os adultos, não por obrigação ou formalidade, mas porque devemos este respeito à eles. “A dívida é paga com a submissão ao longo dos Tempos”, é isso que nos ensina o Filho-Tito. O Filho-Tito nos ensinou que os adultos de agora deviam os adultos de ontem. Isso implica dizer que a minha dívida só será paga daqui a não sei quanto Tempo. Não sei o Tempo exacto porque não sei quando serei adulto, nem quando deixarei de ser criança. Apenas a Prima-Fati (minha mãe) e o Primo-João (meu pai) sabem: só eles sabem a minha “idade”. Na minha aldeia a palavra “idade” não existe no vocabulário infantil. Nós, as crianças, temos apenas, e somente, que dizer Tempo.

*** A noite de ontem foi longa, felizmente não tive um sonho ruim, pelo contrário, aprendi muita coisa que o Filho-Tito nunca nos tinha ensinado, porque é dever dos ancestrais ensinar algumas coisas para as pessoas com o meu Tempo vida. – Zitúuuuu… vem vamos à lavra. – foi assim que a Prima-Fati me acordou aos gritos. Eu estava todo sonolento, mas tive que levantar para ir ajudar a Prima-Fati: LHE DEVO SUBMISSÃO. No caminho de casa para a lavra, quase adormeci em pé, mesmo em movimento, mas o Primo-João bateu-me com o cabo da sua enxada para que eu andasse rápido. E resultou: não só comecei a nadar rápido como também acordei do sono morto. 16


Os Contos dos meus Sonhos

Como distração, enquanto íamos à lavra, eu observava os grandes matos de Greenland, que ficam perto da nossa aldeia. Já na lavra, tiramos o capim que estava na plantação, e depois recolhemos alguns tomates para oferecer aos vizinhos e ao PaiMingo – soba da aldeia. Não recolhi o tomate como eu costumava, não capinei o capim como eu costumava, nem sequer andei como eu costumava. Por um único motivo: precisava muito de dormir e terminar o sonho que começara; o desejo ardente de dormir que não era suprido, trouxe consigo preguiça: muita preguiça, das piores que eu já vira. Na lavra, a Prima-Fati não parava de gritar comigo e o Primo-João chegou mesmo a me bater. A preguiça e a submissão me dominavam em simultâneo. Quando o sol começou a sonegar, nos metemos a andar até a aldeia, carregando sacos com tomates e as nossas enxadas; eu carregava algo a mais: a preguiça. Quando chegamos na aldeia passamos de porta à porta para distribuir o tomate vermelhinho aos nossos vizinhos: é uma das regras da nossa aldeia – partilhar. E por último, fomos à casa do Pai-Mingo para lhe ofertar alguma parcela dos tomates. Quando entramos em nossa casa, estava tudo escuro, então, a primeira coisa que fiz foi acender o candeeiro. Depois de me acomodar, pedi à Prima-Fati para que eu fosse ter com o Kiame; passamos todo dia sem nos vermos. Como velhos amigos que somos, mesmo sabendo que temos pouco Tempo de vida e por isso não somos necessariamente “velhos amigos”, ficamos fora de nossas casas a observar as estrelas e 17


Ngola Mufasa

dando-lhes nomes. Jogamos muita conversa e risada fora, em seguida contei-lhe sobre a preguiça que domou-me durante o dia, e ele como sinal de confiança contou-me que desobedecera seus Primos. Isso me deixou triste porque, assim, ele teria maus sonhos nesta noite. Não pude fazer nada mais do que encorajá-lo e desejar má sorte. Me levantei do chão onde estávamos sentados, sacudi a parte traseira do meu calção, e quando dei o segundo passo em direcção à minha casa, o Kiame me pediu para ficar: – Fica só mais alguns instantes comigo, por favor. Não quero ir em casa e dormir – me pediu, soluçando no mesmo ritmo das lágrimas que escorriam no seu rosto. Como não foi dia dos que têm o meu Tempo reunir com o Filho-Tito, decidi ficar. Fiquei alguns instantes com o Kiame até a Prima-Fati ir me chamar aos berros. Quando cheguei em casa, fui até ao meu quarto, deitei na minha esteira e fechei os olhos querendo dormir, pois estava ansioso para sonhar e me submeter, não mais à Prima-Fati ou qualquer outro adulto da aldeia, mas me submeter ao meu Avô – nome que cada criança tem de chamar ao seu ancestral –, e estar sujeito ao sonho que ele quiser me dar. Estive convicto que o sonho seria maravilhoso, porque me comportei da melhor maneira possível durante o dia: O Conto do meu Sonho: Logo que me desliguei da Realidade Real, me encontrei na Realidade Inexistente. Era tudo branco, e eu não via nada, senão o “tudo branco”. Mas com o andar dos Tempos (que os adultos chamariam de minutos), as coisas começaram a dar formas às coisas e os seres aos seres. No Além não há céu: o céu é inexistente na Inexistência. 18


Os Contos dos meus Sonhos

Na medida em que as formas iam dando forma às formas, os animais começaram a surgir, as plantas e árvores a existir e a Inexistência foi obrigada a adormecer sem, no entanto, morrer. Se o cenário não fosse este, eu entraria para a Realidade Inexistente da forma mais brusca que já se vira em Greenland. Enquanto eu observava a fauna, a flora e outras coisas – que não me é permitido dizer –, vi no além do Além uma alma que se aproximava de forma tão lenta, isso fez com que a alma estivesse mais próxima de mim, do que eu podia imaginar: no Além não se pode imaginar. – Meu filho… – Disse a alma com regozijo – Rasgada carne e invisível osso em, estou aqui. – Pois, é isso que o Filho-Tito disse que devemos dizer como resposta quando nos encontrarmos com os nossos Avôs, os chefes e autores da nossa descendência, pela primeira vez nalguns sonhos. – Siga me! – disse o Avô sem tom nem voz, entrelaçando os seus dedos-de-vento aos meus. Andamos por Tempos em volta do Além. Eu via tudo, enquanto os meus olhos observavam nada. A grama era suave, tal como a Inexistência. Era agradável o passeio sem fim final. – Animais os cumprimentar para parar quero eu, licença sua a com, Avô. – É assim que devemos falar: tudo ao contrário, conforme nos ensinou o Filho-Tito. Mas isso só depois da primeira frase, que normalmente é dita de forma coerente, no primeiro contacto. – Bem tudo – me permitiu o Avô com um sorriso apagado, enquanto desentrelaçava os seus dedos-de-vento entre os meus. Parei por alguns instantes, que só deu para conversar com o meu amigo leão e o elefante – outro amigo há Tempos. Meu Avô 19


Ngola Mufasa

interrompeu as carrícias tímidas mas mútuas com os animais, e levou-me para um lugar onde só tinha insectos. No Além da Inxistência, os seres certos de incertezas cumprem a mesma vida que outrora tiveram enquanto vagueavam pelos mundos da Realidade Real. Os leões dominam as selvas, os cães são os melhores amigos das almas e, como era de se esperar, as formigas não param de trabalhar. Tive Tempo de conversar com algumas delas, fiz até amizades novas. O Avô ergueu a minha cabeça com uma das suas mãos do meio, e direcionou os meus olhos num Além muito mais próximo do que o que está perto e, de uma dinstância curta, além do normal, vi uma formiga sentada à sombra de uma árvore, com olhos arregalados, e a sua enxada que estava encostada no tronco da árvore. Fiquei tristemente alegre ao ver a formiga descansar, porque até os animais merecem um descanso, ainda mais no Além, porém triste porque não faz parte da natureza da formiga descansar. – Filho vamos. – Ordenou o meu Avô. Me levantei, depois de interromper a conversa com as outras formigas, e caminhamos uma longa distância curta, ao encontro da formiga que descansava na sombra da árvore transparente. Olhei para o Avô, com uma face que indicava interrogação, e ele começou a proferir um sermão, depois de uma conversa amigável – notava-se pelo seu semblante – com a formiga cansada, em uma linguagem que só os do Além percebem:

20


Os Contos dos meus Sonhos

– Cansada está ela se perguntou se você!? – Indagou o Avô, me olhando sem os seus olhos, o que transformou a pergunta em afirmação. O Avô conhece todos os meus pensamento, então eu não podia negar ou mentir. – Sim. – Respondi à afirmação. – Preguiçosa é, cansada está não ela. – afirmou o Avô, agora no sentido literal da palavra afirmar. – Bafos dar lhe de acabei. – essa última frase do Avô foi um tanto quanto engraçosa2, pois aquele semblante é o mais tolo e menos apropriado para se dar bafos. Mas é assim que tudo funciona no Além: o que é, nunca é! Num instante, a formiga cansada tornou-se na formiga preguiçosa. Comecei a entristecer, e num outro instante, aquele que pensei que seria um sonho maravilhoso, não foi: no Além o que é, nunca é! Levei uma bronca do Avô, como nunca antes na Realidade Real as pessoas levaram. O Avô, entre outras coisas, disse-me que a preguiça também é desobediência. E por sorte, muita sorte, ele escolheu não me dar um pesadelo. Me disse, também, que eu tinha de seguir o exemplo das formigas trabalhadoras e que se eu continuasse preguiçoso ele mesmo me castigaria. Tentei explicar ao Avô a razão de eu estar preguiçoso durante o dia, mas não fiz isso porque eu presumo sempre que ele conhece os meus pensamentos – o que não é verdade –, e também porque eu não queria despertar a sua ira adormecida. Seria bem pior do que ter um pesadelo pesado. Me limitei em chorar, em poucos instantes eu tinha a face toda molhada de lágrimas secas. Nunca, em minha existência, ouvi aquelas palavras. – Ir que tem você; Real Realidade na noite uma e, Além no dias 30 passaram se já. – Me disse a alma sem boca do Avô, depois de alguns instantes, quando se acalmou. 2

Palavra gramaticalmente errada, utilizada no sentido de “engraçada”.

21


Ngola Mufasa

*** Abri os olhos para a Realidade Real, e constatei que os lençóis da minha esteira estavam ensopados: o que é uma Realidade inexistente no Além, pode ser uma realidade real na Realidade. Nesta manhã, jurei para mim mesmo nunca mais ser preguiçoso, para evitar a desobediência e, assim, evitar o pior. –– Zitúuuuu… vem vamos à lavra.

22


Os Contos dos meus Sonhos

O SONHO DOS CHOROS: CHOROS DOS GRILOS O Filho-Tito, uma das pessoas da aldeia com mais Tempo, é a nossa escola. Entre palavras faladas e canções cantadas, surge o encanto de estar naquele meio: Onjango. A Berta, a menina mais linda da aldeia – na minha opinião – tem uma voz linda de se ouvir, com um som agradável de se sentir. “Berta, hoje é dia dos ancestrais”, dizia o Filho-Tito todos os dias dos choros dos grilos, antes de nos reunirmos em volta da fogueira, que é: ensanguentada – nos dias normais – e uma entidade que chora sangue – nos dias dos ancestrais. Todos os meninos e meninas com o meu Tempo, já compreenderam, em sonhos, com os seus Avôs, sobre a importância do “choro dos grilos”. No meu sonho, o meu Avô ensinou-me de uma maneira sem igual, que nem na Realidade Real eu tivera aprendido de tal forma com o Filho-Tito. Sempre que alguém tivesse o sonho do “choro dos grilos”, tinha que contar ao Filho-Tito todos os detalhes, para que o Filho-Tito ajudasse a compreender todos os factos incompreendíveis3 para os meninos com meu Tempo. Quando eu tive o meu sonho, antes mesmo de contar ao Kiame, contei à Prima-Fati, instantes depois de eu me despertar do sono. A Prima-Fati, toda entusiasmada, deume um beijo, do tipo que já não me dava há Tempos. “Este sonho é muito importante meu ‘filho’ Zitúu”, disse a PrimaFati me chamando de “filho”, sendo que eu não posso lhe chamar de “mãe”, aliás nem conheço esta palavra. 3

Palavra gramaticalmente errada, utilizada no sentido de: “difícil compreensão”.

23


Ngola Mufasa

Depois da conversa com a Prima-Fati, antes mesmo de me certificar de que estava vivo, fui à casa do Kiame. O sol estava meio assanhado, logo no período que a noite adormeceu. Convidei o Kiame para irmos ao rio banhar e ele trouxe consigo não apenas a sua vida – o que, por sinal, é mais importante para mim – mas trouxe também algumas batatas-doce no bolso do seu calção branco: método amargo para adquirir coisas doces: foi roubada. Rimos até não poder mais, ao ritmo da batata se misturando com as salivas em nossas bocas. Andávamos com os braços encostados nos ombros um do outro no caminho para o rio, enquanto as deliciosas batatas e as salivas se envolviam, num processo muito solene. O Filho-Tito nos ensinou que podemos ir ao rio no período em que o sol está acordado. Porém, quando o sol dormir não é permitido ir ao rio para as pessoas do meu Tempo; mas é permitido para as pessoas com longo Tempo de vida, os adultos. No rio, ficamos a banhar: nos sentimos soltos, quando mergulhamos nas correntes do rio; nos sentimos libertos, quando mergulhamos nas profundas águas; ouvimos todo o barulho e a agitação impossível, em plenas águas que oferecem tranquilidade inimaginável. Eu gosto daquela liberdade, euforia, tranqui… – Zitúu, temos que voltar para a aldeia. – Me chamou o Kiame, já vestindo, na beira do rio, o seu calção branco, à uma pressa que lhe fez engasgar os pés. Eu me matava de risos. – Tá bem. Vamos. – Eu disse, após lembrar que já passamos um bom período no rio. 24


Os Contos dos meus Sonhos

Me vesti às pressas, na mesma medida que as águias usam para atingir os seus alvos, e nos metemos a correr à caminho da aldeia. Nós só queríamos nos divertir, e aproveitar aqueles longos instantes curtos de amizade. A Prima-Fati ensinou-me sobre a importância da amizade e disse-me que eu tinha que aproveitar mais as minhas, para não as perder por negligência: como aconteceu com ela. “A Prima-Fati não vai me bater pelos instantes fora da aldeia. Estou só a aproveitar a minha amizade, como ela me ensinou”, pensei, no âmago, para acalmar. Durante a caminhada, entre matas e capins tímidos, o Kiame desafiou-me para uma corrida. Como sempre, ele venceu. Mas isso não me entristeceu, antes, me alegrava: não há nada melhor do que ver meu melhor amigo feliz. Ficamos felizes, também porque, quando chegamos na aldeia ninguém notou a nossa presença. E o melhor ainda a nossa ausência. Corremos até à Berta, que estava em num canto isolada, a pisar o mbundi4. Contamos à ela, entre as gargalhas, sobre os momentos de diversão que tivemos. Ela não se conteve, e pôs-se aos risos também: pelos momentos divertidos que eu e o Kiame tivemos e contamos e, também, porque eu perdi a corrida. “Era de se esperar”, disse ela, lacrimejando de muitos risos, misturado com o som violentamente sutil do mbundi a ser pisado no almofariz5.

***

4 5

Raízes ultilizadas para fazer uma bebida tradicional Bantu, “Kissangua”. Instrumento feito de madeira, utilizado para pisar o mbundi.

25


Ngola Mufasa

– Berta, hoje é dia dos ancestrais. – Disse o Filho-Tito, depois de se acomodar no lugar onde costuma sentar no Onjango. O choro do fogo era tão visível, quanto sentido. Os grilos começaram a chorar pela morte dos ancestrais da nossa aldeia. A Berta, ela que organizava e escolhia as canções cantadas no Onjango, levantou e ficou em pé ao lado do Filho-Tito para começar a cantar. Os grilos, sem perder mais momentos, aumentaram o volume do som dos seus choros; o fogo da fogueira ficou ensanguentado, demostrando a sua agonia nas lágrimas de sangue; as estrelas no céu, ficaram meio que tristonhas e eram visíveis as lágrimas da lua. A Berta, começou a cantar com a sua linda voz e nós a seguimos: Hojé é dia de alegria Alegria triste Com cantos de alegria Lembramos o que sempre existe Felizes estamos pelos ganhos Tristes estamos pelas perdas Aos ancestrais nós cantamos Por toda eternidade fazemos festa… Assim que a Berta cantava, nós a seguíamos em uníssono. Foi tudo tão alegre na mesma proporção da tristeza. Eu refletia sobre todo o cenário a volta, vezes sem conta: “porquê é que os astros também choram pelos ancestrais? O fogo chora até lágrimas de sangue, porquê? Os meninos a volta da fogueira choravam também com grande amargura, porquê isso tudo?”

26


Os Contos dos meus Sonhos

E o facto mais curioso, por quê é que temos que aprender no sonho sobre “o choro dos grilos”?

27


Ngola Mufasa

MORCEGOS DE OLHOS ESCUROS E ALMAS… ALIÁS, ASAS CORTADAS O lugar era escuro e sangrento. Vi almas girando em minha volta, e num uníssono desorganizado diziam: “Zitúuuuu… Zitúuuuu”. O lugar era extremamente lúgubre. Eu estava pisando em lama preta, que fazia fronteita com o rio, e dele saiam cobras venenosas, répteis perigosos, jacarés e hipopótamos afogando-se no insaciável desejo de tomar o meu corpo, e despedaçar a mil. Mil partes. Aquele ambiente me fazia chorar, e na medida que eu limpava as lágrimas com os meus dedos que eu nem via, eu via sangue: muito sangue preto que fervia em minhas mãos. Não conseguia compreender a situação. Tentei mover os meus pés, mas eles se mantinham tetraplégicos e imóveis, porém, para o meu espanto, o corpo movia-se na mesma proporção em que os passos dos pés foram programados e pensados. Deixei os meus pés imóveis na lama que fervia e jorrava bólias de fogo e, por isso, me movi somente com a força do meu pensamento. As almas sangrentas, portadoras de cabeças de caveiras sentiam prazer em me atormentar. Faziam caretas, mesmo sem cara, e risos de aterrorizar, mesmo sem voz. Senti os meus pés, mesmo não estando eles ligados ao meu corpo, a serem picados por cobras venenosas sem dó e nem piedade, no mesmo momento que os lagartos vindo de algures me picavam os 28


Os Contos dos meus Sonhos

braços. Uma cobra que descansava numa árvore sem folhas nem cáule, rastejou pelos ramos da mesma, e depois saltou e começou a rastejar no capim e vinha em minha direção. Eu queria correr, mas estava sem os meus pés, e os meus pensamentos que me ajudavam a locomover, pararam de pensar. O medo superabundava no meu inconsciente e subconsciente. Eu não estava consciente. Tive que aguentar a dor das minhas pernas a serem devoradas e tive que começar a sentir frio na barriga e arrepio malígno da serpente preta e sem cabeça que começou a passear pelo meu corpo, e me apertava mais. a cada vez que eu me mexia. A serpente girou pelo meu corpo todo, passando pelos braços, vagueando na barriga, até ela ter a ideia brilhante de chegar até ao pescoço e, como se não bastasse, apertar-me. Não consegui fazer nada senão chorar. As almas diziam palavras que não se entendiam, pareciam ser insentivos para a cobra continuar a me causar sofrimento. Não bastava o corpo ser dominado por uma serpente, eu tive que sentir a dor próxima, à distância, que meus pés sentiam por cada picada das cobras e lagartos e pelas queimaduras causadas pela lama que se estava a vulcanizar. Vi sombras, fogo, animais perigosos, e sofrimento: muito sofrimento. As lágrimas que escorriam dos meus olhos eram lágrimas de sangue. Pensei – um pensamento que não foi produzido pela minha mente – em esticar os braços na direção dos olhos, para lhes limpar e conseguir ter um visão nítida daquela realidade lúgubre. Ao mover os meus dedos, para em seguida mover os braços completos, a serpente apertou-me no pescoço e com sua cabeça inexistente – eu não conseguia ver bem pelo sangue envolvendo os meus olhos – olhou-me profundamente nos olhos e em seguida, com o resto do seu corpo, apertou-me o pescoço. Abri a boca, e pus a língua fora 29


Ngola Mufasa

porque estava cada vez mais sufocada e não conseguia mais respirar em condições aquele ar nojento e fedorento. A serpente, serpente venenosa, fixou os seus olhos nos meus, como quem que quer transmitir uma notícia fúnebre. Apertou ainda mais o meu pescoço com a sua calda e eu, sem nem querer, abri a boca por completo e a serpente, agindo por influência dos seus instintos, entrou pela minha boca, e eu fiquei tanto engasgado, quanto sufocado. Eu senti a serpente entrando às pressas no interior do meu corpo, e os meu olhos? Os meus olhos só sabiam produzir lágrimas de sangue, na vez de conseguir ver. A serpente entrou com todo o seu corpo no meu corpo; copo, de vidro, eu me senti porque estava cheio de heterogeneidade: cobra, sangue, lagartos e mais cobras. Eu sentia a cobra a comer o que conseguia comer em mim, – órgãos/carne – e a picar, picar da forma mais violenta e funesta, o que não conseguia – ossos. O corpo estava domado de veneno mortal, porém eu não morria: a Inexistência existe para a morte e não para se matar. É a morte em si. A serpente absorveu os meus órgãos, e danificou todo o sistema digestivo e eu sentia a dor causada pelo sofrimento. Quando eu menos esperava, a serpente abriu um buraco na minha barriga e saiu por ele, toda vermelha de sangue, e mais gorda do que entrou. E só sentia dor, mas não podia morrer – era o que eu mais queria. As almas riam-se de mim. Eram milhares, mas saiam ainda mais outras milhares das árvores, do chão e até de “todo lado”. A serpente saiu do meu corpo por completo, passando pelo buraco que ela mesma cavara. O único pensamento que a minha mente 30


