Anais Des_ XI Ciclo de Investigações em Artes Visuais

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XI ciclo de investigações em artes visuais

des_ 29, 30 e 31 de agosto de 2016 Florianópolis Coordenação Geral: Profa. Dra. Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva Organização: Airton Jordani Jardim Filho, Aline Hubner Freitas, Ana Paula Sabiá, Carolina Ramos, Clarissa Santos, Cyntia Werner, Elisete Moccelin Machado, Fábio Salun, Fábio Wosniak, José Carlos da Rocha, Juliano Siqueira, Kamilla Nunes, Kethlen Kohl, Leto William, Luciano Pereira Buchmann, Luiza Renata da Silva, Maristela Muller, Marli Henicka, Maryella Gonçalves Sobrinho, Mayra Flamínio, Mônica Hoff, Paulo Henrique Tôrres Valgas, Rafael Schultz Myczkowski, Silfarlem Junior de Oliveira, Tharciana Goulart da Silva, Vinícius Nepomuceno, Viviane Baschirotto Realização: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV. Anais XI Ciclo de Investigações em Artes Visuais do PPGAV / UDESC

des_ Florianópolis (SC) Realização: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV Organização dos Anais: Airton Jordani Jardim Filho, Carolina Ramos, Kethlen Kohl, Paulo Henrique Tôrres Valgas, Rafael Schultz Myczkowski, Tharciana Goulart da Silva Versão online: http://des-ciclo.tumblr.com/ ISSN: 1982-1875 Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Centro de Artes - CEART Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - PPGAV Coordenação: Profa. Dra. Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva Subcoordenação: Profa. Dra. Rosangela Miranda Cherem Técnico de Apoio a Coordenação: Alessandro da Silva Moraes

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SUMÁRIO

Apresentação ……………………………………………………….…….

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1 Artigos ….……………………………………………………………….

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1.1 Ensino das Artes Visuais ........……………………………………..

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1.2 Processos Artísticos Contemporâneos.…………………………… 94 1.3 Teoria e História das Artes Visuais .....…………………………… 179 2 Ensaios .…………………………………………………………………. 391 3 Oficinas .…………………………………………………………………. 437 4 Performance …………….………………………………………………. 456 5 Artigos (cont) ……..…….………………………………………………. 465

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APRESENTAÇÃO Ciclo de Investigações PPGAV é um evento organizado pelos discentes do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC. Aberto à participação de pesquisadores de outras Instituições de Ensino Superior (IES), estudantes e demais interessados. O Ciclo tem como objetivo a divulgação, o compartilhamento e a discussão da produção acadêmica atual, desenvolvida nas três linhas de pesquisa que compõem o programa: Ensino das Artes Visuais, Processos Artísticos Contemporâneos e Teoria e História das Artes Visuais. Dando continuidade aos eventos anteriores, o XI Ciclo de Investigações PPGAV prevê em seu programa a realização do evento nos dias 29, 30 e 31 de agosto de 2016, onde haverá apresentação de comunicações, oficinas, performances, exposições, falas de convidados(as), conferências e reflexões acerca da temática DES-. Nesta edição, o Ciclo traz como novidade as Micro-ações, que ocorrerão nos meses de junho a agosto de 2016, em datas diversas, que serão organizadas, realizadas e publicadas pelos discentes do PPGAV nas mídias e redes sociais. As Micro-ações operam como ações autônomas e, ao mesmo tempo, como uma chamada para a divulgação do XI Ciclo. O Ciclo estará aberto para qualquer pessoa, grupo ou coletivo que estejam interessados em participar, ou seja, o Ciclo continua aberto à participação de pesquisadores e estudantes, mas também estará aberto a demais interessados, mesmo que sem vínculo acadêmico. Com caráter plural, de discussão de pesquisas e ações em Artes Visuais, reafirmamos o desejo desse Programa de abarcar em suas atividades e linhas, uma diversidade de investigações que possam contribuir para a construção de múltiplos saberes em Artes Visuais e áreas afins. desatar;; desacordo;; desapropriação;; desborde;; desbunde;; desconfiguração;; descongestionante;; desigualdade;; desfazer;; descrever;; desterritorialização;; desterro;; desmemória;; desmatéria;; destempo;; desligar;; desconstrução;; desmonte;; desmanche;; desordem;; desdobramento;; descolonização;; desnorteado;; desumano;; desfoque;; desaparição;; desadequar;; desobedecer;; desmembramento;; desnaturalização;; desentendimento;; despreprarar;; desaprender;; desapego;; desassociar;; des_ No jogo gramatical, o prefixo é um afixo que se adiciona à esquerda de uma palavra com o intuito de alterar seu sentido original. Prefixos de negação como des_ , referem-se, mormente, à privação, ausência ou negação de algo, mas não somente. São, sobretudo, unidades linguísticas que têm como condição de existência gerar debate. Sendo assim, entender o des_ apenas como elemento de oposição a algo ou alguma coisa seria limitar seu próprio campo de atuação. Quando desafirmamos algo não estamos somente nos opondo a alguma coisa afirmada anteriormente mas estamos, principalmente, gerando (ou querendo gerar) debate sobre isso e, por conseguinte, criando novas afirmações. des_ é, portanto, mais do que um prefixo, um convite ao debate, um debate que não pretende nem o consenso nem o dissenso, mas a invenção de “um algo” que está porvir… Recorremos a este prefixo pelo simples fato de não ser ele um conceito fechado, uma palavra ou um signo com códigos armados historicamente. des_ é um prefixo que pode desarmar a si mesmo, e é esta capacidade de gerar infinitos e imprevistos debates que nos interessa discutir. Assim, nossa ideia é questionar e problematizar a maneira como, na arte e também em outros campos, recorremos a diversos conceitos que revertem o sentido original de verbetes - e, portanto, de compreensões e mundos - já estabelecidos. Para tanto, convidamos pesquisadores, professores, artistas, curiosos e interessados, do campo da arte e de outros campos de conhecimento, da pós-graduação e da graduação, da universidade e também de fora, a pensarem conosco sobre as possibilidades, a importância e a emergência do des_ em tempos atuais. Acreditamos que, coletivamente, as ideias, reflexões e processos políticos, poéticos e pedagógicos podem ganhar novos sentidos e gerar não apenas novos debates, mas novas práticas.

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A DESNATURALIZAÇÃO DO OLHAR A PARTIR DAS PAISAGENS DO ENTORNO

Aline Graziele Lang Resumo: O presente artigo tem por finalidade pensar a experiência educativa possibilitada através do curso de licenciatura em Artes Visuais. Este projeto teve como temática principal a Paisagem e suas representações. Onde buscou-se articular a arte adentrando o ambiente escolar e visando a desnaturalização do olhar, possibilitando outras formas de percepção dos estudantes às paisagens que encontram em seu cotidiano, rompendo condicionamentos e apresentando outras modos de observá-las. Palavras-Chave: paisagem, desnaturalização, educação. Abstract: This article has for purpose think the educational experience possible through the “degree” course in Visual Arts. This project had as main the me the landscape and its representations. In which we attempted to articulate the art entering the school environment and with a view to denaturalization look, allowing other forms of perception of students to the landscapes they find on their daily life, breaking conditioning and showing other ways to observe them. Keywords: landscape, denaturalization, education.

“Qualquer vida é muito dentro da floresta” Se a gente olha de cima, parece tudo parado. Mas por dentro é diferente. A floresta está em movimento. Há uma vida dentro dela que se transforma sem parar. Vem o vento. Vem a chuva. Caem as folhas. E nascem novas folhas. Das flores nascem os frutos. E os frutos são alimento. Os pássaros deixam cair as sementes. Das sementes nascem novas árvores. E vem a noite. Vem a lua. E vêm as sombras que multiplicam as árvores. As luzes dos vagalumes são estrelas na terra. E com o sol vem o dia. Esquenta a mata. Ilumina as flores. Tudo tem cor e movimento. (Chacom, 2004, p. 10)

Neste artigo apresentarei um relato de experiência educativa no âmbito das Artes Visuais. A realização deste projeto se deu em cinco encontros, ocorridos semanalmente, na Escola Estadual de Ensino Básico Professora Margarida Lopes, na cidade de Santa Maria, RS. Em uma turma de 7ª ano do ensino fundamental, com aproximadamente 22 estudantes, de idades entre 12 a 14 anos. A partir deste gênero clássico das belas artes–a paisagem, busquei subsídios e articulações para trabalhar com a temática explorando questões que se fazem presentes

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cotidianamente no cenário dos estudantes e estimulando outras percepções e relações com seu entorno propondo uma desnaturalização do olhar. A proposta desenvolvida no âmbito das Artes Visuais teve como foco uma experiência em educação com um “outro” olhar sobre as paisagens que nos circundam. O conceito de paisagem é pensado a partir de Anne Cauquelin (2007, p. 29), que salientaque “’paisagem’ se constitui como um conjunto de valores ordenados em uma visão e preexiste a nossa consciência, ela nos é dada anterior a toda cultura”. Nos fala ainda da paisagem como “intermédio de uma conversação infinita, veículo de emoções cotidianas, invólucro de nossos humores”. Dos quais nos desperta “Sentimentos tanto mais poderosos quanto a memória subjetiva ligada às impressões da infância, á língua que falamos e ao contexto em que aprendemos a decifrar o mundo faz causa comum para objetivar a percepção”. Cauquelin (2007, p.29) ressalta ainda a grande dificuldade que possuímos de transpor nossas aprendizagens, pois de certa maneira sempre retornamos ao “jardim perfeito, ao rio, ao oceano, a montanha”, ou seja, as paisagens em seus modelos tradicionais, com base nisso, é que proponho essa desnaturalização do olhar, termo recorrente na linguagem e na prática fotográfica, e que Mendes Neto e Oliveira (2015, p.9) definem como “o ato de despir-se de visões estereotipadas e conceitos pré-formados, na tentativa de realizar um entendimento mais abrangente do mundo”.

Entre tantas possiblidades, a desnaturalização do olhar as paisagens. Em meio a muitas incógnitas, pensando em de que modo e quais problematizações seriam interessantes de agenciar no âmbito educacional através de ações pedagógicas é que se deu a escolha da temática. Tendo em vista vários temas de interesse e qual seria a relevância ao âmbito das Artes Visuais, a escolha se deu partindo de experiências próprias, de modo a continuar as pesquisas que vinhamsendo desenvolvidas plasticamente em minhatrajetória do ateliê de Pintura, nas disciplinas de Orientado I, II, III e IV. Neste processo de formação acadêmica onde a pesquisa em pintura foi desenvolvida, foram realizados trabalhos com referência a temática da paisagem, onde buscava representar lugares por onde passava, aqueles dos quais recordavam-me momentos e instantes de minha vida. Pois compreendo paisagem, como aquilo que podemos ver e sentir através de nossos sentidos e que vai de encontro com as subjetividades de cada indivíduo e o meio em que está inserido. Assim como diz

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Cauquellin (2007, p.103) “A percepção da paisagem é uma ‘evidência’, uma injunção implícita [...]. Ela esta dada, apresentada aos sentidos, como uma fruição, um repouso”. A partir de conversas e reflexões tidas com o orientador do ateliê de pinturainiciei um processo deproblematização a respeito do que estava sendo produzido, de modo a perceber o quanto os elementos tradicionais das paisagens desenhadas e tidas como “certas” na infância estavam arraigadas, impregnadas em minhas representações, não conseguindo medesprender, desgarrar deles, cito como exemplo as colorações de azuis dos céus bem como das vegetações com predominância dos verdes, e ainda árvores com troncos e folhagens geralmente representadas igualmente.

Figura 1: Fotografia da pintura realizada por mim no Orientado I. Sem Título – óleo sobre tela – 2014/A Foto: Acervo pessoal

Assim inicieium processo de desnaturalização do olhar, que me propiciou uma reflexão do olhar e me encaminhou ao conceito dedesaprender, não no sentido de apagar o que foi aprendido, mas de questioná-lo, de perceber de outras maneiras, dessa forma,tomo como referência Adriana Fresquet, que ressalta, Desaprender, para alguns, poderia querer dizer aprender novas coisas ou – roubando da física – aprender na mesma direção, mas com sentido contrário[...] Desaprender é algo mais que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema, assunto, valor, questão da vida. Desaprender pode até indicar erradamente, a ideia de esquecer o aprendido. Porém, o seu significado e intenção é exatamente o contrário. Tal é a força da irreversibilidade “lembrar” as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas. Desaprender é aprender a não querê-las mais para si; a não outorgar-lhes mais o estatuto de verdade, de sentido ou de interesse [...] Desaprender é animar-se a questionar tais verdades. Desaprender é também, fazer o esforço de conscientizar todo o vivido na contramão, evocando o impacto histórico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada. (Fresquet, 2007, p. 49).

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Dessa maneira o intuito de minhas problematizações em relação aos elementos constituintes de minhas representações de paisagens, era justamente desnaturalizar, desaprender o que estava arraigado, não mais as tomando como “verdades”, mas como objetos de questionamentos, de problematizações, de modo que pudesse construir outras percepções em relação às paisagens que me circundam. Este exercício de problematizar, dialogando com o que Garlet, Cardonetti e Oliveira (2014) definem a partir de Foucault, “aprofunda o olhar”, pois “a problematização, diferente da interrogação, exige de nós um distanciamento, necessário para que haja uma desnaturalização, uma desconstrução de noções como verdadeiro/falso, certo/errado, bonito/feio. Esse distanciamento nos permite repensar o que é normativo, questionar de onde surgiu”. Ao tomar as paisagens como materialidade para estudo, passei a novamente a rever o modo como a representava, fazendo exercícios de observação, construção e desconstrução das paisagens, problematizando estas questões e conceituando seus diferentes modos de representação. Isso me fez enxergar “novos horizontes”, percebendo outras maneiras de representar, tornando as composições mais interessantes, como salientava meu orientador.

Figura 2: Fotografia da pintura realizada por mim no Orientado IV. Sem Título – óleo sobre tela – 2015/B Foto: Acervo pessoal

Neste momento o universo de possibilidades tomou maiores proporções, fazendo-meobservar as paisagens mais atentamente e perceber sua diversidade de cores, formas e movimentos, e deixando que atravessamentos, transbordamentos ocorressem, mobilizando minhas percepções e o modo em que as apreciava. Tendo em vista estas dificuldades de se desprender e de desaprender as paisagens tradicionais, encontrei motivação para buscar e pesquisar, problematizando com um maior público e

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possibilitando a desnaturalização do olhar que Mendes Neto e Oliveira nos dizem que podemos entender como, o rompimento com tudo aquilo que estamos de alguma forma pré-dispostos a pensar ou perceber. Ou seja, é o ato de despir-se de visões estereotipadas e conceitos pré-formados, na tentativa de realizar um entendimento mais abrangente do mundo, interpelando diferentes ângulos, enxergando diferentes contextos (MendesNeto e Oliveira, 2015, p. 9).

Desse modo este projeto objetivou estimular outras formas de percepção dos estudantes às paisagens que encontram em seu cotidiano, rompendo condicionamentos e apresentando outras possibilidades de enxergá-las. Com base nisso a problemática instituída foi: De que modo o estudo da paisagem e suas representações podem possibilitar aos estudantes, a problematização,a desconstrução de estereótipos e a desnaturalização do olhar em relação ao seu entorno? Partindo do pressuposto de que na infância as representações da paisagem se constroem com elementos estereotipados, condicionados, nos quais se pode observar em algumas experiências.

Sobre o projeto e seus desdobramentos Com base nestes tangenciamentos, atravessamentos e interpelações, que busquei problematizar com os estudantes nesta experiência educativa. Durante os encontros os estudantes foram questionados sobre o que entendiam acerca do conceito de paisagem e suas modalidades e a maneira como costumam representá-las. No primeiro encontro que sucedeu cada estudante respondeu ao questionamento: O que você entende por paisagem? As respostas foram as seguintes: ”é tudo aquilo que podemos ver”, “são as montanhas, as árvores, o céu”, “ pode ser as casas, as plantações”,” é o que a gente pode ver quando olha para fora da janela”. Dando prosseguimento ao projeto, desenvolvi com os estudantes a segunda atividade de forma mais dinâmica, onde apresentava elementos constituintes de uma paisagem, como céu, montanhas, árvores, construções, pedras, e os estudantes teriam que me dizer quais as características que lhes vinham à mente, com isso, eu, juntamente com os estudantes, construímos um esquema no quadro negro, para posteriormente problematiza-lo, desnaturalizar o que havia sido dito produzindo aberturas no olhar. Esta dinâmica tinha como objetivo perceber, se de fato, os estudantes carregavam consigo mentalmente, as representações e características de paisagens tradicionais. O

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que notou-se, no decorrer desta atividade, foi que os discentes ressaltaram outras características além das utilizadas no “senso comum”, mas afirmaram que em suas representações, em sua maioria, não as utilizavam, pois com os céus azuis, as nuvens brancas, as árvores verdes e circulares, seus trabalhos tornavam-se esteticamente mais “bonitos” e “realistas”.

Figura 3: imagens do primeiro encontro realizado com os estudantes do 7º ano onde foram questionados sobre o entendia por paisagem.Fonte: Arquivo Pessoal.

Figura 4: imagens do esquema construído no quadro negro a partir das informações dadas pelos estudantes. Fonte: Arquivo Pessoal.

Com a utilização de visualidades, foram apresentadas, diferentes concepções de paisagem,como urbana, rural, cultural, imaginária,isso através de imagens fotográficas e de obras de artistas com as mais diversas representações. Dessa maneira, buscou-se apresentar aos estudantes, algumas representações de paisagens feitas por artistas no decorrer da história da arte, ampliando as possibilidades e ressaltando que as paisagens não necessitam apenas serem representadas em um caráter realista.

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Procurei promover reflexões acompanhadas de processos do desenvolvimento de pensamentos críticos e práticas do olhar diferenciadas e instáveis. Neste sentido Kastrup (2005) nos coloca ao encontro de “novas formas de conhecer” e com isso aprender, relacionando estudos a fim de buscar entender diferentes transformações presentes na sociedade, bem como nas paisagens que nos circundam e seus modos de representação na história da arte.

Figura 5: imagens com algumas das visualidades apresentadas aos estudantes contendo as diferentes concepções de paisagem. Fonte: Arquivo Pessoal.

Contudo, foi proposto aos estudantes que produzissem suas próprias narrativas realizadas a partir de equipamentos fotográficos, dos quais percorreriam o ambiente escolar registrando as paisagens circundantes, que posteriormente seriam utilizadas em outra atividade, onde seriam estimulados a desconstruir as paisagens registradas, acrescentando elementos dos quais não costumam utilizarem suas narrativas. De modo que, finalizando este projeto,eu e os estudantes pudéssemos refletir e problematizar, pois como ressalva Mendes Neto e Oliveira (2015, p.6) “A reflexão, então, é primordial para a criatividade”, o que estas atividades de desconstrução e desnaturalização lhes proporcionaram, e se de fato conseguiu-se estimular outras modos de percepção as paisagens. Infelizmente o projeto não conseguiu ser finalizado devido a paralisações dos professores da rede pública estadual de ensino, dos quais possuíam diversas reivindicações, que vinham ocorrendo há meses. Desta maneira foi possível à concretização de apenas cinco encontros, sendo estes potencialmente ricos e de um imenso aprendizado, acredito que recíproco.

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Ainda que não seja possível afirmar definitivamente que pontos positivos ou negativos se destaquem, a problematização sobre a desnaturalização, o desaprender as paisagens em seus modelos tradicionais, se faz relevante, sendo alvo de discussões, pelo fato de poder tomar como ponto de partida o contexto, o entorno dos estudantes, e ainda sendo este tema recorrente na História da Arte. Ficou evidenciado o envolvimento dos estudantes quando questionados sobre as peculiaridades do tema. Quando incentivados a compor suas próprias narrativas, foi possível perceber composições plásticas carregadas de subjetividades. Segundo Neves (2008, p. 21) “A paisagem é um recorte, é uma seleção de parte da realidade posta a priori ao olhar do artista ou de qualquer observador, é um olhar especializado sobre a realidade física que cobre e envolve o planeta. Faz parte do mundo. Nasce da cultura”. E assim concluo, ressaltando que a paisagem é tema propulsor para agregar práticas educativas mobilizadoras e produzir outras formas de ver e sentir o entorno, mas afirmo o quanto é necessário essa desnaturalização do olhar para que seja possível ampliar essas percepções.

Considerações Finais Como vimos às paisagens estão presentes em nossas memórias e vivências desde o momento em que nascemos e muito antes das definições de seu conceito. Como Cauquelin (2007, p. 39). elucida,“A paisagem participa da eternidade da natureza, um constante existir, antes do homem e sem dúvida depois dele”. Suas noções acompanham a existência humana lá nos primórdios, precisamente pelo fato de que os seres humanos dependiam de suas relações com o meio em que viviam para sua sobrevivência. Retomando a problemática, de que modo o estudo da paisagem e suas representações podem possibilitar aos estudantes, a problematização, a desconstrução de estereótipos e a desnaturalização do olhar em relação ao seu entorno? Posso dizer que busquei tangenciar estas questões dando suporte aos estudantes para problematizarem o espaço escolar, sua cidade, as paisagens que os circundam e o modo com que as representam, possibilitando e estimulando a desnaturalização do olhar, de modo a romper com o que estamos pré-dispostos a representar, e despindo-se de visões estereotipadas, condicionada, tentando um maior entendimento de mundo e outras percepções de nosso entorno, interpelando diferentes contextos.

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Partindo do pressuposto de que na infância as representações da paisagem se constroem com elementos estereotipados, condicionados, nos quais se pode observar em algumas experiências, buscamos subsídios e articulações para trabalhar com a temática explorando questões que se fazem presentes cotidianamente no cenário dos estudantes. Isso se deu através de problematizações, tangenciamentos, visando outras formas de percepção dos estudantes as paisagens que encontram em seu cotidiano.

Referências: CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem; tradução Marcos Marcionillo. – São Paulo: Martins, 2007 – Coleção todas as Artes. CHACOM, Alex Peirano. TICUNA: Pinturas da Floresta/ trad. Liv Sovik. Centro Cultural Banco do Brasil - RJ: 2004. p.10. FESQUET, Adriana Mabel. Imagens do desaprender – uma experiência de aprender com o cinema: Rio de janeiro, Booklink, 2007. GARLET, Francieli Regina, CARDONETTI, VivienKelling. OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. A problematização como possibilidade avaliativa: Blumenau, Atos de Pesquisa em Educação - v. 9, n.3, p.662-680, set./dez. 2014. KASTRUP, Virgínia. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devirmestre. Educação & Sociedade: São Paulo, v.26, n.93, p.1273-1288, set-dez, 2005. MENDES NETO, Antenor Ferreira. OLIVEIRA, Michelle Roxo de. Possibilidades Criativas no Jornalismo: limites e brechas. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro - RJ – 4 a 7/9/2015

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DESDOBRAMENTOS DO OBJETO PARA A PRÁTICA - REVERBERAÇÕES DE CONCEPÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ARTE PARA A MEDIAÇÃO

Julia Rocha Pinto

Resumo: O presente texto considera conceitos balizadores da produção artística contemporânea que encontram eco nas práticas educativas realizadas no campo museal, identificando no exercício dos mediadores aspectos que se correspondem ao próprio objeto que trabalham junto aos públicos das instituições. As noções de pensamento crítico, reflexão e autonomia serão consideradas dentro do campo da produção artística e da arte/educação, buscando identificar características ressonantes entre eles. Palavras-chave: contemporaneidade, mediação cultural, museus. Abstract: This paper considers concepts of contemporary artistic production that are echoed in educational practices carried out in the museum field, identifying aspects of the mediators exercise that correspond with the object that museums work in relation with public. Critical thinking concepts, reflection and autonomy will be considered within the field of artistic production and art/education, seeking to identify resonant characteristics in between. Key words: contemporary, cultural mediation, museums.

As propostas artísticas engendradas na contemporaneidade e as tendências educativas empregadas no âmbito da mediação cultural desenvolvem formas e ações semelhantes entre si, que inclusive se confundem e contaminam mutuamente. A produção, circulação e divulgação dos artistas recorrentemente se assemelha com estratégias próprias das práticas de recepção aos visitantes que são efetivadas no campo dos museus. O rompimento com as tradições vigentes durante o século XX permitiu que a arte se expandisse para além da divisão nas linguagens tradicionais como escultura, pintura, fotografia e artes gráficas, pondo em questão as fronteiras do sistema de arte e ampliando a definição dos objetos artísticos. O entendimento de arte passou a se modificar internamente, não apenas em sua produção, mas também nos meios de promoção e divulgação destas obras fronteiriças. Referências expressivas e amplamente estudadas destes rompimentos estão em artistas como Marcel Duchamp e Andy Warhol, que trouxeram quebras para a tentativa de uma linearidade na História da Arte, levantando questões sobre o entendimento do campo, a

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valorização do mercado e os aspectos matéricos envolvidos na produção. Ainda hoje, contudo, os paradigmas são rompidos com desconstruções e questionamentos como de Andrea Fraser, Fred Wilson ou Damiem Hirst. Em uníssono com as mudanças no campo da produção, as estratégias utilizadas na educação em museus encontram semelhanças que condizem com o que é seu próprio objeto de análise. O domínio do qual trata passa a ser não apenas conteúdo, mas também um convite à proposição de metodologias que respondam a aspectos latentes desta produção. Portanto, por mais que os museus continuem perpetuando os objetivos primordiais que fundamentaram a gênese de sua constituição, trabalhando a serviço do colecionismo, da conservação e da exposição dos objetos, somadas a estas funções algumas instituições culturais passaram a ampliar as possibilidades de exercícios, reverberando também aspectos próprios daquilo que expõem. Neste sentido, na contemporaneidade os museus e seus educadores buscam que as práticas voltadas

para acolhimento dos visitantes se constituam como

ressignificações dos objetos artísticos que se fazem presentes. Os propósitos de mediação cultural ressoam características inerentes da produção artística que apresentam, fazendo com que as propostas educativas hoje sejam um reflexo dos conceitos que balizam a produção artística contemporânea. Neste texto serão analisados três entendimentos que são emprestados para a mediação oriundos da teoria e da prática dos objetos de arte, nomeadamente: o pensamento crítico frente ao contexto e à questões tangenciais, a reflexão em torno das práticas que orientam e a autonomia frente aos sistemas discursivos que operam estes dois campos, o da arte e o da educação. Estes três focos foram escolhidos a partir de exemplos práticos onde se visualizou aspectos da contemporaneidade que ressignificaram o exercício da mediação. O propósito, contudo, não é de encarar uma área como subserviente da outra, ou como uma representação explicativa do que a obra ou o artista quis dizer. Não se trata de conceituar a prática como uma curadoria educativa nomenclatura recorrente em grandes exposições brasileiras -, mas de pensar nas propostas que têm sido criadas e que respondem a questões latentes da contemporaneidade. Neste aspecto, Mônica Hoff (2013, p. 75) problematiza: Ainda se fala da mediação como prática educacional. Assim, como se fala da curadoria como prática artística por excelência. Via de regra, a mediação

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ainda é percebida, e concebida, como uma ilustração da arte. Logo, como uma tradução “literal”. Se, por um lado, mudou a maneira de abordar o objeto (de estudo, de análise, de arte); por outro, permaneceu a distância em perceber-se como processo igualmente poético e discursivo. Ou seja, mesmo com o boom recente de práticas artísticas que se valem da pedagogia e que criam estratégias discursivas muito semelhantes, ou mesmo idênticas, à prática da mediação, ainda assim, são raras no território brasileiro as experiências em/de mediação que atuam numa zona de autonomia poética não condicionada a metodologias pedagógicas. E as metodologias artísticas – pergunto-me todos os dias ao levantar –, onde estão?

O ponto fulcral da reflexão construída se centra mais nos processos de mediação, pensando do ponto de vista dos educadores e de sua relação com os públicos. A análise se dará na via do que a arte contemporânea confere como abordagem para a educação, criando sentidos que não são de um ou outro campo, mas criam um espaço entre, um novo âmbito de atuação da mediação com a postura contemporânea. Importante compreender que esta contemporaneidade não se determina a partir de um marco temporal pré-definido, mas se caracteriza como um modo de atuação. Como afirma Bishop (2014, p. 59), “The contemporary becomes less a question of periodization or discourse than a method or practice, potentially applicable to all historial periods”, o que desvincula as questões listadas neste texto como exclusivas de museus de arte contemporânea. O que se considera nesta reflexão, portanto, é que mesmo frente a instituições que trabalham com objetos históricos, científicos, tecnológicos ou etnográficos, a postura contemporânea pode estar vinculada com o pensar sobre estes conteúdos e o dialogar diante deles com os públicos. Ainda de acordo Bishop (2014, p. 6) é importante considerar: “Today, however, a more radical model of the museum is taking shape: more experimental, less architecturally, determined, and offering a more politicized engagement with our historical moment”.

des.compreensão A partir deste descerramento do tempo que foi apontado por Bishop (2014) é que se começa a pensar que conceitos próprios da produção e da teoria da arte podem ser encarados como desdobramentos para a prática educativa que mediadores culturais criam com seus públicos. A noção de um pensamento crítico frente ao contexto que envolve os artistas ou o campo é recorrente dentro da produção contemporânea. Artistas questionam os limites entre linguagens, os domínios do campo e fazem, inclusive, que

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museus encarem desafios frente à sua missão, considerando aspectos da conservação e expografia que são recorrentemente problematizados pela arte. Da mesma forma que a arte contemporânea assume seu caráter fortemente político e se afasta de qualquer impressão de neutralidade que se possa provocar, as atividades de mediação cultural também se vêm desafiadas por estas questões. O discurso como forma de perpetuação de verdades continua a existir, contudo, pensando nesta perspectiva crítica, existe o questionamento, a relativização, o debate em torno das perguntas que são impostas. Honorato (2016, p. 6) inclusive afirma que a inexistência do caráter político na mediação torna-a completamente distinta daquilo sobre o qual ela fala: A contradição entre a efetividade política da mediação educacional e a sua cooptação pela lógica corporativa parece neutralizada quando a mediação, a título de inclusão ou universalização do acesso aos bens culturais, somente confirma a posição de cada um dos termos que ela relaciona: de um lado, o artista (e sua obra) que pensa e produz, e de outro, o público que aprende e consome.

A prática educativa realizada nos museus que associa conceitos da mediação cultural pode em si ser considerada uma forma de reverberação do pensamento crítico da arte para as atividades educativas. Mas para além do posicionamento construtivo que se opera neste campo, pode-se também associar o caráter político que as práticas de mediação elaboram. Neste sentido, podemos refletir sobre os propósitos que tem sido desenvolvidos pela Whitechapel Gallery. A instituição está situada em um ponto fulcral da capital inglesa, no limite entre a zona bancária e extremamente rica de Londres com um bairro amplamente habitado por imigrantes de diversos países. Ao invés de ignorar esta localização, a galeria pensa justamente em estratégias educativas que sejam significativas para estes dois pólos que circundam a instituição, criando atividades, exposições e abordagens diretamente focadas nos públicos potenciais e circundantes. Diante deste desafio, a Whitechapel passou a programar suas atividades voltadas explicitamente para estes imigrantes vizinhos, contemplando suas interpretações na elaboração de exposições e trazendo seus objetivos como mote para criação de atividades. Por trabalhar em uma dinâmica diferenciada onde nem existe o modelo de visita com educador ao qual estamos acostumados, a instituição passou a trabalhar com materiais educativos que são utilizados pelos professores e pelo público em geral, onde

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as propostas de mediação são próximas do que a comunidade do entorno acredita e personifica na produção contemporânea que é exposta no espaço da galeria. Estes recursos são elaborados em colaboração com os visitantes, que mais do que espectadores se tornam participantes ativos na ocupação, tornando seus discursos parte do repertório museal que é apresentado aos públicos potenciais. Com este desenvolvimento, a Whitechapel associa a noção de pensamento crítico como metodologia a outro aspecto pensando neste texto, a questão da autonomia.

des.encadeamento No momento em que os visitantes são protagonistas do seu próprio processo de mediação, como acontece no trabalho com os materiais de apoio que a Whitechapel Gallery disponibiliza, se faz presente a noção de autonomia que se espelha dos procedimentos artísticos. Aqui se refere a autonomia que os artistas contemporâneos conquistaram tanto em sua produção e no fazer de sua poética, como na circulação de suas obras dentro de circuitos próprios criados por eles. Hoje o artista potencializa e comercializa suas obras dentro de um circuito que antes era completamente controlado por galeristas e colecionadores. Com esta mudança a poética do artista alcança uma independência em relação aos sistemas operadores de controle, abrindo espaço para uma produção mais autônoma e, possivelmente, mais autoral. Na questão da mediação pode-se considerar a autonomia em dois diferentes aspectos: primeiramente a partir da mudança de posicionamento dos visitantes, que conquistaram uma independência ao se programar exposições mais participativas. Em segundo lugar temos a autonomia dos mediadores culturais, que nos últimos anos tem se modificado em sua formação e, sobretudo, em sua atuação. O primeiro aspecto, da autonomia do visitante, se tornou mais frequente a partir da década de 1990, tal como aponta Howell (2009, p. 147), quando a educação realizada em espaços expositivos passou a encorajar a independência do visitante, o envolvendo em processos de construção de significados e questionando inclusive a função do museu. Esta nova configuração proposta pelo autor provocou uma convergência entre curadores e educadores onde, dentro de museus de artes, a investigação dos artistas passa a ser foco da postura participativa do público.

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Esta nova configuração se faz presente em diversas instituições, onde há o convite para que os visitantes sejam mais participativos e incluam aspectos próprios de seu repertório na leitura das obras. A aproximação com as realidades dos visitantes tornam a visitação mais significativa, transformando a visão de museus como algo inacessível e tornando-os mais habitáveis. Desta forma, o museu “modifica o modo como os discursos são apresentados, diluindo as suas concepções de autoridade interpretativa e provocando a autonomia entre os seus desígnios e as suas ações com os visitantes”, como coloca Fróis (2015, p. 66). E para além da autonomia do educador que foi exemplificada a partir da experiência da Whitechapel e do que Howell (2009) coloca, reverberando a ideia de autonomia do artista frente ao campo que se faz presente, pensa-se aqui na autonomia que os educadores de museus têm conquistado contemporaneamente. Uma proposta desta modalidade de autonomia é observada no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, situado na cidade do Porto, em Portugal, onde os educadores demonstram autoria no desenho de ações que extrapolam o modelo de visita guiada e que demonstram as particularidades próprias de cada profissional. Em Serralves atuam educadores de formações múltiplas, configurando uma equipe bastante heterogênea que desenvolve propostas aos visitantes que respondem a esta variação. Além da formação diversificada, no Museu os educadores lidam com uma questão que é comum a diversos museus, a programação de atividades em dissonância com o calendário de exposições. Esta questão poderia ser vista como um impedimento para a criação de propostas educativas, mas em Serralves são encaradas como potencialidades. Os educadores do Museu pensam a partir das questões que são colocadas pela produção contemporânea - tal como no presente texto - e, partindo de aspectos mais gerais, programam as oficinas e os seminários que serão realizados ao longo do ano, como indicam Leite e Victorino (2008). Construídas desta forma, as propostas são bastante críticas e abertas, tornando os encontros com os públicos um momento de discussão em torno das perguntas que são estimuladas pela arte contemporânea. A questão autoral conquistada pelos educadores também se torna um meio de potencializar a participação ativa dos visitantes, associando as duas concepções de autonomia que foram aqui apresentadas. Desta forma, a autonomia está implícita no processo de aprendizagem, onde os educadores têm um papel atuante, mas o grupo

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também age no sentido de aquisição de conhecimentos numa construção pessoal e coletiva. Na perspectiva da educação, Leite, Malpique e Santos (1989, p. 80) afirmam ainda que a autonomia é um fator relevante “no sentido de independência no trabalho em grupo referente a decisões, embora sempre sujeita a um constante desenvolvimento no evoluir do processo, relacionando com fatores contextuais, exigências sociais e aspectos de ordem afetiva”.

des.consideração Um último aspecto proposto para este texto diz respeito à reflexão, ao ato de se auto referenciar e de criar um repertório genuíno daqueles que compõem o campo. A própria noção de poética do artista poderia ser encarada como esta reflexão, uma vez que ao ressignificar e revisitar aspectos da sua produção que são recorrentes, os artistas estão refletindo e transformando aquilo que realizam. Uma instituição que atua sempre no propósito de reconsiderar e refletir sobre suas práticas é a Tate Gallery, também situada em Londres. Desde 2011 o setor educativo que atua nas quatro unidades da instituição (Tate Modern, Gallery, Liverpool e St. Ives) tem desenvolvido um projeto para avaliar e refletir suas práticas, o Transforming Tate Learning. O projeto se constitui a partir de métodos de investigação que analisam experiências pontuais elaboradas na instituição. O programa foi desenvolvido para as ações que são operadas dentro do Museu, mas desde 2013 estão também disponíveis no site da instituição para que outros serviços educativos pensem suas práticas e coloquem questões à Tate do que foi viável ou não em seu próprio trabalho, como sugere Pringle (2013, p. 9). Neste sentido a avaliação posiciona a equipe de educadores no centro do processo e se torna parte vital da aprendizagem. O modelo combina ação e reflexão, onde as mudanças são promovidas por meio do diálogo e se constroem em diferentes etapas. A primeira delas busca identificar o que é necessário para promover a aprendizagem, em seguida reconhecendo que práticas são precisas para que este exercício aconteça. Em um terceiro estágio, identifica-se elementos, processos e mecanismos que ajudem a compreender o que acontece durante a experiência. Em seguida, começam-se a esboçar mecanismos que possibilitem a compreensão do que

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acontece. Por último, utiliza-se o que foi desenvolvido durante o exercício para aplicar nas práticas futuras. Esta série de passos para avaliar o exercício educativo se configura também como uma abordagem de mediação. Neste sentido, o meio para realizar a aproximação dos públicos com o objeto artístico se configura também como a própria estratégia de avaliação desta relação entre mediador, visitante e objeto artístico. Bem como foi pensado no início deste texto, os meios de trabalho se assemelham e mimetizam com o próprio objeto do qual se fala.

des.dobramentos Diante das experiências mencionadas pretende-se assumir que o trabalho educativo realizado nos museus não precisa ser exclusivamente focado na recepção dos visitantes e nem ao menos recorrer à práticas explicativas para aproximá-los do que é exposto. O propósito é justamente que os procedimentos empenhados durante a produção contemporânea sejam significativos e ressoem na relação entre mediador e público. Interessante é perceber o quanto os limites entre as propostas artísticas e os exercícios de mediação encontram-se diluídos, oferecendo não só a oportunidade de entrada dos artistas nos museus pelo viés educativo, mas também propostas elaboradas para os públicos num sentido mais crítico e participativo, que convoca os educadores e os públicos a pensar reflexiva e ativamente no espaço do museu. Outros aspectos não contemplados nesta reflexão poderiam ainda ser motivadores para uma prática educativa que seja consonante com as problemáticas impostas na contemporaneidade. Esta reflexão se procedeu a partir das experiências observadas no campo, fazendo o caminho do exercício para a teoria, e não fundamentando uma prática utópica a partir do que se acredita viável ou mais produtivo para a relação educativa realizada nos museus. Produzir encontros, provocar experiências, estimular a participação e promover o acesso são alguns dos propósitos que envolvem os objetivos de atuação dos setores dos museus que são responsáveis pela educação. Mas o que cabe de questionamento para as estruturas discursivas nestes propósitos? O que a contemporaneidade impõe como desafio para a educação nos museus?

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A contemporaneidade não cerceada por um marco temporal se configura mais nesta perspectiva de provocação, ressignificando não somente os produtos que são elaborados neste tempo, mas também o meio como se pensa estes resultados e as formas possíveis de se chegar até este fim. Nesta ampliação da noção de contemporâneo abre-se mais espaço para as pluralidades de leituras e as camadas de interpretação, tornando a mediação um exercício dos públicos e não para os públicos. Referências: BISHOP, Claire. Radical museology or What’s ‘Contemporary’ in Museums od Contemporary Art? Londres: Koenig Books, 2014. FRÓIS, João Pedro. Os Museus de Arte e a Educação: Discursos e Práticas Contemporâneas. Disponível em http://repositorio.ul.pt/handle/10451/2353. Acesso em: 19 fev. 2015. HOFF, Mônica. Mediação (da arte) e curadoria (educativa) na Bienal do Mercosul, ou a arte onde ela “aparentemente” não está. Revista Trama Interdisciplinar, 4, 69-87, 2013. HONORATO, Cayo. Expondo a mediação educacional: Questões sobre educação, artecontemporânea e política. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ars/v5n9/10.pdf>. Acesso em: 08 Jul. 2016. HOWELL, Caro. Space: the final frontier? In:SHARMACHARJA, Shamita (org.).A manual for the 21st century art institution. Londres: Whitechapel Gallery, 2009. LEITE, Elvira;MALPIQUE, Manuela;SANTOS, Mílice Romano dos. Trabalho de projecto Aprender por projetos centrados em problemas. Porto: Edições Afrontamento – Coleção Ser Professor, 1989. LEITE, Elvira; VICTORINO, Sofia. Serralves Projetos com escolas. Porto: Fundação de Serralves, 2008. PRINGLE, Emily (org.). Transforming Tate Learning. Londres: Paul Hamlyn Foundation, 2013.

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DESNATURALIZAR O OLHAR SOBRE AS TEMÁTICAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NO PROCESSO EDUCATIVO EM ARTES VISUAIS

Letícia Ravanello Resumo: O presente estudo tem por objetivo tensionar questões relacionadas à gênero e sexualidade como temáticas do processo educativo em artes visuais, a partir da perspectiva da cultura visual. A concepção de desnaturalizar perpassará a escrita deste artigo, pensado-a como um ato educativo, onde desnaturalizar-se significadeslocar o olhar para com o outro, em um movimento de relações, no qual faz parte deste processo a subjetivação. Aonde, busco nos meus estágios curriculares, investigar como ocorre essa subjetivação, por meio de imagens oriundas do campo artístico e da publicidade, sob a perspectiva de estudo da cultura visual. Em vista disso, desnaturalizar o olhar sobre estereótipos construídos a cerca destes artefatos culturais produzidos pela cultura, arte e publicidade, busca-se potencializar problematizações das temáticas de gênero e sexualidade no ambiente escolar, pois é no cenário educacional que encontramos também um espaço de produção do conhecimento e outros saberes. Neste sentido, este artigo é o resultado de um projeto de pesquisa e ensino do estágio supervisionado. A metodologia do trabalho admitiu a prática como pesquisa, a bricolagem, perspectiva cunhada por Kincheloe e Berry (2007) que consiste na flexibilidade de o investigador, fazer uso de diferentes abordagens metodológicas que dialogam entre si para dar conta de seu objeto de pesquisa. Serve como meios na pesquisa, com o intuito de justapor diferentes ideias, conceitos e ações em relação as temáticas abordadas. Intuo a necessidade, nesses espaços de saberes, como é imprescindível trabalhar com as imagens, para estabelecer relações, a partir da visualidade, que instigue para outros apontamentos. Palavras-chave: Gênero, Sexualidade, Desnaturalizar, Cultura Visual, Artes Visuais.

Gênero e sexualidade: como temáticas do processo educativo em artes visuais A escola é um ambiente de pluralidade e quando falamos sobre educação é imprescindível

relacionarmo-nosalguns

temas

contemporâneos,

como:

mídias,

sexualidade, tecnologias, gênero entre outros. O cenário educacional é um espaço de conhecimento e saber, além disso, produz relações. Um espaço que tem responsabilidade pedagógica na formação de representações, subjetividades e referências de crianças e jovens. Com isso, ao tratar sobre arte, a imagem e suas múltiplas possibilidades, a partir da perspectiva da cultura visual, de acordo com Fernando Hernández (2007, 2009), estamos potencializando o pensamento entorno da imagem.

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Compreendo que a produção de conhecimento e informações não se restringe apenas ao espaço escolar, mas em diferentes contextos. Partindo desse pressuposto, penso que a docência pode fazer uso desses espaços de saberes para servir como meio para trabalhar diferentes temáticas, aproximando o ensino das artes visuais deexperiências de vida. A escolha pelas temáticas de gênero e sexualidade parte das percepções de intolerância à diversidade no cotidiano, que vem ocorrendo recorrentemente. Assim, penso como sendo papel da escola e consequentemente do professor,o desnaturalizar esses pré-conceitos arraigados em nossa sociedade. A partir dessas trocas, vivências, experiências, problematizações é que ocorre o processo de subjetivação, levando em conta as teorizações de Michel Foucault (1985, 1988), são processos em que o indivíduo se constitui a partir do coletivo, em uma produção incessante que acontece a partir do encontro que vivemos com o outro. Esses modos de subjetivação que cooperam para produzir formas de vida e organização social distintas, no qual, somos afetados por concepções e ideias de diferentes vias, contribuem na constituição do sujeito e compreende enquanto regras e valores.Ao pensar sobre essa desnaturalização, entendo como um deslocar do olhar para com o outro, em um movimento de relações, no qual faz parte deste processo a subjetivação Por conseguinte, para Foucault (1985), os modos de subjetivação envolvem fundamentalmente a produção de efeitos sobre si mesmo. E é a partir dessa perspectiva foucoultiana que buscamos trabalhar com as temáticas de gênero e sexualidade no cenário educacional, através destas concepções, do imaginário dos estudantes e de imagens publicitárias e do campo artístico, para promover diferentes questionamentos. De tal forma, procuro desconstruir ou estreitar a relação entre a arte, cultura visual e a produção de gênero e sexualidade, através das representações construídas por diferentes artefatos culturais, além das referências vivenciadas no cotidiano dos estudantes e artistas contemporâneos. Para Foucault (1985) o sujeito é constituído a partir de imposições que são exteriores, sendo compreendidas como produto das relações de saber e poder. Somos produzidos por meio de experiências e forças exteriores, que nos afetam ou não, e que por sua vez tomamos como discurso. E esses discursos, reforçam quem somos. Assim como Simone Beauvoir, afirma que, “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (1980, p.9), essa frase teve um grande impacto em todo mundo, ganhando repercussão e força nos movimentos feministas. A questão de gênero é imprescindível no cenário educacional, pois estabelece expectativas culturais a respeito do que se

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espera de um homem e de uma mulher num determinado momento histórico. Contudo, o conceito de desnaturalizar o olhar a esses ‘modelos’ constituídos socialmente e historicamente, possibilita pensarmos além do que se é ao que não se é, mas do que se pode ser, ou ainda, deslocar as afirmações e relativizar. Como explicita Cunha e Rower: Estranhar/desnaturalizar são atividades de pensamento, movimentos que levam a outras formas de relação, de práticas. Estranhamento/desnaturalização, como ato pedagógico, configura-se como processos dissonantes, com fins indefinidos ( p. 28, 2014).

O conceito de gênero surge a partir dos estudos e movimentos feministas para chamar atenção para o caráter social. Gênero refere-se a uma identidade adotada ou atribuída a uma pessoa, se trata ainda de uma construção cultural, social e histórica. Como Louro coloca, “gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas” (1997, p.22). Identidade de gênero é a forma como o sujeito, se enxerga, sente, identifica como fazendo parte, numa percepção pessoal, auto-intitulação, construções sócio-culturais, manifestações externas da personalidade que refletem essa identidade. Para Foucault a sexualidade, é um ‘dispositivo histórico’ e que “não se deve concebê-la como uma espécie de dado da natureza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar” (Foucault, 1988, p. 100). O conceito de dispositivo, para o mesmo, emprega em três apontamentos: primeiramente há uma urgência histórica, multinear, onde cada cultura desenvolve de uma forma diferente e está relacionado a outros dispositivos que são contemporâneos. Portanto, a partir desses apontamentos, podemos afirmar que esse “dispositivo” sucede com a sexualidade e consequentemente com gênero, como uma construção histórica, produzida na cultura, sociedade, mídia, religião e a partir de encontros que produzimos com outros indivíduos e espaços. Contudo, Louro afirma que “a sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política: a sexualidade é “aprendida, ou melhor, é produzida, ao longo de toda vida, de muitos modos, por todos os sujeitos” (Louro, 2007, p.11). A sexualidade assim como gênero, não se constituem como temas que buscam um consenso, aliás envolvem uma disputa de valores, de

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poderes, de comportamentos legitimados como o certo e/ou verdadeiro, como uma espécie de disputas de dicotomias. A desnaturalização das explicações dos fenômenos sociais, são importantes no ambiente escolar, e busco a partir da arte, das visualidades e das mídias tratar desses temas tidos como tabus, além de procurar pensar que se trata de uma tendência natural e imutável construída/normatizada pela vontade humana, mas que pode ser movimentada a partir das relações que produzimos, sob a perspectiva dos estudos da cultura visual. Entrelaçando o deslocar do olhar para com o outro, em um movimento de trocas, relações, no qual produz a subjetividade.

Experiência educativa: como um lugar de encontro. Parto da premissa de que a experiência educativa seja um lugar de encontro, produzida no conjunto, como Oliveira (2013) ressalta. Por mais que esses encontros sejam organizados/planejados anteriormente pelo docente, só acontecem diante do coletivo. Não pretendo fazer uma descrição da experiência pedagógica que realizei em uma escola estadual, mas perceber como ocorre o processo de subjetivação em relação às temáticas de gênero e sexualidade nas aulas de artes visuais e o meu processo como docente em formação. Assim, a pesquisa torna-se desafiadora ao pensar em como expor esses processos, visto que, ao tratarmos de subjetividade não conseguimos ter uma materialidade, neutralidade, pois de alguma forma não se trata de um objeto de pesquisa palpável. Sendo assim, ao falar de subjetividade, fala-se também do que acontece no íntimo do sujeito, como ele se vê, sente e/ou identifica, e como essas posições de “fora” o afetam, dialogando com a manifestação de liberdade e de ação do sujeito, adotando assim um sentido de ser. A subjetividade é construída ao longo do tempo, e nos permite interpretarmos, experimentarmos e questionarmos em relação ao que vemos. As imagens nos constroem como sujeito, produzindo assim nossas subjetividades, pois desde que nascemos como Mitchell (2009) ressalta, somos alfabetizados primeiramente pelas imagens, construímos imaginários a partir das imagens que nos interpelam e dos repertórios visuais que vamos guardando. Pensar, problematizar e questionar as interpretações firmadas e outras que possam ser instigadas pelas imagens, é disso que trata o desnaturalizar o olhar,talvez mover, borrar, deslocar certos estereótipos produzidos por artefatos como: a cultura, arte

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e publicidade, e com isso, buscar potencializar problematizações das temáticas de gênero e sexualidade no ambiente escolar.Diferentes propostas foram realizadas com uma turma de 9º ano, na rede pública de ensino, para a construção da temática central, além da elaboração de conceitos, referente ao projeto de estágio e trabalhos em grupos. Com isso, destaco uma proposta realizada nessa turma em relação ao imaginário dos estudantes, das pressões sociais e os valores culturais que promovem a produção do sujeito. De acordo com Louro (1997), as relações pedagógicas que são construídas no contexto educacional estão carregadas de signos por meio das quais os jovens aprendem regras, conteúdos e valores. E como isso, determina como os mesmos ‘devem ser e agir’ referente ao gênero.

Figura 1 e 2: Proposta corpos, acervo pessoal.

A proposição era de uma construção em torno do imaginário e universo feminino quanto masculino através da elaboração de moldes do corpo humano, com palavras e imagens se que relacionassem com cada sexo. Essa proposta específica teve grande aceitação por parte dos estudantes, dividi-os em dois grupos, e cada grupo ficou encarregado de relacionar essas imagens e palavras com um sexo biológico. Nesse trabalho, aponto o entendimento e crescimento dos estudantes referente a conceitos e ideias sobre gênero e sexualidade. Sobretudo, busco assinalar as pressões sociais e os valores culturais que as imagens promoveram no processo de subjetivação do sujeito e principalmente de gênero e sexualidade no processo educativo. A partir da perspectiva foucaultiana, percebo como esses sujeitos são produzidos, por essas imagens e quem são, a partir dos coletivos/convívios que participam.

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Ao tratar da cultura da mídia, Kellner (2001) ressalta que as pessoas formulam, a partir dela, inúmeras questões como a diversidade de classe, sexo, racial, gênero e suas análises a respeito do certo/errado, bom/mau, moral ou imoral. Com isso, faço uso de dispositivos como: filmes, publicidades, curtas e outras materialidades da cultura da mídia para trabalhar com diferentes abordagens, questionando os estudantes sobre assuntos que fazem parte do projeto e outros que sejam importantes no ambiente escolar. Assinalo outra proposta realizada, que teve início com a apresentação de um curta-metragem brasileiro: “Eu não quero voltar sozinho” (2010), onde tratava de relações de gênero, sexualidade, deficiência visual, preconceito, puberdade, bulling entre outros assuntos que permeiam o cotidiano desses estudantes. O interessante dessa proposta foi perceber as reações, a forma como se identificaram com o curta, as risadas, conversas

paralelas,

a

partir

do

dispositivo,

o

que

possibilitou

inúmeras

problematizações referente a temática do projeto, pois dentro desses espaços de saberes, me percebo como alguém que media o conteúdo, que por sua vez, busca problematizar questões referentes aos assuntos, e não estabelecer oposições nas discussões. Procurei palavras relacionadas ao projeto, aos dispositivos lançados nos encontros e as repostas dos estudantes, para criação de narrativas onde eles pudessem fazer uso dessas palavras.Organizados em grupos, eles foram convidados a escrever e pensar sobre as palavras, o que gerou, em um primeiro momento, desconforto e dificuldade, pois evidenciou a dificuldade de escrita, bem como, de criação de narrativas referente às problemáticas levantadas em aula.

Figura 3: Proposta de narrativas escritas, acervo pessoal.

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Após pensar sobre o resultado final desta atividade, percebo e compartilho nesta escrita, que a maioria dos estudantes conseguiram criar frases utilizando essas palavras, fazendo uso de questões trabalhadas em aula e dos dispositivos levados, mesmo apresentando certa dificuldade. A continuidade dessa proposta foi conversar sobre o conceito de narrativa, quais as possibilidades de narrar e de produzir narrativas visuais, e desdobrar tal conversa em uma materialidade. Os estudantes buscaram entre fotografias, stickart e lambe-lambe para produzir uma narrativa visual que contemplasse as temáticas produzidas anteriormente. Dentre os temas trabalhados pela turma, destaco as temáticas sobre violência contra mulher, sentimento e escolha sexual.

Figura 4 e 5: Produção de narrativas visuais e aplicação, acervo pessoal.

Figura 6: Produção visual, acervo pessoal.

Imagens publicitárias como disparadores para pensar o ensino de Artes Visuais. Os meios de comunicação garantem o acesso de informações à todas as camadas sociais, além de estreitar as relações com os estudantes, pois essas imagens, produzidas pela cultura, geralmente intervêm na formação dos sujeitos. Portanto, as mídias de um modo geral, possibilitam um diálogo e uma maior interação com os estudantes.

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Para a cultura visual, as imagens possibilitam uma infinidade de interpretações e pensamentos, a qual nos estimula pensá-las no campo das artes em relação à educação. Instiga problematizarmos experiências culturais eseus efeitos. Nesse sentido, o espaço educativo precisa possibilitar odiálogode temáticas variadas, abarcando aquelas que também não estão em voga. Buscando a interlocução dos estudantes com outras maneiras de construir seu processo de aprendizagem. Como explicita Hernández (2007, p. 37): Trata-se de se aproximar destes ”lugares” culturais, onde meninos e meninas, sobretudo jovens, encontram hoje muitas de suas referências para construir suas experiências de subjetividade. Umas referências que não costumam ser levadas em conta pelos docentes, entre suas razões, porque as consideram pouco relevantes, a partir de um enfoque do ensino centrado em alguns conteúdos disciplinares e em uma visão da escola de cunho objetivista e descontextualizado.

O professor vem ganhando novos caminhos nesses lugares de encontro, além de mediar os conteúdos e assuntos, têm como função a de questionar, inquietar e de movimentar o conhecimento. Desta forma, fazer uso das imagens oriundas do campo artístico e da publicidade,sob a perspectiva de estudo da cultura visual, é pensá-las como dispositivos educativos e de iguais importâncias, pois como ressalta Fernando Hernández (2007), as imagens conotam potencialidades assim como narrativas escritas, contudo tem seu próprio discurso, que é tão plausível quanto um texto.

E como

podemos fazer uso dessas imagens, nos diferentes espaços e disciplinas, quando tratamos de experiências educativas? Como trabalho final dessa experiência pedagógica, fiz uso do artefato cultural, que são as imagens publicitárias, com a pretensão de questionar os estudantes o que essas imagens provocavam neles, buscando assim, investigar como ocorrem os processos de subjetivação diante de uma outra relação com as imagens. É preciso destacar o quanto essas representações visuais interferem na forma de reiterar o que é masculino e feminino e na banalização do nosso olhar diante desses artefatos. Assim, trabalhei com a questão de gênero e sexualidade no espaço escolar, na sociedade e na mídia, conceituando as diferenças entre publicidade e propaganda. Preocupei-me

em

levar

imagens

da

publicidade

que

destacassem

posicionamentos sociais sobre a sexualidade, além de inserir imagens de obras da historia da arte, e outras imagens reproduzidas pela publicidade para anunciar produtos. As imagens escolhidas chamaram a atenção dos estudantes, tanto no que se referia à

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publicidade, como o modo como os artistas em diferentes épocas representavam a figura feminina e masculina, associando com as imagens publicitárias mostradas anteriormente. Propus para a turma trabalhar com a produção de uma propaganda e/ou fanzine, onde pudessem fazer uso de diferentes temas na criação de uma narrativa visual.

Figura 7 e 8: Proposta fanzine ou propaganda, acervo pessoal.

Nesses trabalhos visuais produzidos pelos estudantes, percebo o interesse em trabalhar com fanzine, já que até então não conheciam essa possibilidade artística. Destaco a forma como cada estudante procurou trabalhar de forma diferente, já que a proposta temática era livre. Entretanto houve, vários estudantes que procuraram fazer uso de temas trabalhados anteriormente nas aulas de artes, como orientação sexual, empoderamento feminino, violência contra mulher e o corpo.

Considerações Finais: Não somos separados do mundo, nos formamos como sujeito, a partir do coletivo, em uma produção incessante que acontece a partir do encontro que vivemos com o outro. Por conseguinte, para Michel Foucault (1985), os modos de subjetivação envolvem fundamentalmente a produção de efeitos sobre si mesmo.Dessa maneira, repensar a educação e a arte, se faz necessário diante de temas contemporâneos e emergentes no cenário educacional, com isso, estabelecer relações entre arte e publicidade é uma das possibilidades para discutir as questões de gênero e sexualidade, na perspectiva de desnaturalizar o olhar a ‘modelos’ constituídos socialmente e historicamente legitimados, sob a perspectiva da cultura visual. Ao tratar desses temas, percebo o quão é importante a escuta e saber respeitar a opinião do outro, mesmo que vá ao desencontro do que acreditamos e a forma como escolhemos atuar naquele espaço, pois desde a infância o sujeito desenvolve modos e expectativas sobre como devem se comportar e relacionar com os outros e a escola não

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apenas repercute essas concepções de gênero e sexualidades, que é reflexo de nossa sociedade, mas também as reproduz, como ressalta Louro (1997, p.57). Atribuímos certas brincadeiras para meninas e outras para meninos, sem nos darmos conta, de que com isso,determinamos e reafirmamos o que é o adequado para cada sexo, como se houvesse sempre essa dualidade. Por sua vez, essas concepções são ensinadas e consequentemente reforçadas por suas famílias, mídias, comunidade em geral às quais os sujeitos pertencem. Sendo assim, procurei fazer menção sobre o projeto de pesquisa que desenvolvi em meus estágios curriculares e de algumas experiências educativas, onde busquei fazer uso de artefatos culturais para abordar as temáticas de gênero e sexualidade por meio de imagens oriundas de meios culturais e artísticos, a fim de pensar a partir da perspectiva da cultura visual como um dos modos de desnaturalizar o olhar sobre estereótipos produzidos pela cultura, arte e publicidade. Sobretudo, porque busquei problematizar tais temas e abordar os mesmos de forma natural, de modo que pudéssemos junto aos estudantes, deslocar o olhar controlado e padronizado, pensar outras vias para tais assuntos, visto que, há urgência por trabalhar essas temáticas no espaço escolar, há urgência de pensar no coletivo, de olhar para o outro como quem olha para si mesmo.

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LOURO, Guacira Lopes. O Corpo Educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.(p. 7 a 43).

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DESNATURALIZAR O OLHAR: MODOS DE VER E SE RELACIONAR COM AS IMAGENS A PARTIR DE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DE ESTÁGIO

Rosenara da Silva Soares Maia Angélica Neuscharank

Resumo: O presente artigo compartilha algumas experiências advindas de um estágio curricular, onde fui movimentada por questões relacionadas aos modos de ver e sermos vistos, nos contextos educacionais em que estava inserida. Tais movimentos foram traçados a fim de pensar o DESnaturalizar do olhar e das imagens a partir de visualidades provenientes das redes sociais e trabalhadas nas aulas de artes. Operei com os conceitos de processos de subjetivação e de imagem, de autores como Félix Guattari (2000), Michel Foucault (2014) e J. W. T. Mitchell (2008), que contribuíram para o que vinha pensando em torno dos estudos da cultura visual Hernández (2013). Palavras-chave: desnaturalizar, cultura visual, imagem, subjetividades.

Da escolha do tema aos encontros Em um primeiro momento,escolho por trabalhar os modos de ver a arte na educação escolar enquanto processo de subjetivação e como movimento de pensamento, que encontra nos estudos da cultura visual, possibilidades para pensar outras imagens que não só as da história da arte, mas também aquelas presentes na mídia televisiva, nas redes sociais, em filmes, clipes musicais, etc.Desta forma, meu projeto foi pensado a partir da perspectiva da cultura visual,e a partir dos estudos contemporâneos da imagem enquanto processo de subjetivação do sujeito. Interessando-me investigara importância do ver e ser visto na sociedade atual, este outro modo de nos aproximarmos e nos relacionarmos com uma imagem, bem como, pensar no que estas proposições podem afetar a educação das artes visuais. As práticas pedagógicas que foram compartilhadas nesta escrita, ocorreram no decorrer da disciplina de estágio curricular, em uma turma de 8º ano do ensino fundamental, em uma escola pública, com encontros semanais de 90 minutos. Nestas inserções fui compondo com os autores, problematizações que movimentassem asformas de ver e as possibilidades de trabalhar as imagens diante de sua suposta banalização, isto é, o uso da imagem enquanto ilustração da escrita, da representação de

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ideias, e de contemplar um significado a ser decifrado (o que o artista, autor quis dizer?). Nesse contexto, propus dialogarmos nas aulas de artes, algumas imagens que circulavam nas redes sociais do Facebook eram compartilhadas pelos estudantes, para que pudéssemos tê-las como dispositivos, produzir algo, acionar o pensamento, visto que, “as pedagogias culturais permitem incorporar problemáticas que estiverem fora da área de interesse da educação escolar” (Hernández, 2013, p. 90), e potencializem os efeitos que as várias informações produzem nos estudantes, o modo como participam da construção das suas subjetividades. Também trabalhamos com reportagens oriundas da Internet, as quais produziram outras atividades e discussões de grande relevância. Quanto às produções manuais, elas nem sempre foram executadas, porque inúmeras vezes nos detivemos as práticas discursivas sobre as imagens ao invés da aprendizagem de uma técnica ou fazer manual. Para a cultura visual não há divisão entre a teoria e a prática, elas funcionam como um movimento único, e isto se amplia quando pensamos nas aulas de artes visuais, onde alguns conhecimentos de senso comum tendem a reforçar este binarismo (teoria = história da arte x prática = manualidades). Assim, pontuo que estas conversas foram momentos muito ricos, onde as imagens além de serem disparadoras das discussões, atuaram como produtoras de subjetividades, pois em várias situações os próprios estudantes descobriram coisas que eram do seu gosto pessoal, e que antes não haviam pensado. Muitas questões me desacomodaram, que também dizem respeito às relações de afeto e subjetividades de alguns estudantes, compartilhadas através deste modo de trabalhar com as imagens. Penso nas conversas que estabeleci, e aos poucos compreendo que não existem parâmetros para o que se refere ao olhar, olha-se com o corpo, com os afetos, com as memórias, com nossas subjetividades, e a partir delas também produzimos olhares,olhares singulares, olhares acasos, inusitados, estrangeiros, desnaturalizados.

Dos conceitos às conexões experienciadas O conceito de imagem foi pensado, segundo Mitchell (2008), que nos interpela a olharmos para a relação das imagens com as pessoas, as coisas, os contextos, com a nossa vida e o modo como se presentifica no nosso cotidiano, na forma de compreensão social, sendo “mentaisou materiais, de arte ou da mídia, pois (a priori) as imagens são

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usadas para projetar e controlar um futuro imediato e possível”. (Mitchell, 2008, p.1516) Nesse sentido, Mitchell (2008) propõe mudarmos a direção da pergunta, deslocarmos o questionamento da imagem em relação ao que ela indaga de cada indivíduo para o que ela quer dizer de cada um. Foi nesse sentido que intercorreram os diálogos, as questões eram lançadas e logo tomavam tom de conversa, quem estava como indagador conseguia inserir-se como parte do grupo, sem hierarquias. Num primeiro momento,problematizei a relação entre a percepção do ser e do ser visto, de como percebiam essa produção, a partir de que ou quem eu me vejo, me crio, faço, apresento. O indagar, problematizar, questionar são necessários quando pensamos nesta outra aproximação com as imagens,e para que isso ocorresse fui usando roteiros, a fim de que não nos perdêssemos, porém o cuidado recaía em não usá-los de forma fixa, mas potencializar o diálogo, a flexibilidade que uma conversa proporciona. Durante o percurso me provi desses roteiros para tentar conduzir os diálogos de forma sutil, cautelosa e com envolvimento. Lancei problematizações ao passo que criei espaços para os vazios, momentos e oportunidades que por vezes foram se esvaindo por entre as brechas de uma conversa. Talvez, considerando estas questões, a maior dificuldade que encontrei foi em não permitir que a problematização se tornasse polêmica, pois como afirma Foucault (1984) em entrevista, as relações distintas entre problematização e polêmica são limiares, dessa forma o cuidado é indispensável,“[..] a problematização não deve ser confundida com a polêmica, pois a polêmica é vista como uma ‘figura parasitária da discussão’ em que os ‘interlocutores não são incitados a avançar’” (1984, p.2). Não intentei convencer os estudantes sobre determinado ponto de vista, nem quis que se instaurassem debates entre ideias divergentes, mas que a problematização das imagens os desacomodassem, os fizessem pensar sobre a vida, compartilhar sobre seus pensamentos, suas escolhas e modos de ver. Acostumamo-nos a participar de discussões que primem pelo binário, pelos juízos de gosto, pelo posicionar-se de modo a concordar ou discordar de algo, chegar a uma conclusão ou à uma verdade, através da “melhor” argumentação, o que não difere quando falamos das imagens, a aproximação mais cômoda é sempre da ordem do que está visível e enunciável na imagem, do belo ou do feio, do que me identifica ou não. Foucault (1984) nos diz que quando polemizamos uma discussão, provocamos esse tipo

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de discurso, de análise, a aproximação com uma imagem, com um assunto acaba por permanecer na superficialidade do senso comum, dos conhecimentos já conhecidos. Trata-se da polêmica como uma espécie de castração, [...] na polêmica ocorrem efeitos de esterilização: por acaso já se viu que, de alguma polêmica, tenha nascido uma ideia nova? (...). Há um aspecto mais grave: nesta comédia cultiva-se a guerra, a batalha, os aniquilamentos e os rendimentos sem condições. (1984, p. 2)

Como já citado, trato das questões relacionadas aos processos de subjetivação, entretanto,logo de início, não percebia estar na mesma posição dos estudantes, usava de certo distanciamento por pensar que esses processos ocorressem apenas com os estudantes,numa suposta neutralidade docente. Assim, para compreender o conceito de subjetivação, necessitei conhecer primeiro o conceito de subjetividade, pois um está conectado, entrelaçado ao outro, A subjetividade é produzida no social, no encontro com o outro, nos atravessamentos e afetos nos quais os sujeitos são expostos ou participam, é provisória, pois sua produção é constante. Desta forma não a compreende-se mais como sendo algo da essência e sim dos encontros, gostos, desejos, modo de ser e estar no mundo. (Mansano, 2009, p. 111-112)

O processo de subjetivação ocorre de forma mais ampla, tratando da subjetividade no todo das relações. Segundo Guattari (2000),esses modos de subjetivação são produções estéticas e políticas dos sujeitos que não segregam dos agenciamentos coletivos sociais. São produções de existências, de vida, de organizações sociais, são processos de reinvenção constantes, mutantes, que não tratam de universalidades, de obrigatoriedades. Seguindo a ideia desse processo é que me pus a pensar as produções no grupo de discentes da turma 83, da escola pública, que contava com 18 estudantes, sendo 16 deles frequentes, com idades entre 13 e 16 anos, sendo 7 meninos e 9 meninas. Minha inserção iniciou com uma dinâmica, denominada “teia”, onde dispus de um quadro,(tear) de madeira, para que essa teia fosse fixada e trabalhada durante os encontros.Minha intenção era que eles fossem anexando matérias, escritas, ideias, anotações e imagens, que lhes fossem pertinentes aos momentos e espaços que iríamos vivenciar no decorrer das aulas.

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Figura 1: Pensar nas formas de ver. Fonte: Arquivo Letícia Ravanello

A teia foi construída na intenção de que percebessem que o próprio processo e subjetivação é uma construção coletiva, rizomática, de partilhas e de conexões entre diferentes pontos. Conforme as apresentações foram ocorrendo, fui falando sobre mim, e sobre meus objetivos, o tema de pesquisa e os conceitos principais do projeto de estágio, para nos conhecermos e começarmos a tratar da relação entre o modo de como nos vemos e de como somos vistos, da forma de perceber-se no espaço escolar. A forma como decorreu a atividade, me desacomodou muito,a priori pensei que a timidez fosse a maior dificuldade dos estudantes, porém eles se demonstraram falantes, expondo seus pensamentos, trocando muitas informações. Percebi neles o gosto pela comunicação, pelo questionamento e por inquirir muitas respostas.Nestes discursos foi possível perceber também, a compreensão da imagem enquanto ilustração do que estava sendo verbalizado, certa necessidade desupriruma possível expectativa e de contar uma narrativa de forma linear.A timidez esvaiu-se, porém o cuidado para se tornar compreensível e proferir o que a imagem representaria, foi latente. Remeti-me a concepção de Mitchell, que sugere que questionemos as imagens em relação aos seus desejos ao invés de apenas olharmos a elas como instrumentos de poder ou significados. Neste sentido, tencionei essas concepções evidenciadas pelos estudantes eme propus a pensar junto a eles outras relações. Pensei e me coloquei dentre essas imagens, o que percebi nelas, o que havia delas em mim. Fui tramando ações com os conceitos que me propus operar. Pensei também, nos modos de subjetivação e como estes são pouco trabalhados diante da representação das imagens,a busca pela significação, este modo de relação que predomina nos espaços educacionais, desde a alfabetização até outras etapas. Estas

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questões, relações, me puseram a pensar no sujeito que pertence a sociedade e que é alfabetizada por elas, que se entrecruza cotidianamente com elas, sujeito produtor de subjetividades, e que desde muito cedo é treinado a banalizar seu olhar, decodificar as imagens.

Das propostas que me tocaram às que me feriram... Na proposta que mencionei utilizar imagens das redes sociais, escolhi imagens que estivessem circulando na internet em um período próximo ao encontro, às levei a aula e cada sujeito ganhou uma. Ao observar a imagem,os estudantes deveriam responder a seguinte pergunta: “há nas imagens indicações de configurações sociais da maneira que deveriam comportar-se ou ser?” (Dalla Valle, 2012, p 183).A partir das respostas, houve o diálogo sobre as imagens e as relações do olhar de cada um que estava argumentando. Foi de grande valia perceber que não compreendiam o que significava “configurações sociais”, tampouco as “concepções sociais”, o grupo não compreendeu o conceito, e mesmo assim, trouxe na fala tudo o que caracterizava estes conceitos. Fui repensando as propostas, a própria pergunta que ficou um tanto distante da linguagem juvenil, e desse novo olhar, olhar que faz pensar, angariei novos materiais para que então pudéssemos aos poucos movimentarmo-nos para sair dos juízos estéticos das imagens, para pensar a relação delas com as subjetividades, com o que não fosse da ordem do visível.

Figura 2: Propostas de trabalho Fonte: Arquivo Pessoal

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Utilizei as respostas que eles trouxeram referente a pergunta mobilizadora para começarmos a pensar nas concepções sociais, elenquei palavras afim de conceituar e compreender a definição de “concepções sociais”, mesmo que houvesse esse distanciamento inicial, percebi a necessidade de nortearmos o ponto que havia os inquietado. Cada estudante recebeu a sua palavra e a situou em uma tabela no quadro da sala de aula, eu os convidei a comentar sobre a palavra recebida e a falar se a mesma fazia parte de alguma forma de concepção social. Desta maneira, fomos desdobrando este conceito, e juntos, pontuando algumas formas naturalizadas com que percebíamos nossas relações cotidianas. Nessas conversas percebi que ao falar de alguns temas,por estarem dispostos em grupos, eles ficaram mais seguros, defendendo seus pontos de vista. Quando os dividi em grupos de 4 integrantes, e os entreguei textos de reportagens de diferentes fontes, solicitei que a lessem e pensassem de que modo às relacionavam aos comportamentos sociais

que

estávamos

conversando

anteriormente. Ainda,

problematizei

se

concordavam e se eles a reproduziam no seu dia a dia. Foram levantadas questões além do texto, relacionando com suas próprias ações, com o que víamos em redes sociais e na escola. Após esse exercício pedi que eles criassem questionamentos acerca de cada texto para apresentar aos colegas, cada grupo produziu duas questões. No momento da apresentação deveríamos contar sobre o texto e logo lançar as questões e todos iriam respondendo, para que criássemos uma conversa. Fomos dialogando com aquelas imagens, repensamos o que elas queriam de nós, se elas queriam algo, por vezes confundimos com o que seus produtores queriam, recorremos ao questionamento e ao conceito de Mitchell (2015), para que pudéssemos sair desta zona do significado, para desfazermo-nos da ilustração, e tangenciamos essa relação, produzimos subjetividades, e continuamos a angariando encontros com as imagens. Na sequência dos encontros dispus de textos acerca de linguagens artísticas contemporâneas, que tratassem de contextualizar historicamente os temas em debate, apresentando conceitos e artistas de âmbito internacional e nacional, para que discutissem e criassem trabalhos artístico sem cima das problematizações anteriores, com as devidas linguagens. Foram produzindo os trabalhos, de forma mais conceitual, sendo que ao final das produções houve um espaço para apresentações, onde cada grupo apresentou sua proposta e dialogou com o grande grupo.

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Nestes espaços fui questionando acerca dos dados técnicos das obras, dos períodos e movimentos artísticos inseridos, e percebo que esses dados não foram respondidos, o que me surpreendeu e inquietou, porém um estudante mencionou não lembrar essas relações, mas sabia o que os fez produzir o objeto principal da instalação.1Assim fomos conversando sobre o corpo, sobre a forma de nos colocarmos frente ao outro, pensamos sobre as formas de nos produzirmos, o que nos incita a crer em certos padrões. Pensamos na desnaturalização do olhar, no modo que somos ensinados a receber e perceber tudo enquanto natural, logo,sem a possibilidade de modificar-se. Esse desnaturalizar o qual foi pensado e mencionado nesta escrita,não tratou apenas das imagens, mas de outras relações conectadas aos modos de ver e sermos vistos enquanto sujeitos produtores de vida, de cotidianos, de histórias, de resistências. Assim, ao pensar no modo como nos produzimos subjetivamente diante das imagens,penso nos contributos da cultura visual, que se deu porque a mesma se propõe a tratar da diversidade de aproximações com um determinado objeto, signo, relações muito mais subjetivas, de práticas culturais e sociais do olhar, ainda segundo Raimundo Martins (2007), a proposição “discute a imagem não apenas pelo seu valor estético, mas na busca da compreensão de seu papel social na cultura”. Trabalhar a partir dos estudos da cultura visual me possibilitou pensar e tencionar essas desnaturalizações, junto das propostas dos artistas contemporâneos, das linguagens da arte, e das visualidades retiradas de fontes corriqueiras como das redes sociais. Desta forma,criar brechas nesse modo naturalizado com que nossos olhares foram treinados. Assim sendo, minha escolha por tratar destes conceitos a partir dos estudos da cultura visual, é talvez por perceber nela possibilidades e potencialidades de distanciamento do dito “natural”, do ensino da arte pautado numa experimentação manual, propor outra forma de lidar com a materialidade numa aula de artes, pois nas atividades

que

compartilhei,

forçamos

nossos

pensamentos

a

repensarmos

generalizações, estereótipos, arquétipos e padrões visuais e conceituais. Na sequência das apresentações dos estudantes, fui percebendo que os dados técnicos foram os menos importantes à eles, porém as questões que os levaram a essas produções estavam saltitando, inquerindo respostas, vívidas, inquietas e não podiam ser 1- Instalação artística é uma manifestação artística produzida por elementos organizados em um ambiente, contém caráter efêmero e conceitual.

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sufocadas. Me permiti criar novas problematizações sobre as imagens, sobre as propostas, embebidas pelas concepções de Mitchell(2015). Pensei também na relação entre imagem e palavra, na forma com que se relacionam, na premissa equivocada de que uma sobrepõe/complementa à outra, e ainda no que de fato as imagens querem,se é serem interpretadas, decifradas, rompidas, contempladas, ou se não querem nada, apenas lembrarem à nós que façamos o que quisermos com elas, fazer com que esqueçamos o compromisso de entendê-las, contextualizá-las, para experimentá-las. Possíveis considerações finais... A partir desta proposição de desnaturalização do olhar é que intentei pensar na materialidadedas aulas de artes visuais, nas imagens como modo de trabalhar a produção de subjetividades no contexto da escola. Essa relação que estabeleci entre o social e a escola, a partir das redes sociais, se deu também pela aproximação aos estudos da cultura visual, em considerá-la não somente “uma atitude e uma metodologia viva, mas um ponto de encontro entre o que seria um olhar cultural (visualidade) e as práticas de subjetividade que se vinculam” (Hernández, 2013, p.83). Ao movimentarmos o olhar, com ele movimentamos corpos, pensamentos, diálogos, produzimos subjetividades. Mesmo percebendo que a produção visual não seguiu o percurso que vislumbrei, compreendi que reverberou outras questões, que essas produções subjetivas foram os possíveis novos olhares, foram as possibilidades de desnaturalizar, de desprender-se daspreconcepções. “Uma proposta com e sobre imagens, pode ajudar a contextualizar os efeitos do olhar e, mediante práticas críticas, explorar as experiências, (efeitos, relações) em torno de como e o que vemos” (Hernández, 2013, p. 91) nos formata, nos apazigua, gera respostas induzidas, não produtivas, diante do efeito desse olhar direcionado. Assim sendo, uma aula sob esse viés acontece nos encontros, no coletivo, nos processos de trocas e partilhas. Durante esse processo fui participante e mediadora, em muitos momentos cedi espaço aos sujeitos que compunham comigo o ambiente de estudo, nessas permutas de vozes, espaços e direcionamentos, fomos construindo vínculos, perdendo receios, descobrindo brechas que poderiam ser potencializadas e vazios que não se preenchiam. O papel do professor pode ir além de um ser transmissor, de um impositor de “conhecimentos”, dada que a escola adquiriu essa missão social. A partir destas experiências, destas leituras teóricas, com esses ensaios sobre o olhar e as imagens, compreendi que as produções de fala, escrita, desenhos,

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pensamentos são tão reais e possíveis quanto às manualidades, pois praticar arte não é apenas desenhar, pintar, esculpir, mas é considerar o espaço em que estamos inseridos, é tratar a arte através de diferentes linguagens, usando mídias, corpos, objetos, tintas e papéis, etc. A produção de arte é com o corpo, com a fala, com a escrita, com o olhar, com opossíveldesprovimento de senso comum, é alçar voo ao inesperado, é permitir-se produções de vida, de resistências, de permuta contínua. Referências: DALLA VALLE, L. Miradas y direccionalidadesenel cine en torno a los sentidos de ser docente: una investigación narrativa desde laeducación de lacultura visual. 2012, 433 f. Tese de Doutorado (Doutorado em arte e educação) - Universitat de Barcelona. Barcelona, 2012.

FOUCAULT, Michel. Polêmica, política e problematização. Entrevista disponibilizada em maio de 1984, na internet. Disponível em: http://websmed.portoalegre.rs.gov.br/escolas/quintana/polemica_politica_problematiz.htm Acesso em 13 de fevereiro de 2013.

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HERNÁNDEZ, Fernando.Pesquisar com imagens, pesquisar sobre imagens: revelar aquilo que permanece invisível nas pedagogias da cultura visual.In:MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (org.). Processos e práticas de pesquisa em cultura visual e educação. Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2013, pp. 77-96.

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DICIONÁRIO DES: IDEIAS FEITAS E DESFEITAS PARA O ENSINO DE ARTES VISUAIS

Maristela Müller2

Resumo: No presente artigo produziu-se um "Dicionário Des" que contempla diferentes palavras, possíveis significados, verbetes, ironias, brincadeiras, proposições, clichês, jargões, receitas, relações e reflexões que iniciam com o prefixo Des, conforme o tema do XI Ciclo de Investigações de Artes Visuais do PPGAV/UDESC. O "Dicionário Des" está sendo desenvolvido a partir de uma proposta colaborativa, que obteve a participação de pessoas em espaços públicos de Florianópolis, também através de email e do facebook. Palavras-chave: Des, Dicionário, Reflexão, Ensino, Artes Visuais. Abstract: In this article was produced a "Dictionary Des" which includes different words and their possible meanings, as well as entries, ironies, jokes, propositions, clichés, jargon, income, relationships and reflections that start with the Des prefix, as the theme XI Visual Arts Research Cycle PPGAV/UDESC. The "Dictionary Des" is being developed from a collaborative proposal, which obtained the participation of people in public spaces of Florianópolis/SC, Brasil, also through email and facebook. Keyworks: Des, Dictionary, Reflection, Education, Visual Arts.

No jogo constante de viver, aprender, ensinar e refletir em meio as Artes Visuais o Ciclo de Investigações divulga no Edital o tema para a sua XI realização, junto com uma lista de palavras que iniciam com Des. O prefixo costuma ser utilizado para alterar o sentido original da palavra seja como negação, privação, ausência ou para além disso, pois quando algo é negado ou desafirmado há o intuito de gerar debates. Escolher uma ou algumas palavras para debater acerca do tema Des tornou-se ínfimo diante da quantidade de palavras encontradas. Nesse sentido, optou-se por escrever um "Dicionário Des", nesse momento, publicado em formato reduzido para Mestranda em Artes Visuais pelo PPGAV/ UDESC – Orientada por Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva. Possui graduação em Artes Visuais (2010), pela UDESC. Pós-Graduação em Interdisciplinaridade e Práticas Pedagógicas (2013) pela UFFS, campus Cerro Largo/RS. Possui experiência como docente na Educação Básica e no Ensino Superior. Atua no Grupo de Pesquisa Educação, Artes e Inclusão – CNPq/UDESC. 2

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estar de acordo com as normas de redação do Ciclo. A ideia não é trazer palavras e fechá-las em seus significados padrões, pelo contrário. Pretende-se deixá-lo aberto a constantes modificações e resignificações ligadas ao ensino e as Artes Visuais por meio de verbetes, ironias, brincadeiras, proposições, clichês, jargões, receitas, relações, debates e reflexões. Inclusive, algumas palavras não apresentam qualquer significado, o que é intencional, devido à característica participativa da sua proposta de produção. Esse Desdicionário ou Descionário encontra embasamento no livro "Dicionário das Ideias Feitas", de Gustave Flaubert (2007) e no "Dicionário das Ideias Feitas Em Educação", organizado por Sandra Mara Corazza e Julio Groppa Aquino (2011). O "Dicionário Des" está sendo desenvolvido a partir de uma proposta colaborativa, que obteve a participação de pessoas, principalmente, através chamadas via e-mail e facebook, onde quem aceitasse participar poderia responder a essas chamadas e optar em se identificar ou não. As chamadas ocorreram ao longo do mês de julho de 2016. Essa proposta se caracteriza como uma Micro-ação, ou seja, uma ação autônoma promovida pelos estudantes de Pós-Graduação que, ao mesmo tempo, atuou como uma chamada nas mídias para a divulgação do XI Ciclo. A seguir é possível acompanhar uma parte da produção do dicionário. Dês – ação do verbo dar. Ato de oferecer algo a alguém sem pedir nada em troca. Lembrete: colocar dês em prática. Desabafar – #foratemer #foracunha #chegadecorrupção Desabelhar – partir em bando com os estudantes; debandar. Desabilidade – perda das habilidades. E as competências? Desabitar – meta constante: desabitar o senso comum. Desabotoar – a roupa e relaxar. Desacanhar – livrar do acanhamento. Sem vergonha. Desacatar – a autoridade é crime. Dizia em voz alta meu colega professor. Desacelerar – diminuir o ritmo intenso de trabalho docente é possível? Desacomodar – o corpo docente e o corpo discente.

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Desacordo – sonoro na sala de aula. Desacostumar – a receber tudo pronto; desabituar; perder o costume de querer receitas prontas de como dar aula. Desacreditados – encontram-se muitos colegas professores com relação ao ensino. Desacuendar – ir embora. Sair do lugar onde não se quer estar. Desacuendar da escola é o desejo de muitos estudantes. Ver a palavra desejo. Desacumular – nas Artes Visuais costuma-se acumular, guardar e colecionar. Desafetos – escolares e acadêmicos. Nos espaços onde mais se busca educação, também se encontra amplas pelejas. Desafiar – o estudante para a prática da pesquisa. Desafinar – Desafio – aprender todos os dias. Desafortunado – não tem sorte mesmo. Nunca vai cursar Medicina ou Direito. Foi para as Artes Visuais... (Uma fala desacreditada) Desagradar – a professora com as conversas paralelas. Desajustado – Desalinhar – sair da linha. Buscar outras possibilidades, sentidos e movimentos. Desalinho –

(Fábio Salun)

Desalumiado – que não tem luz. Alunis – aluno; ser sem luz. Desamar – deixar de amar. Desamparado – alunos carentes... Quem nunca os teve? Desânimo – visível na face dos estudantes ao receber a nota da prova. Desaniversário – apenas um dia ao ano se comemora o aniversário. Assim, sobram 364 dias para comemorar o desaniversário. (Carroll, 2009)

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Desanuviar – as ideias e os pensamentos. Desapagar – existem memórias escolares que não se apagam. Desaparecer – sentimento que se tem ao presenciar a diretora chamando a atenção do aluno em público. Desapegar – oportunidade para contar uma história... Desapercebido – que horas são? Não sei. Passaram desapercebidas! (Joviana Jesen) Desaplicar – as provas. Desapoderar – pelo contrário. Defende-se o empoderamento! Desaprender – ou esquecer? Desaprovar – reprovar ou aprovar? Afinal, quem decide sobre isso no último conselho de classe? Desaprumar – sair do prumo, tirar o centro, perder a compostura. Tirar a professora ou o professor do sério. Desarranjo – intestinal. Quem nunca? Desarticulação – dos conhecimentos entre as disciplinas ocorre constantemente. Desassombro - falta de assombro. Desassossego – optou-se por não citar a letra dessa música... Desastre – Desatar – as amarras; desprender-se; tornar-se autônomo; caminhar pelas próprias pernas. Desatentos – diz-se acerca de alguns estudantes. Ver desbaratinada e desmiolado. Desatinar – perder o tino, a razão, o juízo. Ver a palavra desaprumar. Desavença – contenda; inimizade. Ver desafetos. Desavergonhado –

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Desbaratinadas – diz-se acerca de algumas estudantes. Ver desatentos e desmiolados. Desbarbar – tirar a barba ou pelos. Desbastar – tornar menos basto, mais raro. Desbotado – moda escolar do cabelo tingido com papel crepom. Desbundar – ato ou efeito de desbundar; sair do eixo; modificar-se; deslocar do confortável. (Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva). Ver a palavra desacomodar. Desbundar – deslumbrar-se com algo que se considera extraordinário. Descabeçar – tirar a cabeça de alguém. Citar a pintura "Judite e Holofernes", do Caravaggio. Descabelada – estado de ser constante. Necessidade de conter? Charme. Da mais plena infância. (Samira Poffo) Descabido – maior que o espaço que lhe estava destinado. (José Luiz Fonseca) Descafeinar – não, por favor. Prefiro com cafeína. Descalço – Descaminhos – são possíveis e constantes no ensino das Artes Visuais. Descansar – após 60 horas de trabalho semanais... Descaracterização – da escola ocorre com frequência. Na escola faz-se de tudo, menos ensinar. (Fala de uma Diretora) Descarga – importante. Ver desarranjo e descomer. Descarnar – que descarna; morrer. Oportunidade de contar outra história... Descaroçar – a azeitona para a receita da pasta de azeitona, ricota, requeijão e tempero a gosto. Não descaroçar a azeitona para o Dry Martini. Descarregar – Descartar – rejeitar; jogar fora velhas falas e manias para se reinventar.

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Descartes – plano cartesiano. Descasar – uma vez a gente casa, mas depois... quer ser feliz. (Palavra de uma amiga) Descaso – político para com a escola pública. Descatolizar – desviar do Catolicismo. Desviar de uma única religião. Escola laica. Descendência – de onde viemos? Descida – descer a escadaria de Odessa. Oportunidade de citar Eisenstein (2002 a; b) Descoberta – infantil. Fase excepcional. Descomer - evacuar os intestinos; defecar. Descomplicar – ou complicar? Descomunal – gigantesco; imenso; colossal. Pesquisar monumentos da História da Arte. Desconcentrar – Desconchavo – despautério; tolice. Desconciliar - quebrar a conciliação. Desconfiar – Desconstrução – Derrida. Descontar – pontos da média por mau comportamento. Descontente – Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente... (Luís Vaz de Camões, 2003) Descontínuo – Descontinuidade. Essa palavra me faz lembrar o Professor Kinceler (Zé). Conforme repercutiu em mim, seu significado representa a estratégia ou a tática para uma parada ou mudança de rumo. Uma obviedade descontínua provoca uma experiência, um momento único... outro. (Jaymini P. Shah) Descontrole – emocional.

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Descrédito – sem crédito. Acaba rápido o salário de professor. Descrever – as etapas da pesquisa; descrever minuciosamente a observação da aula. Descuido – Desculpa – palavra mágica, juntamente com: por favor, com licença e obrigada. Descumprir – as regras e o protocolo. Desde – a partir do... Por exemplo: a partir do momento que comecei a trabalhar com o ensino de Artes Visuais... Desdém – Desdicionário, Dicionário Des ou Descionário - proposta participativa realizada para compor um dicionário de palavras que iniciam com DES pensadas para o Ensino de Artes Visuais. Desdizer – Desdobramentos – entre as Artes Visuais e outras tantas áreas do conhecimento. Deseducar – a educação. Desejar – o corpo docente. Desejar o corpo discente. Acontece com frequência... Desejo – querer algo que não se tem. Buscar outro lugar. Querer expor o que se tem sem poder. Desejo de se manter no lugar que se está, mas que não poderá permanecer. Vontade de ir além, crescer, ser, conquistar, ter, viver. Ou não querer nada do que se tem. (Rodrigo M. Born) Desembarcar – Desempate – Desempenho – cobra-se desempenho ao invés de se instigar a curiosidade, o desejo, a alegria, à vontade de aprender. Desempoeirar – os livros de Artes da Biblioteca escolar. Os poucos que lá habitam não são selecionados para passear.

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Desemprego – Desencadear – Desencadernar - tirar a encadernação. Desconjuntar o caderno de Educação Artística. Desencalhar – Desencargo – de consciência. Desencontro – de ideias e de pessoas. Para encontros sugere-se utilizar o aplicativo Tinder. Desenfadar - tirar o enfado; distrair; divertir. Quando será o próximo feriado escolar? Desenformar – e servir. Hora do lanche! Um dos momentos mais aprazíveis da escola. Desenhos – disciplina de desenho é a reivindicação constante dos estudantes da graduação do curso de Licenciatura em Artes Visuais da UDESC. Desenraivecer – tornar sereno, abrandar. Desenraizar – Desenrolhar – tirar a rolha da garrafa de vinho, colocar o líquido na taça, beber e relaxar. Desenterrar – algumas falsas verdades difundidas ao longo da historia sócio cultural e assim naturalizadas de que as mulheres não merecem ser quem são, devem sempre ser subordinadas a aquilo que elas pensam que devem ser... disputas de poder e visibilidades ditadas por questão de gênero... Todas as artistas mulheres são eternas lutadoras no campo social, político e artístico. Juntemo-nos a elas, juntem-se a nós. Igualdade e respeito de direitos, legitimação da mulher na arte, ocupação dos espaços negados, discussão dos temas tabus e por aí vai... (Ana Sabiá) Desentupir – os ouvidos, depois de tantas asneiras ouvidas na sala de aula. Desenvolver – o pensamento crítico. Deserto – O + é deserto. (Hélio Custódio Fervenza, 2003) Desesperado – quando o colega o faz lembrar que a prova será naquele dia

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Desestruturar – Desfalecer – desânimo; desmaio na escola com a temperatura de 40º. Desfavorável – é a condição de funcionamento de muitas escolas. Desfecho – conclusão; considerações finais. Desfigurar – alterar o aspecto da figura. Oportunidade de citar o artista Francis Bacon. Desfraldar – Projeto recorrente na educação infantil. Desfrutar – das amizades que nascem e se desenvolvem na escola. Desgraça – Design – Desigualdade – ainda é realidade. Desilusão – amorosa juvenil! Os sentimentos transbordam e percorrem a sala de aula, mesmo que nenhuma palavra seja dita. Desinência – verbal. Desinteresse – do estudante na aula e do professor na formação continuada. Desintoxicar – dos vícios escolares. Desistir – jamais! Desjejum – Desligar – o celular, a televisão, o computador e estudar. Deslize – por caminhos e situações. Escorregue. Deslocamento – ou transferência. Fazer crer que se leu Freud e que se conhece o conceito na aproximação com a educação. Transferência na relação professor(a) e aluno(a). Deslumbrante – a vestimenta das festas juninas. Desmanchar – o trabalho e refazer.

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Desmantelar – desmoronar-se. (Clarissa Santos Silva) Desmarcar – o livro; remover os adesivos coloridos marcadores de páginas e devolver o livro na Biblioteca. Desmascarar – Desmemoriado – Acontece sempre em provas. Desmentir – Desmiolados – diz-se acerca de alguns estudantes. Ver desbaratinadas e desatentos. Desmontar – Warburg e Didi-Huberman (2008) desmontam a História da Arte para montar infinitas possibilidades diferentes de falar sobre ela. Pesquisar sobre o conhecimento por montagem. Desmoralizar – a pessoa na frente dos colegas. Por que essa prática ainda continua na escola? Desmudo – Deixar de ser mudo. Desnatureza – desnaturalizar; tornar artifício; pensar no modo Caetano; Caetanear. (Iriana Resende Turozi) Desnecessário – Desnível – de conhecimento em uma mesma turma. Desobediência – uma forma de obediência em que o sujeito que dá a ordem é o mesmo que a recebe. (Alexandre Lemke) Desocupar – Necessita-se ocupar! #ocupaminc Desodorante – para a axila e para os pés. Quem trabalha com adolescentes, depois da aula de Educação Física, percebe a importância de usar. Desonesto – Desoprimir – Desordem – não combina com a escola. (Fala de uma Diretora)

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Desoxirribonucleico – acido desoxirribonucleico; DNA; composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas. Desoxirribose – pergunto-me se já estudei isso... DesPCNificação – Despedida – ato ou efeito de sofrer à distância. (Júlia Rocha Pinto) Despedida do ano letivo. (Professora feliz esperando as férias) Despersonalizar – Despertador – objeto necessário todas as manhãs. Despertar – para a vida. Despesas – constantes. Despetalar – bem me quer. Despida – desnuda; figura feminina presente na História da Arte. Despir – a professora é o desejo de muitos alunos. Despojar – privar o/a estudante do recreio ou da Educação Física por falta de obediência. Despontar – um talento na escola. Desporto – por vezes ligado a Secretaria da Educação e Cultura. Déspota - aquele que exerce poder absoluto e arbitrário. Isso acontece na sua Escola? Despreocupado – Despreparado – Desprezível – Desrazão – o professor não teve razão, mas agiu como se fosse dono dela. Desrespeito –

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Destacar – Destaque. Efeito de destaque: colocar em primeiro plano um fenômeno para realçar a estrutura artística da mensagem (Totonho Lisboa – Ator) Destemido – Desterro – Ilha de Santa Catarina; Nossa Senhora do Desterro; Desterro; Florianópolis; Floripa. Destino – sem tato, sem cuidado, o revés do juízo, sem tino. (André Ricardo Souza) "Destino – O do bebê é ir para a Escola; o da criança é chegar ao Ensino Médio; o do adolescente é passar na Vestibular; o do jovem é formar-se; o do adulto é trabalhar; o do idoso é voltar a estudar." (Corazza; Aquino, p. 43, 2011). Destro(a) – possui maior habilidade com a mão direita. Destruído – Desumano – palmada, castigos e punição. Lembra-se da palmada na escola? Desuso – mimeógrafo. Será? Desvairado – louco; completamente maluco; pirado; perdeu o juízo; fora de si. Desvelar – citar Heidegger, quando fala sobre o jogo de desvelamento do ser do ente, que ocorre a partir de antíteses, como: mostrar e esconder, velar e desvelar, abertura e fechamento, clareira e ocultação. A obra de arte não se desvela de uma única vez, como se mostrasse uma verdade absoluta. A obra de arte se desvela em seu ser de maneiras diferentes, em tempos diferentes. Por isso, o desvelamento é, ao mesmo tempo, um velamento, quando algo se mostra, outro se esconde, quando uma faceta se abre, outra se fecha. Dessa maneira, o desvelamento do ser do ente é um constante devir. Desventura – infortúnio; desgraça. Desvio – sejam sempre bem-vindos! Desvisão – desleitura, desistância, desexpero, desidentifio. A Palavra Palavra. (Jorge Menna Barreto) Desxadrezar – desmanchar o xadrez

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Desconsiderar – o que foi dito ou escrito.

No presente artigo apresentou-se um "Dicionário Des" relacionado ao Ensino das Artes Visuais. Ele contempla diferentes palavras, possíveis significados, verbetes, ironias, brincadeiras, proposições, clichês, jargões, receitas, relações e reflexões que iniciam com o prefixo Des, conforme o tema do XI Ciclo de Investigações de Artes Visuais do PPGAV/UDESC. O dicionário se apresenta como uma proposta colaborativa organizada por meio das Micro-ações do XI Ciclo, ou seja, uma ação autônoma promovida pelos estudantes de Pós-Graduação que, ao mesmo tempo, atuou como uma chamada nas mídias para a divulgação do XI Ciclo. Aproveita-se a oportunidade para agradecer aos participantes do "Dicionário Des", que durante o mês de julho responderam as chamadas via e-mail, facebook e pessoalmente, agradecer aos estudantes da Pós-Graduação (organizadores do Ciclo e das Micro-ações), bem como a Coordenação do PPGAV/UDESC. Ao longo da escrita do artigo percebeu-se que, algumas palavras, apresentam o prefixo des como uma ação contrária, opositiva ou de negação, por exemplo: desacomodar, desmentir, desafeto, desconstruir, descosturar, desligar. No entanto, outras palavras não seguem essa característica, pois o des faz parte da composição do radical, explorando assim outros significados, por exemplo: desenho, deserto, desejo, desafio. No artigo apresentou-se uma parte do dicionário composto por palavras selecionadas e organizadas, a maior parte delas em ordem alfabética, sendo que, algumas palavras não apresentam qualquer significado ou verbete, o que é intencional, devido a característica participativa da proposta de produção do dicionário. Ou seja, o "Dicionário Des" continua aberto para a adição de palavras, modificações, debates, intervenções e, quem sabe, para uma futura publicação em outro formato. Para participar é só entrar no facebook do Ciclo de Investigações PPGAV/UDESC e responder as chamadas.

Referências: CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos: texto integral. São Paulo: Martin Claret, 2003.

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CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

CORAZZA, Sandra Mara; AQUINO, Julio Groppa. Dicionário das ideias feitas em educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tempo: historia del arte y anacronismo de las imágenes. 2 ed. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008.

EISENSTEIN, Serguei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002a.

EISENSTEIN, Serguei. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002b.

FERVENZA, Hélio Custódio. O + é deserto. São Paulo: Escrituras, 2003.

FLAUBERT, Gustave. Dicionário das Idéias Feitas. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1990.

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DESALINHANDO O OLHAR NUTRIDO PELA MÍDIA: EXPERIMENTO AUDIOVISUAL

Jéssica Thaís Demarchi

Resumo: O presente texto pretende apontar alguns possíveis desdobramentos da produção audiovisual em práticas pedagógicas no ensino de Arte. Será feita a descrição de uma oficina de audiovisual experimental direcionada à sensibilização do olhar e uma experiência de auto aplicação da oficina, demonstrando sua eficácia quanto à desnaturalização da produção de subjetividade impulsionada pela mídia de massa. Palavras-chave:audiovisual,sensibilização do olhar, ensino de arte. Abstract: The present text seeks to point out some possible developments of the audiovisual production in pedagogical practices of Art education. The description of an experimental audiovisual workshop alongside its self application will be presented throughout the text, showing the workshop efficiency to sensitize the sight in order to denaturalize the production of subjectivity influenced by mass media. Keywords: audiovisual, sensitizeofsight, arte ducation.

Introdução A proposta deste trabalho debruça-se sob a ótica de uma emergência pela desconstrução das subjetividades padronizadas, tão frequentemente impostas pela grande mídia. Com a finalidade de questionar e desestabilizar a estética e os conteúdos midiáticos que nos impingem diariamente em ritmo frenético, recorre-seneste trabalho à sensibilização do olhar através da linguagem audiovisual,tão utilizada pela mídia de massa, como um antídoto contra essas forças que desvirtuame moldam nossos perceptos. Ao referir-me ao uso do audiovisual no ensino de Arte,falo da produção audiovisual experimental por parte dos discentes. Na tentativa de melhor demonstrar a concepção da proposta, será feita a descrição de uma oficina de audiovisual projetada para ser realizada com estudantes provindos de contextos distintos. A oficina em questão, que foi inclusive testada por mim como demonstrado posteriormente, vislumbra uma possibilidade de desnaturalizar e desacostumar o olhar doutrinado pela mídia.

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Objetivando introduzir e justificar a importância da produção audiovisual nas aulas de Arte, na seção a seguir são traçadas algumas breves linhas que relacionam a linguagem videográfica ao ensino de Arte na contemporaneidade. Desdobramentos audiovisuais no ensino de Arte É possível notar frequentemente em trabalhos que empregam o audiovisual no contexto do ensino formal, sua proposição como ferramenta exclusiva de exposição de informação e não como o fazer audiovisual exercido pelos educandos. Geralmente, a prática está impregnada de técnicas de produção tradicionais, repletas de regras ou apresenta o intuito de descontrair a aula deixando-a mais dinâmica. Garcia, Baraúna e Maneschy (2013, p. 1017) afirmam que “os materiais de vertente audiovisual acabam sendo utilizados como meros meios ilustrativos de conteúdos diversos, inclusive em disciplinas que não Arte”. No intuito de problematizar essa situação, discutindo a importância das práticas audiovisuais em sala de aula, vislumbro um alargamento da compreensão desse fazer no âmbito das aulas de Arte. Desapego-me do compromisso com técnicas padronizadas para que o aluno possa dispor de maior liberdade ao explorar sua subjetividade. Apresento a produção audiovisual experimental como estratégia pedagógica para que o discente seja reconhecido como produtor de sentidos, compondo signos, expressões e socializando seus saberes através da sensibilização do olhar. Segundo Cláudia Zamboni de Almeida (2006, p. 73), a imagem ocupa um lugar de destaque em sala de aula, dessa forma é importante que os arte-educadores se perguntem se os conteúdos selecionados a serem trabalhados em Arte “estão dando conta das imagens divulgadas na televisão, publicidade, e outros meios que usam a imagem para comunicar”? Na tentativa de dar conta de uma parcela dessa demanda imagética exigida pelo ensino de Arte na sociedade atual,alvitro a produção de conteúdo audiovisual em sala de aula. Assim, é possível explorar a vídeo arte, ampliando o repertório do estudante de forma que ele conheça novas maneiras de utilização dessa linguagem, além de revisitar com um olhar mais sensível, propagandas televisivas e vídeos que circulam nas redes. Parece-me imprescindível que as propostas desenvolvidas para o ensino de Arte sejam estruturadas “numa relação com o mundo cotidiano contemporâneo” (Almeida, 2006, p. 73). Nesse sentido, sabe-se que a soma das mutações que ocorrem no campo da informática, das telecomunicações, do nível de portabilidade ao qual chegamos no

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século XXI acarreta uma série de mudanças nos conjuntos das práxis dos indivíduos. O comportamento, as relações, a cultura, o trabalho e a educação sofrem influência dessas transformações. Segundo Cristina Costa: É nesse cenário que a educação tem que rever seu paradigma letrado e adentrar o campo das imagens e das linguagens tecnológicas para que possa ultrapassar as barreiras que separam duas culturas: uma, eurocentrada, iluminista e burguesa, baseada na escrita como forma de produção e controle do conhecimento; e outra, globalizada, massiva, baseada em múltiplas linguagens e tecnologias de comunicação, dentre as quais se afirmam de forma hegemônica os meios audiovisuais. (2013, p. 23, grifo meu)

A autora torna evidente a relevância da incorporação da linguagem audiovisual por parte do ensino devido sua presença marcante na sociedade contemporânea, além da estruturação de ações pedagógicas que permeiam o sistema escolar de acordo com as necessidades atuais, acompanhando as transformações de nosso tempo. Recorrendo aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do ensino médio na seção da linguagem Arte (Brasil, 2000), verifica-se o incentivo à introdução da prática audiovisual em sala de aula e do reconhecimento do discente como produtor de conhecimento, indo na direção de algo que Félix Guattari (2001, p. 15) aponta como “uma pedagogia capaz de inventar seus mediadores sociais”. Quanto às competências e habilidades a serem desenvolvidas em Arte, os PCNsr ecomendam a realização de produção artística nas várias ramificações que compõem a área: “música, artes visuais, dança e teatro, ampliando saberes para outras manifestações, como as artes audiovisuais” (2000, p. 46), de forma que o aluno possa melhor compreender os distintos processos de produção, como manifestações socioculturais e históricas. Indica-se que o estudante desse ciclo saiba fazer arte em telas informáticas, vídeos, CD-ROM, dentre outros, destacando as artes audiovisuais e seus componentes. Referindo-se à fruição, interpretação e análise do conjunto das artes visuais, existe a necessidade de analisar os meios de arte elaborados através das novas mídias e artes audiovisuais, favorecendo a conscientização a respeito dos meios audiovisuais de comunicação, informação e representação. Também é citada a importância da valorização das manifestações audiovisuais, sugerindo que nas aulas seja estimulada a percepção de homens e mulheres na qualidade de seres sociais e simbólicos que “pensam e se expressam através de signos também visuais, audiovisuais e que se

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desenvolvem pelo contato sensível consciente com os signos de sua própria produção, da produção de seus colegas” (Brasil, 2000, p. 55). Além do incentivo à produção audiovisual presente nos PCNs, temos consciência deque atualmente os dispositivos de produção de conteúdos midiáticos invadem nossas vidas e adentram nossos cotidianos radicalmente. Com o passar do tempo, a abundância de material gerado pela ação no campo do audiovisual impulsiona diálogos instigantes entre a comunicação, informação e o vídeo.Pensando na exploração de sua capacidade de externar manifestações sígnicas e problematização de valores, existe uma grande preocupação em retratar os indivíduos e suas condições e posicionamentos. Segundo Paula Sibilia: Nas últimas décadas, com a expansão dos meios de comunicação audiovisuais e a consolidação dos modos de vida que Guy Debord vislumbra, em 1967, com a instauração de certa “sociedade do espetáculo”, aprendemos a viver num permanente deslizamento entre imagens. E, ainda, em meio a essa proliferação imagética, verifica-se hoje um crescente devir-imagem em termos de subjetividade e corporeidade; isto é, uma incitação à produção do “eu” na esfera do visível. (2013, p. 119)

A produção de si na esfera do visível bem como a multiplicação da produção de subjetividade são alguns dos destaques do fazer audiovisual inserido no organismo escolar. Os mecanismos e aparatos que caracterizam a contemporaneidade propiciam vias pelas quais os indivíduos podem se manifestar projetando-se através de sons e imagens em movimento para alcançar e dialogar com outros sujeitos e situações. Os canais em plataformas de compartilhamento de material audiovisual como o You Tube e até mesmo o Vimeo, da autoria de cidadãos que querem deixar sua opinião sobre diversos assuntos, vem crescendo de maneira extremamente vultosa, atingindo milhares de espectadores que por sua vez podem se comunicar com o responsável do vídeo para trocar ideias. Essa descentralização da produção e disseminação de saberes faz perceber novamente a importância exercida pela prática audiovisual na sociedade em que vivemos atualmente.

Desalinhamentos: sensibilização do olhar Focalizando a produção audiovisual no ensino de Arte, proponho experiências desprendidas dos vídeos padronizados da cultura de massa e de práticas tradicionais tais

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como roteiro, enquadramento e iluminação. Ao invés disso,busco trilhar minha proposição muito mais na direção de possibilidades experimentais através da linguagem do vídeo com o objetivo de desalinhar o olhar nutrido pelas ramificações da mídia massificada. Sobre esse assunto, Guattari diz que a juventude é “esmagada nas relações econômicas dominantes que lhe conferem um lugar cada vez mais precário, e mentalmente manipulada pela produção de subjetividade coletiva da mídia” (2001, p. 14). Seguindo a linha de pensamento do autor, penso que a produção audiovisual, através da comunicação e troca de conhecimentos entre os sujeitos, auxilia os estudantes em seu posicionamento mais sensível e crítico perante a mídia, inclinando-os para a construção de uma pseudo-identidade cultural. O objetivo aqui é uma ampliação no repertório imagético dos jovens, oferecendo-lhes outras possibilidades de expressão/produção de seus conhecimentos e subjetividades, buscando na linguagem audiovisual, própria da cultura de massa, “antídotos para a uniformização midiática e telemática, o conformismo das modas, as manipulações da opinião pela publicidade, pelas sondagens” (Guattari, 2001, p. 16). Através dessa prática, busca-se possibilitar um distanciamento entre o jovem e os conteúdos e modelos estéticos das imagens que ele vê nos canais midiáticos em geral, para que dessa forma seja capaz de se apropriar da manifestação audiovisual podendo expressar-se de maneira mais autônoma e singular. Com as questões anteriormente citadas em mente, foi projetada uma oficina de audiovisual contextualizada no ensino de Arte na tentativa desviar o participante da zona de conforto em relação à sua maneira de olhar. O desconforto momentâneo tenciona problematizar alguns pontos da influência da mídia sobre nossa maneira de ver e de se relacionar com o nosso meio. Essa oficina, delineada a seguir, será realizada nos próximos meses com estudantes de diferentes faixas etárias e contextos, inclusive com uma turma de Estágio Docente de uma graduação de Licenciatura em Artes Visuais. Na primeira etapa da oficina, são explorados dois vídeos relacionados ao olhar que interage e (re)interpreta o meio que o cerca, buscando uma discussão sobre o assunto através da análise e reflexão sobre as imagens em movimento. Os audiovisuais em questão são as obras Cinema Lascado(2010) de Giselle Beiguelman e Você Não Está Aqui (2012) de Giselle Beiguelman e Fernando Velázquez. A primeira obra resultou de gravações feitas no Elevado Costa e Silva, conhecido como “Minhocão”, na cidade de São Paulo. Nesse vídeo é possível visualizar

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fragmentos visuais distorcidos, quebrados e acoplados que trazem o aspecto urbano que compõem o Minhocão, lançando sobre esse ambiente um olhar desapegado de convencionalismos. Já a segunda obra escolhida consiste em uma vídeo instalação que traz um banco de imagens contendo as paisagens de vários lugares, as quais o espectador pode escolher e editar através de modificações de elementos da imagem (a cor, por exemplo), reeditando os caminhos percorridos e capturados pelos artistas. A instalação é exposta por meio de um dispositivo que exibe as imagens em 360 graus, que por sua vez acompanha a movimentação de quem está interagindo com a obra. Em uma etapa de reflexão após o confronto com as obras, caberá discutir sobre nossos percursos e elementos cotidianos e como nos relacionamos com eles, o que nos ronda diariamente e como percebemos esses trajetos, o que nos guia e nos desvia por entre eles? Em um segundo momento será realizado um passeio, uma caminhada por entre trajetos cotidianos, porém este passeio não é efetuado de maneira costumeira.Será confeccionado um canudo fino com folha sulfite A4 que servirá como instrumento direcionador do olhar do transeunte: ele deverá limitar-se a observar a paisagem através do canudo. A dinâmica é inspirada em uma experiência realizada por Azevedo (2013). Essa ação vislumbra “uma estética que brota de um recorte, de um novo que surge com a limitação do olhar e que, paradoxalmente, amplia esse olhar [...]” (Bemfica; Azevedo apud. Azevedo, 2013, p. 234). Através da momentânea limitação do olhar afunilado no canudo, nasce a provocação de uma maior atenção aos detalhes e direções que vão sendo percorridas. Em função dessa experiência peculiar, o olhar fica à margem de modificações que tendem à aguçar sua sensibilização, culminando em um olhar que desabrolha desse enquadramento singularmente atento. No percurso, através dos desbravamentos potencializados por esse olho que afunilou seu campo de visão para melhor conhecer seu ambiente e entender alguns porquês de seus métodos de perceber visualmente, propõe-se a produção de um audiovisual experimental. Essa produção deve expressar de alguma maneira, quais foram os elementos que lhe chamaram atenção, as diferenças causadas pela nova formatação do olhar condicionado ao “binóculo” de papel e os sentidos engendrados durante o percurso. Em seguida, será realizado o compartilhamento do material produzido entre os participantes da oficina para que haja uma troca de ideias sobre o processo de criação.

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Através da análise das imagens e discussão sobre a experiência, será possível refletir a respeito dos elementos e imagens midiáticas que já fazem parte do cotidiano de professores e alunos, comparando-os com a nova estética descoberta durante a prática, indo na direção de um saber mais significativo e da sensibilização do olhar.

Desassossegando meu olhar: considerações em curso Pretendendo experimentar a atividade que criei para entender como eu iria me comportar diante da proposta, achei importante realizar uma auto aplicação das ações que dão corpo à oficina. Assim, realizei todas as etapas descritas anteriormente e descobri algo que meu olhar nunca antes havia percebido. As primeiras dessemelhanças entre a forma de olhar a que estou habituada, com os dois olhos, e a proporcionada pelo binóculo de papel, foram a desestabilização do equilíbrio no meu caminhar e a percepção de mim mesma como um corpo. Senti como se toda minha estrutura física de repente estivesse concentradano alicerce de meu olhar, como se minha essência fosse meu campo de visão, desconectando-me de meus outros membros. Minha atenção e percepção estavam focalizadas naquela moldura afunilada. Continuando minha caminhada curiosa, também precisei mirar meu olhar constantemente em direção aos meus pés, direcionando-o à um nível inferior daquele ao qual estou acostumada. Foi então, que em um desses olhares voltados para baixo, deparei-me com algo que eu nunca antes havia reparado, mesmo estando em meu caminho diariamente. Presa à lataria de um caminhão pelo qual passo diariamente, estava uma volumosa e cintilante teia de aranha, do tamanho de uma bola de futebol, gotejada por delicadas e minúsculas esferas de água, que haviam sido concebidas pela cerração daquela manhã gélida.Pela primeira vez vi uma teia cravejada por gotinhas lustrosas, uma trama que parecia um complexo colar de pérolas. Fiquei impressionada por sua sustentação: a grande estrutura de filetes estava presa à um miúdo fio prateado, que ligava-a às pedras do calçamento no chão. Aqueles estreitos fios metálicos que amparavam brilhantes gotas de água despertaram-me para uma delicadeza que por algum tempo meu olhar havia esquecido. A pressa cotidiana somada à enxurrada de imagens midiáticas que me encharca diariamente iam aos poucos embrutecendo minha maneira de apaixonar-me através de

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meus olhos, de produzir signos por meio das preciosidades corriqueiras que perpassam meus caminhos. Após a experiência, novamente tensionei meu olhar na produção de um vídeo experimental ao qual intitulei como Finos Fios (conforme Figura 1). Ousei aventurarme com minhas percepções através das significações que transpassaram-me tanto no trajeto que me conduziu até a teia, quanto na gravação de minha descoberta e na pósprodução das imagens e sons captados. Uma nova sensação desabrochou sintonizada no canal de meu olhar, que se desassossegou para espreitar o ambiente por meio do binóculo e descobrir novos elementos.

Figura 1- Frames do vídeo Finos Fios, 2016. Fonte: Acervo pessoal da autora.

Através de minha vivência pude perceber a efetividade da configuração da oficina em relação ao meu objetivo de desnaturalizar, desalinhar, desenquadrar, desestabilizar, desestruturar, descodificar edesconfigurar o olhar endurecido e alienado pela velocidade imposta pela contemporaneidade e pela padronização estética e de conteúdo nutrida pela mídia de massa. É na potência de desnaturalização das subjetividades pelo viés da produção audiovisual experimental explicitado nas linhas que compõe o presente texto, que vislumbro valorosas possibilidades de sensibilização do olhar no ensino de Arte. Referências: ALMEIDA, C. Z. As relações arte/tecnologia no ensino da arte. In: PILLAR, A. D. (Org.).A educação do olhar no ensino das artes. 4. ed. Porto Alegre: Mediação, 2006. AZEVEDO, C. T. Por uma educação ambiental biorrizomática: cartografando devires e clinamens através de processos de criação e poéticas audiovisuais. 2013. 350 f. Tese (Doutorado em Educação Ambiental) – Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande. 2013. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros curriculares nacionais (ensino médio) – linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2000.

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COSTA, Cristina. Educação, imagem e mídias. 2. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2013. GARCIA, B. F. C. S.; BARAÚNA, D. N. A; MANESCHY, O. F. Audiovisual no ensino médio: videoarte paraense como conteúdo e material didático. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 22., Belém, 2013, Anais... Belém: ANPAP/PPGARTES/ICA/UFPA, 2013. v.1. p. 1009-1022. GUATTARI, Félix. As três ecologias. 11. ed. Campinas: Papirus, 2001. SIBILIA, Paula. Os corpos visíveis na contemporaneidade. In: BRASIL, A.; MORETTIN, E.; LISSOVSKY; M. (Orgs.). Visualidades hoje. Salvador: EDUFBA, 2013.

Referências Audiovisuais: CINEMA lascado. Direção: Giselle Beiguelman. Produção: Giselle Beiguelman. Videoarte, 04'18". Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mMR4PQV42jo>. Acesso em junho de 2016. VOCÊ não está aqui - gisellebeiguelman e fernandovelázquez - emoção art.ficial 6.0 (2012). Direção: Itaú Cultural. Produção: Itaú Cultural. Fragmento explicativo de videoinstalação, 01'00". Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NplS765RwU0>. Acesso em junho de 2016.

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UMA APRENDIZAGEM EM DESLOCAMENTO: TERRITÓRIOS E PAISAGENS INVENTADAS

Aline Nunes Resumo: A escrita traz o tema dos deslocamentos territoriais enquanto processo que aciona uma aprendizagem no campo das artes visuais por meio de caminhos nãoformais, nos quais os deslocamentos são entendidos como potências de reinvenção, presentes nas narrativas de sujeitos em deslocamento territorial. No texto é abordado o conceito de desterritorialização (DELEUZE e GUATTARI, 1989; 1997; 1997a) como forma de problematizar os modos com que nos relacionamos e lidamos com os desejos de partida e as mudanças de territorialidades. Palavras-chave: Deslocamentos, Paisagens, Desterritorialização, Educação das Artes Visuais. Abstract: Writing raises the issue of territorial displacements as a process that triggers a learning in the visual arts through non-formal ways in which the displacements are seen as reinvention of powers present in the narratives about territorial displacement. The text is addressed the concept of deterritorialization (Deleuze and Guattari, 1989; 1997; 1997a) as a way to discuss the ways in which we interact and deal with starting desires and changes of territoriality. Keywords: Displacements, Landscapes, Deterritorialization, Visual Arts Education.

Errâncias Uma pesquisa sobre deslocamentos territoriais, produzida em deslocamento e enquanto ela mesma um deslocamento. Movimentos de desterritorialização e reterritorialização, que não tinham a ver com o ato de deixar ou ganhar territórios geográficos, mas sim, que tinham a ver com abalos, revisões de mundos, afetos, negociações consigo e com o outro, movimentos, estados de território. Como pessoas que vivenciam processos de mudanças territoriais produzem em si deslocamentos para além da mudança de cidade, estado ou país? Que mudanças, que torções de pensamento acontecem em meio a estas experiências, produzindo desterritorializações? Que mudanças são disparadas, e que aprendizagens acontecem? Os questionamentos que disparam esta escrita configuram parte da tese intitulada “Sobre mudar de paisagens, sobre mirar com outros olhos: narrativas a partir de deslocamentos territoriais”, realizada no Programa de Pós-Graduação em Arte e

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Cultura Visual, da Universidade Federal de Goiás (PPGACV-UFG). Nesta pesquisa, as narrativas autobiográficas produzidas em torno ao tema do deslocamento territorial foram potências para aprender: sobre o outro, sobre mim, e sobre como nos construímos na medida em que nos deixamos tocar, encharcar, contaminar, produzindo assim mudanças naquilo que temos como territorialidades. Deleuze e Guattari (1988; 1997; 1997a) em seu conceito de desterritorialização dizem que, para que haja tal ruptura é necessário que antes haja um território, com fronteiras bem demarcadas. Ainda, reforçam a ideia de que, havendo desterritorialização haverá, por conseguinte, novos movimentos de reterritorialização, pois que, haverá sempre a necessidade de se criar novos portos, novas terras por onde estabelecer outros vínculos. A reterritorialização compreende um reposicionamento, ainda que provisório: pressupõe novas aprendizagens em outras relações, mas mantendo ainda o elemento desterritorializado. Sair de um território, deixar o que antes era seguro e familiar, desacostumar-se de espaços, ideias e pessoas coloca-nos em perspectiva, nos tira o que antes era certeza, e nos obriga a ver com nosso “olho vibrátil”, esta potencialidade que não mais o deixa ver de modo desatento, mas que o faz ser tocado pela força daquilo que vê (ROLNIK, 1997, p.01). Quando nos deslocamos entre lugares, saindo de um território para (aos poucos) conquistarmos outro, como vamos narrando a nós mesmos a partir deste ato? Como nos reposicionamos a partir da saída de um lugar já conhecido para outros, sem vínculos e propriedades, nos quais se tem a possibilidade de contar-se de outros modos e de criar novos laços? Como forma de tentar mapear algumas das coisas que passam em meio aos trânsitos por entre territórios, e a partir dos diálogos com autores e com sujeitos que se encontravam em deslocamento territorial, no decorrer do exercício de pensar sobre o tema de investigação fui percebendo que as mudanças mais importantes não se tratavam exclusivamente do lugar em si, geográfico, mas daquilo que se é capaz de agenciar a partir dele. Não por acaso, meu encontro com o conceito de desterritorialização acabou se mostrando potente para pensar, problematizar ou mesmo, para produzir possibilidades de experimentação, que estivessem implicadas e interviessem nos modos com que nos relacionamos e lidamos com os desejos de partida e as mudanças de territorialidades. O conceito, por sua vez, não foi tomado como totalidade de um pensamento. Ele foi

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empregado para cartografar um processo, utilizado de forma fragmentada, naquilo que me parecia conveniente. Das derivas produzidas nesta tese doutoral, mais do que registrar vivências e memórias, dando conta de fatos, acontecimentos e da própria sucessão de dias, o intuito foi convidar os sujeitos participantes deste trabalho a pensarem sobre o que neles era deslocado enquanto se deslocavam. Pensar sobre a própria experiência de sentir-se estrangeiro de si, na medida em que se colocavam à prova, em que se colocavam em estado de espreita (DELEUZE e PARNET, 1988) em nome da possibilidade de dar vazão ao que é diferente daquilo que já lhes era sabido. Ou seja: no caso do processo empreendido, importou-me conhecer e também dar visibilidade àquilo que era fabricado, inventado e torcido a partir das mudanças territoriais vividas. Preciosa (2010) nos fala sobre este sujeito que, confrontado por suas experiências, é capaz de sair de si, ver-se outro, mas que para isso é necessário um esforço para torcer este sujeito ao qual se acostumou a ser. É preciso investimento, é preciso correr o risco. Desde esta concepção, instaura-se também um novo viés para pensar a educação em artes visuais, pautada não somente nas situações regulares e formais de ensinoaprendizagem, vinculadas a escolas, museus e outros espaços educativos. Ante esta posição proposta pela pesquisa, a educação em artes visuais, a experienciação artística, os sentires de quem produz e é atravessado por imagens se dão nos espaços do viver e geram aprendizagens. As experiências de deslocamento territorial, seguramente, provocaram nos sujeitos uma capacidade de observar, de invencionar para si novas narrativas de vida, marcadas pelos acontecimentos desdobrados de seus trânsitos, seus embates e seus confrontamentos com diferentes meios e contextos culturais. Deste modo, a experiência estética está intrinsecamente relacionada aos processos de desterritorialização: marcada pelos fluxos de pensamento, pelos modos de ver transformados na viagem, pelo desejo de recriar paisagens próprias, nas quais outras relações de pertencimento fossem inauguradas. Enquanto marco teórico, a investigação orientou-se pelos Estudos de Cultura Visual, entendendo-os como uma possibilidade de compreender como se dão e se conectam as questões que envolvem os deslocamentos territoriais, e as formas com que diferentes sujeitos se relacionam com esta condição.

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Dialogo com Martins (2012, p. 228), ao dizer que “a cultura visual, entendida não como substantivo, mas como orientação epistemológica, oferece um conjunto interdisciplinar e dialogal de referenciais possíveis as aproximações dos assuntos eleitos para investigação”. Mais do que situar o objeto e os sentidos que produz, importa o contrário deste movimento: os sentidos que produzimos, as conexões que traçamos com espaços, lembranças, histórias vividas em diálogo com outros sujeitos, e que daí resultam matérias onde se possam perceber as relações tramadas, tomando a Cultura Visual como lentes para ver e interatuar nestes processos. Portanto, neste estudo a cultura visual operou como uma abordagem que busca entrecruzar os sentidos que são produzidos por espectadores, autores e demais sistemas a partir das entre-relações entre o que é visto e de como se é visto (HERNÁNDEZ, 2010). Neste caso em particular, tornou-se relevante discutir como as mudanças que derivam dos deslocamentos e demais tipos de transições territoriais estão carregadas de sentidos e embates, expostos nas narrativas (sejam elas orais, visuais, escritas...) que os circundam e constroem. No que diz respeito às imagens selecionadas para compor este texto, tratam-se de fragmentos dos percursos realizados: tanto percursos geográficos, como também frutos dos percursos teóricos e metodológicos empreendidos. As visualidades não tem por intuito representar ou mesmo ilustrar, mas sim, provocar relações, conexões com e a partir do que fora vivido durante o ato de deslocar-se. De certo modo, pode-se pensar que as imagens presentes na tese (e trazidas de modo reduzido neste artigo) operaram de forma complementar, ampliando, acrescentando detalhes e evocando ideias que, somente pela palavra talvez não nos ocorressem.

Lugares de passagem “Un amigo me dijo una vez que el verdadero viaje de descubrimiento no consiste en cambiar de paisaje, sino en mirar con otros ojos”3.

A partir da deriva, encontram-se superfícies irregulares: calçadas quebradas, ladrilhos desgastados que apontam caminhos de passagem, solos arenosos, poças de barro que nos fazem cambiar o ritmo e a distância entre passos, para que se transformem em saltos. Experimentar estas rotas é também uma forma de criá-las, de inventar e 3

Fala da personagem Lucía, no filme “La hijadel canibal”, em português intitulado como “Aos olhos de uma mulher”.

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“delirar caminhos”. Delirar paisagens que só existem nas histórias de cada um, que vai montando seu quebra-cabeça existencial, a partir das peças catadas durante o percurso. Nem só de caminhos se cria este quebra-cabeça, muito dele se configura dememórias guardadas: uma cor de céu, um dia de vento norte, o ruído das janelas batendo. Um passeio de bicicleta que inclui um tombo numa esquina de chão molhado e, de quebra, contorce o corpo com gargalhadas. A tese teve como propósito discutir a constituição de paisagens tomando como matérias os escritos, os fragmentos de conversa, as imagens e outros fenômenos visuais(ILLERIS e ARVEDSEN, 2012) que marcaram os deslocamentos vivenciados, observando a partir disso os movimentos de desterritorialização e reterritorialização, contínuos ao longo do percurso investigado. Das escritas autobiográficas e das imagens relacionadas às suas experiências, partindo de algumas recorrências, deu-se o surgimento de paisagens. As paisagens, contudo, iam além da figuração/representação dos espaços: operavam como ideias e conceitos para dizer desses fluxos de desterritorialização e reterritorialização, percebidos nas narrativas dos sujeitos envolvidos nesse processo. As paisagens que configuraram tais fluxos foram: - Callejeo:

Imagem 1: Voile (2014). Aline Nunes. Fonte: arquivo pessoal

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A ideia de callejeo enquanto paisagem ajuda a pensarmos na potência existente em se deixar levar, no ato de sair para ver o que pode ser descoberto, capturado durante esse vagar por entre espaços. Por esses movimentos ensaiamos, ainda que timidamente, a possibilidade de fazer diferente daquilo que já se nos apresenta como desgastado. A desterritorialização supõe mais do que uma saída de um espaço físico concreto, exige uma desocupação no próprio corpo, daquilo que costumávamos ser. É “a demolição brutal de experiências gastas e formas foscas” (PRECIOSA, 2010, p. 54). - Um em casa, outro:

Imagem 2: “Provvisorio” (2013). Aline Nunes. Fonte: arquivo pessoal

A casa neste caso pode ser entendida enquanto agenciamento (DELEUZE e GUATTARI, 1997), isto é, possibilidade de combinar elementos heterogêneos que, ao serem mesclados, tornar-se-ão distintos daquilo que foram inicialmente, elevando sua potência. Espaço aberto às combinações daquilo que nos importa, daquilo que nos toca e que merece ser guardado, trazido conosco para ser bricolado junto a sentimentos, histórias e imagens que, emaranhados criam um lugar. Os indivíduos nômades não se distinguem dos sedentários pelo desapreço a uma porção que possam chamar de casa. Distinguem-se sim, pela abertura em ver sua casa transformada de tempos em tempos, cambiada, dilacerada por suas próprias convicções de que mesmo a casa, que congrega uma ideia de fixidez, deve ser efêmera, deve contemplar a possibilidade de virar ruína.A casa talvez mais do que um lugar concreto e

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endereçado, seja um conceito flutuante criado para dar conta da necessidade de algo que nos faça sentir abrigados, confortados e seguros, e isto tudo é também variável a depender de como e de quem desenha para si esse território. - Quem de dentro de si não sai:

Imagem 3: Bòvila (1982). Olga Pérez García. Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10204076599657888&set=a.3511367105500.172517.131156 6949&type=1&theater

Se, para Deleuze só se pensa porque se é forçado, porque existe algo que, estando fora do pensamento o força a fazer novas conexões, o faz vibrar, rompendo com estratificações e com aquilo que estava cristalizado, esta paisagem é também feita a partir de um esforço, de uma violência no sentido de forçar-nos a pensar, ser e fazer diferentemente daquilo que nos acostumamos. Nem que seja para seguir fazendo como antes. O que importa é colocar-se em estado de questionamento, permitir-se a dúvida para sair de si, mesmo se optarmos por voltar, pois o retorno nunca será para o mesmo.O sujeito nômade, no decurso de sua marcha, percebe que “lo que es importante es el devenir, el proceso de transformarse en algo diferente, y no necesariamente llegar a serlo” (HORNIKE, 2008, p.66)

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Próxima parada O que conta em um caminho, o que conta em uma linha é sempre o meio e não o início nem o fim. Sempre se está no meiodo caminho, no meio de alguma coisa. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 39)

Imagem 4: sem título (2013). Aline Nunes. Fonte: arquivo pessoal.