Os Contos dos meus Sonhos

conseguiu produzir, depois de muitos momentos, foi: “ fica calmo, ela já vai embora”. A nossa mente é o que temos de mais traiçoeiro. A serpente voltou a envolver com a sua calda o meu humilde corpo, e posteriormente subiu até o meu pescoço. Como antes, observava-me profundamente com os seus olhos inexistentes, e ria-se de mim. Vocês não se podem esquecer do barulho estranho que as almas, as lamas, as águas e tudo que ali habitava produzia: faziam parte do meu sofrimento. Me encarava com os seus olhos maliciosos e, em simultâneo, lambia a língua nos lábios como quem diz: “é hoje que eu vou comer você”. E aconteceu. Não por completo, mas pelo menos comeu, por aí dois terço. Ela se aproximou dos meus olhos ensanguentados de lágrimas, e era como se o sangue nos meus olhos a seduziam para: “me comer todinho”. Depois de lamber o sangue em volta dos meus olhos, num gesto de arrepiar, rompeu as minhas pálpebras, e com gesto e geito de se admirar, ela entrou novamente no meu corpo, mas dessa vez pelo olho direito: a nossa mente é o que temos de mais traiçoeiro. Corroeu e comeu, como mel, lambeu todo o meu cérebro e miolos. A dor era tanta, que quase pensei em arrancar a cabeça: não terminei de pensar porque a última linha que produzia pensamentos foi cortada, arrancada e comida… *** Realidade Real: o sol acabava de acordar: O sol já estava disponível para disponiblizar os seus raios luminosos no lado do planeta onde a minha aldeia se situa. 31


Ngola Mufasa

Como era hábito, eu e o Kiame fomos ao rio para banhar. As únicas coisas que não aconteceram “como era de hábito”, é o facto de não ser eu a chamar o Kiame, mas ele a mim; e um outro facto, estranho e curioso, é o facto de ele não estar a vestir o seu calção branco usual; desta vez estava com um calção preto: eu não gosto de preto. Fomos ao rio, com a Berta, a Nzola e a Daniela, mas elas recusaram-se a entrar na água e, antes disso, tirar as suas roupas. As três ficaram na berma, a nos observar, jogando conversa fora. A Berta e a Nzola como gostam de cantar, sentiam prazer em cantar em ambientes naturais: aquele era um. Elas cantavam, na medida em que eu e o Kiame mergulhávamos. A Daniela, a mais reservada e tímida, era de poucas palavras – mesmo no Onjango –, não gosta de chamar atenção – como no Onjango – e ficava sempre na parte de trás de tudo – inclusive no Onjango. Então, enquanto na água eu e o Kiame encontrávamos a mais pura das liberdades, a Nzola e a Berta encontravam naquele habitat a melhor e mais perfeita combinação dos seus sons, a Daniela fazia o que sabia fazer melhor: não dizer nada, não chamar a atenção e estar na parte de trás dos actos. Nos divertimos por mais alguns instantes, e em seguida nos metemos a andar a caminho da aldeia. No caminho para a aldeia, aproveitamos a cada momento da brincadeira e diversão. Esforçamos a timidez da Daniela a adormecer e ela falou como nunca antes. Como nunca antes a vimos falar. E assim, os primeiros momentos do primeiro show do sol começaram a ter os holofotes apagados e a sonoplastia danificada. *** 32


Os Contos dos meus Sonhos

Realidade Real: o sol estava excitado: Já acabávamos de almoçar, e como são ordens da Prima-Fati, há Tempos, ficar em casa – na casota – logo depois de comer, para descansar, eu fiquei. Fiquei deitado na minha esteira. Tentei dormir para descansar melhor, mas não deu e nem consegui – em Greenland, só aos ancestrias é possível e permitido dormir nos momentos em que o sol penetra – de sol excitado. Fiquei cansado de tentar descansar sem estar cansado, então fui lá fora para brincar com o Kiame – em sua família não tem essa regra de ficar trancados depois do almoço – antes mesmo que o meu período de estar confinado terminasse. Lá fora, brincamos às escondidas, com os outros meninos e meninas da aldeia: não há nada mais agradável que isso. E como diz a Prima-Fati: devemos aproveitar as amizades, e lutar pelas nossas amizades: eu não estava a fazer nada mais além disso. Quando eu cheguei, a brincadeira já estava no meio, ou talvez no fim, e o Jojó, com a sua voz grossa de amedrontar, era quem dava as ordens e regras do jogo. A primeira regra foi: mesmo que o Jojó fosse apanhado primeiro, ele nunca pode ficar no lugar de quem procura os outros. A segunda regra foi: se, por acaso, o Zitúu chegar, ele estaria no lugar de quem procura, até o jogo terminar. “O Jojó tem mesmo algo contra mim”, pensei, logo depois que me foram ditas as regras pela Daniela-Tímida – conforme a tratávamos nas fofocas – ter dito alguma coisa, ainda mais na frente do Jojó. Todos temos medo do Jojó, apesar de ter o nosso Tempo.

33


Ngola Mufasa

Brincamos e jogamos, jogamos bastante. E por pena, ou talvez empatia, o Kiame e a Nzola pediram ao Jojó para que ficassem no meu lugar algumas vezes, pois eu estava muito rebentado6. *** Realidade Real: o sol começava a enfraquecer e, por consequente, adormecer: Como já estava meio escuro, decidimos não mais ir ao rio para banhar: pois é proibido ir ao rio a noite (ou quase noite) para as pessoas do meu Tempo. Quando cheguei em casa, a Prima-Fati não se importou com o facto de eu ter saído, o que é bastante estranho. Entrei em casa como um ladrão, mesmo estando a Prima-Fati a me observar no meio da escuridão. Fui até a cozinha, peguei uma caneca de plástico da pequena mesa de madeira, e com ela tirei água no balde azul de plástico para, não matar, mas fazer adormecer a minha sede. Em condições normais – aquela não paracia ser uma condição normal, era totalmente anormal – a Prima-Fati me bateria por não cumprir a “velha regra” dela de ficar em casa a descansar depois do almoço. “Talvez é porque eu estava com os meus amigos, e como ela mesma diz: devemos aproveitar as nossas amizades”, pensei, enquanto procurava no chão da cozinha um palito pequeno para meter entre os meus cabelos. “ Ou talvez será o Primo-João a me dar porrada”, pensei, mais já ultrapassando a porta sem porta da cozinha. Juro que eu já chorava dentro de mim. “ O Primo-João?”, perguntei à Prima-Fati, interrompendo o momento íntimo de reflexão que ela tinha com ela mesma. Uma, entre duas das

6

Calão, utilizado no sentido de “cansaço ou fadiga”.

34


Os Contos dos meus Sonhos

possíveis respostas àquela pergunta me salvaria. Caso a Prima-Fati dissesse: “não es…” – Não está – ela disse –, foi ao rio banhar. Dei um suspiro um pouco difícil de disfarçar, e limpei as lágrimas que escorriam dentro de mim. Agora, eu tinha que pensar em fazer alguma coisa que me livrasse da maligna porrada do Primo-João. O melhor que pude pensar em fazer, foi dormir (…), porque o PrimoJoão não seria capaz de me acordar apenas para me bater. E no dia seguinte, tudo voltaria ao normal. “Vou dormir”. *** O conto do meu sonho: As vozes assustadoras atormentavam os meus ouvidos que estavam quase a avariar o ouvílogo7. As almas que tiravam proveito do meu sofrimento, me causavam um arrepio muito difícil de se sentir, porém fúnebre quando se sente. A serpente voltou a sair do meu corpo (ou melhor, cabeça), mas desta vez pelo olho esquerdo. De tão gorda que estava, não conseguia sair do meu corpo com a mesma facilidade que entrou. Teve que abrir um buraco muito grande, nesta zona do meu olho direito e, para a minha triste felicidade foi-se, me deixando sem olhos, cérebro – para pelo menos pensar – e, o pior de tudo, danificando os meus órgãos da barriga. Eu estava totalmente desfigurado. Não sei como, mas mesmo sem olhos eu conseguia ver. Não tão bem, mas conseguia.

7

Palavra gramaticalmente errada, porém utilizada referindo-se ao “ouvido no seu todo”.

35


Ngola Mufasa

Me faltavam poucos pensamentos a serem pensados pelo cérebro danificado, então eu não conseguiria me mover pela força do pensamento. Sendo assim, voltei para tentar pegar os meus pés de volta, e o que vi era assustador: toda a pele foi lambida, as carnes comidas e os ossos corroídos. Era um cenário assustador. Felizmente, consegui unir o resto do corpo aos pés, pés extremamente danificados, mas que por força dos ossos ainda moveriam. Comecei a andar sem rumo, a pensar sem ideias – gastando os últimos pensamentos que me restavam – a olhar sem vistas e a correr sem movimento. Porém, tudo fazia com medo. Num outro instante, não obstante, não muito distante, me encontrei num outro habitat. Era mais assustador que o espaço anterior. Com o corpo e a mente cobertos de sangue, senti as almas a me puxarem para um outro ambiente, que estava ainda mais quente – queimava a minha pele. Era ainda mais assustador. Eu preferiria ficar no anterior, mas não tinha liberdade de escolha. Quanto mais eu me envolvia no local, mais vapor queimava e danificava a minha pele. Os meus cabelos, não conseguiram se conter, e torravam por completo. As almas, com as suas mãos transparentes e inexistentes, empurravam o meu corpo para o fogo abismal. Quanto mais eu resistia, do fogo mais almas surgiam. Umas mais, e outras menos assustadoras que as outras. Cada alma multiplicava-se em mais outras milhares a cada instante. E todas, absolutamente todas, vinham contra mim. Eu resisti aos empurrões das almas até onde era possível, provocando-as a se multiplicarem cada vez mais. Umas me 36


Os Contos dos meus Sonhos

pegaram nos pés, outras nos braços e as outras no restante do corpo, enquanto outras produziam melodias fúnebres e incompreensíveis. Deitaram-me no fogo ardente, que se estendia por um buraco longo sem fim. Enquanto eu descia para o infinito, as almas se jogavam também no fogo, e tiveram a genial ideia de jogar com o meu corpo. Coitado do meu corpo. Felizmente, quando eu menos esperava, vi morcegos passeando em torno da berma do buraco. Eram muitos, que formavam uma nuvem preta, naquele lugar bastante escuro. Mas eles giravam, também, em torno de uma outra sombra: era a sombra do meu Avô. Na aflição sem fim, quando clamei por socorro, o avô enviou os morcegos para me socorrer. Não eram quaisquer morcegos: eram morcegos de olhos escuros, asas quebradas, partidas e corrompidas, e almas mortas. Os morcegos lutaram contra as almas, para me livrar daquela tortura. Sem dúvidas, eles eram o meu socorro naqueles momentos. Depois de uma longa-curta luta, os morcegos envolveram meu corpo nas suas almas secas, e guiados pelos olhos escuros, com as suas asas cortadas, levaram-me até a superfície. Eu, nem queria acreditar que minha alma estava despedaçada, mas não morta, meus órgãos danificados e depravados, porém ainda funcionavam. – Filho meu. – Disse o Avô, com um semblante não fácil de se identificar. Tentei dizer algumas palavras, mas não fazia nada mais do que chorar e soluçar: odeio os pesadelos da nossa aldeia; não são como qualquer um que possas imaginar, são bem piores. 37


Ngola Mufasa

O Avô, estava também a sentir o meu sofrimento, foi isso que ele disse, depois de me envolver em seus braços invisíveis e sentar ao lado de uma árvore que falava. “Mas não posso te livrar deste sofrimento, infelizmente”, ele disse. Eu perguntei quais eram os motivos que faziam com que eu não fosse livrado, e o Avô me disse de forma subtil: “ Você desobedeceu as regras da sua mãe, que consiste em não sair de casa logo após o almoço”. Eu levantei as sobrancelhas, como sinal de que não estava a entender a situação. “as regras, não importam quão antigas elas sejam, se não foram revogadas continuam a ser regras”, continuou, “ e você desobedeceu! Por isso estás a pagar neste sonho”, terminou. – Ir podes já. – Me disse o Avô… ou melhor, a sua sombra, naquele ambiente mais fúnebre e funesto que eu já conheci. Limpei as lágrimas de sangue pela milésima e última vez naquela noite, e em seguida deixei o Avô e seus morcegos de almas e asas cortadas, para voltar à Realidade Real *** Realidade Real: Não vi, nem senti o meu rosto molhado de lágrimas, mas os lençóis em minha esteira estavam húmidos. Não tinha nenhuma ferida nem ferimento, mas sentia dores insuportáveis. Era como se os acontecimentos e sentimentos daquela realidade inexistente se transformaram em realidade real. Ou seja, não só nos sonhos, mas em toda a aldeia: o que é, pode não ser. ODEIO OS PESADELOS DA NOSSA ALDEIA. NÃO SÃO COMO QUALQUER UM QUE POSSAS IMAGINAR, SÃO BEM PIORES! 38


Os Contos dos meus Sonhos

A BORBOLETA DA BERTA Aberta a porta da minha casota, a Berta já estava lá fora, sentada à sombra da árvore de embondeiro, onde eu e o Kiame costumamos sentar para conversar, e dar nome às estrelas a noite. Os raios solares do sol, acabado de acordar, iam contra o meu rosto, e eu tive de meter a mão esquerda na horizontal, justo em cima dos olhos, na direcção da testa, para conseguir notar que era a Berta. – Zitúuuuu, vais ao rio? – era a Prima-Fati. – Não, Prima-Fati. Vou só apanhar8 sol. Fechei a porta da casota, e em seguida andei em direcção à Berta, que estava com os braços cruzados apoiados aos joelhos e com o queixo encostado no braço. Me sentei ao lado dela, sem dizer alguma palavra. Todos os nossos amigos estavam a dormir, e a Berta tem sido a última a se juntar às brincadeiras nas manhãs. Mas hoje, ela foi a primeira dos nossos amigos a sair de casa; e pior, o seu semblante não era dos melhores. – Sai daqui. – Me expulsou, com um tom de voz mais alto que o normal, e com uma arrogância que raras vezes a vejo demonstrar. – Você precisa conversar… – Nem sei se afirmei, ou fiz uma pergunta. – Eu preciso que você me deixe em paz seu virosca. – Essa era a pior coisa que eu poderia ouvir. Não a frase em si, mas a palavra “virosca9”. É um facto, mas que eu odeio. Odeio quando as pessoas 8 9

Palavra empregada no sentido de “tomar” – sol. Palavra utlilizada para descrever de forma abusiva pessoas que têm dificuldade visual.

39


Ngola Mufasa

me tratam por este “facto”. Tentei ficar chateado com ela, mas era a Berta; pensei em lhe dar um tapa pela ofensa, mas era a Berta. E a Berta, não era qualquer um: é a menina mais linda da aldeia. Curvei em direcção a minha casa, com os punhos cerrados e as lágrimas jorrando. Espreitei para trás e ela estava na mesma posição de antes. Pensei em ir até a casa do Kiame para desabafar a raiva que eu sentia, mas achei melhor não. Ele devia estar no sétimo sono. Para me acalmar, o primeiro e último lugar que pensei em ir, foi o rio: a agitação do rio (daquele rio), se transformava em tranquilidade. Da aldeia ao rio, não é muito distante, então não demorei muitos momentos caminhando, batendo os pés duramente no chão. Quando cheguei ao rio, ele estava quente, o que era bom, e dei um pino10, sem mesmo antes tirar a minha camisa laranja e um calção desportivo. Quando entrei, me despi de mim mesmo para me vestir de um outro eu; me aprisionei naquela liberdade perpétua, que duraria instantes; abracei a água como nunca antes a senti; emergi, me envolvi, sem medo de ser decepcionado pela seca. E como digo e sentia: eu amava a liberdade, euforia e tranquilidade. O caudal estava baixo, então não tive necessariamente que nadar bastante do fundo à superfície, da superfície ao fundo. Dei um último mergulho e sai das águas. Não o mesmo, mas com um “eu” que só a minha relação com aquelas águas conseguiam gerar.

10

Calão usado no sentido de “mergulhar”– dar um mergulho.

40


Os Contos dos meus Sonhos

Na beira, estava quem eu menos esperava ver naquele momento: a Berta. Resolvi não lhe dirigir palavras, para não ser novamente ofendido. E ela, estranha que era, não parava de rir, enquanto olhava para mim. Eu olhei para ela com os olhos estreitados, como sinal de interrogação. Ela só ria e ria cada vez mais, indicando para o meu corpo. Eu, sinceramente, estava sem entender. Me aproximei dela, com a face mais interrogativa que eu consigo fazer, e ela finalmente me explicou a razão dos seus risos: – Você. Está. Com a roupa. Colada. Ao corpo. – Disse, com as respectivas pausas, para dar lugar às gargalhadas. – Isso é motivo de risos!? – Eu disse, tentando ser duro e tentando não rir também com ela. – Você tem. Um corpo. Mui… to feio – Agora não me contive, e ri também, pelo que ela disse, pela forma como disse, e por ser ela a dizer. Eu simplesmente não lhe entendia. Num momento me ofende com um comentário absurdo, noutro momento ri comigo como se nada tivesse acontecido. “Não consigo mesmo ficar chateado com essa louca”, pensei, encarando a sua beleza à beira do rio. A minha mente estava dividida. Do lado direito eu ouvia: “ Tenta mais, você está conseguindo ficar chateado com ela”; do lado esquerdo eu ouvia: “ Isso é impossível”. A voz do lado esquerdo estava certa, eu não consigo ficar chateada com ela e se eu consigo, só por poucos momentos. Aliás, ela disse nada mais que a verdade, no período da manhã: eu sou mesmo virosca no olho direito e magro, muito magro. – Desculpa pelo que disse… – Introduziu. – Acabei mesmo de te desculpar. – Interrompi a introdução. – Como pedido de desculpas, antes do sol começar a adormecer, vou te levar para um lugar muito bom. 41


Ngola Mufasa

– Que lugar? – Perguntei, todo entusiasmado. – É perto, ou distante da aldeia? – A Berta já me deu as costas sem responder. – É dentro ou fora de Greenland? – Ela continuava a andar sem me responder. Olhei para mim, com a roupa molhada, colada ao corpo, e logo em seguida espremi para correr atrás dela, que estava no caminho para a aldeia. ***

Já na aldeia, passei alguns instantes com o Kiame, a Nzola e o Caneca – cão do Kiame. Felizmente, as meninas tiveram que ir mais cedo para ajudar a preparar a refeição da tarde de suas casas, então eu tive mais alguns instantes de sobra para partilhar com o Kiame o que aconteceu nesta manhã. Nas minhas pausas, enquanto falava, o Caneca ladrava parecendo estar a se comunicar conosco – aquele cão era mesmo intrometido. O sol começou a esquentar, então fomos até a sombra do embondeiro, onde costumamos sentar para conversar e rir. Conversamos, enquanto o Kiame fazia festas, com a sua mão direita, na cabeça do Caneca. Quando chegou a hora de comer, nem foi preciso sermos chamados. Aliás, fomos chamados pelo cheiro do peixe da água doce frito e o cheiro do lombi11 de abóbora – no meu caso –, e rama12 com peixe frito também, no caso do Kiame. Fomos às corridas, cada um para a sua casa, mas o cão ficou ainda fora a vaguear, pois não lhe era permitido comer com os seus donos.

11 12

Verdura típica de alguns povos da Cultura Bantu. Verdura proveniente da batata-doce.

42


Os Contos dos meus Sonhos

Quando entrei na minha casa, sentei logo num kachalo13 pequeno, e a Prima-Fati mandou-me lavar as mãos antes que ela me servisse no habitual prato de alumínio. Durante o almoço, ninguém dizia nada para ninguém, apenas os garfos e pratos de alumínio se comunicavam. O barulho que o Primo-João produzia ao comer com a boca aberta era irritante. Mas nem eu, nem a Prima-Fati podíamos reclamar, senão levávamos alguns pontapés, como aconteceu há alguns Tempos: me lembro muito bem destes Tempos. Eu não podia nem lhe dirigir a palavra e, para além disso, ele já estava com uma cara trombuda14, parecendo estar muito nervoso. Eu só queria terminar de comer, ir para o meu quarto descansar e sair daquela área que me causava tormento. Comi numa pressa de difícil identificação em seguida me levantei para levar o prato na cozinha. – Senta aí. – Disse o Primo-João repentinamente, sem nem olhar para mim ao dizer. – Só vou levar… – Eu já estava a tremer nas mãos. – Eu disse senta aí. Não tive escolha. Aliás, nunca tenho. Me sentei, e fiquei a espera de um deles dizer alguma coisa. Eu ouvia os batimentos do meu coração e os batimentos rápidos causados pelo medo, por causa do silêncio que lá habitava.

13 14

Assento feito de madeira e pele de animal, na Cultura Bantu. Calão, significando assim seriedade ou uma certa má disposição.

43


Ngola Mufasa

O Primo-João terminou de comer, passado muitos momentos sem me dizer alguma coisa, e eu estava lá na mesma posição e ouvindo os batimentos do coração. – Já podes ir. Dei um suspiro discreto e notei que os meus olhos estavam cheios de lágrimas, quando dei uma piscadela longa. Entrei no meu quarto, me deitei na esteira e adormeci. Quando me espantei do sono sem sonho ( durante o dia não se sonha na nossa aldeia em Greenland. Chamamos o sono diurno de sono seco.) pensei logo na Berta. “ Berta, Berta, Berta…”, minha mente pensava vezes sem conta, em pouquíssimos instantes. Felizmente, já tinham se passado os momentos de digestão, então eu poderia sair à vontade. Mas antes, eu tinha que lavar a louça suja. – Zitúuuuu, não sai sem antes lavar a louça – Gritou a Prima-Fati, dizendo justamente o que acabei de pensar. Lavei a louça duma15 rápida, e logo sai para brincar. – Zitúuuuu! – Era a Berta me chamando. Ela estava sentada em baixo do embomdeiro. Corri ao seu encontro, tropecei numa pedra, depois me equilibrei e já estava ao pé dela. – Pronto para conhecer Greenland? – Disse a Berta sorrindo.

15

Contração de: “de uma”.

44


Os Contos dos meus Sonhos

Ela carregava uma pasta bordada, que estava cheia de coisas que eu não sabia o que eram, e nem queria perguntar. Não podia estragar o momento. – Estou. – Sorri. – Vamos, antes mesmo que eu me arrependa. Antes que ela se arrependesse, andei com muita pressa, estando na frente dela, sem nem conhecer o caminho: os caminhos da Berta. O sol ainda estava excitado. Andamos entre os matos da nossa aldeia, e só depois de uma longa distância é que entramos na estrada. A Berta não era de poucas palavras. Mas naquele dia disse quase nada. Eu nem lhe dirigi a palavra, mas depois de percorrermos uma longa distância, achei que eu já podia dizer alguma coisa, porque era já não era possível a Berta mudar de ideia. Andamos por muitos, mas muitos instantes, até chegarmos à uma zona montanhosa de Greenland, onde habitava um silêncio, que algumas vezes era rompido pelas conversas das aves voando. – Vamos subir. – Ordenou a Berta. – Quê? Você tá maluca? – Indaguei assustado, pois eu tinha o corpo cansado, e as minhas chinelas de borracha a se gastarem cada vez mais devido às distâncias percorridas. A Berta não esperou por mim, e antes mesmo que eu a respondesse “sim” ou “não”, ela já estava a subir a montanha, empregando algum esforço.