Ao lançar esta possibilidade de pensar os sentidos e referências que foram produzidos no decorrer do tempo de pesquisa enquanto paisagens, parto do pressuposto de que estas, assim como os participantes, estão constantemente se transformando. Atuamos e agimos em seus espaços, desmanchamos algumas formas e alguns mundos, e recriamos outros conceitos e perspectivas para experimentá-las. Vivenciamos processos contínuos de desterritorialização e reterritorialização a partir de experiências ínfimas, menores. Assim, ao longo da tese, defendi que as paisagens se modificam, conforme mudamos nossos pontos de vista, nossos modos de ver e relacionarmo-nos com o que se passa em nossas vidas, sempre de modo engendrado às transformações sociais e à cultura. Nestes processos de transformação, a

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experiência nos permite aprender, nos condiciona a fazer diferentemente daquilo que já fora feito. O deslocamento territorial atua como lugar (não-lugar) de aprendizagem, de reflexão, de criação. Fabricação contínua de territorialidades, de universos nos quais imprimimos nosso estilo, nossas visões de mundo, nossas visualidades. Tudo isso carregado de histórias e desejos, que configuram novas conexões, agenciamentos e assim, produzem aprendizagens. Por isso, é importante não parar agora, é preciso seguir movendo-se, para que outros terrenos sejam revolvidos e outras narrativas possam ser inventadas, sobre paisagens que ainda são devir. Neste sentido, a pesquisa segue reverberando, convidando-me a pensar sobre os modos com que atuo enquanto docente de artes em nível de graduação, colocando-me a interrogar sobre aquilo que é, ou deve ser, desterritorializado em minha prática e com os grupos discentes com os quais venho atuando. As paisagens inventadas, citadas anteriormente, servem também como categorias passíveis de dialogar com os processos de aprender, conhecer e problematizar a docência em artes e seu campo de experimentação poética. Finalmente, posso dizer que os deslocamentos territoriais (e novamente reitero que não se restringem ao âmbito geográfico) são brechas e possíveis que me levam a produzir uma nova narrativa para a educação das artes visuais.

Referências: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997a.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. O abecedário de Gilles Deleuze: transcrição integral do vídeo, para fins exclusivamente didáticos. Éditions Montparnasse: Paris, 1988.

HERNÁNDEZ, Fernando. Para a Erina ninguém diz nada...e nós não podemos fazer o que queremos. A educação da cultura visual na educação infantil. In: MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene. (orgs.) Cultura Visual e infância: quando as imagens invadem a escola... Santa Maria: Editora da UFSM, 2010. pp. 71-85.

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HORNIKE, Dafna. Los sujetos nómades en ClariceLispector y Mayra Santos-Febres. Tese de doutorado. Universidade de Alberta, 2008. ILLERIS, Helene; AVERDSEN, Karsten. Fenômenos e eventos visuais: algumas reflexões sobre currículo e pedagogia da cultura visual. In: MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene.(orgs.) Culturas das imagens: desafios para a arte e para a educação. Santa Maria: Editora da UFSM, 2012. pp. 283- 309.

LA HIJA DEL CANÍBAL. Antônio Serrano. 2003. (México)

MARTINS, Alice Fátima. Arena aberta de combates, também alcunhada de Cultura Visual: anotações para uma Aula de Metodologia de Pesquisa. In: MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene.(orgs.) Culturas das imagens: desafios para a arte e para a educação. Santa Maria: Editora da UFSM, 2012. pp. 211-233. PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS, 2010.

ROLNIK, Suely. Uma insólita viagem à subjetividade - fronteiras com a ética e a cultura. 1997. Disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/viagemsubjetic.pdf Acesso em 12 de junho de 2012.

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A EDUCAÇÃO ESTÉTICA NO ENSINO TÉCNICO/PROFISSIONAL: A DESCONSTRUÇÃO DO MECANICISMO PELA PRÁTICA EMANCIPATÓRIA DO ENSINO DA ARTE.

Cristiane Herres Terraza Resumo: O presente texto busca refletir sobre a educação estética na educação técnica e profissional, analisando também a legislação de criação da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e como tal lei fomenta uma prática educacional que ofereça aos estudantes o acesso ao desenvolvimento de seu potencial crítico e criador e não apenas mecanicista. Palavras chave: Ensino profissional, educação estética, legislação. Abstract: The aim of this paper is to reflect about aesthetic education in technical and professional education, while also analyzing the law that created the Federal Network of Professional, Scientific and Technological Education and how that law promotes educational practices that allow students to develop their critical and creative potential and not just their mechanistic potential. Keywords: Professional education, aesthetic education, law.

Introdução O histórico da educação profissionalizante no Brasil deixa claro o quanto tal educação constituiu-se contraditória, na medida em que, ressaltando o caráter mecanicista, submetia os indivíduos por ela atendidos à lógica da estratificação do trabalho, explicitando a “separação entre concepção e execução e de parcelarização e repetitividade do trabalho” (PICANÇO, 1995, p. 92). Por destacar em suas práticas o treinamento estrito de habilidades que poderiam atender as vagas existentes no mercado, a educação profissional brasileira acentuou a divisão social do trabalho, reforçando a segmentação e o dualismo entre educação humanista e educação técnica (Decreto n. 2.208/97, PLANFORi). Enfatizou-se, portanto, “[...] a formação para o trabalho simples e da não preocupação com as bases da ampliação da produção científica, técnica e tecnológica e o direito de cidadania efetiva em nosso país” (FRIGOTTO, 2007, p. 1139). Ou seja, as práticas da educação profissional distanciavam-se dos trabalhos ditos intelectuais, voltando-se às habilidades mecanicistas, desprezando, assim, o caráter emancipatório da educação.

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Considerando que a atividade produtiva pode consistir como modo pelo qual o indivíduo age na sociedade e que, derivada dessa ação, conformam-se as relações que mantêm ou modificam as realidades, a formação para o trabalho deve buscar a criticidade inerente à formação de percepção e criticidade, de modo à sempre promover o desenvolvimento das capacidades criadoras e de autonomia, em busca do bem-estar tanto individual como coletivo. Nessa perspectiva, é imperativo fazer da prática pedagógica um modo de emancipação às práticas sistêmicas de agenciamento coletivo de desejos, por meio de uma proposição que trate as realidades de modo complexo. Assim, deve-se intencionar na educação técnica e profissional, o empreendimento de reflexões sobre a lógica produtiva, sobre o coletivo e os sistemas de cooperação, sobre o individualismo derivado da lógica do consumo, bem como o propósito maior do estar-com e do serpara. (BAUMAN, 2011, p. 74). A educação estética, conforme já há muito colocado por Read (READ apud SOUSA, 2003, p.25), pode promover esclarecimentos sobre as determinações exercidas pelas realidades políticas e econômicas que forjam o social e que imprimem na sensibilidade do estudante as forças de permanência de sua sujeição ao sistema. Almejase que a partir de uma formação emancipatória, o indivíduo habilite-se a atravessar a estetização da realidade característica de nossa época por seu olhar crítico e ativo. Este texto busca refletir sobre a importância da educação estética no ensino técnico e profissional, ressaltando como o incremento da capacidade crítica/sensível pode auxiliar, por um lado, na desconstrução do mecanicismo e, por outro, na promoção de emancipação e autonomia em relação à objetividade imediatista relacionada às demandas do mercado e, extensivamente, aos processos sociais generalizantes. Embora a defesa de tal prática não se constitua como novidade, poucos são os cursos técnicos subsequentes ao Ensino Médio existentes na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica em que essa se realiza, excluindo, principalmente, aqueles estudantes/trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho e que concluíram a educação básica de modo acelerado nos chamados antigos ensinos supletivosii.

Educação estética Em seu livro “Caosmose, um novo paradigma estético”, Félix Guattari (1992) propõe uma reflexão sobre os atravessamentos culturais e societários aos quais são

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submetidos os indivíduos e que atuam nos processos de subjetivação individuais e coletivos. Por subjetividade o autor entende o conjunto de condições que torna possível que as instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva (GUATTARI, 1992, p.19)

Guattari argumenta que tal processo de composição de subjetividade se compõe a partir de ações heterogêneas, afirmando que o atravessamento estético ocupa uma “[...] posição chave de transversalidade em relação aos outros universos de valor” (1992, p. 134) por intensificar ao indivíduo a possibilidade de autopoiesis, ou seja, a emancipação na criação de sua subjetivação. O título do livro acima citado aponta a que fluxos os indivíduos são submetidos na formação de sua subjetividade: A ideia do caos como a desconstrução de uma possível hierarquia e ordenação entre os universos de valor que atravessam o indivíduo e, ainda, o uso do fenômeno osmose como metáfora sobre a porosidade deste em relação aos tais universos. Sobre o processo de gênese da subjetivação, pode-se afirmar que é problemático analisar o quanto cada um dos

universos de valor atinge o

indivíduo, bem como sobre como se realiza cada processo de interiorização e endoestruturação. Assim, a caosmose é um novo paradigma ético/estético no que diz respeito à formação de relações, aos afetos e perceptos experimentados pelo indivíduo, à consistência autopoiética da subjetividade e a determinação em posicionar-se contra a categorização. O desenvolvimento da capacidade de apreensão e significação da realidade pelo campo sensível pode conduzir o indivíduo ao empreendimento das associações necessárias à elaboração de conhecimento, uma vez que este “é elaborado, ou ‘produzido’, na expressão de Marx, com o fato de representar mentalmente relações presentes na Realidade e que são aí apreendidas pelo pensamento por via da percepção e intuição” (PRADO JR, 2001, s/p). John Searle (1998, p. 200) afirma que quando ocorre uma conscientização do indivíduo das experiências perceptivas, ele pode criar um entendimento sobre o impacto das realidades em seu corpo, possibilitando também a geração de um impacto intencional deste corpo sobre o mundo. Por essa perspectiva, a

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necessária educação estética se encaminha para a percepção, afecção e atuação no mundo: (...) experimentar “a carne do mundo”. Para tal, seria preciso deixar-se sensível para esse mundo, ainda que imundo. Confrontá-lo com os poros abertos, deixá-lo se mostrar, falar e sentir. A educação estética é um processo de sensibilização do ser. Trata-se de permitir a formação da sensibilidade e da capacidade crítica através da experimentação de uma relação com o sensível. (MEDEIROS, 2005, p. 109)

Dialogando com Marcuse (2007), a forma estética na arte é aquela que promove a “emancipação da sensibilidade” (p. 19) por possibilitar que o indivíduo entre em contato com sua interioridade (p. 40) e, a partir desse contato, examine seus processos de subjetivação, possibilitando a consciência sobre sua inerente condição de busca pela liberdade. O autor pondera, ainda, sobre o fato de que a luta política deve apontar para a criação de um “sistema de necessidades” que inclua “uma sensibilidade, imaginação e razão emancipadas do domínio da exploração” (p. 39). A consciência sobre os modos de agenciamento de desejos e de condução da formação da subjetividade é o caminho para a emancipação em relação às realidades objetivas construídas pela lógica do capital. É pela experiência estética na arte que o indivíduo pode, então, promover a si mesmo um encontro com sua pessoalidade e entender-se como ser livre, mesmo quando se estabelece em uma cadeia de objetiva da produção. Assim, a arte poderia realizar uma educação estética para a emancipação e liberdade dos indivíduos, na medida em que se caracterizasse pela autonomia aos processos objetivos do mundo do trabalho: A intensificação da percepção pode ir ao ponto de distorcer as coisas de modo que o indizível é dito, o invisível se torna visível e o insuportável explode. Assim, a transformação estética transforma-se em denúncia – mas também em celebração do que resiste à injustiça e ao terror, e do que ainda se pode salvar. (MARCUSE, 2007, p. 46)

Ao embrenhar-se na experiência estética, o indivíduo entra em contato com aquilo que está em si mesmo, em sua subjetividade, em seu campo perceptivo e, simultaneamente, com os diversos fluxos que perpassam a obra e que fazem parte tanto do processo criativo do artista, como do sistema da arte. Pode também alcançar, pelas práticas do ensino da arte, às instâncias societárias e históricas nas quais a obra foi gerada, bem como daquelas que a conservam e a reconhecem como pertencentes ao campo da arte. Assim, “uma união da Estética com a Educação não deverá de modo algum significar uma posição de transmissão de conceitos ou uma posição estética, de modo contemplativo e parado” (SOUSA, 2003, p. 76), mas desenvolver-se

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considerando os engendramentos dos discursos enunciativos que conformam a sociedade e atravessam os indivíduos na criação de suas subjetividades e que, inclusive, promovem o objeto criado ao campo da arte. A educação estética, segundo Herbert Read, consiste na educação como uma “reconciliação da singularidade individual com a unidade social” (SOUSA, 2003, p. 25) e da estética como “sabedoria, equilíbrio, auto-realização, gosto – qualidades que apenas podem provir de um exercício unificado de sentimentos para a actividade de viver” (READ apud SOUSA, 2003, p.25). É, portanto, o desenvolvimento de todas as formas de percepção visando sua coordenação na apreensão da experiência, de modo a construir uma expressão de pensamento. Por essa perspectiva, é necessária a análise das sensações e percepções e de como estas são provocadas.

A educação estética na educação profissional A Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, criando os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia- IFs e caracterizando-os como estabelecimentos de ensino, pesquisa e extensão “[...] especializados na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas” (BRASIL, 2008), atendendo a educação superior, básica e profissional. Os objetivos de tais instituições apontam para uma articulação com o mundo do trabalho, enfatizando a produção, o desenvolvimento e a difusão de conhecimentos científicos e tecnológicos. Isso significa que a legislação destaca a função essencial dos institutos como relacionada a tais conhecimentos. Mesmo na previsão de licenciaturas é enfatizada a formação pedagógica “sobretudo nas áreas de ciências e matemática, e para a educação profissional” (BRASIL, 2008). Prevendo, porém, cursos na Educação Básica, os IFs devem cumprir o estabelecido na Lei nº 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e na recente Lei nº 13.278/16 que “fixa as diretrizes e bases da educação nacional, referente ao ensino da arte”iii. Deste modo, o conhecimento e as práticas pedagógicas em arte, nas linguagens das artes visuais, da dança, da música e do teatro, devem ser oferecidos em componente curricular específico nos diversos cursos de Ensino Médio integrados à

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educação técnica e profissional - EMI. Porém, as citadas leis estabelecem somente que o ensino da arte será obrigatório em todos os níveis de ensino, não especificando a peridiocidade que este componente curricular deve ser oferecido. Esta lacuna possibilita a construção de um plano de curso em que tal componente seja ofertado apenas em um semestre durante todo o Ensino Médio, por exemplo. A Lei nº 13.278/16 especifica, em seu artigo 2º, que deve ser realizada, em um período de até cinco anos, “[...] a necessária e adequada formação dos respectivos professores” nas linguagens estabelecidas “em número suficiente para atuar na educação básica.” Assim, a lei prevê que a formação será especifica, mas não trata como será a conformação do componente a ser ofertado durante a Educação Básica. Considerando que o cálculo do número de professores por campus nos IFs é feito a partir da relação número de alunos por professor e não pelo número de componentes a serem oferecidos, muitos gestores optam por ter em suas unidades apenas um professor de Arte. Sendo este formado em uma só linguagem, como cumprir a legislação? Para muitos, isso significará a constituição do professor itinerante que exercerá a docência em vários campi, não se integrando nem ao grupo de professores nem às discussões pedagógicas desses campi por ele atendidos. Tal procedimento fragiliza o processo de integração do componente curricular Arte com os diversos saberes, técnicas e tecnologias tanto da vertente profissional (mecânica, informática, edificações, design etc) como da própria educação básica presente nos cursos. Entretanto, se no EMI à educação profissional o componente curricular Arte está previsto em lei, mesmo que, no momento, sua oferta ainda seja problemática, nos outros cursos oferecidos pelos IFs não existe o amparo legal para essa oferta. Nesses cursos, a atuação de arte/educadores depende da preocupação da gestão para a importância de oferta e sistematização de práticas educativas que contemplem tal área de conhecimento.

A

ausência

dessa

preocupação

atinge

diretamente

o

estudante/trabalhador que acumulou prejuízos em sua formação básica no que diz respeito à literaciaiv, inclusive no desenvolvimento de habilidades que possam levá-lo a ‘ler’ o mundo e suas realidades por um viés crítico, fundamentado na educação de sua sensibilidade: A consciência sensível é apenas a consciência da existência de uma relação que se justifica na medida em que ela existe para o próprio sujeito, pois sendo a consciência um produto social ela o será enquanto existirem os homens, decorrendo daí a importância da identidade de classe. Por conseguinte, podemos admitir que se a

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história é o resultado do trabalho-educação realizado pelo homem em luta “pelo autocontrole dos seus poderes”, a sua principal dimensão ética-estética é a consciência que ele faz de si e das relações sociais. (REIS, 2007, p.19)

Considerando a questão apontada por Reis, procede pensar a importância – ou mesmo imprescindibilidade – da presença, nos cursos subsequentes ao Ensino Médio cujo maior público atendido é formado por jovens e adultos que não possuem qualificação específica para atuação emancipada no mundo do trabalho, de práticas pedagógicas que apontem ao desenvolvimento da sensibilidade e da crítica, como aquelas que se realizam, dentre outros componentes, especificamente pelo ensino da arte, por meio da educação estética. Tal presença é aqui defendida em consonância ao pensamento, acima exposto, de autores como Marcuse, Searle e Medeiros. Cabe ressaltar que existem na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, muitos cursos de licenciatura na área de conhecimento da Arte. Recentemente, no evento coordenado pelo Ministério da Cultura e realizado em maio deste ano intitulado “Encontro Cultura e Arte na Educação – Desafios e Perspectivas”, foram discutidas estratégias para implementação da Lei nº 13.278/2016. Os Institutos foram reconhecidos, já na mesa de abertura do evento, como instituições fundamentais na elaboração de tais estratégias, considerando sua capilaridade em território nacional, que supera a das Universidades. Especificamente no Instituto Federal de Brasília - IFB existe uma orientação para o ensino da arte e suas tecnologias constante no item 3.1.9 do Projeto Político Institucional aprovado pela Resolução 008/2012, bem como a orientação, constante no artigo 159 do Regimento Geral do IFB (aprovado pela Resolução 012/2012-CS-IFB, em 08/02/2012), de construção dos currículos observando, entre outros princípios, a estética da sensibilidade. São muitos os estudos que afirmam que o processo de formação profissional deve centrar-se na compreensão de que a transformação da realidade implica na capacidade de produção da existência humana, e para isso, inclui conhecimento para a ação técnica, política e culturalv. Assim, a constituição para o trabalho deve estabelecerse a partir de uma educação que contemple todos os aspectos de desenvolvimento humano na sua conscientização de si mesmo e dos atravessamentos societários que incorrem na criação de sua subjetividade, bem como da realidade estabelecida em que se encontra, apontando esta formação para o reconhecimento das suas responsabilidades sobre a construção de um mundo, a partir de suas ações.

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Ao refletir sobre uma formação integrada, Ciavatta (2005) aponta que é necessário pensar de modo a superar a histórica divisão social do trabalho em que uns produzem e outros pensam a produção, que reduz o trabalho ao aspecto operacional separando-o da gênese dos conhecimentos científico-tecnológicos. Como formação humana, o que se é busca garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Formação que, neste sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos (CIAVATTA, 2005, p. 2-3).

Por essa perspectiva, e somando-se a ela as reflexões discorridas acima sobre a importância da experiência estética derivada dos objetos artísticos, torna-se imperativa a inclusão das proposições pedagógicas da educação artística no ensino técnico e profissional. Tais proposições, além de permitir a cada um dos indivíduos a possibilidade de encontro com sua própria subjetividade, estruturam diálogos com as realidades materiais e culturais, considerando o mundo do trabalho e da produção, bem como as classes sociais advindas das estratificações conformadas por este, “[...] como uma construção na experiência das relações de trabalho e de vida” (CIAVATTA, 2014, p. 92), promovendo o entendimento da coletividade que esse indivíduo compõe. No entanto, uma educação estética, tomada como uma educação da sensibilidade, não ocorre na instituição de educação profissional somente a partir do trabalho promovido pelos professores da arte. Existem também as iniciativas que visam objetivar a percepção, assentando-a em valores pragmáticos “[...] pautados nos ‘conceitos de qualidade e respeito ao cliente’” e também no “[...] desenvolvimento de uma cultura do trabalho centrada no gosto pelo trabalho bem feito e acabado.” (REIS, 2004, p. 243), na qual os objetos técnicos e os objetos de uso assumem o lugar da subjetivação proposta pelo fazer e apreciar a arte. Essa perspectiva de estética da sensibilidade é tratada pelos autores do Parecer 16/99 das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico, pela qual a educação dos sentidos deve ser concernente à atuação do trabalhador, de acordo com as exigências do mercado de trabalho. Em oposição a esse pensamento, uma educação estética na educação profissional deve ser capaz de propor o empreendimento de conhecimento, considerando suas múltiplas instâncias – incluindo a histórica. Acredita-se que assim pode se chegar ao

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entendimento sobre a construção de gostos e a que serve esta construção. Deixa-se para trás, portanto, uma vertente positivista do conhecimento, tratando-o de maneira complexa, o que permite e sugere a realização de modos alternativos de representação e de apresentação das reflexões sobre objeto estudado, privilegiando o desenvolvimento da capacidade criadora. Por essa perspectiva, pode-se pensar inicialmente em duas importantes vertentes pelas quais se desenvolvem o trabalho em arte na educação profissional. Uma em que as realidades estabelecidas e os processos estésicos por elas geradas são analisados. Propõe-se, portanto, por meio do ensino das artes visuais, por exemplo, a apropriação e a crítica da cultura visual, partindo dos campos de experimentação dos sujeitos envolvidos e ampliando-se para outros universos, fomentando a comparação e a contextualização. Ressalta-se que a arte contemporânea assume papel fundamental por seu caráter político e sociológico, bem como na proposição de reflexões sobre mercado e sistema das artes. A outra vertente caminha pelo princípio defendido por Luc Ferry (2003) de que se habita atualmente um tempo em que, por admitir todos os gêneros e rejeitar as generalizações, “[...] a obra é definida pelo próprio artista como uma extensão de si próprio” (FERRY, 2003, p.31). Desta forma, o empreendimento de relações complexas, considerando a tessitura de uma rede de significações a partir da amplitude de possibilidade de discursos construídos pelos artistas, favorece o espectador na criação e entendimento de intersubjetividades, enfatizando a diversidade em detrimento do senso comum, em seu significado estrito. Pode-se considerar, ainda, as questões de reconhecimento da diversidade por meio do diálogo com os discursos que geram a criação de cada uma das obras, da vivência crítica da experiência estética como potencial favorecedor de “[...] marcas pessoais de cada aluno no processo de aprendizagem” (MENDES e outros, 2010, p. 49) e igualmente, como já explicitado, de proposição de ação frente à sociedade. Considerações finais Muitas são as práticas pedagógicas no ensino da arte realizadas no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, assim como as ações extensionistas e de pesquisa, embora ainda tenhamos uma legislação para a educação técnica e profissional que reforce o ensino das ciências e suas tecnologias. Tal legislação pouco avança para as especificidades do saber na área de humanidades e da

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arte, o que, mesmo sem se constituir um impeditivo à atuação dos professores, apresenta-se como obstáculo às proposições apresentadas. Um exemplo disso é a precariedade das vagas para a área, ainda que a legislação específica para o ensino da arte na educação básica (Lei nº13.278/16) preveja a oferta de componente curricular específico que aborde as linguagens de artes visuais, artes cênicas, dança e música. A realidade é que não existem professores específicos de todas as linguagens em vários campi dos Institutos Federais, afirmação que tem fundamento a realidade pesquisada em Brasília e os diversos depoimentos dos docentes participantes do I Encontro de Arte/Educadores dos IFs, realizado em São Paulo, conforme informado anteriormente. Além das práticas do ensino da arte no EMI, cresce a oferta de cursos superiores de licenciatura na área, bem como o aparecimento das pós-graduações, ações que se realizam considerando a legislação que delineia a oferta de cursos superiores, conforme alínea b do item VI, artigo 7º, da Lei nº 11.892, em “[...] programas especiais de formação pedagógica, com vistas na formação de professores para a educação básica, sobretudo nas áreas de ciências e matemática, e para a educação profissional” (BRASIL, 2008, grifo nosso). Assim, ainda que não seja o foco da instituição para formação de professores, conforme a legislação, muito se tem efetuado nesse sentido. Em muitos estados, tais cursos suprem a ausência de oferta de cursos de licenciaturas em Arte nas universidades. No delineamento das finalidades e características dos Institutos Federais, artigo 6º da Lei 11.892/2008, pode-se verificar a ênfase no ensino das ciências e no desenvolvimento científico e tecnológico. Porém, o ensino da arte em tais instituições contempla uma educação que tenha por base o desenvolvimento da potencialidade crítica e criadora dos indivíduos, além de atender à referida lei no que tange à necessidade de desenvolvimento socioeconômico, à formação e qualificação dos cidadãos com vistas à atuação profissional nos diversos setores da economia, bem como à realização e ao estímulo à produção cultural. (...) o estético não seria, portanto, apenas algo contemplativo e do espiritual, mas uma coisa também ligada à ação e à vida material. Ou melhor: a contemplação e a espiritualidade do estético ocupariam um lugar importante na economia geral da vida individual e coletiva da sociedade ocidental. (PERNIOLA, 2005, p. 60)

É por esse viés apontado por Perniola, mas também pelos outros autores anteriormente citados, que a discussão sobre a presença da Arte, tanto no ensino como

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na extensão e na pesquisa na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, deve ser ampliada, de modo que a revisão de certos procedimentos, incluindo os legislativos, ocorra, adequando-se a uma proposição de formação integral dos estudantes. Entender a formação estética na perspectiva de Perniola (2005, p. 60) resulta em dizer que o desenvolvimento de uma educação da sensibilidade incide diretamente na economia dos bens simbólicos e das relações societárias a partir de uma autonomia no processo de construção de subjetividades (autopoiesis). Conforme aponta Guattari (1992), o objeto artístico promove “[...] rupturas ativas, processuais, no interior de tecidos significacionais e denotativos semioticamente estruturados” (GUATTARI, 1992, p. 33). A possibilidade de promoção de educação estética por meio do ensino da arte nos IFs pode convergir para o princípio de uma educação emancipatória, cuja “principal dimensão ética-estética é a consciência que” o indivíduo “faz de si e das relações sociais” (REIS, 2007, p.19), e que se apresente como desconstrutora do mecanicismo presente historicamente no ensino profissional. Para isso, tal prática pedagógica deve se propor promotora de liberdade e não construtora de um gosto específico, subordinado aos interesses de um sistema e determinado por uma classe dominante. A experiência no ensino da arte deve afetar tanto estudantes como professores, promovendo neles a consciência sensível em desacordo com os agenciamentos generalizantes, crítica e criadora de novas possibilidades de relações com a realidade.

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FERRY, Luc. Homo aestheticus – a invenção do gosto na era democrática. Coimbra: Almedina, 2003. FRIGOTTO, Gaudêncio. A relação da educação profissional e tecnológica com a universalização da educação básica. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 1129-1152, out. 2007. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br/ Acesso em 22 mai 2016. GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992. IFB. Resolução 008/CS-IFB, de 31 de janeiro de 2012. ___. Resolução 012/CS-IFB, de 08 de fevereiro de 2012. MARCUSE, H. A dimensão estética. Lisboa: Edições 70, 2007. MEDEIROS, Maria Beatriz de. Aisthesis – estética, educação e comunidades. Chapecó: Argos, 2005. MENDES, Rodrigo, CAVALHERO, José, GITALHY, Ana Maria C. Artes Visuais na educação inclusiva. São Paulo: Petrópolis, 2010) PRADO JR, Caio. Teoria marxista do conhecimento e método dialético materialista. Edição Ridendo Castigat Mores. Versão para eBook: eBooksBrasil.org. Disponível em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/caio.html. Acesso em 06 agosto 2016. PERNIOLA, Mario. Contra a comunicação. Lisboa: Teorema, 2005. REIS, R. (2004) Trabalho e conhecimento estético. Trabalho, Educação e Saúde, v. 2 n. 2, p. 227-250. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. [Consult. 2015-04-13] Disponível em URL: http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=NumeroAnterior&Num=23 SEARLE, John. O mistério da consciência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. SOUSA, Alberto B. Educação pela arte e artes na educação. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

i PLANFOR - Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador, depois transformado em Plano Nacional de Qualificação (PNQ), com recursos disputados pelo chamado Sistema S (SEST, SESC, SENAI etc). ii Tal afirmação é fundamentada no recente levantamento realizado durante o I Encontro de Arte/Educadores dos Institutos Federais, realizado pelo Instituto Federal de São Paulo, em maio de 2016, cujos anais anda estão em processo de publicação. Consultar www.even3.com.br/enaeif2016. iii Importante ressaltar que a oferta das quatro manifestações (dança, música, teatro e artes visuais) já previstas pelas Parâmetros Curriculares Nacionais, instituídos em 2000, (que para o Ensno Médio incorporam além das manifestações citadas a ampliação dos saberes englobando o audiovisual e o uso da tecnologia) é reforçada por tal Lei prevendo a obrigatoriamente de professores habilitados especificamente para ministrar tais conhecimentos. Mesmo assim, muitos Institutos Federais realizam concursos de modo genérico para professores de Artes, excetuando-se a especificidade de música. Os professores concursados em Artes (de modo genérico) podem ter a formação especifica em uma das manifestações, porém, devem atuar

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ministrando disciplinas que contemplem os conhecimentos em visuais, cênicas e dança. (Informação debatida em plenária do Encontro de Arte/Educadores dos Institutos Federais realizado pelo IFSP, no complexo cultural Funarte, de 12 a 14 de maio de 2016, em São PauloS.P.) iv Por literacia aqui se entende a capacidade de ‘ler’ os diversos códigos estabelecidos e estar apto à interpretação e resolução dos mais diversos tipos de problemas, incluindo aqueles apresentados pelas realidades sociais nas quais estão contidos os atravessamentos estéticos. v Citam-se aqui pesquisas de importantes autores como Ciavatta (A pesquisa histórica em trabalho e educação. 1. ed. Manaus-Brasília: EDUA (Editora da Universidade do Amazonas) e Liber Livro Editora, 2010), Frigotto (A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre educação e estrutura econômico-social capitalista. São Paulo: Editora Cortez, 1984. 1ª ed.) e Reis (Educação e Estética. Ensaios Críticos sobre Arte e Formação Humana no Pós-modernismo. 1. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005).

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O CONCEITO DE DESAPRENDER NA DOCÊNCIA Jéssica Maria Freisleben Resumo: Este artigo tem por intuito apresentar o conceito de DESaprender na docência.Motivada a questionar e problematizar os modelos de docente que estavam naturalizados em mim, dialogando com o conceito de desaprender de Fresquet (2007) e com o saber empírico oriundo de minhas experiências de formação. No texto explanarei sobre o desaprender na docência, a partir do conceito de Adriana Fresquet, apresentado no livro “Imagens do desaprender Uma experiência de aprender com o cinema”. Palavras-chave: desaprender; aprender; docência. Abstract:This article is meant to introduce the concept of unlearning in teaching. Motivated to question and discuss the teaching models that were naturalized in me, dialoguing with the concept of unlearning of Fresquet (2007) and the empirical knowledge from my training experiences. In the text I shall explain about unlearning in teaching, from the concept of Adriana Fresquet, presented in the book "Images of unlearning an experience to learn from the cinema.". Keywords: unlearn, learn, teaching.

“Eu quero desaprender para aprender de novo. Raspar as tintas com que me pintaram. Desencaixotar emoções, recuperar sentidos.” Rubem Alves

Este artigo tem por intuito apresentar o DESaprenderna docência, a partir das experiências/saber empírico em consonância com as referências que me acompanharam em minha formação acadêmica. Questionava-me há tempos sobre o que estava vivenciando em meu processo formativo e sobre os conceitos de desconstrução e desnaturalização

que

estavam

permeando

minhas

experiências

educativas.

Sensibilizada pela escrita de Adriana Fresquet (2007), em seu livro “Imagens do desaprender Uma experiência de aprender com o cinema”, movimentei-me a escrever sobre este DESaprender.Tivemos um encontro casual. Em uma bela noite de outono. Ressalto essa passagem, pois o encontro se deu ao acaso, a leitura de tal obra não foi recomendada por nenhuma disciplina ou professor do curso de Artes Visuais, no qual sou licenciada. Estava aproximando-me do cinema, buscando possibilidades e referências sobre o cinema como linguagem e como dispositivo para as aulas de Artes

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que planejava ministrar. Estava empenhada em aprender sobre cinema. E vejam com o que me deparei...como DESaprender. De2012 a 2016 fui acadêmica do curso de licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria/UFSM. Durante esse período o exercício de problematizar tornou-se recorrente em minha construção docente, sempre dialogando com o que Garlet, Cardonetti e Oliveira (2014) definem a partir de Foucault, “aprofunda o olhar” pois, “a problematização, diferente da interrogação, exige de nós um distanciamento, necessário para que haja uma desnaturalização, uma desconstrução de noções como verdadeiro/falso, certo/errado, bonito/feio. Esse distanciamento nos permite repensar o que é normativo, questionar de onde surgiu” (Garlet, Cardonetti e Oliveira, 2014,p. 675)

A problematização para Virginia Kastrup (2008), corresponde à ação de inventar problemas em torno das experiências de problematização, pois, a aprendizagem inventiva promove rupturas que propõe deslocamentos cognitivos, isto é, nos incita a pensar alternativas diversificadas.A partir destes conceitos e laborei meus projetos de pesquisa e ensino,planejei minhas aulas e me posicionei como futura docente. A partir da aproximação dos conceitos de problematização e desnaturalização, acabei me percebendo como uma docente que não condizia com o que havia aprendido sobre a figura do professor, entendido como figura central e com autoridade demasiada em sala de aula, dentro de uma perspectiva educacional tradicional, onde o professor era portador do conhecimento, responsável por transmiti-lo aos seus alunos.

Os caminhos que me conduziram ao DESaprender Durante a graduação iniciei minha pesquisa sobre Arte e Infância. Durante a fase de pesquisa e escrita do Trabalho Final de Graduação empenhei-me em conhecer pesquisas mais recentes envolvendo arte e infância. Encontro-me envolvida nesta pesquisa sobre infância até hoje, questionando-me sobre: o que é infância e que infância é esta com a qual me deparo na contemporaneidade?Sobre o conceito de infância encontrei no livro “História Social da Criança e da Família”, do francês Philippe Ariès, referências sobre infância e família inseridas em um âmbito social. O autor atémse aos aspectos da imagem em si e como elas produziram nossos modos de entender infância. O autor examina e descontrói o conceito de infância como um fenômeno

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natural da vida e vai demonstrando como a concepção de infância é uma construção histórica, cultural, fabricada na modernidade. Tentando desnaturalizar a visão de uma infância romantizada, idealizada, pensada no singular, ampliando o conceito para Infâncias, termo no plural.Destaco esta passagem de Jorge Larrosa (1999): (...) a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar a infância como um outro é, justamente, pensar essa inquietação, esse questionamento e esse vazio. (...) Não se trata, então, de que – como pedagogos, como pessoas que conhecemos as crianças e a educação – reduzamos a infância a algo que, de antemão, já sabemos o que é, o que quer ou do que necessita (Larrosa, 1999, p. 184-188).

Diante desta posição que conduzo minha pesquisa e postura docente, como algo a ser convidado a conhecer. Não afirmo saber sobre a infância, justamente porque a infância que vivi é diferente da infância que encontro hoje na contemporaneidade, isso foi algo custoso a entender. Dialogando com David Buckingham, passei a entenderas crianças não como meras receptoras dos artefatos culturais,mas como seres capazes de estabelecer critérios de julgamento frente ao que lhes é oferecido, pois,tomam posições e realizam escolhas diante do que lhes é ofertado. Algo muito importante em meu entendimento, e que passou por um processo de desnaturalização até que pudesse ser compreendidodesta forma. E procurando referências para aprender mais sobre infância, sobre a arte para a infância e sobre a docência. Deparei-me com o desaprender de Adriana Fresquet,propostoa partir do cinema,este encontroabalou-me profundamente. Percebi que estava precisando desaprender um pouco. Não por considerar que havia aprendido muito sobre o assunto, mas porque me encontrava em conflito de valores, significados, interesses e precisava processar e pôr em debate o que havia aprendido. Precisava desaprender o que é infância e o que é ser criança. Desaprender o que é ser/estar professor(a) de artes. Desaprender métodos e perspectivas de ensino. Precisava aprender a desaprender. E Desaprender a aprender. O conceito e o ato de problematizar encaminharam-me ao conceito de desnaturalização do olhar, que segundo Mendes Neto e Oliveira diz respeito a,

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o rompimento com tudo aquilo que estamos de alguma forma pré-dispostos a pensar ou perceber. Ou seja, é o ato de despir-se de visões estereotipadas e conceitos pré-formados, na tentativa de realizar um entendimento mais abrangente do mundo, interpelando diferentes ângulos, enxergando diferentes contextos (Mendes Neto e Oliveira, 2015, p. 9).

O modelo de professor e de aula dentro de uma perspectiva tradicional estava naturalizado para mim, e agora é o que estou pré-disposta a romper. A cada dia aprendemos coisas novas. Atrevo-me a dizer que selecionamos o que vamos aprender. Resgato de minhas memórias a expressão utilizada por meus/minhas professores(as): "Hoje vamos aprender sobre..." Talvez, na intenção de incentivar os estudantes a estudar e mostrar a importância daquela aula, iniciavam-na com este discurso. Mas, hoje questiono-me, será que vamos aprender mesmo? Temos tempo certo e hora marcada para aprender? Será que esse conteúdo que será abordado em aula já não faz parte da vida e das experiências dos estudantes? Será mesmo necessário o professor ressaltar o que será aprendido? E como ele pode assegurar essa afirmativa? Sendo que, aprendemos com os outros, com nossas experiências, aprendemos até quando o intuito não era o de aprender. Por isso, destaco a frase "Hoje vamos aprender sobre...", dita incontáveis vezes por meus professores. Aprendemos conceitos, valores, atitudes... Aprendemos muito na escola, mas será isto suficiente? Em minhas reminiscências sobre as aulas de artes do Ensino Fundamental,me recordo das práticas de desenho livre sem objetivo algum e das atividades de pintar dentro de um contorno pré-estabelecido pelo desenho já pronto, que foram recorrentes no meu tempo de escola. Tais práticas artísticas não contemplavam e agora contemplam ainda menos as possibilidades de problematizar e trabalhar as Artes Visuais na escola. Mas, essas práticas integram minhas lembranças e me fizeram aprender e construir um modelo de professor, enfatizo a figura do professor(a) de arte e aulas de artes visuais, na época intitulada Educação Artística, pois hoje este é meu campo de atuação, pesquisa e interesse. Percebo hoje que,o que aprendi durante os oito anos de Ensino Fundamental e nos três anos de Magistério, em nível de Ensino Médio, não condiz com os meus anseios na atual circunstância. Não me refiro a conteúdos didáticos, mas, em um sentido mais amplo, sobre modelos de professores que fizeram parte da minha trajetória, de métodos de ensino, recursos utilizados, perspectivas, expressões...Enfim,todos esses pontos me fizeram pôr em debate as minhas construções e o que já estava naturalizado

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em mim. O período de quatro anos de graduação, licenciatura em Artes Visuais, ajudoume a questionar e pensar sobre o que aprendi e o que preciso desaprender. Entendo que, não é apenas em ambientes de ensino formal/institucionalizado que aprendemos. Entendo que a função da Arte na educação é de provocar questionamentos e desencadear a desnaturalização do olhar estereotipado, propor uma educação que rompa com o estabelecido, com as normas e convenções sobre o próprio mundo. Pois, assistindo a um filme, indo a uma peça teatral, visitando uma exposição artística ou participando de uma manifestação cultural podemos aprender muito.Mas, até este ponto apresentei o que aprendi. Porém, ressaltei todas estas aprendizagens para chegar à minha questão central, o DESaprender.

O convite ao DESaprender O termo desaprender possui opiniões divergentes, como sendo algo inalcançável, negativo, expressão poética, estilo de vida... Mas, apresento-o como uma experiência vivida. Não trato o desaprender como algo que deve ou possa ser “deletado” de nossas memórias, como se fossemos computadores e tivéssemos um disco rígido que nos permitisse essa opção. E mesmo se tivéssemos a questão não é a de ir contra ou apagar o que foi aprendido. Mas a de pôr em debate, de questionar.“Desaprender é quase impossível, se entendido como “apagar” uma aprendizagem anterior. O sentido aqui sugerido não é o de borrar ou apagar, mas perceber sua marca e as pegadas que deixou, no tempo e no espaço da nossa história de vida.” (Fresquet, 2007, p. 49). Sempre escutei que para aprender precisaria estar disposta. E asseguro que para desaprender precisei de muito mais disposição. Pois, o DESaprender ao qual me refiro é o DESaprender vai além que a mera negação ou oposição ao que foi aprendido, propõe o questionamento sobre o que foi aprendido, onde e como foi, e como o DESaprenderse fez necessário na atualidade. Desaprender, para alguns, poderia querer dizer aprender novas coisas ou – roubando da física – aprender na mesma direção, mas com sentido contrário. Aprender coisas contrárias às aprendidas pode significar contradições, ajustes. No entanto, quando o tempo já passou, significa algo mais. Desaprender é algo mais que aprender coisas opostas sobre um mesmo tema, assunto, valor, questão da vida. Desaprender pode até indicar erradamente, a ideia de esquecer o aprendido. Porém, o seu significado e intenção é

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exatamente o contrário. Tal é a força da irreversibilidade “lembrar” as coisas aprendidas que querem ser desaprendidas. Desaprender é aprender a não querê-las mais para si; a não outorgar-lhes mais o estatuto de verdade, de sentido ou de interesse. Verdade aprendida com outros, desde sempre, adquire valor de inquestionável. Desaprender é animar-se a questionar tais verdades. Desaprender é também, fazer o esforço de conscientizar todo o vivido na contramão, evocando o impacto histórico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada. (Fresquet, 2007, p. 49).

Expressões populares como: “Azul é coisa de menino”, “Boneca é brinquedo de menina”, “Homem não chora”, “Isso não é coisa de menina”, “Professor de Artes, só pode ser gay”, “Mulher de cabelo curto só pode ser sapatona”, “Mas professora não fala gíria”...e assim por diante. Como salientou Fresquet (2007,p 48) “Quem não poderia aprender esses conceitos sexistas e discriminadores em um clima de amor e alegria familiar?” No âmbito escolar tais expressões poderão ser reforçadas e será difícil que o círculo de amigos e colegas não partilhe de tais opiniões. E sem nos darmos conta, vamos perpetuando conceitos e valores que nos foram ensinados, sem nos questionarmos sobre o que está sendo dito. E sem percebermos, em nossas atitudes muitas vezes, não partilhamos de tais ideias, mas continuamos reproduzindo-as mecanicamente sem pensar a respeito. Sou uma docente de Artes Visuais, recém-formada e recém-contratada pela prefeitura do município de Santa Maria/RS. Quando me apresentei à escola da qual iria lecionar a disciplina de Artes, as primeiras considerações sobre as aulas foram as seguintes: “Não te preocupa, dá uns “trabalhinhos” de pintar ou desenho livre!”, “Em artes eles (estudantes) são bons, eles tem dificuldades em disciplinas mais difíceis.” “Temos que dar visibilidade ao que eles produzem, por exemplo, murais sobre as datas comemorativas.” Em meio às caras e bocas que fiz, questionei-me ao ouvir estas barbaridades, é isso mesmo que pensam sobre as aulas de Artes? É esta concepção que têm sobre o docente de Artes? E se é realmente isto que pensam, se é isso que aprenderam, acredito que precisam DESaprender juntamente comigo. Neste momento coloco em debate o que aprendi,o momento histórico, onde, como e com quem aprendi. E todos estes pontos são importantes na aprendizagem e o esforço para lembrar é diário, pensar que o que aprendi não são verdades e nem fazem parte do meu interesse na atualidade. Não é uma negação ao que foi aprendido, mas sim algo que não quero mais. Portando quero DESaprender. E convido quem quiser a DESaprender comigo! Pois, como já mencionei anteriormente, através das palavras de Fresquet (2007, p. 49), contudo não custa ressaltar “Desaprender é também, fazer o

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esforço de conscientizar todo o vivido na contramão, evocando o impacto histórico e emocional que teve aquela aprendizagem que hoje deseja ser modificada”. Quero que as professoras ou professores não tenham que ouvir conselhos como este dado a mim: “Entra na sala e não mostra os dentes”. Será que o professor só pode ser sério? É isso mesmo? Quem foi que disse que professor não pode sorrir? Quem ensinou isso? Em que momento histórico isso começou a se perpetuar? Mas este percurso de aprender e DESaprender é ao mesmo tempo individual e coletivo, porém não pode ser ensinado. Como mencionei no início do texto, a relação com o termo se deu ao acaso, e não sugiro aqui como método ou como fórmula. Pois, senão cairia nas questões que salientei que não me servem mais, nos modelos que preciso DESaprender. Talvez, DESaprender seja a resposta para meus anseios no momento. Mas DESaprender não é algo que possa ser aprendido A equipe docente precisa continuar aprendendo continuamente; junto com as crianças, amenizando a hierarquização entre docentes e discentes. Reforçar a compreensão que docentes e discentes, todos, são aprendizes e mestres simultaneamente. Isso não significa desconsiderar as competências e responsabilidades

da

docência,

como

atuação

profissional,

apenas

redimensionar suas potencialidades e possibilidades. (Nascimento, 2010, p. 24)

Aprender, desaprender para reaprender. Em minha percepção, os docentes, precisam desaprender que “sabem tudo”, que detém o poder supremo dentro da sala de aula, precisam permitir aprender com seus discentes. Mas para isso necessitam querer DESaprender o que consideram ser docente. Precisamos nos permitir DESaprender.

Referências:

ARIÈS, Phillippe, História Social da Criança e da Família, 2ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Editora Guanabarra, 1981. BUCKINGHAM, David. Crecer em la era d elos medios electrónicos. Madrid: EdicionesMorata, 2002. FESQUET, Adriana Mabel. Imagens do desaprender – uma experiência de aprender com o cinema: Rio de janeiro, Booklink, 2007. GARLET, Francieli Regina, CARDONETTI, VivienKelling. OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. A problematização como possibilidade avaliativa: Blumenau, Atos de Pesquisa em Educação - v. 9, n.3, p.662-680, set./dez. 2014.

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KASTRUP, Virgínia. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devirmestre. Educação & Sociedade: São Paulo, v.26, n.93, p.1273-1288, set-dez, 2005. LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. Alfredo VeigaNeto. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, 2a.ed. MENDES NETO, Antenor Ferreira. OLIVEIRA, Michelle Roxo de. Possibilidades Criativas no Jornalismo: limites e brechas. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro - RJ – 4 a 7/9/2015 NASCIMENTO, Erinaldo Alves do;Visualidades e infância até seis anos: versões em imagens e os desafios da Educação Infantil. In: Raimundo Martins; Irene Tourinho. (Org.). Cultura Visual e Infância: Quando as Imagens Invadem a Escola. 1ed.Santa Maria: editora da UFSM, 2010, v. 1, p. 15-36.

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NARRATIVAS: RECORDAÇÕES DE MEMÓRIAS DE INFÂNCIA Aline Arend

Resumo: Neste artigo apresento parte do estudo desenvolvido ao longo da investigação de Mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria. Fazendo uso de uma investigação biográfica narrativa e poética, cujo enfoque é sobre memórias de infância e livros-objeto, o estudo busca estabelecer relações entre elementos da memória de longo prazo e a criação artística contemporânea a partir de recordações, fotografías, gravuras e objetos pessoais da artista. Palavras-chave: narrativa, poética, memórias de infância, livros-objeto.

Abstract: In this article I present part of the study desenvido along the Master's research in the postgraduate Program in Visual Arts at the Federal University of Santa Maria. Making use of a narrative and poetic biographical research, whose focus is on childhood memories and books object, It is a study that seeks to establish relationships between elements of long-term memory and contemporary artistic creation from memories, photographs, prints and personal objects of the artist. Keywords: narrative, poetic, childhood memories, books object.

O uso de recordações de infância no desenvolvimento dessa investigação, advém da necessidade de utilizar parte das vivências pessoais e cotidianas como referência nas produções artísticas, na tentativa de recordar, compreender e refletir sobre inquietações e necessidades em torno da construção da minha subjetividade. Portanto, a memória enquanto referência, matéria ou conceito da Arte é abordada como uma maneira de pensar e discutir a efemeridade das vivências, de nossos corpos, de nossas relações afetivas e de nossas histórias. A autora Anna M. Longoni (2003) explica que existem variados tipos de memórias, entre elas situa a memória de trabalho e a memória de longo prazo. A noção de memória de trabalho é recente (1980) e tem, em parte, substituído a noção da memória de curto prazo (manutenção temporária das informações). Evidentemente, é fundamental a função da memória de trabalho nas diversas situações da vida cotidiana. “Não funciona simplesmente como um depósito temporário, mas, sim, como um

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elaborador de informações durante a execução de diferentes tarefas cognitivas, como, por exemplo, a compreensão, o aprendizado e o raciocínio.” (LONGONI, 2003, p. 9). Diferentemente disso, a memória de longo prazo possui capacidade de armazenar informações praticamente ilimitada e as informações podem permanecer por tempo indefinido. Ao armazenar os fatos, trabalha de modo constante, fazendo associações, e, além disso, as associações preexistentes são usadas para apreender novas informações. “Isso faz com que cada um de nós possa recordar aspectos diversos de um mesmo evento, segundo os seus conhecimentos precedentes. Os conteúdos da memória de longo prazo não são, portanto, independentes entre si, mas organizados com base em certas características.” (LONGONI, 2003, p. 17) Meu interesse e compreensão destas diferenças permitiu dar seguimento à pesquisa poética com mais ponderação, já que pude ter maior clareza de que o lembrado e rememorado tem implicações tanto de ordem física, quanto emocional, o que repercutiu diretamente neste estudo.

A Casa de Infância

Nossa casa de infância é um lugar único e é nela que construimos nossas primeiras impressões sobre os objetos, as pessoas e o mundo. É nesse ambiente que as cores e as texturas marcam os momentos que nos acompanham pela vida. A casa não vive somente o dia-a-dia, no fio de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nossa casa, voltam as lembranças das antigas moradias, viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos revivendo lembranças de proteção. [...] Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho; nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida. (BACHELARD, 1974, p.201)

Sobre as lembranças da casa de infância, é importante lembrar que a família também exerce uma grande função na construção da identidade e subjetividade, pois ela sustenta e assegura a união do sujeito ao mundo social. Outras influências também são

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importantes nessa construção, como, por exemplo: os móveis, os objetos de uso comum no cotidiano e demais utensílios do lar pertencentes a esses espaços. Todos eles unemse ao sujeito com significados próprios e tornam-se parte constituinte de sua estrutura identitária durante a vida. Gaston Bachelard (1974), em seu livro A poética do Espaço, fala a respeito do lembrar da casa de infância: “Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é justamente o que me é necessário para me colocar numa situação de onirismo, para me colocar no bojo de um devaneio em que vou repousar no meu passado” (BACHELARD, 1974, p.205). Dentre tantas memórias de infância, lembro-me fielmente dos bibelôs que minha mãe colecionava sobre a estante antiga de madeira. Eram pequenos instrumentos musicais, um violino, uma arpa, um piano...A estante ficava em um dos cantos da casa, ao lado de uma janela que compunha o corredor. Ao chão, entre a estante e a janela, havia uma máquina antiga de costura a qual sempre pensei que fora uma herança de família, mas até hoje não sei exatamente. Mesmo assim, costumo relacioná-la com minha mãe, pois costura desde muito jovem. Sobre os cantos da casa, Bachelard (1974) salienta que é graças a casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. Voltamos a eles durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD, 1974, p.202).

A cortina que abraçava a janela junto aos raios de sol, criava uma iluminação linda com pontos de luz sobre a estante e os objetos que nela se encontravam. Também haviam outros objetos, alguns livro e enciclopédias que muito utilizei nos anos escolares. E também, havia uma coleção de moedas antigas do meu pai. Recordo-me de cada detalhe, das capas dos livros, do pote onde guardava as moedas, da cor da madeira, do cheiro dos livros guardados, das flores em pequenos vasos em cima da estante, do tramado aberto da cortina que possibilitava ver a paisagem através do vidro, do cinzeiro de metal que minha mãe ganhara e da poeira que delicadamente pousava sobre tudo. Nas manhãs, acordava com o cantar do galo soando pela janela. Ainda sinto, como se fosse aquele tempo, o cheiro de embuia, o barulho de pratos batendo e as conversas vindas da cozinha. Rememorando mais detalhadamente o quarto de minha

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infância, lembro-me das diversas mudanças que minha mãe fazia, adorava trocar os móveis de lugar, mas nunca se desfazia deles. No quarto, havia duas camas de solteiro, uma para mim e outra para minha irmã; dois bidês, um guarda roupa de seis portas, uma sapateira com porta e gaveta e uma escrivaninha para os estudos. No tecido da colcha das almofadas e cortina, lembro-me da estampa de nuvens brancas flutuando sobre um céu rosa e, nas paredes, quadros com fotografias e desenhos. Nos bidês, ficavam pequeninos bibelôs sobre duas toalhas brancas bordadas. Ganhava muitos bibelôs de presente de amigos e colegas da escola em meus aniversários. Costumávamos chamar os bibelôs de anjinhos, pequenas esculturas de gesso normalmente em forma de crianças com asas. A casa de infância, como o bairro, os objetos, ou seja, os lugares por onde passamos durante a vida, inevitavelmente compõem quem somos. Deste modo, busco incorporar no trabalho poético um diálogo entre as memórias pessoais em conjunção a elementos que me ajudam a interpretar a memória de forma um tanto palpável, como caixas, arquivos, gavetas... Elementos estes que se relacionam aos mecanismos da memória, com o guardar, manter, permanecer. Essa relação entre memória e arquivo; memória e caixa, reverberou na construção de três séries de trabalhos, ambas compostas por livros-objeto, que compuseram minha Dissertação de Mestrado. Contudo, neste artigo, dou ênfase a uma destas séries, denominada O quartinho de brinquedo, da qual é composta por dois livros-objeto denominados: A Casinha (Imagens 1 e 2) e O Báu (Imagens 3 e 4). O livro-objeto surgiu como uma solução na construção prática do trabalho, sempre relacionado as questões que permeavam o trabalho, às memórias, arquivos, caixas e a materialização das peças que propunha realizar. As peças foram pensadas a partir do contexto da casa onde morei quando pequena. A série em questão, representa o quarto onde brincava e guardava os brinquedos, as bonecas, os jogos e possuem formato variado ao do livro tipo códex, mas também não se restringem a livros escultóricos, contemplando tanto a forma escultórica como a interação e manuseio em algumas partes. Tratam-se de caixas feitas em madeira que se abrem em diferentes etapas, revelando progressivamente seu conteúdo em uma série de compartimentos. Guangiroli (2005) comenta a respeito do livro-objeto: “Este objeto propõe convidar ao prazer tátil e visual, é portador de uma linguagem experimental que

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ultrapassa os limites impostos pelo livro e pela obra de arte. Ele se coloca em um plano limiar e se abre a uma nova leitura” (GUANGIROLI, 2005, p. 66). Ao manusear e abrir os compartimentos dos livros-objeto, são encontrados dois momentos em que represento as imagens recordadas: 1º Ao lembrá-las, as desenhei e as transferi para a gravura em metal, gravando através das técnicas de água-forte e relevo (rebaixamento). 2º É quando as lembrei através de objetos (bibelôs) que tenho guardados até hoje. Fotografei e trabalhei as imagens na gravura em metal. E, em alguns momentos, utilizo diretamente os bibelôs nos trabalhos.

Imagem 1 – A casinha, da Série O quartinho de brinquedo, 2015. Livro-objeto. Madeira, calcografia e objetos. 14cm x 23cm x 37cm. Acervo do(a) artista. Foto: Vicent Lyh.

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Imagem 2 - Detalhe de A casinha, da Série O quartinho de brinquedo, 2015. Livro-objeto. Madeira, calcografia e objetos. 14cm x 23cm x 37cm. Acervo do(a) artista. Foto: Vicent Lyh.

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Imagem 3 - O baú, da Série O quartinho de brinquedo, 2015. Livro-objeto. Madeira, calcografia e objetos. 18cm x 24,5cm x 13cm. Acervo do(a) artista. Foto: Vicent Lyh.

Imagem 4 - O baú, da Série O quartinho de brinquedo, 2015. Livro-objeto. Madeira, calcografia e objetos. 18cm x 24,5cm x 13cm. Acervo do(a) artista. Foto: Vicent Lyh.

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O Quartinho de Brinquedos

No quarto de brinquedos, brincávamos minha irmã e eu e, às vezes, mais alguns amigos. O quarto não era grande, mas era um lugar de encontro, de amizade e de muita imaginação. Por horas, brincávamos de pé, sentados no sofá ou no chão, alguns brincavam com as bonecas, outros preferiam os jogos de tabuleiro ou de carta que ficavam guardados nas gavetas da cômoda. Também brincávamos com as miniaturas da estante em forma de casa que meu avô Armindo construiu. Nas tardes, em meio às tantas brincadeiras, fazíamos uma pausa: era a hora do lanche! A “táta” Marlene fazia lanches para todo mundo, torradas e achocolatado. Após o lanche, voltávamos para o quarto e lá seguíamos até o entardecer. O quartinho de brinquedo, como costumávamos chamá-lo, era o lugar que mais gostava na casa. Lembro-me dos detalhes, dos objetos e dos brinquedos sobre as estantes. Tínhamos coleções de bonecas de plástico e papel, também de papéis de cartas e das surpresas que vinham no kinder ovo. Tínhamos toda a casinha da Barbie, os cômodos, os acessórios e ainda um grande baú cheio de roupas que minha mãe e avó faziam para vesti-las. As roupas eram feitas com retalhos de malhas e tecidos que sobravam da malharia de meus pais. Além das estantes, compunha um sofá de três lugares que fora forrado por minha mãe, uma mesa de centro, um baú de madeira e uma cômoda com três gavetas e duas porta centrais. Nela, guardávamos desenhos, jogos e miudezas como lápis de cor, canetinhas, pincéis, tintas e demais materiais escolares organizados em caixas dentro das gavetas. A série aqui apresentada é constituída por dois livros-objeto, ambos pensados e projetados com referência em dois móveis do quarto de brinquedos: a estante rosa em forma de casa e o baú onde guardávamos as roupas das bonecas. Essa série representa fragmentos de narrativas contadas, compõem visualmente quem sou, e ao passo que são visualizadas, passam a compor a bagagem visual das pessoas, criando novas narrativas, novas histórias. Sobre o Livro-objeto, Doctors (1994) afirma que os livros-objeto não se prendem a padrões de funcionalidade ou de forma, ultrapassam a fronteira livro, rompendo fronteiras atribuídas a livros de leituras e assumem-se como objetos de arte. Representam uma narrativa plástica em vez de literária. O livro-objeto é um cruzamento

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que estabelece um novo campo. Neste caso, refiro à relação estabelecida entre objeto e leitor, podendo ser semelhante ao diálogo que acontece quando se visita a obra Os bichos de Lygia Clark (1920-1988), onde a estrutura dos bichos reage como um organismo vivo e com movimentos próprios às estimulações do espectador (Clark, 1998, p.121). No Brasil, assim como Lygia Clark, outros diversos artistas produziram livros-objeto, como Antonio Dias, Augusto de Campos, Arthur Barrio, Mira Schendel, Waltércio Caldas, Júlio Plaza, Lígia Pape, entre outros. Quando falamos em livros-objeto, é relevante falar da obra Museu Portátil do artista Marcel Duchamp (1887-1968). Essa obra foi confeccionada em três edições em forma de caixa: a Caixa de 1914, a Caixa verde de 1934 e a Boîte em Valise de 1941. Em específico, a obra Boîte em Valise (Imagem 5), Duchamp trabalhou com a sequencialidade de leitura, na reprodução de quase toda sua obra, que executou pouco a pouco durante o período de 1935 a 1941, chegando a um álbum que tomou a forma de uma caixa que se abre em variadas etapas, revelando seu conteúdo em distintos mostradores. É uma caixa desmontável, revestida em couro e contendo copias fiéis em cores, estampas, objetos reduzidos de vidro, ready-made, pinturas, aquarelas e desenhos. São dezenove itens representando quase a obra completa de Marcel Duchamp, produzida entre 1910 e 1937. (PANEK, 2005, p. 4-5)

Imagem 5 - Marcel Duchamp (1887-1968). Caixa em uma valise (Boîte em valise), 1941. Valise de couro contendo miniaturas de réplicas e cores reproduções de obras de Duchamp, e uma fotografia com grafite, aquarela, e adições de tinta, 40,7 x 37,2 x 10,1 cm. Coleção Peggy Guggenheim, Veneza. Foto: Sergio Martucci.

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Os livros-objeto realizados nesta pesquisa, não restringem-se a livros escultóricos, mas também não são folheados como outros diversos tipos de livros de artista. Mantêm uma singularidade entre a forma do livro convencional e a escultura, tratando de ambas as questões na mesma materialidade. Possuem forma escultórica, tridimensional, são manuseáveis e não se completam sem a interação do leitor. Para Andriolli (2004, p.52), o livro-objeto talvez seja a única subcategoria dentro do livro de artista que possa ser realmente diferenciada das demais, são obras raras, muitas vezes únicas ou com tiragens extremamente reduzidas. A leitura estética do livro-objeto não tem a formalidade do livro comum; aquele ultrapassa a linearidade da escrita e do modelo tradicional. Não há um código de linguagem escrita, o que existe é uma linguagem puramente experimental.

Referências ANDRIOLLI, Nancy Picarone. O livro objeto. Monografia apresentada à Faculdade Senac de Comunicação e Artes, curso de pós-graduação em comunicação e artes (especialista em Designer Gráfico), São Paulo-SP, 2004. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1974 (coleção os pensadores). ______. A Poética do Devaneio. São Paulo, Brasil: Editora Martins Fontes, 2009. CLARK, Lygia. Lygia Clark in os bichos. Barcelona: Ed. Fundació Antoni Tápies, 1998. DOCTORS, Marcio. A fronteira dos vazios. Rio de Janeiro: Ed. CCBB, 1994. GUANGIROLI, Solana Maria Lia. Memórias da mesa: a construção de uma história através dos objetos cotidianos. 137 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2005. IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre, RS: Artmed, 2002. LONGONI, Anna M. A memória: nós somos o que lembramos e o que esquecemos. Tradução Euclides Balancin, Débora de Souza Balancin. São Paulo: Paulinas: Edições: Loyola, 2003. (coleção para saber mais, 7) Marcel Duchamp. Disponível em: <http://www.guggenheim.org/>. Acesso em maio de 2015. PANEK, Bernardette. O livro de artista e o espaço da arte. III Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 2005. SILVEIRA, Paulo. As Existências da Narrativa no Livro de Artista. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2008.

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DESLOCAMENTOS NO JOGO DE XADREZ MODERNO Cyntia Werner MY GALLERY IS THE WORLD NOW Seth Siegelaub

Resumo Neste artigo apresento seis episódios relacionados ao jogo de xadrez nas feições modernas, onde o faz de conta, ambiente e tempo próprios criados para o desenvolvimento do jogo e apresentado por Johan Huizinga como uma das principais caraterísticas desta relação, parece se aproximar cada vez mais da realidade que nos cerca. Palavras-chave: jogo de xadrez, faz de conta, real, modernidade. Abstract In this article I present six episodes related to the game of chess in modern features, where the make-believe, environment and own time created for the development of the play and presented by Johan Huizinga as one of the main characteristics of this relationship, it seems to bring more and more of reality around us. Key-words: chess play, make-believe, real, modernity. Apresentado como uma das caraterísticas principais de um jogo, o faz de conta pressupõe a criação de um ambiente e tempo próprio, sugere um afastamento de tudo aquilo que não participa do jogo. O mundo real que envolve este faz de conta, teoricamente se constitui como uma ameaça ao ambiente do jogo e por esta razão, a realidade é intencionalmente suprimida do instante lúdico. Para o bom andamento deste ambiente, regras próprias são estabelecidas e todos os participantes devem ter conhecimento destas. As regras representam a estabilidade e coerência no jogo, muitas vezes podem até ser transgredidas, porém nunca ignoradas. Johan Huizinga, na sua obra Homo Ludens, afirma que: “O jogo distingue-se da vida “comum” tanto pelo lugar quanto pela duração que ocupa. É esta a terceira de suas características principais: o isolamento, a limitação. É “jogado até o fim” dentro de certos limites de tempo e de espaço. Possui um caminho e um sentido próprio.”(2010, p.12)

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Esta descrição é perfeitamente compreendida quando pensamos um grupo de crianças jogando Queimada ou Bolas de gude, mas poderíamos deliberar sobre este conceito para um jogo de xadrez? Um jogo criado com o propósito de servir para o treinamento e exercício militar. Poderíamos supor que estratégias de guerra em um tabuleiro de xadrez podem ser pensadas sem que haja qualquer referência a guerra real? Surgido no século VI, durante as invasões persas na Índia, sob o nome de Charatunga ¹, o jogo de xadrez passou a ser utilizado pelos persas como um modo de fomentar e valorizar o estudo da guerra. Sofreu importantes modificações na sua estrutura, inclusive o aparecimento da rainha como peça mais poderosa do jogo que ocorreu somente no seculo XVI, sob a forte influência de uma sociedade que pregava a valorização da figura feminina e subsequente ascensão de mulheres ao poder monárquico. O xadrez moderno, formato de jogo que conhecemos e jogamos hoje, é o mesmo desde este período, talvez por esta razão seja possível afirmar que o distanciamento do real acontece a partir do próprio formato, afinal se trata da representação de um confronto de sistema binário por um quase extinto poder régio, uma disputa caracterizada pelo equilíbrio de forças e respeito as regras. Mas para jogadores que vivem em um mundo que testemunhou a ascensão do imperialismo e a pilhagem expansionista, o aparecimento de regimes totalitários e assassinatos em massa como Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki, mais recentemente a utilização das armas biológicas, capazes de devastar sociedades inteiras, onde está a relação deste jogo com a realidade atual? Nesse contexto, talvez não tenham havido mudanças significativas na estrutura física do jogo de xadrez, mas modificações nas práticas e representações são perceptíveis na sua utilização durante a modernidade, conforme os eventos relatados a seguir. O Autômato do Xadrez Na segunda metade do século XVIII, início da Revolução Industrial na Inglaterra, quando a mão-de-obra artesanal começava a ser substituída por máquinas, temos o episódio do jogador de xadrez autômato, conhecido como o Turco, uma máquina supostamente provida de inteligência artificial que seria capaz de jogar xadrez. Construída em 1769 pelo inventor Wolfgang von Kempelen, a máquina consistia em uma figura humanoide de madeira vestida com um turbante junto a uma mesa que possuía um tabuleiro de xadrez com as respectivas peças. Relatos dão conta de que a

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primeira demonstração da máquina teria ocorrido na corte da imperatriz Maria Teresa da Áustria. O próprio Kempelen fez a exibição de seu invento, abrindo as comportas debaixo da mesa e demonstrando que ali havia somente maquinário, sem qualquer sinal de interferência humana. Ele desafiou um voluntário da corte para um jogo de xadrez com a sua máquina e em apenas dezoito movimentos, o voluntário, o conde Ludwig von Coblenz, é derrotado. O Turco funciona durante 84 anos, fazendo demostrações por toda a Europa, onde era desafiado por personagens históricos, como Benjamin Franklin em 1783². Embora toda a parte interna da máquina fosse aberta ao público durante as exibições, o Turco causava desconfiança na plateia, pois possuía um circuito similar ao de um relógio e nada que explicasse o seu funcionamento. Diversos estudos foram feitos sobre a máquina, mas nenhum que conseguisse efetivamente desvendar seu segredo.

Figura 1 – O Autômato do xadrez, xilogravura, 1845. Foto:

Após a morte de Kempelen, o autômato ficou fora de operação até 1808, quando foi adquirido pelo músico alemão Johann Nepomuk Mälzel, que colocou a máquina novamente em funcionamento, acrescentando algumas melhorias como um sintetizador de voz. No ano seguinte, o autômato era desafiado por Napoleão Bonaparte, que realizou de forma proposital alguns movimentos irregulares e a máquina respondeu, derrubando todas as peças sobre o tabuleiro. Em 1826, a máquina de xadrez é levada para os Estados Unidos e exibida em diversas cidades, sendo observada de perto pelo escritor Edgar Allan Poe, que escreve

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um ensaio sobre o seu funcionamento e aponta diversas contradições que sugeriam a presença de uma pessoa no interior da máquina operando as jogadas. “As jogadas feitas pelo turco não acontecem com intervalos de tempos regulares, mas conformam-se aos intervalos das jogadas do adversário, […] serve para provar que a regularidade não tem importância na ação do Autômato – ou seja, que o Autômato não é pura máquina. […] O Autômato não ganha invariavelmente. Se a máquina fosse uma pura máquina, não seria assim; deveria ganhar sempre. […] Durante a exibição, há seis velas em cima da mesa do Autômato. Uma pergunta surge naturalmente: por que empregar tantas velas, quando só uma ou duas, no máximo, iluminariam suficientemente bem o tabuleiro para os espectadores, numa sala aliás, tão bem iluminada como o é sempre a sala da exibição?” (POE, 1978, p. 417-427)

Vinte e oito anos depois de chegar aos Estados Unidos, a máquina é incendiada e com ela, a esperança de revelarem o seu segredo. Somente em 1859, o filho do último proprietário do autômato, John Kearsley Mitchell, escreve um ensaio onde revela todo o funcionamento da máquina, que dentro dela havia um operador controlando as jogadas e via tudo através de um tecido que cobria o tronco do autômato, para isso o tabuleiro deveria estar bem iluminado com as velas acesas, conforme Edgar Allan Poe suspeitava, que morreu dez anos antes da informação vir a público, sem saber seu real funcionamento. Desta forma era revelado um dos segredos mais bem guardados da história, não seria desta vez ainda que o desejo de mecanização e o desenvolvimento de uma possível inteligência artificial, surgido durante a Revolução Industrial, se tornava viável, mas o primeiro passo estava dado e esta questão do autômato jogador de xadrez seria retomada cerca de duzentos anos depois. Partida imortal Na era pré-imperialista em 1851, quando as grandes nações do mundo se preparavam para a sua política de expansão e a classe burguesa planejava usar o Estado e seus instrumentos de violência para seus próprios fins econômicos. As instituições nacional-estatais ainda tentavam resistir a megalomania das aspirações imperialistas, pouco adiantou, pois em tempo ou outro, todos sucumbiram, conforme explica Hannah Arendt nas Origens do Totalitarismo (2012, p.189-200). A África seria um continente que sofreria com a sede expansionista das nações europeias e nada mais poderia ser feito, porém os sacrifícios também seriam consideráveis.

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Neste momento, acontecia uma partida de xadrez de rua no café Simpson's-inthe-Strand Divan em Londres, que mais tarde seria chamada de A Imortal, embora fosse uma partida informal, ficou conhecida desta forma por se tornar uma das partidas de xadrez mais estudadas pelos enxadristas da era moderna. Aconteceu entre Adolf Anderssen da Prússia, um dos mais destacados jogadores de xadrez do seculo XIX e o francês Lionel Kieseritzky, que dava aulas de xadrez em um café cobrando cinco francos a hora. Era um típico jogo de xadrez da época, com ataques e contra-ataques rápidos, o que diferenciou esta partida das demais é que Anderssen, possuidor das peças brancas, sacrificou uma grande parte delas, inclusive a rainha, restando ao final somente dois cavalos e um bispo das peças principais para obter o xeque-mate. A agressividade com que o jogo era conduzido por Anderssen surpreendeu aos espectadores da partida, pois todos davam como certa sua derrota. Mas em função da sua destemida habilidade em colocar as peças em posição de suscetibilidade, o opositor terminou por perder na sede imediata por capturar peças, não percebendo que o sacrifício se apresentava como uma ousada armadilha. Xadrez Nazista Com a plena ascensão do regime nazista na Alemanha em 1938, os alemães produziram um filme de ampla divulgação, principalmente no meio escolar, onde lançavam um jogo de xadrez que seria feito para cidadãos arianos. Substituam as peças tradicionais do xadrez (rei, rainha, bispo, cavalos, torres e peões) pelo arsenal de guerra alemão. Chamado de TakTik (táticas)³, o jogo era distribuído ao exército alemão para que os membros pudessem treinar o que consideravam práticas de guerra. O tabuleiro diferia um pouco do xadrez tradicional pois possuía 121 quadrados e cada jogador, 18 peças, sendo que a captura era feita somente quando duas peças ameaçassem simultaneamente a peça adversária. Estratégia que seria usada de forma rotineira durante a Segunda Guerra Mundial, quando era usual que se abrissem diversas frentes de batalha de forma que o inimigo ficasse sem movimento de fuga.

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Figura 2 – Jogo Tak tik. Fonte: www.ebay.com

Em 1941, o campeão mundial de xadrez, Alexander Alekhine, embora fosse russo de nascimento e tivesse cidadania francesa, havia aderido ao partido nazista e colaborou com a difusão da prática do jogo de xadrez nazista, participando de diversos torneiros de xadrez promovidos pelo partido e escrevendo artigos com argumentos antisemitas, onde afirmava que o xadrez estaria em um período de decadência, por haverem muitos jogadores judeus, que não perseguiam mais a vitória, somente evitavam a derrota. Alekhine negou durante muito tempo a autoria destes artigos, mas após a sua morte em 1946, foram encontrados os manuscritos dos artigos com a sua caligrafia. Afirmações anti-semita como estas de Alekhine, precederam o Holocausto, evento que causou a morte de milhões de judeus na Europa pelos nazistas. Duchamp e o xadrez Marcel Duchamp, artista francês, resolve receber os visitantes de uma exposição retrospectiva com obras suas no Museu de Arte de Pasadena na Califórnia em 1963, jogando uma partida de xadrez com a jovem Eve Babitz, totalmente nua. A mesa com o tabuleiro onde se desenrolava a partida estava localizada em frente a um de seus trabalhos mais polêmicos, A noiva desnudada por seus solteiros, mesmo, ou o Grande vidro (1912-1923), para o qual o artista havia criado uma teoria em que a ação ou o olhar do espectador que deveria criar a obra de arte. “[…]o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, dessa forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador.” (DUCHAMP 1986, p.71)

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Figura 3 – Marcel Duchamp jogando uma partida de xadrez com Eve Babitz. Fonte: Duchamp in Pasadena by Julian Wasser.

Duchamp era um grande entusiasta de xadrez, chegando inclusive a fazer parte da equipe francesa nos anos 1930, o que poderia ter influenciado diretamente sua pesquisa com a arte não retiniana, onde ele propunha aproximar cada vez mais os objetos artísticos de uma reflexão, não delegando a fruição somente a questão visual, sendo assim, considerado um dos precursores da arte conceitual. Como artista também participou do movimento dada, que propunha a descontinuidade de todos os ismos artísticos e uma interrupção total dos princípios da arte. Em 1967, surpreende a todos quando decide abandonar carreira artística, que estava em ampla ascensão, para se dedicar integralmente ao xadrez e passa seus dias na companhia de estranhos, jogando xadrez em cafés da cidade de Paris. Play it by trust A artista Yoko Ono apresenta o seu trabalho Play it by Trust4, que consiste em um tabuleiro de xadrez de casas e peças inteiramente brancas, que as pessoas poderiam movimentar livremente. A proposta do trabalho, como o próprio título anuncia, é que seja jogado sob a confiança do adversário e enquanto os jogadores lembrarem onde estiverem suas peças. Um jogo de xadrez todo branco que elimina a ideia de um lado contra o outro através das cores opostas, o jogo, neste caso, dependeria muito mais de uma relação de cordialidade e confiança do que a competição propriamente dita. Em se tratando do xadrez como uma representação de estratégia de guerra, destacamos o

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pensamento de Foucault ao relacionar uma possível condição para a origem de um conflito: “Se houvesse diferenças naturais marcantes, visíveis maciças, das duas uma: ou haveria efetivamente enfrentamento entre o forte e o fraco – mas esse enfrentamento e essa guerra real se resolveria imediatamente com a vitória do forte sobre o fraco, vitória que seria definitiva por causa da própria força do forte; ou então não haveria enfrentamento real, o que quer dizer, pura e simplesmente, que o fraco, sabendo, percebendo, constatando sua própria fraqueza, renunciaria antes mesmo do enfrentamento.” (2005, p. 103104)

Pensando desta forma, talvez a guerra não tivesse início se não soubéssemos quais seriam as nossas forças, nem as de nossos oponentes, considerando que nada nos diferenciasse. Yoko Ono exibe este trabalho pela primeira vez em Londres em 1966 na Indica Gallery, enquanto o mundo ocidental se mobilizava em campanhas pacifistas. Um ano após o envio das tropas militares norte-americanas para a Guerra do Vietnã, fato que causou uma forte divisão na sociedade, entre aqueles estavam a favor e contra a guerra. No confronto, morreriam cerca de 60 mil norte-americanos e pelo menos 1 milhão e meio de vietnamitas5. Cinco anos mais tarde à apresentação do trabalho de Yoko Ono, John Lenon, o marido da artista na época, lançaria a música Imagine, que representaria todo o ideal pacifista de grande parte desta geração.

Figura 4 – Play it by trust, Yoko Ono, 1966. Fonte: site da artista.

Deep Blue x Garry Kasparov

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No ano de 1996, em plena era da expansão tecnológica, o autômato do século XVIII se torna uma realidade. A IBM, empesa de informática, cria um computador com o nome de Deep Blue que desafia o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov, porém neste confronto, o homem ainda venceria a máquina. Com seis partidas e realizado na Filadélfia nos Estados Unidos, Kasparov venceu Deep Blue com quatro vitórias e duas derrotas. A equipe da IBM logo em seguida, pediu uma revanche e o campeão aceitou, um novo jogo de xadrez ficaria marcado para o ano seguinte, afim de haver tempo para que os engenheiros6 pudessem aprimorar a máquina. O segundo confronto ocorreu em Nova York e desta vez uma versão atualizada da máquina venceu. Deep Blue, que poderia calcular 200 milhões de lances por segundo, se tornou o primeiro computador a derrotar um campeão mundial, com um placar de duas vitórias, três empates e uma derrota. Na época, Kasparov acusou a IBM de trapacear, afirmando que alguns movimentos realizados pela máquina na segunda partida, possuíam caraterísticas absolutamente humanas. Aquele fato desequilibrou emocionalmente o campeão, que não conseguiu manter seu estilo agressivo e foi derrotado com jogadas desatentas, nada caraterístico de Kasparov, que foi campeão mundial de xadrez entre 1985 e 2000. Kasparov pediu uma revanche, mas a IBM não concordou e o Deep Blue logo em seguida foi desmontado, ele nunca se conformou com a derrota. Na época, a IBM não era uma das grandes empresas da área de informática, estava muito abaixo de seus concorrentes como a Microsoft e Apple, mas no dia seguinte a vitória sobre Kasparov, além dos ganhos com publicidade, teve as ações da empresa valorizadas cerca de 15% na bolsa de valores de Nova York. Um documentário The Man vs the machine7 filmado em 2014, relatou que a jogada que desequilibrou Kasparov e o fez perder, foi na verdade uma falha de programação, por esta razão, a máquina teria feito uma jogada inesperada, deixando a suspeita de que haveria interferência humana na partida. O xadrez moderno e a realidade Pensando nestas implicações relatadas acima, o xadrez possui uma estrutura resultante de um longo processo histórico que se inicia no século VI e está sujeito às alterações provocadas pelas transformações sociais da modernidade. A prática do jogo de xadrez moderno invariavelmente passa de uma batalha medieval sangrenta às guerras atuais, sejam elas tecnológicas, expansionistas, totalitárias ou culturais e artísticas.

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Huizinga afirma em seu trabalho que o jogo é um elemento de construção cultural, sendo desta forma, podemos afirmar também que o jogo pode atuar como um elemento de reapresentação da realidade, deslocando o ambiente de jogo para o que entendemos por vida real. Notas 1. Em 1900, o historiador Daniel Willard Fiske afirmou que não há documentação confiável reportando as origens do jogo de xadrez em data anterior ao seculo VI. Em 1985, o historiador Richard Eales, reafirmou que não há determinar sobre o aparecimento do jogo de xadrez antes do no 600. (ver AVERBAKH, 2012, pag. 12) 2. Neste período, Benjamin Franklin servia como embaixador dos Estados Unidos na França. 3. Criado por Bernhard Lehnert, o jogo possuía cinco peças principais, a infantaria, carros blindados, aviões, soldados e a figura principal na forma de uma águia. 4. Jogue pela confiança, tradução nossa. 5. dados do Centro de defesa dos Estados Unidos. 6. A equipe da IBM que desenvolveu o Deep Blue era composta por cinco engenheiros e o consultor de xadrez Joel Benjamin, três vezes campeão americano de xadrez. 7. o documentário curta-metragem de 17 minutos foi produzido em parceria pela FiveThirtyEight e ESPN Films, dirigido Franka Marshall, tratando especificamente da segunda partida, onde houve a suposta falha.

Referências Bibliográficas ALEXANDER Alekhine and the Nazis. Disponível em: < https://www.chess.com/article/view/alexander-alekhine-and-the-naz> Acesso em junho 2016. ARENDT,

H.

Origens

do

totalitarismo:

Antissemitismo,

Imperialismo,

Totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras, 2012. AVERBAHK, Y. A History of chess: From Charatunga to present day. Milford: Russell Enterprises, 2012. CAILLOIS, R. Man, play and games. Ilinois: University of Ilinois, 2001. DUCHAMP, M. O ato criador. In: BATTCOCK, G. (org). A Nova arte. São Paulo: Perspectiva. 1986. .p71-74 FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. São paulo: Martins Fontes, 2005. GAME over : Kasparov na the machine, Direção: Vikram Jayanti. Produção: Canada e Reino Unido, 2003. 90 min. Son, Color, legendado, inglês, Formato: digital. HUIZINGA, J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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POE, Edgar Allan. O jogador de xadrez de Maezel, in: Historias extraordinarias. São Paulo: Abril Cultural, 1978. SANT'ANNA, Affonso Romano de. Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2003. SHENK, D. The Immortal Game: A History of chess, New York: Random House, 2005. THE MAN vs. The machine, Direção: Franka Marshall. Produção: FiveThirtyEight e ESPN Films, 17´07”. Disponível em: <http://espn.go.com/video/clip?id=espn:11694550 > Acesso em junho 2016. WILLIS, R. An Attempt to Analyse the Automaton Chess Player. Disponível em: <https://www.chess.com/blog/batgirl/an-attempt-to-analyse-the-automaton-chessplayer> Acesso em junho 2016. YALOM, M. Birth of the chess queen. New York: Harper Perennial, 2006.

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A desterritorialização do corpo feminino no cinema de Jocelyne Saab: Sheherazade busca a absolvição definitiva Fedra Rodríguez

Resumo: A situação atual da mulher do Oriente Médio, com suas lutas pela emancipação e a miríade de conflitos e desejos que passam despercebidos na região assim como no Ocidente, é o tema central das produções cinematográficas da libanesa Jocelyne Saab. Nelas, o corpo da mulher, território (de)marcado pelo sistema patriarcal apoiado na religião, deseja desintegrar as fronteiras impostas através de um processo de desterritorialização. O corpo, formado por fragmentos de memória, identidade material e imaterial, tenta reconquistar seu lugar e reescrever as próprias divisas. Palavras-chave: Jocelyne Saab; Cinema; Oriente Médio; Corpo Feminino.

A mulher do Oriente Médio tem travado várias batalhas contra o destino e o cotidiano que lhe impuseram: do protesto pelo direito de dirigir carros na Arábia Saudita à luta das iraquianas pelo fim do casamento arranjado, passando pela demanda por leis mais severas para punir o assédio sexual e a extinção da prática da circuncisão feminina no Egito (Lima, 2014, 681). Apesar desses esforços acompanhados de pequenos avanços, ainda atribuem-se à mulher árabe-muçulmana1, de uma forma geral, dois papéis em extremos mutuamente excludentes pela incompatibilidade intrínseca entre os mesmos: o mais óbvio é o da submissão ao sistema social que a rodeia, composto pela tríade homem-religião-lei, e em segundo lugar, em tons mais leves e mais raramente designado, o de dançarina de dança do ventre, animando bares, restaurantes e casas de show temáticos. Ignoram-se as enormes variantes contidas na religião em si, na estrutura social e política de cada país da região e, consequentemente, desconsideram-se os processos de luta feminina e feminista que nos revelariam mais do que as duas personagens assimetricamente instaladas no imaginário popular. Contudo, cabe ressaltar que essa gama de facetas da mulher árabe-muçulmana não é apenas desconhecida no Ocidente, mas também nos próprios países do Oriente Médio, onde se dá uma territorialização do feminino. Para entendermos essa operação e posteriormente sua contraface, primeiramente

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precisamos buscar algumas definições, como por exemplo, o que é território. Haesbaert (2010, 25) realizou uma extensa revisão teórica apontando a polissemia do conceito de territorialização e as múltiplas perspectivas consideradas em diferentes áreas (que não raramente convergem ao mesmo ponto como linhas paralelas que se encontram no infinito); no entanto, a que servirá de base para o presente debate fundamenta-se sobre as noções de Lefebvre (1986, 411) e Haesbaert (2004, 3), que conceituam território para além do geofísico e abrangem o espaço-processo, isto é, nessa concepção, o território apresenta uma constituição tríplice enquanto espaço concebido, percebido e vivido. Assim, a territorialização englobaria, além da delimitação física, as medidas de dominação e apropriação, tanto em nível político-econômico quanto subjetivo e cultural-simbólico. Mais ainda, a territorialidade, sendo um componente de poder formado por diversas combinações, realiza funções e, principalmente, produz significados (Haesbaert, 2010, 23). Em outras palavras, a territorialização consistiria na apropriação de territórios de grupos e comunidades para sua posterior integração à máquina de poder, destruindo formas coletivas e individuais e produzindo uma forma “territorial” de organização social, política, econômica e cultural que serve a interesses hegemônicos. Forma-se, então, uma sociedade delimitada, em que mediante um controle territorial, alcança a disciplinarização dos corpos sob uma ordenação espaço-temporal. Deste modo, é sobre o corpo e seus fragmentos que recai o controle, o equilíbrio precário e forçado, até mesmo sobre sua dimensão imaterial. No mundo árabe, o discurso islâmico 2 controla e legitima as ações de um sistema patriarcal em que a mulher não é capaz de delimitar as fronteiras do seu corpo: não deve aprender sobre a sexualidade feminina, muito menos questionar os limites impostos e tampouco pode se queixar de ver o próprio “território invadido” pelos homens da comunidade (Silva, 1996, 55). Seu corpo torna-se uma “superfície de projeção onde se colocam os fragmentos de identidade pessoal estilhaçados pelos ritmos sociais” (Le Breton, 2007, 63). E esta é a matriz dos filmes da cineasta Jocelyne Saab: o corpo como condição do indivíduo, especialmente da mulher árabe, o lugar de sua identidade, a tal ponto de que “o que se lhe arranca ou acrescenta define sua relação com o mundo e consigo própria” (Le Breton, 2007, 63). O corpo feminino em Saab quer redefinir fronteiras por si mesmo, aumentar a permeabilidade aos fluxos internos e externos e diluir relações binárias de poder.

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Nascida no seio de uma família burguesa em Beirute, Líbano, em 30 de abril de 1948, Saab foi educada em escolas francesas, sem muito contato com a própria cultura árabe. Pertence à geração que buscou as raízes e identidade, afastando-se um pouco do forte predomínio europeu que determinava a produção cultural libanesa até os anos 1950 (Hillauer, 2005, 173). Vivenciou o boom da indústria cinematográfica árabe dos anos 1960 e 1970, embora no início da carreira tenha atuado como repórter e documentarista, trabalho também que influenciaria sua obra no cinema. Aliás, foi por meio dessa atividade, além de uma viagem a Paris e uma grave enfermidade, que Saab desenvolveu uma atenção especial ao feminino, resultando numa miríade de reflexões que seriam levadas às telas: observou que era tratada de forma diferente por ser mulher, ou melhor, o tratamento levava a um “apagamento” da condição de mulher, como ela mesma revela: Now I understand that my situation was not normal. I hadn't been aware that they were treating me differently. […] I got the chance to interview prominent politicians and leaders, for example, Muammar al-Qaddafi. They wanted to know who I was, where I came from, what I looked like. Suddenly they had a woman before them who could think and was an intellectual, and who was different from the image they had of women. So I was in fact received like a man. […] They had to imagine me as a masculine person. (Hillauer, 2005, 174)

A experiência do apagamento e a fragilidade física temporária conduziram o trabalho de Jocelyne para a questão do corpo feminino e a identidade da mulher no mundo árabe-islâmico: When I was healthy again, I wanted to reflect about life in my films. I began to talk about women, dancers, the female body. It was as if not only my body but also my imagination had come back to life. […] My approach to all these themes seemed to rise in the more conservative factions of Arab society. (Hillauer, 2005, 175).

Desde então, seus filmes apresentam a história, a religião, a guerra e tantos outros temas construídos sobre o olhar de mulheres de diferentes esferas sociais, faixas etárias e ocupações. Em seu primeiro longa, A Suspended Life (Ghazl el-Banat, 1984), selecionado para o Festival de Cannes de 1985, a câmera segue literalmente o cotidiano da adolescente Samar. Nascida em meio à guerra e nômade forçada, desenvolve um espírito combativo que contrasta com a reconstrução que faz de seu entorno através do cinema egípcio do qual é fã, assim como sua beleza e capacidade de sonhar se opõem às ruínas físicas e emocionais de uma Beirute reduzida a pó. A câmera da diretora mostra as novas divisas desse corpo, fala dele e o representa na tela, revisitando os lugares por onde passa, descrevendo sua trajetória, as relações que tece (inclusive a paixão por Karim), e apresentando o complexo mapa reelaborado pela própria jovem. Samar passa

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da vertigem da desintegração do seu território à reestruturação, e Saab realiza uma dissecção para o espectador, no entanto, seu objetivo não é um mero reconhecimento da anatomia, mas permitir a observação das fronteiras redesenhadas e a legítima tomada de posse do corpo pelo “eu”. A cineasta reescreve por meio da “câmera-bisturi” o conceito de desterritorialização: quebram-se os vínculos impostos, anulam-se os limites e rompe-se com o regramento do físico feminino. A adolescente “de açúcar” (como indica o título original em árabe) faz do corpo seu recinto, o lugar de sua liberdade, o objeto privilegiado de uma reconstrução e de uma vontade de autodomínio. Em seu segundo longa-metragem, Once Upon a Time: Beirut (Kan Ya Ma Kan, Beirut, 1995), duas jovens na faixa dos 20 anos, Leïla e Yasmine, através de fotos antigas de Beirute e da própria imaginação, tentam reconstruir a memória da cidade depois dos conflitos da década de 1980. Aqui, o corpo feminino não é apenas o das moças, mas o da própria Beirute, que incorpora a representação de uma mulher que precisa se redescobrir pelos fragmentos de memória e de si mesma. Nesse sentido, memória e corpo mostram-se fractais repletos de subdivisões, e cada uma destas remete ao todo. Não por acaso o filme não segue uma linearidade, tornando inviável sua compreensão como uma narrativa com princípio, meio e fim. A interpolação de eventos, subdivisões históricas uma dentro de outra, quebra qualquer linearidade, recordando-nos que o sujeito-corpo, portanto, tem uma formação complexa, múltipla e fractal. Essa fractalidade do corpo “Beirute” pede pela criação de territórios de fronteiras permeáveis e estratégias para a ocupação dos mesmos. Assim, como afirma Cunha e Silva (1999, 188), o reconhecimento dessa fractalidade é, num certo sentido, um meio de liberdade, de libertação, porque expõe antigos espaços fechados e os limites impostos que agora podem ser suprimidos. A fractalidade sufraga a desterritorialização. Mas é em Dunia: Kiss me not on the eyes (Dunia, 2005), ambientado no Cairo, que o tema da eliminação das fronteiras do físico humano atinge cada um dos personagens e, consequentemente, o espectador. A narrativa está centrada em Dunia, estudante de dança e literatura que deseja se tornar dançarina profissional e chegar ao êxtase através da arte. Logo no início do filme, a protagonista se encontra num concurso em que deveria recitar uma poesia; embora tivesse presença forte no palco, a banca examinadora lhe pede para que “sinta a poesia no corpo”, pois do jeito que se apresentava parecia um “cadáver”, ao que ela responde sentando no chão, descalça, que nunca vira o próprio corpo e que a primeira vez que vira uma mulher nua fora num filme francês. Vemos, então, que o corpo feminino árabe constituiu (e ainda constitui)

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um lugar de crenças, práticas reguladoras de identidade e barreiras para o autoreconhecimento (Silva, 1996, 55). A aspirante foi privada de suas referências femininas, encerrada num espaço delimitado, imobilizada, a ponto de parecer “morta”. Como ressalta Cunha e Silva (1999, 33), um corpo estático é um corpo colocado fora do território do conhecimento, isolado por fronteiras impermeáveis. Importa reconquistar o lugar e explorar as estratégias que possam substantivar esta conquista. Reconquistar o corpo é reconquistar seu lugar, é demarcá-lo (ou não) com novas divisas (Cunha e Silva, 1999, 34). O processo de reconquista do corpo de Dunia se apóia nas ideias do professor e intelectual Beshir, que por seu lado também deseja a desterritorialização. Libertário, sua luta se concentra na “defesa” do livro As Mil e Uma Noites contra os fundamentalistas, que consideram a obra pornográfica e, portanto, tentam proibir sua circulação e republicação. Beshir torna-se o advogado de defesa de Sheherazade, colocada no banco dos réus por seu suposto impudor; se condenada, a heroína de As Mil e Uma Noites sofrerá censura total, terá “sua língua cortada”, como afirma Arwa, outra intelectual que tenta barrar a ação dos radicais. Sheherazade, por sua vez, representa a mulher, o corpo feminino, julgado, condenado e esfacelado pela tentativa de permeabilizar as fronteiras ou libertar-se das mesmas. Mas a vida fornece ao corpo, simultaneamente, um elemento de unidade e diversidade, de modo que falar do corpo é falar dos seus fragmentos: a célula, o tecido, o órgão, o sistema, estão contidos no corpo-identidade, e só podemos considerá-lo ao celebrar sua pluralidade (Cunha e Silva, 1996, 25). Conforme Gil (1994, 157), “o corpo, na medida em que faz sentido, está em todas as partes, […] há uma presença de todo o corpo em cada órgão”. Em suma, é a partir da fração que o corpoidentidade se significa e busca as forças para sua autonomia; assim, o corpo exige ser entendido a partir de um fragmento: um lugar que o reconheça no pormenor, mas que o identifique no todo. Se Sheherazade pode perder a língua e a voz no Egito da era Mubarak, Dunia já havia sido privada do clitóris ao ser submetida à circuncisão quando menina. As fronteiras do prazer foram delimitadas para ela, no entanto, apesar da violência descabida, Saab tenta deixar uma mensagem de esperança para essas mulheres territorializadas à força: a mudança mediante a redesignação dos próprios limites de acordo com a identidade individual, apoiada por proposições de justiça e gênero e pela difusão do conhecimento, e a redescoberta de outros meios de desterritorialização e busca de significação. Mas de que modo? Resgatando outros fragmentos do “eu”, os

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fractais compostos de micropercepções, torvelinhos infindos de novos movimentos que podem ajudar a redefinir o próprio território com a completa supressão das constrições de origem externa, num processo de extrema plasticidade. Essa libertação dos grilhões da territorialidade representam “o êxtase do corpo e da alma” que Beshir aconselha Dunia a buscar através da dança e da leitura das poesia de Ibn Hazn e Ibn Arabi. Mas o professor também alerta que a conclusão desse processo está no topo de uma montanha e para chegar até lá devemos percorrer um caminho que exige paciência e aceitação da dificuldade. Se Sheherazade é absolvida em primeira instância no Egito (portanto, apenas por enquanto), Dunia chega ao ápice da montanha e dança sobre ela divisando a cidade de Beirute, mostrando sua mobilidade e a (quase) completude do processo de desterritorialização; ambos resultados conferem-lhe a vantagem de “outrar”, como Cunha e Silva (1996, 28) adequadamente sugere o uso do verbo de Fernando Pessoa: ser outra, ser uma sucessão contínua de outros que se enriquecem na complexidade dos trajetos não lineares realizados. Em suas produções mais recentes, Saab continuará com os temas abordados nos filmes mencionados anteriormente, e quase sempre de forma caleidoscópica: o espectador é levado a pousar seus olhos numa tela em que diversos fragmentos se refletem mutuamente, produzindo uma infinidade de imagens do todo. As imagens em Saab são, tomando as palavras de Antelo (2008, 5), enigmas em que a superposição de diferentes elementos, tais como o arcaico e o atual, a tradição e a ruptura, o trágico e o farsesco, a territorialização e a desterritorialização, surgem com todo seu magma, exigindo que analisemos o modo em que sob essas oposições os corpos habitam, morrem e renascem. É o caso de What's going on? (Shou'amm Beyseer, 2010), uma narrativa recortada, surrealista em que o real e o imaginário dos personagens cortam, alinhavam, cerzem suas histórias, compondo uma roupa para o “corpo-sujeito” representado por uma Beirute do pós-guerra. Vemos, portanto, que o cinema da libanesa funda definitivamente suas bases na questão corporal, particularmente da mulher do Oriente Médio, e esse próprio cinema, também como um corpo, só faz sentido para aquele que abre o mapa formado por uma materialidade fracionada, um mapa que multiplica seus lugares incontáveis vezes e reescreve as próprias fronteiras, mas mantendo, como diria Cunha e Silva (1996, 23), os elementos que identificamos e nos permitem dizer desde a cômoda poltrona: “Isto é um corpo!”.

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BIBLIOGRAFIA ANTELO, R. As imagens como força. Crítica Cultural, Palhoça, v.3, n.2, p.1-8, 2008. CUNHA E SILVA, P. O Lugar do Corpo. Elementos para uma cartografia fractal. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. 233p. GIL, J. Monstros. Lisboa: Quetzal Editores, 1994. 180p. HAESBAERT, R. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. In: Seminário Nacional sobre Múltiplas Territorialidades, 1., 2004, Porto Alegre HAESBAERT, R. Território e Multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, Rio de Janeiro, Ano IX, n.17, p.19-46, 2007. HILLAUER, R. Encyclopedia of Arab Women Filmmakers. Cairo: The American University in Cairo Press, 2005. 352p. LE BRETON, D. Sociologia do Corpo. 2ª Edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. 101p. LEFEBVRE, H. La production de l'espace. Paris: Anthropos. 485p. LIMA, C. Um recente movimento político-religioso: feminismo islâmico. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(2): 304, p. 675-686, 2014. SILVA, M. C. O suq das vaidades. In: ALMEIDA, M. V. (Org.). Corpo Presente. Treze Reflexões Antropológicas sobre o Corpo. Oeiras: Celta, 1996. p. 54-71.

1 . Cabe especificar o termo composto utilizado aqui: os países que pertencem ao chamado “mundo árabe” (Oriente Médio e Maghreb) têm como uma das línguas oficiais o árabe, mas costumase, erroneamente fundir e confundir a região com a religião islâmica. Embora a maioria da população dessa região seja praticante do Islã, a generalização incorre em erro. Ademais, há muitos países islâmicos que não pertencem ao mundo árabe, como é o caso do Paquistão, Afeganistão, Indonésia, Índia, entre outros. Assim, a menção à “mulher árabe-muçulmana” refere-se à mulher praticante ou submetida a essa religião e pertencente a um dos países do Oriente Médio e Maghreb. 2 . Há variantes dentro da própria religião e entre países praticantes do Islã, como foi destacado no início deste artigo. Ainda que essa variedade de regras e práticas islâmicas seja bastante ampla, há alguns pontos em comum quanto às restrições impostas às mulheres. Outro ponto que vale a pena mencionar é que este (ou mesmo o cinema de Jocelyne Saab, como já foi acusado muitas vezes) não é um discurso contra o Islã e/ou o mundo árabe, mas o reconhecimento de que nessa sociedade, assim como na Ocidental, ainda são necessárias muitas medidas para que possamos dizer que o sistema patriarcal foi completamente abandonado e que existe uma plena igualdade entre gêneros.

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Fernanda Grigolin

Apresentação

Frame Funerais do Comendador Jafet, 1924

O Brasil vive um contexto de ódio político e fundamentalismo religioso. “Sou aquela mulher do canto esquerdo do quadro” está ancorado na primeira grande greve de São Paulo, que depois se alastrou às demais regiões do país. É a greve de 1917, que completará cem anos em 2017: nela, a questão social foi levada pelo Estado como caso de polícia. Resquícios de uma sociedade autoritária, racista e patriarcal seguem até hoje. O estado como estado policial, algo instaurado como política pública na República Velha, foi reassumido no estado brasileiro no governo interino de Michel Temer. Arquivo 17 “Sou aquela mulher do canto esquerdo do quadro” é parte do meu doutorado em Artes Visuais na Unicamp, denominado Arquivo 17. “Sou aquela mulher do canto esquerdo do quadro” visa a várias ações, mas a primeira é uma série de imagens fotográficas trabalhadas para vários canais de distribuição (como a revista Artéria e a exposição

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Pandora), bem como para um vídeo curto, feito a partir de frames, para ser distribuído pelo instagram. No clássico Filosofia da caixa preta, Flusser afirma que o que mais distingue a fotografia das demais imagens técnicas é como elas são distribuídas: As fotografias são superfícies imóveis e mudas que esperam, pacientemente, serem distribuídas pelo processo de multiplicação ao infinito. São folhas. Podem passar de mão em mão, não precisam de aparelhos técnicos para serem distribuídas. Podem ser guardadas na gaveta, não exigem memória sofisticada para seu armazenamento. (FLUSSER, 1985, p. 67)

A distribuição arcaica da fotografia, o passar de mão em mão, tem na sua essência a característica da portabilidade. Flusser afirma serem as fotografias folhas, e elas se assemelham a folhetos. Não há a menor necessidade de grandiloquência para uma fotografia existir, chegando a ser desprezível. Porém, Flusser ressalta que a fotografia transcodifica a mensagem linear do folheto em imagem e o significado de cada fotografia modifica-se de acordo com o canal de distribuição. Há uma relação entre a fotografia e os aparelhos distribuidores, pois estes transformam a fotografia em práxis. “Antes de serem distribuídas, as fotografias são transcodificadas pelo aparelho de distribuição, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; somente dentro do canal, do médium, adquirem seu último significado.” (FLUSSER, 1985, p. 76). O universo das imagens técnicas, seus meios de distribuição e seus dispositivos de visualização portáteis (conhecidos com gadgets) são parte do nosso cotidiano; segundo Flusser (2008), as imagens técnicas significam programas. São projeções que partem de programas e visam a programar os seus receptores. As cenas mostradas pelas imagens técnicas são métodos de como programar a sociedade [...]. As cenas mostradas devem ser analisadas em função do programa a partir do qual foram projetadas. (Flusser, 2008, p. 53, 54)

“Sou aquela mulher do canto esquerdo do quadro” é uma proposta dentro do universo das imagens técnicas e seus canais e meios de distribuição. Contudo, antes de discutir o projeto em si, irei contextualizar meu doutorado.

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Por que 17 O número 17 se relaciona com o ano da primeira grande greve operária no Brasil, 1917, e também com as dezessete versões do arquivo que serão realizadas ao longo do doutorado. Operários paulistanos, muitos de tendência anarquista, iniciaram no começo do século XX a greve, foi o primeiro movimento de luta pelos direitos sociais na República. O bairro do Ipiranga, juntamente com a Mooca, foi o local onde começou a greve operária de 1917. O protesto foi iniciado pelas tecelãs do Cotonifício Crespi por melhores salários, adicional noturno e fim do trabalho infantil. Era julho de 1917, mais da metade dos trabalhadores das tecelagens eram mulheres e crianças, que trabalhavam em condições insalubres. O Brasil vivia momentos em que as questões sociais eram caso de polícia e não existiam direitos trabalhistas vigentes. Os bairros operários paulistanos eram lugares de pequenos encontros. Os operários criaram comitês e círculos operários, sempre de forma regional, bairro a bairro, sem uma unificação ou em formato de centrais sindicais. Uma das organizações mais conhecidas foi o Comitê de Defesa Proletária (CDP), liderado por Edgard Leuenroth,1 tipógrafo e jornalista que atuou em diversos jornais da época, entre eles A Plebe. Os comitês discutiam melhorias salariais e eram pontos de encontro. Todavia, o movimento tomou corpo com o assassinato do sapateiro António Martínez, morto pela polícia. No dia 11 de julho de 1917, 10 mil pessoas marcharam pelas ruas do centro de São Paulo. A caminhada tinha um trajeto definido: do centro de São Paulo até o cemitério do Araçá. Pelo centro, em coro, os manifestantes gritavam: “Libertem Walepinsk!”.2 Walepinsk foi o segundo sapateiro a entrar para a história da greve. Ele foi preso pela polícia ao denunciar a morte de Martínez. No Araçá, os manifestantes finalizaram sua marcha em frente ao túmulo de Martínez. A greve se manteve por muitos dias, e outros eventos tomaram conta da cidade, como saques a mercados e comícios. Havia muitas mulheres entre os anarquistas. Elas, além da pauta própria das melhorias trabalhistas, falavam de direito ao divórcio e questionavam a virgindade (RAGO, 2001). Seriam as primeiras a falar de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil.3

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Três grandes comícios aconteceram naquele mês de julho: um na Lapa, um no Largo da Concórdia e um no Ipiranga. Depois dos comícios, os patrões fingiram acatar as reivindicações, e a greve, assim, acabou. Todavia, ao voltarem ao trabalho, os operários foram perseguidos, alguns presos, mortos ou deportados. Artista montador e jogador As razões pelas quais se seleciona um objeto ou uma imagem são de extrema importância para um projeto. Ao passar o documentário para frames, mais de 30 mil, deparei com uma mulher no canto esquerdo do quadro, uma mulher comum vestida de xadrez. A sequência na qual ela aparece dura em torno de doze segundos, de um documentário de quinze minutos. Não tive acesso ao documentário original, a Cinemateca Brasileira me disponibilizou o arquivo digitalizado. Assim, trabalho com o documentário editado e passado ao digital. O suporte a que eu tenho acesso é o digital, e é a partir dele que construo a proposta de narrativa. O documentário original, de acordo com a Cinemateca Brasileira, foi organizado por José Inácio de Melo Souza, que estabeleceu a data da filmagem entre 27 de dezembro de 1923 e 3 de janeiro de 1924. Antes da edição realizada por Souza, o material examinado encontrava-se disperso em pequenos rolos referentes aos planos, sem letreiros ou intertítulos, num total de 340 metros. O restaurado pela Cinemateca Brasileira foi realizado no projeto Resgate do Cinema Silencioso Brasileiro, financiado pela Caixa Econômica Federal, em 2007-2008. Na sociedade das imagens técnicas, o artista pode ser visto como um montador em uma grande ilha de edição, que realiza seu projeto de arte de escolhas e cortes. O artista tira e põe dados e informações já existentes, já postos no mundo, aproxima-se

da ideia de Flusser sobre o artista como jogador. O “artista” deixa de ser visto enquanto criador e passa a ser visto enquanto jogador que brinca com pedaços disponíveis de informação. Esta é precisamente a definição do termo diálogo: troca de pedaços disponíveis de informação. No entanto, o artista brinca com o propósito de produção de nova informação. Ele delibera. Ele participa de diálogos a fim de, deliberadamente, produzir algo imprevisto. Dessa maneira, o “artista” não é uma espécie de Deus em miniatura que imita o Grande Deus lá de fora (ou o que quer que

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se ponha no lugar desse Grande Deus), mas sim jogador que se engaja em opor, ao jogo cego de informação e desinformação lá de fora, um jogo oposto: um jogo que delibere informação nova. O método a que recorre nesse jogo não é de uma “inspiração” qualquer (divina ou antidivina) mas sim o do diálogo com o outro e consigo mesmo: um diálogo que lhe permite elaborar informação nova junto com informações recebidas ou informações já armazenadas. Devemos imaginar esse jogo produtivo de informações dentro de uma rede dialógica, tornada atualmente tecnicamente viável graças à telemática e a seus gadgets. (FLUSSER, 2008, p. 93)

Sou aquela mulher do canto esquerdo do quadro A sequência de imagens são frames do documentário histórico Funerais do comendador Jafet (1924). O documentário narra o velório e o enterro de um dos principais industriais do início da República do Brasil, Nami Jafet, dono da Tecelagem Jafet no bairro do Ipiranga. Contudo, não é a comitiva que me interessa, e sim as pessoas na rua, as pessoas comuns, os curiosos que passeiam e transitam pelas ruas do bairro do Ipiranga (São Paulo). A imagem da mulher fala do meu projeto, bem como o projeto fala por meio dela. Seguramente, foi ela a costureira de seu próprio vestido xadrez. Talvez tenha sido seu único vestido de festa, que ela usou para estar na rua e encontrar com o cortejo do industrial morto. Para a família do industrial, um dia de pesar; para os operários, um dia de estar na rua.4 Talvez ela tenha comprado o tecido na Tecelagem Jafet, já que o xadrez era a especialidade da fábrica. Havia um tipo de xadrez no mercado: xadrezinho Jafet. O inverossímil da imagem me atrai demais. Nos anos 1917 eram poucas as imagens nesta perspectiva, as câmeras eram pesadas e a fotografia era um lugar do burguês e não do proletário. Dificilmente uma cena de rua nessas circunstâncias seria abordada se não fosse em um contexto burguês. O fotográfico tinha outra relação com o retratado. Essa imagem apenas foi possível devido à produção do documentário e ao contexto: a morte de um importante industrial. O deslocamento da imagem — sua retirada do movimento e a transformação do frame em fotografia — gera um ruído atrativo e pertinente ao projeto. E a devolução do frame ao vídeo não será mais feita por um canal de vídeo, e sim fotográfico, o

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instagram, e terá como matéria a imagem estática sequencializada, e não a imagem em movimento.

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Frame Funerais do Comendador Jafet, 1924

Não sei nada da vida real de minha narradora. Quando olhei os frames, ela me chamou a atenção, por ser uma mulher comum no meio do cortejo. Apesar de o documentário ter o título atribuído ao funeral, são as pessoas comuns, os curiosos do cotidiano que o protagonizam. A câmera em seu tripé permite uma narrativa em terceira pessoa muito interessante. Há diálogo da câmera com pessoas comuns; ao caminharem, elas olham para a câmera, em especial os homens. Porém, os homens estarão lado a lado na minha proposta de narrativa; eles, os operários, já são os protagonistas da história operária oficial, e com eles – lado a lado com os demais atores- realocarei o protagonismo das mulheres não mencionado na história oficial. Apesar de terem sido as mulheres operárias as iniciadoras da greve de 1917 e de haverem participado do comitê e de grupos, elas são esquecidas e pouco citadas. “Sou aquela mulher do canto esquerdo do quadro” pretende trazer questões vinculadas aos direitos das mulheres e temas como o feminismo e direitos sexuais. É uma tentativa de realocar, trazer a um projeto de arte temas ainda urgentes, de lutas e conquistas que seguem a ser bandeiras, mesmo depois de cem anos.

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Conclusão O documentário, ao ser posto em frames e editado nos títulos propostos, retira do movimento imagens e as congela. O congelamento libera a imagem em movimento do momento oculto, do momento dos operários da rua, com suas roupas, com seus gestos cotidianos e, em especial, a mulher do canto esquerdo do quadro. Falar da mulher do canto esquerdo do quadro e sacá-la do canto, e redimensioná-la como narradora, é atribuir outras possibilidades narrativas ao universo operário, é trazer questões sociais, políticas e de desigualdades entre homens e mulheres, em 1917 e hoje em dia. Notas 1

O seu arquivo pessoal, que conta parte da história dos operários da República Velha, foi institucionalizado e está sob custódia da Unicamp: Arquivo Edgard Leuenroth – AEL, http://www.ael.ifch.unicamp.br/site_ael/. 2 A greve não só tomou as fábricas; pequenos comércios, profissionais liberais, como os sapateiros e empreiteiros, aderiram à paralisação. 3 Os direitos sexuais e reprodutivos passaram a ser denominados assim após a Conferência de População e Desenvolvimento ocorrida na cidade de Cairo (Egito) no ano de 1994. 4 A geografia do bairro do Ipiranga, em São Paulo, nos anos 1920 era interessantíssima. Burgueses, proletários e as fábricas habitavam o mesmo espaço. Burgueses na parte alta do bairro. As fábricas e as casas proletárias na parte baixa.

Referências: BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Porto: Assírio & Alvim, 2008. DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo – uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985. ______. O universo das imagens técnicas – elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. GELL, Alfred. “Vogel’s Net: Traps as Artworks and Art works as Traps”. Journal of Material Culture, 1, pp. 15-38, 1996. HELDER, Herberto. A faca não corta o fogo, súmula & inédita. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. ______. “A propósito de photomaton & vox ou qualquer outro texto do autor”. A Phala. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996. ______. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987.

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RAGO, Margareth. Entre a História e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2001. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

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BAS JAN ADER E JEAN-LUC NANCY, ou das espumas de um des-astre. Flávia Scóz Resumo: O presente ensaio se propõe a refletir sobre o trabalho do artista Bas Jan Ader a partir da imagem do informe – da espuma – que aparece no nascimento de Afrodite. Para tanto, o ensaio se apoia em alguns conceitos de Jean-Luc Nancy, que constam, principalmente, nos seguintes trabalhos: El Sentido del Mundo, Demanda e Noli me Tangere. A proposta é pensar a espuma como aquilo que resulta da queda, do acaso e do desastre. Palavras-Chave: espuma, desastre, Bas Jan Ader, Jean-Luc Nancy, queda Abstract: This paper aims to reflect jointly the work of the artist Bas Jan Ader and the shapeless image – the foam – which appears in the birth of Afrodite. For this, the essay is based on some concepts of Jean-Luc Nancy, contained mainly in the following works: El Sentido Del Mundo, Demanda and Noli me Tangere. The purpose is to think of the foam as what results from the fall, chance and disaster. Keywords: foam, disaster, Bas Jan Ader , Jean-Luc Nancy, fall.

Bas Jan Ader e a poética da queda A queda é o movimento que rege grande parte das performances de Bas Jan Ader, em especial sua famosa série Fall, composta por seis filmes em 16mm realizados nos anos 1970 entre os EUA e a Holanda. Bas Jan Ader nos expõe o peso do corpo que cai, que se desequilibra, que rola, que despenca, que não se suporta. Neste sentido, pode-se dizer que o artista ensaia uma poética da queda, sobre o que se falará adiante. Em Fall I, um filme com duração de 24 segundos, Ader vai até o alto do telhado de sua casa em Los Angeles. Na cumeeira, senta-se numa cadeira e tenta encontrar um ponto de equilíbrio, mas acaba por provocar a própria queda. Uma espécie de armadilha está montada, à espera do momento de desequilíbrio. Será que ele acredita

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que pode superar sua queda, como um equilibrista Zaratustra que atravessa a corda bamba do poder? O desejo de cair seria um pretexto para o desejo de se levantar, de emergir refeito, como se na queda houvesse uma transformação lenta e imediata? E de quantas maneiras diferentes é possível cair nessa mesma queda, sempre diferente? É bom lembrar que o acesso que temos às quedas performáticas do artista advém de um registro técnico, ou da reprodutibilidade, para falar com Walter Benjamin. Neste sentido, a queda, única, torna-se, por meio da reprodução, sempre repetível mas nunca repetida. Bas Jan Ader registra uma versão do acaso, de um lance de dados (Mallarmè) arremessado à sorte, pois, em teoria, assistimos justamente àquilo que não poderia ser registrado, ou seja, o imponderável de uma queda. Para seguir com Mallarmè, é como se Ader ousasse capturar o exato momento entre um lance e outro, aquele centésimo ou milésimo de segundo em que o corpo já não toca mais o solo firme mas ainda não começou a cair. Ader nos coloca frente a esse abismo do acaso. O artista quer a queda, mas, ao mesmo tempo, a queda em si é a morte. Ele está diante do precipício e é repelido pela pressão atmosférica. Chega até a borda, vacila e parece querer desistir. Há um mistério que impede a queda – o tombo, a tumba, o túmulo i . Medo de cair com vontade de se jogar. Será possível alcançar esse corpo enquanto ele despenca? Ou para pensar com Ader: será possível conter, ou registrar, mesmo que fugazmente, esse corpo que despenca?

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Figura 1- Bas Jan Ader, Fall I, 1970. Los Angeles, 16mm, 24’’. Foto: (frame) Site oficial do artista.

A poética da queda e o nascimento de Afrodite

O nascimento de Afrodite, deusa do amor, é versado por Hesíodo. Afrodite nasce da espuma. Ela nasce quando Cronos, filho de Urano, atende ao pedido de sua mãe, Terra, e castiga o próprio pai. Urano é castrado no momento do ato sexual, e suas genitálias são lançadas ao acaso. O órgão que despenca do céu, morada dos Deuses, cai no mar. Forma-se uma espuma branca, resultante talvez do impacto da queda, talvez do contato entre o esperma ejaculado e o próprio mar. Nesta segunda possibilidade, o mar é fecundado pelo esperma de Urano – mar, em francês, é mer (homofonia entre mar e mãe). O movimento da queda e a agitação são necessários para que a espuma emerja. Como se fosse necessário despencar para emergir à superfície, um movimento ambíguo em direção ao informe. Há um ensaio de Jean-Luc Nancy, Peã para Afrodite, no qual, como sugere o título, é entoada uma ode a essa Deusa, Afrodite, aquela que nasce da espuma. A profundeza que sobe é o nascimento. A espuma é sempre nascente, somente nascente. Afrodite não tem um nascimento: ela é o nascimento, a vinda ao mundo, a existência. O nascimento exige a espuma. É preciso mesclar e molhar para que nasça a coisa em si [la chose même]: sua forma inimitável. <<O úmido é a causa para que o seco tome contorno>>, diz Aristóteles (Nancy, 2016, p. 323).

A espuma é o vai-e-vem, isso que não cessa de se oferecer, de dar e de se doar. É o que não cansa de chegar. Isso que excede dos movimentos mais violentos, isso que resta da fricção. A espuma que transborda do copo dos embriagados, o esperma que demarra do corpo, que desborda do mar, que deseja o toque. Para Nancy, a espuma é como uma fenda, lembrando que a fenda não deixa de ser um limiar, espécie de lugar-entre tão buscado por Bas Jan Ader: O que vem à superfície, e que espuma, é uma fenda. A fenda não é um entalhe, é uma forquilha na alga, é um fruto, um figo entreaberto sobre uma espuma úmida. São lábios lambidos pelo marulho. Nascer: o nome do ser. Ser parido, vir ao aberto de um lugar (Nancy, 2016, p. 322).

A espuma, ou a deusa, é o que provém dessa fenda abismal. A espuma não cai, não afunda, ela emerge, não tem medida nem peso. Essa que está sempre úmida, essa que se agita e ainda assim permanece calma, que não se desespera. A espuma que se desfaz imóvel. Lembremos da expressão serena de Afrodite ao nascer, no clássico

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quadro de Botticelli (O Nascimento de Vênus, 1483). A espuma está sempre na superfície, vindo beijar os pés dos passantes na areia, com uma brancura ofuscante, anunciando o fundo, rolando no erro da ondaii. A espuma está em diversas partes: na crista das ondas, no casco das naus, nos restos do nau-frágil, nos banhos, na força dos remos, nas quedas, na agitação dos líquidos, nos impactos. Pensar a espuma é pensar o informe, mas, ao mesmo tempo, como a única coisa que pode ser tocada. A espuma é porosa, desprovida de pele. O toque é o atravessamento. Para falar com Nancy, que pensou o toque talvez como uma impossibilidade, remete-se ao livro cujo título aponta para a parábola bíblica, Noli me Tangere: Lo que no debe ser tocado es el cuerpo resucitado. Podemos tambiém entender que no se debe ser tocado porque no puede serlo: no es tocable. Esto no significa, sin embargo, que se trate de un cuerpo aéreo o inmaterial, espectral o fantasmagórico. La continuación del texto, sobre la que volveremos más tarde, mostrará que esse cuerpo es tangible (Nancy, 2006, p. 27).

O corpo sagrado é tangível mas não tocável, é palpável mas não pode ser retido. Nancy faz um percurso pelas representações pictóricas da famosa passagem em que Maria Madalena vê, ou escuta, ou vê porque escuta, Jesus ressuscitado, e este profere a frase que dá titulo ao livro: Noli me Tangere. Não me toques, não queira me tocar, não me retenha. O que o corpo de Cristo impede é justamente o que o contato com a espuma provoca: o atravessamento. De todos os sentidos, o tato é o mais imprescindível. Temos constatações diárias de pessoas cegas, surdas, mudas e mesmo sem olfato. Cabe pensar, talvez, se é possível uma forma de vida humana que prescinda do tato. Já a leitura que a parábola bíblica tenta impor é que o corpo nunca pode ser plenamente tocado. Mas, se postulamos que a porosidade da espuma permite esse toque, quando de fato é possível dizer que tocamos algo? Ou quando é possível dizer que deixamos algo nos tocar, nos atravessar? A espuma e o des-astre Urano é um deus, mas também é um planeta, um astro celeste. Jean-Luc Nancy pensa no desatre etimologicamente. Desastre tem origem latina, dis-astrum, contrário aos astros, referindo-se a estrela, que também carrega o radical strum. Para algumas culturas, os astros são responsáveis pelo destino das pessoas, e o termo desastre era

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evocado quando algo de ruim invadia esse destino. No português, a palavra desastre perdeu sua realação com os astros, ficando seu significado restrito a um acidente ou a uma calamidade. Neste sentido, o tocar da espuma, fruto do desastre de Urano, é igualmente desastroso. Tocar a espuma não é somente atravessá-la com nossas mãos, é também destruí-la, desfazê-la. Nossas superfícies, embora porosas, repelem o tato a partir de sua aparente inviolabilidade. Prova disso são nossas proteções culturais, como as vestimentas. Resistimos a ser tocados, atravessados. Deixar-se tocar seria permitir uma destruição, um desastre, algo ligado ao movimento dos astros, para novamente etimariii com Nancy: El desastre es el del sentido: desamarrado de los astros, los astros mismos desamarrados de la bóveda, de su claveteado o de su puntuación titilante de verdad(es), el sentido se escapa para hacer sentido a-cósmico, el sentido se hace constelación sin nombre y sin función, desprovido de toda astrologia, al tiempo que dispersa tambiém las marcas de la navegación, enviándolas a los confines (Nancy, 2003, p. 72).

Desastre dos astros é uma queda, desejo de todo o corpo é cair. Esses volumes celestes por muito tempo nos guiaram e foram a nossa grande referência espacial. Acreditávamos em sua imobilidade. Mas o que na verdade nos guiava era justamente o movimento desastroso desses astros que vagam, de uma vaga a outra, em deriva, na sua própria errância siderada. Desiderium, esse desejo de-siderar. A espuma nasce desse desejo, desse des-astre, dessa queda no acaso. Para lembrar o nascimento de Afrodite, o desatre está na castração de Urano e no lançar de sua genitália ao mar, conforme narra Hesíodo: O pênis, tão logo cortando-o com o aço atirou do continente no undoso mar, aí muito boiou na planície, ao redor branca espuma da imortal carne ejaculava-se, dela uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina atingiu, depois foi à circunfluída Chipre e saiu veneranda bela Deusa, ao redor relva crescia sob esbeltos pés. A ela. Afrodite Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia apelidam homens e Deuses, porque da espuma criou-se e Citeréia porque tocou Citera, Cípria porque nasceu na undosa Chipre, e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz

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(Hesíodo, 1995, s/p).

A genitália castrada de Urano, ou de Céu, é como esse astro que despenca e cai na intimidade do mar – mar-íntimo. E desse íntimo, retido nessa fenda, é que nasce Afrodite. No livro El Sentido del Mundo, no parágrafo intitulado Espacio: Constelaciones, Nancy aproxima a ideia do desiderar com o movimento do desejo: Desiderium: la desideración engendra el deseo. Frecuente y manifiestamente, en relación con motivo del deseo, la filosofía – incluso en el pscicoanálises – encaró el tema de la privación. ‘Deseo’ es la palabra que utilizamos para una pérdida infinita del sentido. El deseo no deja de blasonear la verdad filosófica: o bien la verdad en cuanto objeto de deseo, se constituye en falta estructural, en abismo o en lugar vacío, o bien el deseo es él mismo lo verdadero que esencialmente perfora y vacía (Nancy, 2003, p. 74).

Siderar é sofrer influência dos astros. Se desejo, em francês désire, está contido em desiderium, do latim, desiderar poderia ser abdicar dessa influência, poderia ser esse desastre. Na extensa nota de rodapé indexada à palavra desideración, da citação acima, Nancy faz um apanhado dessa polimorfia do desejo, e inicia um diálogo com Deleuze e Guatarri, em Lógica do sentido, para falar do desejo como falta, como privação. Nas palavras de Nancy: “El sentido es lo que se forma y se despliega hacia la superfície” (Nancy, 2003, p. 74). Sentido se aproxima de Espuma, isso que se forma e se desdobra até a superfície. Na mesma nota o autor continua: “El desiderium es precisamente la descontinuidad del reverso y del anverso, y la melancolía de no encontrar en la superfície otra cosa que la pérdida o la falta o lo que se les demandaba a las profundidades” (Nancy, 2003, p. 75). A espuma é o que podemos encontrar na superfície. Mas a espuma é a fenda, é o abismo informe, aquilo que, embore toque, atravessa e não se deixa reter. “A profundeza se levantou em superfície...” (Nancy, 2016, p. 324). É assim que começa o último parágrafo de Peã para Afrodite. A espuma é a abertura da profundeza. Não é a superfície que despenca, e sim a profundeza que se eleva, que se abre na fenda escumada, que se revela. A espuma é o desejo da profundeza de ser tocada. A espuma esconde um desejo de profundidade. A Espuma e Bas Jan Ader Bas Jan Ader é provavelmente mais conhecido (ou lembrado) pelo seu último trabalho In Search of the Miraculous. Trata-se de uma performance dividida em três

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partes e interrompida misteriosamente durante sua execução. Ader desaparece quando tentava, sozinho, à bordo de um veleiro de 12 pés, cruzar o Atlântico, saindo dos EUA rumo à Holanda, num movimento de retorno à sua terra natal, à sua Ítaca. Após cerca de 40 dias, Ader deixa de estabelecer contato por rádio, e seis meses depois sua nau é encontrada semi submersa perto do arquipélago dos Açores. O mar-armadilha com suas sereias sedutoras, suas espumas desejosas, será esse o milagre que Bas Jan Ader procurava na sua odisseia de retorno? Depois da tentativa de reter o instante exato e inapreensível da queda, será que Ader, desta vez, tentou o milagre de reter a porosidade da espuma?

Figura 2- Bas Jan Ader, In Search of Miraculous, 1975. Foto: Site oficial do artista.

Querer gozar da superfície do raso e temer o fundo, um oceano, o desejo daquele que navega, próprio do homem do mar, o oceano desconhecido, o encontro com as sereias. A busca por Ítaca falha, e o artista desaparece, provando ser impossível cair ou atravessar esse vazio-oceano e chegar a um porto seguro. E aqui se estabelece outro ponto de intersecção entre as performances de Bas Jan Ader e o des-astre da espuma, esse desejo pelo informe que parece reger os movimentos do artista. Isso na medida em que pensamos a espuma como essa matéria que se forma na superfície dos líquidos, que emerge, que provem da agitação, da colisão, da queda do astro genital de Urano. É possível, assim, aproximar as performances da queda com a performance mortal do naufrágio. Quanta espuma o barco de Ader desbordou, quanto rastro escumado deixou o seu desaparecimento? Afundar não poderia ser também cair?

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Referências Bibliográficas: DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010. HESÍODO. Teogonia, A Origem dos Deuses. Trad.: Jaa Torrano. Sao Paulo: Iluminuras, 1995. MALLARMÉ, Stéphane. “Um Lance de Dados”. In:____ Divagações. Trad.: MALLARMÈ, Stéphane. Um Lance de Dados. In: ____ Divagações. Trad.: Fernando Sheibe. Florianópolis: UFSC, 2010. NANCY, Jean-Luc. “Peã para Afrodite”. In:____ Demanda. Trad.: Eclair Antonio Almeida Filho e Dirlenvalder Loyolla. Florianópolis-Chapecó: UFSC-Argos, 2016, p. 311-324. __________. El Sentido del Mundo. Trad.: Jorge Manuel Casas. Buenos Aires: la marca, 2003. __________. Noli me Tangere. Trad.: María Ortega e Agustín Tobajas. Madrid: Trotta, 2006. NIETZCHE, Friedrich. Obras incompletas: vol I (Coleção Os Pensadores). 4° ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

Notas: i

Jogo de palavras usado por Didi-Hubermam em O que vemos, o que nos olha. Ver referência ao final.será abordado mais adiante do texto. ii Leitura possível do original francês court sur son erre, conforme nota do tradutor para o espanhol. iii Segundo os tradutores ao português, trata-se de um verbo cunhado por Jean-Luc Nancy que provém de étymon [étimo], ligado à etimologia. O equivalente em português seria etimar.