45


Ngola Mufasa

Eu não tinha escolha, senão a de segui-la, e foi o que fiz. A Berta era uma criança teimosa e persistente, tal como a Nzola. Quando punha algo na cabeça, não parava antes mesmo de concretizar. Eu estava totalmente cansado, só queria chegar ao cume e me sentar para descansar. – Vamos voltar! – Eu disse, já bem rebentado. – Quê? Você tá maluco?! – Aquilo pareceu ser mais uma afirmação, do que pergunta. Cada vez mais ela se distanciava, eu tentava correr para alcançá-la, mas logo abrandava. Finalmente chegamos ao fim da montanha. Aliás, eu cheguei, porque lá já encontrei a Berta sentada numa pedra como se nada tivesse acontecido. – Senta aí. – Ela disse, indicando para um outro sítio onde tinha várias pedras de tamanhos diferentes. Escolhi a maior entre elas, a que não me causaria muita dor nas nádegas, e me sentei, depois de encostar a pedra ao lado da pedra onde sentava a Berta. O sol começou a ameaçar no horizonte, então queria perguntar algo à ela porque comecei a ficar com medo. Mas não queria estragar aquele momento com perguntas. – Toma. – Disse ela, depois de tirar da sua bolsa de renda algumas batatas-doce e ginguba torrada. Era só alegria, até já me esqueci de todo o sofrimento que passei para chegar até aquele local. Comi a batata, sem mais me preocupar com o anoitecer. E, para melhorar o momento, a Berta começou a cantar. Ah… como a sua 46


Os Contos dos meus Sonhos

voz era linda. Os pássaros voando faziam para nós uma espécie de coro. – Não há forma melhor de pedir desculpa. – Eu disse, interrompendo a sua linda voz que cantava. A Berta pôs-se a rir, e eu estava sem perceber a razão das suas gargalhadas. – Oquê? – Perguntei. – Você acha mesmo que eu te trouxe aqui para pedir desculpas? – Ela soltava gargalhas sarcásticas. – Foi você quem disse isso. – Falei me defendendo, mesmo sabendo que eu sou indefeso e vulnerável diante dela. – Ahn… eu estava a brincar. Eu me senti envergonhado e sem jeito. “Mas eu te trouxe para ver isso…”, dizia a Berta apontando com o indicador para um lugar muito distante. Eu me encantei de tal forma, que tive que esfregar os olhos, para tentar ver melhor, pois eu não acreditava no que via. – Na minha primeira vez não acreditei também. – Confessou a Berta sorrindo. O que eu via naquele lugar, era muito diferente do eu que já vi até mesmo em sonhos ou na Realidade Real. É algo que não fui capaz de ver nem mesmo na imaginação. Fiquei olhando para a Berta boquiaberto. Ela estava com um semblante de missão cumprida, por fazer com que meus olhos vissem tamanha beleza. 47


Ngola Mufasa

– Como você descobriu isso? – Zitúu, é uma longa história. – Então resuma Berta. – Orientei. – Eu e a Nzola gostamos muito de cantar diante da natureza… – Disso eu sei. – Então, certo dia estávamos a procurar por um lugar não só perto da natureza, mas também perto do céu azul. Então procuramos por montanhas… – E encontraram esta. – Interrompi. – E encontramos esta, que nos dá a possibilidade de olhar de longe zonas urbanas de Greenland. – Wau…! – Exclamei admirado. Eu nunca, durante os meus Tempos de vida, vi aquilo antes: eram edifícios muito grandes, carros, e uma grande população se movimentando de um ponto para outro. Eu achava que Greenland era só o que eu via nos espaços da nossa aldeia. Afinal de contas, é muito mais do que isso, existe um grande mundo afora. – Toma! – Disse a Berta, me dando mais batata. – Este vai se chamar… – Pensava eu… – O monte das descobertas. – A Berta ria, pois achava graça. – Desculpa por te tratar daquele jeito hoje de manhã. – Se desculpou. – Você disse que não viemos aqui para se desculpar. – Retruquei. – Eu estava a brincar. “Como é que essa menina de cabelo natural e missangas, consegue ser tão… assim, sei lá!?”, pensei. – Agi daquela forma porque não tive uma noite das melhores… – Um sonho dos melhores, queres dizer. – Interrompi. – Uma coisa causa a outra, então são a mesma coisa. – Se defendeu ela. 48


Os Contos dos meus Sonhos

– Não. Não são a mesma coisa. – Respondi. – Mas… Discutimos por mais alguns instantes, até que ela resolveu admitir que estava errada, e continuar: – Eu tive um péssimo sonho, que nem sequer quero lembrar. – Ela disse, com os olhos brilhando por causa das lágrimas que lá estavam. Eu já sabia quais eram as coisas que causam os maus sonhos, então decidi não mais perguntar por detalhes. – Então vim aqui para te pedir perdão pela forma como te tratei nesta manhã, e para me destrair também. Amo este… – Ela pensava no que ia dizer – este monte das descobertas. – Não faz mal. Eu entendo. Também já tive péssimos sonhos. – Me aproximei mais dela. – Tá bem. Obrigada Zitúu, virosca. – Já não ofendi-me mais com esse comentário, porque ela riu enquanto dizia. – Já está a anoitecer, vamos. – As luzes artificiais daquele lugar distante estavam a se acentuar cada vez mais. Eu queria poder ficar para contemplar tamanha beleza, mas não podíamos. Estava a anoitecer cada vez mais. – Você não sabe esperar? – Eu não disse nada, preferi me manter calado. Ficamos alguns instantes lá, sem dizer nada, e depois começamos a descer. Já na terra plana, na medida em que nos movíamos entre as matas e os caminhos com capim cortado, o sol também começava a acabar de se esconder. – Toma. – Esta era provavelmente a terceira vez que ela disse esta palavra só nesta tarde. Me parecia que ela tinha tudo planejado há Tempos. – Tens que pegar assim, e iluminar no caminho onde 49


Ngola Mufasa

passas. – A sério que ela estava a me ensinar como usar uma lanterna!? Aquele lugar estava muito escuro, então as lanternas não se faziam sentir como deviam. Sempre que eu estivesse com medo de alguma coisa no caminho, a Berta me acalmava, e sempre que ela estivesse com medo, eu a consolava: aquele não era o melhor lugar para se passar durante a noite. Andamos mais algumas distâncias, quando, de longe, nós vimos luzes azuis se movendo no ar. As luzes vinham de um desvio antagónico ao que nós seguiríamos mas, por curiosidade, nos aproximamos mais ainda delas: eram borboletas resplandecentes. Aquilo era muito agradável. Eu e a Berta tentamos apanhá-las, para ver de mais perto, mas não conseguimos: quanto mais próximos delas estávamos, mais elas se afastavam. Mas aquela era a nossa alegria: não conseguir apanhar o que não nos pertence. Ficamos a brincar com as borboletas que voavam, sem controlar os instantes. Umas brilhavam mais que as outras, mas elas partilhavam da mesma energia: aquela foi a melhor festa de animais que eu já tinha visto; aquele azul era o mais brilhante que já vira; aqueles momentos foram os melhores da minha vida. Sorríamos, enquanto tentávamos apanhar algumas e… – Apanhei… apanhei… apanhei… – Gritava a Berta, naquela escuridão silenciosa.

50


Os Contos dos meus Sonhos

Ela veio até mim, com a borboleta em suas mãos, que era mais brilhante que vista de lá de cima. As mãos da Berta estavam coladas, mas os dedos estavam entreabertos, e a borboleta estava dentro. Eu nunca vi a Berta tão feliz, durante esses todos Tempos em que nos conhecemos. Ela olhava para a sua borboleta com um sorriso no rosto; e eu, não mais olhava para a linda borboleta, e comecei a olhar para a beleza da Berta que estava possuída por um sorriso distraído porém belo, contaminado pelas luzes das borboletas: ela sim era a verdadeira borboleta. “ Você é a verdadeira borboleta”, pensei, quando olhava para ela sorrindo feito louca. Largamos a borboleta, e deixamos elas aos cuidados da natureza. Nos metemos no nosso caminho para a aldeia. Quando chegamos, parecia que só os nossos amigos – incluindo o Jojó – notaram a nossa ausência por longos momentos. Mas antes disso, o Caneca – cão do Kiame –, nos viu de longe e começou a ladrar muito alto. Eu tive que correr ao seu encontro para lhe tapar na boca, e assim não chamar a atenção de todos. Quando chegamos mais perto da aldeia, apenas os nossos amigos estavam fora das casotas, a brincar. O Jojó ameaçou contar aos nossos Primos, caso a Berta não lhe desse batata-doce. A Berta, com o medo que tinha, lhe deu toda a batata que estava em sua bolsa de renda. Depois de alguns palavreados, eu e a Berta nos juntamos às brincadeiras. Quando chegou o momento de dormir, cada um foi para a sua casota. Eu e a Berta fomos em nossas casas com o medo saltitando em nossos peitos. 51


Ngola Mufasa

Antes de abrir a porta, apanhei no chão um palito de vassoura pequeno, e envolvi entre os cabelos da cabeça para não ser batido: é uma técnica que nunca falha. – Zitúu. – Disse a Prima-Fati com muito calma. – Como foi a vossa brincadeira? Neste momento, passaram milhares de informações e pensamentos em minha mente. – Deves estar cansado e com fome. Janta e depois vai dormir. – Ela disse. Aquele foi o melhor sentimento de alívio que já senti. Comi o funje16 e o peixe, depois fui para a minha esteira me deitar. “ Esse foi o melhor dia que eu já tive”, pensei enquanto olhava para o teto e cruzava os pés. Aquele foi realmente o melhor dia da minha vida. Nunca subi uma montanha tão alta, e nunca vi uma cidade tão linda, mesmo que de longe. Nunca vi borboletas tão lindas e reluzentes. Nunca vi também a Berta tão feliz com a “sua” borboleta. Mas, para mim, a Berta era a verdadeira borboleta… Aquilo foi para mim um sonho real.

16

Alimento feito de farinha de milho ou mandioca.

52


Os Contos dos meus Sonhos

A FÚRIA DO PRIMO-JOÃO Na nossa aldeia, em Greenland, é permitido e quase admissível acordar tudo, menos a fúria do teu Primo. Eu cometi este erro, e como consequência fiquei sem o meu olho direito, me tornei virosca. Vou vos dizer como isso aconteceu, desde o princípio. – Ajudar os nossos irmãos sempre que podemos, é uma das melhores qualidades que vocês, desde criança, têm que cultivar, enquanto estão no período de formação da vossa personalidade… – Dizia o Filho-Tito no Onjango. Era numa noite totalmente acesa, e naquela sessão o Filho-Tito nos ensinava sobre a filantropia e altruísmo. – Hoko17! – Reivindicou o Jojó. – Nem todos os homens merecem a nossa ajuda. Aquilo não era engraçado, mas todos no Onjango riram. Menos o Filho-Tito, o Kiame e eu. – Jojó, é importante ajudar todas as pessoas que precisam. Não só as pessoas, mas também a natureza, os animais, enfim… tudo a nossa volta. – Explicou o Filho-Tito. – Como podemos ajudar a natureza e os animais Filho-Tito? – Perguntou a Nzola, esfregando as mãos nos seus joelhos com calma. – Ahn… boa pergunta menina Nzola. Alguém consegue responder? – Filho-Tito, eu acho que devemos ajudar os animais alimentandoos. – Foi o Kiame a dizer.

17

Palavra usada no sentido exclamativo, na língua Umbundu.

53


Ngola Mufasa

– Matar para comer, também é ajudar. – Disse o Jojó aos risos. E todos os outros meninos riram-se também. – Tens razão Kiame. – O Filho-Tito, ignorou os comentários do Jojó. – Devemos alimentar e cuidar. – E a natureza? – Indagou a Daniela. – Como podemos ajudar ela? – Cantando para ela. – Respondeu a Berta, e a Nzola concordou dizendo “ yah”. Aquilo não parecia ser uma piada, mas algumas meninas riram-se. Talvez pelo entusiasmo e rapidez da Berta, quando disse. – Sim. – Disse o Filho-Tito. – Cantar encanta a natureza, mas isso não basta… – Podemos também plantar ávores. – Completei. – Também podemos fazer isso meus amiguinhos. – Falou o FilhoTito. – Que tal plantar árvores? – Sugeriu a Nzola. – Boa ideia. – Gritou a Berta. – Podemos começar amanhã? – Eu Tenho plena certeza de que a Berta se dirigia ao Filho-Tito, mas ela olhava para mim e a Nzola enquanto dizia. Então eu nem tinha como responder à pergunta que tinha certeza que não era para mim, ou… – Tá bem. Eu vou organizar algumas plantas da estufa, e amanhã começaremos. – Concordou o Filho-Tito. – Boa. – Gritaram a Berta e a Nzola em simultâneo. Continuamos no Onjango por mais alguns instantes, e quando terminou, sai de lá com uma lição que cantava em meus ouvidos: devemos ajudar os animais e a natureza. *** Na noite de ontem, depois do Onjango, eu fui até a minha casota, para comer e dormir. Conversei com o Primo-João sobre as lavras, 54


Os Contos dos meus Sonhos

algo que não acontece sempre, e depois fui à minha cama para dormir. No meu sonho, eu estive no lugar onde costumava estar, em maior parte dos sonhos em que o meu Avô aparece: um lugar cheio de árvores e animais. O Avô me ensinou sobre a importância de cuidar dos animais e da natureza. Foi uma lição muito relacionada com a que tivemos durante a noite no Onjango, quando falamos sobre a filantropia e o altruísmo. Existe uma explicação para essa semelhança entre o sonho e a Realidade Real: As nossas reuniões com o Filho-Tito têm sido ao lado da árvore de embondeiro, onde eu e o Kiame costumamos nos sentar. Segundo o Filho-Tito, os espíritos dos ancestrais da nossa aldeia ficam lá durante o dia, espalhados nos troncos, nos ramos e nas flores, a observar tudo o que se passa na aldeia. Sendo assim, enquanto nos reunimos no Onjango, eles ouvem as nossas conversações. “Talvez seja por isso que o meu Avô deu-me um sonho relacionado à realidade da conversa no Onjango”, pensei. *** Na manhã seguinte, acordei com o barulho da porta de madeira, que foi causado pela agressividade com que o Primo-João fechou ao sair. Me levantei, meti o meu calção preto para sair e ver o que se pasava. Encontrei a Prima-Fati sentada em um kachalo, na nossa pequena sala. Ela estava calma, porém lacrimejava. Mas quando me viu, limpou e disfarçou. 55


Ngola Mufasa

– O que foi? – Perguntei, me encostando na porta. Segurei com a mão esquerda a cortina do meu quarto. – Você só vai entender isso quando fores adulto. – Disse a PrimaFati, que estava sentada e encostada na parede de adobe. Resolvi não perguntar mais nada, pois a Prima-Fati não gosta quando alguém a complica. – Prima-Fati, hoje vamos plantar árvores com o Filho-Tito. – Afirmei, mas ao mesmo momento estava a pedir para sair. – Senta ainda aqui. – Disse a Prima-Fati, puxando um outro kachalo ao lado de si. Me aproximei, e sem dizer alguma coisa me sentei. – O que eu vou dizer não é para a tua idade, então deves esquecer depois de ouvires. – Disse ela. “Eu sinceramente não sei qual é a minha idade, então não sei se vou mesmo esquecer. E, para além disso, esse todo suspense da Prima-Fati está a me deixar ainda mais pensativo e curioso”, pensei. – Como você sabe, os adultos não sonham. – Eu olhava para os olhos dela. – Mas existe uma excepção para esta afirmação. – Estreitei os olhos – o Primo-João, teu pai – para mim era muito desconfortável ouvir a palavra “pai”, se não for usada por e simplesmente para o Pai-Mingo. Aliás, eu desconhecia, se fosse para ser usada no sentido de progenitor. – Com a idade que ele tem, ele tinha que ter um “sonho especial”. – Eu sinceramente não percebia nada de idade, ainda mais de “sonho especial”. – Sonho especial? – Admirei. – Sim. Um sonho que nem eu conheço. – Só acontece com os homens? – Não Zitúu. As mulheres também têm os seus, mas é bem diferente do sonho dos homens. Na verdade, cada um tem o seu, que é diferente de qualquer outro. – Como você sabe Prima-Fati? – Quando tu tiveres mais Tempo de vida, vais aprender no Onjango como isso funciona. – E tu já tiveste o teu? – Perguntei. 56


Os Contos dos meus Sonhos

– Eu já tive. Este é o problema. – Problema? – Eu estava totalmente confuso. – Sim. As mulheres não podem ter este sonho antes dos homens, quando os dois são casados. E eu tive antes do teu pai. Na verdade, ele nem teve ainda. – É por isso que ele está furioso? – Sim. Por isso mesmo. Mas já foi conversar com o Pai-Mingo, e tudo vai ficar bem. – O Pai-Mingo vai lhe ajudar? – Questionei preocupado. – Não. Se ele não tiver o sonho o quanto antes, pode ser sancionado. – E o que vamos fazer? – O que vamos fazer não. O que ele vai fazer… – O que ele vai fazer? – Perguntei cabisbaixo. – Neste momento ele foi à um rio para banhar, e o rio vai lhe deixar mais calmo. – Só isso? – Também achei que estava a perguntar demais. – Não Zitúu. Levou um ramo de embondeiro, para suplicar aos ancestrais que lhe deiam o “sonho especial”. E vai demorar para chegar, pode só vir amanhã ou na próxima semana, independentemente de quantas pessoas estiverem no rio. – Está bem. – Tá. Agora vai ajudar os outros a plantar. – Disse a Prima-Fati me dando um beijo na testa. Abri a porta, senti a radiação solar contra os meus olhos. Entrei novamente em casa, fui até a cozinha para pegar na caneca com água, e usei a água para lavar a cara. Depois de lavar a cara, em frente da porta da nossa casa, fui ao encontro dos outros do meu Tempo e do Filho-Tito no Onjango. Plantamos árvores em várias áreas da nossa aldeia, até bem perto do momento do almoço. Cada um tinha que plantar pelo menos duas árvores, e em seguida prometer cuidar delas. 57


Ngola Mufasa

Depois de plantar, antes mesmo de ir almoçar, eu e o Kiame e mais outros meninos fomos ao rio para banhar. O sol estava suculento, então a água estava ainda mais agradável. *** Quando cheguei à casa, depois do rio, encontrei o almoço já feito. A minha comida estava servida num prato de plástico que estava sobre a mesa da cozinha. A Prima-Fati não estava em casa, mas deixou comida para mim e para o Primo-João, para a eventualidade de ele voltar no mesmo dia. Eu soube, de longe, distinguir qual dos pratos era o que tinha a minha comida, pela quantidade diferenciada de comida nos dois pratos: um tinha mais, e outro menos funge. Comi a minha comida, mas pela pouca quantidade, eu não estava satisfeito. Olhei para o prato do Primo-João e, por conta disso, a minha mente só produzia as palavras da Prima-Fati: “ pode só vir amanhã, ou na próxima semana”. Essa frase se reproduzia como um eco. Com um grande esforço, ignorei tais vozes. Fui até ao meu quarto para a digestão, conforme ditam as ordens da Prima-Fati. Infelizmente, a minha barriga não parava de me dizer que estava com fome. “ Trabalhei muito hoje no processo de plantação. Então mereço comer bem não só em qualidade, mas também em quantidade”, dizia a minha barriga. Consegui controlar o zumbido na minha barriga e os meus pensamentos golosos. Mas, felizmente, não consegui controlar os pés. Quando dei por mim, eu já estava sentado no kachalo a comer a comida do Primo-João. 58


Os Contos dos meus Sonhos

Voltei ao meu quarto e finalmente consegui descansar em paz. *** Já era momento do sol descansar, e passei todo o dia a torcer para que o Primo-João não chegasse: e assim aconteceu. A Prima-Fati nem me ralhou por ter comido a comida do Primo-João. “ Fizeste bem, senão as formigas brincariam na comida”, disse ela. Caso o Primo-João chegasse, obviamente ficaria furioso por não encontrar alguma coisa para comer e se assim fosse, eu ficaria muito triste e com medo, pois a última coisa que eu queria naquele momento era levantar a fúria do Primo-João. *** Não são muitas as vezes em que o Primo-João dorme fora de casa, com excepção das vezes em que saem para caçar, e ficam na mata durante um longo período. Na noite de ontem para hoje, dormi de forma muito tranquila e, felizmente, eu tive um bom sonho, onde aprendi sobre a importância das cores. No meu sonho, o Avô me ensinou que se não houvesse cor, o mundo não seria agradável, e nós estaríamos numa existência sem sentido. No meu sonho, eu e o Avô nos sentamos em um arco-íris gigante, e ele ensinou-me a amar todas as cores que lá se hospedavam, do geito que cada uma é. *** 59


Ngola Mufasa

Quando acordei, fui até a casa do Kiame para lhe chamar, e juntos fomos ao rio com baldes para pegar água e regar as nossas plantas. O rio em que nós fomos, não é o mesmo onde o Primo-João estava. Segundo a Prima-Fati, o rio onde o Primo-João estava era muito distante da aldeia. Era um pouco no além de Greenland. Regamos as nossas árvores, e com um sentimento de que estávamos a ajudar a natureza, voltamos ao rio. Mas desta vez foi para banhar, e não para pegar água. O Caneca, como sempre, nos seguia. Em momentos ele estava em frente, e noutros momentos atrás. E, o que ele nunca se esquecia de fazer, era mijar e se rebolar no capim. Enquanto banhávamos, o Caneca não parava de beber água do rio, como sempre faz. Para ele, era como se aquela água não saciasse simplesmente a sua sede, mas lhe domava de uma sensação incrível. Sensação esta, que lhe dava uma sede inesgotável. Ah… como eu gosto daquele cão. É do Kiame, mas eu cuido dele como se fosse meu. *** Quando chegamos na aldeia, o Kiame foi para a sua casa, e eu para a minha. Lavei a louça, e esperei a Prima-Fati terminar de fazer o almoço, pois eu estava muito faminto. Enquanto eu esperava, pensava na esperança de um dia ser adulto e poder ter o “sonho especial”. Mais tarde, comecei a pensar nas lições que tivemos no Onjango. E fiquei muito feliz por estar a praticar o que aprendi: cuidar da natureza. Só me faltava uma oportunidade para cuidar também dos animais e assim que aparecesse eu não existiria. 60