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Experiência: corpos de paragem, territórios de passagem Jésica Hencke Resumo: Entre a visibilidade e a invisibilidade humana há um descompasso, um encurtamento da cidade contemporânea, cujos corpos tornam-se maquinais e sufocados pelo adestramento mecânico dos veículos automotores. Em conformidade com o exposto, o texto discorre sobre o corpo e sua relação com o espaço, à medida que, vive ações artísticas e analisa um processo de desmantelamento da própria humanidade. Pensa acerca de outras formas de viver. Palavras-chave: Experiência, Corpo, Cidade contemporânea. Resumen: Entre la visibilidad y la invisibilidad humana existe un desajuste, un acortamiento de la ciudad contemporánea, cuyos cuerpos convertido en máquina y sofocado por la formación mecánica de los vehículos de motor. De acuerdo con lo anterior, el documento se centra en el cuerpo y su relación con el espacio, ya que, en directo acciones artísticas y analiza el propio proceso de desmantelamiento humanidad. Pensar en otras formas de vida. Palabras-clave: Experiencia, Cuerpo, Ciudad contemporánea. Silêncio. Espera, solidão, parada, inércia, pensamentos, instabilidade, desejos, paixão, passional, provisório, indispensável, possibilidades, potência, tempo, territórios, ensaios, corpos, acontecimentos, percepções, perspectivas. Silhuetas de passagem, fendas no espaço, lugares outros para viver experiências, inesperadas, desafiadoras, amedrontadoras. Voraz! Corpos que desejam consumir informações e emitir opiniões, sedentos de novidades, inebriados e aterrorizados pelo descarte, o isolamento e a depressão, a inexistência da experiência, processos de desertificação da vida, de sua vibração, carnalidade, sangue e pulsação, um mundo repleto de banalidades que lhe dão sentido, emoções e quiçá, sensações. Uma vida sempre em curso, feita de coisas banais. Amar, sentir raiva, enlutar-se, chorar, sentir dor, resmungar, dormir, acordar, atravessar uma avenida, aguardar numa parada de ônibus e valer-se do transporte coletivo, reproduzir clichês, embasar-se em representações sociais, repercutir posicionamentos, reproduzir citações, amparar-se nas escritas de outrem, imitar. Sant’Anna (2001) provoca um acasalamento entre pensamentos, destaca o peso, a leveza e a velocidade dos corpos, modificado pelo surgimento dos primeiros trens, o mundo e sua oscilação a vapor. “[...] A febre da velocidade cria liberdades novas mas fabrica agonias singulares” (SANT’ANNA, 2001, p. 14), impossibilita a apreciação

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demorada, o encontro com o outro, a escuta e observação atenta, é preciso acelerar, cumprir normas, trabalhar, movimentar-se, os corpos mostram-se fluídos e distorcidos pela vidraça do trem, ônibus, automóvel. Não há mais limites, os fluxos são instantâneos, pré-determinados, pré-concebidos, pré-fabricados. Há corpos sempre em movimento que se cruza em ruas, avenidas, calçadas. Em veículos ou a pé o que se apreende são formas coloridas, díspares, altas, baixas, apressadas, lentas, amedrontadas, não há permissão para a lentidão, há uma invisibilidade humana. Não estou me referindo à lentidão da lesma, que rasteja sobre seu ventre enquanto produz uma camada de fluídos orgânicos que protege e defende seu corpo delicado e macio da aspereza da cidade cotidiana, mas, a lentidão do apreciar, do observar, do dar-se tempo, não o contrário da velocidade, e sim, como potência para criar outro estilo de vida, mudar hábitos, qualificar a saúde, perceber os pesos dos corpos que podem produzir outras formas de deslocamento, mais simples, menos amedrontada, apta a desafiar os problemas da cidade contemporânea que se abre à drogadição, a criminalidade, ao excesso de informação visual, a sujeira, ao tráfego intenso de veículos e pedestres. Não se escolhe a lentidão se vive. Viver é pressuposto da experiência, dar-se tempo, permitir-se, expor-se, silenciar a agitação, as opiniões, relativizar as certezas, questionar as verdades, amputar a dicotomia e permitir-se duvidar, não compreender. Viver? Como? Se a existência humana ocorre num ritmo frenético de transformações maquinais, é preciso trabalhar, estudar, produzir textos acadêmicos, questionar as verdades, associar-se a determinada vertente de pensamento, manter o corpo trivial bem nutrido, ganhar anos de vida e repetir hipnoticamente exercícios de musculatura, natação, hidroginástica, é “preciso” ser saudável, leve, pró-ativo, alegre, vívido e audaz. “Como escreveu Paulo Leminski, ‘hoje, a morte está difícil. Tem recursos, tem asilos, tem remédios. Agora a morte tem limites. E em caso de necessidade, a ciência da eternidade inventou a crônica. Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica’.” (SANT’ANNA, 2001, p. 27). Morrer tornou-se um ato insípido, esquecido, ultrajado, é indiscutível manter a vida a todo custo, valer-se de todos os recursos possíveis entre o Prozac e as academias fitness, o yoga e livros de autoajuda, num contínuo movimento de mostrar-se como paciente e passageiro. “Durante cirurgias e viagens, os corpos permanecem sobre o comando de especialistas encarregados de pilotá-los” (SANT’ANNA, 2001, p. 34). Perde-se o controle de si, não se consegue prever o que irá acontecer, o que passa em nosso corpo, como ele reagirá, enquanto pacientes e passageiros podemos viver

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experiências não induzidas, mas acontecem, instalam-se em nossa vida e podem vir a transformá-la. Todavia, vale lembrar que a instabilidade das transformações sociais criou um mundo frenético, agitado, perpetuado pelas grandes cidades e suas avenidas que se cruzam de forma alucinógena, cujas paradas de ônibus apresentam-se repletas de comunicados sobre horários, linhas, propagandas de eventos, vendedores ambulantes, moradores de rua, sujeira, insetos, baratas e ratos, restos de alimentos que se acumulam junto a sobras de cigarro (como as pessoas fumam!), formando outro estilo de calçamento, irregular, com poças d’água (ou urina), crianças descabeladas e com sono ao lado de pais cansados, irritados e cheios de sacolas de supermercado (a cada dia menos, o dinheiro anda curto e os alimentos estão aumentando seu valor de forma vertiginosa), senhores e senhoras idosas apoiados em suas bengalas, estudantes indiferentes aos problemas mundanos riem agarrados a seus livros manchados pelas incessantes madrugadas, que, em sono, desabam a cabeça sobre a página que estava a ler, marcas feitas pelo suor o contato da epiderme com a folha de papel, xícaras de café que transbordam, espirros numa imensidão de fluídos orgânicos. Uma parada de ônibus expõe-se como um espaço paupérrimo que apresenta a vida em sua nudez, em sua diversidade, uma microcidade dentro da macrocidade, território de paragem, mesmo que por alguns minutos, enquanto o transporte coletivo não passa, todavia, estamos conectados e isolados, próximos pela espera e distantes em pensamentos e desejos, ilhas intransponíveis, amedrontadas e isoladas. “Numa cidade feita para o automóvel e inflacionada com as marcas da sua presença, o pedestre se encolhe” (SANT’ANNA, 2001, p. 47), ficam subsumidos em divagações, com fones no ouvido, olhos inquietos que caminham pelos dispositivos eletrônicos e perambulam por seu entorno amedrontados, ansiosos, inquietos. “Em meio à agitação, falta espaço para criar, fruir, pensar e brincar. [...] Por vezes os pedestres são coagidos a reduzir de tal modo o tempo de elaboração de suas respostas aos estímulos da cidade, que pouca diferença lhes resta em relação à ameba.” (SANT’ANNA, 2001, p. 49). Agitação, imediatismo, necessidade de reação, instinto de sobrevivência, evitar o pensamento, proibir a elaboração de ideias, reproduzir, caminhar de forma atenta, observar os semáforos, manter-se sempre alerta e confiante, cuidar-se e cuidar para não obstruir a passagem de um automóvel, agir de acordo com a cidade compacta, encolhida, viver o imediatismo que coíbe a experiência, minimiza as emoções e neutraliza os sentimentos.

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“Amebas” que se deslocam de um espaço a outro, que se valem diariamente de veículos coletivos, perpassam espaços de paragens sem parar, sem olhar e ver a seu redor. Quase não há percepção nesta cidade encolhida, mínima, cuja técnica domina o humano, que se neutraliza tornando-se dispensável, quase inútil. É urgente esticar a cidade, propor momentos de paragem, roubar a atenção, deslocar o olhar, provocar rupturas e interromper o passo, desequilibrar o corpo e provocar pensamentos. “Esticar a cidade, enfim, para que se possa andar a pé ou se locomover de carro, metrô, ônibus, bicicleta, etc.; para que se possa escolher correr, andar ou ficar parado.” (SANT’ANNA, 2001, p. 54). Para que as experiências tenham espaço e tempo para ocorrer, que os territórios fomentem o deslocamento, a transformação, a mudança, o aprender. Esticar a cidade para que uma parada de ônibus mostre-se como espaço da arte, lugar de exposições e convite a produção de palavras, imagens, gestos, silêncios, performance, aprendizagens. Espaço de encontro, conversas, troca de receitas, abraços e afetos, amizades. Isento de sujeira, restos orgânicos, sobras e detritos. Espaço para superar o medo, neutralizar a arrogância e a indiferença, promover o saber cotidiano, respeitar os saberes sociais e compreender a cidade como um organismo vivo, desorganizado, instável, questionável e propenso à criação-transformação-invenção. Um corpo em construção é infinito, já destaca Sant’Anna (2001), assim como uma cidade, não cessa de se autoproduzir, torna-se mutação, metamorfose, um território espetacular, continuamente redescoberto, entretanto, nunca é totalmente revelado. Mas, é preciso tomar cuidado, estar atento as tênues fronteiras que demarcam singularidades e subjetividades, que fomentam a criação de corpos pela biociência, os mecanismos colocados em funcionamento pela inteligência artificial, numa sobreposição de corpos na cidade verticalizada feita de prédios e minúsculos apartamentos na tentativa de minimizar os espaços e maximizar a alocação de pessoas, uma infinita manipulação na fórmula: “tudo é possível”. “Desde então, a fórmula ‘tudo é possível’ reconhecida por Hannah Arendt como fórmula do horror, foi banalizada na cultura e na ciência, permitindo uma liberdade infinita de manipulação dos corpos, tanto para homens quanto para mulheres” (SANT’ANNA, 2001, p. 85). Tudo é possível, inclusive tornar-se estéril de sensações, incapaz de viver experiências, neutro, indiferente, como se a vida fosse um contínuo apertar de porcas numa esteira ininterrupta de eventos sequenciais e impensáveis, que demarcam tempos e espaços para as atitudes humanas e, quem não se adéqua a este sistema, é subsumido na massa capitalista plugada a todo ser vivo, tornando-o apenas uma engrenagem de uso,

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consumo e desperdício, “[...] não se trata apenas de sugar o sangue, a força de trabalho dos humanos, mas, também, de capturar a sua carne, o seu espírito e, ainda, de ser alimentado de todos os seres vivos, sem luxo nem desperdício” (SANT’ANNA, 2001, p. 94), não há escapatória, estamos submersos neste sistema, inebriados pelo seu brilho hipócrita e perdidos em suas tecnologias, esquecidos de nossas experiências. Experiência, estranho termo que insiste em voltar à mente, inquieto e pulsante como água fervendo numa vasilha de metal, mas, qual seu sentido? De forma leviana pode-se dizer que ter uma experiência é viver um encontro, um acontecimento, um evento singular que apenas acomete a um ser humano de forma única, especifica e irrepetível. Mas, por que não dar densidade a este termo? Criar agenciamentos com o pensamento de Jorge Larrosa, que dedicou diversos textos a este tema, realizou palestras e conferências e expôs parte de sua experiência? Eis algo poderoso, as palavras, sem elas não há comunicação, expressão, pensamentos. “Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco” (LARROSA, 2002, p. 21), sem elas este texto não poderia ser escrito, uma experiência vivida não poderia ser expressa de forma clara e coerente a quem possui a habilidade auditiva e leitora, não haveria questionamentos para pensar o corpo, a cidade contemporânea, os espaços de paragem. Assim, a palavra experiência com apenas sete letras, cinco sílabas (ex-pe-ri-ên-cia), mostra-se potente, desafiadora, questionadora e inquietante, um dilema à aprendizagem, à vida, ao envolver-se, ao ensino. Larrosa (2002) pontua fragmentos de nossa vida que inibem a experiência, deteriora sua potência, sufocando-a. As relações humanas tornaram-se imediatas, fragmentadas, superficiais, em suas palavras vive-se na sociedade dos extremos, a experiência não tem espaço para ocorrer, há excesso de informação, excesso de opinião, mostra-se rara por falta de tempo e excesso de trabalho. Um reflexo distorcido da cidade encolhida, da vida cotidiana, das transformações culturais, uma sociedade cujas relações mostram-se efêmeras, fugazes, instáveis. Viver uma experiência requer ser passional, apaixonar-se, viver momentos de paragem, encontrar espaços para esperar, tornar-se passivo, receptivo, disponível e aberto, ser capaz de abrir a porta da própria casa e expor-se. A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,

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demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24-25).

Parar, momentos de paragem, espaços nos quais os corpos descansam, sentem a brisa, o vento, o calor, o frio, territórios provisórios e essenciais que movimentam a existência, favoreçam encontros em prol da vida, subtraiam as relações de dominação e devolva ao ser humano sua humanidade, removendo-o do frenético anestesiamento dos sentidos, a indiferença dos corpos, a inexistência de sensações, o excesso de ruídos e a impossibilidade do silêncio. Um movimento para ensaiar-se, estranhar o presente, o dado, o evocado, questionar o que somos, compreender porque nos estruturamos desta e não de outra maneira, incomodar-se com o presente, problematizá-lo. Por que necessitamos estar continuamente informados? Qual a intenção de uma opinião? O que nos impulsiona ao constante opinar? Importa analisar o que é naturalizado, perceber que nossa vida encontra-se alicerçada num mundo de artificialidades, estranhar o que nos é familiar, ou seja, nós mesmos. Estranhar-se a si, para permitir-se viver experiências. “A realidade, juntamente com sua origem e o seu destino, sua aceitação e sua transformação já é, para nós, talvez para sempre, um problema. E a experiência do presente já se tornou, para nós, talvez para sempre, o mais difícil” (LARROSA, 2004, p. 36). A experiência ao tornar-se algo “difícil”, improvável na sociedade do imediatismo, potencializa o não pensar, o não agir, o não compreender, o não analisar as situações que se vivencia a cada dia. O sujeito da experiência é passional, espera, está à espreita não se antecipa ou fica ansioso, sabe ouvir, acalmar-se, aguardar os acontecimentos, não de forma indiferente e despreocupada, mas sim, atenciosa, curiosa, questionadora. Um ser que constrói sua vida formada por detalhes, pequenos acontecimentos e relações, não é massa, não se torna manada, é singular, essencial e peculiar. No entender de Sant’Anna (2001) importa transformar o corpo trivial do sujeito da experiência num espaço de ressonâncias, destituído da indiferença, do isolamento, do autismo autoimposto, do egoísmo, da negligência. “Evitar o constrangimento de corpos que remetem seu brilho apenas para si, que começam e se esgotam unicamente neles” (SANT’ANNA, 2001, p. 99). Fugir para o meio, viver no entremeio das relações, não buscar nem começo nem fim, caminhar junto à grama, criar uma geografia dos corpos/sujeitos da experiência. Sair dos extremos, dar-se direito à passagem, ao

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encontro, ao envolvimento, a experiência que nos passa, nos desestabiliza, nos transforma e age em nosso corpo, em nossos desejos, angústias, medos, silêncios, solidão. [...] Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é “o que nos passa”, o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos (LARROSA, 2002, p. 24).

Um território de passagem, lugar de saídas e chegadas, passível, receptivo, disponível, aberto aos encontros, assim como uma parada de ônibus, lugar de integração, de receptividade e acolhimento. Um espaço de abertura. A experiência não ocorre quando o sujeito se fecha em si, isola-se do envolvimento, evita ressonâncias entre o indivíduo, o coletivo e o humano, torna-se um ser do amortecimento, anestesiado, autômato e indiferente. Amedrontado, apressado, estigmatizado. Interessa criar elos, lançar pontes, envolver multiplicidades e viver, não reproduzir formas de vida, tornar-se um corpo de passagem, de posse: [...] o termo possuído não remete apenas à posse, mas, ainda, à experiência de possibilitar: o corpo do possuído possibilita, de fato, uma presença sagrada, materializando-a em gestos visíveis, desdobrando-se em macrocosmo, juntando num mesmo tempo o eterno e o efêmero (SANT’ANNA, 2001, p. 104).

Um corpo de possibilidades, de experiências, de passagem. Na esteira de Larrosa e Sant’Anna já se falou sobre corpos de passagem como territórios da experiência, afirmou-se o que macula e inibe viver uma experiência, todavia, o que este termo trás de interessante em sua estrutura linguística? Será que as palavras abarcam sentidos que ultrapassam seu significado corriqueiro? Mostra-se válido pensar além do exposto, escavar o território das letras e sílabas, perpassar pela origem do termo e, ao decompôlo, criar pontes formadas por diferentes sentidos. Experiência, ter contato, provar, viver um evento, um acontecimento, experimentar. “Ex-iste” dirá Larrosa (2002) da inexistência para a existência, envolverse sem medos e medidas, aceitar, surpreender-se, espantar-se, colocar-se em movimento, apaixonar-se. A experiência é singular, pode-se dividir um mesmo acontecimento, mas, a forma de ser afetado é própria a cada ser e impossível de ser repetida.

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A experiência é alheia a mim, mas acontece em meu corpo. Não pode ser minha, não pode ser controlada, prevista, descrita. Ela é movimento de ida e volta, de relação. Larrosa (2011) destaca que experiência acontece em minhas palavras, em minhas ideias, em minhas representações, em meus sentimentos, projetos, intenções, saber, poder, em minha vontade, ou seja, se dá em meu corpo que se abre ao inusitado, ao estranho, que padece de forma única, singular, particular, própria. Experimentar e não viver um experimento. Pôr-se no fluxo, não temer a fissura, a ruptura, o desalento, a fratura, a separação. Deparar-se com o inusitado, com os batimentos cardíacos acelerados, com o imprevisto, outrora jamais visto. Experiências, para ocorrerem, incluem dimensões, potências, e podem ser atravessadas por diferentes acontecimentos: um pôr do sol, uma música, a leitura de um livro, uma aula, um olhar atento ao seu entorno, um encontro efetuado em uma viagem de ônibus, um transeunte que passa a seu lado nos caminhos da vida, uma ideia, um pensamento original e não um processo maquinal de reprodução de informações e opiniões. Dimensões, pluralidades, focos dissipados, a experiência têm a ver com “exterioridade, alteridade e alienação têm a ver com o acontecimento, com o que é da experiência, com o isso do ‘isso que me passa’” (LARROSA, 2011, p. 08), enlaça-se com o incontrolável, o que não pode ser medido, repetido, calculado. Um zumbido de abelha que nos tira do controle e inibe nossos passos, uma imagem exposta numa parada de ônibus que nos leva a outros tempos criando fendas em nossa percepção, uma incontrolável tremedeira que afeta o corpo e, instantaneamente, perde-se a noção de tempo e espaço. “Reflexividade, subjetividade e transformação têm a ver com o sujeito da experiência, com o quem da experiência, com o me de ‘isso que me passa’” (LARROSA, 2011, p. 08), a experiência não ocorre no vácuo, na indiferença, em um objeto, mas sim, em nosso corpo, em células, veias, nervos, vibrações. Nos colocam no centro dos acontecimentos sem sermos o mais importante, põe nosso corpo em evidência sem que sejamos evidentes. Sentir-se sufocar e continuar vivo, perder as palavras sem deixar de ser alfabetizado, ter medo sem temer, aprender a pensar e conseguir viver, ensaiar-se, colocar-se em exposição, expor-se. “Passagem e paixão têm a ver com o movimento mesmo da experiência, com o passar do ‘isso que me passa’” (LARROSA, 2011, p. 08), permitir-se sentir, fazer da própria existência um ensaio, uma escrita a lápis que pode ser apagada e reescrita, um

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encontro entre corpus, entre sensações e acontecimentos, permitir-se parar, respirar, espreguiçar-se e recomeçar. Ao se viver uma experiência, jamais se retorna imune, o corpo, a vida, as percepções se modificam, Sant’Anna (2001) dirá que nos tornamos corpos-passagens, para sentir, criar elos, envolver-se como uma criança que é um presente inatural, intempestiva, disposta a experimentar e expor-se sem julgar (Larrosa, 2011). Um corpopassagem ressoa para um coletivo, está exposto, disposto, interessado e compenetrado para ouvir, sentir, viver junto a outros corpos, criar elos, experimentar. “Se o esportista quer sobreviver, ele sabe que precisa tentar ver o obstáculo tal como ele é: o que não significa ver além do que é visto nem ver somente o que é visto” (SANT’ANNA, 2001, p. 112). Importa tentar ver, sentir, compreender o que lhe acomete, evitar divagações, eufóricas imaginações, impressões contorcidas e não reais, interessa a compreensão “tal como é”, colocar-se corporalmente em cada situação, lançar-se ao abismo, ao inusitado, ao amedrontador e assim dissipar os dragões de fogo que fazem o sangue ferver de temor. ***** No ritmo do des, os pensamentos começam a pular entre dendritos e axônios. Destituir o medo de escrever, de viver o inusitado, de perguntar o óbvio de experimentar o comum/incomum. Desmentir as verdades absolutas e acreditar em pequenas evidências que se alteram a cada dia. Desatar os nós que dificultam o caminhar e o aprender, para então transformar a vida numa obra de arte. Cada pincelada é um encontro, interessa cultivar as ranhuras, valorizar os materiais, perceber as aberturas e manter fissuras para viver experiências. Desfazer a separação entre corpo e mente, inteligível e sensível, carne e espírito, apostar na integração do corpo que pulsa, sente, pensa, aprende e apreende. Desapropriar-se das certezas, da norma, do padrão, da regra e propor outros movimentos, outras intervenções, olhar o banal com lentes da dúvida, investigação, medo, novidade e transformação... Desbordar, sair das margens, esquecer as bordas, do início e do fim, viver no meio, andar pelo fluxo, fazer-se gramínea, ultrapassar os limites. Esperar, escutar, ver, tocar, sentir, viver visceralmente, colocar-se em movimento, mergulhar, experimentar. Desbundar, apreciar, deslumbrar-se, fruir: um pôr do sol, o balanço das folhas nas árvores, as águas que se sobrepõem no ritmo do mar, o choro ininterrupto do primeiro filho. Desconfigurar o figurativo, remover a certeza e valorizar a dúvida, fomentar uma inquietação no olhar. Descontrair a tensão, soltar o ar dos pulmões e voltar a respirar. Descongestionar o trânsito nesta cidade encolhida e caminhar, olhar as pedras do calçamento, as pessoas ao redor, as marcas que o tempo imprime na fachada das velhas casas empoeiradas. Casas esquecidas, ao se estar imerso na impaciência contemporânea. Destituir a pressa, o medo, a raiva, as emoções frustradas e valorizar o amor, o cuidado a amizade. Desligar os aparelhos eletrônicos, arrancar os fones dos ouvidos. Desligar os motores à luz, gasolina, etanol e óleo diesel, permitir-se silenciar para ouvir. Desnortear-se, flanar sem rumo, inventar caminhos, apreciar a paisagem, inventar histórias e escrever poesias.

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Destituir-se da arrogância, da ganância, do egoísmo, do individualismo, do capitalismo, do consumismo. Desmanchar as mágoas, e permitir que os sensores do corpo captem sensações. Religar a cultura e a vida, fazer e viver arte, relacionar ações sensíveis, romper com as desigualdades pejorativas e promover a igualdade singular. Desterritorializar pensamentos, potencializar a instabilidade, a insegurança, dar sentido ao sensível. Permita-se fabricar o futuro como uma criança inquieta, destemida, questionadora que pergunta a seu corpo, a seu olhar, a seus gestos e, não contente com a resposta, experimenta o mundo com suas vísceras expostas. Desligar o não posso, não quero, meu corpo dói, é muito difícil não consigo aprender e ligar o eu quero, eu tento, eu conseguirei mesmo que o tempo se esvaia e minha tez fique enrugada, os cabelos embranquecidos, os movimentos lentos e pesados, o pensamento vagaroso e o olhos nublados, somente assim, poder-se-á dizer, que fez de seu corpo e vida, um espaço de passagem, de experiências... ****

Referências: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. 3ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. LARROSA, Jorge. Notas sobre a Experiência e o saber de Experiência. In: Revista Brasileira de Educação. nº 19. Jan/Fev/Mar/Abr, 2002. p. 20-28. LARROSA, Jorge. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se, no pensamento, na vida e na escrita. In: Educação & Realidade. Porto Alegre. 29(1) jan/jun, 2004. p. 27-43. LARROSA, Jorge. Experiência e Alteridade em Educação. In: Revista Reflexão e Ação. Santa Cruz do Sul, v. 19, n 2, jul/dez 2011. p. 04-27.

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A DESCONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DO QUADRO NA PERFORMANCE Mateus Scota Rebeca Lenize Stumm

Resumo: Este artigo busca evidenciar aspectos da desconstrução espacial do quadro, enquanto limite ou enquadramento do espaço de uma imagem, para um estudo em performance. Este tem como método a análise textual, que tornou precisa a definição dos conceitos de quadro e mise-en-cadre, possibilitando uma reflexão aprofundada sobre as necessidades específicas da performance em relação ao espaço-tempo do quadro. Palavras-chave: Artes Visuais, Performance art, Quadro, Desconstrução. Abstract: This article looks to evidence aspects of spacial desconstruction of the frame, as limit or framework of an image’s area, for a performance study. This has as method the textual analysis, which made accurate the definition of frame and mise-en-cadre’s conceptions, allowing a depth observation about the perfomance’s specific necessities according to the frame’s Space time. Keywords: Visual arts, Performance, Frame, Desconstruction.

Introdução

Este estudo é fruto do projeto de pesquisa denominado A composição de ações na construção de performances arte apresentado pelo autor deste, ao Programa de Pósgraduação em Artes Visuais – PPGART/UFSM. Neste, buscamos evidenciar aspectos da desconstrução espacial do quadro para um estudo em performance art, onde, questionamos quais os aspectos do espaço do quadro – limite/enquadramento do espaço de uma imagem ou espaço de composição – estão sendo desconstruídos? Qual configuração o quadro passa a assumir? Na performance, qual a noção de quadro e como a relação espacial se reconfigura após a desconstrução na mise-en-cadre?. Para aproximarmo-nos de tal objetivo, utilizamos o procedimento metodológico de análise textual, que permitirá articular o pensamento entre o conceito de quadro aqui desenvolvido, os aspectos espaciais do mesmo e o estudo de sua desconstrução, tanto na pintura, através da ruptura com a superfície da tela e com a disposição dos elementos

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representativos sobre a mesma, quanto na performance sob a simultaneidade dos acontecimentos espaço-temporais. Sendo assim é do ponto de vista do artista que realiza performances que buscamos nos posicionar de forma consciente diante de tais problemas, buscando nos situar e analisá-los perante o contexto da arte contemporânea.

O estabelecimento da noção de quadro na performance

Antes de qualquer coisa, devemos conceituar quadro (ou cadre) e mise-en-cadre estabelecendo que estes conceitos estão sendo extraídos da pintura e, posteriormente do cinema, para serem operacionalizados neste estudo do espaço ocupado pela performance, o que pressupõe a articulação das faculdades da imaginação, visto que estão sendo traduzidos de seu contexto de origem e desenvolvidos em outro ambiente, sofrendo uma dilatação ou expansão de entendimento quanto a seu campo de abrangência. Cadre ou quadro pode ser compreendido sob duas possíveis definições complementares a partir dos escritos de Jacques Aumont e Marie Michel (2003), bem como Sergei Eisenstein (2002a; 2002b), onde, a primeira interpretação do conceito se dá por aproximação ao entendimento de enquadramento ou moldura. Por este viés o quadro se faz objeto material (Aumont e Michel, 2003, p. 249), proporcionando um recorte sobre a realidade e, no caso da pintura, isolando o mundo imaginário do mundo cotidiano. Assim, o quadro define os limites da imagem na pintura, e, se traçarmos um paralelo com a performance, define onde está o foco do acontecimento, isolando (até determinado ponto) a obra (mundo imaginado) do mundo cotidiano. A segunda pode englobar, além da noção de enquadramento, a construção espacial dentro do mesmo, marcada pela construção de profundidade, de planos dentro de uma mesma composição (na relação figura-fundo), de modo geral, pela organização ou composição do espaço enquadrado, ou seja, a mise-en-cadre. O conceito de mise-en-cadre tem sua origem enquanto termo utilizado pelo cineasta Sergei Eisenstein em suas aulas de cinema em contraposição ao conceito teatral de mise-en-scène (Aumont, 2003, p. 59). Este designa, conforme o próprio autor à composição ou construção do quadro ou dos planos1 no quadro – construção gráfica e

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plástica – e seu uso neste estudo define a construção do espaço do quadro no qual podemos elaborar as performances, este podendo ser delimitado por um espaço físico (quadro enquanto enquadramento proposto por uma rua, um tapete, uma cama, uma sala de apresentações, uma galeria) ou pela partitura de movimentos do performer pelo espaço (quadro enquanto enquadramento do performer, por exemplo, traçando círculos no chão com os pés, andando em círculo e permanecendo neste movimento ciclicamente). Neste sentido, podemos considerar o quadro enquanto parte constitutiva da performance, ao vê-lo na posição de limite da superfície da imagem, que possibilita a organização ou construção formal do espaço (Aumont, 2003, p. 250) e, das relações vetoriais, se é que podemos assim denominar, entre diversos elementos presentes no enquadramento pré-estabelecido.

Figura 1- Marina Abramovic, Chapada dos Veadeiros, 2016. Goiás, Brasil. Foto: Frame de vídeo [trailer oficial].

Podemos tomar como exemplo a imagem acima, onde Marina Abramovic em sua vinda ao Brasil banha-se nas águas da Cachoeira dos Anjos. Aqui o enquadramento é dado pelo vídeo, mas a partir da escolha do espaço onde acontecerá a performance, podemos definir o enquadramento e a construção visual do mesmo, neste caso, a construção do espaço acontece pela utilização da formação natural esculpida pelo tempo (a cachoeira) que proporciona profundidade, altura e movimento, o que não impossibilita, por exemplo, que a artista disponha objetos por este espaço, conforme seu desejo, criando novas composições espaciais do quadro.

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O paradoxo da desconstrução espacial do quadro

Dentro da contextualização de tais conceitos, realizada anteriormente, não podemos deixar de observar que o quadro, enquanto limite ou enquanto janela2 ao universo imaginário tornou-se insuficiente para os novos paradigmas da pintura moderna, o que acabou por deflagrar, paradoxalmente, a desconstrução do espaço indo em direção “para além” do suporte tradicional. Um dos casos da transgressão do modelo imposto pelo quadro pode ser observado na pintura moderna cubista, mas especificamente nas obras de Pablo Picasso. Por volta do ano de 1912, Picasso colou sobre a superfície da tela pedaços de papéis pintados e desenhados, embalagens de cigarro, tramados de palha, e outros fragmentos advindos do cotidiano, o que, de acordo com José Garcia-Bermejo (1997, s/n) se conhece como collage ou pappier collé em uma obra denominada Naturezamorta com cadeira de palhinha. Sendo assim, o quadro deixa de representar a realidade3 e passa a fazer parte da mesma, o que, segundo o mesmo autor, os cubistas chamaram de tableau-objet (quadro-objeto). Este procedimento de criação e composição artística consiste em colar diretamente nas telas materiais diversos oriundos de diferentes fontes, assim, cria um estranhamento, desafiando a crença em uma única realidade. Com a criação do quadro-objeto, Picasso une realidade e ficção sobre uma mesma superfície, desconstruindo o quadro enquanto limite entre os dois mundos (imaginário e cotidiano) e, enquanto enquadramento que limita a organização das imagens4 (em profundidade ou direção), dando volume e presença à obra em espaço tridimensional, assim, descontrói todo o espaço do quadro, sobrepondo elementos de forma aglomerada, abandonando a relação figura-fundo ou o uso de gradientes, profundidade, entre outros. Estendendo este entendimento à performance, também veremos que o quadro enquanto limite entre o mundo cotidiano e imaginário, enquanto janela, ou ainda enquanto limite de organização das imagens, é desconstruído a medida em que compreendemos a performance enquanto arte de contestação do/no real, composta por obras/ações evidenciadas pela intersecção espaço/tempo e formatadas enquanto

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momento ou sequências de momentos, gerando o que poderíamos denominar como arte da presença por excelência.

Condições de existência do quadro na performance

Existem, desta forma, de acordo com o que acabamos de mencionar, condições em que podemos definir a existência e, até mesmo a aplicação do conceito de quadro na performance. Uma das condições de existência é quando a performance acontece em função do espaço, quando concebemos a obra em virtude do espaço em que ela acontece, por exemplo, se desejássemos correr o mais longe possível do olhar do espectador por uma rua em linha reta, a ponto de não ser mais visto. Neste sentido, o quadro é útil, pois a composição está voltada para a distância ou profundidade em relação ao espectador. Ainda nesta condição, lembramos que a composição do espaço (dos elementos presentes no mesmo) ou das ações no espaço em performance pressupõe um espaço limitado e, portanto um quadro (enquadramento) definido. Existe também condições de desconstrução do quadro na performance e estas relacionam-se em função da simultaneidade de ações no espaço-tempo, como quando estamos lidando com um acontecimento real interagindo com uma projeção, onde elementos de outra realidade, de outro quadro, são colados sobre ou ao lado do que esta no quadro. Esta simultaneidade cria planos diversos de tempo e espaço virtuais, questionando a realidade do quadro. Outro exemplo, podemos definir, quando a performance se encontra dissipada em um espaço vasto, fazendo com que o espectador descubra partes isoladas da mesma e crie uma composição mental das ações simultâneas. Como no caso as instalações performativas do artista Spencer Tunick (Figuras 2 e 3) que mobilizam muitos performers por locais públicos. Ao acrescentarmos o tempo nesta condição, ganhamos novas dimensões espaciais que, devido a questões de duração e ritmo, fazem com que percebamos a efemeridade da ação e a presença de nossos corpos no lugar onde nos encontramos.

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Figura 2- Spencer Tunick, Sea Of Hull, 2016. Foto: Spencer Tunick.

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Novas configurações do quadro para performance

Podemos então pensar em quais condições existe quadro e em quais não, buscando eleger alguns pressupostos para a noção de quadro na performance. Assim como aponta Aumont, quadro, etimologicamente é tomado emprestado do latim quadratum, significando figura quadrada de ângulos retos (Aumont, 2003, p. 249) embora seja bidimensional em seu uso. Como pudemos observar, desde a colagem cubista, até formas mais contemporâneas de pinturas e chegando a performance, o entendimento do quadro poderia sofrer uma dilatação e, enfim, tornar-se um quadrado de quarta dimensão, onde qualquer ponto que tomarmos como referência nele, estará cercado pelo contexto onde se encontra, como se mergulhássemos dentro do espaço do antigo quadro e o operacionalizássemos por dentro. Sendo assim, poderíamos compreender, por exemplo, a simultaneidade de ações no tempo-espaço como peças independentes de um mesmo jogo, como quando vemos uma das figuras humanas em As senhoritas de Avignon (Pablo Picasso, 1907) separada, mas, mesmo assim reconhecemos seu contexto, ou como se durante uma performance que trata da temática da guerra, ouvíssemos um avião (real) cruzar o céu. O que podemos definir também é que, as novas configurações do espaço na performance são organizações espaciais no próprio espaço, que, delega ao quadro uma questão de perspectiva5, a qual caberá ao espectador, podendo definir se quer ver o performer desaparecendo na rua até onde seus olhos puderem ver, ou se correrá com ele. De qualquer forma, a questão do quadro como o entendíamos está desconstruída pelo espaço infinito da quarta dimensão, um mundo de possibilidades que atravessa as práticas da performance, com pontos de vista em todas as direções e de sobreposições de instantes efêmeros compartilhados.

Notas

1 Entendido aqui enquanto relação figura-fundo, podendo existir diversos planos em um único quadro, todos ocasionados por sobreposição de elementos sobre a superfície (no caso da pintura e cinema) ou ocasionados por gradientes de distância ou profundidade sobre o espaço tridimensional e quadridimensional (respectivamente, nas relações escultura-espaço e performance-espaço). 2 O quadro foi visto durante o período em que reinava a pintura representativa, muitas vezes, enquanto janela para o mundo imaginário. 3 A representação não era a realidade em si, mas a realidade reelaborada pela imaginação.

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4 Este enquadramento de limite da organização das imagens é que permite criar composições dentro do espaço limitado do quadro. Enquanto nas artes de manifestação corporal o jogo do corpo no espaço cria escavações de resistência entre ambos, o quadro rejeita tal possibilidade, limitando a criar composições por sobreposição, justaposição, superposição ou multiplicação de cada elemento. O jogo não é mais contra a natureza invisível que força os corpos para o chão, mas contra as linhas de força criadas que forçam os corpos para frente ou para o fundo da composição no quadro. 5 As perspectivas podem ser diversas, pois o espectador está livre para mover-se, gerando mentalmente sobreposições de perspectivas, compreendendo-as enquanto síntese ou fragmentação.

Referências

AUMONT, J; MICHEL, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução, Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Tradução, Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002a. __________. O sentido do filme. Tradução, Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2002b. GARCÍA-BERMEJO, José Maria Faerna. Pablo Picasso. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1997. http://designcollector.net/likes/sea-of-hull-by-spencer-tunick Acessado em 14 de julho de 2016, às 8:40min. https://vimeo.com/45803279?outro=1 Acessado em 11 de julho de 2016, às 17:12min. https://www.youtube.com/watch?v=4ijyJVLcJhc Acessado em 11 de julho de 2016, às 16:04min.

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(DES)(RE)CONSTRUINDO A SELFIE: AS REDES SOCIAIS E APLICATIVOS DE EDIÇÃO MÓVEL COMO DISPOSITIVOS NA CRIAÇÃO PÓETICA EM ARTES VISUAIS Renato Kuhn Resumo: A partir do constante e crescente uso de redes sociais no cotidiano, começamos a nos deparar sobre a inserção da estética desses elementos na Arte. Assim, o presente estudo visa percorrer produções artísticas desenvolvidas a partir do uso das redes sociais digitais e suas estéticas, inseridas tanto no cotidiano quanto no circuito artístico. Dessa forma, também foi desenvolvida uma produção artística autoral, levando em consideração questionamentos associados a esses dispositivos como temática aplicada a uma criação poética em artes visuais. Palavras-chave: artes visuais, arte e tecnologia, redes Sociais, selfie, identidades virtuais. Abstract: By the increased use of social networks in our routine, we begin to find the inclusion of these elements in Art. This research wants to analyze productions developed from the use of digital social networks and their aesthetic, inserted in daily life and in art circuit. Besides, was developed an authorial artistic production, taking this questions related and using these devices as a subject applied to a poetic production in visual arts. Keywords: visual arts, art and technology, social networking, selfie, virtual identities.

Introdução Essa pesquisa propõe um estudo e reflexão, tanto com base em referenciais teóricos quanto em produções práticas, sobre o uso de redes sociais no campo artístico. Observou-se, para tal, os aspectos estéticos contidos e compartilhados nessas mídias digitais móveis, com destaque às fotografias móveis e, em especial, a selfie1. Com destaque para as redes sociais Instagram e Snapchat, propôs-se levantar questionamentos e analisar as imagens que circulam nessas redes. A partir disso, consideramos seu potencial como referência para uma pesquisa poética em artes visuais com foco em identidades virtuais, utilizando desses dispositivos aliados a outros aplicativos móveis a fim de gerar produções contemporâneas inseridas e também alimentadas nessas linguagens digitais. Levando em consideração esses pontos, destacamos aqui a importância dessa pesquisa na reflexão de referenciais cotidianos e na pluralidade de informações provenientes das ferramentas digitais móveis em crescente utilização. Também busca-se refletir acerca de juízos estéticos inseridos nessas redes, absorvê-los, e ‘(re)utilizá-los’ em produções artísticas visuais, situadas no contexto contemporâneo, utilizando de linguagens hibridas e digitais. Segundo dicionário MerriamWebster Selfie é “uma fotografia de sí mesmo tirada por sí mesmo utilizando uma câmera especialmente para ser postada numa rede social”

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Panorama contemporâneo das Redes Sociais: Arte, cultura e sociedade Zygmunt Bauman, há quase uma década, trazia em “Vida para Consumo” apontamentos sobre as então surgidas “redes sociais”. O autor cita, assim, uma reportagem do jornal The Guardian de 2006, sobre as redes sociais, então em evidência, MySpace e MSN, e uma inserção do “Cyworld2” no cotidiano. Na época, usou-se o exemplo da Coréia do Sul, onde grande parte da população passava conectada a computadores, iPods, e celulares; atualmente podemos perceber que a utilização desses aparelhos alcançou um nível global. Para o sociólogo, os inventores dessas redes foram capazes de satisfazer uma necessidade real, generalizada e urgente. “No cerne das redes sociais está o intercâmbio de informações pessoais”. ‘Os usuários ficam felizes por revelarem detalhes íntimos de suas vidas pessoais’, ‘fornecerem informações precisas’ e ‘compartilharem fotografias’ (BAUMAN, 2008, p. 8). Desde então, as redes vêm fazendo cada vez mais parte do cotidiano da sociedade e do indivíduo. Podemos, por exemplo, observar crescente aumento de usuários em redes como Facebook, Twitter e Instagram. As imagens compartilhadas na rede podem possuir inúmeras peculiaridades, expressando subjetividades e também conter fortes apelos estéticos e poéticos. Em 2015, o artista Richard Prince, realizou uma exposição onde suas obras tinham como temática algumas imagens que circulam no Instagram. Neste sentido, segundo Rush, nossa sociedade conectada gera a inserção de elementos do cotidiano na arte: A velocidade com a qual este século criou um planeta eletronicamente conectado reflete-se na rápida expansão de práticas artísticas que vão além da escultura e pintura tradicionais, até a inclusão quase frenética de objetos do cotidiano no cenário da arte. Qualquer coisa que possa ser analisada como sujeito ou substantivo foi provavelmente incluída em uma obra de arte por alguém em algum lugar (RUSH, 2006, p. 3).

Tanto nas obras de Prince, quanto de outros artistas contemporâneos que agregam ou buscam no Instagram, Snapchat ou Aplicativos de Edição Móvel referências para suas produções fazem com que possamos perceber o potencial que esses apps exercem sobre a estética do cotidiano, gerando imagens que carregam inúmeros juízos subjetivos, proporcionando uma pluralidade estética acessível mundialmente em segundos no toque do celular.

Cyworld pode ser traduzido como ‘mundo cibernético’; mas, nesse caso, também se relaciona ao site sul coreano de relacionamento virtual: CYWORLD. 2

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Paralelo a isso, tem-se o constante e crescente conglomerado de usuários em redes de compartilhamento de imagens, onde o usuário tem a possibilidade de seguir usuários, pesquisar #hashtags3 e ter sempre uma timeline4 atualizada de acordo com seus interesses, bem como a possibilidade de estabelecer novas conexões, conhecendo usuários e assim compartilhando de forma contínua a troca de informações. Lemos (2008) aborda o assunto: A cibercultura vai se caracterizar pela formação de uma sociedade estruturada através de uma conectividade telemática generalizada, ampliando o potencial comunicativo, proporcionando a troca de informações sob as mais diversas formas, fomentando agregações sociais (LEMOS, 2008, p. 87).

De certa forma, podemos comparar o que diz Lemos com nosso atual uso dessas redes sociais, para refletirmos sobre os aspectos que vêm sendo inseridos, influenciando nossa cultura e nossas vidas. Por isso, essas redes representam uma importante ferramenta de conexão global de diversos tópicos, possibilitando compartilhamento de estéticas, acesso e difusão de culturas. Segundo Sodré (2002, apud GASPARETTO, 2014, p. 21): “A sociedade contemporânea tem sido regida pela midiatização e virtualização”. Segundo as colocações da autora, esse sistema influencia no campo da arte, no qual os artistas entrecruzam poéticas e tecnologias para produzir obras nesse processo. Para uma contextualização da inserção das mídias na arte contemporânea, pode-se ressaltar inicialmente a influência de Marcel Duchamp no circuito da arte no inicio do século XX, que gerou importantes reflexos na arte contemporânea. Um deles seria a mudança da ênfase de objeto para conceito, a qual permitiu a introdução de vários métodos em um empreendimento artístico redefinido. Outro aspecto seria a ampliação das fronteiras da arte, como discorre Gasparetto (2014). Pensar sobre produções relacionadas às redes sociais contemporâneas, implica explanar sobre esse universo virtual. Neste segmento abordaremos sobre os principais estereótipos dessas redes sociais e as características de perfis com grande visibilidade, com foco no Instagram. Esse aplicativo é usado para capturar e compartilhar momentos. As imagens postadas muitas vezes passam por seleções onde, de cinquenta fotografias, apenas uma é postada; o ângulo, a melhor luz, a melhor situação e a captura de momentos atraem olhares de todos os cantos do mundo, utilizando hashtags. Atualmente, há perfis nessa rede com mais de 60 milhões de seguidores, onde uma conta possui capacidade de estabelecer um contato praticamente instantâneo com esses 3 4

Utilizando o símbolo # é possível categorizar e classificar postagens e pesquisas na rede. Ordem de publicações feitas em redes sociais, onde se exibem as publicações mais recentes.

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usuários, postagens que em menos de 1 hora alcançam 1 milhão de curtidas, além de muito mais em visualizações. Considerando esses números expressivos de seguidores e proporções de possíveis visualizações que uma postagem pode ter, Lima (2015) ressalta que a presença dos dispositivos móveis e das mídias na vida cotidiana alcançou grandes proporções e as pessoas se apresentam do modo através do qual querem ser vistas pelas demais. Exemplo dessa visibilidade pelos demais é a selfie que busca exibir o que seria melhor versão de si como, por exemplo, as postagens de autorretrato de Kim Kardashian, que se apoiam na busca de melhores ângulos, uso de maquiagem para ressaltar estes também, e uma quase total inexpressão. Onde podemos notar uma variação de fotos que se repete em mesmas posições, variando o local, plano de fundo, etc. Sem dúvidas, a selfie surge em nosso cotidiano contemporâneo, com uma presença constante. E assim, diante dos exemplos que presenciamos em redes sociais, já mencionados, podemos levantar alguns questionamentos acerca dos estereótipos de perfis que utilizam desse elemento. Levando em conta as estéticas mais comuns no sentido de repetição por maior número de usuários, utilização de filtros e edições, visando gerar uma selfie perfeita, contemplando a melhor luz, pele impecável, podemos estabelecer algumas relações com a idealização dessas imagens e a idealização do corpo. O que é, afinal, a ‘semelhança’ tão buscada num retrato fotográfico? O encontro entre visão sociológica da pessoa e a representação percebida do sujeito que a pose e a pausa transferem para o âmbito da ‘semelhança’ (FABRIS, 2004 p.58)

Para Fabris (2004), normas sociais e psicologia individual podem se confrontar em retratos fotográficos, resultando numa “identidade totalmente conciliada como ideal social de si mesmo”. No Instagram, bem como no Snapchat, o corpo e o retrato são elementos que se destacam, por sua ampla mutação seja pelo uso excessivo de edição e retoque em apps específicos, seja pela influência e idealização dos corpos e perfis exibidos nessa rede. Para Jacob (2014, p.89) as redes sociais vêm se tornando também um ambiente do culto ao corpo ideal. Neste sentido, Lima acrescenta que: A presença dos dispositivos móveis e das mídias na vida cotidiana alcançou grandes proporções; o tempo e a linguagem da internet passaram a ditar comportamentos, a criar identidades e subjetividades diversas, e a fazer com que os sujeitos apresentemse do modo através do qual querem ser vistos pelos demais (LIMA, 2015, p. 5).

Sendo assim, essas imagens jogadas às redes carregariam consigo juízos estéticos de acordo com o que o individuo vê ou como gostaria de ser visto, como por exemplos as selfies. Todas essas imagens ainda carregando as influências das mídias, da moda, e de tendências, 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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gerando novas estéticas que se popularizam em grande escala, em pouco tempo (LIMA, 2015). Aplicativos e a arte: artistas e produções da/na/pela rede Em 2015, os trabalhos do artista norte-americano Richard Prince tiveram uma grande repercussão ao levantar questões sobre o uso das imagens que circulam na rede. O artista expôs na Gagosian Gallery, em Nova Iorque, 38 telas impressas em tinta a partir de screenshots do Instagram. As capturas de tela, bem como foram realizadas, sofreram pequenas alterações como comentários acrescentados pelo autor e utilização de emojis5, impressas e expostas e algumas vendidas por mais de 90 mil dólares. Prince é famoso por trabalhar com questões da apropriação. Alguns dos usuários que tiveram suas imagens utilizadas pelo artista sentiram ter sua permissão de imagem violada. Outros, porém viram positivamente sua imagem ser divulgada e alcançar maior visibilidade, inclusive esses usuários tiveram acréscimo no numero de seguidores em suas redes. Podemos dizer que essa obra de Prince, chama atenção ao potencial dessas imagens e estéticas dessa rede social, e ao mesmo tempo levanta discussões acerca de direitos de imagens que circulam nessa rede. De outro lado, temos o artista e pesquisador de mídias digitais Lev Manovich que vem há alguns anos realizando trabalhos que analisam imagens do Instagram. Em “Selfiecity”, de 2014, o artista e sua equipe do reuniram em um programa mais de 3200 selfies que podem ser combinadas de acordo com predefinições como gênero, região de origem, humor, olhos e boca (abertos ou fechados), óculos entre outros. Atualmente, Manovich está escrevendo um livro intitulado “Instagram and Contemporary Image”, onde Manovich fala sobre suas pesquisas em imagens do Instagram e suas visões de como essa rede social vem influenciando e se relacionando com nossa cultura contemporânea. Nesse ponto, Manovich (2016) toca em uma questão importante, o Instagram e as redes sociais podem servir como meios de estabelecer e executar identidades culturais, seja por meios de fotos alimentares, estilos de moda e demais subculturas capazes de atuar como essas ferramentas.

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Palavra original do japonês: “e” (imagem) e “moji” (personagem), podem ser caracterizadas por serem figuras prontas disponíveis para uso em texto. O primeiro emoji foi de um coração, em 1995. Atualmente, são amplamente utilizados para acompanhar texto, ou até mesmo sozinhos possuem significância em diálogos. 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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A partir de pesquisas no aplicativo Instagram, foram encontrados fotos e vídeos realizados com filtros estilo “Glitch”. Essa categoria de filtro apresenta desde ruídos, distorções, até fotos com cores puras ou saturadas contrastando com escalas de cinza. Temos, no Brasil, a artista e pesquisadora Giselle Beiguelman que em 2013 realizou a obra “Glitched Landscape Games”, um vídeo de 3 minutos com uma sequência de imagens ‘glitch’ da cidade de São Paulo. Os trabalhos de Giselle Beiguelman representam grande importância na atual produção nacional sobre as redes, não somente suas produções práticas quanto suas produções bibliográficas. A arte das/nas/pelas redes é vasta e suas inserções na arte transitam por várias questões, onde a partir desses artistas citados podemos ver essa versatilidade tanto nas suas estéticas quando em suas poéticas e temáticas. Identidades (des)(re)construídas e suas implicações A produção Vênus Instagram 2 propõe uma relação de (des)locamento com a imagem icônica da Vênus de Botticelli com imagens contemporâneas de selfies do Instagram, no caso dessa obra com uma selfie de Kim Kardashian.

Figura 1: Vênus Instagram 2, e (des)construção da imagens em frames que foram utilizados em um vídeo. Fonte: Produção do autor, 2016.

O corpo dessa “nova’ Vênus, centralizado, representa uma estátua, em exibição, assim como o corpo exibido nas galerias virtuais do app. Corpos que podem ser idealizados por quem os visualiza, corpos que reforçam ou ditam padrões. A obra propõe uma comparação também do sujeito que tira a foto com o resultado, que nesse caso é a imagem ao fundo. Essa imagem da Vênus passou por programas móveis de edição de selfies, onde ganhou inclusive uma nova sobrancelha.

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Figura 2: Fragmento da Vênus de Botticelli / Vênus You’Can’ Makeup Fonte: http://www.ufrgs.br/napead/repositorio/objetos/historia-arte/imgs/idmod/Botticelli_09.jpg / Fonte: Produção do autor, 2016.

Propõe-se, aqui também, uma reflexão sobre os padrões de um retrato em 2016, onde, certamente, a Vênus de Botticelli estaria fora dos ‘padrões ideais’ do Instagram, ao menos, sem antes receber filtros, edições de ‘Photoshop’ móvel, maquiagem e uma nova sobrancelha. Tudo isso, em um aplicativo móvel (YouCam MakeUp) com alguns cliques. Os aplicativos de edição móvel estão disponibilizados a todos os smartphones e celulares atuais, assim, é possível baixar gratuitamente uma gama infindável desses programas com diversos fins. Arantes (2005, p. 177) aponta que a velocidade, o tempo real, e a instantaneidade permitem às obras em mídias digitais uma reflexão e um olhar, em poucos segundos, sobre o mundo que nos rodeia. Fizeram-se produções utilizando desses aplicativos em fotografias móveis e retratos híbridos, trabalhando com a (des)construção dessas representações de selfies buscando novas visualidades a partir do uso de aplicativos móveis como por exemplo o GLITCH!.

Figura 3: Estudo de Selfie de Kloé Kardashian, grafite e edição móvel. Fonte: Produção do autor, 2016.

A partir da inserção desses desenhos com referências da rede nesses em aplicativos móveis com o objetivo de inserí-los novamente na rede estamos reforçando as linguagens e estéticas para essa interface virtual. A produção seguinte partiu de um rosto 3D disponibilizado para utilizações de estudos. O rosto maleável e editável em softwares foi exportado e/ou fotografado pra a realização das produções desenvolvidas. Quando a imagem é captada no celular ela é aberta

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em aplicativos de edição de selfies, como por exemplo: BeautyPlus, Magisto, YouCamMakeUp, entre outros. Ressalta-se que foram utilizados os aplicativos da PlayStore Android. Em YouCamMakeUp é possível transformar essa ‘escultura tridimensional’ em um ‘representação humanizada’, pois o aplicativo proporciona a aplicação de cílios, maquiagem, cabelo, e inclusive adiciona cor à pele e aos olhos. Desenvolvendo, assim uma construção de uma identidade virtual em um aplicativo móvel. Após, essa ‘Selfie de mulher 1’ continuou recebendo edições móveis, passando por um filtro do Snapchat.

Figura 4: ‘Selfie de mulher 1’ / Snapsave de mulher 1 / ‘Selfihibrid’ Fonte: Produção do autor, 2016.

Por outro lado, temos o ‘selfhibrid’, numa tentativa de hibridizar esse ‘personagem escultórico 3D’ em uma selfie retirada da rede. Visando, gerar uma interação natural desse elemento virtual em software 3D e uma captura de fotografia digital. Ainda foram feitas experimentações a partir desses híbridos recebendo lentes do Snapchat em vídeo também. As visualidades desse aplicativo carregam consigo um padrão único, não deixando dúvida sobre a origem das edições. As selfies representam massiva parte das imagens postadas em perfis de Instagram, em vista disso realizaram-se experimentações artísticas envolvendo essas estéticas da rede. No trabalho “Um de cem”, foram tiradas cem fotografias utilizando a câmera frontal do celular, e dispostas digitalmente ao longo de cem partes iguais de um quadrado. Arranjando-as numa composição onde as cem fotos componham uma. Considera-se a seleção de imagens como ponto de partida. Onde alguns usuários, após inúmeras tentativas, selecionam uma imagem para ser postada, a qual está adequada aos ideais sociais do app. Ao contrário disso, temos aqui as fotografias dispostas ao acaso, seccionadas e arranjadas lado a lado para todas compor um todo. Deixou-se certo ‘incômodo’ em algumas áreas da imagem, as quais levemente se deslocam do ângulo padrão, ou foram realizadas sem a utilização do filtro de

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‘embelezamento’ que vem integrado em muitas câmeras de smartphones, o resultado exibe partes que mostram ‘defeitos’ nesse retrato.

Figura 5: Um de cem/ Um por cento de cada um / Selfies de mim, não de agora. Fonte: Produção do autor, 2016.

Essas 100 selfies também compuseram a produção artística “Um por cento de cada um”, onde as imagens foram sobrepostas uma acima da outra com o corte na mesma posição de todas as fotografias, e com 1% de visibilidade em cada uma dessas camadas fotográficas. Além disso, no produção “Selfies de mim, não de agora” também, realizou-se trabalhos visando encontrar bugs e defeitos na aplicação de faces do FaceSwap6.Como resultados pode se ver a possibilidade desses aplicativos falharem após sucessivas utilizações, já no segundo ‘FaceSwap’ a imagem ‘bugou’. O interesse dessa produção está na incerteza dessa predefinição do aplicativo e sua possibilidade de gerar um erro; diferentemente, por exemplo, de uma montagem em desktop onde já haveria certa intenção formal para realizar a montagem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme coloca Bauman, no início dos anos 2000, as redes sociais ‘enraizaram-se’ na sociedade para alimentar grandes anseios individuais. Com o tempo o uso e a acessibilidade a essas redes, dispositivos e aplicativos só aumentaram. Hoje, deparamo-nos com uma sociedade conectada, uma sociedade onde a informação corre e dá a volta ao mundo em poucos segundos. O ser e o ter parecem não ser o bastante sem que sejam compartilhados. Se o compartilhamento de intimidades chocava a sociedade em 2006, o que podemos dizer de nossa atualidade, com o que vemos nas redes uma década depois. Onde todo tipo de intimidade individual já foi, e vem sendo, exposta em redes sociais. Para alguns usuários, o particular, íntimo e privado estão cada vez menos ocultos dos ciclos sociais virtuais.

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Recurso de lente disponível no aplicativo Snapchat.

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Destaca-se, como ressalta Manovich, a importância que essas redes podem possuir no sentido de compartilhar culturas ao acesso global, difundindo anseios estéticos e visualidades dessas redes, perpassando pelas selfies os estilos de vida, estilos de vestir, e mais. A partir da exploração de processos híbridos, transitando entre computadores e aplicativos móveis desenvolveram-se as produções. De um lado, com imagens construídas a partir de ideais da rede, as Vênus, e as imagens híbridas de filtros e edições. Por outro lado, temos as imagens para rede, as selfies ‘rejeitadas’ e as imagens ‘bugadas’. Todas as produções vinculadas, de uma forma ou outra, à rede social. Encerrando esse ciclo, no mês de junho, foi realizado a postagem dessas produções artísticas em seu local de origem referencial, a rede social Instagram. À medida que, inseremse essas imagens na rede, de certa forma, legitima-se sua contextualização poética. A obra desenvolvida com as estéticas da rede, dos aplicativos móveis, da selfie, e todos demais aspectos que englobaram essa pesquisa passam a fazer parte virtualmente dessa rede, tornando seu acesso global, e ocupando seu espaço nesse seu próprio universo. REFERÊNCIAS ARANTES, Priscila. @rte e Mídia: Perspectivas da estética digital. São Paulo. Editora Senac São Paulo, 2005. BAUMAN. Zygmunt. Vida para o Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2008. BEIGUELMAN, Giselle. Glitched Landscapes. 2013. Disponível em: http://desvirtual.com/glitch/index.html FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais: Uma leitura do Retrato Fotográfico. Belo Horizonte. Editora UFMG. 2004. GASPARETTO, Débora A. O “curto-circuito” da arte digital no Brasil /Débora Aita Gasparetto. 1 ed. Santa Maria, RS : Ed. do Autor, 2014. JACOB, Helena. Redes sociais, mulheres e corpo: um estudo da linguagem fitness na rede social Instagram. Revista Communicare. Vol14. No1. 2014. LEMOS. André. CIBERCULTURA: Tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre. Sulina . 2008 LIMA, Claúdia C. O selfie como expressão de Moda e Narcisismo contemporâneos. Anais Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015. São Paulo, 2015. MANOVICH, Lev. Notes on Instagrammism and mechanisms of contemporary cultural identity (and also photography, design, Kinfolk, kpop, hashtags, mise-en-scène, and cостояние). 2016. Disponível em: http://manovich.net/content/04-projects/092-notes-on-instagrammism-andmechanisms-of-contemporary-cultural-identity/notes-on-instagrammism.pdf RUSH, Michael. Novas Mídias na Arte Contemporânea. São Paulo. Martins Fontes, 2006.

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MODERNIDADES MÚLTIPLAS - DISCURSOS SOBRE AS ARTES NO PARANÁ NA DÉCADA DE 1940 Alice Freyesleben

Resumo: O presente artigo tem como objeto central a investigação dos sentidos assumidos pelo termo moderno aplicado às artes no Paraná durante a década de 1940. Tal recorte é justificado pela possibilidade de se observar múltiplos espaços onde se construíram discursos sobre o moderno em relação a produção artística, pois esta década assistiu à criação do Salão Paranaense de Belas Artes em 1944, à fundação da Escola de Música e Belas Artes do Paraná em 1948, além de ter sido o período de circulação da revista Joaquim, incendioso periódico de arte e literatura, divulgador de discursos modernos e anti-institucionais que circulou na cidade por dois anos (1946-48). Acreditamos que lançar novos olhares e interpretações para os elementos constituintes do meio artístico no período em cotejo com outros estudos publicados, que trataram da mesma temática em períodos distintos, significa desconstruir rótulos inerentes à própria história da arte paranaense. Tentar compreender historicamente os discursos artísticos nos possibilita ressignificar o ideário discursivo sobre a arte moderna a partir do lugar presente e da condições latentes próprias de nossa época. Palavras-chave: arte moderna, crítica de arte, mobilização de discursos Introdução:

O sentido de moderno e de modernismo em qualquer época é o de um processo de “torna-se”. Pode ser: torna-se novo e diferente; pode significar subverter o que é velho, tornar-se um agente de desordem e mesmo de destruição. O sentido é paralelo ao de buraco negro […] resulta de uma compreensão em que o espaço tempo se distorcem […]. Todas as conceitualizações espaço-tempo ou contínuos deixam de ser verdadeiras. […] Também o moderno não tem fim, é um vórtice tal como um modernista classificou a sua sucção devoradora. (Karl, 1988, p. 21-2)

Desde a configuração histórica do par dicotômico antigo/moderno, é este último termo que conduz à mutabilidade de sentidos potenciais atribuídos à dicotomia (Le Goff, 1997, p. 370- 392). Havendo múltiplas categorias possíveis de modernidades, cabe aos indivíduos a tarefa de definir o “moderno” no seu tempo e espaço a partir da relação que mantêm com o passado. Com o meio artístico curitibano tal lógica não poderia ser diferente. Pode-se observar, portanto, diversos grupos de intelectuais e artistas fundando “modernidades” em momentos distintos. Da mesma forma, atestados de óbitos de movimentos artísticos predecessores são reiteradamente emitidos como principal tática de criação do moderno. Sob tal prisma, o objeto de estudo deste artigo são as prá-

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ticas discursivas perpetradas por agentes culturais sobre o “moderno” relacionado à produção do meio artístico curitibano na década de 1940. Período de intensas movimentações artísticas assinaladas pela criação do Salão Paranaense de Belas Artes em 1944, fundação da Escola de Música e Belas Artes em 1948 e pela circulação da Revista Joaquim, periódico cultural publicado em Curitiba de 1946 a 1948 que tinha como principal bandeira o combate ao “atraso cultural da província”, forma pela qual seus criadores e editores Dalton Trevisan, Antônio P. Walger e Erasmo Pilotto se referiam ao Paraná. Assim, seguindo os caminhos já abertos por outros pesquisadores da arte paranaensei podemos elencar sucessivos momentos de instauração da “arte moderna”, como a década de 1920, 1940 ou 1960, nas quais, verificamos a existência de discursos sobre as artes orientados por estratégias distintas, motivados por diferentes preceitos, porém com um denominador comum: a desqualificação do entorno e do precedente. O contato com os demais trabalhos sobre esta temática articulado aos debates teóricos sobre o campo das artes, sobre o moderno e o modernismo proporcionou condições necessárias para aproximar o objeto de pesquisa da malha de interesses e confrontos mais amplos, na qual se consubstanciam e se desdobram as relações artísticas. Modernos, não modernistas. Em suas pesquisas, Iorio e Samways apontam para a presença de discursos modernos entre artistas, escritores e intelectuais em Curitiba desde os anos 1920 (Iorio, 2003; Samways, 1988). Ainda que os agentes deste período concentrassem seus apelos modernistas mais sobre o campo literário do que propriamente às artes plásticas, depoimentos como o de Ada Maccagi, em 1926, exprimem as ambiguidades e contradições comuns a esta ordem de discursos: Não posso mais suportar o mofo da Arte Acadêmica – arte capenga, arte míope, arte avariada em todos os sentidos […] Tenho a impressão, vendo esses estetas muito simétricos […] de estar olhando para uma procissão de paquidermes gravibundos. […] os moços tem o dever de clamar pela modernidade, por uma guerra acesa ao espírito acadêmico […] fixam os cânones de uma arte oficial, como as religiões fixam os seus dogmas… Quem não observar os cânones acadêmicos é um herege, um medíocre, um louco, um nulo… isso é revoltante. (Maccagi, 1926. Apud. Samways, 1988, p. 40)

Vale lembrar que não bastasse a dificuldade em definir uma composição artística como propriamente acadêmica, dado que tal terminologia não designa uma corrente ou um movimento nas artes, não existia no Paraná daqueles anos qualquer instituição minimamente próxima aos moldes de uma academia. Mais interessante ainda é notar a

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similaridade das estratégias de legitimação de discursos pró-modernidade artística mobilizados em contextos distintos por agentes que buscaram, como bem define Karl, se dissociar “dos laços históricos que se espera encontrar em ideias de circulação comum.” (1988, p. 12) Sob tal lógica, se nos anos 1920 os apelos por uma arte genuinamente paranaense, traduzidos pelos Modernistasii e Paranistasiii, que em suas buscas por uma identidade artística própria tentaram se desvincular dum suposto espírito acadêmico passadista (através da estilização de símbolos da terra como pinhões e pinheiros), foram as alternativas possíveis rumo a uma modernidade artística - notamos que na década de 1940, justamente a condenação da permanência deste conjunto simbólico associado ao Paranismo e a negação da relevância do movimento literário Modernista foram o principal imperativo a orientar um sentido para as artes modernas no Paraná. Na constante procura por uma ruptura artística através da negação do passado, um editorial da revista Joaquim afirmou: “O movimento de renovação intentado por Joaquim não tem ambições modernistas: tem ambições modernas” (Joaquim, 1947, s/ p., grifo nosso). Desde o primeiro número, em abril de 1946, a revista, cuja periodicidade variou no decorrer de sua duração, articulou um discurso fervoroso contra o panorama intelectual e artístico da “província”. São também nas páginas de Joaquim que identificamos a articulação de outro discurso que assumiu um significado moderno em meados dos anos 1940. Desta vez, circunscrito ao âmbito da pintura, a valorização dos pintores Poty Lazzarotto e Guido Viaro (ambos colaboradores e ilustradores da revista) em oposição à centralidade do pintor norueguês Alfredo Anderseniv, como mentor e talento máximo da produção artística no Estado, passou a ser a principal arma de combate de que desfrutavam os modernos. O insigne comentário de Trevisan em 1946 resume: Humildemente, mas com alegria e sem medo, na obscuridade medieval da província ele pinta. […] Já se disse que se pode elogiar Viaro sem desmerecer Andersen. Pois esse é o ponto preciso: não se pode. […] Há um tempo para semear e outro para colher; se houve um tempo em que era de bom tom admirar Alfredo Andersen, agora é necessário exorcizar sua sombra. […] Viaro é o erro que se eleva para a beleza viva e por isso mais fecundo do que a beleza morta. Lancemos um exorcismo sobre Andersen, não tanto por causa dele, mas pelo o que representa como arte superada, moldes consagrados, tabu. […] está deitando sombra incomoda sobre os vivos […].(Trevisan, 1946, p. 10)

De fato, a primeira equipe de professores nomeada para a criação da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), em 1948, era em sua maioria constituída por pintores que quando jovens havia frequentado as aulas no ateliê de Alfredo Andersenv.

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O mesmo ocorria entre as listagens de premiados nos catálogos do Salão Paranaense durante todo o período estudado.vi

Acadêmicos e Modernos no Salão Paranense. Com isso, as insatisfações relacionadas ao legado do pintor Alfredo Andersen não estavam limitadas apenas ao círculo dos Joaquins. Também para Fernando Veloso, aluno da primeira turma de pintura da EMBAP: [...] havia um academicismo ferrenho inimigo de tudo que se inovasse, reacionário e muito bem implantado [...] pintores que se repetiam, e cada vez com menor qualidade [...], esses acadêmicos eram ainda originários do grande mestre Andersen, [...] nada faziam do que repetir o que o mestre tinha ensinado sem [...] preocupação de pesquisa ou de descobrir novos caminhos. (Velloso, 1984, grifo nosso)vii

Contudo, se desde a primeira edição do Salão Paranaense de Belas Artes, a “Secção de Pintura” estava divida oficialmente em duas categorias: “Divisão Geral” e “Divisão de Arte Moderna, o exame dos regulamentosviii revelou a ausência total de critérios discriminatórios para alocação das obras em uma ou em outra categoria, o que, em alguma medida, já demonstra a ambiguidade do sistema relativo à classificação de uma determinada obra como moderna ou não. Em termos gerais, na década de 1940, as críticas de arte contrárias à produção dos pintores chamados “discípulos de Andersen” não se aproximavam nem minimamente do que Charles Harrison designou como “crítica Modernista” (2001, p. 20-35), isto é, uma crítica mais atenta ao suporte plano da tela, e seu preenchimento pela cor através da técnica, do que com a temática em si. No Paraná, os comentários críticos sobre as artes do período, em sua maioria, questionavam muito mais um excessivo reconhecimento institucional do legado do mestre norueguês. Todavia, mesmo que a intenção deste artigo não seja qualificar o que pode ou não ser considerado arte moderna, é impossível negar a incidência de discursos conservadores sobre as artes e seu ensino, que se apropriaram da figura de Andersen, de sua produção e daqueles que com ele estudaram como a única “grande arte” do Estado. Aqui no Paraná, não temos artistas nem melhores nem piores. Há os que pintam e os que não pintam. [...] Está mais longe da meta o que mais quer aparecer. [...]VIARO: já de entrada me reservo o direito de cortar nove dos dez quadros e ver apenas o que teve medalha de latão no Rio. Como é que este quadro passou com aqueles reflexos de casas na água e com aquela perspectiva tão errada, não compreendo. [...] Se tivesse estudado com Andersen ou com qualquer aluno do Mestre erraria menos em coisas básicas do ofício. (Woiski, João. 1944, grifo nosso)

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Por alto, no que se refere ao suposto caráter conservador da pintura daqueles que estudaram com Andersen, estudos como os de Camargo e Freitas realmente apontam um compromisso com a representação mimética da realidade como uma das características da produção destes pintores. Para os autores, só é possível falar em “arte moderna” no Estado a partir do final dos anos 1950 e início dos 1960, momento em que surgem tensões entre produções figurativas de viés social, tais como a de Nilo Previdi, e as proposta abstracionistas apresentadas por pintores como Velloso e Loio-Pérsio. Ambas, passam a disputar espaço no Salão Oficial. (Camargo, 2002; Freitas, 2003) Entretanto, o que depreendemos da análise dos debates críticos acerca do certame, é que pensar a oposição entre “acadêmicos” e “modernos”, propagandeada nos periódicos da década de 1940ix, demanda também considerar uma dimensão de fatores que não se relaciona especificamente com as características intrínsecas às obras de arte produzidas. A título de exemplo: em meio a tal cenário, tendo sido aluno de Andersen e seu apólogo inconteste, Curt Freyesleben era tido como um pintor acadêmico; o imigrante italiano Guido Viaro, por sua vez, representava a pintura arejada, alternativa aos “andersenistas”. Porém, se seguirmos os mesmos passos da argumentação de Chiarelli, partindo do suposto critério de definição da pintura moderna sustentado pela independência de uma obra em relação a sua realidade externa (Chiarelli, 1994, p. 57), a especificação de uma pintura de Guido Viaro como moderna, e uma de Freyesleben como acadêmica poderia ser questionável.

Viaro, Paisagem com pinheiros, 1940

Freyesleben, Paisagem paranaense, 1943

No que se refere à autonomia formal e narrativa da pintura moderna, ambos os autores, cada um com seu estilo, estavam, neste período, comprometidos com a representação naturalista.x Ainda, se inserimos na discussão sobre as pinturas modernas

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ou acadêmicas apresentadas no salão oficial do Paraná, durante os anos 1940, comparações com os debates vigentes em outros meios artísticos, como os do Rio de Janeiro e São Paulo, as balizas entre o caráter moderno e o acadêmico dos pintores curitibanos tornam-se ainda mais problemáticas. Basta lembrar que durante toda a década de 1940, observamos nomes como o de Portinari, cuja poética pictórica compreendia traços pós-cubistas, como as figuras humanas agigantadas de Picasso e mesmo temáticas surrealistas. Acentuado o descompasso ainda mais, pouco tempo depois, verifica-se que os meios cariocas e paulistas passam a ser marcados pelas experiências concretistas e por linguagens abstratas, sobretudo, após a primeira Bienal de 1951. Todavia, não é nosso intento aqui, sugerir uma correlação do tipo centroperiferia, “como se o eventual desequilíbrio simbólico entre contextos geográficos distintos fosse sempre uma expressão direta do desequilíbrio econômico ou político” (Freitas, 2013, p. 72), ou mesmo, qualificar se houve ou não uma produção de arte moderna no Paraná a partir da infinidade de teorias existentes sobre os imperativos que definem este paradigma da arte. Apenas procuramos tornar claras algumas das especificidades sobre os sentidos assumidos pelos discursos modernos aplicados à produção artística no Estado durante os anos 1940. Arte moderna e modernização. De forma geral, embora concordemos com os autores Malcolm Bradbury e James

McFarlane

quando

colocam

que

“o

modernismo

pode

mostrar-se

surpreendentemente diverso, dependendo de onde situemos seu centro, em que capital (ou cidade do interior) decidamos parar” (1989, p. 22), é plausível afirmar que por maior que seja o número de variações que os discursos modernistas possam apresentar (incluindo a própria recusa ao rótulo, como no caso dos Joaquins), sua relação com o fenômeno no qual está englobado é irrefutável. Nas palavras dos mesmos autores, “o modernismo é, pois, a arte da modernização” (Ibid., p. 19) Nesse sentido, a ideia de modernização designa um conjunto muito plural de transformações nem sempre atreladas a noção de progresso. Pensar a modernização de uma determinada localidade, demanda considerar o acúmulo e investimento do capital disponível; o desenvolvimento no setor de serviços; o aumento da divisão do trabalho; a centralização do poder político; o alargamento urbano e, particularmente destacável neste artigo: o incremento cultural de seu meio artístico.

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Assim, o papel de principal mecenas assumido pelo Estadoxi desde os anos 1940 é parte do projeto geral de modernização que nas palavras do ex-governador, Bento Munhoz, visou a evidenciar publicamente o “espetáculo de prosperidade” e desprender “o Paraná do seu confinamento provinciano”. (Munhoz, 1954. Apud. Magalhães, 2001, p.57-8) Tais considerações relativas aos aspectos políticos e econômicos do contexto estudado são indispensáveis à perspectiva teórico-metodológica por nós pretendida, a qual parte da afirmativa de Bourdieu: “não há qualquer razão para que a ciência conceda à sociedade dos eruditos, dos escritores e dos artistas, o estatuto de exceção que tal sociedade outorga a si mesma.” (1974, p. 176) Isto é, buscamos compreender o fluxo dos sentidos das práticas discursivas sobre a necessidade de modernizar as artes no Paraná como parte de um campo de disputa ideológica no qual se processam embates e associações motivados por razões diversas. Considerações finais: Conforme se procurou evidenciar até aqui, a proposta de análise deste artigo vai ao encontro a de autores que, como Simioni (2014), Durand (1989), Harrison e Wood (1998), tomam a mobilização de discursos modernos em determinado meio artístico e intelectual como parte do “campo de disputa e embates” inerente a tal meio. Neste sentido, a escolha do recorte temporal apresentada também se justifica por conta da profusão de lugares para a observação de discursos sobre a arte. Visto que, em concordância com o aporte teórico metodológico escolhido, faz-se necessário considerar como universo de análise mais de um âmbito artístico-intelectual de onde emanam discursos. Logo, o fato de se ter instituído um certame artístico oficial assim como o de se ter fundado uma escola de artes totalmente subvencionada pelo Estado, consubstanciou também uma nova gama discursiva de usos e apropriações da arte e da cultura pelos atores históricos do período. Alguns destes usos puderam ser observados ao examinarmos os comentários a respeito do Salão Paranaense de Belas Artes e os decretos que regularam o funcionamento do evento: fora Alfredo Andersen a grande e perpétua figura da arte paranaense. Art. Iº - Fica aprovado o Estatuto do I Salão Paranaense de Belas Artes que com este baixa, assinado pelo Secretário do Interior; Justiça e Segurança Pública, a ser inaugurado no dia 3 de novembro p. vindouro, em homenagem à memória do grande mestre Alfredo Andersen. (Diário Oficial do Paraná, 1944)xii

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A partir da década de 1950, quando as comemorações do centenário da independência administrativa do estado são elaboradas, João Xavier Viana, então Secretário de Educação e Cultura, modifica a data de realização do certame para dia 19 de dezembro e institui - “Art. 2º - A abertura do Salão se revestirá de caráter solene, como parte integrante das festividades do ‘Dia do Paraná’.” (Diário Oficial do Paraná, 1952)xiii Portanto, os conteúdos intrínsecos a este corpo documental traduzem, em alguma medida, o que podemos chamar de visão oficial sobre as artes plásticas no estado. Contudo, a consolidação de espaços que fomentassem um maior fluxo das artes e artistas na cidade (e, consequentemente, da crítica de arte), como no caso de um Salão de Artes que premia as obras mais destacadas, era agenda comum a outros agentes culturais que não tinham influência política ou acesso aos aparelhos administrativos para efetivá-la. Retomando os argumentos apresentados no segundo tópico deste artigo, optamos por pensar os moços da Joaquim como uma alternativa à visão oficial sobre o principal meio artístico do Estado, o de Curitiba. Outro aspecto que reforça a relevância de se admitir o periódico como corpo documental reside no reconhecimento alcançado pela revista em outros meios artísticos.xiv Desta maneira, a análise dos textos veiculados na revista, teve como função expor o que aquele grupo de intelectuais e artistas percebiam como "tradição estabelecida no Paraná", ainda que o significado desta suposta tradição pudesse assumir sentidos distintos. Tais questões são relevantes, pois, se uma comunidade se reconhece como tal por meio de um passado simbólico compartilhado (Anderson, 2005), neste caso, sua autoestima se relaciona também à crença num futuro comum, definido pelo desenvolvimento material de seu espaço urbano e articulado ao amadurecimento de seu meio artístico. Este, pensado pela sua capacidade de produzir mecanismos que a coloquem como parte do mundo civilizado (atualmente global). Um exemplo dos anseios relacionados à consolidação de uma arte moderna paranaense que ensejasse reconhecimento e lugar em nível nacional e internacional pode ser apreendido no insigne comentário “para nós, neste instante, são as fronteiras do mundo, e não as da rua XV, que procuramos atingir”. (Trevisan, 1946, p. 17) Deste modo, tomamos as palavras de Durand “É preciso agitar a história da arte antes de usá-la”. (Durand, 1989, p. 1). Isto é, historicizar a própria história da arte significa descontruir balizas, rótulos, eleitos e tentar compreender historicamente seus discursos e motivações próprias. Acreditamos que lançar novos olhares sobre os sentidos incorporados aos discursos modernos e suas decorrências no meio artístico paranaense

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nos permite expandir a compreensão de processos formadores dos traços da cultura presente. i

Nos referimos aos estudos de: ARAÚJO, Adalice. Arte paranaense moderna e contemporânea em questão 3000 anos de arte paranaense. Tese (concurso de livre docência) – Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, UFPR, Curitiba, 1974; IORIO, Regina Saboia. Novela e Intrigas - Literatos e Literatura em Curitiba na década de 1920 Tese de Doutorado em História. UFPR, 2003; SAMWAYS, Marilda Binder. Introdução à literatura paranaense. Curitiba: Livros HDV, 1988; FREITAS, Artur. Arte e contestação: uma interpretação relacional das artes plásticas nos anos de chumbo. 1968-1973 Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba, 2003; JUSTINO, Maria José. 50 anos de Salão Paranaense, Curitiba, Clichepar Editora, 1995; CAMARGO, Geraldo Veiga Leão. Escolhas abstratas- Arte e Política no Paraná (1950-1962). Dissertação de Mestrado em História. UFPR, Curitiba, 2002; Idem. “Interesses cruzados: arte, política e trocas sociais no Paraná do entreguerras.” In FREITAS, Artur, Org; KAMINSKI, Rosane, Org. História e Arte: encontros disciplinares. São Paulo: Intermeios, 2013. p.201-217; NASCIMENTO, Carla Emilia. Nilo Previdi: Contradições entre a Arte Moderna e Arte Engajada na Curitiba entre os anos 1940-60. Dissertação de Mestrado em História, UFPR, 2013 ii Sobre as tentativas de renovação do meio literário em Curitiba durante os anos 1920 ver em: IORIO, Regina Saboia. Novela e Intrigas - Literatos e Literatura em Curitiba na década de 1920 Tese de Doutorado em História. UFPR, 2003 iii A partir das primeiras décadas do século XX, em meio ao clima do modernismo brasileiro de cunho regionalista que se contrapunha aos paulistas ligados a Semana de 22, o intelectual Romário Martins desencadeou um movimento de valorização dos mitos, e símbolos paranaenses, inicialmente na literatura, mas que logo atingiu agentes ligados às artes plásticas. Sobre Paranismo: DE CAMARGO, Geraldo Leão Veiga. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná. 1853-1953. Tese de Doutorado em História, UFPR, Curitba, 2007 iv Alfredo Andersen foi um pintor norueguês, com passagem pelas academias de artes europeias. Estabeleceu-se definitivamente em Curitiba em 1903 e faleceu em 1935. Sua atuação como mestre desenho e pintura é destacavel para o desenvolvimento do meio artístico na cidade. Foi professor de muitos artistas consagrados pelo Salão Paranense de Belas Artes e lutou pela a criação de uma escola de artes superior totalmente subvencionada pelo Estado com intuito de garantir que os interessados pelas artes pudessem buscar formação profissional independentemente de suas condições sociais. PILOTTO, Valfrido. O acontecimento Andersen, Curitiba: Mundial, 1960 v Dentre os ex-alunos de Andersen que assumiram as disciplinas de desenho e pintura na EMBAP encontramos: Theodoro de Bona, Lange de Morrestes, João Woiski, Estanislau Traple, Waldemar Curt Freyesleben - Livro de Atas das reuniões da Congregação da EMBAP (1948-1988) – Disponível no centro de documentação da EMBAP. vi Os catálogos mencionados (1944,47, 48, 49 E 50) encontram-se disponíveis para a consulta no Centro de Documentação do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR) vii Palavras de Fernando Velloso transcritas em FRANCO, Violeta. Depoimento datil., Curitiba, 14 mai. 1984, Centro de Documentação - MAC-PR. viii Atas do Decreto nº 2009, Diário Oficial Estado do Paraná, Curitiba, 26 out. 1944 - documento disponível no Setor de documentação do MAC ix EMÍLIO, Alfredo. “I Salão Paranaense de Belas Artes”, O Dia, Curitiba: nov. 1944; WOISKI, João.

“Salão Paraense de Artes de 1944”. Gazeta do Povo, Curitiba, 16 dez. 44; LAZZAROTTO, Poty. “Poty e a Prata da Casa”, Joaquim, Curitiba, nº 1, abr. 1946; LUZ, Nelson. “Ecos do Salão Paranaense.” Curitiba, Gazeta do Povo, 22 jan. 1948; MILLIET, Sérgio. “Artistas do Paraná”, O Estado de São Paulo, São Paulo: 6 fev. 1948 x

Para um maior aprofundamento nas questões sobre autoreferencialidade e autonomia como conceitos fundadores da arte moderna ver em: FABRIS, Annateresa “Arte moderna: algumas considerações”. In: FABRIS, Annateresa; ZIMMERMANN, Silvana. Arte moderna. São Pulo: Experimento, 2001, p. 15-7 xi A relação entre a produção artística e o mecenato estatal é constante e se verifica em diferentes momentos. Como exemplo citamos: o desenvolvimento das artes plásticas paulistas na década de 1920 associado aos rendimentos da produção industrial; o apoio concedido na Era Vargas àqueles artistas que articulavam a ideia de uma identidade nacional – trabalhadora e urbana. SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti “Modernismo no Brasil: campo de disputas”. In; BARCINSKI, Fabiana (org.) Sobre a arte brasileira: pré história aos anos 60. São Paulo:WMF Martins Fontes – edições SESC, 2014. p. 233-263 xii Ato do Decreto n.º 2009, Curitiba, Diário Oficial do Estado do Paraná, 25 out. 1944 xiii Atos do Decreto n.º 6001, Curitiba, Diário Oficial do Paraná, 25 jun. 1952

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Era uma estratégia recorrente dos editores da Joaquim publicar cartas de intelectuais, artistas e escritores reconhecidos em âmbito nacional elogiosas à iniciativa da revista ao propor “o novo”. Como exemplo pode-se elencar a carta de Drummond: “ (...) os velhos simplesmente maduros estão calados (...) desistiram de reformar a vida. (...) Encontro em vocês do Paraná esse fermento da ‘coisa nova’ (...). Que delícia uma revista cuja redação é na rua Emiliano Perneta, 476, e que promete publicar em segundo número uma artigo sob o título ‘Emiliano, poeta medíocre!’” ANDRADE, Carlos Drummond. “Carta a Dalton Trevisan”, Joaquim, Curitiba, nº 2, jun. 1946

Referências bibliográficas: ANDERSON, Benedict. “Introdução”. In Comunidades Imaginadas, reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Lisboa, Edições 70, 2005 [1983] ARAÚJO, Adalice. Arte paranaense moderna e contemporânea em questão 3000 anos de arte paranaense. Tese (concurso de livre docência) – Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, UFPR, Curitiba, 1974 BOURDIEU, Pierre. “O mercado de bens simbólicos”. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974 BRADBURY, Malcolm & MCFARLANE, James. Modernismo – guia geral. São Paulo, Cia da Letras, 1989 CAMARGO, Geraldo Veiga Leão. Escolhas abstratas - Arte e Política no Paraná (1950-1962). Dissertação de Mestrado em História. UFPR, 2002 . Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná. 1853-1953. Tese de Doutorado em História, UFPR, Curitba, 2007 .”Interesses cruzados: arte, política e trocas sociais no Paraná do entreguerras.” In FREITAS, Artur, Org; KAMINSKI, Rosane, Org. História e Arte: encontros disciplinares. São Paulo: Intermeios, 2013. p.201-217 CHIARELLI, Tadeu. “Entre Almeida Jr. E Picasso”, in: FABRIS, Annateresa (org.) Modernidade e modernismo no Brasil, Campinas, SP: Mercado de Letras, 1994 DURAN, José Carlos. Arte, privilégio e distinção, 1855/1985, São Paulo: Perpectiva, USP, 1989 FABRIS, Annateresa “Arte moderna: algumas considerações”. In: FABRIS, Annateresa; ZIMMERMANN, Silvana. Arte moderna. São Pulo: Experimento, 2001, p. 15-7 FREITAS, Artur. Arte e contestação: uma interpretação relacional das artes plásticas nos anos de chumbo. 1968-1973 Dissertação de Mestrado em História. UFPR, 2003 .“A consolidação do moderno na história da arte do Paraná: anos 50 e 60.” Revista de História Regional 8 (2). Inverno de 2003, p. 87-124 HARRISON, Charles. Modernismo. São Paulo: Cosac Naify, 2001 IORIO, Regina Saboia. Novela e Intrigas - Literatos e Literatura em Curitiba na década de 1920 Tese de Doutorado em História. UFPR, 2003 JUSTINO, Maria José. 50 anos de Salão Paranaense. Curitiba, Clichepar Editora, 1995 KARL, Frederick. Moderno e modernismo: a soberania do artista 1885-1925. Trad. Henrique Mesquita , Rio de Janeiro: Imago Ed., 1988 LE GOFF, Jacques. “Antigo/Moderno”. In.: Enciclopédia Einaudi. vol. 1- Memória e História, Lisboa, IN-CM, 1997 MAGALHÃES, Marion Brepohl. Paraná: política e governo. Curitiba: SEED, 2001 NASCIMENTO, Carla Emilia. Nilo Previdi: Contradições entre a Arte Moderna e Arte Engajada na Curitiba entre os anos 1940-60. Dissertação de Mestrado em História, UFPR, 2013 PILOTTO, Valfrido. O acontecimento Andersen, Curitiba: Mundial, 1960 SAMWAYS, Marilda Binder. Introdução à literatura paranaense. Curitiba: Livros HDV, 1988

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WOOD, Paul... [et alii]. Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 1998

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A IMAGEM DE CAMILLE CLAUDEL NOS FILMES CAMILLE CLAUDEL E CAMILLE CLAUDEL 1915

Ana Priscíla N. Costa

Resumo:O artigo a seguir se propõe a comentar a construção biográfica da escultora francesa Camille Claudel, a partir da análise de duas adaptações para o cinema, de modo a compreender os recortes escolhidos por cada um dos diretores em relação às referências bibliográficas nas quais se baseiam. Palavras-chave:Camille Claudel, cinema, biografias. Abstract: The following article aims to review the biographic construction of the French sculptress Camille Claudel, from the analysis of two film adaptations, in order to understand the clippings chosen by each of the directors in relation to references in which they are based. Keywords:Camille Claudel, cinema, biographies.

O presente artigo integra a pesquisa que desenvolvi como trabalho de conclusão de curso no Bacharelado em História da Arte, no qual busquei investigar a imagem predominante da escultora francesa Camille Claudel (1868-1943) na História da Arte. No intuito deentendercomo se deu a construção biográfica da artista,resistente mesmo às pesquisas mais recentes – em síntese,amante, aprendiz ou musa de Rodin – discorri acerca das biografias dedicadas à escultora e assim, analisar as adaptações da história de Camille Claudel para o cinema foiimprescindível. A importância de estender a discussão para o cinema não se deve somente ao fato deestarmos falando de obras livremente inspiradas em biografias, mas é importante também porque tais filmes costumam ser o primeiro acesso que se tem àCamille Claudel, especialmente no Brasil, onde sua produção não parece muito difundida. Isso ocorre tanto porque Camille Claudel –assim como inúmeras mulheres artistas – ainda épouco pesquisada, quanto pelo fato de que o cinema possui, em certa medida, um poder de alcance maior que os livros em nossa sociedade por questões que extrapolam a extensão deste artigo, por isso não serão aprofundadas. Em muitos casos, pode-se notar um esforço do cinema no sentido de expandir e disseminar uma história pouco

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explorada. Em outras situações, devido ao forte apoio publicitário de que o cinemadispõe, o diretor pode optar por qual ponto de vista construirá seu enredo, como fazem os autores das biografias. Nesse sentido, a escolha do que e como será olhado pode ser tendenciosa ou mesmo equivocada, já que o cinema tem seus recursos e linguagens próprias, não cabendo ao público cobrar de uma obra que foi “livremente inspirada em” que seja inteiramente “verossímil a”. Ainda que a ampla visibilidade do cinema seja muito positiva, nem sempre ela é utilizada em favor de um relato fiel aos fatos. Vale ressaltar, no entanto, que, no caso de Claudel, mesmo nos livros mais fidedignos à sua história,podemos observar s abordagens diferentes a depender do autor, demodo que algumas das fontestambém podem ser encaradas, cada qual à sua maneira, como obras “livremente inspiradas” na trajetória de Camille Claudel. Um caminho possível seria encarar essas referências literárias ou cinematográficas como complementares para compreender os cruzamentos que ajudaram a construir a imagem da escultora que ainda hoje sobrevive. Camille Claudel, de Bruno Nuytten1, foi o primeiro material a respeito da artista com o qual tive contato, em decorrência de um projeto de extensão do qual participei em 2013. O filme é baseado no livro homônimo, escrito por Reiné-Marie Paris, sobrinha-neta da artista, uma das obras-chave de minhas investigações. Ressaltarei os aspectos que possam apresentar novas propostas de olhar ou, ainda, que confirmem ou questionem abordagenspresentes nas biografias, estabelecendo comparações. O recorte escolhido pelo diretor parte do período efetivamente produtivo da artista, já em Paris, no ano de 1885. A primeira sequência de cenas do filmeapresenta Paul Claudel em busca da irmã, que havia sumido de casa e aparece para o espectador roubandoo barro de uma obra, aparentemente de madrugada. Essa me parece uma escolha muito acertada do diretor: mostrar Camille Claudel como uma escultora, obstinada e completamente envolvida com a matéria de sua obra, desde muito nova. Esse envolvimento é evidente em outras cenas do filme onde Claudel aparece coberta de pó de gesso e de mármore. A tensão em torno de seu sumiço se contrapõe ao silêncio da artista: a personagem de Camille Claudel não emite uma palavra sequer durante os nove minutos iniciais do filme, prepara o barro e modela com ele, enquanto Giganti, seu amigo, serve de modelo. A artista emudecida trabalhando se mostra indiferente à aflição de Jessie Lipscomb2, que invade o ateliê, aliviada por tê-la encontrado.

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A manhã que sucede a fuga noturna de Camille Claudel é a data da primeira visita de Rodin ao ateliê que as escultoras dividiam. Ele assumira a função de visitá-las periodicamente a pedido de Alfred Boucher3, que não poderia mais assisti-las. A cena coloca em contraposição Jessie Lipscomb, ansiosa pela recepção e Claudel indiferente, contagiada pelo nervosismo da amiga somente na chegada do escultor. Rodin, apressado e aparentemente desinteressado se surpreende quando a jovem escultora lhe pede mármore, já em sua primeira visita. Essas opções fílmicas parecem confirmar o interesse estritamente profissional nos primeiros contatos entre Claudel e aquele que se tornaria seu mestre – um aspecto ressaltado na obra de Reiné-Marie Paris. A forma como Camille Claudel é apresentada na narrativa mantém-se a mesma, do início ao fim. Mesmo nas cenas que narram momentos românticos entre ela e Rodin, veremos a presença maciça da escultura, por parte de ambos. Da mesma forma, nos momentos em que Claudel já está em crise, sua ira parece ser motivada muito mais pelas dificuldades no ofício em oposição à fluidez da carreira de Rodin, do que pela frustração afetiva propriamente dita. Todavia, Nuytten nos mostra que, impondo-se a essa Camille Claudel tão decidida e voraz, estavam os embates do ambiente e do sistema das artes, desde sua entrada no ateliê de Rodin, até o final de sua carreira. O diretor deixa claro seu interesse em relatar como a artista não era dada às exigências sociais, próprias de uma carreira artística bem-sucedida, naquele período e o quanto criticava Rodin por curvar-se a essas necessidades. Esse comportamento da artista fica evidente em diversas cenas do filme, nos momentos em que ela insulta Rodin, ou enfrenta com violência Mathias Morhardt4, cobrando-lhe a respeito de uma suposta promessa de participar do Salão de 1900, com a esculturaIdade Madura(1890-1907). Antes do sistema, estava ainda a família de Camille Claudel, representada ao longo do filme de forma quase idêntica à das biografias. Com o irmão, a relação que vemos é de extrema cumplicidade, até o momento em que Paul Claudel toma conhecimento do caso da irmã com Rodin. Algumas cenas retratam Paul como um irmão que tinha ciúmes da irmã além da conta e, em dada passagem, ele chega a pedir um beijo a ela, o que dá margem para amplas interpretações. Na mesma medida em que seu pai a respeitava por sua escolha profissional, sua mãe a destratava pela mesma razão. Nesse sentido, uma cena é especialmente marcante na película: logo no início, quando a mãe de Camille Claudel começa a insultá-la à mesa, mostrando todo o rancor que nutria por terem sido obrigados a se mudar para Paris, ficando todos distantes do patriarca. Como se estivesse querendo reafirmar a imagem de uma artista indiferente e

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desinteressada, Bruno Nuytten novamente a retrata silenciosa: depois de ouvir todo tipo de xingamento da mãe, retira-se da mesa, furiosa, mas quieta. A personalidade forte de Camille Claudel, tão bem destacada no filme, fica em oposição à estrutura que a narrativa possui. Na obra de Nuytten, a história de Camille Claudel nos é contada a partir de suas relações com os homens de sua vida: o pai, Louis Prosper; Alfred Boucher, seu primeiro mestre; Giganti, seu amigo e primeiro modelo profissional; Auguste Rodin, seu mestre e amante; Claude Debussy, com quem teria tido um breve caso amoroso e, por fim, EugèneBlot, mentor em sua fase final de produção, responsável por sua única exposição individual retrospectiva e que nutria uma amizade por ela até mesmo depois da internação. Se analisarmos, a própria relação conturbada com sua mãe nos é apresentada a partir de uma competição pela atenção do pai, minimizando outras tantas complexidades, já citadas aqui, presentes em outras biografias. Uma narrativa construída a partir de suas relações com homens nos permite uma interpretação ambígua: ao mesmo tempo em que apresenta Camille Claudel através de sua relação com eles, o que seria contraditório se o objetivo do filme é propor uma biografia da artista, coloca-a ombro a ombro com eles, como destacado em um artigo que comenta o filme, de 2014: De certa forma, essa escolha narrativa do diretor do filme nos intriga porque soa como uma contradição, porque sugere que uma artista com a personalidade de Camille se manifestava, se constituía a partir dos encontros e desencontros com esses homens. Parece-nos que essa ênfase a coloca em pé de igualdade com eles, como se Camille, ao fim e ao cabo, não se submetesse a eles. Com isso, o mundo real entra em cena, porque o que vemos é um mundo mediado por homens, que detêm o poder, controlam tanto os destinos em sociedade quanto no meio artístico. 5

O diretor nos mostra, pouco a pouco, uma Camille Claudel transtornada depois do rompimento com Rodin. Como já mencionado, fica evidente que é uma questão mais relacionada a seus fracassos profissionais, do que ao próprio fracasso na relação. Apesar de as cenas a partir daí a apresentarem com sintomas de delírio persecutório contra Rodin, ainda assim, nas falas da personagem se notam dificuldades bastante concretas e reais, quando temos em mente o meio artístico da época. As cenas que apontam para o final da narrativa são muito dramáticas, destacando-se o momento em que a escultora vai à procura do pai e sofre pela decepção que lhe causou ao se envolver com Rodin. Nessa cena, Louis Prosper faz a leitura de um trecho da obra Téte D´Or, uma das primeiras peças de Paul Claudel. Suas palavras

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parecem narrar tanto o trágico fim que CamilleClaudel teria, quanto a dor do pai ao ver a filha em ruínas. Ele afirma que não deu a devida atenção ao filho mais novo, adiantando que ele seria um grande poeta. Camille Claudel admite que sempre tomou tempo demais do pai, colaborando para que Paul fosse preterido. Sua fala soa como uma profecia, já que a carreira de seu irmão escritor é inquestionável, enquanto sua relevância como escultora continua até hoje sendo posta à prova. Dois momentos me parecem emblemáticos ao final do filme: a cena em que ela arremessano Rio Sena o pé que esculpiu com o primeiro mármore concedido por Rodin (e assinado por ele, como prova de reconhecimento da qualidade da peça) e na sequência a cena em que ela destrói suas obras em gesso (as de bronze e as de mármore teria cedido à EugèneBlot, depois da exposição individual realizada em sua galeria) e a seguir enterra algumas peças, em uma possível metáfora de si própria. Estaria sepultando também sua carreira como escultora...? O filme se encerra efetivamente com a internação de Camille Claudel, tramada pela mãe e pelo irmão que, não sabendo mais como proceder com ela, enclausuram-na em um asilo e jamais a reintegram a família. A cena final retrata a escultora como no início: em silêncio. Ela nãogrita, nada pode contra aquela interdição. Nesse caso, o silêncio não parece ser voluntário, pelo contrário, dá a entender que ela foi levada praticamente inconsciente, medicada ou mesmo embriagada e que mal podia se dar conta do que acontecia. Ao final,já nos créditos do filme, o diretor utiliza a última imagem de Camille Claudel, em Montdevergues, 1929 [fig. 4]. A fotografia está ampliada de tal modo que o foco está nas mãos da escultora e a abertura da câmera entrega sua imagem completa, já na velhice, ainda internada havia muitos anos. Apesar de basear-se em uma biografia, ao optar pelo recorte do período de produção da artista, o filme de Nuytten acabavendendouma história de amor entreCamille e Rodin. A obra é repleta de cenas nas quais a artista é mais modelo que escultora. O diretor dá tanta ênfase à cena em que Claudel entrega seu dorso aoolhar de Rodin, que a imagem ilustra cartazes do filme e capas para versões em DVD. Essa ideia de que se trata de um romance e não de uma biografia se confirma ao observar as frases usadas como subtítulo das edições brasileira e norte-americana do filme, respectivamente [figs. 1 e 2] : “um romance que mudou a história da arte”; “The winterof 1885, Auguste Rodin metthegreatestartisthewouldeverknow”. Ou seja, mesmo

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em filmes que protagoniza, Camille Claudel precisa ser apresentada, logo de início, através de Rodin – ora como a maior artista que ele já encontrou, ora como sua amante. Na contramão dessa narrativa está Camille Claudel 19156,de Bruno Dumont, que estreou no Brasil em 2013. O filme foi livremente inspirado em documentos médicos dos asilos e na correspondência entreCamille e Paul Claudel. O objetivo do recorte escolhido foi justamente o oposto: mostrar a artista já interditada, emMontdevergues. Em 1915 ela completava um ano de internação já nesse novo asilo, para onde fora transferida em decorrência da Primeira Grande Guerra. Ao contrário do primeiro filme, neste, quase não há tréguas: não a vemos esculpir, sozinha ou no ateliê. A propósito, somos quase induzidos a esquecer que algum dia ela foi uma artista. São poucas as exceções que nos mantêm ligados à escultoraCamille Claudel; destacaria a cena em que ela comenta que a estavam forçando a trabalhar em esculturas e outra passagem quando ela toma um pedaço de barro nas mãos e tenta, inutilmente, modelar, enchendo-se de raiva por não conseguir, ou mesmo nãoquerermais isso. Ela joga o barro de volta no chão, num misto de raiva e ressentimento com essa matéria que lhe era tão cara. Entretanto, há outras interpretações possíveis a respeito da ausência da escultura na obra de Bruno Dumont. Em uma resenha crítica7veiculada em umsite de cinema no ano de estreia do filme, o cineasta e crítico de cinema Pablo Gonçalo nos sugere que a escultura estaria presente em algumas escolhas cênicas de Dumont. Uma percepção que me parece tão acertada a ponto de pensar que Gonçalo muito conhecimento da biografia de Camille Claudel, pois a escultora teve na natureza e nas rochas de Villeneuve, ao longo da infância e adolescência, sua maior fonte de inspiração. Ele destaca que: É curioso, assim, constatar que o filme não mostra nenhuma escultura de Camille Claudel. No entanto, a escultura, como arte, é arquitetada de forma sutil, entre as rochas e as pedras. Os planos gerais, por exemplo, realçam ora as rochas de uma montanha, num passeio de Camille, ora as pedras imponentes de uma igreja, logo após o rosto de Paul Claudel ser apresentado. Como figuras, os personagens de Dumont são envolvidos por esses tecidos pétreos, por esse ambiente (GONÇALO, 2013).

Pergunto-me para quem o filme seria mais impactante: para uma pessoa iniciada no assunto, já conhecedora da biografia da artista ou se para uma pessoa que o toma como primeira referência a respeito dela. Desconfio quepode chocara qualquer um desses espectadores, pela devida ênfase que o diretor dá ao ambiente em que

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CamilleClaudel se encontra e à pressão que lhe é imposta em tempo integral. Quanto ao tom de realidade que Dumont parece perseguir, ele se esmera ao colocar em cena mulheres quepossuem distúrbios mentais verdadeiros, como uma forma de mostrar o quão heterogêneos podiam ser os grupos de pacientes internados nos hospitais psiquiátricos da época. O diretor não nos apresenta nenhuma interna em estado mais ou menos comparável ao de Claudel, retratando-a como a mais lúcida entre elas. Os distúrbios psiquiátricos da artista são sutilmente expostos ao longo do filme. Uma das passagens mais emblemáticas nesse sentido é quando a personagem está cozinhando a própria comida com medo de ser envenenada por ordens do “bando de Rodin”. Também percebemos esses sintomas nas duas falas mais longas da personagem, verdadeiros desabafos. Primeiramente, no diálogo com o médico, no qual ela começa relatando seu desespero por não saber o porquê de sua internação e da ausência da família, começando logo a falar do envolvimento de Rodin com sua reclusão. A resposta do médico a ela parece querer nos provar que se trata mesmo de um delírio: “mas vocês estão separados há mais de vinte anos...”. Em outra fala, na ocasião da visita do irmão, ela repete a suposta perseguição que sofria de Rodin e ainda acusa um amigo de Paul Claudel de executar os mandos do escultor contra ela, roubando seus projetos e esboços. A narrativa é marcada pelo predominante silêncio de Camille Claudel, que só é quebrado por raros e curtos diálogos – os mais longos já foram citados – e por duas sérias crises de choro. A primeira quando não consegue escrever uma carta contando de sua situação e outra quando assiste a um ensaio das internas para uma peça sobre Don Juan, onde parece se reconhecer em dado momento das falas e abandona da sala aos prantos. Nas duas situações, ela é interrompida por alguma interna; o mesmo acontece em suas refeições ou quando se dirige ao pátio do asilo para tomar ar fresco. Tais cenas deixam evidente a situação aflitiva e antagônica que é ficar isolada, afastada do seu mundo e das pessoas que fazem parte dele e, ao mesmo tempo, não poder ficar de fato sozinha, tendo negados tanto o sossego quanto a privacidade mínima. Contrapondo-se ao silêncio de Camille Claudel está seu irmão, a quem é dado bastante espaço na narrativa. Na maior parte dos casos, as falas de Paul Claudel nos são dadas através da leitura das cartas que escrevera. Duas principais: a que conta a uma amiga a respeito de um possível aborto da irmã e outra, uma carta remetida a uma autoridade religiosa, na qual pergunta sobre a possibilidade de exorcizar sua irmã à distância, por acreditar que ela seria vítima de uma possessão e não de loucura.

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Dar voz a Paul Claudel, especificamente nesse recorte temporal, foi muito importante. Ao invés do irmão aflito e culpado por ter de internar a irmã, apresentado no filme de 1988, temos aqui um Paul Claudel nada misericordioso. Sua convicção religiosa parece enriquecer o julgamento que impõe à irmã. Ele parece certo de que era aquilo o que ela merecia, não hesita, nem se comove com o desespero da irmã. Também é marcante a frieza e o orgulho que vemos quando ele fala por longos minutos de si próprio, de sua trajetória, de sua iluminação espiritual: parece mais prazeroso falar de seu sucesso quando comparado ao triste fim da irmã. Bruno Dumont, ao que parece, preferiu retratar Paul Claudel como o irmão vitorioso que decide o destino da irmã, mediado pelos próprios interesses – como escritor e como diplomata ele jamais poderia ter seu nome vinculado a um familiar psicologicamente desequilibrado, o que pode explicar suas raras visitas. Ao encerrar o filme com Camille Claudel se despedindo do irmão com ar de desistência, na aparente certeza da incompreensão, afirmando que irá tomar sol, pois isso a acalmava, o diretor está antecipando o que seriam os quase trinta anos dali em diante. Impedida de voltar ao convívio da família e da sociedade, apesar de todas as tentativas e dos avais médicos, a escultora não parece ter tido outra escolha senão resignar-se à sua própria condição, silenciando-se cada vez mais. É importante notar, todavia, que para além dos limites de ambos os filmes comentados neste artigo, resignação pode não ser a palavra mais adequada para referirse a Camille Claudel em qualquer sentido. Uma das questões finais surgidas depois da longa imersão que fiz em suas biografias foi será que Camille Claudel seria vista de forma diferente se ela tivesse continuado a produzir depois de internada? Quero dizer, será que seria menos vitimizada? Será que sua produção teria mais relevância? Tendo a acreditar que sim, mas é justamente nesse ponto que percebemos sua lucidez e sua força. Além de atravessar um período tão longo em completo isolamento do convívio familiar e social, ter se negado a esculpir sob aquelas condições parece ter sido sua maior comprovação de resistência.

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Figs. 1 e 2 - Capas DVD Camille Claudel, edições brasileira e francesa, respectivamente.Imagem divulgação.

Fig; 3 - capa DVD Camille Claudel 1915.Imagem divulgação.

Fig. 4 – Camille Claudel em Montdevergues, 1929. Fotografia: William Elborn.

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Camille Claudel. Dir.: Bruno Nuytten. Prod. Bernard Artigues, Isabelle Adjani, Christian Fechner. França: New Way Filmes, 1988. 164 min. DVD. 2 Jessie Lipscomb (1861 – 1952), escultora, amiga e parceira de ateliê de Camille Claudel. 3 Alfred Boucher (1850-1934), escultor e primeiro mestre de Camille Claudel. Boucher foi um grande incentivador da mudança da família para Paris. Em decorrência de uma viagem à Itália, pede a Rodin que visite o ateliê de Claudel e Lipscomb regularmente, assumindo-as como suas alunas em sua ausência. 4 Mathias Morhardt (1863-1939), crítico de arte, um dos primeiros a escrever sobre a produção de Camille Claudel, de acordo com o filme de Nuytten. 5 A citação não será referenciada conforme orientações dispostas no edital por se tratar de um texto de autoria coletiva, sendo a proponente deste artigo uma das autoras do texto referenciado. 6 Camille Claudel 1915; direção: Bruno Dumont; roteiro: Bruno Nuytten e Marylin Goldin; elenco: Armelle Leroy-Rolland, Emmanuel Kauffman, Jean-Luc Vincent, Juliette Binoche, Marion Keller, Robert Leroy; fotografia: Jean Bréhat, Muriel Merlin, Rachid Bouchareb; 96 minutos. 7 GONÇALO, Pablo. Camille Claudel 1915, de Bruno Dumont: Um Rosto esculpido na sombra. Disponível em: <http://www.revistacinetica.com.br>. Acesso em 10 de novembro de 2015.

Referências: PARIS, Reine-Marie.Camille: The Life of Camille Claudel, Rodin's Muse and Mistress. New York: Henry Holt&Co, 1988. Filmografia: Camille Claudel. Dir.: Bruno Nuytten. Prod. Bernard Artigues, Isabelle Adjani, Christian Fechner. França: New Way Filmes, 1988. 164 min. DVD. Camille Claudel, 1915. Dir.: Bruno Dumont. Prod.: RachidBouchareb. França: 3B Productions, 2013. 91min, DVD.

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ENTRE A REPRESENTAÇÃO E O SENTIDO: REFLEXÕES A RESPEITO DA RELAÇÃO ENTRE FOTOGRAFIA E REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

Arôdo Romão de Araújo Filho João de Souza Lima Neto

Resumo: O presente estudo visa refletir a respeito da relação entre fotografia e representação de realidade. A partir de uma revisão bibliográfica, que leva em consideração desde aspectos mais técnicos da fotografia como aqueles presentes em Santaella e Nӧth (2012), até considerações mais sociológicas/filosóficas como aquelas apresentadas por Sontag (2004), foram traçados alguns “caminhos” através dos quais a foto passa, em algum nível, por um tipo de manipulação. Dessa maneira se torna possível aproximar o artefato fotográfico muito mais de uma plataforma de expressão do que de uma possível repetição do real (vivido). Palavras-chave: fotografia; representação; realidade. Introdução A arte contemporânea aponta novos caminhos para a criação e também para o entendimento de uma obra artística, uma vez que desconstrói o monopólio de técnicas de expressão tradicionais, levando artistas e espectadores a repensarem seus conceitos sobre arte. A partir do momento em que estas novas possibilidades são consideradas, entram em discussão não apenas os novos suportes para a arte, mas também questões relacionadas à autoria de uma obra, à relação com o mercado e os novos papéis do espectador. O final da década de 60 é um grande marco na história da arte contemporânea. Artistas de diversos segmentos desafiaram os conceitos tradicionalistas de arte fugindo de um duopólio existente, como aponta Michael Archer: No início dos anos 60 ainda era possível pensar nas obras de arte como pertencentes a uma das duas amplas categorias: a pintura e a escultura. As colagens cubistas e outras, a performance futurista e os eventos dadaístas já haviam começado a desafiar este singelo “duopólio”, e a fotografia reivindicava, cada vez mais, seu reconhecimento como expressão artística. [...] Depois de 1960 houve uma decomposição das certezas quanto a este sistema de classificação. (2008, p.01)

Esta decomposição do sistema permitiu o desenvolvimento de diversas formas de arte como, por exemplo, a Performance e a Instalação, que ressaltavam a efemeridade da arte e

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quebravam a ideia da obra como produto para compra e venda; ou a fotografia, que pairava em uma linha tênue entre arte e técnica. Hoje, mais do que nunca, o mundo vive imerso em imagens geradas pelas mais diferentes fontes, e, como não poderia ser diferente a arte reflete e representa esse “novo” mundo, ou esses novos modos de vê-lo. Segundo Santaella e Nӧth: Imagens têm sido meios de expressão da cultura humana desde as pinturas préhistóricas das cavernas, milênios antes do aparecimento do registro da palavra pela escrita. [...] Hoje, na idade vídeo e infográfica, nossa vida cotidiana – desde a publicidade televisiva ao café da manhã até as últimas notícias no telejornal da meia-noite – está impregnada de mensagens visuais [...]. (2012, p.13).

Dessa forma a arte não poderia ser imune a esta avalanche de informações visuais, e o caminho escolhido pelos artistas contemporâneos para se expressar muitas vezes foge do tradicionalismo, o que provoca discussões em torno da classificação de suas obras. Na história da Arte Contemporânea essas discussões, em torno do que seria considerado ou não Arte, contempla as mais diversas plataformas, e dentre elas está a fotografia. Segundo Philippe Dubois (ANO) essa questão da fotografia ser considerada ou não Arte é ultrapassada: “a questão é doravante saber se não foi antes a arte (contemporânea) que se tornou fotográfica.” (1993, p.253). O autor ainda destaca a presença da fotografia – ou de características pertinentes a ela – em movimentos artísticos ao longo da história. A começar pelo próprio pictorialismo, que tentava aproximar a foto da pintura, passando por artistas abstracionistas (à saber El Lissitsky e Malévitch da União Soviética) que aproximavam suas obras da fotografia aérea, até chegar nas (foto) montagens dos dadaístas e surrealistas, e na Pop Art. A partir do panorama traçado por Dubois é possível compreender a fotografia como fonte de expressão que se desenvolveu ao longo da história assim como outras manifestações artísticas. Um dos motivos que levam a fotografia a dividir opiniões quanto à sua classificação enquanto Arte foi a constante comparação com a pintura que tentava representar a natureza com o máximo de fidelidade possível. Essa comparação acaba por provocar questionamentos envolvendo o poder da fotografia de representar a realidade. No século XIX pensadores defendiam a ideia de que a fotografia era apenas uma cópia da realidade “capturada”, e essa impressão de realidade de alguma forma ficou incrustada no imaginário social até os dias de hoje. Susan Sontag cita alguns fatos histórico-sociais que apontam um caminho para a compreensão desse fenômeno:

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Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram uma foto. Numa das versões de sua utilidade, o registro da câmera incrimina. Depois de inaugurado seu uso pela polícia parisiense no cerco aos communards, em junho de 1871, as fotos tornaram-se uma útil ferramenta dos Estados modernos na vigilância e no controle de suas populações cada vez mais móveis. [...] Uma foto equivale a uma prova incontestável de que uma determinada coisa aconteceu. (2004, p.17)

E é exatamente assim que uma fotografia é encarada por muitos, como uma prova, um documento. Ainda a respeito desta interação entre fotografia e cotidiano é possível observar na obra de Sontag uma perspectiva importante para complementar esta relação estabelecida. Segundo a autora, a fotografia tornou-se parte fundamental dos ritos sociais,

como

casamentos e viagens, por exemplo. As fotos aparecem como testemunhas, provas de que tais eventos realmente ocorreram. O ato de fotografar estabelece uma relação voyerística crônica com o cotidiano do homem. (Sontag, 2004) Este conceito de artefato de registro, e ao mesmo tempo de instrumento que constrói sentido, permeia as relações da fotografia com a sociedade. No decorrer da história foi atribuída à foto toda essa responsabilidade de carregar e representar o real. E isto pode ser facilmente observado em registros íntimos, documentos ou mesmo nas imagens veiculadas na imprensa, o caráter de registro da fotografia corriqueiramente se sobressai. A

forte

presença

das

mensagens

visuais

no

cotidiano

da

sociedade

contemporânea é indiscutível. E neste campo a fotografia assume, a partir das mais diferentes vertentes, papel fundamental na comunicação e expressão do ser humano. A partir deste panorama, torna-se necessária uma reflexão mais aprofundada com o objetivo de compreender até que ponto esta alcunha de fragmento de realidade pode ser de fato associada à fotografia. O senso comum acredita nessas imagens geradas, e estas, por sua vez, buscam maneiras de se fazerem cada vez mais dignas desta fé.

Entre a Representação e o Sentido Ao passo que a fotografia se torna parte do cotidiano social, os questionamentos em torno do seu poder de representação também se tornam constantes. Os diferentes estudos e aplicações da técnica fotográfica revelam especificidades importantes para a compreensão do aparato que constrói suas imagens a partir de intervenções antes, durante e depois da captura.

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Uma vez inserida no campo da Arte, a fotografia passa a ser item frequente nas galerias mundiais. Em 1965, época em que efervesciam as manifestações de Arte Contemporânea, o artista Joseph Kosuth em sua obra “Uma e três cadeiras” (Figura 01) utiliza a foto como uma das maneiras de representar o objeto central da sua peça. A obra é constituída por três formas de apresentação/representação de uma cadeira: uma foto em preto e branco, uma fotocópia ampliada da definição de dicionário da palavra “cadeira”, e o objeto cadeira.

Figura 01: Joseph Kosuth – Uma e três cadeiras

Michael Archer, ao analisar a obra de Kosuth, destaca a relação proposta entre referente e representação na fotografia. Em “Uma e três cadeiras” o autor afirma que: Usualmente os dois elementos fixados na parede seriam vistos como fatos secundários, apoiando e descrevendo o objeto principal, a cadeira. O que a peça pergunta, no entanto, é se podemos nos dar por satisfeitos com isso, ou se, de fato, a fotografia e o texto fotocopiado não existem como cadeiras. Até que ponto a fotografia pode ser confiável como evidência de um estado de coisas? Ela certamente parece ser uma imagem da cadeira real diante de nós, mas pode muito bem ser a de outro item idêntico da mobília. (2001, p. 82)

O autor questiona o respaldo de uma fotografia enquanto representação, questiona o quanto uma foto é passível de confiança enquanto testemunha da fidelidade do referente em relação à realidade. Dessa maneira, Archer coloca a fotografia em uma posição que vai de encontro ao senso comum, que atribui ao artefato fotográfico a alcunha de fragmento de realidade. Partindo dos questionamentos levantados por Archer, é possível observar que no ato de fotografar, e em tudo mais que o permeia, há uma série de fatores que permitem manipulação ou contribuem para que ela aconteça nos mais diferentes níveis. No presente 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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estudo são destacados quatro caminhos a fim de refletir os diferentes momentos onde a técnica/artefato fotográfica(o) se distancia da realidade, partindo de pesquisas que envolvem não apenas a fotografia especificamente, mas também a imagem e a obra de arte de uma maneira geral, uma vez que a foto não se encontra em nenhuma instância fora do domínio das discussões das duas áreas citadas. O primeiro caminho está ligado aos aspectos técnicos da fotografia; o segundo, destaca a importância do fotógrafo enquanto produtor de sentido; em seguida o estudo se dedica ao espectador e sua condição de receptor e criador de significados; e por fim a pesquisa visa contemplar as influências exercidas pelo lugar onde obra/fotografia está inserida. Santaella e North, observando aspectos técnicos da fotografia a partir de Gubern (1974), citam uma lista de características que distanciam a foto do seu referente. Segundo os autores, “(a) perda da terceira dimensão, (b) limite dado pela moldura, (c) perda do movimento, (d) perda da textura e da estrutura granular da foto, (e) mudança de escala e (f) perda dos estímulos não visuais” (2012, p.111), seriam alguns dos aspectos mais óbvios que não permitem que a fotografia carregue consigo a complexidade do real. Vilém Flusser, por sua vez, destaca a relação do aparelho fotográfico com o fotógrafo. Este que, longe de ser apenas um operador do equipamento, atribui sentido às fotos que produz. Analisando as imagens técnicas, Flusser afirma que existe algo mais entre imagem e significado, que seria: um aparelho e um agente humano que o manipula [...]. Mas tal complexo “aparelho-operador” parece não interromper o elo entre a imagem e seu significado. Pelo contrário, parece ser canal que liga imagem e significado. (2002, p.15)

Ou seja, a técnica fotográfica é colocada aqui como um meio através do qual o fotógrafo cria suas mensagens, e não como uma plataforma onde a realidade pode ser transposta. Outro autor que destaca a parcialidade do fotógrafo é Boris Kossoy, com suas teorias do filtro cultural e das duas realidades na fotografia. O autor encara o fotógrafo como um filtro cultural que utiliza seus sentimentos e conhecimentos para representar um recorte de realidade a partir da tecnologia em suas mãos. Segundo o autor, “O registro visual documenta [...] a própria atitude do fotógrafo diante da realidade; seu estado de espírito e sua ideologia acabam transparecendo em suas imagens” (2002, p. 42). Além disso, Kossoy diferencia dois tipos de realidades presentes na fotografia. A primeira realidade está ligada ao assunto, diz respeito apenas àquilo que é pertinente ao que 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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será fotografado. Esta realidade não pode ser captada no momento em que se contempla a fotografia. A segunda realidade por sua vez, está ligada diretamente à representação, aquilo que está representado na imagem, e ao contrário da anterior se trata exatamente daquilo que pode ser contemplado na foto (KOSSOY, 2002). Nestas duas definições, o autor separa claramente “o que é fotografado” daquilo que “está na fotografia”, entendendo a foto como o resultado do processo de leitura do fotógrafo. Além disso, é possível distinguir também o momento da criação, quando o fotógrafo contempla o assunto, e o da interpretação, quando a fotografia está pronta e pode ser “entregue” às percepções da audiência. Os processos de criação e interpretação podem caminhar para um lugar comum. Mas, como fotógrafo e receptor podem partir de pontos de vista, repertório e vivências distintas, as interpretações fogem do controle de quem criou a imagem, que, por sua vez, passa a “pertencer” à quem se apropria dela no momento da interpretação. Uma fotografia, independente da sua carga de realidade e das intenções de quem a produz, ainda está sujeita às interpretações daquele que a recebe. Este se caracteriza como outro caminho para refletir o quão plural podem ser as mensagens contidas em uma imagem. Em 1957 Marcel Duchamp já analisava até que ponto a participação do espectador é importante na criação artística. Ele criou o termo coeficiente de arte para definir que em uma obra há a participação do artista e também do espectador, cada uma com um coeficiente específico. “Nessa medida, a obra é realizada duas vezes: primeiro pelo artista, depois pelo observador” (2006, p.35), afirma Cristina Freire. A partir da definição de coeficiente de arte, Duchamp repensa a figura do espectador, valorizando seu poder de interpretação e respeitando suas peculiaridades. Devido a grande diversidade de público que compõe a audiência de uma obra em exposição, ou de uma imagem publicada em um periódico, por exemplo, deliberar acerca de um perfil de espectador se torna no mínimo restritivo. Definir o espectador não parece ser tarefa fácil, e tão peculiar quanto é cada indivíduo, o são também as relações que ele pode desenvolver com uma imagem. Segundo Jacques Aumont, o espectador: [...] não é de definição simples, e muitas determinações diferentes, até contraditórias, intervêm em sua relação com uma imagem: além da capacidade perceptiva, entram em jogo o saber, os afetos, as crenças, que, por sua vez, são muito modelados pela vinculação a uma região da história (a uma classe social, a uma época, a uma cultura). (1993, p.77)

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O autor explicita que a relação do espectador com a imagem trafega por vias complexas. Os signos presentes na linguagem não verbal podem criar estímulos diferentes em cada pessoa, levando em consideração suas vivências culturais e sociais. Adentrando nos estudos que envolvem as Teorias da Comunicação, especificamente da Recepção, é possível destacar uma série de fatores que envolvem o processo de significação. Acerca desta temática, Luís Mauro Sá Martino afirma que: A recepção é um processo contínuo de atribuição de sentidos [...] As variáveis incluídas no processo tornam impossível dizer quais são os marcos de fixação de sentido em um universo de signo em constante transformação. (2009, p.177)

Ainda a respeito deste processo, Martino afirma que o receptor/espectador está sujeito a diversas variáveis relacionadas a seu cotidiano, intelecto e formação. Estas variáveis são definidas como mediações. Tomando como exemplo a televisão, o autor observa que: Diante da tela, a pessoa está carregada de seus valores, ideias e gostos. Tem expectativas a respeito do que vai ver, já viu outros programas. Está feliz, triste, com sono, preocupada, sozinha ou em família, no campo ou na cidade. [...] As mediações atuam decisivamente na recepção da mensagem. Não se trata apenas de “receber” uma mensagem, mas reconstruí-la a partir das mediações. (2009, p.111)

Sá Martino destaca diversos fatores que podem interferir no processo de recepção, como o humor do indivíduo, suas referências de outros produtos semelhantes e o lugar/espaço onde ele está tendo contato com a obra. Fernando Tacca, embebido nas teorias de Jacques Aumont, também se dedica a estudar como se dá a recepção de imagens. O autor diferencia Imagem Natural e Imagem Mental, dois conceitos que ajudam a refletir como uma imagem pode ser interpretada. Segundo Tacca, toda imagem colocada em contato com um indivíduo passa por dois processos inseparáveis. O primeiro está ligado ao funcionamento do organismo humano, ou seja, o contato com a imagem através dos órgão visuais. Estes, não se limitam apenas aos olhos, uma vez que imagens podem ser criadas através de estímulos sonoros, táteis, olfativos e gustativos. Estas imagens Tacca define como Imagens Naturais. O segundo processo dá origem à Imagens Mentais e está ligado ao contexto sociocultural. Ele (re)cria a(s) imagem(ns) a partir de representações codificadas da realidade pautadas pelas “relações sociais, pela logicidade do verbal ou por uma logicidade própria da visualidade” (2005, p.11). Ao diferenciar estes dois processos, Fernando Tacca não só leva em consideração os diferentes estímulos sensoriais que podem estar atrelados à uma 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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imagem, como também todas as interferências socioculturais que vêm sendo discutidas. Outro fator marcante no processo de recepção de uma imagem está ligado ao lugar em que ela está inserida. As relações que podem ser propostas dentro do sistema lugar-obra- espectador são as mais diversas possíveis. O espaço pode complementar o sentido da obra estando completamente inserido nas intenções do produtor, ou o contrário; pode interferir – positiva ou negativamente – na percepção da audiência, e assim por diante. A respeito desta relação, Phillipe Dubois afirma que: Em presença da obra exposta numa parede da galeria ou nas páginas de uma publicação, o espectador encontra-se interpelado pelo dispositivo. Ao mesmo tempo que permanece fisicamente exterior à própria obra (ele não está integrado nela, não pode nela intervir materialmente, permanece um observador), está em condições de construir intelectualmente jogos de sentidos entre as fotos de acordo com as balizas que lhe são fornecidas pela montagem. (1993, p.293)

O espectador entra em contato com as mensagens que a obra, e tudo que a permeia, lhe oferecem. Dessa maneira, ao se deparar com uma imagem publicitária de um outdoor, um editorial publicado em uma revista, ou uma exposição em uma galeria, o público há de estabelecer diferentes relações para cada situação. Tratando especificamente da fotografia, Susan Sontag entende as diferenças de sentido que um espaço pode empregar na comunicação. Segundo a autora: Como cada foto é apenas um fragmento, seu peso moral e emocional depende do lugar em que se insere. Uma foto muda de acordo com o contexto em que é vista [...] [as fotos] parecerão diferentes numa cópia de contrato, numa galeria, numa manifestação política, num arquivo policial, numa revista de fotos, numa revista de notícias comuns, num livro, na parede de uma sala de estar. Cada uma dessas situações sugere um uso diferente para as fotos mas nenhuma delas pode assegurar o seu significado. (2004, p.122)

A autora evidencia a influência do espaço ocupado pela foto, e também do lugar em que o espectador se encontra quando a contempla, sem esquecer que no processo de atribuição de sentido existem muitas outras variáveis. Refletindo o ambiente de uma exposição, por exemplo, Santaella e Noth citam um estudo de Tribault-Laulan (1971), e afirmam que “imagens numa disposição uma ao lado da outra são relacionadas semanticamente por uma lógica da atribuição” (2012, p.60), e complementam destacando que “o contexto da imagem não precisa ser necessariamente verbal. Imagens podem funcionar como contexto de imagens” (Ibidem,idem).

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Tendo tudo isto em vista, se torna possível observar que a fotografia se trata de um processo constante de atribuição de sentidos. E, embora os caminhos de reflexão tenham sido apresentados um a um, de maneira categorizada (aspectos técnicos, fotógrafo, espectador, lugar), não significa que exista uma ordem de construção de sentido a ser respeitada. Os processos acontecem – ou não – de acordo com suas condições específicas. A técnica fotográfica possui uma lógica visual e conceitual que está atrelada a variantes diversas do seu processo físico-químico. Para além de minúcias técnicas, há um agente que controla o fluxo de informações que passa pela câmera, e é impresso na fotografia; há também um espectador que transcende a aparente passividade frente a uma imagem, que resignifica aquele conteúdo a partir de uma gama infinita de situações; e há ainda a influência exercida pelo espaço que, em constante mutação, pode construir contextos e ambientes distintos para as interpretações da audiência.

Considerações Finais A partir do estudo apresentado foi possível observar a fotografia sob diferentes perspectivas. Seja como meio de expressão e/ou de registro, a foto se faz presente nos processos de comunicação do homem, cercada de funções a ela atribuídas, nas mais diversas esferas sociais. E mais, a fotografia tende a transgredir estes papéis designados, desafiando os limites espaço-temporais, seja na tentativa de capturar um instante, seja no seu poder de reprodução quase que infinito. Os retratos dos álbuns de família por exemplo, se tornam não apenas ferramenta de registro para aqueles que puderam se ver representados em um papel, mas também de fonte de pesquisa para gerações futuras; fotos de cenas de crimes se tornam evidências para uma investigação; fotografias de momentos históricos, se tornam obras de arte em um mundo imerso em mensagens visuais. De registro pessoal à expressão artística em um museu, o artefato fotográfico aparece não apenas como mídia, mas como linguagem de uma geração. A fotografia é representativa, é descritiva, aproxima o espectador da visão do fotógrafo. Permite, através de suas lentes de aumento, que o mundo seja representado pela visão de quem opera o equipamento. E, no exato momento em que o fotógrafo exibe seu olhar sob o que o cerca, ele está transpondo o real, expandindo a visão, abrindo portas para conectar o espectador com novas ou diferentes maneiras de ver.

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O fato é que a ação de fotografar está impregnada de manipulações. Enquadrar, capturar, representar, editar uma cena faz dela não um fragmento de realidade, mas sim uma representação feita pelo fotógrafo de um momento que ele criou. A tentativa de capturar um instante do real falha no exato momento em que se aperta o obturador. O instante não foi capturado, ele foi perdido. Não está mais presente, está representado.

Referências Bibliográficas: ARCHER, Michael. Arte contemporânea: Uma história concisa. Trads. Alexandre Krug e Valter Lillis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. AUMONT, Jacques. A Imagem. 16 ed.Trad. Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro. Campinas, SP: Papirus, 1993. CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: Uma introdução. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins, 2005. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. 14. ed. Campinas, SP: Papirus, 1993. FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. Cotia: Ateliê Editorial, 2002. MARTINO, Luis Mauro Sá. Teoria da Comunicação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2011. SANTAELLA, Lúcia; NӧRTH, Winfried. Imagem: Cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2012. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. TACCA, Fernando. Imagem fotográfica: Aparelho, representação e significação. Psicologia & Sociedade. São Paulo. Ano 3. n 17, pp. 09-17. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v17n3/a02v17n3.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2014. Referências de Imagens Figura 01: [sem autor]. Uma e três Cadeiras. 1 fotografia, p&b. Disponível em: <

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http://pead.faced.ufrgs.br/sites/publico/eixo3/artesvisuais/bloco_II/tematica_5/b2_t5_45.html > Acesso em: 15 dez. 2014.

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DESMATERIALIZAÇÃO: DA FOTOGRAFIA À INFORMAÇÃO Camila Zappe

Resumo: No decorrer desta escrita desenvolve-se uma reflexão teórica a partir de conceitos atribuídos à fotografia. Investigações envolvendo as relações de presença e veracidade do registro fotográfico complementam a construção da informação na contemporaneidade. Este breve estudo aventurou-se a reforçar as discussões em torno da complexa cadeia visual que paira sobre o universo fotográfico. Palavras-chave: Fotografia; Informação; Cenários inacessíveis. Abstract:In the course of writing develops a theoretical reflection from concepts attributed to photography. Investigations involving the relationship of presence and veracity of the photographic record complement the construction of information nowadays. This brief study ventured to strengthen discussions around the complex visual chain that hangs over the photographic universe Key words: Photography; Information; inaccessible scenarios.