Os Contos dos meus Sonhos

– Zitúu, já podes comer. Vou só ao rio para banhar. – Me avisou a Prima-Fati, antes de fechar a porta principal da nossa casota. Me levantei, calcei as chinelas de borracha, e em seguida fui até a cozinha. Como no dia anterior, os pratos estavam no mesmo sítio e da mesma forma. A forma como eles estavam alinhados não os diferenciava, apenas a quantidade. Como eu não estava com muita fome, nem estava muito cansado, a minha comida foi suficiente para que eu ficasse satisfeito. Voltei para o meu quarto, me deitei na esteira para descansar, e descansei. Descansei, não por muitos momentos nem o suficiente, porque o Caneca estava a ladrar sem parar na porta da minha casa, e isso me estava e incomodar bastante. Levantei para ver o que se passava. A Prima-Fati ainda não estava em casa, o que era estranho, para quem só foi banhar. Abri a porta, o sol estava calmo e o ambiente da aldeia silencioso. Porém, tendencioso. O Caneca não parava de ladrar, mesmo depois de me ter visto. Pelo contrário, aumentou ainda mais, e da sua boca escorriam babas. Me parecia estar faminto e com muita sede. Entrei, fui à cozinha, e voltei de lá com água numa tigelinha de alumínio, e lhe dei para beber. Mas mesmo assim, ele não parava de ladrar, pois o Caneca só ficava saciado quando bebia a água do rio, e no rio. Senti pelo cão. “ Não há nada que eu possa fazer. Não, há…”, pensei, com o indicador encostado no queixo. Fui até a cozinha, 61


Ngola Mufasa

peguei no prato de comida que lá estava, levei até fora, e dei a comida ao Caneca. Ele comeu e lambeu. Os seus choros se transformaram em alegria: ele estava muito feliz por ter comido, e até baixou a sua cabeça, para que eu lhe fizesse festinhas na cabeça. O cão foi, todo feliz da vida para o seu caminho. Fiquei feliz por ter ajudado o cão, mas pensei: “ eu não devia ter tirado a comida do Primo-João”, mas esta linha de pensamento foi imediatamente corrompida por outra, que se baseou nas palavras da Prima-Fati: “ ele só vem amanhã, ou na próxima semana”. Até aí estava tudo bem, até eu ter o maldito pensamento de que o “amanhã” a que a Prima-Fati se referia, era “hoje”. Agora, fiquei mesmo preocupado. – Zitúu, vamos brincar. – Me chamou o Kiame, pois eu ainda estava na porta da minha casa. Não há nada melhor que uma boa brincadeira, em momentos de aflição. *** A brincadeira estava tão boa, até eu sentir a batida carregada de raiva de um ferro no meu ombro. Quando virei, para ver o que era, levei uma chapada bem esquentada do Primo-João. Ao lado dele, estava a Prima-Fati chorando e implorando para que ele não me batesse mais. Levei uma dura porrada: das piores que já levei. Fiquei com feridas em todo corpo, e fiquei também com o olho direito furado: só quando o meu olho furou, foi quando o Primo-João parou de me bater, e eu apaguei. *** 62


Os Contos dos meus Sonhos

Quando acordei, não acordei em minha casa, em minha cama. Eu estava na casa da Tia-Xica, onde se costuma tratar os doentes da aldeia. Olhei a volta do lugar, obviamente apenas com o olho esquerdo, e vi a Prima-Fati ao lado da cama onde eu estava deitado, derramando lágrimas. – Porquê que o Primo-João me bateu? – Foi a primeira coisa que eu disse ao acordar, depois de alguns dias. – Lembras quando eu te disse que ele iria ficar no rio durante um Tempo que nem eu sabia? – Fiz que sim com a cabeça. – Lá onde eles ficam, eles não podem comer. – Apertei os meus olhos para espremer as lágrimas, mas só senti em minha face as lágrimas do olho esquerdo, porque o meu olho direito (que já não existia) estava tapado com um pano, que estrategicamente passou pela cabeça. – Então, quando ele chegou estava com muita fome. E o facto de não encontrar comida, o deixou furioso. – Estranho… – Eu disse, com um semblante melancólico. – Sim filho. Eu cheguei na aldeia no mesmo momento em que ele chegou. – Demoraste muito para chegar. – Não sei se afirmei, ou perguntei. – Sim. Kilaro18. Aproveitei passar na lavra para tirar comida para o jantar. – Está bem. – Quando eu cheguei, ele me perguntou onde estava a sua comida e eu disse que estava na cozinha. – Eu… – Interrompi choramingando. – Depois de eu ter lhe dito, fui ao quarto para mudar de roupa, e pegar algumas coisas.

18

Neologismo. Assim escrito em vez de “claro”.

63


Ngola Mufasa

Eu queria que a Prima-Fati parasse de contar, pois não suportava ouvir a história que me deixou cego, mas eu achava também que não podia ser injusto comigo mesmo, e tinha que saber. – Depois de ele ter ido à cozinha, me encontrou no quarto e disse que na cozinha não tinha comida nenhuma. – E foi assim que ele foi a minha procura? – Não. Eu lhe disse para ver bem, pois só estavas tu em casa. E foi assim que… – Chega. Pode parar Prima-Fati. – Eu disse, entrelaçando seus dedos aos meus. – E foi assim que aconteceu o que aconteceu. – Ela completou, com uma face de tristeza. *** Depois de algumas semanas terminei o tratamento, e sai da casa da Tia-Xica. Voltei para casa mas não, obviamente, como eu estava da última vez que lá estava. Jurei para mim mesmo nunca mais provocar a ira do Primo-João, mesmo que fosse para salvar uma vida. Pelo que aconteceu, não culpo o Caneca, nem a lição que eu aprendi naquele Onjango. Culpo, por e simplesmente, a fúria do Primo-João.

64


Os Contos dos meus Sonhos

AS DOUTRINAS DA NOSSA ALDEIA – Coisa outra qualquer não e, Avô chamar-te que tenho é quê por, Avô? O Avô sorriu suavemente, devido àquela pergunta. O seu sorriso era agradável, ao ouvir aquela pergunta. Aquele sonho que ele me dera não era como os outros – na verdade nenhum é como um outro – era mais real – para ser sincero cada sonho é real do seu jeito –, mais descontraído e confortável. Quando eu me desliguei da Realidade Real e reapareci no Além da Inexistência, vi tudo de forma tão colorida, húmida e reluzente. O aroma surgia da fusão entre as diferentes rosas lá existentes. As folhas das árvores moviam-se, obedecendo à cada batida das gotículas da chuva que vinha de céu nenhum, e no mesmo momento o sol queimava estas gotículas. Antes de encontrar o Avô, procurei-o entre as matas e os caminhos abertos do Além e, finalmente, depois de percorrer longas distâncias, encontrei-o sentado à beira-mar – aquele mar era sem fim –, sentado num banco feito de madeira. A madeira provinha de uma árvore que só existe na Inexistência. Me sentei bem ao lado do Avô, em seguida encostei a minha cabeça no seu ombro suave e transparente, e juntos contemplamos o dançar das águas do mar. O Avô estava lá, pronto para me ensinar mais alguma coisa sem, as vezes, ter esta intenção. – Pergunta desta espera a estava eu que teus sonhos muitos há – Disse o Avô, respondendo à minha pergunta inicial. Enquanto dizia, ele sorria. Mas não era um sorriso qualquer, era um sorriso 65


Ngola Mufasa

que não se consegue ver, nem explicar. Com actos inexplicáveis, eu acompanhava as ondas sonoras do seu sorriso que se perdiam no ar sem ar. – Tudo explico te eu que aqui senta. – Disse o Avô, batendo com a palma da mão em seu colo. Me sentei no seu colo leve e transparente, e ao som da silenciosa natureza, começou a me ensinar sobre a questão dos nomes e as formas de tratamento das nossas doutrinas. – Aldeia nossa da além, bandas outras muitas existem, Greenland em. – O Avô acariciava o meu cabelo, enquanto explicava. – Avô, montanha uma de partir a bandas dessas uma vi eu, Tempo muito há. – Interrompi. – Conhecer vais provavelmente adulto fores quando. Kilaro – Completou o Avô. – Avô, conhecer porquê posso não agora? – Cultura nossa a amar a aprender de precisas primeiro porque. – Avô bem está. – Eu disse. E a conversa fluía na maior normalidade. Uma normalidade que era anormal ver na Realidade Real. Como nunca antes, o Avô contavame também sobre a sua vida enquanto vivia. – Importantes tão assim são não nomes dos significados os, aldeia nossa da distantes, bandas aquelas para. – Falava o Avô, ainda sobre as outras bandas de Greenland. – São nós para e? – Indaguei. – Não também. – Respondeu o Avô. – Avô porquê? – Importantes mais o são tratamento de formas as nós para. – Disse Avô. – Ahn… – admirei. 66


Os Contos dos meus Sonhos

Mais tarde o Avô explicou-me que devo lhe chamar de Avô porque ele é o pai e progenitor da minha descendência. O Filho-Tito, tem que ser chamado de Filho porque milhões de pensamentos nascem em sua mente cada vez que lhe fazemos uma pergunta no Onjango. – Prima-Fati porquê e? – Questionei. – Neto meu, isso explicar simples é. – Dizia o Avô, sempre com o seu sorriso inesgotável, de morango. Mas não qualquer morango, um morango que só existe na Inexistência, então é quase impossível descrever. Com as suas palavras a soprarem aquele vento, que estava contaminado com a respiração do mar, o Avô disse-me que a Prima-Fati é minha Prima e não mãe, por enquanto, porque eu não pertenço à ela. E sim à aldeia, e ao mundo. O Avô me disse que quando eu souber a minha idade e outros segredos sobre mim que a Prima-Fati esconde, poderei lhe chamar de “mãe”. É uma palavra muito pesada, que só deve usar quem for digno. “A dignidade surge com o cumprimento da submissão ao longo dos Tempos”, explicou o Avô. – Nome outro um de vez em Prima de chamar lhe devo porquê e? – Indaguei. Quanto à esta questão, o Avô me respondeu o seguinte: “ tu tens que lhe chamar ‘Prima’, porque é através dela que tu existes. Ou seja, ela é a Matéria-Prima da tua existência”. A partir deste dia, comecei a perceber muitos aspectos culturais da nossa aldeia que me esqueço aqui de dizer. 67


Ngola Mufasa

Quanto aos Primos, também aprendi que eu nunca poderei chamar o Primo-João de pai: “ele é eternamente meu Primo. Ao contrário da Prima-Fati, que pela sua grandeza e importância, seria chamada de mãe. Pai, dizia o Avô, devemos apenas chamar ao soba da aldeia, porque ele é o pai, protector e cuidador de todos nós. Mas, disse mais o Avô, quando faltava muito pouco para eu acordar, existe uma banda em Greenland chamada Shakespeare, que tem a seguinte doutrina: uma flor não muda de aroma, só porque mudou de nome.

68


Os Contos dos meus Sonhos

OS JOGOS DO JOJÓ Na beira, inteira estava a Berta com o coração aberto e o estômago fechado. O rio era para nós um parque de diversão. O rio era o nosso melhor amigo, melhor amigo do mundo. Foi naquele rio, onde os ancestrais deixaram a sua marca, encontraram uma capa, e lavaram parte das suas almas. Eu, o Kiame e o Jojó éramos os únicos rapazes naquele meio. O restante eram meninas: a Berta e a Nzola faziam parte delas. Elas, as meninas, como quase sempre, não quiseram entrar na água para banhar. Elas se limitavam em ficar na beira, molhando os braços, e banhando as pernas. – Meninas. Olhem… – Gritou o Kiame, antes de dar um pulo a partir de uma superfície elevada. Depois de ele pular, as meninas riram bastante, pela forma como o Kiame caiu. Aquilo foi realmente engraçado, e depois de constatar eu também ri. Se não fosse na água, o Kiame estaria bem alejado. No momento em que o Kiame gritara para pular, eu e o Jojó estávamos do outro lado da beira do rio. Mas interrompemos o nosso desejo de pular, pela vontade de ver o Kiame a cair na água. Segundos depois, ele saiu da água com os braços levantados e os punhos apertados, como sinal de vitória. E, como sempre, ele não deixou de lado os seus gritos atrapalhados que nos divertiam: éramos felizes e não sabí… aliás, não sabíamos bem. – Kiame, como você teve tanta coragem de pular de lá para o rio? – Perguntei, oferecendo um sorriso que só as crianças sabem dar. – É símples. Vá e pula. – Me respondeu, munido do seu sarcasmo. 69


Ngola Mufasa

Olhei para o Jojó, e lhe disse com os olhares: “ vamos?”, e fomos. Fomos para o outro lado do rio, pisando em rochas grandes que se estendiam contra as leves correntes, até chegarmos à zona elevada, onde o Kiame estivera outrora para pular. Subimos até ao pico daquela superfície elevada. O Kiame estava com as outras menimas do outro lado do rio, batendo palmas e dando para o Nada gritos bem altos. Não sei se as suas palmas tinham intenções individuais, ou colectivas. Ou seja, não sei se estavam todos a apoiar aos dois, ou uns a mim, e outros ( ou “outras”, porque o Kiame obviamente me apoiaria) ao Jojó. – Vamos ver quem vai ter o melhor salto, e posteriormente nadar até ao outro lado do rio – Está bem. Como quiseres. – Respondi com um sorriso confiante. – Mas espera. – Me pegou no braço. – Se eu ganhar… ou melhor, quando eu ganhar, vou comer o teu almoço. – Disse o Jojó, com o seu sorriso malicioso. – E se eu sei ganhar vou comer o teu. – Completei. O Jojó era maior, e mais habilidoso que eu. Ele parecia ser mais forte, e talvez era. Mas quando se fala de rio, eu sou um perito: passei mais momentos naquele rio com o Kiame e o Caneca, do que em qualquer um outro lugar: eu nadava feito peixe, porque o rio era também a minha casa. – Esquece essa ideia. – Disse o Jojó, irónico. – Eu sou o rei dos jogos de competição. – Eu me ri dele. O Jojó poderia estar certo, mas eu tinha que ter confiança, ou pelo menos fazer parecer que tinha.

70


Os Contos dos meus Sonhos

“ Vou começar a contagem…”, gritou o Kiame do outro lado com o seu braço direito levantado: “ um, dois e… três”, antes mesmo do Kiame dizer “ três”, contando também com os dedos, o Jojó já havia pulado na água. Mas eu era magro, e como pesava pouco: poderia lhe encontrar e passar em poucos momentos. Não perdi mais instantes, pulei no momento oportuno. Pulei, virando o meu corpo no ar, o que me deu mais alguns pontos (pontos imaginários), e em seguida comecei a nadar, batendo a água com muita força. Entrei para mais fundo da água e me encolhia, depois me esticava. Fiz este movimento umas tantas vezes, que quando levei a minha cabeça até a superfície, notei que eu estava na beira do rio, e o Jojó estava muito, muito distante de mim. Ele nadava de forma tão lenta que nos dava bastante graça Fiquei na margem, levantado a olhar para o Jojó enquanto (ainda) tentava vencer o jogo. Instantes depois, ele também chega até a margem. Ele era mais forte e com a voz mais grossa que as nossas, mas naquele momento, eu e os outros não nos importamos com a sua fisiologia, porque só estávamos interessado em lhe abusar por perder o seu próprio jogo. Até o Caneca lhe abusava, com o seu ladrar. – Vamos. Vamos já. – A Berta falou. – Está quase a chegar a hora de almoçar. – Ela olhava para o Jojó enquanto dizia, de forma irónica. Os olhares da Berta dirigidos ao Jojó, diziam: “ Está na hora do nosso almoço, e não do teu.” Nos metemos a andar no meio daquele matagal, e durante todo o trajecto, o Jojó só pensava no facto de que não teria almoço, por se achar superior que todos em tudo. 71


Ngola Mufasa

No Caminho, a caminho da aldeia , paramos para “ roubar” manga verde (lá tinha muitas mangas verdes) numa árvore onde eu e o Kiame quase sempre costumamos tirar. Não sabíamos de quem era, mas como estava a deriva, era de todo mundo. O Kiame, usufruindo das suas habilidades, foi o primeiro a trepar na árvore. O Jojó foi o segundo: não por que era habilidoso ou coisa alguma, mas porque tinha que garantir um almoço; aquele seria o seu almoço. Depois de observar as zonas da árvore em que tinha manga, eu também subi, mas com bastante cautela. Eu e o Kiame tiramos duas para cada um de nós, e mais duas mangas para cada menina, porque elas não subiram na árvore. Já o Jojó, tirou o máximo possível de mangas que pude, enchendo todos os possíveis compartimentos do seu corpo. Nós assistíamos à maneira como ele procurava por bolsos no seu corpo, o que nos fez rir dele ainda mais. Nós, eu o Kiame e as meninas, comemos todas as nossas mangas durante a caminhada. O Jojó comeu algumas, mas as outras guardou para comer mais tarde. Chegamos à aldeia, e tudo estava calmo por lá, como sempre. Antes mesmo de ir até a minha casa, fui até a casa do Jojó para pegar a minha comida. Comida dele que ganhei, na verdade. O Kiame decidiu me acompanhar. Cheguei lá, com o Kiame, e o Jojó trouxe o prato de comida, acompanhado pelo seu olhar fervoroso, e um semblante completo de raiva.

72


Os Contos dos meus Sonhos

– Quando acabares de comer, mete ali o prato. – Ordenou, indicando para a bacia laranja que estava em frente da sua casa. Os seus olhos continuavam a brilhar de lágrimas. O Jojó gostava muito de funge com peixe grelhado e lombi, e nos dar o seu prato de comida, era para ele uma tortura. Eu e o Kiame não nos importamos com mais nada, nem com facto de ter que comer com as mãos, e começamos a devorar. Depois de comer, o Kiame rotou e disse: – Estou repleto. – Com um sorriso malicioso. – Eu também. Mas ainda vou comer mais na minha casa. – Falei mais alto que o normal, apenas para o Jojó ouvir e sentir. – Kilaro. Eu também. – Falou o Kiame, ainda mais alto que eu. Deixamos o prato na bacia laranja que lá estava, mas antes demos o lixo que restou da comida ao Caneca. O cão gostava muito de picos de peixe. Em minha casa comi, lavei a louça e dormi: não era um sono como o sono dos sonhos. Este é mais superficial e seco. Na verdade, nem é dormir., é apenas descansar. Quando me espantei do sono, já estava a escurecer, então decidi não sair mais e fiquei a conversar com a Prima-Fati que aproveitou aquele momento para contar-me mais, uma vez, sobre o seu período de infância e juventude. Contou sobre factos que aconteceram quando tinha mais ou menos os meus Tempos de vida. E ela, triste da vida dela, como sempre fica quando conta estas histórias, terminou com a frase: “ Se eu soubesse, mas nunca se sabe…” Longos momentos depois, quando chegou o verdadeiro momento de dormir, dormi: desta vez não para descansar, mas para sonhar. Vocês não têm noção do quão bom são os sonhos bons da nossa 73


Ngola Mufasa

aldeia. Eles dizem o que nenhuma palavra sabe dizer, e as vezes prefiro não acordar mais. O Conto do meu sonho: Aquele sonho era tão sonhado, quanto realizado. Ou seja, aquele era real. Era até mais real que a Realidade Real. Me encontrei ao lado de uma árvore colorida, mas sem cor e com dor, dor de alegria, me sentei encostado ao tronco daquela linda árvore. As sombras que se movimentavam no chão, levaram os meus olhos a observar o que estava em cima. Nos ramos da árvore habitavam flores e planta de toda espécie, e nelas pousavam toda espécie de animal voador. Aqueles animais viviam numa paz sem igual, pelo menos foi o que constatei. Mas, na Inexistência, o que é, pode não ser. Mas eu tenho quase uma plena certeza de que aquilo foi. Foi real. Eles viviam numa paz sem igual. Me levantei, e com os olhos fixos a tamanha beleza, contemplei. Aquela árvore era diferente de todas. Tinha todas as cores, no mesmo momento em que tinha nenhuma. Na medida em que eu tocava nas folhas, elas ficavam ainda mais coloridas. Mais coloridas que o arco-íris. Aquilo era tão… wau! Estiquei os meus braços na horizontal, e algumas borboletas vieram nele pousar. As borboletas moviam as suas asas sem parar. “ As asas são o sentido da vida das borboletas”, dizia o Avô em um dos meus sonhos, “ sem elas, elas não podem voar. E não poder voar, é para as borboletas estar morta.” Disse mais o Avô: “Você é como uma borboleta. Não permita que cortem as tuas asas.”