Em acordo com a teoria de Vilém Flusser a fotografia edifica-se por meio de quatro conceitos-chave, imagem, aparelho, programa e informação (1998, p. 92). Em primeira instância, são as imagens que mediam as relações entre o homem e o mundo. As imagens representam o mundo que não pode ser acessível aos olhos imediatamente, possibilitam aos homens visões de onde ele não esteve, apresentam instantaneamente o inacessível aos olhos humanos. As imagens sustentam as relações entre o homem, o ato fotográfico e o mundo. O elemento que media as relações entre o homem e o ato fotográfico é o aparelho, produtor de imagem, que cria, preserva e transmite informações. Nesse sentido, Flusser afirma que “as imagens técnicas são represas de informação a serviço da nossa imortalidade” (2008, p. 32). As cenas do mundo no decorrer do ato fotográfico passam por programas e transformam-se em imagens técnicas. Desta forma, o universo fotográfico compõe-se através de uma complexa cadeia visual, a causa deste ato é o mundo a ser representando e as imagens técnicas seriam o resultado deste trânsito, ou seja, o último efeito deste sistema. As imagens técnicas, graças aos processos ópticos, químicos e mecânicos, imprimem sobre as superfícies impressões do mundo, fazem surgir as imagens que 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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permitem-nos acesso ao inalcançável. Acerca da técnica fotográfica, Edmond Couchot (2003, p. 23) garante que é o resultado deste processo que abre ao homem horizontes antes desconhecidos, é o que dá acesso a um armazém infinito de imagens e signos, enriquecendo o universo do visível. Mais do que automatizar o processo de captura de cenas do mundo e caracterizar-se por representar o real a filosofia da fotografia mostra-nos a presença do pensamento conceitual abstrato neste ato. Afinal, com Flusser (1998, 57-60) compreende-se que a fotografia além de revelar, também abstrai. As cores captadas pelo fotógrafo são primeiro abstraídas para depois se reconstituírem. A fotografia em preto e branco é um bom exemplo para elucidar esta questão, pois não existe um mundo em preto e branco, estas são imagens de teorias. Branco é a presença de todas as cores e preto a ausência, ou seja, são conceitos ópticos e, portanto resultam em imagens de teorias. O mesmo acontece através de uma análise das cores, o azul do céu do mundo dos homens é um, o capturado e processado pelo aparelho durante o ato fotográfico é outro e o impresso sobre a superfície representa um azul codificado pela máquina. O conceito de azul apoia-se no azul percebido pelo olho, contudo entre a cor do mundo real e a cor fotografada existem inúmeras codificações. Nesse sentido, o teórico Flusser (1998, p. 60) ressalta que “quanto mais fiéis se tornarem as cores das fotografias, mais estas serão mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade teórica que lhe deus origem”. A partir desta reflexão a fotografia assume outras competências, além de decifrar cenas e ideias, decifra conceitos e códigos, o autor conclui que “o que vale para as cores vale, igualmente, para todos os elementos da imagem. São, todos eles, conceitos transcodificados que pretendem ser impressões automáticas do mundo lá fora”. A fotografia transforma conceitos em cenas e transcodifica teorias em imagem, ou seja, não é uma cópia fiel do mundo, mas uma representação dele. Isto associa-se ao Cachimbo pintado pelo surrealista belga René Magritte. Na obra “La Trahison des Images” – A Traição das Imagens – Magritte propõem com a pintura de um cachimbo realista junto a frase “Ceci n’est pas une pipe” uma reflexão em torno do paradoxo da representação. Neste sentido, não há uma cópia fiel do mundo. Afinal, a obra não nos mostra um cachimbo, mas um retrato fiel do mesmo, em ambos há teor de verdade, contudo são duas realidades distintas. A realidade fotográfica além de programar conceitos exerce sua função mais importe ao representar o mundo e possibilitar aos homens visões do mundo. O universo 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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fotográfico permite acesso a cenas inacessíveis e preserva as passageiras. Dizem-se cenários inacessíveis, pois não há homem que já tenha visto todos os lugares do mundo, a fotografia torna isso viável. Desde o advento fotográfico é possível, sem deslocar-se, ter acesso a informação e a incontáveis imagens. Além de dissipar conhecimento a fotografia preserva as cenas passageiras, o ato fotográfico devolver a vida aquele momento em que faziam-se presentes sujeito e objeto. O olho humano aproxima-se do contexto fixado na superfície e revive aquele instante de presença. Nesta direção Couchot (2003, p.36) declara que com o surgimento da tecnologia na arte o fotógrafo está sempre submetido à presença real. Nos movimentos artísticos anteriores ao advento fotográfico esta presença não era um elemento necessário, na pintura, por exemplo, objetos, pessoas e paisagens podiam ser dispensados, o artista projetava diretamente sobre a tela o referencial gravado em seu imaginário. Posto isto, o ato fotográfico registra o tempo, possibilita ao observador revisitar o presente que já foi vivido. Couchot reconhece que a “fotografia resulta da interface que se estabelece entre o tempo do observador, que viveu no momento que em que vê imagem, e o tempo da imagem no momento que ela é engendrada pelo cálculo” (2003, p. 169), consequentemente este elemento de presença é repassado e revivido pelo observador que tem acesso à captura fotográfica. À vista disso, a fotografia assume carácter verdadeiro, é fiel em relação a equivalência do que é capturado fotograficamente e fidedigna a configuração do instante em que encontravam-se reunidos sujeito, objeto e imagem. Deste modo por meio do registro fotográfico a presença pode ser percebida e revivida. Somado à automação da representação a automação da reprodução possibilitou ao ato fotográfico dissipar a presença, a verdade, a informação. A automação da reprodução transformou a fotografia em um elemento onipresente na sociedade. Os cenários incessíveis e passageiros registrados e preservados a partir da automação da representação na era fotográfica também tornam-se cenários partilhados. A automação da reprodução alimenta a onipresença de informação através da imagem fotográfica, o acesso é garantido a todos os homens, não há pré-requisitos, nem distinção; esta presença é imposta pela fotografia. Roland Barthes (apud DUBOIS, 1994, p. 72) ressalta ainda que “o que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma única vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais vai poder se repetir existencialmente”. A imagem fotográfica permite milhares de cópias, é

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por excelência multiplicável e responsável por inaugurar a era da reprodutibilidade técnica das imagens. Dubois (1994, p. 72-73) afirma que “o que nos esquecemos com muita frequência é que essa reprodutibilidade opera apenas entre signos” tome-se como exemplo o negativo; todas as fotos são geradas a partir de um único negativo que é, propriamente dito a fotografia original. A captura fotográfica resulta em um negativo exclusivo que comporta as informações de um mesmo objeto, num dado momento, sendo assim, necessariamente a fotografia é sempre singular. Parafraseando o princípio de Impenetrabilidade amparado pela Lei de Newton de Isaac Newton; dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo, assim como, é inexistente a possibilidade de duas fotografias constituíremse ao mesmo tempo, a partir de um mesmo objeto, através dos mesmos ângulos de enquadramento da imagem, compartilhando a mesma intenção do fotógrafo. A repetição do ato fotográfico, embora assuma carácter de verdade e seja nutrida pela presença, é superficial em comparação a fotografia originária do registro reproduzido. A reprodutibilidade impõe um novo modelo de circulação de imagens, o acesso é difuso. O ato fotográfico atua como um comportamento perceptivo unificador e partilhável atinge-se um novo hábito de ordem visual. A evolução das tecnologias no último quarto do século XX acelerou o acesso, tanto a informação quanto ao aparelho, como expõe Couchot (2003, p. 155) “não se trata mais de exatamente de imagens, mas de informação”, o maquinário que surge a partir da revolução industrial não é mais visto como misterioso e inacessível, transforma-se em algo que todos podem adquirir e aprender a utilizar. O aparelho torna-se mercadoria colocada à disposição dos homens e em decorrência disto, a reprodutibilidade aceita tudo. Todos os homens poder obter um aparelho fotográfico, mas poucos assumem o papel de fotógrafo. Pensando na fotografia como informação, cada indivíduo seleciona o que capta e partilha, as intenções que rodeiam o ato fotográfico é que os diferem dos homens comuns. Flusser (2008, p. 72) afirma que “além desse momento revivido, o trânsito entre a câmera e o fotógrafo tem por intenção a construção da significação da sua imagem”, não é analisando o que a fotografia mostra que decifraremos a informação intencionada, mas investigando a câmera fotográfica e a finalidade do fotógrafo. A fotografia é uma automatização de representação do mundo que possibilita a captura automática dos cenários, permite reviver o instante de presença que originou o registro e pode ser reproduzido sob qualquer superfície dissipando a informação intentada 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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ao alcance de todos os homens. Atualmente todos os indivíduos têm acesso aos dispositivos tecnológicos de captura de imagem, portanto, na contemporaneidade o que torna-se relevante é o significado intentado com o ato fotográfico. Flusser (1998, p. 94) complementa este raciocínio ao analisar que o interesse em torno da fotografia “concentrase sobre a informação na superfície das imagens, sendo que o objeto ‘fotografia’ é desprezível”, deste modo a fotografia assume papel de uma imagem informativa e o mais pertinente está contido no que este elemento, resultado do ato fotográfico, comunica. Na arte, como em qualquer outro meio ou situação, o que importa é a informação. A informação que o indivíduo deseja transmitir desde a escolha de uma vestimenta, de um comportamento, de suas predileções. A respeito disto, Flusser (2008, p. 143) concluí que “a ‘arte’ perderá no futuro, seu aspecto astucioso, e passará a ser ‘arte pura’: produção de informação, de aventura [...]”. O registro fotográfico agrega, simultaneamente, produção de sentidos por meio da linguagem e da informação. O condicionamento da imagem fotográfica como signo de representação preserva aos elementos constituintes do ato fotográfico uma condição inerente à informação. A fusão da fotografia à informação permite refletir em torno da linguagem e do registro. É por meio desta combinação que a imagem fotográfica é dotada de singularidade e, simultaneamente, universalidade. A singularidade reserva-se à imagem técnica que detém as codificações do instante fotográfico e a universalidade aproxima-se às representações e reproduções possíveis a partir deste primeiro ato. A fotografia assume seu lugar na contemporaneidade sob qualquer forma de cultura material, desdobrando-se em múltiplas funções, como signo, estética ou documento fotográfico. Ao mencionar signo, procura-se evidenciar a constituição da imagem fotográfica através da ordem visual que soma linguagem, registro e informação. Neste sentido, a alegoria da Caverna, inaugurada por Platão e retomada por Sontag, enquanto metáfora sinaliza que desde as imagens rupestres localizadas nas cavernas de Lascaux, Périgord e Dordonha, na França, assim como no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Brasil, até o lançamento da primeira câmera fotográfica nos Estados Unidos, em 1888, quando instruía “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”, estamos diante de registros visuais e informativos que remetem à linguagem não-verbal. Por isso, são representativos de uma linguagem imagética. (LIMA, 2013, p. 6).

Os registros visuais informativos provindos do ato fotográfico, aqui discutidos, precedem o advento da fotografia, pois a informação vinculada à linguagem não-verbal é percebida em relatos pré-históricos. Estes dados auxiliam a refletir a afirmação de que o ato fotográfico pode também ser atuante e legitimado como agende constituído de 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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informação. A fotografia atua como o viés transformador dos cenários inacessíveis em informação. As cenas que representam o mundo tornam-se partilháveis por meio da imagem fotográfica acessada pelos homens através da reprodutibilidade contemporânea. A construção de uma filosofia da fotografia assemelha-se com a Gemologia. As gemas, constituintes naturais da Terra, surgem despercebidas aos olhos dos homens, assim como a fotografia. Todos tem acesso ao aparelho fotográfico, mas raros conhecem os processos ópticos e mecânicos que envolvem as codificações da imagem técnica. Assim como a joia lapidada que chega ao consumidor, a captura fotográfica é disposta sob a superfície sem que o observador adquira grandes informações referentes a este ato. Além da falta de entendimento do público em relação ao processo de formação de uma gema bruta, existe um mistério presente no interior físico do material gemológico. Anterior a joia lapidada e a gema bruta, a pedra preciosa encontra-se envolta em material geológico visualmente semelhante à uma pedra acinzentada. Para que um escavador tenha conhecimento da qualidade da gema é preciso perfurar a estrutura externa, ou ainda, cortar no meio. Compara-se este ato de aproximação e conhecimento ao maquinário invisível de codificações do aparelho. É preciso adentrar a estrutura, diminuir o distanciamento e romper com o alicerce de observador. Assumamos o papel de participante ativo na produção de informação. O resultado da fotografia é o retrato do mundo e a gema é o resultado de processos do interior do mundo. Os materiais gemológicos são recursos naturais que formam-se no interior da Terra, e só a partir da ação humana com o processo de escavação e comercialização é que estes materiais tornam-se visíveis. Assim como os cenários inacessíveis, as gemas, sem a ação do homem permanecem longe do alcance dos olhos humanos, ambos universos, fotográfico e gemológico, são informações partilháveis a espera da participação.

Referências: COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Ed: UFRGS, 2003. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Papirus Editora, 1994. FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Ed: Relógio D’água, 1998.

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FLUSSER Vilém. O universo técnico das imagens técnicas: elogio da superficialidade. Annablume, 2008. LIMA, Maria de Lourdes; MURGUIA, Eduardo. Fotografia e Informação. 2013

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Resumo: Partindo de questionamentos sobre a atuação do artista enquanto pesquisador, a presente comunicação busca investigar os conceitos de pesquisa, encontro, coleção, busca e desencontro como correlatos e desse movimento como inquietação do artista. Palavras-chave: coleção, pesquisa, artes visuais. Abstract: From questioning artist´s actions meanwhile researcher, the present communication intends to investigate the concepts of research, encounter, collection, search and mismatch as related and this movement as artist´s restlessness. Keywords: collection, research, visual arts. Cildo Meireles, em uma entrevista concedida a Frederico Morais, define aquilo que seria intrínseco a todo artista: “o artista, como o garimpeiro, vive de procurar aquilo que não perdeu” (Morais, 2009, p. 50). Tal lembrança faz referência ao trabalho Resposta (1974), de Cildo (Figura 1), cujo título pode ser lido na parte externa da caixa e, internamente, uma placa grava a frase “Não está aqui o que você procura”. Experienciase aqui sensação semelhante ao desenvolver uma pesquisa. Todo pesquisador cria, ou delimita, um problema que ele mesmo precisa resolver, já o artista-pesquisador cria um problema sem solução, mas que vai apresentar caminhos a serem seguidos.

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Figura 1 - Cildo Meireles, Resposta, 1974

Pensando a pesquisa enquanto busca, Maurice Blanchot, em A Conversa Infinita, reflete sobre esse caminho percorrido: “Encontrar é tornear, dar a volta, rodear. [...] Aqui não existe nenhuma ideia de finalidade [...] Encontrar é quase a mesma palavra que buscar, que diz: ‘dar a volta em’.”(2001, p.63-64). A pesquisa, enquanto ato, é sinônimo de busca e tem como desejo de resultado o encontro – o que seria diferente de seguir objetivos e buscar soluções para problemas. Para tanto, algumas questões podem ser postas em relação ao encontro: O que é? Como acontece? O que o possibilita? O que é possível? Seria achar ou perder? Seria uma relação ou uma justaposição? Acontece pela aproximação ou pela diferença? Blanchot discorre sobre o movimento de circularidade que parte da ação do encontro enquanto relação, troca, diálogo, linguagem e comunicação, passa pelo desencontro e retorna ao ponto inicial da busca. São diversas suas possibilidades: entre pessoas, a partir de um convite; ao se deparar ou esbarrar alguém; no sentido místico ou religioso; amoroso ou no sentido de aproximação e coletividade criada por semelhanças. A partir deste último sentido é possível conceber a ideia do encontro como coleção. Podemos pensar as coleções como modo de ordenação e classificação por meio da delimitação de um assunto ou objetos a serem reunidos: arte, discos, selos e assim por

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diante. Contudo, algumas coleções se estruturam a partir de recortes subjetivos e particulares definidos pelo colecionador. Esse tipo de coleção se constrói como invenção de um mundo pautado pelo desejo ou “necessidade de fixar as ordens que nos permitam sobreviver ao caos da multiplicidade e da diversidade”. (Maciel, 2009, p.16) É por essa perspectiva da coleção, enquanto processo de pesquisa e estruturação da obra, que se configuram trabalhos como Atlas, de Gerhard Richter (Figura 2) e na série de livros O Bairro, de Gonçalo M. Tavares (Figura 3).

Figura 2- Gerhard Richter, Atlas, 2010. Reprodução: Site oficial do artista.

Atlas, de Gerhard Richter possui uma estrutura de organização enciclopédica, tal qual um mural de referências ou uma parede de ateliê, o artista compila uma série de referências para a produção de suas pinturas, como fotografias, postais, recortes de jornais e revistas, testes de cores e rascunhos que coleciona desde a década de1960. Sem nenhum tipo de informação para além das imagens, realidade e ficção se embaralham quando o artista mistura fotos antigas de seu arquivo pessoal com outras coletadas em jornais e revistas. A coleção deixa de ser apenas um conjunto de referências e se configura como obra ao ser editada em livro e exposta em centenas de molduras organizadas por conjuntos.

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Gonçalo M. Tavares em O Bairro, cria uma espécie de história ficcional da literatura demonstrando o desejo em alterar e reconstruir parte dela. O bairro é uma série composta por 10 livros, sendo cada livro a casa de um escritor diferente. Personagens como Sr. Calvino, Sr. Valéry e Sr. Brecht são apresentados por uma escrita inspirada no universo dos mesmos, construindo narrativas que parecem partir do pressuposto “conhecendo Calvino por sua literatura, como seria ele na vida real?”. Tavares cria situações que seriam impossíveis na realidade e, mesmo na ficção, improváveis entre esses escritores que habitam e convivem no mesmo bairro. Aqui, o sentido de coleção se origina no acervo bibliográfico particular do autor a fim de criar uma nova coleção que parte de critérios subjetivos e afetivos.

Figura 3- Rachel Caiano, ilustração para a coleção O Bairro, de Gonçalo M. Tavares, 2005.

Nesse sentido, a coleção (enquanto seleção, organização e reflexão) pode ser

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pensada como uma curadoria, ou seja, uma ação promotora de encontros. Com isso, podemos entender a atividade do artista como de um colecionador e promotor de encontros ao considerarmos que sua atuação não se encerra na produção de obras, mas se expande para toda a rede de articulações que cria ao seu redor. Desse modo, as ações do artista e os cruzamentos das iniciativas realizadas simultaneamente no cenário cultural encontram eco no conceito de artista-etc proposto por Ricardo Basbaum: Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista- terapeuta, artistaprofessor, artista-químico, etc) (2013, p. 167)

O artista, enquanto agente cultural de múltiplas atuações tem suas demais ações refletidas em suas práticas artísticas. Um artista-etc atua e percebe o cenário artístico por meio de sobreposições que se organizam para além do pensamento de um artista-artista. Para além da vida prática no capitalismo, o artista que se desdobra em múltiplas frentes o faz por inquietação e pelo desejo da busca, do encontro. E não só realiza buscas que constroem seus trabalhos, mas também o rodear acontece para que possam estabelecer seu lugar enquanto artista. Nesse movimento, muitos deles passam a entender sua atuação fora dos percursos e espaços tidos como tradicionais por lógicas que ultrapassam as necessidades de validação curatoriais ou institucionais. Como sugere Blanchot, a busca se direciona para o desvio como uma errância, como desencontro com intenção do encontro: - Eis, então, de novo, a estranheza desta volta em direção a... que é o desvio. Quem quer avançar, deve se desviar, o que resulta numa estranha andada de caranguejo. Seria este também o movimento da busca? - Toda busca é uma crise. O que é procurado nada mais é do que o giro da busca, que faz acontecer a crise: o giro critica. (2001, p.72)

Se toda busca parte da inquietação (pois aquele que está em paz não se movimenta) a sensação de desassossego e o desejo de encontrar algo que não está dado, impulsiona o movimento dos artistas rumo às coleções-etc e buscas sem fim Referências:

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BASBAUM, Ricardo Roclaw.Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001. CALDAS, Waltercio. Manual da ciência popular. São Paulo: Cosac Naify, 2007. TAVARES, Gonçalo M. O Senhor Henri e a enciclopédia. Alfragide: Caminho, 2005. ____________________. O Senhor Valéry e a Lógica. Alfragide: Caminho, 2005. ____________________. O Senhor Juarroz e o pensamento. Alfragide: Caminho, 2005. MACIEL, Maria Esther. As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. MORAIS, Frederico. O artista, como o garimpeiro, vive de procurar aquilo que não perdeu. In: SCOVINO, Felipe (org.). In: Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.

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DES-ESPECTA: ARTE CONCEITUAL ENTRE A DITADURA ARGENTINA E A NOVA YORK DEMOCRÁTICA Daniele Machado

Resumo: No fim da década de 1960 a Argentina era submetida mais uma vez a uma ditadura militar e Nova York se consolidava como centro econômico e cultural mundial, e exemplo de democracia diante de regimes totalitários em outras partes do mundo. O Grupo Frontera realiza a instalação Especta nesses dois contextos, re-organizando os dispositivos presentes no funcionamento da TV e questiona a atitude de espectar nesses dois contextos. Palavras-chave: Ditaduras latino-americanas – Arte Conceitual – Novas Mídias Abstract: In the enf of 1960’s the Argentina was under one more time of a military dictatorship and New York was consolidated as a economic and cultural center of the world, and example of democracy against totalitarian regimes in other parts of the world. The Grupo Frontera realized the installation Especta in these two contexts, reorganizing the devices presente in the TV’s work and question about the spectator attitude’s in these two contexts. Key-words: Latinoamerica Dictatorship – Conceptual Art – New Media

Espec ta

é

uma Grupo Frontera, Especta, 1970

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instalação audiovisual realizada pelo Grupo Frontera. O Grupo era integrado pelos argentinos Adolfo Bronowski, Carlos Espartaco, Mercedes Esteves e Inés Gross. O trabalho foi apresentado ao público em 1969 no Instituto Di Tella em Buenos Aires e no Museo de Bellas Artes de Montevidéu. Em 1970 fez parte da exposição Information no Museu de Arte Moderna de Nova York e, demorou 40 anos para que fosse apresentada ao público novamente, na exposição Imán: Nueva York na Fundação PROA em Buenos Aires, 2010. A instalação é composta de duas câmeras de vídeo, 6 monitores de TV, e uma gravadora e reprodutora de vídeos. Com a primeira câmera se capta a pessoa entrevistada num espaço privado e separado na exposição. Com a segunda câmera é captado o público que observa o painel com as televisões. Nos monitores é possível ver a pessoa entrevistada naquele momento e as entrevistadas anteriormente, assim como o público que está assistindo as TVs em diferentes momentos do dia. Além do esquema apresentado na primeira página, o Grupo também produziu um texto em que define a TV, utilizada por todos com a única atitude de ligar e desligar, como uma distribuidora de novas informações e com papel principal na comunicação das massas. Um dos principais problemas da TV seria o único papel a ela atribuído: de lazer. E nada se sabe além do que é assistido. Como os programas são produzidos? Que mecanismos há desde o estúdio de gravação até o satélite e por fim a TV? Por fim, o que há dentro da caixa preta? (Museum of Modern Art, 1970, p. 45) Esse questionamento lembra imediatamente as questões colocadas por Villém Flusser em A filosofia da caixa preta – ensaios para uma futura filosofia da fotografia (Flusser, 2011, p. 15). Apesar da conexão entre a proposta do Grupo Frontera e o livro de Flusser, eles são separados por mais de dez anos de diferença. Então, no texto que os artistas argentinos escrevem sobre a sua própria obra, eles questionam essa passividade do espectador e com Especta eles lançam luz a atitude de espectar, trazendo um estranhamento para quem é filmado e em seguida pode assistir a si mesmo e terá a sua imagem sendo reproduzida repetidamente entre outras ao longo da exposição. O texto segue apresentando definições de cultura e as radicais mudanças pelas quais a sociedade passava naquele momento e que, para leitores de Flusser, já está amplamente debatido. Curioso é realmente esse texto ser escrito com mais de uma década antes do A filosofia da caixa preta – ensaios para uma futura filosofia da fotografia e também de Flusser O universo das imagens técnicas – elogio da superficialidade (Flusser, 2008, p. 95), lançado logo em seguida ao primeiro e que dá

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continuidade ao debate. O Grupo Frontera apresenta uma mudança na disposição e na organização da sociedade e de sua cultura. Se antes a cultura era produzida e consumida de acordo com os diferentes níveis sociais, agora ela possuía apenas duas camadas distintas: as massas, alimentadas pelas mídias de massas, submersas num fluxo contínuo de mensagens de todos os tipos – a que chamam de mosaico – e deglutindo tudo sem esforço; e uma sociedade intelectual de criadores, que também estão articulados ao mosaico, mas com uma disposição ativa em que são eles os produtores das mensagens – Flusser desenvolverá melhor esse debate ao colocar a divisão da sociedade entre os que utilizam a caixa preta e os que programam o seu funcionamento, mais do que quem produz a sua mensagem como coloca o Grupo Frontera. É interessante que a crítica sobre o grupo das massas que possuem uma atitude passiva em relação aos mecanismos e a produção do conteúdo da TV, digerindo facilmente o conteúdo, se satisfazendo com as pessoas que aparecem na tela, é apenas um prolongamento da crítica que George Simmel faz no início do século no texto A metrópole e a vida mental. Simmel descreve a atitude passiva dos consumidores diante dos produtos do mercado, onde desconhecem seus produtores. Com essa anonimidade, a diferença de qualidade dos produtos se faz apenas de acordo com cada embalagem. O que não é muito diferente em relação a TV, objeto de crítica do Grupo Frontera, seis décadas depois do texto de Simmel. (Simmel, 1967, p. 15) Portanto, esses dois grupos – as massas receptoras e os intelectuais produtores – serão unidos através das mídias de massas que farão com que as mensagens do segundo chegue ao primeiro. Nesse mosaico, fluxo contínuo de mensagens a que a massa está submersa, não há referências ou pontos de orientação, somente probabilidades, elementos mais frequentes que os outros, ideias genéricas e sem fundamentos. Nessa paisagem cultural, a TV é o mais completo e mais influente meio de comunicação de massas. Nessa paisagem as massas passivas são distintas do grupo de intelectuais porque esses são ativos. E a única diferença entre eles, que podem ser criadores, gênios, artistas, cozinheiros ou criminosos é o potencial de cada um para criação da novidade. Assim a genialidade não é sobre algo excepcional, mas sobre a fecundidade para produção de novidade. O texto termina com uma sugestão para o futuro. Apesar de todo o dito, todos os indivíduos são criadores, mas o que eles criam não será necessariamente incorporado a esse sistema cultural, que só absorve o que lhe interessa. E que uma possibilidade de

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transformação desse cenário seria a introdução de micromídias nesse sistema de comunicação de massas, que isso é urgente e necessário. Essa sugestão fica para o futuro, mas também aponta para Especta, onde a caixa preta da TV é aberta e todos os elementos utilizados na produção de televisão são reorganizados. Na instalação há um estúdio onde quem desejar pode entrar e responder a algumas perguntas. Trata-se de um espaço privado na exposição, e as pessoas que participavam respondiam a perguntas como “Por que as pessoas comem?”, “Quando você joga? Por quê?“, “Você pesquisa por novas formas de fazer amor?”, “A forma das coisas é importante para você?” ou “Você depende de algo em particular? “. Algumas perguntas são muito íntimas, e as que não são parecem bobas. É interessante que as pessoas entram num jogo entre se expor voluntariamente e estar gostando disso, e depois gostando de assistir a sua própria imagem, e, ao mesmo tempo, quem assiste se integra a esse jogo com uma curiosidade pelo outro, inclusive por suas absolutas banalidades. Nada muito diferente do incessantemente praticado nas TVs, pessoas que adoram se expor e se assistir e público que está super interessado em saber como é a casa da atriz famosa ou as especulações sobre o motivo dela e o jogador de futebol terem terminado o relacionamento. A ação da transmissão entre o estúdio e o telespectador através do satélite, em Especta é solucionado com a gravação e reprodução dos vídeos nas TVs da instalação. É interessante que a TV na comunicação de massas apresenta programação e conteúdo para todas as horas do dia, sendo absolutamente gratuita e disponível, e é transmitida ao lar de cada um, diferente do cinema em que as diferentes famílias se destinam a um determinado local para assistirem juntas e no escuro ao filme. Na exposição esse dispositivo é alterado porque você assiste os vídeos com diferentes pessoas e quem será assistido e acabou de gravar o vídeo está ali presente e acessível. Como dito no início do texto, essa exposição foi montada quatro vezes, três no fim da década de 1960 em Buenos Aires e Montevidéu, uma em Nova York em 1970 e novamente em Buenos Aires em 2010. Em 1966 a Argentina foi submetida ao seu quinto golpe militar: em 46 anos por seis vezes presidentes democraticamente eleitos foram depostos por militares. Porém, os dois últimos golpes foram diferentes dos anteriores. Nos primeiros os militares tomavam o poder, “ordenavam” a situação e convocavam novas eleições. Nos golpes de 1966 e 1973 eles permaneceram no poder por sete anos cada um.

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Apesar da delicada situação que a Argentina atravessa naquele momento, Especta aborda um assunto que afetava pessoas em todos os países que já vinham passando por uma transformação através da comunicação de massas, e que sofre uma radicalização com a chegada da televisão. Onde quer que essa instalação fosse exposta, haveria uma identificação local com a obra. Apesar de não trazer especificamente o assunto cotidiano da Argentina, que era e seria o mesmo de quase toda a América Latina, Especta é uma obra absolutamente crítica e irônica. Através do estranhamento que desloca o público para o papel de participador da obra e também da re-disposição dos elementos da produção da televisão. Em 1970 o Curador Associado do Museu de Arte Moderna de Nova York Kynaston McShine seleciona trabalhos recentes que tem em comum o fato de privilegiar mais conceitos e ideias que a produção de um objeto específico. McShine já vinha de uma trajetória interessante, realizou a primeira pesquisa de um museu sobre Minimalismo no Jewish Museum, realizando a exposição Primary Structures em 1966. O curador classificou esses trabalhos como sendo produzidos dentro de quase um estilo internacional, mas que era mais interessante, especialmente, para artistas que trabalhavam fora dos grandes centros mundiais, produzindo trabalhos concretos e também projetos imaginários. Estiveram presentes artistas de Argentina, Bélgica, Brasil, Canadá, Inglaterra, França, Alemanha Ocidental, Países Baixos, Itália, Japão, Suíça, Iugoslávia e Estados Unidos. O Brasil esteve representado por Hélio Oiticica que apresentou seus Ninhos, além deles apenas o Grupo Frontera e Joseph Beuys recebeu espaço e orçamento para realizar obras maiores. É interessante analisar a realização dessa exposição no MoMA em 1970. O museu ficou muito marcado por uma postura conservadora em sua história por ser um museu de arte moderna, e, apesar disso, expor artistas já consagrados. Em 1936 na ocasião da exposição Cubism and Abstract Art, que não apresentava nenhum artista americano, artistas se reuniram em protestos descritos por George L. K. Morris e produziram o panfleto How modern is the Museum of Modern Art?. Apenas em 1951 foi realizada a mostra Abstract Painting and Sculpture in America, como uma forma de desculpas aos artistas pela exclusão anterior e também pela declaração de Thrall Soby, que era diretor do Departamento de Pintura e Escultura do Museu e declarou que a produção europeia era muito mais interessante. O pedido de desculpas 15 anos depois foi bastante manipulado visto que o museu expôs apenas os artistas que se consagraram ao longo desse período. Além disso se iniciava ali uma

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política governamental de consagrar a modernidade como um estilo de vida americano, com Jackson Pollock sendo um de seus maiores ícones. De forma muito conveniente os EUA saíram ricos e com o território intacto após as duas grandes guerras que destroem o continente europeu de forma física, econômica e moralmente. Com a guerra os EUA não têm a sua produção industrial paralisada, muito pelo contrário. Seguem sendo produzidas e fornecidas armas, munições e todo tipo de produtos para ambos os lados das guerras. Por fim, o pós-guerra ficou marcado por um deslocamento do eixo cultural e econômico mundial para Nova York como assinala Harold Rosenberg no texto The Fall of Paris de 1940. Os EUA se beneficiam sobre uma disputa cultural e intelectual quando financia ditaduras militares pela a América Latina. Com o início da guerra fria, e a divisão do “mundo” em dois blocos “ideológicos” com o capitalismo dos EUA de um lado e o “comunismo” da União Soviética de outro, há uma massiva propagando contra o terror comunista e de esquerda. É nesse contexto em que Especta é produzida e que Information é realizada. Onde um grupo de artistas argentinos instigava o público a abrir a caixa preta e que os EUA realizavam mais um pedido de desculpas, ao ter no MoMA um curador negro, para realizar uma exposição que incluía artistas periféricos, mesmo que fosse com um baixo orçamento. Logo após a terceira exibição de Especta, Pierre Bourdieu iniciará a escrita de A Distinção: crítica social do julgamento, em que faz uma análise sobre a construção do gosto a partir de uma trajetória pessoal, em relação a educação e acesso à cultura sem um foco na questão econômica. A diferença entre o gosto burguês, popular ou de classe média está na forma em que ele foi construído, se por herança e tradição familiar, quando se cresce em um ambiente repleto de arte, que é diferente de quando se acessa essas obras apenas através de livros na escola. (Bourdieu, 2004, p. 28). É interessante que Information foi uma das primeiras exposições sobre arte conceitual. Se hoje é sinal de intelectualidade dizer que se entendeu tal obra de arte estranha, que foge aos suportes e questões tradicionais, naquele momento isso era estranho para todos e havia algo como um nivelamento entre classes nesse sentido (entre classes que poderiam e acessavam o MoMA). No caso de Especta, esse nivelamento é ainda mais radical. Sem distinção qualquer pessoa poderia se voluntariar a responder as perguntas e aparecer na tela. Nesse mecanismo de sedução envolvido na curiosidade pelo inútil, todas as vidas e respostas ali poderiam ser de interesse para o público. Não havia o que entender, havia

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apenas que perder um tempo de seu dia para ouvir intimidades de um estranho, rico ou pobre. Nada tão diferente do que a maioria faria ao chegar em casa e ligar a TV. Se Bourdieu tira a questão econômica do foco, Jacques Rancière três décadas após retoma-a. Um grupo argentino em plena ditadura produzir uma obra questionando mecanismos da TV. Nenhuma das características do trabalho permite associá-lo a uma localidade específica, trata-se de um trabalho global. Se o grupo Frontera questiona a passividade e a incapacidade de produção das massas por um lado, por outro também é questionado o que Rancière anos mais tarde chamaria de a inescapável trama da necessidade histórica. (Rancière, 2014, p. 38) Como escapar dessa evolução histórica que não outro destino senão o mercado global? Como escapar comunicação de massas? O Grupo Frontera respondeu a última pergunta em seu texto, colocando que era possível essa subversão com a criação das micromídias, onde todos podem ser capazes de produzir e sem que seja necessário de submeter às regras do mercado. A resposta da primeira pergunta está na própria obra, onde os dois minutos no máximo em que cada pessoa passaria na frente de cada obra no museu, se transforma em minutos que se deixa de contar para experienciar a obra. Não se trata observar e entender a obra, mas de vive-la, colaborar para a sua construção e perder tempo. Retomando o texto escrito pelo Grupo Frontera, a exposição do MoMA apresentava a novidade das novidades, todas as obras tinham sido produzidas nos últimos três anos. Não se tratava de o MoMA ter mudado de postura, mas de saber que as coisas estavam mudando. Eram obras que desprezavam o rigor material e que impunham desafios museográficos, pedagógicos e, especialmente, mercadológicos. E todos foram sendo resolvidos pouco a pouco, sem nenhum desespero, especialmente o último. Afinal, a lógica do mosaico assinalado pelo Grupo Frontera, como o fluxo de novidades a que a massa está submersa, não estava apenas na TV, mas também no museu. Por fim, Especta é uma crítica irônica a televisão e o espectador, mas também do museu e seu público. Os artistas estavam produzindo as maiores informações, novidades, disputando junto com outros artistas, mas também com qualquer um seja jornalista, modelo ou um jogador de basquete, que seja capaz de produzir uma novidade que interesse ser absorvida por esse sistema e, posteriormente, pelo mercado. Apesar disso, foi de legítima importância a atuação de Kynaston L. McShine como curador negro pouco tempo depois da terrível e dura luta pela conquista dos direitos civis. E

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Especta, que carrega um pouco de big brother, foi uma das primeiras experiências de artistas com o vídeo na argentina, de uma forma completamente inusitada e que atuou como um contra-dispositivo como diria Agamben. Por fim, o Grupo Frontera acabou fazendo o público do MoMA perder tempo com bobagem e rir deles mesmos. Referências: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos Editora, 2009. BARBERO, J. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro. UFRJ, 1997. BOURDIEU, P. A distinção. São Paulo: USP, 2004. FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. ___________. O universo das imagens técnicas – elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. LOGAN, R. Que é informação? – A propagação da organização na biosfera, na simbolosfera, na tecnosfera e na econosfera. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. PARRACHO, S. Construindo a memória do futuro: uma análise da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2011. RANCIERE, J. Em que tempo vivemos? Em: Serrote, n.16, Rio de Janeiro: IMS, 2014. RUGGIERO, A. Hélio Oiticica no MoMA de Nova York. Revista Arquitexto, ano 17, junho de 2016. SEVERINO, C. Jorge Rafael Videla e o “Processo de Reorganização Nacional”: a construção de uma ditadura militar. 2013. 61p. Monografia (Graduação em História). Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília. SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 13-28. Tradução de Sérgio Marques dos Reis – The Metropolis and Mental Life, The Sociology of Georg Simmel, traduzido e editado por Kurt Wolff. Catálogos das exposições e outros documentos: Museum of Modern Art. Information. New York: MoMA, 1970. Fundação PROA. Imán: Nueva York. Buenos Aires: Fundação PROA, 2010. http://www.ines-gross.com/archivos/instalacion.swf http://proa.org/eng/exhibition-iman-nueva-york.php#exhibicion Museum of Modern Art. Release nº 69. 2 de julho de 1970. https://www.moma.org/momaorg/shared/pdfs/docs/press_archives/4483/releases/MOMA_1970 _July-December_0003_69.pdf?2010

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CONSTRUIR, HABITAR, DEMORAR: AS DESCONTINUIDADES DA OBRA DE JAC LEIRNER Danilo Calegari Resumo. O presente artigo pretende traçar pontos de relação entre os trabalhos de Jac Leirner e os movimentos da vanguarda, suas derivações, suas obras e gestos artísticos. Para tal, noções do ensaio Construir, Habitar, Pensar (1954) de Martin Heidegger serão consideradas como possibilidades para a obra de arte. Palavras-chave. Jac Leirner, Vanguardas, Heidegger, Arte Contemporânea. Abstract. This article aims to trace points of connection between the works of Jac Leimer and avant-garde movements, its derivations, its works and its artistic gestures. For such, notions from Martin Heidegger’s essay Building, Dwelling, Thinking (1954) will be considered as possibilities for the artwork. Keywords. Jac Leirner, Avant-guarde, Heidegger, Contemporary Art.

Parece que só é possível descontruir o que se constrói. Duas atividades separadas, mas que se relacionam de modo essencial; começo e fim. Ao se tratar da produção artística do início do século XX, as pretensões vanguardistas eram de aniquilar, sem objeções, a tradição adquirida. O trabalho artístico deveria ser novo, em seus variados aspectos. A característica mais evidente das vanguardas era o afastamento das convenções. Porém, o novo não perdura se não se renova constantemente e para que a obra de arte permaneça além de novidade é preciso que ela habite. Em um dos sentidos afirmados por Martin Heidegger (2012, p. 129), habitar é demorar. É um modo singular de considerar estas duas palavras, ambas em uma esfera filosófica e expandida, e não nos estritos termos que a significação comum lhes atribui. Ambas não se reduzem à singularidade e à imobilidade. Na obra de arte, habitar e demorar são premissas capazes de relações: descritivas, sintomáticas e anadiomênicas. Ambas se permitem a experiência do resguardo que é “algo positivo e acontece quando deixamos alguma coisa entregue ao seu vigor de essência” (HEIDEGGER, loc. cit). E para o trabalho artístico, seu vigor foi justamente a distensão através de releituras que, partidas no início do século XX, foram acarretar significantes desdobramentos na metade do mesmo século. Tratase das vanguardas e das neovanguarda; a segunda, assim, demorou na primeira.

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A tradição renascentista, acadêmica, romântica demorou igualmente para que fosse assimilada. Até que as vanguardas quiseram cancelá-las, desconstrui-las. Por sua vez, o resultado da produção das vanguardas também resta. Alberto Tassinari (2006, p. 10) afirma que a arte moderna, subjacente aos movimentos de vanguarda, demora atualmente em seu período de desdobramento. Para ele, a arte moderna se depurou e mudou de estágio e a arte contemporânea é ainda resquício da arte moderna, com poucas características do período anterior. Estes agenciamentos entre as vanguardas e o modernismo, a permanência e transformação na demora, se encontram presentes na obra da artista paulistana Jac Leirner. Dois atributos fundamentais para compreender sua obra são: o aspecto abstrato - geométrico e o objeto banal. Estes dois aspectos ligam a obra de Jac Leirner, de modo estrito, aos movimentos de vanguarda e daqueles posteriores que reverberaram seus questionamentos: o Novo Realismo, a Pop Art, o Minimalismo, a Arte Povera, o Concretismo e o Neoconcretismo. Enfatizar como a artista demora em suas referências, no sentido de criar trabalhos que repropõem elementos das vanguardas, porém desdobrados e revistados, ocasionando os agenciamentos entre a morada, a construção e a desconstrução é o objetivo do presente artigo. As temáticas para fundamentar tal ligação são três: a monocromia, a retícula e as novas condições para os signos pictóricos.

Modelos típicos das vanguardas

Com relação à monocromia e a retícula, elas podem ser consideradas dois modelos de produção pictórica típicas da vanguarda. Enquanto a primeira se postulou como símbolo do esgotamento pelo qual a pintura atravessava, a segunda acabara sendo escolhido pelos artistas, mesmo que de modo inconsciente, como noção operatória que possibilitaria o desenvolvimento e a continuação da pintura. Duas possibilidades que se constituíram paradoxalmente e que podem ser refletidas em Skin (imagem 1), trabalhos feitos com papel de fazer cigarro. Eles evocam sensações e características que se afastam da confusão, do enfadonho e da presteza. As grades monocromáticas são atacadas à parede pela parte que serve para sigilar o cigarro e na qual uma leve camada de cola é depositada. Cada uma das três composições, apesar da cor branca, se diferencia pela leve variação de tons. As dobras e ondulações que foram criadas pela manipulação do material frágil e delicado também influem

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na impressão destes trabalhos monocromáticos. Eles pairam impassíveis, quase diminutos à parede. Uma aproximação existe com Agnes Martin e suas retículas e as pinturas brancas de Robert Ryman.

Imagem 1. Jac Leirner, Vista dos três trabalhos Skins, Yale School of Art, 2012, Connecticut, EUA. © Sandra Burns. Disponível em http://art.yale.edu/JacLeirner Acesso em 22 de out. de 2015.

Em seus desdobramentos, o caso do monocromo e da retícula se constitui paradoxalmente pelo fato de se desenvolver através de discursos opostos. O monocromo exaure a superfície da pintura, enquanto que a retícula a duplica. Nessas operações, o primeiro divulgava a morte, o segundo apregoava justamente a vida e a possibilidade da pintura. Contudo, em suas características fundamentais, ambos são autorreferentes, autotélicos e abnegados à possibilidade da descrição de qualquer exterioridade na representação. Assim, eles afirmam suas diferenças para continuarem possibilitando a existência da pintura.

Novas condições para os signos pictóricos

As formas flutuantes de cores puras, presentes nos quadro de Kazimir Malevich, servirão de base para que El Lissitzky elabore sua famosa série de trabalhos. Os Prouns (acrônimo russo de Projeto para Afirmação do Novo) se serviam da inclusão de três dimensões na composição Suprematista, originalmente planar e bidimensional. No decorrer de sua pesquisa artística, El Lissitzky, arquiteto de formação, propõe suas composições no espaço real de exibição, conduzindo a experiência de redução à aplicação da pintura ao espaço, em uma transformação de seus projetos pictóricos em investigação arquitetônica. A Sala Proun (imagem 2) foi apresentada, pela primeira vez, em 1923 na Grande Exposição de Arte de Berlim.

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Imagem 2. El Lissitzky, Sala Proun, 1923e reconstrução em 1965. Materiais diversos,300 x 300 x 260 cm. Disponível em: http://www.stedelijk.nl/en/collection/collection-online#/lissitzky. Acesso em: 1° de abr. 2016.

A redução dos elementos, a escolha pelas formas geométricas e o distanciamento para um espaço não correspondente aquele da representação figurada são as características que ligam os trabalhos de El Lissitzky, aos Crossings Colors (imagem 3) de Jac Leirner. As cinco peças de madeira se encaixam em forma de cruz e estão dispostas uma após a outra no chão. Cada peça é composta de duas hastes de madeira e cada uma delas é pintada com cores intensas e de aspecto industrial, em ambas as faces e também nas extremidades da peça. A combinação de cores é casual e não respeita nenhuma hierarquia de ordem cromática ou tonal. O conjunto marca esta ligação das formas geométricas flutuando independentemente do fundo, ou da superfície na qual se apoiam. Percebe-se na imagem a dinâmica formal irreverente que não respeita a gravidade e que aproxima estas esculturas em direção à conquista do espaço de representação que propuseram os artistas suprematistas. A conquista do espaço pode ser entendida principalmente na produção minimalista dos anos 60, no sentido que, para o espectador, mais do que inferir a constituição, o material, ou a superfície de um trabalho artístico, ele é “motivado a explorar as consequências perceptivas de um particular evento em um dado lugar” (FOSTER, 2014, p. 53). Ainda, deste tratamento da produção minimalista reside um esclarecimento para o período, pois, ele intuía uma subversão das linguagens tradicionais. À medida que a pintura vai ganhando espaço e se tornando tridimensional, a escultura parece se retrair e requisitar a bidimensionalidade (Os Cem, imagem 4). Esta troca de papéis serviu justamente como ocasião para que se criasse uma divisão entre a recente produção minimalista daquela modernista, principalmente relacionada 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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com o expressionismo abstrato. Assim, ao abandonar as convenções estabelecidas e reforçadas pelo Modernismo, o Minimalismo, propôs novos nomes para indicar a nova condição para os signos pictóricos: objeto, estrutura e instalação passaram a fazer parte do vocabulário da arte.

Imagem 1. Jac Leirner, Crossing Colors, 2012. 5 partes, dimensões variáveis. Connecticut, EUA. © Sandra Burns. Disponível em http://art.yale.edu/JacLeirner Acesso em 22 de out. de 2015.

As descontinuidades da obra

O que revela então estas séries de comparações? No caso de Jac Leirner, ela cria seus trabalhos justamente desconstruindo os questionamentos das vanguardas, sobretudo pelo fato de transgredir a transgressão, outro aspecto evidente da produção artística do início do século XX. Isto se revela em dois aspectos. O primeiro ocorre na escolhe dos materiais. Na obra de Jac Leirner, a sua base é constituída de objetos banais. O segundo se concretiza nas operações

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que ela produz com estes objetos: acumular e organizar. Ao recolher uma quantidade de material, a artista procede com uma operação de organização (é o caso dos trabalhos das imagens 1 e 4, papéis de cigarro e cédulas). O que acarreta um gesto quase burocrático, um procedimento padrão em lidar com os objetos banais que resulta, porém, “como o ato de produzir uma alteração e suspender o estabelecido” (CHEREM, 2012. p. 26). Característica situada na antípoda das convenções dadaístas de Marcel Duchamp e o uso do readymade.

Imagem 4. Jac Leirner. Os cem, 1987. Cédulas perfuradas e unidas por cabo de aço inoxidável, 300 x 0,15 x 0,7 cm. Coleção l’Huillier, Genebra. © Rômulo Fialdini. Disponível em: http://www.brasilartesenciclopedias.com.br/nacional/leirner_jac.htm. Acesso em: 15 de jul. de 2016.

É isto que vai causar a descontinuidade com as relações que a obra de Jac Leirner tece com os movimentos de vanguarda, modernistas e da neovanguarda. Para que isso ocorra, é preciso considerar que estes acessos às referências mais variadas são feitos de modo deliberado e consciente. Ao responder ao historiador de arte norte americano, Robert Storr, sobre o fato de agrupar estéticas aparentemente opostas, Jac Leirner afirma: “Sou muito consciente. Tento explicitar isso no trabalho. Isto vem realmente do Dadá e Duchamp, do Minimalismo e também da Pop - Art” (STORR, 2012, p. 13). Assim, a artista constrói, habita e demora, no sentido do “exercício incessante da experiência” (HEIDEGGER, 2012, p. 140) o arquivo visual que lhe serve de referência. Em seguida, para suas proposições, ela cria as descontinuidades em trabalhos que aparentemente se assemelham, mas que revelam uma profundidade, uma desconstrução da transgressão em um gesto repetitivo e burocrático.

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As operações e procedimentos de Jac Leirner parecem se repetir demasiadamente. Mesmo seu modus-operandi é bastante circunscrito: sua produção conta com cerca de dez séries, produzidas a partir dos anos 80. Contudo, apesar da simplicidade, seus gestos fazem sua obra evocar noções pertinentes aos movimentos que se desenvolveram a partir das vanguardas artísticas. Seus trabalhos falam que, na sua simplicidade, reside o paradoxo dos efeitos da superfície, “o eco de uma vibração mais interna” (DELEUZE, 2006, p. 20) para a qual se escruta em busca de uma profundidade. No caso, as relações com os movimentos das vanguardas, suas repetições, os gestões e operações semelhantes que revelam uma transgressão inerente à transgressão que os vanguardistas tanto buscavam e provocavam.

Referências: CHEREM, R. Ex-orbitar o espaço. Notações para pensar a obra de Cristian Segura. In: CHEREM, R., MAKOWIECKY (Org). Cristian Segura e a Poética do Coeficiente. Florianópolis: Udesc, 2012. p. 13 – 32. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal. 2006. 2° ed. 440 p. FOSTER, H. O Retorno do Real: A Vanguarda no Final do Século XX. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 224 p. HEIDEGGER, M. Construir, habitar, pensar. In:______. Ensaios e Conferências. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão et al. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. p. 125 - 142. STORR, R. Hardware seda - Hardware silk. New Haven: Cannelli Printing, 2012. 100 p. TASSINARI, A. O Espaço Moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 168 p.

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EMERGÊNCIA ARTÍSTICA COLETIVA “SIM OU ZERO”: PROVENIÊNCIAS HISTÓRICAS Edmilson Vasconcelos

Resumo: O artigo objetiva encontrar as proveniências históricas da “emergência artística coletiva” SIM ou ZERO. De um lado tem-se essa agrupação que emergiu entre os grupos de artistas e os coletivos artísticos no início dos anos 90. E de outro lado, a formação de um novo modelo de arranjo artístico que está na gênese dos coletivos atuais com sintomas provenientes tanto dos primeiros romântico 1 quanto da Arte Conceitual. Palavras-chave: Coletivo artístico; grupo de artistas; emergência artística coletiva; história da arte. Abstract: This paper try to find the historical origins of "collective artistic emergency" Sim o Zero. For on side the one how this grouping emerged between the groups of artists and artistic collectives in the early 90s and on the other hand, the formation of a new artistic arrangement model with two symptoms: of the first romanticisms as well from the Concept Art. Keywords: Artist collective; artist group; collective artistic emergence; art history.

De onde veio o SIM ou ZERO? De onde saíram suas ideias sobre arte e seu fazer artístico coletivo? Sendo um acontecimento na genealogia dos coletivos artísticos2 e diferente dos grupos de artistas, quais suas influências da história da arte? Quais as proveniências no campo da arte que os fizeram experimentar a singularidade de seu tempo inovando seu fazer artístico? Em artigo de 2015 nos Anais da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas ANPAP, foi apresentado o conceito de emergência artística coletiva, o qual explica que serve [...] para se referir a um tipo de agrupamento de artistas - o SIM ou ZERO - surgido entre os anos 1991 e 1993, no Brasil. A relevância desse conceito, ligado ao caso específico, se dá pelo fato de os artistas que o fundaram salientarem em texto publicado em 1993, não constituir um grupo de artistas. Ao mesmo tempo, criaram uma produção artística colaborativa e coletiva, num período em que o conceito de coletivo artístico ainda não existia. Neste sentido, o artigo apresenta o conceito hospedado neste estudo de caso, e sugere que essa emergência, entre outras, está na gênese do que mais tarde – nos anos 2000 – passaria a ser chamado de Coletivo Artístico. (Vargas e Vasconcelos, 2015, p. 167)

Dando prosseguimento à referida pesquisa e ao artigo publicado, interessa-nos saber sobre as “proveniências” que motivaram ou se fizeram sentir para que aquela emergência reinventasse uma nova atitude - coletiva - para o fazer artístico e suas instituições a partir do

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questionamento da própria figura do artista, dúvidas sobre a obra de arte e da própria arte naquele novo tempo que se abria logo no início de 1990. No editorial da publicação para a “Exposição ‘Coletiva’ SIM ou ZERO”, a qual deu o nome para a coletividade que veio a surgir depois desta exposição, os artistas a relatam e se colocam algumas dúvidas: Todas estas intervenções são de nossa inteira responsabilidade; sua globalidade e diversidade constituem um bloco único com o qual procuramos caracterizar de forma ampliada a situação “Exposição Coletiva”. Porém, independente de coletiva ou não, vimos necessidade de expandir tanto na forma quanto no conceito, as maneiras de atuação e ação dentro do quadro contemporâneo das artes. Não sabemos ao certo – e esta é uma das questões – se o termo “artes plásticas” ou “artes visuais” são pertinentes, hoje, para classificar as ações contemporâneas no que se chama arte, e tão pouco o termo “arte”. Apesar de atuarmos conjuntamente, não constituímos um “grupo” [de artistas]; apenas, por conveniências particulares e por concordarmos em alguns pontos, viabilizamos esta série de intervenções. [...] Ao invés de grupo, preferimos a idéia de indivíduos, atuando dentro de um mesmo espaço ampliado do cotidiano. (SIM ou ZERO, 1993, p. 1).

Para abordar as proveniências iniciou-se pesquisando os escritos da referida publicação na qual, têm-se na última página, na contracapa, uma lista de agradecimentos com 346 nomes que ocupam cinco colunas preenchendo toda a página. Nessa lista (Figura 1) os quatro artistas participantes fazem um agradecimento intitulado “SPECIAL THANKS TO:”. Na relação encontram-se nomes de amigos, familiares, coisas, conceitos e uma série de artistas [visuais], do cinema, teatro e da música, além de alguns filósofos, dando-nos uma primeira pista para se conhecer suas influências e, nesse caso, declaradas. E no final da página, a fórmula dentro de um retângulo expõe: “A Própria Ação = Apropriação”. Esta fórmula, por si só, dá-nos outra pista para se saber de onde saíram ou como fizeram para chegarem às suas ideias sobre arte e criação coletiva. No campo da arte despontam nomes como Joseph Beuys; Hélio Oiticica; John Cage; Picasso, Marcel Duchamp; Lygia Clark; Andy Warhol; Joseph Kosuth; Allan Kaprow; Yves Klein; Piero Manzoni; George Maciunas; Francis Picabia, Anselm Kiefer, Richard Serra, Malévith, e alguns contemporâneos brasileiros, como Ricardo Basbaum, Leonilson, Milton Machado, Waltércio Caldas entre outros, e filósofos como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Nietzsche. Percebe-se, desde já, que aqueles jovens artistas, apesar de não possuírem uma formação acadêmica em arte, como declaram em outros momentos, conhecem um pouco da história da arte e algumas das principais ideias por seus artistas e comentadores. Nomes como Duchamp, Beuys, Kaprow e Maciunas podem remeter diretamente à pensamentos sobre um fazer artístico coletivo. Ao agradecerem Duchamp provavelmente referiram-se ao ato criativo, no qual a pessoa do espectador surge como definidora da obra de arte em relação enviesada com

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o artista e direta com a obra “complexificando” o fazer artístico e as próprias noções de obra, espectador e artista, onde a arte se dá nessa relação coletiva. Com Beuys essas noções se redefinem com a ideia de que “todos somos artistas”, visto que “o pensamento é um processo plástico” que resulta numa “escultura social”, a qual amplia o fazer artístico para a sociedade. E com Clark, Oiticica, Kaprow e Maciunas tem-se na prática participativa, tanto com os Bichos, a Tropicália e os happenings, quanto com o Fluxus, respectivamente, um novo modo - em grupo - de se fazer arte. Com estes agradecimentos pode-se pensar nas primeiras proveniências motivadoras para a emergência coletiva artística SIM ou ZERO e sua obra complexa envolvendo diversas táticas e mídias, compondo um todo onde a ideia de obra (de arte) se dissolve numa rede de intervenções públicas. Mas, apesar das referências declaradas, digo, agradecidas, outras nem tão explícitas são detectadas nas entrelinhas e detalhes da sua produção e organização artística, como se verá a seguir. Antes porém, cabe algumas reflexões sobre o que está sendo chamado de “proveniência” num processo histórico onde o autor analisa esta agrupação como gênese dos coletivos. Como foi visto, Foucault também foi um dos citados na lista de agradecimentos e portanto, outra proveniência que reaparece e volta a definir o que se estuda aqui. Vale lembrar que tanto o conceito de emergência quanto de proveniência são conceitos operatórios3 e balizadores para o método genealógico para pesquisa em história proposto por Michel Foucault. Foucault aponta para as proveniências no estudo genealógico da história, já que para ele, é uma perda de tempo a procura pela origem dos fatos e acontecimentos históricos. Para esse autor, buscar as proveniências ao invés das origens é percorrer diferentes caminhos compondo uma rede de informações que, no seu conjunto, dão-nos algum entendimento da complexidade sobre a construção de determinado acontecimento ou fato sem que estes se percam no “exagero metafísico” de uma linha histórica onde a origem de todas as coisas se encontra no que há de mais precioso e de mais essencial. Nessa busca da proveniência, como o objeto próprio da genealogia, deseja-se (...) descobrir todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar e formar uma rede difícil de desembaraçar; longe de ser uma categoria da semelhança, tal [abordagem da] origem permite ordenar, para colocá-las a parte, todas as marcas diferentes”. A proveniência permite também reencontrar, sob o aspecto único de um caráter ou de um conceito, a proliferação dos acontecimentos através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se formaram. A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo. (Foucault, 2012, p. 62, 63 e 64)

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Neste sentido, o estudo da proveniência compõe, juntamente com as emergências, a teia que permite olharmos para a história, em sua complexidade, e fazer nossos próprios juízos ou, propiciar novas abordagens para outras leituras. Sua importância aqui, revela as descontinuidades, os acasos e acontecimentos que, construíram uma possibilidade coletiva nos processos artísticos.

Figura 1. Publicação SIM ou Zero, 1993. Capa, páginas internas e última página (contracapa), onde consta a lista de agradecimentos. Fonte: Arquivo SIM ou ZERO.

Voltando às pistas nos agradecimentos da publicação é citado o nome “Visorama”, assim como o projeto artístico participativo “NBP”. De um lado tem-se com o Visorama, o nome de uma organização artística que funcionou entre 1989 e 1994 no Rio de Janeiro sendo criada por artistas4 como “grupo de estudos para depois organizar palestras e debates em que se discutia o trabalho dos artistas do grupo e do circuito brasileiro de arte, sob uma perspectiva internacional” (Basbaum, 2002, p. 85). E de outro lado, tem-se o artista Ricardo Basbaum como um dos criadores do Visorama (e também do NBP), ainda naquela época, chamado de grupo de artistas, visto ter um plano, uma intenção e um motivo bem específico de atuação para viabilizar ações junto ao que se chamava circuito de arte, e agora, chamado de sistema de arte. Tanto as ideias de Basbaum como do Visorama e NBP foram de conhecimento dos artistas do SIM ou ZERO, pois estes participaram ativamente de oficinas ministradas por Basbaum nos Festivais de Arte de Nova Almeida, no Estado do Espírito Santo, onde os quatro artistas escolheram para morar no ano de 1992, sendo um dos primeiros a participar do seu projeto NBP-Novas Bases para a Personalidade, iniciado um ano depois. O próprio Basbaum relata este fato em entrevista para o artista-pesquisador Edison Arcanjo, 2014, intitulada “Os Festivais de Verão em Nova Almeida e o projeto ’Você gostaria de participar de uma

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experiência artística?’”. Na entrevista o artista comenta sobre a participação do SIM ou ZERO com o vídeo produzido por seus artistas: O primeiro vídeo que eu recebo do projeto é o vídeo do Sim ou Zero. Eu tô na minha casa lá no Rio, logo depois que eu voltei de Nova Almeida, em 93, de minha participação no 5º Festival, e chega um pacote pelo correio com uma fita que eu coloquei no videocassete e eu tive um choque mesmo, de alegria, com o que eu vejo que eles fizeram, com o vídeo que eles fizeram lá, na Enseada das Garças, que é tão interessante, com tanto investimento, com tanta intensidade, com tanta potência, explorando uma coisa do projeto que é a multiplicação da marca, de um jeito, claro, que eu jamais poderia fazer, já mostrando uma reação, um feedback, o que foi muito legal. (Basbaum, 2014, p. 258)

Percebe-se tanto a influência direta de Basbaum, assim como do Visorama, para o desenvolvimento do SIM ou ZERO; tanto as táticas usadas nos seus procedimentos artísticos, quanto a organização entre os artistas. Estas influências aparecem, por exemplo, na marca do projeto NBP (Figura 2), a qual é usada para divulgar o projeto e como elemento plásticovisual para suas obras. O SIM ou ZERO, por sua vez, copia e adota a mesma estratégia criando sua própria marca, sendo também usada como elemento gráfico de divulgação assim como a própria intervenção visuo-textual, principalmente quando usada nas intervenções urbanas (Figura 3).

Figura 2. Marca do projeto NBP de Ricardo Basbaum. 1993.

Figura 3. Intervenções urbanas SIM ou ZERO. Vitória-ES, 1993. Acervo SIM ou ZERO.

Nestas intervenções constata-se algumas das ideias colocadas por Basbaum numa de suas oficinas realizadas no V Festival de Verão de Nova Almeida, 1993, intitulada “A propaganda da arte: conversas”, na qual o artista afirma que discutir ou falar sobre arte é uma publicidade da arte, uma propaganda da arte, a qual, este artista está sempre envolvido, ou seja, em propagar a arte discutindo-a, pois “falar sobre arte é manter a arte”. Esta era uma ideia que os

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artistas do SIM ou ZERO concordavam e que aplicaram na exposição “coletiva”, colocada tanto no editorial da publicação, como no seu uso como obra em várias mídias diferentes. Constata-se essa relação de influências em artigo publicado em 2007 pela pesquisadora Fátima Nader, a qual referencia o Sim ou Zero e esta afinidade com Basbaum denotando algumas proveniências: As estratégias desenvolvidas na exposição [SIM ou ZERO] estabelecem um diálogo com conceitos e reflexões realizados por Ricardo Basbaum, quanto a uma relação produtiva que articula o verbal e o visual em um terreno de contaminações entre a arte e diversas disciplinas e os campos do conhecimento, enquanto território híbrido, de limites móveis, que se estendem, à medida que a prática não se faz especializada, mas impregnada de instabilidades no encontro entre o circuito de arte, a mídia e a cidade. Adotando como uma das estratégias, o texto e a logomarca “SIM ou ZERO”, esse campo enunciativo irá se dar de modo a diminuir as distâncias entre a arte e suas relações com a cidade, em uma função diferenciada do manifesto moderno, funcionando em choque com o circuito, e não à frente das instituições (Nader, 2007, p.2).

Nas reflexões de Nader, entre Ricardo Basbaum e o SIM ou ZERO, a pesquisadora refere-se, principalmente, ao projeto artístico participativo NBP, o qual possui tanto uma instância imagética visual, quanto uma estruturação discursiva e textual em torno de uma “publicidade da arte”. Num primeiro olhar, as intervenções SIM ou ZERO, estão alinhadas com as poéticas de Basbaum, porém constata-se nas entrelinhas um fantasma conceitual que reaparece aqui ou ali na obra daqueles artistas e que vão um pouco aquém no tempo de Basbaum, tendo em Antoni Muntadas, como proveniência possível ou talvez inconsciente, apesar de ser um dos citadosagradecidos na lista Special thanks to. Assim como as táticas usadas por Basbaum, Muntadas também aborda questões sociais, políticas e de comunicação de massa, tais como a relação entre espaço público e privado. Este sintoma no SIM ou ZERO reaparece nas suas ações envolvendo diferentes mídias de comunicação e estratégias publicitárias, como o uso da marca em outdoor, placas de trânsito, publicações, intervenção em canal de TV aberta e rádio FM, entre outras, e claro, no uso do conceito como enunciado visuo-textual que marca as intervenções, sendo também a própria intervenção. Tal constatação pode ser pensada a partir de depoimento do próprio Basbaum sobre as influências de Muntadas ao seu trabalho como mostra a citação abaixo e o trabalho dos três, lado a lado, na Figura 4: Meu trabalho se formou nos anos 80, dentro da possibilidade de ‘aproximar arte contemporânea e campo da comunicação’. Penso em “comunicação” como possibilidade de agregar ao meu trabalho (como fazem muitos artistas que se iniciaram no final dos anos 1960 - eu destacaria Muntadas) estratégias e ferramentas de integração de palavra e imagem, para utilização em espaços ‘nãoartísticos’ (TV, meios de comunicação em geral, publicidade, etc.) que se

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desenvolveram em contato direto com a expansão urbana e tecnológica do século 205 (Basbaum, 2005, p.14).

Naquele momento, 1992-93, Basbaum lançava seu projeto NBP como uma possibilidade participativa, usando uma “marca visual” que se adaptava em esculturas, desenhos, gráficos, pinturas, instalações e intervenções. Basbaum ao citar Antoni Muntadas e os anos 60, refere-se a um dos primeiros e mais significativos praticantes da arte conceitual e midiática, cujas obras também são apresentados em diferentes suportes, como fotografia, vídeo, publicações, internet, instalações e intervenções urbanas. Pode-se constatar nessa sequência de referências um determinado caminho percorrido pelo conceito na arte de Muntadas até o SIM ou ZERO, denotando a relação que os liga na continuidade de uma linha conceitual imaginária.

Figura 4. Liame conceitual entre Antoni Muntadas(Buenos Aires, 2007), Ricardo Basbaum (Mapa de Porto Alegre com a interferência da forma NBP no trabalho Re-projetando Porto Alegre) e SIM ou ZERO. Fontes, da esquerda para direita: http://www.ramona.org.ar/node/15728; http://www.artewebbrasil.com.br/torreao/artistastorreao.htm; Acervo SIM ou ZERO.