74


Os Contos dos meus Sonhos

Girei em volta da árvore, com a minha mão direita se arrastando no tronco. O sol penetrando a árvore, contribuía para a formação daquela combinação perfeita. Não ouvi, nem vi o Avô a se aproximar, mas repentinamente, senti ele a aparecer. Apareceu como tudo, no meio daquele Nada, e me encontrou a contemplar a árvore colorida. – Animais dos vida da árvore a é esta. – Informou o Avô, também contemplando a árvore, sem olho nenhum. Quando fiquei a saber do que o Avô disse, fiquei ainda mais feliz e entusiasmado. – Algo mostrar-te vou, vamos, – Me chamou. Deixei a árvore, e com os meus dedos entrelaçados aos dos Avô, lhe segui para não sei aonde. Eu depositava toda a minha confiança em si. Andamos por momentos, até chegar a um lugar muito diferente do lugar onde estávamos. Era estranho o lugar, mas eu não estava amedrontado, porque aquele não era um lugar lúgubre e sangrento, muito menos colorido e esbelto: parecia ser o meio. Era o meio dos sonhos. O intermediário entre os dois, ou talvez mais lugares ( lúgubre e esbelto). – Aí entra. – Ordenou o Avô. – Bem está. – Aceitei. O Avô queria que eu entrasse em um buraco negro que se movia no ar todo. Antes de entrar, eu observei para ver se veria outra coisa no buraco em forma de disco, para além do preto carregado. Mas como foi o Avô quem ordenara, não neguei e entrei. Quando dei por mim, eu já não estava na Inexistência, e sim na Realidade Real. Só que aquela Realidade era um sonho também. 75


Ngola Mufasa

Não parecia ser um sonho, pois eu me encontrei na aldeia, e nunca antes os meus sonhos aconteceram dentro da aldeia. Tudo era real, mas não me conformei, pois aquilo ainda parecia ser um sonho. – Zitúu, vamos ao rio. – Me convidou o Kiame, pois o sol fervia. – Também quero ir. – Gritaram a Berta e a Nzola em simultâneo, depois de ouvirem o Kiame a me convidar. – Também quero ir. – Não sei se pediu ou afirmou o Jojó, mas nem eu, nem o Kiame, podia aceitar ou negar, porque o Jojó iria mesmo assim. Já no rio, o Kiame correu até um pequeno monte de areia, que estava do outro lado do rio, e a partir dele saltava para o rio. Eu e o Jojó só estávamos mesmo a nadar. As meninas limitaram-se em ficar na beira molhando os pés e lavando os braços. A Nzola e a Berta não eram as únicas meninas que lá estavam, porque a Daniela e mais outras meninas também foram. Os pulos do Kiame pareciam divertidos. Então o Jojó convidou-me também para pularmos a partir daquela superfície elevada. Fomos até a margem onde as meninas estavam, e em seguida fomos a correr para a ponte de pedras grandes que se estendiam contra as leves correntes do rio. Com muito cuidado, passamos para o outro lado, onde o Kiame estava. – Vamos pular. – Eu disse entusiasmado e com o sangue a ferver, depois de chegarmos no monte. – Não. Espera. – Disse o Jojó, ao me travar pegando em meus braços. – Tive uma ideia melhor. – Qual? – Perguntei perplexo. – Vamos competir. O que primeiro chegar lá na margem ganha. – E qual será o prémio do vencedor? – Perguntei. – Quem perder levará o outro nas costas até a aldeia. 76


Os Contos dos meus Sonhos

– Não. Esse não. – Neguei porque eu sabia que seria o maior dos castigos para mim carregar o Jojó, caso eu perdesse, o que era o mais provável: ele era do meu Tempo, mas um pouco mais forte que eu. – Tá bem. Tive outra ideia. – Diz… – Quem perder, entregará o seu almoço para o vencedor. – Essa proposta era mais leve, pois eu teria outra alternativa caso perdesse: comer muita manga das árvores que estão no caminho da aldeia. – Está bem. – Concordei. Eu estava muito confiante. Mesmo que o Jojó era mais forte que eu fisicamente, eu tinha que mostrar para todo mundo que era capaz de vencer, então não podia ficar tímido. “Vou começar a contagem”, gritou o Kiame, levantando o seu braço direito, e fazendo gestos com os dedos. “Um, dois e…”, antes mesmo que o Kiame dissesse “três”, eu já pulei na água, mas o Jojó ainda não havia pulado. Eu, na água, batia a água com muita força e rapidez, mas não valeu para nada, porque o Jojó era – desde sempre, em tudo – mais rápido do que eu. Ele me passou com uma habilidade de natação excepcional. Fiquei bastante cansado, e ainda só estava no meio do rio, e comecei a naufragar. Batia os braços com muita força, para chegar à superfície, mas eu não conseguia. Afundava e afundava cada vez mais. O rio estava prestes a me matar: aquele rio era meu amigo, mas os amigos também nos decepcionam, e as vezes da pior forma que os inimigos. Vi o meu último suspiro a ser soprado pelo vento das correntes. E daí, eu vi o começo do meu fim. O fim dos Tempos da minha vida… 77


Ngola Mufasa

Momentos depois: Momentos depois me espantei do… sono, ou sei lá o quê, e estava a tossir pela água que estava dentro de mim. Olhei a volta, e todos estavam me rodeando. Eu estava deitado na margem do rio. – O que aconteceu? – Perguntei, com os olhos semiabertos. – Você estava a se afogar. E o Jojó entrou na água para te salvar. – Disse a Nzola. – Não é porque eu gosto de ti, mas porque nós todos seríamos sancionados se morresses aqui. – Esclareceu o Jojó. Momentos depois me lembrei que eu e o Jojó fizemos uma competição, e fruto disso ele comeria a minha… – O facto de estares quase a morrer, não quer dizer que não vou comer a tua comida do almoço. – Esclareceu novamente. Eu nem ousei em dizer alguma, pois ele tinha toda a razão. – Vamos. Já é quase a hora do almoço. – Disse a Berta. Me levantei, e nos metemos a caminhar. Durante a caminhada, eu olhava para as matas a procura de árvores de manga para garantir o meu “almoço”. Ainda no caminho, durante toda a caminhada, falei quase nada, pois eu estava com vergonha, mas todos olhavam para mim, tentando sempre disfarçar. Avistei uma árvore de manga. O jojó, como não parava de olhar para mim, somente para abusar, achou estranha a minha fixação para um além não muito distante, e começou a seguir a direcção dos meus olhos, até ver também o que eu estava a ver. Todas as árvores que eu via no caminho, só tinham folhas e o tronco. Ou seja, estavam totalmente vazias. Algumas ainda tinham manga, mas verdes. Deixa-me dar-te um conselho muito simples, 78


Os Contos dos meus Sonhos

caso tu queiras viver na nossa aldeia em Greenland: nunca. Eu disse NUNCA, coma manga verde. Para o teu próprio bem. Mas aquela árvore que avistei tinha uma manga amarela, que parecia estar pronta. Eu vi primeiro, então seria minha, segundo as nossas regras de amizades escritas nas estrelas e nas nuvens. Mas o Jojó, rebelde que era, correu para lá primeiro. Ele mandava lixar todas as nossas regras. Depositei em mim uma certa esperança e confiança, e tentei correr para chegar primeiro na árvore. Mas desta vez, ela foi a primeira a morrer. Na Inexistência não se morre, mas a minha esperança não resistiu. O Jojó, para me irritar ainda mais, pegou o meu “almoço”, e veio a comer com a boca aberta na minha direcção. Para me humilhar mais do que já estava, ratou um pedaço grande da manga bem na minha frente, e ofereceu-me. Com aquele acto do Jojó, algumas meninas riram-se de mim. O seu semblante sarcástico que usara para agir, também contribuiu para que elas achassem a cena mais engraçada ainda. Mas os meus amigos não disseram e nem fizeram nada. Eu apenas ignorei, e me meti a andar. Só de pensar que comeram o meu “almoço”, e depois comeriam o meu almoço, eu comecei a chorar de forma disfarçada e discreta. Era muita dor para um goloso19 como eu. Sentia ainda mais dor por quase ter me afogado, e quase morrer no rio.

19

Calão, siginificando “pessoa que come excessivamente”.

79


Ngola Mufasa

O Jojó era mesmo mais forte do que eu, em todos os sentidos e eu tinha que aprender a admitir esta realidade, por mais dura de aceitar que fosse. Mas o que mais me custava admitir é o facto de que na Realidade Inexistente eu venci e comi o almoço do Jojó com o Kiame, e na Realidade Realidade Real o Jojó venceu e comeu os meus almoços. Não sei, sinceramente, qual dos factos foi real. Não consigo sentir, nem explicar qual deles foi o sonho. Mas o que mais me dói é o facto de ter perdido, em qualquer uma das realidades, o jogo do Jojó.

80


Os Contos dos meus Sonhos

O CANECA EM PLENA SECA Os olhos do Caneca brilhavam e estavam acesos. Não porque era noite… aliás, em nossa aldeia os cães não conseguem ver no período nocturno. A noite os cães são guiados pelos seus instintos. Durante a noite, eles fazem tudo que fazem no período diurno, porém, não observam com os olhos do corpo, e sim com os olhos da alma. Naquela tarde seca de sol radiante, eu e o Kiame resolvemos ir visitar o rio, com o objectivo de ver o nosso eterno amigo rio, que há semanas estava incompleto e vazio. O rio estava completo de secura e tristeza, por não ver a sua água a circular. Era tempo de muita seca, jamais vista na nossa aldeia. O Caneca, como sempre, nos seguia onde quer que fôssemos, correndo hora atrás, hora em frente. Os seus olhos brilhavam bastante. Quanto a isso, o Filho-Tito dizia: “é a sua natureza. Sempre que estão doentes, eles ficam com os olhos a brilhar.” Eu sentia muito pelo Caneca, inclusive mais que o próprio Kiame, dono dele; o Caneca era mais meu do que dele. As babas da boca do Caneca estavam a ser absorvidas pelo vento. Chegamos ao rio, e estava como há duas semanas: seco. Os espaços que eram completados pelas águas, estavam munidos de areia. Eu vi o Caneca cabisbaixo, quando ele viu que o nosso amigo rio continuava desmaiado, ou talvez morto. Para acalmar o Caneca, lhe fiz umas festinhas na cabeça, mas não surtiu nenhum efeito positivo. Sendo assim, ele começou a chorar, e os olhos brilhavam ainda mais. 81


Ngola Mufasa

– Vamos… – Disse o Kiame, com os olhos completos de lágrimas. Eu me virei, fiz mais algumas festinhas na cabeça do Caneca, e me pus a andar também. Na verdade – toda a verdade – a seca era só para os animais. Ou seja, nós, as pessoas, bebíamos águas de raízes, e nós tínhamos ela em abundância. “Os animais não podem beber essa água das raízes, senão terão maus sonhos. Pior que os vossos pesadelos”, diz o Filho-Tito, sempre que nós vamos ao seu encontro para lamentar a (quase) morte do Caneca. Me lembro muito bem dos momentos em que nós íamos ao rio, todas as manhãs, para nos purificar e enquanto emergíamos nas profundas águas, o Caneca ficava perto do rio a beber a água sem parar. E quando se cansava, ele ia até aos capins perto para mijar, e neles se rebolar. Repetia a mesma coisa, até o momento de voltar para casa. Chegamos à aldeia, chorando os três, lágrimas secas. Mas, em momentos, o Caneca gritava gritos calados. O mais curioso – que nem é mais, na verdade, é que na aldeia tudo estava como antes. Nada mudou, tirando a aflição que os animais passavam. – Kiame, Kiame, – nos chamava a Nzola gritando, mesmo sem nós termos chegado (bem) à aldeia –, vem, vem! Eu e o Kiame ficamos espantados com aquele entusiasmo da Nzola, porque ela sabia que nós não estávamos bem, devido o estado do nosso… aliás, do cão do Kiame. A Nzola chegou bem perto de nós, em seguida pegou no braço do Kiame e lhe puxava. Eu, sem saber como reagir, fiquei apenas parado onde estava. 82


Os Contos dos meus Sonhos

– Zitúu, tás parado porquê? Vamos. – Eu sinceramente estava a espera que a Nzola dissesse isto. Peguei no Caneca, e juntos começamos a andar, atrás do Kiame e da Nzola. O Kiame que, também, nem sabia para onde iria, apenas obedeceu. – Vamos pessoal, andem rápido. – A Nzola falava sorrindo. E cada vez mais nos apressava. Eu, sinceramente, comecei a achar que ela estava louca, pelos actos dela, alguns indescritíveis. Andamos por mais alguns momentos, até chegarmos a um lugar onde só tinha árvores. Eram inúmeras árvores, que por serem muitas estavam apertadas. Tivemos que “cortar caminho”, até chegarmos ao “centro” daquele matagal, conforme informou a Nzola. – Nzola. – O Kiame parou repentinamente. – Estamos a fazer o quê aqui? – Perguntou pasmado. O Caneca, estava com os olhos a brilharem cada vez mais – isso significava que ele estava prestes a morrer. “É hoje que ele vai morrer”, pensei, já lacrimejando. Como no lugar onde a Nzola nos levou é um pouco distante da aldeia, no meio do caminho eu tomei o Caneca e os carreguei nos meus braços. – É aqui. – Disse a Nzola suspirando um sorriso, com as mãos na cintura. – É aqui o quê? – Perguntou o Kiame já irritado. 83


Ngola Mufasa

– Espera. Depois vais me agradecer. – Disse a Nzola carregada de um dos seus melhores sorrisos: o sarcástico. Aquele lugar não me era familiar. Eu pensava conhecer todas as bandas da nossa aldeia e que o monte das descobertas que há muito conheci com a Berta era o último a ser conhecido por mim. Mas não, eu estava totalmente enganado: existiam outros milhares de lugares por serem descobertos em Greenland. Mas aquele lugar, obviamente, segundo pensei, não tinha nenhuma semelhança com os outros “milhares”. Aquele era autêntico, genuíno e com uma natureza paradoxal. Vou aqui, da melhor maneira possível, tentar descrever o lugar: Existiam muitas árvores próximas umas das outras, e outras coladas. Algumas com folhas coloridas. As mesmas árvores se moviam, com movimentos semi-coordenados. Os galhos caiam no chão a cada instante, enquanto as folhas dançavam. O barulho produzido pelas árvores, soavam como música:

O mais estranho, curioso e belo, é que estas árvores rodeavam uma única árvore. Era um círculo muito bem organizado, muito melhor do que os círculos que temos feito no Onjango. No centro do 84


Os Contos dos meus Sonhos

círculo, tinha um embondeiro de folhas e tronco seco. Ela, infelizmente, não era colorida como as outras:

– Nzola como você descobriu este lugar? – Perguntei admirado, depois de observar o lugar durante momentos. Por uns momentos, me esqueci de pensar no facto de o Caneca estar a morrer. – Faça esta pergunta à Berta. – Instantes antes da Nola terminar a frase, a Berta apareceu, saindo de trás do embondeiro, deixando todos espantados. “Todos”, na verdade não, pois a Nzola já devia saber que a Berta estava lá. É Bem provável que elas foram para lá juntas. – Sejam bem-vindos! – Disse a Berta, acompanhada de uma ironia visível, e uma enxada onde apoiava o braço. – Trouxeste enxada aqui para quê? – Perguntou o Kiame com uma face confusa. – Para dar de beber ao Caneca, antes que a morte o mate. – Mais uma vez a Berta vinha com a sua ironia. – Como vamos fazer isso? – Tal como o Kiame, eu também estava confuso sobre alguma coisa. – Calma. Já vão perceber. Me sigam. – Ordenou a Berta.

85


Ngola Mufasa

Eu, o Caneca, a Nzola e o Kiame fomos até ao outro lado da árvore onde a Berta estava. Do outro lado, a Berta cavou um buraco no chão, não muito profundo. Eu já admirava a Berta pelo que ela era e fazia, aquele acto só aumentou ainda mais a minha admiração. – Aqui só vejo árvores, e um buraco. Como vamos dar de beber ao Caneca? – Eu continuava sem entender alguma coisa, porém estava cada vez mais preocupado com a sede do Caneca. – Nzola explica para este chato. – A Berta parecia mesmo estar cada vez mais chateada com as minhas perguntas. – Então, eu perguntei ao Filho-Tito… – Dizia a Nzola. Eu não duvidava, pois ela era a que mais perguntava coisas ao Filho-Tito. – Sobre onde ficam os nossos ancestrais no período em que não passam para distribuir sonhos, ou seja, durante o dia, – isso até eu sei, então não era novidade para mim – e ele me disse que ficam no embondeiro. Só que ele nunca nos disse que nós também podemos encontra-lhes, nos momentos em que não dormimos, do mesmo jeito que eles fazem quando dormimos. – Essa era a novidade para mim. Mas a pergunta era: “como? Como podemos fazer isto? – Vocês os dois devem estar a se perguntar “como?” – Esse “vocês os dois” usado pela Nzola, me deu a entender que a Berta também já sabia disso tudo. Parecia, também, que a Nzola estava a ler os meus pensamentos. – Então, há duas semanas que eu e a Berta encontramos este lugar. – Vocês andam muito. – Disse o Kiame. Ele não me parecia estar a brincar, mas nós não conseguimos controlar as gargalhas. – E então… – Continuou a Nzola, depois de controlar as gargalhadas. – Todos do Onjango achavam que eles ficam apenas no embondeiro da aldeia. – Eu não. Sempre fui esperto. – O Kiame parecia mesmo não estar sério com aquela situação. – Kiame! – Exclamou a Berta, tentando lhe ralhar, mas nem ela se conteve com as “piadas” do Kiame, e caiu novamente nas gargalhadas. 86


Os Contos dos meus Sonhos

– Nós descobrimos que as árvores têm vida, porém essa vida não é delas. Lhes é emprestada pelos ancestrais. Eis a razão de, durante a noite, as árvores respirarem com muita brutalidade: para adqurirem o máximo possível de oxigénio, por ausência de vida. – “ Ahn…!” Eu e o Kiame admiramos. – Por isso dizem que não devemos dormir próximo de árvores e plantas. – Disse a Berta, terminando o pensamento da Nzola. – Outro facto curioso, que o Filho-Tito me ensinou, é que apenas os que têm o nosso Tempo de vida é que têm os seus ancestrais escondidos em embondeiros… – Apenas os meninos com os nossos Tempos sonham. – Disse eu completando, ou talvez discordando com a Nzola. – Vocês não acham que estamos a falar muito, e os olhos do Caneca estão cada vez mais brilhantes? – Disse o Kiame. Desta vez, sem sarcasmo nem intenção humorística. – Ele tem razão Nzola. – Concordou a Berta. – Yah. Mas só mais uma coisa: esta árvore de embondeiro está no centro destas árvores, porque é o centro dos nossos ancestrais. Aquela lá da aldeia é uma espécie de… sei lá, talvez um quarto. – A Nzola só podia estar mesmo maluca. Mas não duvidei, pois ela pode ter aprendido isto em um dos seus sonhos, tal como eu já aprendi muita coisa nos sonhos, que não têm sentido na Realidade Real. – E o que temos que fazer? – Questionei, pois ainda estávamos no meio daquele Nada. – Não estamos no meio do Nada. – Disse a Nzola, se movendo de um lado para outro. Ela parecia estar mesmo a ler os meus pensamentos. Como é que ela sabia que eu achava aquilo um Nada? – Temos que entrar na árvore. – O quê? Nzola você está mesmo louca. – Afirmou o Kiame, algo que eu já queria fazer há muitos momentos. – Temos que fazer isso para salvar o Caneca.

87


Ngola Mufasa

– E como tens certeza de que… seja lá onde tu queres ir tem água? – Perguntou o Kiame. A Berta continuava sem dizer nada, apoiada ao cabo da enxada. – Porque no Além da Inexistência tudo tem. – Afirmou a Nzola. – Como, também, nada tem. – Afirmou também o Kiame, um pouco pessimista. – Kiame deixa de ser pessimista. Nós só queremos ajudar. – Finalmente a Berta disse alguma coisa, depois de só estar a observar a discussão. – Está bem, como quiserem. Mas como podemos ter a certeza de que iremos todos para o mesmo sonho? – E o pior, como podemos ter a certeza de que o Caneca vai também para os nossos sonhos, de nós humanos? – Completei. – Tentando… – Respondeu a Nzola. – Está bem. E como vamos tentar? – Perguntou o Kiame. – Entrando… – A Nzola já estava a ficar irritada. – E como vamos en…? – Kiame cala ainda a tua boca, por favor. – Ordenou a Berta. Só faltava o Kiame perguntar: “como vou calar?”. Mas foi a Nzola a dizer alguma coisa: – Então, continuando… – Também já estávamos a ficar cansados com as explicações da Nzola. – Eu e a Berta tentamos muitas maneiras de entrar, e não deram certo. – Isso explica o facto de eu ver alguns buracos, uns mais grandes que os outros, no embondeiro. – Até nós encontrarmos esta última alternativa. – E qual é a alternativa? – Kiame novamente. – Já vou explicar. Mas primeiro tens que calar a boca. Houve um silêncio por momentos, que foi completado com a troca de olhares. – Berta é a tua vez de explicar, por favor. – A Nzola cansou de vez. – Na verdade, “eu” achei esta alternativa. E o que temos que fazer é entrar neste buraco. 88


Os Contos dos meus Sonhos

– Berta, isso não é muito fundo? – Perguntei. Mas não pensando muito em mim, pois eu era um pouco alto. Estava a pensar no Kiame e na Nzola. – Por isso mesmo é que temos que entrar. – O lado irónico da Berta voltou a acordar. – Zitúu, tu serás o primeiro a entrar. – Eu não fiquei conformado com esta ideia, então olhei para a Berta com uma face meio trancada, e as sobrancelhas levantadas. Ela me ofereceu a mesma face. Então vi que não tinha outra escolha, se não ser o primeiro a entrar. Saltei para dentro do buraco. – Como te sentes? – Perguntou a Berta, olhando para mim de cima. – Não me sinto. Nada sinto, simplesmente. – Respondi sorrindo. – Wau… – Admirou a Berta, sorrindo também. Em seguida pulou também a Berta no buraco. Depois a Nzola, e em seguida o Kiame. Peguei no Caneca e pus-lhe dentro do buraco também. Não sentir nada, era a melhor sensação para se sentir. Dentro daquele buraco, era como se estivéssemos imortalizados, e vivificados com a vida que só nos sonhos encontramos. – Wau… – Admirou também a Nzola, já estando dentro do buraco. – E agora? O que temos que fazer? – Perguntou o Kiame, já confiante do que estávamos a fazer. – Precisamos cavar na direcção da árvore um outro buraco, e encontrar uma porta qualquer, que nos possiblite a entrada na árvore. – Falou a Berta. Estiquei os meus braços para pegar a enxada, que ainda estava fora do buraco. – Afastem. – Ordenei. E, sem mais perder instantes, comecei a cavar. 89


Ngola Mufasa

Cavei por muitos momentos, até chegar a uma zona em que parei, porque achei melhor cavar com as mãos. Convidei os outros a me ajudarem a cavar com as mãos e, escavando mais cavando, sempre na direcção do embondeiro, chegamos até uma tampa de metal muito pesada e condensada. – Temos que remover esta tampa. – Eu disse, depois de ter dado um suspiro, e limpar o calor em minha testa com o dedo indicador. – Vou mesmo precisar de beber água. – Brinquei. – Vamos. – Disse o Kiame todo ofegante. Pegamos os quatro na ponta da tampa, e sem medo nenhum começamos a remover. “ Um, dois e…”, contava a Berta, “três”, terminamos todos. Depois de puxarmos a tampa, não vimos nada excepcional. Só tinha uma entrada, e uma segunda porta de madeira com a maçaneta enferrujada, que estava dentro do segundo buraco. – Eu pensava que as árvores tinham raízes. – Espantou a Nzola ao ver aquilo. – Elas têm raízes, é a vida. – Disse eu. – E os nossos ancestrais são as vidas das árvores. – Completou o Kiame, como se tivesse descoberto algo muito importante. – Eu vou entrar. – Falei, já entrando. Meti primeiro os pés dentro do buraco. Quando pisei aquele chão, ouvi um barulho estranho, causado pelos meus pés. Era como se eu tivesse a pisar em águas profundas. Mas aquela era água seca. A água, que eu não via mas sentia, subiu lentamente até tapar a minha cabeça, e comecei a me afogar por completo. A Berta e a 90


Os Contos dos meus Sonhos

Nzola também entraram no buraco do buraco. O Kiame meteu o Caneca dentro, e depois entrou também. Cada um, entre nós, ficava afogado no seu momento, até estarmos completamente possuídos pela água que lá estava. Água que nem víamos, só sentíamos. E, com muito prazer, ela nos afogava. Desde aquele momento deixamos de respirar com o corpo, e começamos a respirar com a alma. Nossos corpos morreram afogados, mas as almas estavam mais vivificadas ainda: é necessário que morramos, para podermos ter realmente a vida. Aquela água (eu não sei se devo continuar a chamar de água, ou uma outra coisa. Mas enfim…) nos punha a flutuar naquele lugar. E quando demos conta, estávamos no ar a flutuar, mas os nossos corpos afundavam cada vez mais. Aquela sala (sala, ou sei lá o quê…), tinha dois corredores. Um para a direita, e outro para a esquerda. Tivemos, os quatro, uma luta de gestos, bolhas e movimentos, para se escolher o caminho a seguir. Até, finalmente, decidirmos ir pela direita: era esta a sugestão da Berta. Era incrível, não podíamos falar, para não engolir água, mas conseguíamos respirar. Meti o Caneca em minhas costas, e começamos a nadar. Tudo porque decidimos não abrir a porta que nós vimos primeiro, aquela que estava logo na direcção do buraco, e optamos por escolher um dos corredores. No final do corredor, tinha uma porta de madeira, como a primeira que vimos; aquela porta estava também com a maçaneta enferrujada. 91


Ngola Mufasa

Estando naquele lugar, nós sentíamos uma sensação jamais sentida nem na Realidade Real, nem na Inexistência: sendo assim, não queríamos estragar o momento abrindo portas erradas. Mas para nada vale a vida, se não tentarmos viver. E viver é estar disposto a arriscar. Me revesti de coragem, peguei na maçaneta e abri. E… wau… estávamos no Além da Inexistência, sem nem sequuer ter deitado e dormido para sonhar. Aquilo foi totalmente fora do comum. Respiramos profundamente, e já não estávamos a flutuar, nem a sufocar. Já nos encontrávamos no Além da Inexistência. Aquela porta nos levou até este lugar. Ou talvez todas fariam a mesma coisa, mas não importava mais isso naqueles instantes. – Rio um por procurar vamos. – Disse a Berta, atenta à alma do Caneca. – Vamos. – Concordou o Kiame. A sensação que o Além transmitia, era a melhor que qualquer humano poderia sentir. Foi um erro ter comparado a sensação do lugar em que estávamos antes com a do Além, do Além era bem melhor. É que as vezes, eu me esqueço dos feelings produzidos pelo meu sonho, e por isso comparo com outras coisas. – Mostramos vos nós, precisam não. – Para a nossa surpresa, o Avô do Kiame apareceu do Nada. Ficamos espantados, nos mesmos momentos assustados. – Vamos nós. – Disse o meu Avô, depois de aparecer também. Os Avôs da Berta e da Nzola apareceram poucos momentos depois também. Ficamos felizes por não estarmos só no Além: aquele lugar era um eterno mistério. 92


Os Contos dos meus Sonhos

Segundinhos depois o Avô do Caneca apareceu também. Eles abraçaram-se logo a se ver; nunca vi o Caneca tão feliz daquele jeito. Beijaram-se, e rebolaram também naquela relva mansa do Além. Afinal, eles estavam a matar as saudades de duas semanas. “Nestes dias de tristeza profunda, os animais não conseguem dormir direito para sonhar. E, para além disso, os Avôs dos animais ficam escondidos no rio, e o rio desapareceu”, disse o Filho-Tito num desses dias de seca. Enquanto conversávamos com os nossos Avôs, o Caneca e o seu ladravam: “ aquela era a conversa deles”, disse certo dia o FilhoTido. Quando chegamos ao rio, o Avô do Caneca lhe disse para beber até se fartar, porque o rio lhes pertencia. E o Caneca, com o seu antigo hábito, enchia-se da água do rio até não poder mais beber. Infelizmente, não podíamos ficar por mais instantes, porque cada um voltaria para o seu Avô a noite. – Voltar podemos não e, morremos nós mas! – O Kiame não estava mesmo disposto a voltar à Realidade Real. – Adormeceram só, morreram não vocês. – Explicou o meu Avô. Por mais que não quiséssemos, nós tínhamos que voltar. Ainda nos faltavam muitos Tempos de vida para habitar naquele lugar. Feliz, e estranhamente, a porta que usamos para entrar no Além, lá já não mais estava: desapareceu. Wau… eu adoro a forma como as coisas são no Além, na mesma medida em que NUNCA são. Os nossos Avôs não pareciam espantados com tal situação. Pelo contrário, trocavam olhares, como uma forma de linguagem que 93


Ngola Mufasa

apenas eles entendiam e, ao mesmo momento, puseram as suas mãos em nossa cabeças. Daí, não consigo narrar o que aconteceu, apenas me lembro de ter pego o meu corpo e voltar à Realidade Real. Lá, naquele ambiente de muitas árvores em volta de uma, estávamos nós novamente. – Wau… como é bom estar aqui novamente! – Exclamei, com um tom muito baixo, mas o Kiame me ouviu e começou a sorrir. Sinceramente, eu não consigo dizer qual dos lugares era melhor. Na verdade, todos eram melhores do seu jeito, desde que tu saibas te envolver na realidade de cada um, na mesma medida de todos. Tivemos que tapar o buraco para que ninguém mais conhecesse a nossa porta secreta para entrar no Além. – Vou contar ao Filho-Tito o que aconteceu aqui. – Disse a Nzola batendo palmas sem, na minha opinião, ter motivos. – Não. Isso vai ficar entre nós. – Repreendeu a Berta à Nzola. E lá andávamos nós, de volta à aldeia, felizes pela aventura que tivemos; e mais feliz ainda, por ter feito algo para encher o Caneca de água em plena seca.

94


Os Contos dos meus Sonhos

O KIAME ENTRE AS TREVAS Estávamos nós, eu e o Kiame, no período nocturno, ao relento, a observar as estrelas, e os outros astros do céu. Jogamos muita conversa fora, até chegarmos ao assunto da nossa conduta durante o dia – como fazemos quase sempre. – Eu tive um dia fixe. Mas tive muita preguiça. – Confessei. – Eu, infelizmente – dizia o Kiame, com lágrimas assente nos olhos –, fui desobediente aos meus Primos, e terei maus sonhos. Não pude fazer nada, se não desejar-lhe uma má sorte: devemos desejar má sorte às pessoas quando temos a certeza de que eles terão maus sonhos. Me levantei do chão onde estávamos sentados, sacudi a parte traseira do meu calção, e quando eu dei o segundo passo em direcção à minha casa, o Kiame me pediu para ficar, dizendo: – Fica só mais alguns instantes, por favor. Não quero ir em casa e dormir. – Me pediu o Kiame, soluçando com as lágrimas escorrendo. Naquela dia, nós não estaríamos no Onjango com o Filho-Tito, então resolvi ficar com o Kiame por mais alguns instantes. Eu também, sinceramente, não queria ir para casa naquele momento. Fiquei conversando com ele, para lhe acalmar, até a Prima-Fati me chamar para ir à casa. Cheguei em casa, e fiz tudo pensando no Kiame – inclusive comer. Então, eu tive que me deitar e dormir, para sonhar, e no Kiame deixar de pensar. 95


Ngola Mufasa

No dia seguinte, acordei com um bom ânimo, devido o sonho que tive na noite anterior, que foi dos melhores. Logo depois de acordar, reflecti por alguns momentos sobre a lição do sonho que tive até a Prima-Fati me chamar para ir à lavra. Me levantei bem rápido, escovei os dentes e nos metemos os três – com o Primo- João – a caminho da lavra. Lá, na lavra, eu tive uma boa prestação, pela boa disposição que o sonho anterior me proporcionara. Passamos lá todo o dia. E quando estávamos já pestes a voltar em casa, escolhemos tomates para ofertar aos vizinhos e ao Pai-Mingo. Posto lá, fizemos as distribuições dos tomates, e depois fomos para a nossa casa. Como ainda não era tarde, eu poderia sair para me encontrar com o Kiame. – Zitúu… – Falando em Kiame, era ele a me chamar. – Já vou. Calma. – Gritei de dentro de casa. Sorte minha é que o Primo-João não estava em casa porque foi ao rio banhar, e a PrimaFati era um pouco tolerante algumas vezes. Me aprontei e sai. O Kiame não estava com aquele humor de sempre, então precisava mesmo de mim para conversar. Mas a boa notícia, é que ele também foi à lavra com os seus Primos, e trouxe muita cana. Ah, como eu gosto de cana. – Vamos naquela árvore, preciso te contar alguma coisa. – Disse ele, segurando a cana a partir da mbolua20. O Kiame não indicou nenhuma árvore quando disse “naquela”, mas eu já sabia qual era a árvore a que ele se referia. 20

Palavra usada para descrever a parte superior e menos pronta da cana, isto na lingua Umbundu.

96


Os Contos dos meus Sonhos

Para tentar lhe animar segurei-lhe no seu ombro, sorri para ele, e tomei de si o pau de cana. Nos metemos a andar. O estranho – muito estranho – é que o Caneca não estava a nos seguir. Demos mais alguns passos, e vi o Caneca a brincar no capim com a cadela dos Primos da Daniela: ele estava nem um pouco interessado em nós naquele momento. Andamos por não longos instantes, até chegarmos à árvore onde costumamos subir para conversar quando não nos encontramos em baixo do embondeiro. O Kiame subiu primeiro na árvore. Depois de ele se posicionar bem na árvore, dei-lhe a cana. Depois subi também. Procurei por troncos fixos, para me sentar também, e o único confiável era onde o Kiame já estava sentado, então me sentei ao seu lado. Aquele tronco era o mais resistente da árvore, só que estava muito distante do chão, e uma queda a partir de lá poderia ser fatal. Parti a cana ao meio com o joelho, e começamos a conversar, enquanto mastigávamos a saborosa e doce cana. – Eu estive entre as trevas. – Falou o Kiame, mudando de assunto e semblante. – Como foi? – Indaguei, comovido com a dor que ele transmitia em suas palavras. – Espera, já te vou dizer… O Kiame entre as trevas: Nós havíamos nos separado ontem a noite, quando a tua Prima veio te chamar. Quando foste, eu fiquei em baixo do embondeiro por mais alguns instantes. 97


Ngola Mufasa

Quando eu já estava a ficar cansado de ficar fora, e estava a ficar cada vez mais tarde, eu fui para a minha casa dormir. Eu não queria dormir, mas isso era impossível e inevitável. Sendo assim, não tendo uma outra escolha, fechei os olhos para a Realidade Real, e abri os olhos para a Realidade Inexistente. Foi horrível o que vi logo de primeira, muito horrível. O meu Avô lá estava também, mas ele não podia fazer nada para me livrar – aliás foi ele quem me deu este sonho – porque eu tinha que pagar pela minha desobediência. Eu não estava a acreditar no que estava a ver, e sentir. Mas aquilo era real. Por causa da minha descrença, eu esfregava sempre os olhos para ter uma visão mais lúcida. Só que, cada vez que eu esfregava, eu via uma realidade diferente da anterior. Porém mais lúgubre e fedorenta. De tanto esfregar os olhos, cheguei à uma realidade onde tinha homens e mulheres sem roupa, mas com os corpos banhados de sangue. De tanto corpo que lá tinha – uns mortos, e outros na fronteira –, uns estavam em cima de outros. E todos, absolutamente todos Zitúu, estavam com uma deficiência. Uns lhes faltava cabeça, outros braços e outros estavam com as barrigas vazias – parecia que todos os órgãos foram comidos. O meu Avô lá estava, apenas a observar a minha angústia. O seu rosto era de tristeza, mas no âmago transbordava de alegria. Eu estava lá, observando os corpos a serem jogados uns em cima dos outros. Ouvia também gritos de pessoas que pareciam estar a ser torturadas.

98


Os Contos dos meus Sonhos

Eu via também sombras de pessoas que estavam acorrentadas, mas se moviam sem dizer nada. Todo animal perigoso lá também habitava. Fui observando, até que dois homens muito grandes, um com duas cabeças, e outro com dois narizes gigantes e cortados ao meio, vinham na minha direcção. Me encolhi, com medo de que eles estivessem a vir (propriamente) na minha direcção e, para o verdadeiro início do meu sofrimento, eles estavam mesmo a vir na minha direcção. Eles ficaram parados a me observar até que o homem com duas cabeças pegou-me nos braços, e o homem com dois narizes levantou as minhas pernas, e cortou todos os dedos do meu pé direito. O homem de dois narizes, parecia ter visto nos meus dedos a melhor comida de sempre, pela maneira como ele olhava nos meus pés em suas mãos, e pelo sorriso ruidoso que apresentava. Ele cheirou os dedos de uma forma muito profunda, e em seguida comeu-os. Não bastava o homem de dois narizes comer os meus dedos. Ele tirou numa faca, ainda mais afiada que a que usou para cortar os meus dedos, da sua cintura e com ela cortou o meu nariz. Depois de cheirar o nariz, comeu-o. Eu queria poder gritar e chorar, mas não conseguia. Apenas conseguia sentir prazer: prazer em sentir aquela dor, na medida em que ela me consumia. Para eles Zitúu, eu era mesmo uma comida. O homem de duas cabeças, sem querer perder a oportunidade, soltou os meus braços, e pôs-me no chão junto à uma parede de enxofre. Pegou, também, uma faca da sua cintura e começou a cortar a minha cabeça, a partir do centro. 99


Ngola Mufasa

Depois de ele abrir um buraco grande, meteu a sua mão dentro da minha cabeça, e comia o meu cérebro como se fosse uma carne qualquer. *** O Kiame não parava de chorar enquanto contava o conto do seu sonho. Então eu lhe disse: – Podes parar, se não quiseres mais dizer. – Não, vou continuar. – Disse ele, limpando as lágrimas. – Está bem. – Disse eu, fazendo que sim com a cabeça. – Deixa-me continuar: Depois o homem de duas cabeças pôs-me nos seus ombros, e levaram-me para uma sala cheia de ratos vivos e mortos, e baratas sem cabeça. No centro daquela sala tinha um barril com brasas de fogo. E no teto, na direcção do barril, tinha correntes de ferro. O homem de duas cabeças meteu-me de cabeça para baixo, prendendo-me na corrente. A mesma corrente era controlada com uma manivela pequena que estava fixada na parede. A minha cabeça estava muito próxima do carvão, por isso estava a carbonizar. O homem de dois narizes, chegou bem perto de mim, me concentrou, e em seguida meteu a sua mão dentro do barril cheio de brasas ardentes. Tirou de lá uma boa porção de brasas, e com o dedo indicador metia as brasas de fogo na minha cabeça que já estava vazia porque o meu cérebro foi comido. 100


Os Contos dos meus Sonhos

Era muita dor, que eu não conseguia suportar, nem morrer. E o pior, é que aquilo era real. Eu não estava a sonhar, estava viver. Depois, os dois, começaram a tirar brasas de fogo do barril de metal, e esfregavam no meu corpo. Esfregavam fogo no meu corpo todo. Após terminarem de esfregar fogo no meu corpo, o homem de dois narizes pegou em uma das suas facas de metal, e meteu no fogo para aquecer. Com ela, raspava a minha pata, e depois cortava os meus dedos do pé, e das mãos. Eles, cada um com a sua faca, abriram a minha barriga, e tiraram todos os órgãos para comer. Depois de terminarem de comer parte do meu corpo, os dois homens olhavam um para o outro com sorrisos melancólicos. Neste momento, comecei a perceber o porquê daqueles corpos estarem danificados: também foram torturados. Só que alguns já estavam mortos. Ou talvez não estavam, porque na Inexistência, o que é pode não ser. O homem de duas cabeças, tirou um ferro que estava no canto da parede e, com ele me batia com muita força. Enquanto eu apanhava, de não sei quem, o homem de dois narizes girava a manivela que controlava a corrente na qual eu estava preso. Eu sentia a dor do ferro que vinha contra mim em toda parte do corpo e a dor do fogo a me possuir em simultâneo. Era muita, muita dor. Mas como é que humanos conseguem ser tão malvados assim? Se é que eles eram humanos. Em poucos momentos, eu tive o corpo todo carbonizado. Eu pensava que eles estavam a me queimar, mas não. Estavam, na verdade, a me grelhar. 101


Ngola Mufasa

Zitúu não ri, isso é muito sério. Tiraram-me do fogo, e puseram-me sobre uma mesa de metal, que estava também muito quente. O homem de dois narizes passeou por todo o meu corpo com o seu nariz, como se aquele cheiro – de corpo grelhado – fosse agradável demais. Logo que terminaram de cheirar e contemplar a sua comida grelhada – que era eu – cortaram o meu corpo em pedaços pequenos, e comiam estes pedaços. Foi horrível para mim. Não desmaiei, nem morri, mas quando dei por mim eu estava entre aqueles corpos cortados, danificados e ensanguentados. Abri os olhos que eu já não os possuía, e a alma do meu Avô estava bem ao meu lado. O Avô pegou-me pelos braços que eu não tinha também, e levoume para fora daquele lugar. Não fazia nenhuma diferença, porque fora daquele lugar era mesmo lá. “Já se passaram aqui trinta dias, e na Realidade uma noite. Podes voltar”, disse o Avô, se dirigindo a mim. Eu não sei mais como aconteceu, mas voltei para a Realidade Real. Aquela me parecia ser a verdadeira Realidade Real. *** – E como te sentes agora? – Perguntei ao Kiame, logo depois de ele terminar de contar o conto do seu sonho. 102


Os Contos dos meus Sonhos

Ele olhou-me bem profundamente nos olhos, deu uma pausa para mastigar um pouco da pouca metade de cana que lhe restava, e disse: – Sinto-me bem, por um lado. Mas, por outro, estou com uma sensação estranha. – Estranha? – Perguntei, um pouco confuso. – Sim. É inexplicável. Mas esqueça. – Kilaro. – Calei, para não lhe fazer lembrar mais no seu sonho horrível. – Prometi para mim mesmo nunca mais desobedecer os meus Primos, pois lhes devo submissão, e não quero mais pisar naquele lugar Zitúu. Eu estive entre as trevas.

103


Ngola Mufasa

“SE EU SOUBESSE…”, MAS NUNCA SE SABE – Zitúu, vem ainda aqui. – Era a minha Prima me acordando de um belo sono. Me levantei da cama, meti um calção e uma camisa, e fui ao seu encontro. A Prima-Fati estava na sala sentada num kachalo, e tinha outro kachalo na sua frente. Eu pensei que era para me mandar alguma coisa (buscar água era o mais provável), mas não. Me mandou sentar no kachalo. Me sentei. Quando terminei de me posicionar bem, a Prima-Fati olhou bem no fundo dos meus olhos e agarrou as minhas duas mãos, com as suas. Como já era de se esperar – mas mesmo assim eu não esperava –, a Prima-Fati começou a contar. Contar uma história que ela já me contara inúmeras vezes, e que acabava com: “e se eu soubesse…”, mas nunca se sabe. O estranho disso tudo, é que eu nunca me cansava de ouvir essa mesma história, pois cada vez que eu ouvia aprendia uma lição diferente da anterior. – Sei que já ouviste inúmeras vezes essa história. Mas preciso repetir até se tornar uma música para ti. Eu não podia negar, mas não queria aceitar estar lá: algumas vezes o que não podemos é muito mais forte do que o que queremos. – Quando eu tinha mais ou menos os teus Tempos de vida… – A Prima-Fati começava sempre assim. E quando começava assim, eu tinha plena certeza do que ia dizer a seguir. – Eu tinha muitas 104


Os Contos dos meus Sonhos

amigas. – Até aí não houve para mim nenhuma novidade. – Eu era muito feliz com a amizade delas. – Acho que não preciso repetir que isso também não era novidade. – A mesma história de sempre? – Perguntei com uma coragem que nem sei de onde vinha: na nossa aldeia nunca se questiona os actos dos seus Primos. – É. A história pode ser a mesma, mas o sentido nunca é. Os motivos nunca são. – Admirei o gesto e as palavras da Prima-Fati. Não é muito normal ela assim se proceder. – Está bem. – Consenti. – Eu era muito feliz com as minhas amigas. Nós íamos sempre ao rio de manhã para banhar, com mais outros meninos. Do mesmo jeito que tu vais ao rio com o Kiame, a Berta, a Nzola e mais outros meninos. – A introdução da sua história era sempre a mesma, mas eu tinha que ficar calado, em silêncio, para ouvir. – Mas eu cometi um erro… – Disse a Prima-Fati. – Não. – Interrompi. – Não quê? – Retrucou a Prima-Fati. – Falta a parte do sonho. – Ahn… é verdade. – Reconheceu. Aquela história toda parecia ser mais minha do que dela. Eu conhecia cada detalhe, de tanto ouvir. – Até o dia em que eu tive o meu último sonho. Eu não sabia que aquele seria o último. – Prima-Fati faltou contar sobre o dia… – Sim. Essa história agora parece ser mais tua do que minha. – Ela sorria enquanto dizia. – Parece… – Sorri também. – Eu tive um dia perfeito antes daquele sonho. Me comportei da melhor forma que pude, para ter bons sonhos. Eu gostava bastante dos bons sonhos que o meu Avô me dava. – Acho que a Prima-Fati 105


Ngola Mufasa

não era a única. – Eu queria estar sempre com ele, pois amava aquela realidade inexistente. – Eu também gosto muito. As vezes nem quero mais voltar. – Sorrimos os dois em simultâneo. – Eu me lembro de, naquele dia, ter ido ao rio com as minhas amigas. Nos divertimos bastante. Depois voltamos para a aldeia, e cada uma foi fazer o almoço da sua casa. E na hora de comer, batemos cuta21. – Ela disse isso rindo. Eu também ri, pois achava que apenas eu e o Kiame batíamos cuta. – A tarde – Continuou –, ficamos ao relento a brincar… – Não era literalmente a brincar… – Interrompi. – Como sabes que eu ia dizer isso? – Disse a Prima-Fati com um sorriso aberto. – Porque sempre dizes isso. – Tentei ser irónico. – Pois é, não era literalmente brincar como vocês brincaram, porque nós já estávamos a entrar na fase adulta. – Eu não sei o porquê que devo insistir em dizer que tudo que ela estava a dizer eu já sabia. Custa perceber isso caro leitor? – Kilaro. – Concordei. – Mas quando estava a entardecer, eu tive que me recolher, porque tinha que fazer o funge do jantar. – Sim, kilaro. – Concordei novamente, fazendo que sim com a cabeça. – Quando cheguei em casa, tudo estava como sempre – eu não sei por que na nossa aldeia as coisas têm a mania de estar como sempre –, e fiz o jantar, como sempre. – Tudo como sempre. – Disse eu. – Depois de jantarmos, eu fui para o meu quarto com uma vela acesa, para organizar algumas coisas e depois dormir. – Antes de dormir te deitaste na cama. – Brinquei.

21

Termo usado para descrever a acção de comer na casa de um, e em seguida na casa de outro (entre amigos).

106


Os Contos dos meus Sonhos

– Me deitei. E tive o melhor sonho de sempre. Só não sabia que seria o meu último. – Ainda não eras adulta? – Indaguei. – Não. As pessoas aqui são consideradas adultas a partir do momento em que deixam de sonhar. – Sim. O Filho-Tito nos disse. – Aquele sonho era tão perfeito, que eu não queria seriamente voltar à Realidade Real. Não consigo descrever o sonho, pois as vezes o perfeito é indescritível. – No dia seguinte, a noite, fiquei a espera de ter um sonho melhor que o da noite anterior. Mas, infelizmente, não só não tive um sonho melhor que aquele, como não tive sonho nenhum. Fiquei preocupada com aquilo, mas decidi esperar. Aguardei durante uma semana, mas não tive sonho nenhum. – Nunca mais tiveste. – Completei, completo de agonia. – Nunca! – Disse ela. – Desde aquele dia, só tive mais o sonho que se tem quando a pessoa é adulta e casada. – Podes me contar como é este sonho? – Perguntei, inseguro. Sempre pergunto isto à Prima-Fati. – Kilaro que não. Este é pessoal, nem mesmo o Primo-João sabe o meu. – Está bem. – Daí, eu fiquei obcecada com as lembranças do meu último sonho, e comecei a me corromper por uma grande onda de tristeza. Por isso, comecei a ficar muito solitária. – Que triste. – Eu já sabia disso há Tempos, mas não deixava de ser triste. – Comecei até a responder e tratar mal as minhas amigas, e por isso perdi elas todas. Por não saber lidar com a situação, e por não valorizar mais as minhas companheiras. – Ahn… – Admirei, por algo que não era novidade. – A Tina, mãe do Jojó, é uma das minhas amigas que perdi nestas brincadeiras. – Essa sim, era a novidade. 107


Ngola Mufasa

A Prima-Fati deu uma pausa breve para derramar, e limpar as lágrimas. – Por isso, com os teus Tempos de vida, aproveita bem as amizades, desfrute delas. Porque, se eu soubesse… mas nunca se sabe. – Nunca se sabe, mas agora eu sei. – Completei. – Agora tu sabes. Por isso faço questão de te contar este conto sempre que posso. – Disse ela, limpando ainda as lágrimas que restavam. O Primo-João entrou na sala, e por isso demos uma pausa breve na conversa. Depois de o Primo-João sair, eu disse: – Prima, falando em Tempos, qual é mesmo a minha idade? – Você tem… – Quando ela estava mesmo prestes a dizer, acordei.

108


Os Contos dos meus Sonhos

O SEGREDO DOS EMBONDEIROS – Eu estava num sonho. – Disse o Filho-Tito. – Eu tinha mais ou menos a vossa… aliás, o vosso Tempo de vida. Naqueles momentos, eu ainda não sabia distinguir a fronteira entre a Realidade Real e Realidade Inexistente. O Filho-Tito parou um pouco, porque a Nzola estava a tossir. Quando a Nzola recuperou, o Filho-Tito continuou: – Eu vivia cada uma das Realidades consoante o feeling que cada uma me transmitia. Naquele Onjango, nós fizemos muitas perguntas sobre várias árvores ao Filho-Tito. Até que a Nzola – kilaro, era quase sempre a Nzola –, perguntou ao Filho-Tito sobre os embondeiros. O FilhoTito, com aquela alegria e prazer que tinha sempre ao nos ensinar alguma coisa, nos ensinou, não só sobre o segredo dos embondeiros, mas de todas as outras árvores, e da sua experiência com elas nos seus sonhos, e na Realidade Real. – Eu não vi o meu Avô naquele sonho. Me encontrei no Além apenas com as árvores e os animais. Porém o sonho não deixou de ser fantástico. – E o teu Avô estava a fazer o quê Filho-Tito? – Perguntou a Nzola, mansa. – Deu o sonho e bazou22. – Brincou o Jojó, e nós rimos bastante. – Talvez foi isso. – Disse o Filho-Tito, com o seu sorriso calmo. – Mas isso não importa. E aliás, acho que vocês já tiveram muitos sonhos sem os vossos Avôs.

22

Termo usado para referir-se à ida de alguém (calão).

109


Ngola Mufasa

“Aconteceu comigo várias vezes”, disseram algumas meninas, num uníssono atrapalhado com as mãos levantadas ao ar. – Sim. – Continuou –, naquele sonho eu me diverti com os animais. Mas, de tantos instantes sem ver o meu Avô, comecei a ficar aborrecido. Era o meu primeiro sonho sem ele. – Primeiro de primeiro? – Perguntou a Nzola, surpresa. – Sim. Foi o primeiro. Com a ausência do meu Avô, comecei a procurar por Realidades escondidas em cada coisa que lá se encontrava. – Filho-Tito, qual foi a sensação do seu primeiro sonho? – Assim eu tenho que dizer mais que foi a Nzola a perguntar? Não nê23? Obrigado! – Nzola não estamos a falar sobre isso agora. Aliás, foste tu que fizeste a pergunta que o Filho-Tito está a tentar responder. – Disse o Kiame. – Mas podem perguntar sobre qualquer coisa, não tem problema. – Disse o Filho-Tito, para a alegria, murmuro e risos da Nzola. – Bem, Nzola, eu não me lembro do meu primeiro sonho, porque era recém-nascido. – O quê? – O Kiame deu um grito de susto. – Começa-se a sonhar quando recém-nascido? – Kiame, não estamos a falar disso. – Disse a Nzola, fazendo uma careta e tentando imitar a voz e sotaque do Kiame. O Kiame ficou sem saber o que dizer, apenas trocou olhares com a Nzola, e depois virou-se para mim. – Sim Kiame. Se eu não sonhasse quando recém-nascido, eu teria graves danos mentais. Os sonhos são fundamentais para a manutenção dos nossos pensamentos. – Voltando naquele assunto… – Eu disse, na vez do Filho-Tito. – Voltando àquele assunto, naquele sonho eu me dediquei em descobrir. Descobrir cada vez mais coisas, e as coisas das coisas. 23

Forma curta de dizer: “não é?”

110


Os Contos dos meus Sonhos

Porque, há coisas que se sabem e aprendem-se melhor quando estamos inconscientes. – Descobriste alguma coisa nova sobre os sonhos, Filho-Tito? – Não, desta vez não foi a Nzola perguntar, fui eu. – Não Zitúu. – Disse ele sorrindo, enquanto apoiava as suas mãos na sua barriga grande. – Coisas sobre os sonhos e os contos dos sonhos, eu aprendi em outros sonhos com o Avô. – E quais são estas coisas que aprendeste no sonho sem o teu Avô Filho-Tito? – Agora sim, foi ela a perguntar. – Por exemplo, descobri que os pássaros gostam do ar porque a terra é muito quente para os seus pés. “Wau…” Admiramos todos aquela informação. – Descobri também que os ratos, há muitos, muitos Tempos, eram gigantes como o elefante. – E o que aconteceu depois? Para eles tomarem a forma que têm agora? – Até eu, estava a ficar irritado com as interrupções da Nzola mas, fazer o quê? É por isso mesmo que o Filho-Tito é nosso filho. – Na selva, o leão deu a ordem para nenhum animal comer a comida de um outro animal. Nem mesmo ter um outro animal como comida. Todos os animais eram protegidos e tinham direitos. – O que aconteceu depois Filho-Tito? – Nzola te custa mesmo esperar de ouvidos abertos quando o FilhoTito está a dizer, e perguntar no final? – A Berta também já estava a ficar irritada. – Mas o rato, com a sua astúcia, decidiu não mais trabalhar para comer, e comer toda a comida que era ajuntada pelas formigas. – Coitadas das formigas. – Comentou a Daniela. – Então elas decidiram marcar uma reunião com o leão, o rei. Nesta reunião, o leão, com o seu poder decidiu punir os ratos por tais actos. – Punir com poder? – Indagou a Daniela surpresa. 111


Ngola Mufasa

– Sim menina Daniela. Antigamente, bem antes dos nossos ancestrais, cada animal tinha um poder mágico. O poder do leão era de fazer qualquer coisa que quisesse, mas só podia usar este poder uma vez em toda a sua vida. O leão, arriscando tudo, usou o poder para transformar os ratos em criaturas muito pequenas e depois expulsou-os da selva. – E assim, os ratos foram para bem longe? – Perguntei. – Kilaro. Por isso eles estão entre nós humanos. – Respondeu o Kiame, sem ter esta intenção. – Eles foram. Por isso passam a vida a fugir. – Disse o Filho-Tito – Mas antes de irem decidiram usar também os seus poderes para lançar uma praga aos leões. E esta mesma praga acabou por destruir a selva para sempre. – E qual foi esta praga? – Perguntei curioso. – A praga foi directamente lançada aos leões, mas acabou por afectar todos os outros animais. A praga era para que todos os animais vivessem para sempre em conflitos, e que os mais fortes comecem os mais fracos. – É por isso que os leões comem os outros animais?! – Perguntou afirmando a Berta. – Isso mesmo. Pela praga que lhes foi lançada, os animais estão uns contra os outros, e o seu reino se destruiu. Demos uma pausa rápida em homenagem ao reino destruído, e eu perguntei depois: – E sobre os embondeiros? – – O quê? – Contrastou o Jojó. – Eu perguntei ao Filho-Tito sobre os segredos dos embondeiros. – Tentei ser arrogante, mas não conseguia ser melhor que ele. Não deu certo. – Bem, sobre os embondeiros eu descobri que eles não têm segredos. Eles são o segredo. – Todos nos espantamos com esta dica, e uns até murmuraram com outros. – Sim meninos. Não 112


Os Contos dos meus Sonhos

precisamos descobrir os segredos dele, antes, precisamos conhecer o que ele é, porque ele é o segredo. – E sobre a solidão deles? – Inquiriu a Nzola, ao Filho-Tito. – Eles, os embondeiros, também viviam num espaço com todas as outras plantas. – E foram expulsos por desobediência também? – Questionou a Daniela. – Não. – Respondeu o Filho-Tito, sempre apoiando a sua mão na barriga. – Eles decidiram se afastar e viver sozinhos porque foram muito injustiçados, enquanto viviam na comunidade. Era estranho. Muito estranho, o facto de a Nzola – dona das perguntas – estar esse tempo todo calada, sem perguntar alguma pergunta. Talvez é porque foi a Berta, sua melhor amiga, a lhe dizer para ficar calada. – O que aconteceu propriamente? – Perguntei. Acho que eu estava a começar a perguntar mais que a Nzola. O Filho-Tito esfregou a sua barba por alguns instantes, e depois disse: – Havia uma má distribuição e injustiça por parte da planta que era responsável pelo controle das águas das plantas na sua comunidade. – E qual era esta planta? – Perguntei. – A mangueira. Ela era a administradora. – Respondeu o Filho-Tito. – Mas o que aconteceu propriamente para que a mangueira deixasse de dar água ao embondeiro? – Finalmente o Jojó disse/perguntou alguma coisa séria e de juízo. – Ciúmes. Chegou uma altura em que o embondeiro dava mais frutos que a mangueira, e sua árvore em si tinha mais vida. A Nzola interrompeu a conversa, bocejando. Ela devia estar muito cansada. Aliás, era noite. 113


Ngola Mufasa

– E a mangueira não gostava disso? – Perguntou a Daniela. – Não. A mangueira queria ser apenas ela a dar frutos. E foi aí que o embondeiro começou a se sentir injustiçado e decidiu ir para bem longe. – É por isso que as árvores em si são secas? – Questionou finalmente a Nzola. – Sim. Mas os ancestrais, como nela habitam, a alimentam com muita água seca. “Então são estes os segredos do embondeiro…” pensei. – Muitos outros segredos é esta árvore. – Disse o Filho-Tito, indicando para o embondeiro ao lado do lugar onde estávamos reunidos. – Que vocês próprios podem descobrir em vossos sonhos… Naquela noite, depois do Onjango, tentei também sonhar com os segredos dos embondeiros, mas infelizmente nós nunca escolhemos os nossos sonhos. Comecei até a achar que aqueles (segredos dos embondeiros) que o Filho-Tito nos ensinou eram os únicos que existiam, por desespero.

114


Os Contos dos meus Sonhos

COMO AS CORES FORAM COLORIDAS Às vezes, o meu Avô costuma me ensinar sobre as mesmas coisas, mas de formas muito diferentes. Foi o que aconteceu nas últimas duas noites. Perguntei à Prima-Fati as razões e motivos dessa repetição diferente de sonhos, e ela me disse que é muito normal que isso aconteça. Mas é anormal que aconteça. – Como assim? – Perguntei de cabeça para baixo. – Zitúu, isso pode significar duas coisas. – Quais são essas coisas? – Levantei a cabeça, e direcionei o meu olhar à Prima-Fati. – Pode significar que o teu Avô acha que não aprendeste bem aquelas lições e é essencial que aprendas, ou ainda… – Repentinamente a Prima-Fati mudou de semblante, de mal para pior –, Pode significar que os teus dias de sonho estão contados. Era só isso que me faltava ouvir, naquela manhã que começou com uma chuva intensa. Mas agora estava serena. – Mas não fica assim. Conversa com o Filho-Tito. – Disse a PrimaFati, tentando me acalmar. – Está bem. Amanhã quando estivermos no Onjango conversarei com ele. – Não. Pode ser agora. – Está bem. – A Prima-Fati deu-me um beijo na testa, e depois foi para a cozinha. Eu fui na porta, espreitei de dentro e a chuva já estava mesmo a bazar. O sol, com vergonha de aparecer, escondia-se entre as nuvens, e o chão húmido produzia um aroma sem igual. 115


Ngola Mufasa

As nuvens ainda estavam pretas, e provavelmente choveria mais. Então entrei para vestir o meu casaco laranja volumoso. Depois de sair, a caminho da casa do Filho-Tito, encontrei a Daniela a chorar em frente da sua casa. Me aproximei dela, a peguei no ombro, e depois perguntei-lhe: – O que se passa? A Daniela estava com a cabeça para baixo, mas quando sentiu a minha mão repleta de gotas de água no seu ombro, ela levantou a cabeça e me concentrou: – O que foi? – Perguntei novamente, com um tom mais suave. Ela continuava sem me responder, apenas chorava. Olhava sem mensagem nenhuma, mas os seus olhos diziam muita coisa, que eu não conseguia compreender. – Tive o mesmo sonho, mas de forma diferente, nas três últimas noites. – Finalmente ela disse alguma coisa. Eu achava que era o único a passar por isso, mas não. E o pior, é que com a Daniela aconteceu três vezes, e comigo apenas duas. – Vamos ao Filho-Tito contar-lhe. Talvez ele tenha alguma coisa para nos dizer sobre isso. – Está bem. – Consentiu ela. A Daniela era de poucas palavras, mas de muito silêncio e muitas acções. Ajudei-lhe a levantar do chão, e juntos fomos à casa do Filho-Tito. 116


Os Contos dos meus Sonhos

Assim que levantei a minha mão para bater a porta do Filho-Tito, quando lá chegamos, ele abriu a porta. – Bom dia meus amigos. – Nos atendeu o Filho-Tito com uma alegria contagiante. Eu, pelo menos, me contagiei, mas a Daniela não sei. – Bom dia Filho-Tito. – Ofereci um outro sorriso, fruto do seu contágio. O Filho-Tito estava com uma enxada. Me parecia que ele iria à lavra, então achei melhor voltar em sua casa numa outra altura: – Filho-Tito nós vamos voltar mais tarde. – Não. Podem ficar. – O Filho-Tito encostou a sua enxada na parede ao lado da porta. – Então, têm algo para me dizer? – Eu sinceramente não sei onde é que o Filho-Tito tirava tanta alegria para lidar com crianças como nós. – Filho-Tito… – Espere. Antes de começarmos a conversar, vocês devem entrar. Porque devem estar a molhar. – Me interrompeu. Olhei para a Daniela, como se tivesse a lhe perguntar se ela concordaria em entrar, e ela concordou. Depois de estarmos dentro, nos sentamos na pequena sala do FilhoTito, em alguns kachalos que foram feitos por ele. Ele sentou-se também. – Filho-Tito… – Comecei –, nós viemos aqui… – Já imagino. – O quê? – Perguntou a Daniela. – Vocês gostam um do outro. – Obviamente ele estava a brincar. Até a Daniela, que estava muito séria, começou a rir. Rimos todos até não poder mais. 117


Ngola Mufasa

– Brincadeira meus amigos. O que foi? – Disse ele, depois de se acalmar. – Na verdade, nós viemos aqui por causa dos nossos sonhos. Temos tido sonhos repetidos, mas de formas diferentes. – Explicou a Daniela. – Sim. É isso mesmo. – Concordei. – Ahn… meus amigos acreditam que vocês não são os primeiros a virem conversar comigo sobre isso. – Não somos? – Espantei. – Não. Vocês não são. Já recebi também alguns meninos com os vossos Tempos, que vieram me dizer isso. – É isso que está a acontecer Filho-Tito. Houve um silêncio repentino na sala. O Filho-Tito rompeu o silêncio dizendo: – Meus amigos, está a acontecer aqui na aldeia algo que só acontece de quinze em quinze longos Tempos. – Como assim Filho-Tito? – Como vocês têm visto, aqui tem chovido muito nas… – O FilhoTito parou de falar de repente, porque alguém estava a bater a porta da sua casa. Ele levantou para abrir a porta, mas eu fui mais rápido: por uma questão de educação. Abri a porta, e lá fora estava o Kiame, que veio acompanhando do mesmo semblante que a Daniela. Parecia que vinha pelo mesmo motivo que eu e a Daniela. – Pode entrar Kiame. – Gritou o Filho-Tito, com grande esforço, a partir de dentro. Entrou na casa também o Kiame, e sentou-se em um dos kachalos – em casa do Filho-Tito tinha muitos, pois ele fabricava kachalos para quase toda aldeia. 118


Os Contos dos meus Sonhos

– Então, tudo bem meu amigo? – Cumprimentou o Filho-Tito ao Kiame. – Sim. Mas vim falar sobre os meus sonhos. – Respondeu o Kiame, derramando lágrimas meio secas. – Sim, podes dizer. – É que nos últimos dias eu tenho tido o mesmo sonho, mas de forma diferente. A minha Prima me disse que provavelmente os meus dias… aliás, as minhas noites com o Avô estão contadas. Não sei porquê, mas o Filho-Tito achava a última coisa dita pelo Kiame engraçada. Eu, o Kiame a Daniela trocamos olhares, sem entender os motivos dos risos do Filho-Tito. – Meus. Amigos. Vocês. Têm. Muitos. Sonhos. Pela. Frente. – Ele falava assim, porque não parava de rir. – Ainda vos falta muitos Tempos de vida para pararem de sonhar. – O Filho-Tito já estava mais calmo. – Curioso, porque a Prima-Fati me disse exatamente a mesma coisa que foi dita ao Kiame. – Fiquem calmos meninos. Isso não vai acontecer agora. – Então? – Questionou a Daniela. – Como eu ia dizendo, estamos a viver uma situação que apenas acontece de quinze em quinze longos Tempos. – E por quê que esta situação afecta os nossos sonhos Filho-Tito? – Questionou a Daniela. – Calma. Vou explicar. – Sim. Está bem. – Como vocês devem saber, os vossos ancestrais ficam na árvore de embondeiro. – Sim, sabemos. – Concordou o Kiame. Não demorou muitos momentos, e o Jojó também chegou. Parecia que vinha contar a mesma história. E o Filho-Tito, com muita 119


Ngola Mufasa

paciência, repetiu a explicação do começo, e depois retomou onde já estava: – Então, nestes momentos, os ancestrais saem dos embondeiros. – Porquê? – Perguntei. – Porque os embondeiros já ficam completos de água. – Não estamos a entender. – Disse a Daniela. Eu acho que quando ela estava a dizer “nós”, queria dizer “eu”, porque eu tenho a plena certeza que eu e o Kiame sabíamos muito bem do que o Filho-Tito estava a dizer. – Menina Daniela é o seguinte, os ancestrais é que alimentam de água os embondeiros. Mas nestes Tempos, os embondeiros já se enchem de muita água da chuva, e os ancestrais ficam sem espaço para lá estar. – Ahn… agora estou a entender. – É isso mesmo Daniela. Eles vão para não sei aonde, por isso os sonhos ficam escassos. – Mas voltam? – Perguntou a Daniela preocupada. – Sim, eles voltam. – Ainda bem… – Ela deu um suspiro. Eu e o Kiame também demos outros. – Mas eu tenho uma receita para vocês voltarem a ter os sonhos normais. Isso pode, ou não funcionar. E se funcionar, pode funcionar a qualquer momento. – Sim. Nós queremos. – Eu disse por todos. – Está bem. Me esperem aqui. O Filho-Tito saiu por alguns instantes, e nós ficamos dentro da casa a olhar um para o outro. Já não estávamos tristes, mas estávamos apreensivos. Então, esperamos o Filho-Tito voltar, para nos dar o que ele tinha para nos dar como receita para curar os nossos sonhos. 120


Os Contos dos meus Sonhos

Até o Filho-Tito voltar, trocamos entre nós os quatro mais olhares do que palavras. O Filho-Tito voltou, e ficamos ainda mais comedidos. Ele tinha consigo alguns paus que aparentemente foram partidos do embondeiro. – Eu parti isto do embondeiro. – Dizia o Filho-Tito, enquanto distribuía para cada um de nós um ramo. – O que vamos fazer como isso? – Perguntou a Daniela. – Vocês têm que mastigar, ou mesmo usar para fazer chá. – Explicou o Filho-Tito. – Antes de dormir? – Indagou o Jojó. – Antes de dormir, e quando quiserem dormir. Isto vos dá sono e sonho. “Muito obrigado Filho-Tito”, agradecemos, felizes. Saímos da casa do Filho-Tito, os quatro, e cada um com o seu ramo em mão. – Zitúu, vamos ao rio. – Me convidou o Kiame, exitando entrar em sua casa. – Está a chuviscar, e não é o melhor momento para nadar. – Não vamos ao rio para nadar. Vamos apenas para observar. – Está bem. – Também quero ir. – Pediu a Daniela. – Vamos… Fomos ao rio os três, e juntos observávamos o correr das águas. Nos sentamos no capim que cresceu ao lado do rio, e lá trocávamos as mais variadas conversas. 121


Ngola Mufasa

– Vou ainda experimentar, para ver se isso funciona. – Falou para nós o Kiame, observando profundamente o ramo que estava entre o seu dedo polegar e o indicador. – Também vou mesmo me certificar se funciona. – Disse eu, com um tom sarcástico. – Otah24… não façam isso. – Dizia a Daniela. Não esperamos mais ela terminar de falar, e mastigamos. Uma coisa que o Filho-Tito não nos disse é que o embondeiro estava tão vivificado, que o seu efeito seria imediato. E foi. O conto do meu sonho: Neste sonho o meu Avô vestia todas as cores, mas não se identificava com nenhuma. As árvores, as plantas e o ambiente todo em si, ganharam todos uma identificação. Uma cor. – Assim está aqui tudo que quê por Avô? – Questionei, ao me contemplar com aquela toda colorização. – Assim é aqui nada porque. – Respondeu o Avô, sem ser irónico. Pelo contrário, me ofereceu o seu melhor sorriso. Naquele instante, estávamos naquele jardim de cores acesas e coloridas. Num outro instante estávamos na beira do rio das cores. – Cores das rio chama-se este. – Me explicou o Avô antes. – Cores das rio? – Questionei quase assustado. – Mesmo isso. – Me disse o Avô. A naturalidade do rio já explica o seu nome. Mas mesmo assim eu achava um pouco estranho. 24

Palavra usa no sentido de “aviso ou medo”, fruto da interferência do Umbundu no Português.

122


Os Contos dos meus Sonhos

Naquele rio, não corriam águas normais e incolores. Corriam nele águas com todas as cores. Não sei como explicar da melhor forma, mas lá havia uma espécie de misturas separadas de águas. Era como se cada cor ocupava o seu lugar na corrente, mas todas elas ocupavam os seus lugares dentro de uma outra. É de lá onde nascem os arco-íris, segundo o que me ensinou o Avô. – Assim chamado é rio este que é quê por? – Perguntei ao Avô, enquanto seus olhos transparentes também se deliciavam com tamanha beleza. O meu Avô contou-me que, aquele rio não era um simples rio. Era a junção dos rios e dos mares. Me explicou ainda mais o Avô, que antes que tudo existisse, esse rio-mar já existia. Mas era incolor, e nele habitavam as Sereias. Mas chegou um dia, me explicou o Avô, que a Sereia-Mãe decidiu ver e conhecer como eram as outras realidades; como era o mundo para além dos rios e mares. Quando esta mesma Sereia deixou o rio-mar, houve grande pranto entre as Sereias que restaram na água. Pois amavam aquela realidade, e dela não queriam se desfazer. Mas sentiam muita falta da Sereia-Mãe. Estes choros, começaram a colorir todo rio. Porque os choros das Sereias são coloridos. E isso acontece até nos dias de hoje. Foi a partir daí que houve uma separação entre o mar e o rio. As Sereias que choravam lágrimas azuis decidiram também fugir daquela realidade. Mas como não foi possível, como castigo, elas ficaram com o mar que é salgado. 123


Ngola Mufasa

“E a Sereia que saiu da água o que fez?”, foi isso que perguntei ao Avô em seguida. O Avô me ensinou que esta Sereia encontrou no mundo um grande Nada. Por isso, chorou com agonia. E, mesmo sem esta intenção, o seu choro começou a colorir as coisas e a diminuir cada vez mais o Nada. Foi assim que as cores, e as coisas foram coloridas.

124


Os Contos dos meus Sonhos

SEJAMOS TODOS FORMIGA – Filho-Tito, por quê é que tudo na natureza existe? – Perguntou a Nzola. Nós não estávamos no Onjango. O Filho-Tito resolveu ir ao rio conosco naquela manhã de céu excitado. – Olhe a volta de tudo, e verás que tudo completa tudo. O Nada também completa o tudo. – Respondeu o Filho-Tito. – Tudo completa tudo? – Questionou a Berta confusa. – Sim, kilaro. Uns morrem para dar vida aos outros e outros vivem porque outros morreram. Todas as plantas servem para dar cor e brilho ao planeta, e as águas servem para alimentar e vivificar essa cor. Os solos dão mais águas às águas, e nas nuvens elas se guardam. – Wauu… – Admiramos todos em simultâneo. – E sobre os animais? – Questionou a Nzola. – Sobre os animais, eles também servem para completar. Todos têm um papel a cumprir. As meninas ficaram na beira do rio com o Filho-Tito, e nós os rapazes ficamos a nadar, e algumas vezes ir também para ouvir o que o Filho-Tito tinha para dizer. – Filho-Tito desculpa perguntar isso, mas até as formigas têm um papel a cumprir na natureza? – Perguntou o Jojó, e todos rimos. Não pela pergunta, mas pela forma como ele perguntou. O FilhoTito deu uma pausa, olhou a volta e depois disse: – Elas… *** – Zitúu, acorda para ir buscar água. – Me chamou a Prima-Fati. 125


Ngola Mufasa

Hoko25, aquilo só podia mesmo ser um sonho, porque o Filho-Tito nunca vai conosco ao rio: NUNCA. Mas mesmo assim, o sonho era muito real. Foi tão real, que tem uma pergunta do Jojó no sonho que me deixou muito curioso: qual é o papel das formigas para as nossas vidas? Resolvi esperar pela reunião (Onjango) à noite para fazer esta pergunta ao Filho-Tito. Enquanto isso, me levantei e lavei a boca e, com a água que restou no copo lavei o rosto. A Prima-Fati já não estava em casa, notei isso pelo barulho produzido pela porta. Fui até a cozinha, e constatei que ela já levou todos os recipientes que usamos normalmente para acarretar água. Sendo assim, eu só tinha que ir ao rio para lhe ajudar a carregar para casa os recipientes. Abri a porta de casa, cumprimentei o Kiame e mais outros meninos que estavam fora, a brincar, e depois corri feito louco para alcançar a Prima-Fati, pois ela não gostava de atrasos. Felizmente, quando lhe alcancei, ela ainda estava a caminhar com um balde que tem mais ou menos a metade da minha altura, e mais dois bidons26 pequenos que tinham a metade da altura do balde. Chegamos ao rio (que não era bem um rio, mas uma espécie de foz, que tinha um tubo em que saia água como espécie de torneira. Esta água é que vinha do rio) e estava cheio de pessoas, por isso tivemos que esperar por muitos momentos.

25

Palavra usada de forma exclamativa, fruto da interferência da língua Umbundu no Português. 26 Recipiente de plástico, usado para a conservação de líquidos (água, mel, kissangua, etc.).

126


Os Contos dos meus Sonhos

Enquanto esperávamos pela nossa vez de tirar água, eu fiquei numa zona com terra preta e húmida e fiz o exercício de observar os animais que lá passavam. Fazendo um esforço muito grande com os meus olhos, eu comecei a observar as formigas e as suas acções. Eu estava pasmado com o que via, então me aproximei ainda mais do chão, que quase beijeio. Os movimentos, gestos e falas das formigas me encantavam de tal forma que nem vi os momentos a passarem. Quando finalmente me levantei, notei que apenas eu estava no rio e, obviamente, os bidons que a Prima-Fati deixou lá para eu levar. Eu não queria sair daquele lugar, mas tinha mesmo que bazar. Me levantei, para levantar os bidons, e pelo peso notei que ainda estavam vazios, então tive que encher antes. Enchi os bidons de água, e comecei a andar a caminho de casa. No caminho para casa, sempre que encontrava um conjunto de formigas eu parava por instantes para lhes assistir. Se eu pudesse, seria elas; mas como não posso ser elas, serei apenas como elas: desde as suas qualidades, até os defeitos. Cheguei na aldeia, mas a Prima-Fati já havia chegado há muitos momentos. Ela me ralhou porque, segundo ela, eu atrasei por Nada. Mas ela não compreendia que observar as coisas pequenas é como fazer tudo. Despejei a água num balde vazio, que estava na cozinha. E a mando da Prima-Fati, eu fui novamente ao rio buscar água. Mas desta vez fui com o Kiame.

127


Ngola Mufasa

– Como foi o teu sonho? – Perguntou-me o Kiame, enquanto ele batia os seus bidons contra os joelhos. – Foi fixe. – Sorri. – Parecia ser real, como muitos sonhos que tenho tido ultimamente. – Como todos os sonhos que já tiveste. – Disse o Kiame, me interrompendo. – Kilaro. Todos os sonhos são tão reais, que me esqueço da Realidade. – Rimos. Brincando, batemos com os bidons um no outro, e até tivemos uma corrida. E como sempre, o Kiame venceu. – Sonhei com formigas. – Eu disse, enquanto enchia os bidons de água. O Kiame riu, pois achava engraçado sonhar com formigas. Podia até ser engraçado, mas eu acho que tem algo mais do que isso neste sonho. Acredito que foi uma mensagem que o meu Avô me proporcionara. – Sonhaste com quê!? – Disse o Kiame, Ainda gargalhando. – Pois é. – Tentei ficar sério. – E o que aconteceu no “sonho com as formigas” – Disse o Kiame, com as devidas aspas no ar. – Bem – Disse eu, levantando os bidons – não foi bem sonhar com as formigas. Eu é que não paro de pensar nelas. – Ahn… houve uma época em que eu só sonhava com as aves. Fiquei tão obcecado, que eu queria ser elas. – Por isso é que tentaste pular daquela árvore e partiste o pé. – Brinquei, mas era mesmo verdade. O Kiame tentou pular de uma árvore. Eu só não sabia os motivos que o levaram a fazer isso. O Kiame parou por uns instantes, riu comigo e depois disse:

128


Os Contos dos meus Sonhos

– Ei, é segredo o motivo de eu ter pulado. – Ele sorrira. – Daqui a mais alguns dias vais querer te cortar para ser como as formigas. – Isso nunca. – Retruquei. – Se continuares a pensar nelas, é isso que vai mesmo acontecer. – Naaaaaa… – Vamos esperar para ver. – Disse ele, batendo nas minhas costas. – Vamos… Terminamos de encher, e começamos a caminhar. Sem volta, em volta dos matos, de volta nós estávamos. Quando cheguei em casa, despejei a água no mesmo balde de antes, e encheu. Tive o meu almoço, descansei, e depois sai para brincar. Em meio as brincadeiras, a Berta me puxou para um canto, tirou batata-doce da sua bolsa de renda, e me deu para comer. Achei estranho o facto de ela ter me dado batata-doce do Nada. Mas Nada melhor do que agradecer, mesmo quando não se entende Nada. Meti a batata na boca para dar a primeira rata27. Depois da primeira rata, tive uma ideia genial: usar a batata como uma isca para atrair as formigas. Fui atrás da minha casa, cortei a batata com os dentes em pedaços pequenos e deixei no chão. Aos poucos, as formigas começaram a aparecer. Eu me aproximei mais do chão para poder enxergar melhor. E, mais uma vez, contemplei sem ver os momentos a passarem. Quando dei 27

Referindo-se à uma “mordidela”.

129


Ngola Mufasa

por mim, já estava a escurecer, mas os meus amigos continuavam fora de suas casas a brincar. Fui até a minha casa, vesti um casaco, e sai para brincar também com os meus amigos. Já estava meio escuro, mas mesmo assim brincamos bica-bidon28. Brincamos durante muitos instantes, até chegar a hora de ir para o Onjango. Corremos para tomar os nossos lugares antes do FilhoTito, mas ele já estava lá bem sentadinho. – Como foi o vosso dia? – É sempre essa a primeira pergunta, que ele faz. E todo mundo tem que explicar detalhadamente, os detalhes do seu dia. Mas eu decidi por começar por contar sobre os contos dos meus sonhos. Contei-lhe também sobre a minha inquietação sobre as formigas; inquietação que começou no sonho. Enquanto contava ao Filho-Tito sobre o conto do meu sonho, só não contei-lhe que foi o Jojó a fazer a pergunta sobre as formigas. – Já vamos falar sobre o teu sonho Zitúu. Vamos ainda procurar saber sobre o dia do Kiame. – O Kiame era o último, que tinha algo por contar. O Kiame falou também sobre o seu dia, mas saltou a parte em que fomos ao rio buscar água. Na verdade, ele nem gostava que as meninas o vissem a fazer isso. Também nunca entendi claramente os motivos. – Bem Zitúu, agora podemos falar sobre o teu sonho. – Disse o Filho-Tito, voltando para mim. – Filho-Tito qual é a importância da existência das formigas na natureza? – Questionei. 28

Brincadeira infatil, que tem como principal objecto de uso o bidon

130


Os Contos dos meus Sonhos

– Meu amigo, tudo na natureza tem um papel. Tudo. Tudo existe por um motivo, uma razão… – E qual é o motivo da existência das formigas. – Perguntei, pois eu tinha muita pressa de aprender sobre aquilo. – Calma meu amigo, vou chegar aí. Algumas coisas existem para morrerem, e assim darem lugar a existência das outras. Outras são as vítimas da existência, causada pela morte das outras. – E qual é o papel da formiga? – A Nzola começou a parecer mais curiosa que eu. O Filho-Tito sorriu, pois estava feliz com as nossas perguntas, e a nossa curiosidade. Mas depois continuou: – Há ainda outras que só existem para observar e aprender, e outras existem para ensinar. – E qual é papel das formigas? – Perguntou novamente a Nzola. – As formigas existem para ensinar?! – Perguntei. Mas acho que eu estava a afirmar mais do que perguntar. – Kilaro. Isso mesmo. O meu Avô, na época em que eu ainda podia sonhar, ensinou-me três virtudes que nós podemos encontrar e aprendemos na natureza com as formigas. – E quais são estas coisas? – Perguntou a tímida da Daniela. Alguns murmuraram, outros riram em silêncio, e outros silenciaram porque não era muito comum a Daniela fazer perguntas, ou mesmo dizer alguma coisa. Mas quando dizia algo, falava ou perguntava coisas de juízo. Acho que o Filho-Tito fica ainda mais feliz com isso. – A primeira coisa – todos ficaram silenciosos e atentos, alguns com as mãos no queixo para ouvir – é: nós somos pequenos, muito 131


Ngola Mufasa

pequenos. Mas quando nos juntamos e trabalhamos em união, podemos fazer coisas muito grandes. – É isso que eu tenho visto muitas formigas a transportarem uma barata muito grande! – Exclamou o Kiame. – Outra vez eu vi elas a levarem um osso grande de peixe. – Disse o Jojó. – Isso mesmo Kiame e Jojó. Uma só não consegue, mas elas unidas conseguem. – Completou o Filho-Tito. – Por isso devemos ser muito unidos para conseguir fazer coisas grandes, que possam servir para todos. – Disse a Berta, depois de alguns instantes calada. – Sim Berta. Devemos… – E qual é a segunda virtude? – Perguntou o Jojó, deixando mais uma vez todo mundo admirado porque ele não é de muitas perguntas com sentido. – A segunda é: respeitar a todos, sem se importar com a raça, etnia ou crenças. – E as formigas respeitam Filho-Tito? – Perguntei. – Sim, elas respeitam. E este respeito começa por saudar a todos que encontramos. Vocês nunca verão uma formiga que se encontra com uma outra no caminho, e não lhe cumprimenta. Por mais que esta formiga seja uma desconhecida. “Wau…!” Exclamei, “as formigas têm mesmo muito que nos ensinar”. Nós estávamos totalmente encantados com as virtudes das formigas, que só queríamos naquele momento saber qual é a terceira. – E qual é a terceira virtude? – O Jojó estava mesmo a surpreender todo mundo. 132


Os Contos dos meus Sonhos

– A terceira é: trabalhar, pois o trabalho dignifica. Não existe um outro animal que tenha em sua natureza o espírito de trabalho como as formigas. Elas simplesmente não dormem. – Agora está tudo explicado. – Disse eu. – Também não devemos dormir Filho-Tito? – O Jojó voltou às suas brincadeiras. Talvez não estava a brincar, mas nós achamos engraçado e começamos a rir. – Existe uma quarta virtude das formigas, que eu não aprendi em um sonho, mas mesmo assim eu vou dizer… – Diga, diga, diga… – Dissemos todos, entusiasmados. – A quarta virtude é: humildade. – Disse o Filho-Tito. – No reino animal, não existe um professor de humildade melhor que a própria formiga. Ela é pequena, reconhece isso e vive assim. – Mas não deixa de fazer coisas grandes. – Completei. – Kilaro, Zitúu. Isso mesmo. Ela reconhece ser pequena, e por isso faz coisas grandes. “Já podes te cortar para ser uma formiga”, o Kiame sussurrou no meu ouvido. O Filho-Tito deu conta, e por isso perguntou: – Estão a falar sobre quê Kiame e Zitúu? – Para ser como as formigas. – Mentiu o Kiame. Mas talvez, não totalmente. – Kilaro, o Kiame tem razão. – Disse o Filho-Tito. – Devemos respeitar como as formigas, trabalhar como as formigas, ser humildes como elas são e ser unidos também como as formigas são. – Enfim… – Dizia o Jojó, se levantando para me dar um abraço –, sejamos todos formigas. “Sejamos todos formigas”, disseram os outros também, de forma desordenada e levantando. 133


Ngola Mufasa

“Sejamos todos formigas”

134


Os Contos dos meus Sonhos

O NADA TAMBÉM É ALGO Num eterno antes de a Sereia sair do rio-mar para a terra, antes mesmo de ela chorar e colorir a terra, na terra já habitavam cinco seres: os cinco Nada. Quando a Sereia deixou o rio-mar, passou a ter pernas, por instintos naturais. Ela andou entre as selvas e savanas, e sentia uma energia que lhe motivava a lutar contra aquele(s) Nada. Dentre os cinco Nada, existia um que controlava o Tempo, outro que controlava as coisas, e ainda um outro que controlava as acções. Ou seja, a Sereia não podia fazer alguma coisa em nenhum momento. Porque tanto os momentos, as coisas e os afazeres eram controlados por Nada. “Que triste”, lamentei. Chegou uma altura em que a Sereia começou a ficar farta daquela realidade que encontrou na terra. Sendo assim, pensou em voltar para o mar. Mas viu que fez um mal muito grande em sair, e não mais poderia voltar à sua antiga casa. Sendo assim, a Sereia começou a procurar por formas de lutar e eliminar cada Nada que lá habitava. “E como é que ela fez isso?”, perguntei, ainda lamentando. A Sereia-Mãe, procurava sempre por coisas e formas de eliminar cada Nada. “E como ela fez isso?”, questionei. 135


Ngola Mufasa

Ela procurou por cada coisa que fosse contra o Nada-Tempo. Mas não teve êxito, porque o Nada-Tempo era amigo muito íntimo do Nada-Coisa. E o Nada-Coisa, fiel que era, contou todas as coisas ao Nada-Tempo que a Sereia estava a planejar. Sendo assim, a Sereia fracassou na primeira missão para eliminar os Nada, e trazer algum algo. Com muita paciência, a Sereia começou a pensar em uma outra coisa para fazer. Mas não passou de pensamento, pois o NadaAcções era o irmão mais novo, e tudo foi reportar aos seus irmãos Nada. A Sereia ficou ainda mais desesperada, e começou a chorar em baixo de uma árvore. Sem ser sua intenção – aliás, ela nem sabia que isso aconteceria –, a árvore começou a ter cor e a ganhar vida. As folhas ficaram verdes, e os troncos e ramos castanhos: as vezes quando nós menos esperamos, é quando as coisas acontecem. A Sereia ficou muito feliz ao ver aquilo, pois nunca tivera visto antes uma árvore; ainda mais uma árvore colorida. A Sereia achou que podia colorir mais outras coisas: árvores, animais, e tudo que lá não estava. Só que as coisas eram controladas por um Nada. “E o que aconteceu depois?”, questionei. A Sereia pensou em uma ideia genial, mas esta ideia poderia lhe custar muitas coisas. Talvez até mesmo a sua própria vida e/ou a sua condição física. E custou… Continua no livro: A Sereia Perdida Na Terra.

136


Os Contos dos meus Sonhos

BIOGRAFIA

Ngola Mufasa, pseodónimo artístico-literário de Ismael Chipululo, que nasceu aos 24 de Dezembro de 2003 (16 anos). É artista, escritor e palestrante, estudante de Língua Potuguesa, graduado em Inglês pela Academia de Línguas do Grupo Educacional Chamuanga. É membro e um dos fundadores da ALEK (Associação de Letras do Kuito).

137


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.