Destaca-se na abordagem genealógica que se pretende aqui com as proveniências do SIM ou ZERO, o fato de deixarem documentado em publicação, que não se consideravam um grupo de artistas. Disseram também que suas vidas estavam imbricadas com suas obras num lugar de viver6. Ora, isso é relevante, pois essa negação aos grupos revela uma atitude crítica em relação a este formato. Ao mesmo tempo, revela-se como acontecimento em estado de emergência, de acontecimento, sem definições, sem identidade, inventando-se cotidianamente apenas por acreditar no que isso faria emergir, e sendo artistas, vivendo a vida em obra (de arte). Essa ação-atitude era menos um projeto, mas uma tática de vida que poderia ser considerada como um procedimento artístico, cuja obra era imprevisível, uma emergência dessa complexidade vivida na construção de um lugar para viverem, ou seja, a obra como invenção de si7. Esta atitude faz-nos lembrar do Romantismo “como vanguarda”, segundo a conexão feita por Octávio Paz e lembrada por Pedro Duarte (2013, p. 113-114), ao dizer que, no

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Romantismo, “não se tratava de progredir necessariamente em linha reta predeterminada” com um plano ou projeto, mas sim “como no avanço em algum campo desconhecido, de mudança, movimento, descoberta”. Sendo “com esse movimento que podemos fugir às convenções que aprisionam a arte, a filosofia e a vida em formas pretensamente corretas e, assim, arriscamo-nos no tempo e nas transformações”. Mas antes desse relato, Duarte antecipa essa situação em direção ao desconhecido no movimento que avança ao dizer que “a arte deve levar-nos à beira do caos, porque é justamente ali que, com o toque do amor, as coisas se organizam originariamente, é ali que o mundo pode formar-se, juntar-se e se erguer”. (Duarte, 2013, p. 54). Neste sentido, acredita-se que o fantasma proveniente do Romantismo esteja em algum ponto ou detalhe dessa trama e por essa deriva dos acontecimentos adotada pelos artistas do SIM ou ZERO. Esta deriva se dá quando se juntaram, por elos de amizade, e adquiriram uma área de terra em meio a natureza, noutro Estado - Espírito Santo -, mudando-se do Rio Grande do Sul para lá, sem planos, mas apenas com a crença de que alguma coisa nova lhes proporcionaria uma outra vida mediada e mantida pela arte. Nessa nova realidade – aventureira e romântica -, morando em barracas enquanto construíam uma casa para morarem, esses artistas produziram e realizaram a Exposição ‘Coletiva’ SIM ou ZERO, condicionados a uma convivência cotidiana que impedia as suas assinaturas individuais nas obras, visto que antes dessa mudança de cidade, moravam juntos em Porto Alegre. Sendo assim, além do aspecto autoral dissolvido com assinatura coletiva, destaca-se "a vida em obra” como estratégia e crença na imprevisibilidade que este convívio poderia fazer surgir; “Deixe a vida me levar”, diria Zeca Pagodinho8. Neste caso, são os procedimentos artísticos que mudam ou ressurgem, como ações, gestos e atitudes onde a obra só pode ser apreendida a partir da consideração complexa de um sistema que envolve muitos aspectos e agentes diferentes entre si, tendo na prática cotidiana vivida, no seu conjunto, sua forma. Mas o que também interessa para uma proveniência romântica é que os artistas do SIM ou ZERO, como os “primeiros românticos” do grupo de Iena, criaram suas obras, textos, práticas e ideias sob uma mesma assinatura coletiva. Neste sentido, tem-se um anonimato individual, tanto no uso de pseudônimos, quanto a adoção do enunciado SIM ou ZERO para suas intervenções. Essa convivência viabilizava, na prática, a subversão autoral na arte e na filosofia. Os primeiros românticos escreveram anonimamente textos que seriam produções coletivas, sem assinatura e sem autoria individual, questionando a ideia de uma subjetividade empírica responsável por uma obra. Boa parte da [publicação] Athenäum foi assim oferecida ao público, o

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que não deixa de ser mais uma versão da rebelião tipicamente romântica contra os cânones normativos, ou seja, contra a figura da autoridade (Duarte, 2011, p. 20).

Nesta referência ao romantismo, comparamos o SIM ou ZERO com o grupo de Iena - os primeiros românticos de 1798-99. Como aqueles, o Sim ou Zero repete (sem copiar) suas atitudes anônimas e coletivas, bem como a união por afinidades entre amigos. Duarte aponta para estas afinidades dizendo que “Fica claro, o quão decisivo era o contato fraternal do grupo [de Iena]”, e que “seus laços iam além dos objetivos artísticos e filosóficos. Eram laços amorosos, de amizade, eróticos” (Duarte, 2011, p. 20). Esta situação é muito parecida com o que aconteceu no SIM ou ZERO em sua formação, visto que os primeiros integrantes eram amigos de longa data. Conclusão Se de um lado há a influência dos grupos de artistas dos anos 1960-70, inevitáveis, apesar de não identificados com estes, principalmente via Fluxus e Muntadas, assim como da abertura da noção de arte colocada por Duchamp, Beuys e Kaprow, por outro lado, há a forte influência, mais recente, de Ricardo Basbaum em sua forma de atuar e propagar a arte. Mas também percebe-se o fantasma romântico inconsciente, por parte dos seus protagonistas, cujas relações afetivas e convívio fazem surgir uma obra com autoria coletiva e uma nova forma de atuar e se relacionar com a arte, tanto pela mudança de contexto e cidade, quanto pela época - início dos anos 90 - dada pela globalização e formação de redes colaborativas que viabilizam a articulação de novos modos de atuar, experimentar, inventar e aventurar-se na construção de um formato associativo e coletivo a partir de outros parâmetros e referências diversas. Por fim, acreditamos que, com o caso SIM ou ZERO, há a constatação dessa emergência com suas proveniências históricas participantes da gênese do que mais tarde seria denominado como coletivo artístico.

Notas 1

A expressão “primeiros românticos” refere-se ao grupo de jovens pensadores (Novalis, August e Friedrich Schlegel, Hölderlin) que assumiram, de forma pioneira, a palavra “romântico” como ponto central de seu pensamento crítico empregado, segundo Pedro Duarte, no livro Estio do tempo: Romantismo e estética moderna. 2 No artigo “SIM ou ZERO: uma emergência artística coletiva entre os grupos de artistas e os coletivos artísticos”, publicada nos Anais do 24º Encontro da ANPAP/2015, o autor propõe este conceito para apresentar o SIM ou ZERO como exemplo de organização artística que antecede os coletivos, estando na gênese dos coletivos. 3 Segundo Sandra Rey (2002), o conceito operatório é o conceito que estrutura, fundamenta e articula todos os demais conceitos e ideias desenvolvidas em uma tese.

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O Visorama tinha como seus principais participantes Carla Guagliardi, Eduardo Coimbra, João Modé, Márcia Ramos, Marcus André, Ricardo Basbaum, Rodrigo Cardoso, Rosângela Rennó e valeska Soares, aos quais se juntaram posteriormente Analu Cunha e Brígida Baltar. Mantinham relações de afinidade e proximidade Maria Moreira, Márcia X. e Alex Hamburger, entre outros. 5 Entrevista de Laura Erber com Ricardo Basbaum para o DC Cultura, 07/05/2005. http://rbtxt.files.wordpress.com/2009/09/entrevista_laura_erber.pdf. Acessado em 01/06/2014. 6 Os artistas do Sim ou Zero adquiriram uma área de terreno em beira de praia capixaba. Nesse lugar construíram uma arquitetura a partir do conceito de que não queriam uma casa, mas um lugar onde pudessem morar, trabalhar, expor seus trabalhos, gerar condições autossustentáveis, conhecer pessoas, curtir, etc.; um “lugar de viver”. O lugar existiu por 12 anos. 7 Nicolas Bourriad no livro Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si (...), apropria-se do conceito de “invenção de si” de Michel Foucault, usando-o no subtítulo do referido livro. Trata-se de um termo cuja função procura “transpor para o nível da vida cotidiana o funcionamento do cérebro durante o sonho, criar a disponibilidade, o maravilhoso: a deriva urbana, criada pelos surrealistas e radicalizada pelos situacionistas, revela ser a prática de grupo por excelência”. (BORRIAUD, 2011, p. 77). 8 Título de música interpretada pelo cantor brasileiro Zéca Pagodinho; autoria de Serginho Meriti e Eri do Cais; Gravadora UNIVERSAL: 2002.

Referências: ARCANJO, Edison. Os Festivais de Verão em Nova Almeida e o projeto ’Você gostaria de participar de uma experiência artística?’”. Revista do Colóquio de Arte e Pesquisa do PPGAUFES, ano 4, v.3, n. 6, em junho 2014. BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. Tradução: Dorothée de Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011. DUARTE, Pedro. Estio do tempo: Romantismo e estética moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, em 2/12/1970. São Paulo: Loyola, 2011. ____. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012. HENDRICKS, Jon. O que é Fluxus? O que não é! O porquê. Brasília/Rio de Janeiro/Detroit: Centro Cultural do Banco do Brasil/The Gilbert and Lila Silverman Collection Foundantion, 2002. MORIN, Edgar; LA MINE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. São Paulo: Ed. Peirópolis, 2000. NADER, Fátima. Sim ou Zero: intervenções e instabilidade (apresentação oral). I Simpósio Internacional de Artes Visuais: A natureza pública da arte - Centro de Artes/UFES, 2008 REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (Org.) O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: E. Universidade/UFRGS, 2002, p.123-140. SIM OU ZERO: Publicação. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória: Editora UFES, 1993. VARGAS, Antônio; VASCONCELOS, Edmilson. SIM ou ZERO: uma emergência artística coletiva entre os grupos de artistas e os coletivos artísticos. Anais do 24º Encontro da ANPAP. Santa Maria, 2015.

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EU E OS OUTROS: QUESTÕES PSICANALÍTICAS NA OBRA E NO

DISCURSO DE LENORA ROSENFIELD

Kethlen Santini

Resumo. A ideia do presente trabalho é apresentar algumas das obras realizadas pela artista entre os anos de 1992 e 1995, e desconstituir o discurso da artista sobre seu trabalho a partir de algumas questões psicanalíticas freudianas que tratam da relação do Eu com o outro. Tais obras revelam uma artista que tenta não só desobedecer ao estado comum do sistema artístico local e da sociedade, mas também desconstruir, de alguma forma, a barreira que há em trabalhar a relação entre Arte e Psicanálise. Palavras - Chave: Lenora Rosenfield, Psicanálise, Bruxa. Abstract. The idea of this paper is to present some of the works made by the artist between 1992 and 1995, and to deconstruct the artist's discourse about her work from some Freudian psychoanalytic issues that deal with the relationship of Me and others. Such works reveal an artist who tries to not only disobey the common state of the local art system and society, but also to deconstruct, somehow, the barrier that exists in working the relation between art and psychoanalysis. Keywords: Lenora Rosenfield, Psychoanalysis, Witch.

Mãe, professora, restauradora, artista, são inúmeros os substantivos que se pode usar para denominar Lenora Rosenfield (1953). Sua vida, desde o início, é marcada por uma série de acontecimentos que auxiliaram em sua formação pessoal e profissional: a experiência nos diversos lugares em que morou – entre eles, Estados Unidos e Itália - que colaboraram para as várias mudanças contextuais em que se inseriu, contribuindo no dia a dia das pessoas que a circundaram e nos diversos ambientes em que se estabeleceu. Apesar do extenso currículo internacional, principalmente como pesquisadora, poucos ainda a conhecem pelo seu trabalho em restauração (em que foi pioneira em Porto Alegre) ou então como atual professora de pintura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vai ser através do presente trabalho que Lenora Rosenfield poderá ser ineditamente vista como a artista que trabalha em suas telas, essencialmente, a expressão de sua subjetividade e a relação com o outro. . No ano de 1995, Lenora Rosenfield termina sua dissertação de Mestrado chamada “Bruxas, monstros e demônios: uma representação pictórica”. Elementos da

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Psicanálise Freudiana aparecerão para dar sentido às suas obras e para combinar sua história e sua poética. Para associar “Eu e o Outro” na obra de Lenora Rosenfeld, na perspectiva psicanalítica, utilizarei os seguintes textos de Freud: A Interpretação dos Sonhos (1900); O Estranho (ou Das Unheimlich (1919)), O Duplo (1919), O Humor (1927) e A Morte (1914-1916). Dos aspectos a serem abordados da obra de Lenora Rosenfield na relação euoutro, primeiramente tratarei da questão do humor. A artista considera-se bemhumorada e irônica com si mesma, características que atribui à tradição da cultura judaica. É importante destacar o quanto Lenora considera tal tradição; a respeito das origens da sua família, seus quatro avós eram judeus e vieram da Ucrânia, Polônia e Turquia. Conforme relata, foi muito importante a sua convivência com eles, pois lhe ensinaram muito sobre cultura e imigração. Lenora tem até hoje exposto na parede da sua casa um tapete turco com mais de 150 anos que viera com seus avós e que surgirá, posteriormente, em algumas pinturas do Mestrado da artista. Retomando a questão do humor, Bernard Saper (1920 - 2006) atribui à referência do humor judaico à habilidade dos judeus de rirem através das lágrimas, provavelmente baseado no comentário bíblico atribuído a Salomão (Provérbios, cap. 14, versículo 13): “Mesmo quanto ri, pode doer o coração e ao terminar um momento de regozijo pode haver tristeza” (Bíblia Hebraica apud Brumer, 2009, p. 9). Por ora, percebe-se o que Lenora destacará nas suas obras terá em parte, relação com o que se entende como humor judaico. Na psicanálise, a questão do humor será tratada por Freud em termos amplos. Para ele, a essência do humor é poupar os afetos a que a situação naturalmente daria origem e afastar com graça a possibilidade de tais expressões de emoção (Freud, 1996). Não somente isso, mas também a própria atitude humorística seria aquela através da qual a pessoa se recusa a sofrer, dando ênfase à invencibilidade do ego pelo mundo real, sustentando vitoriosamente o princípio do prazer. Essa produção do prazer humorístico surgirá de uma economia de gesto em relação ao sentimento. O ego, nesse caso, insiste em não poder ser afetado pelos traumas do mundo externo (Freud, 1996) e demonstra que esses traumas não passaram de ocasiões para obter prazer e afastar-se do que quer que seja ruim ou traumático. Na prática, qual será então o papel do humor na obra de Lenora? Na obra Retrato refletido [imagem 1], Lenora se autorretrata de uma forma, digamos, “desconfigurada”. Estaria ela admitindo possuir um lado monstruoso? Ou estaria fazendo uma paródia de características suas; não como algo realista, mas

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subjetivo e fantasioso? A artista limita-se a dizer, de memória, que essas suas pinturas de autorretrato servem para exemplificar o fato de que o ato de pintar é também olhar-se no espelho, refletir-se e revelar-se. Por isso, pode se tornar autobiográfico, porém, não necessariamente realista.

1. Lenora ROSENFIELD (1953) | Retrato refletido, 1999 | Acrílica sobre tela, 106 x 75 cm| coleção da artista Fonte: Elaborada pela autora

Em uma das passagens das falas de Louise Bourgeois (1911 - 2010) (Bourgeois apud Rivera, 2002), nota-se a questão do espelho relacionada às suas obras, semelhante ao que Lenora desenvolverá. Segundo Tania Rivera (2002), a obra de Bourgeois mostra, de forma privilegiada, que a mulher é sempre outra numa medida de estranheza em que o próprio corpo da artista está presente – a própria Louise declara em 1993, em seu documentário: “está vendo este espelho? Não é por verdade – é um espelho deformador. Ele não me reflete; reflete outra pessoa. Uma espécie de imagem monstruosa de mim mesma. Então posso brincar com isso” (Bourgeois apud Rivera, 2002, p. 66-67). Esse brincar que consta em ambas as artistas, dá ar libertador, como se fosse, de certa forma, a maneira mais simples e não desgastante que encontraram para se descreverem imperfeitas.

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É em outro autorretrato que Lenora chamará a atenção para essa grande apropriação do humor na sua obra. Em Auto-retrato I [imagem 2], a artista se coloca no papel de uma bruxa que viaja em um tapete mágico que a leva para além do espaço da pintura, de onde pode retornar – isto é, uma capacidade de transitar do mundo real para o fantasioso. Escondido sob o tapete está um espectador infantil, que a artista interpreta como sendo seu filho. Na boca, a bruxa-mãe carrega uma batata quente que, segundo Lenora , faz gritar de amor (prazer) e dor, dois sentimentos que governam, simultaneamente, a vida emocional da mesma. (Rosenfield, 1995, p.38).

2. Lenora ROSENFIELD (1953)| Auto-retrato I, 1992| Acrílica sobre tela, 60x73cm| coleção da artista Fonte: Elaborada pela autora

Remetendo à maternidade, o vermelho do tapete Lenora (1995) expressa a relação uterina primária entre a mãe e o filho, semelhante à bolsa do canguru fêmea, que transporta no seu corpo o filhote. No caso do ser humano, embora tal conexão deixe com o tempo de ser física, para a mãe e para Lenora, ela jamais deixa de ser interior e espiritual. O tapete também representa toda a esfera do desconhecido que as bruxas representam. Em vez de vassoura, ela usa um tapete voador, que no registro de suas associações pessoais serve novamente para transportar os imigrantes, principalmente os orientais. A curva do tapete para a esquerda significaria, segundo ela, a intersecção entre os dois mundos, quando um mundo desliza no outro, estabelecendo a transição (Rosenfield, 1995, p.38).

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Estaria então Lenora Rosenfield desconfigurando a bruxa que conhecemos? Por um lado, representa a imagem tradicional da bruxa, seja pela relação com o medo, estranhamento ou pela deformação do físico e/ou emocional que ela mesma teria sentido um dia na sua infância. Por outro, propõe uma desconstrução com tudo que se vê dessa imagem criada da bruxa, trazendo nova perspectiva: da bruxa como mãe ou como um símbolo daquilo que se conhece, mas que não se enfrenta, não se admite, e que no fundo, nada mais é do que familiar a todos. Por que o medo então? E paralelamente, como forma de enfrentamento desse medo, qual seria a graça de ver essa figura como ela própria? É importante notar que Lenora desmitifica esse olhar tradicional da bruxa trazendo outra possibilidade, possivelmente mais humana, e a forma que mais lhe convém de apresentar essa desconstrução da imagem é o humor – seja ele perceptível ou não. E é aí que surge a ironia da artista ao se retratar deste modo, talvez para provar para si mesma e para o outro, que a imagem da bruxa pode ser muito mais do que conhecemos – aliás, penso ser este um dos motivos chave da apresentação do tema e de outros relacionados à questão das bruxas e dos monstros. Segundo Lenora, o aprendizado do real exorcizou o “demônio” interior, deformando-o. Já em relação à representação da figura humana, pintada a partir da imaginação, é a forma que encontrou para expressar a realidade interior reflexo de mundos interiores emanados de outros indivíduos: “É como se esses indivíduos emitissem sinais oriundos de seus espíritos que eu consigo sintetizar através de uma identificação inconsciente, que mais tarde é expresso pela pintura. Essa expressão fica à disposição do indivíduo, que pode então se identificar com o apresentado, podendo submetê-lo a uma decodificação pessoal” (Rosenfield, 1995, p. 53). E uma das formas através das quais a artista pôde acessar essa sua subjetividade foi à atitude humorística, que pode ser dirigida, segundo Freud (1996), tanto para o próprio eu do indivíduo, quanto para outras pessoas. Não há dúvida de que intencionando trabalhar com a temática de monstros e demônios, e, assim, usando e abusando de formas e cores que proporcionem experiências estéticas de surpresa, horror, negação, susto, entre muitos outras, a reação esperada diante das obras de Lenora, em um primeiro momento é a de estranhamento. Contudo, o que estará em jogo aqui é entender o fato de ela utilizar, em seu processo criativo, seus próprios medos e traumas infantis. Lenora teve, a partir da década de 90 até suas últimas obras do final do milênio, a intenção de passar para a tela questões da infância e experiências do passado, numa relação autobiográfica.

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Deve-se deixar claro que o resultado da reflexão e da busca visual foram novamente os monstros, revisados nesse mundo de fantasia de realidade – a artista lembra que eles não passam de uma figuração humana destinada a traduzir a mistura do sofrimento e da ironia que existe no mundo e no artista. Os seres humanos, para Lenora, necessitam, a fim de evoluir em direção à verdadeira humanidade, confrontar-se e conviver com seus próprios monstros internos. Para entender melhor essas e outras observações é preciso considerar um dos principais textos de Freud relacionados à arte e à psicanálise, intitulado O Estranho1, ou Unheimlich, (1919). Neste texto, Freud desvela um dos paradoxos do conceito de compulsão à repetição - a fronteira entre o conhecido e o desconhecido. O estranho (unheimlich) é algo que é secretamente familiar (heimlich-heimisch), que foi submetido à repressão e depois voltou (Freud, 1919, p.17), e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição. Freud viajou com seu irmão para a Grécia e, uma vez em Atenas, especificamente na Acrópole, pensou em algo que lhe chamou a atenção: “então tudo isso existe efetivamente, como aprendemos na escola?” (Freud apud Rivera, 2002, p. 42). O psicanalista se espanta com essa manifestação de incredulidade a respeito da existência de Atenas, e afirma tratar-se de um “estranhamento”, uma espécie de divisão de si mesmo em duas pessoas, uma que se espanta e outra que se surpreende com tal espanto, pois esperava uma declaração de contentamento e elevação (Rivera, 2002, p. 42-43). Essa vacilação da percepção, que Freud chega a comparar com eventuais alucinações em pessoas sãs, está próxima, segundo Rivera, ao que os quadros paranoico-críticos de Dalí suscitam, pondo em questão a efetividade da imagem (Rivera, 2002, p. 43). Na experiência de Freud, esse abalo da imagem mostra-se acompanhado por uma hesitação, uma vacilação do próprio sujeito que a contempla e, ao mesmo tempo, vê-se outro, tornado estranho (Rivera, 2002). A reação acima relatada pode ser considerada natural quando há o ato de olhar as obras de Lenora Rosenfield – seja pela familiaridade na forma de ver a si própria ou pelo tratamento do tema. Em consonância com os temas psicanalíticos aqui trabalhados, é importante retomar alguns pontos da biografia e do discurso da artista. Quando ela viaja para os Estados Unidos e para a Europa - e afirma algumas vezes que teria tido sorte naquelas ocasiões em que se viu solitária em diversos lugares, com repetidas possibilidades de

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fins infelizes (seja a morte, o sequestro, o desaparecimento, ou outros). Pensando a partir de Freud é fácil verificar que é apenas esse fator de repetição involuntária que cerca o que seria de outro modo, bastante inocente, o que impõe a ideia de algo fatídico e inescapável, quando em caso contrário, poderia se falar apenas em "sorte"- como Lenora fez. É possível reconhecer, na mente inconsciente, para Freud, a predominância da "compulsão à repetição", procedente dos impulsos inconscientes e provavelmente inerentes à própria natureza dos instintos, que quer que lembre esta íntima "compulsão à repetição" sendo percebido como algo estranho. Ou seja, concomitantemente à própria questão de Lenora Rosenfield trabalhar com a temática da fantasia “real” dos monstros, o animismo, a magia e bruxaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude de homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo assustador em algo estranho (Freud, 1919, p.17). Disso, surgirá a pergunta do psicanalista que complementa diretamente o discurso e a obra da artista: "[...] Qual é a origem do efeito estranho do silêncio, da escuridão e da solidão?" (Freud, 1919, p.19). Sobre esses fatores do silêncio, da solidão e da escuridão, segundo Freud, pode-se tão somente dizer que são realmente elementos que participam da formação da ansiedade infantil, e que deles a maioria dos seres humanos jamais se libertou inteiramente (Freud, 1919, p.26). Voltando para as obras, nesse jogo de sujeitos assumidos ou não, está a obra Dois Planos 2 [imagem 3]. Nesta tela, a artista trabalha a deformação, a ampliação ou até a apresentação de características. Como no caso da serpente Lilith ou da própria questão do espelho. Ela repete a temática do conto da Lilith da Cabala, como se nota na figura com a língua para fora, e apresenta, no lado oposto, uma reverberação da forma, ampliando o repertório de suas figuras subjetivas.

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3. Lenora ROSENFIELD (1953)| Dois Planos 2, 1996| Acrílica sobre tela, 100x115cm| coleção da artista Fonte: Elaborada pela autora

Edson de Sousa lembra que existe o fenômeno de automatismo, o qual confronta com uma autonomia do mecanismo. Esta característica é interessante, pois é própria a toda estrutura de repetição. Neste caso, pois, não haveria a possiblidade de interpretar uma ligação direta de repetição de histórias entre a bruxa, Lilith e Lenora? A artista apresentou em conversas, repetidas afirmações dessa busca da solidão e da ideia de estar sozinha em locais desconhecidos, estando a sorte e o destino em conformidade com seus atos. No plano artístico, teria Lenora percebido sua individualidade tanto nas escolhas temáticas para sua pintura, como também na descoberta do interesse pela restauração. No caso de Lilith, ela ficou sozinha depois de ser expulsa do paraíso, renegada por seu “mau comportamento”, e voltou num papel quase que “diabólico”, semelhantemente ao papel das bruxas. Sobre isso, Lenora compara essas figuras e personagens com aquelas mulheres que na Idade Média foram julgadas e demonizadas por agirem diferentemente do que a sociedade lhe propusera, e principalmente rompendo com o que os homens lhe estabeleceram – tais características (dentre muitas outras) que se encaixariam no que se conhece como misoginia. Outro conceito importante para a análise desse grupo de obras de Lenora Rosenfield é do Duplo, palavra essa plena de significação para a psicanálise, sobretudo após o texto O Estranho. Conforme a análise de Edson de Sousa (2001), o duplo, ou a

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metáfora da repetição de si mesmo, funciona como uma espécie de memória. O autor traz os argumentos de Marc Le Bot para sustentar a ideia de que toda imagem é um espelho de artifício que o pintor constrói com suas mãos para ali ver surgir seu duplo frente a frente. Transportando essa observação para uma imagem, observa-se a obra Espelho de Aumento, de Lenora [imagem 4]. Nesta, nota-se exatamente esse jogo entre duas pessoas, dois eus, duas maneiras de se ver – esse choque que acontece quando o duplo é percebido e, de certa forma, levado para uma perspectiva em que tudo que deveria estar omitido pode vir à tona, assim como um espelho de aumento.

4.

Lenora ROSENFIELD (1953)| Espelho de Aumento, 1997| Acrílica sobre tela, 80x100cm| coleção da artista Fonte: Elaborada pela autora

Sobre essa negação de enfrentar o outro (ou a si mesmo e suas várias faces), manifestada pelo artista, Freud irá acrescentar à ideia do duplo como alguma coisa construída para fazer frente a uma situação de perda, seja esta real ou simplesmente imaginária. Freud insiste que a ideia de duplo era na origem uma espécie de segurança contra o desaparecimento do eu - para ele é bem provável que a alma “imortal” tenha sido o primeiro duplo do corpo. Sob este ponto de vista, segundo Sousa, o duplo se constitui estruturalmente como uma espécie de resistência à castração (Freud apud Sousa, 2001, p.130). Voltando um pouco no tempo, Lenora, quando volta dos Estados Unidos (ficara um ano estudando, dos 19 aos 20 anos), no ano de 1973, começa um tratamento

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com um psiquiatra, vendo-se na necessidade de resolver os próprios conflitos emocionais, decorrentes tanto da viagem quanto do acidente que sofreu em que dois amigos morreram. Após, realiza análise com um psicanalista durante cinco anos. Na época, estudava, fazia cursos de arte, mas seu foco era o tratamento; - “Eu ia lá e eu queria me salvar, sair daquela angústia e daquela tristeza” (informação verbal, 2015). Mas ressalta: “Ter me desestruturado e me remontado me ajudou, pois se não tivesse acontecido tudo isso eu não teria procurado certas coisas.” (Informação verbal, 2015). Esse seria seu primeiro contato direto com a Psicanálise. Lenora Rosenfield, pois, quis apresentar em suas telas o seu Eu que foi uma construção decorrente de todas as suas experiências com o outro. As leituras de textos de Freud durante o Mestrado serviram para seu autoconhecimento e para a desconstrução, expressando pictoricamente o que encontrava reprimido dentro de si. Dentre os vários pontos observados, ficam algumas questões: Lenora marca, de certa forma, a arte gaúcha, apresentando temáticas ainda não de todo vistas e/ou exploradas – estariam alguns temas aqui observados, como no caso dos fantasmas infantis, entre eles os monstros e demônios, participando de outros trabalhos artísticos locais? E dentro da temática das bruxas, admitindo ter tangenciado um pouco esse trabalho, de um modo geral, como se dá esse papel da mulher que passou diversas gerações sem ser notada e sem ter seu trabalho reconhecido como tal? Ou, então, qual seria o potencial e a verdade dessa sexualidade e sensualidade impedidas pela sociedade patriarcal, posto nesse papel da mulher? Aliás, a mulher deve ser vista nesse papel? Apesar das várias perguntas, este trabalho se propôs a desdobrar o trabalho da artista Lenora Rosenfield, apresentando alternativas para se conhecer uma arte que se fez tanto no Rio Grande do Sul – e sobre a qual não havia se falado -, como no Brasil, lidando com uma artista que fez, sim, através de seus anacronismos, uma pintura cheia de valores emocionais, fantásticos e reais. 1

Importante destacar que o termo Unheimlich, em alemão, terá variação em sua tradução conforme o tradutor e a editora. Nas Obras Completas de Freud (v.14) editadas no Brasil pela Companhia das Letras, a tradução de Paulo César de Souza trará o termo como “O inquietante”.

Referências: BRUMER, Anita. “O humor judaico em questão”, WebMosaica - Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, v.1 n.2. (jul-dez) de 2009.

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FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud; edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.777p. KOFMAN, Sarah. A Infância da Arte: uma interpretação da Estética Freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. KON, Noemi Moriz. Freud e Seu Duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 1996. 219p. RIVERA, Tania. Arte e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. ROSENFIELD, Lenora. Bruxas, monstros e demônios: uma representação pictórica. 1995. Dissertação (mestrado em Artes Visuais) - Instituto de Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. SOUSA, Edson Luiz André de. Uma estética negativa em Freud. In: SOUSA, Edson Luiz André de (Org.) A Invenção da Vida - Arte e Psicanálise. Porto Alegre: Arte e Ofícios, 2001. 192 p.

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OBJETO MUSEOLÓGICO: MITO, DEMASIADO MITO

Fernanda do Canto

Resumo: O presente artigo trata de um encadeamento de ideias construído por meio de aforismos, parafraseando a obra “Humano, demasiado humano” de Friedrich Nietzsche. A partir desse estilo fragmentário de relacionar informações, desenvolve-se uma compreensão do objeto de museu como uma forma de construção e empoderamento social intencional. Palavras-chave: mito, objeto, museu, teoria. Abstract: This article is a chain of ideas built through aphorisms, paraphrasing the book "Human, All Too Human" of the philosopher Friedrich Nietzsche. From this fragmentary style of relating information, it aims to understand the museum object as a way of an intentional building and social empowerment. Keywords: myth, object, museum, theory

No presente artigo relacionam-se três textos, os artigos “O museu, a palavra, o retrato e o mito” de Tereza Cristina Scheiner (2008); “Museologia Social e Gênero” de Aida Rechena (2014) e o livro “Mitologias” de Roland Barthes (2010), visando uma compreensão sobre a museologia contemporânea e seus desdobramentos sobre políticas de acervo e comunicação com o público por meio da expografia. Para propiciar tal compreensão, a forma com que esses textos se relacionam poderia ser disposta de diversas maneiras. Escolheu-se, no entanto, explorar os aforismos, uma modalidade que auxilia na relação de ideias e facilita seu entendimento inclusive durante a concepção do texto. Embora não seja uma das modalidades de escrita mais comuns na academia, os aforismos são extremamente didáticos e objetivos e por este motivo, foram escolhidos. Um aforismo é um texto breve que enuncia uma regra, um pensamento, um princípio ou uma advertência. É um estilo de sentença que articula literatura e filosofia em que a percepção da vida, da sociedade, ou tudo que venha a ser objeto de pensamento, é realçado pela expressividade de uma mensagem verdadeira e concisa. Friedrich Nietzsche em “Humano, demasiado humano” (1986), os utiliza com maestria,

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tratando toda sua obra em aforismos. Embora ele não seja diretamente citado ao longo do texto, sua obra influencia este artigo. Do tratado de enfermidades escrito por Hipócrates de Cos em 460 a.C. até os famigerados tweets (publicados no servidor para microblogging twitter) com milhares de autores na contemporaneidade, os aforismos foram se transformando ao longo do tempo, ganhando e perdendo empatia, entrando e saindo de moda. À diferença dos axiomas, que são verdades óbvias e sem necessidade de comprovação, os aforismos são resultados empíricos, frequentemente utilizados em disciplinas de viés prático ou de metodologia científica variável, como a agricultura, a jurisprudência, a política, e claro, a museologia. 1. O objeto é especial. Nos primeiros estudos sobre Museologia, toma-se conhecimento da grande importância do objeto museológico como um ser representante de algo especial, que vai muito além de sua existência física, e que portanto, precisa ser conservado sob os cuidados de um museu. Mas um objeto não é especial por si próprio, o que determina sua excepcionalidade ou não é a intenção e o interesse do ser humano em sua preservação. 2. O objeto é vazio. A relação entre significante e significado presentes na semiologia se mantêm, em certo nível, na relação entre o objeto e a função museológica que representa. De acordo com Barthes (2010), um buquê de rosas tem um significante vazio, ao qual é possível atribuir diversos significados, todos eles abstratos e sem uma materialidade própria. Pode-se, com isso, representar a paixão, se o buquê estiver atrelado a um casal de namorados; ou a morte, se essas rosas estiverem sobre um caixão. Trazendo para o contexto expográfico, dependendo do contexto em que se insere, a pintura de uma rainha pode atrelar-se ao luxo e à riqueza; em outra proposta pode retratar a decadência de uma época e o prelúdio de uma grande revolução. O objetopintura é vazio em seu sentido, pois é a partir do significado atribuído que se valoriza ou desqualifica socialmente. 3. O objeto como mito. O objeto museológico sempre incorpora algum tipo de mito, já que à sua forma material é atribuído um sentido imaterial em essência. É um significante perpétuo para os diferentes tipos de significados que pode receber. É um corpo com almas mutáveis. Para Scheiner (2008, p.60), a relação entre o mito e o museu perpassa desde sua gênese até a contemporaneidade. Desde sua origem mítica existe uma percepção do museu “como espaço sacralizado de guarda da memória, local onde as musas vivem e falam.”, uma ideologia construída no auge do Iluminismo e que está relacionada à Grécia Antiga, aos deuses do Olimpo e, posteriormente, à burguesia

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europeia. Scheiner (2008) chama a atenção para as falhas dessa conceituação de museu como “o templo das musas”, pois de acordo com a mitologia grega, as musas não possuem de fato um espaço para habitarem no Olimpo, e se manifestam de forma abstrata, por meio das criações humanas. O museu não seria então seu templo, mas sim um local onde se materializam as ideias humanas, recriando a história por meio da memória. 4. O objeto é especial para alguns. Segundo Barthes (2010, p.223) “aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não ver no mito um sistema indutivo [...] o significante e o significado mantêm, para ele [o leitor], relações naturais.” Mas tais relações são construídas, selecionadas, reformuladas. Os objetos considerados especiais foram salvaguardados em coleções privadas, que por sua vez deram início aos maiores museus da Europa. Trata-se de um longo processo de valorização sociocultural, que culminou num novo tipo de documento responsável por contar a história da civilização. O objeto dá ciência e atesta a veracidade dos fatos históricos, por meio deles se constrói a ideia de passado e, em contrapartida, é a própria história quem “transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica.” (Barthes, 2010 p.200). E se por um lado Scheiner (2008, p.58) afirma que “O mito se perpetua, assim, como uma fala definida pela intenção, muito mais do que pela literalidade.”, um objeto museológico se perpetua pela intenção de torná-lo uma prova da história que supõe um real absoluto. 5. Objetos que já nascem mito. Alguns objetos nunca tiveram uma função original destituída e são criados diretamente com uma linguagem mítica. São relatos históricos de guerra, são adagas rituais, estátuas de culto; são insígnias, bandeiras, anéis de compromisso. São objetos que completam o sentido em si mesmos, são ao mesmo tempo significantes e significados. São signos. Porém, nem mesmo os signos são eternos, sempre estão em acordo com uma sociedade que os valida. 6. O objeto é poderoso. Por envolver essas relações de interesse sobre a história e a relação entre os seres, o objeto detém poderes que atuam diretamente sobre a memória de uma sociedade e portanto, sobre sua identidade social. A seleção do objeto permeia questionamentos, tais como: o que é digno de entrar em um museu, que tipo de patrimônio deve ser tombado, e portanto, quais memórias serão preservadas. O objeto mítico passa a ser evidentemente discriminatório, uma vez que a seleção do acervo reforça uma coerência própria. Em certas situações, a seletividade do acervo chega a ser criminosa e ofensiva.

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7. A construção do mito é poderosa. Da mesma forma que objetos são eleitos para representarem a memória da sociedade nos museus, padrões e estilos de vida são elevados à categoria de mito e, portanto, à condição de admiração, respeito e naturalidade. Segundo Aida Rechena (2014, p.158), “[...] a construção social da feminilidade e da masculinidade relaciona-se com a luta pelo poder e com a manutenção da hegemonia social, cultural e política, com clara vantagem histórica para o sexo masculino.” Com isso a autora problematiza todos os níveis de um museu: o uso de palavras supostamente neutras como “homem”, “sujeito” ou “indivíduo” para se referir às relações de homens e mulheres com o patrimônio; o acervo, especialmente as áreas patrimoniais relacionadas com o poder (político, militar, administrativo, econômico) estão muito mais relacionadas a objetos de uso predominantemente masculinos (e quando há objetos feminilizadosi, estes são por sua vez ilustrados com cores e formas bem seletas); e por fim, o próprio espaço, o território do museu é onde ocorre a relação com o patrimônio, está sendo considerado o cuidado expográfico na produção de sentido e nas relações entre os objetos? 8. A construção de gênero. Escolhe-se a questão de gênero, por sua invisibilização tanto na tipologia dos objetos museológicos quanto na forma de comunicação do museu com seu público. Se pensarmos por um momento sobre a maioria dos bens culturais imóveis classificados como monumentos de interesse nacional, veremos que se trata de edifícios associados ao exercício do poder masculino, tais como castelos, igrejas, palácios, que marcam de forma impositiva os territórios envolventes, constituindo-se em referentes da identidade e da memória coletiva (masculina). (RECHENA, 2014, p.167)

O objeto é especial para alguns, e esses alguns não estão vivendo numa sociedade distante, inacessível por pertencer a outra época ou a outra cultura muito diferente e incompreensível para o Ocidente. Os objetos podem ser verdadeiros segregadores sociais, dentro de uma mesma cultura, em qualquer época. 9. O objeto é mito de si mesmo. Discorreu-se até o momento sobre a afirmação de que todo objeto tombado está lá para falar de mitos que rodeiam determinada cultura, num determinado tempo/espaço. Contudo, a criação do objeto em si e sua vida prévia antes de dar entrada no museu fica muitas vezes em segundo plano. Permita-se imaginar que o objeto museológico recebeu como meta pertencer, por toda sua existência desde o tombamento até seu descarte, ao célebre hall de objetos representantes de uma época, de um fato, de um estilo de vida, de uma forma de vida. E ele merece ser conservado, devendo

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ficar à disposição para o conhecimento das futuras gerações. Para cumprir com essa grande missão, o objeto sacrifica sua função e seu contexto originais, tornando-se ele mesmo um mito, um mártir, uma força de poder. Considerações finais Por meio de aforismos, criados sob a síntese de alguns dos pensamentos e conceitos presentes nos artigos mencionados no início deste artigo, expõe-se de forma sintética algumas das questões sobre objetos de museu e sua mitificação. Parafraseando o pensamento presente em “Humano, demasiado humano” de Friedrich Nietzsche , chega- se ao título e concepção do mito enquanto mito de si mesmo. Se os mitos são narrativas que possuem um forte componente simbólico e foram criados para dar sentido às coisas do mundo, escrever sobre os objetos de museus como mitos, em forma de aforismos, ajuda a compreender o sentido dado ao que se quer guardar, preservar, cuidar, deixar de legado, fazendo com que reexaminemos também os possíveis sentidos das coisas e da vida. i

Percebem-se as sutilezas da castração linguística, inclusive na grande dificuldade em se encontrar uma palavra antônima para “masculinização”, da mesma forma que é muito difícil também definir o antônimo para “objeto fálico”. Se não são identificados e definidos pela linguagem, existirão mesmo esses objetos que se assemelham a uma vagina? É tão importante a vagina como é importante o pênis? Pior ainda é pensar nos sinônimos para “afeminado” sugeridos pelo dicionário do Microsoft Word 2011: “brando, mole, pusilânime, sensual, voluptuoso.” São apenas manifestações de linguagem “naturais”!

Referências: BARTHES, Roland. Mitologias. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010. 258 p. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. 5ª. ed. México: Editores Mexicanos Unidos, 1986. 346 p. Disponível em: <http://bit.ly/29e5I02>. Acesso em: 02 jul. 2016. RECHENA, Aida. Museologia Social e Gênero. Cadernos do Ceom, Chapecó, ano 27, n. 41, p.153-174, 20 jul. 2014. SCHEINER, Tereza Cristina. O museu, a palavra, o retrato e o mito. Museologia e Patrimônio: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.57-73, 2008. Semestral.

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ALGUMAS DIFERENSAS ENTRE DERRIDA E SAROYAN

Ítalo Alves

Resumo: Neste trabalho, discuto o poema “lighght”, do autor minimalista estadunidense Aram Saroyan, e relaciono-o com alguns aspectos da ideia de “diferensa” como elaborada pelo filósofo francês Jacques Derrida. Abordo questões de leitura e visualidade e argumento que uma interpretação de “lighght” passa pela compreensão de que a palavra, mais do que elemento “textual” pode ser concebida como elemento “visual”. Palavras-chave: sigarro. diferensa. lighght. Derrida. Saroyan. Abstract: In this work I discuss the poem “lighght”, by the American minimalist writer Aram Saroyan, and put it in relation to some aspects of the idea of “différance”, as elaborated by the French philosopher Jacques Derrida. I approach issues of reading and visuality and I argue that an interpretation of “lighght” must acknowledge that the word, more than “textual” element, can be conceived as “visual” element. Keywords: sigarette. différance. lighght. Derrida. Saroyan. 1 Falarei aqui, inicialmente, nesta curta apresentação, sobre uma palavra. Se o dicionário fosse algo em que pudéssemos confiar para este fim, essa palavra estaria localizada na seção de palavras que começam com a letra “S”. Refiro-me à palavra sigarro, com s. A palavra sigarro, com s, guarda uma semelhança patente com outra, talvez mais conhecida: cigarro, com c. Se na minha fala, porém [da qual este texto se pretende uma transcrição],1 eu não mencionasse que falo especificamente da palavra sigarro, com s, os que me ouvem seriam levados a crer que eu falaria da palavra cigarro, com c. Ambas, afinal, são pronunciadas da mesma forma. O suporte material de ambas, isto é, o ar que sai da minha boca com as articulações produzidas pelo meu aparelho fonador, é idêntico. A diferença é que a própria diferensa entre elas [chegarei à diferensa mais adiante] apenas surge quando as transporto ou transponho para o meio textual. A diferensa entre sigarro, com s, e cigarro, com c, se mostra apenas e exclusivamente no texto. E aqui talvez já haja pistas de onde eu quero chegar com isso. 1

Os trechos que se encontram entre colchetes são próprios do trabalho escrito e, portanto, não fazem parte da apresentação falada. Foram incluídos para auxiliar na leitura, e tão-somente na leitura.

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Em meados dos anos 1960, o poeta americano Aram Saroyan, vinculado ao que ficou conhecido como poesia concreta e minimalista, teve publicado no Chicago Review um poema seu intitulado lighght. O poema consistia em apenas uma palavra, que, pronunciada como a faço agora, significa, na língua inglesa, “luz”. A questão com lighght, porém, diz respeito a este poema minimalista de uma só palavra mostrar aquilo que se lê “light” escrito de uma forma não-gramatical. Em vez de “L-I-G-H-T”, lighght é escrito “L-I-G-H-G-H-T”. Não há nenhuma diferença na forma como são pronunciadas “light”, escrita com “G-H” e lighght, escrita com “G-H-G-H”; apenas, vejam bem, na forma como são escritas. Figura 1 – Aram Saroyan, lighght. Reprodução em serigrafia. 75 x 67,3 cm.

Fonte: THE PARIS REVIEW, 2016.

Essa diferença, entre light, com G-H, e lighght, com G-H-G-H, portanto, da mesma forma que com sigarro, com s, e cigarro, com c, só surge quando escrita. A diferença só existe por força do processo de diferenciação. Saroyan, em lighght, erige ao nível de objeto artístico um fenômeno que ocorre frequente e espontaneamente no uso da linguagem: a escritura da palavra que se diferencia como oposta à forma gramatical – meu exemplo de sigarro, com s, inclusive, foi buscado numa manifestação autêntica de um comentário de Facebook, apenas para citar como 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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exemplo. Faz isso, porém, evocando para seu objeto questões que só surgiriam através de um relacionamento reflexivo do objeto artístico consigo mesmo, e dizendo respeito a temas como a relação do fenômeno com seu estatuto/status e a relação do sujeito com seu objeto. lighght acaba por simular o efeito que temos quando falamos a mesma palavra repetidas vezes, por exemplo, até que ela perca completamente seu significado e vire, por assim dizer, um significante autossuficiente. Saroyan explora isso através de um caráter que é central nas artes visuais e caro à poesia concreta, o da visualidade. Qual é a relação possível de lighght, que afinal é um poema, com um sujeito que o vê? lighght deve ser lido ou visto? O que está em jogo em lighght, e esta é minha hipótese de trabalho, é a exploração visual, ou estética, da ideia de diferensa, como discutida pelo francês Jacques Derrida. E abordarei aqui alguns pontos que parecem interessar à análise. Meu objetivo não é exatamente fazer representar a diferensa derrideana através da poesia de Saroyan, nem analisar Saroyan a partir de conceitos de Derrida, mas fazer propriamente nenhum dos dois, o que talvez possa fazer surgir, pela mera aproximação desses autores à primeira vista não relacionados, ideias eventualmente interessantes para pensarmos tanto lighght quanto a diferensa. Este trabalho, eu diria, não é propriamente um trabalho de investigação artística. Também não o é de investigação filosófica ou linguística, nem de crítica de arte. Situa-se, um tanto mal acomodado, num espaço vazio de identificação difícil. 2 Derrida explora a ideia de diferensa, que ele faz questão de chamar de um não-conceito, pois se trata do próprio meio que faz a conceituação possível, em um texto homônimo publicado no livro Margens de Filosofia. Diferensa, que em português utilizo grafada com s em vez de c cedilha, é a tradução da palavra francesa différance, escrita com um a no lugar do e [em francês gramatical, différence]. Derrida se vale do neologismo como ponto de concatenação de uma série de ideias que pretende abordar. A primeira delas é a de que na linguagem há apenas diferenças. Avançando a partir dos estudos de Ferdinand de Saussure, em seu Curso de Linguística Geral, diferensa serve para explicar que, na linguagem, os significantes adquirem sentido apenas em função de suas diferenças em relação a outros significantes, jamais em uma relação inerente a si e ao significado. O que faz com que o significante “gato”, isto é, a palavra “gato”, aponte para o significado gato, isto é, o animal gato, não é nenhuma relação interna aos dois, senão uma relação entre o significante “gato” e todos os significantes

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“não-gato”. A diferença é negativa, e a relação entre significante e significado é infinita e instável. Diferir, tanto em francês quanto em português, tem dois significados – um deles, talvez, menos conhecido que o outro. O primeiro deles, poderíamos dizer, é espacial: ser ou tornar diferente, distinguir; e o segundo, temporal: diferir pode ser adiar, atrasar. Diferir como distinguir tem a ver com a ideia de que os signos funcionam distinguindo-se uns dos outros. Diferir como atrasar diz que a atribuição do significado a um significante depende sempre de um contexto. Não se apreende o significado de uma palavra ou frase em seu isolamento do resto. Preciso sempre, em relação a ela, diferir uma outra palavra, que com a anterior estabelecerá uma relação. O significado depende de signos posteriores que o interpretarão. Essa cadeia de relações, Derrida entende, é infinita. Um significante leva a outro, que leva a outro, que então leva a outro, e o significado, como tal, é sempre diferido, isto é, adiado, retardado. Não há, em suma, significado final. O significado é uma cadeia infinita de significantes. Esta seria uma ideia central para definirmos, se fosse o caso, o que é o projeto da desconstrução. Outro aspecto da palavra diferensa, com s, em relação a diferença, com c, é o dela não poder ser pronunciada diferentemente, apenas escrita diferentemente. Derrida, com isso, questiona o privilégio histórico da fala sobre escrita – da concepção da escrita como notação ou registro da fala. Diferensa, com s, mostra que a própria diferensa tem sua existência dependente de um registro escrito, textual. O texto é o meio da diferensa. A diferensa não pode ser dita, não pode ser ouvida, pode apenas lida. 3 E este é o insight principal que eu creio ter sido explorado em lighght e que me fez pretender aproximar Saroyan de Derrida em primeiro lugar. O poema de Saroyan, talvez por ser objeto artístico e estar ainda menos adstrito a uma tradição filosófica logocêntrica tão criticada por Derrida, conseguiria explorar aquilo que pode ser o caráter central da diferensa, a própria visualidade. Não há diferensa sem texto, diz Derrida, mas Saroyan parece sugerir que não há texto sem visualidade, que lhe serve tanto como condição de possibilidade quanto como elemento central. Qual é o processo de leitura possível em lighght? A escritura aqui aponta para a diferença que é, primeiro e mais superficialmente, uma diferença gramatical. lighght expressa uma palavra não-gramatical. Temos aí uma primeira diferença de signos gráficos. Mas lighght 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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demonstra, além disso, talvez também uma submissão à diferensa temporal em relação ao adiamento do significante que a diferiria em caráter espacial. Isto é, a palavra que acompanharia lighght, hipoteticamente falando, num processo de atribuição de sentido, está sempre-já ausente. Não se fala em uma “blue lighght”, por exemplo, ou em uma “shiny lighght”, mas tão-somente em “lighght”, como elemento que pretende uma autossuficiência mas ao mesmo tempo se submete à dinâmica de diferensiação de um significante por vir. Em razão dessa pretensa autossuficiência, lighght acaba brincando de esvaziar-se não só de significado, mas do próprio significante como tal. lighght, no fim das contas, não é nem uma palavra, nem um feixe de signos gráficos, é apenas um signo visual, muito menos determinado. Apenas para fins de contextualização histórica – o que, não nego, reforçaria o argumento a respeito de lighght exigir uma relação menos textual do que propriamente visual – informo que a imagem de lighght que mostrei anteriormente [Figura 1] não é da página da revista onde o poema foi publicado pela primeira vez, nem do livro Poemas Mínimos Completos, primeira publicação de coletânea do autor, onde também figura a obra. Trata-se, porém, de um exemplar de uma série de serigrafias sobre papel, em formato 75 x 67,3 cm, encomendadas pela revista americana The Paris Review e atualmente ainda à venda no site do periódico. lighght esgarça o lugar próprio do texto com objeto artístico e o traz quase ao seu limite antes de tornar-se o que se classificaria “obra visual”. A distinção entre a poesia de Saroyan e as obras de artistas que se baseiam pesadamente no texto, como Edward Ruscha, por exemplo, é tênue e borrada. E talvez esteja apenas no fato de lighght se autoproclamar poema e Saroyan poeta, enquanto “OOF”, obra de Rusha, se autoproclama óleo sobre tela e Ruscha, artista visual. Mas também não sei – deixo a questão em aberto. 4 Encaminhando-me à conclusão... Um projeto que poderíamos dizer que Saroyan teria desenvolvido tomando lighght como “pressuposto” foi um poema escrito pouco depois de lighght e que é às vezes citado como o poema mais curto já escrito. A obra consiste em uma letra “m” escrita com três pernas:

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Figura 2 – Aram Saroyan, poema, 1965–66.

Fonte: BRIEF POEMS, 2015.

Se a possibilidade de leitura em lighght já era questionada, agora, neste poema, que não pode nem ser escrito pelo editor de texto que usei para redigir este trabalho, a leitura é completamente esfacelada. Este poema ensejaria um trabalho novo e uma análise própria, o que não tenho tempo nem espaço para fazer aqui e agora. Terminando minha apresentação e já sugerindo um desenvolvimento a partir daqui, me limito a sugerir que, se lighght nos fez questionar do que é que precisamos para ler a palavra, este m com três pernas talvez ultrapasse o limite estabelecido entre o texto e o elemento visual não-textual. Não é mais “do que precisamos para ler a palavra?”, mas “como é possível vermos o próprio signo?”

Referências: BRIEF POEMS. Fireflies – one letter and one word poems. 31 out 2015. Acesso em 13 jul 2016. Disponível em: <https://briefpoems.wordpress.com/tag/aram-saroyan/>. DALY, Ian. You Call That Poetry?!: How seven letter managed to freak out an entire nation. Poetry Foundation. 15 ago 2007. Acesso em 13 jul 2016. Disponível em: <http://www.poetryfoundation.org/features/articles/detail/68913>. DERRIDA, Jacques. Différance.In: ______. Margins of Philosophy. [Tradução Alan Bass]. Chicago: The University of Chicago Press, 1986, p. 1–27. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. [Tradução Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro]. São Paulo: Perspectiva, 2004. SAUSSURE, Ferdinand de. Théorie du signe. In: Mounin, Georges. Ferdinand de Saussure: ou le structuraliste sans le savoir. Paris: Éditions Seghers, 1968, p. 107–120. THE PARIS REVIEW. ARAM SAROYAN, LIGHGHT. Disponível <http://store.theparisreview.org/products/aram-saroyan-lighght>. Acesso em 13 jul 2016.

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DO CAMP AO QUEER: DE FLÁVIO DE CARVALHO A ANA MENDITA Jackes Selistre Rosa Blanca

RESUMO: Pretende-se neste trabalho fazer um recorte da cena artística queer destacando as seguintes obras: Experiência nº3 (1956), de Flávio de Carvalho; e, Facial Hair Transplant (1972), de Ana Mendieta. Busca-se através dessas obras a reflexão a fim de DESconstruir e DESnaturalizar as imposições de gênero, bem como observar a importância dos estudos queer na década de 90 em que questionaram a hegemonia heterossexual no seio de uma sociedade patriarcal. É refletir acerca da naturalização de algo que foi socialmente construído, que não é inerente aos humanos. PALAVRAS-CHAVE: Arte e perspectiva queer, estudos queer, DESconstruir, DESnaturalizar o heteronormativo.

RESUMEN:Se pretende en este trabajo hacer un recorte de la escena artística de lo queer destacando las siguientes obras: Experiência nº3 (1556), de Flávio de Carvalho; Facial Hair Transplant (1972), de Ana Mendieta. Se busca a través de estas obras la reflexión a fin de DEconstruir y DESnaturalizar las imposiciones de género, bien como observar la importancia de los estudios queer en la década de los 90, que cuestionaron la hegemonía heterosexual en el seno de una sociedad patriarcal. Es reflejar la naturalización de lo socialmente construido, que no es inherente a los humanos. PALABRAS CLAVE: Arte de lo queer, estudios queer, DEconstruir, DESnaturalizar lo heteronormativo.

A emergência da luta feminista e racial ganha espaço em meio aos anos 80, com elas desenvolvem-se os estudos de gênero e sexualidade, bem como o desenvolvimento das teorias queer. A arte em sua amplitude temática abordou esses assuntos questionando a sociedade patriarcal, fazendo denúncias e posicionando-se politicamente em diversas ocasiões. Pode-se perceber um enfoque massivo à produção artística norte-ocidental, já que, via de regra, esse é “um espaço econômico, cultural e político que foi decisivo, e segue sendo, na hora de escrever a história sob um ângulo cultural hegemônico” (ALIAGA, 2010). Na observância do domínio euro-americano no campo das artes visuais, enfoca-se neste trabalho a arte do queer produzida na América Latina a fim de questionar a hegemonia euro-americana e de afirmar que a arte latino-americana não encontra-se ancorada apenas em aspectos exóticos e tropicais, mas que situa-se em um contexto de globalização. Tratar a arte queer na América Latina deve envolver certo entusiasmo, pois primeiramente observa-se que existe uma tendência em situar à arte latino-americana fora do

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circuito da arte euro-americana - dominante -, visto que “o controle exercido pelas antigas metrópoles não desapareceu e segue se infiltrando através de distintas formas de domínio econômico, político e cultural” (Idem, Ibidem). Mantida sob o olhar europeu e sendo rotulada como excêntrica, a arte latino-americana ganha espaço como suplemento da arte dominante. Interessa neste trabalho as obras desses artistas que trazem a estética queer em suas obras, e que desafiam as construções culturais impostas pela sociedade heteronormativa e que de alguma maneira DESconstroem e DESnaturalizam as imposições heterossexuais da sociedade patriarcal. As obras questionam a imposição dos padrões heteronormativos, sendo eles uma construção social, que não é inerente ao ser humano. As imposições verificam-se através do comportamento da sociedade em restringir a vontade individual tendo base nas construções socioculturais patriarcais. A sociedade e seus padrões atuam impedindo sujeitos individuais se comportem de maneira espontânea, impondo com que tais sujeitos se adequem às regras construídas socialmente pelo homem - carregando a ideia do patriarcalismo - e impedindo a proliferação daquilo que não condiz com as regras socialmente impostas. Busca-se desconstruir a ideia do gênero como algo perene, trazendo a lógica do natural versus artificial, sendo a construção e imposição de gênero uma invenção humana, que não é inerente, mas um artifício socialmente concebido. Estudos Queer, uma nova prática de vida Influenciados pelas constantes transformações da sociedade, pela luta feminista e racial em equidade de direitos, a partir dos anos 80 nos Estados Unidos desenvolveram-se as teorias queer, cujo significado literal do termo é estranho, excêntrico e era utilizado para injuriar homossexuais. O termo passou a ser apropriado e resignificado pelos próprios injuriados, e conotando “queer como uma prática de vida que se coloca contra as normas socialmente aceitas” (COLLING, s/d, p.1). Além da contravenção às regras heteronormativas, as teorias queer questionam as identidades cristalizadas e idealizadas, As práticas queer fazem tremer as estruturas do que se construíram nas políticas identitárias gays e lésbicas, dissolvendo os conceitos de minoria sexual e de comunidade gay e lésbica, e também de homem e mulher. Essas práticas baseiam-se na dificuldade fundamental da organização em torno da identidade: a instabilidade das identidades, tanto individuais como coletivas, o caráter artificial ainda que necessário das mesmas. (GAMSON, p. 141-2, 2002)

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Revela-se a busca por não encaixar-se nos rótulos socialmente aceitos, não assumir uma identidade definidora de um caráter, trata-se mais da instabilidade, da crise da identidade do sujeito pós-moderno. A apropriação do termo queer evidencia uma postura que não aceita apenas a sua condição, mas que utiliza-se daquilo que lhes ataca e converge a seu favor, Somos diferentes, quer dizer, livres de toda convenção, estranhos, estamos excluídos e nos sentimos orgulhosos disso, e a sua reação é problema seu ou é uma oportunidade para que você se sinta dominante queer não é tanto se rebelar contra a condição marginal, mas desfrutá-la. (GAMSON, 2002, p.151)

Dessa maneira, vê-se que as teorias queer questionam a lógica heteronormativa que se impõe frente outras práticas sexuais, questiona sua hegemonia através de um caráter exagerado, camp nas palavras de Sontag (1987). Queer não enquadra-se como um movimento em busca de direitos iguais, mas busca que sua presença seja notada em meio a sociedade, busca explorar novas possibilidades em meio ao corpo, à vestimenta ao comportamento. O termo camp assimila-se ao exagero de certos gestos homossexuais, um comportamento afetado que ironiza o comportamento dominante com as suas características estéticas chamativas, por vezes brega e chocante para a sociedade heteronormativa. Dessa maneira pode-se perceber a liberdade imbuída nas teorias queer o direito em poder representar o que se tem vontade, a contestação da lógica patriarcal, os avanços dos estudos de gênero e da própria aceitação em meio à sociedade pautada pelo machismo. Com os avanços da teorias queer pode-se perceber sua influência em diversas áreas do conhecimento. Nas artes a contestação dos valores patriarcais através de práticas contrárias à heteronormatividade e à imposição do socialmente aceito, a imposição do que cada indivíduo deve ser ou não vêm desde as vanguardas do início do século XX e teve seu ápice nos anos 70/80. Os campos de discussão ampliam-se e a temática queer passa a ser articulada na arte como uma série de críticas contra as hierarquias sexuais heteronormativas estabelecidas nas sociedades ocidentais, machistas e patriarcais. (ALBARRÁN DIEGO, 2007, p.298). Neste trabalho o foco será direcionado aos seguintes trabalhos: a performance denominada Experiência nº3, de Flávio de Carvalho (1956); a obra Facial Hair Transplant de Ana Mendieta (1972). Flavio de Carvalho – Experiência nº3 Antes mesmo da existência da teoria queer pode-se observar esse comportamento na obra dos mais diversos artistas, dentre eles, o brasileiro Flávio de Carvalho (1901-1977). A 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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performance de Carvalho constitui-se na proposta de um new look, uma nova roupa destinada aos homens tropicais. O traje era composto de blusa amarela de mangas curtas, saia verde acima do joelho, meia calça arrastão, sandália de couro e chapéu branco de nylon quase transparente. Desfilou seu new look pela capital paulista no dia 18 de outubro de 1956. O processo criativo de Carvalho iniciou-se com pesquisas acerca da história da moda, que foram analisadas através dos pensamentos de Charles Darwin e Sigmund Freud, por exemplo, assim de acordo com Flavio Roberto Lotuf (2006, p.339), o artista fez reflexões acerca das transformações sofridas pela indumentária através da história. Refletiu também sobre as modificações das formas das roupas femininas e masculinas. Os estudos acerca da história da indumentária culminaram numa série de artigos denominados “A moda e o novo homem” publicados por Carvalho no jornal Diário de São Paulo. Lotuf (2006) em sua pesquisa constatou que o artista utilizou-se de referências indumentárias em obras de arte e em diversos períodos da civilização, para assim produzir os croquis do que viria a ser o traje utilizado durante a performance. Sugere-se que o new look proposto por Flávio de Carvalho destaca-se pela desconstrução da roupa masculina/feminina. O artista apropria-se de peças do guarda-roupa feminino – desnaturalizando as ideias de que as roupas possuem sexo, empregando-as livremente dos parâmetros socialmente impostos e utilizando-as como a roupa do homem contemporâneo tropical, que enfrenta temperaturas elevadas. Assim essas roupas possuem um corte ideal para os dias de calor, pois não entram em contato com a pele e possuem aberturas que permitem que o corpo respire e que o suor evapore rapidamente. Salienta-se a contravenção às regras indumentárias da época, além de fazer uso de peças socialmente destinadas ao público feminino, Carvalho utilizou-se de cores vivas o que contrasta “às cores escuras impostas à burguesia pela nobreza como condição depreciativa” (LOTUF, 2006, p.340). Carvalho causou polêmica ao desfilar o traje destinado ao homem tropical contemporâneo. Uma multidão curiosa o seguiu em sua caminhada pelas ruas de São Paulo. Sua roupa questionava a imposição de roupa masculina e roupa feminina, questionava a imposição de um gênero a uma peça de roupa, de que saias pudessem ser vestidas única e exclusivamente por mulheres e não por homens, pois saias foram construídas socialmente para serem peças exclusivas do guarda-roupa feminino. A atitude de Carvalho relaciona-se muito aos estudos de gênero ao desconstruir o gênero das roupas, em uma atitude bastante atual ainda para os dias de hoje, Carvalho questiona o direcionamento das roupas a um determinado público de um determinado sexo. A rebeldia de seu ato aliado à sua característica 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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ironia relacionam-se às performances dadaístas. Sua rebeldia indumentária causou furor por onde passou e fez com que curiosos o seguissem pelas ruas. Carvalho nada mais estava fazendo do que uma análise dos papéis masculinos e femininos no momento de sua Experiência nº3 (Lotuf, p.345). O espanto da população diante desse novo comportamento mostra o desconhecimento da história da moda, visto que as saias foram usadas tanto por homens quanto por mulheres em

determinados

momentos

da

história.

ênfase

à

alienação

humana,

às

construções/imposições culturais/morais dessa sociedade, sua obra desconstrói as imposições patriarcais na indumentária. Carvalho quebra com o paradigma comportamental de sua época, assume e propõe uma roupa inédita a esse público, propõe a quebra de um paradigma em benefício do próprio homem, visto que a roupa em sua construção foi pensada e destinada ao homem tropical. O passeio de Carvalho pelas ruas de São Paulo pode ser relacionado ao espaço de ativismo pelas comunidades LGBTQ, na contemporaneidade. A rua, cenário de luta por direitos, onde pode-se praticar a democracia, a liberdade de expressão, o ato de reivindicar os direitos sociais e de descontruir paradigmas. Esse cenário, que opõe-se à instituição do museu, pois apresenta princípios anárquicos em relação à arte, visto que este não é um espaço que se submete à instituição, mas sim um espaço público de direito. Que não precisa respeitar regras impostas pelas instituições artísticas, pode-se considerar o verdadeiro espaço de autonomia da arte e dos protestos, já que não estão sob a tutela das instituições. Esse espaço aberto além de permitir a performance de Carvalho, permite o intercâmbio cultural entre o produtor e os transeuntes, além de permitir que o cidadão exerça a sua liberdade de expressão, desconstruindo preconceitos socialmente impostos, e usufruindo amplamente do espaço público. Estar fora da instituição significa tanto quanto estar fora do sistema, fora do alcance das regras institucionais. Estar fora do sistema permite questionar e contrariar o sistema. Em contrapartida à ruptura proposta por Carvalho ao desfilar o traje do homem dos trópicos cujas peças femininas foram desfiladas em plena rua, hoje essa performance já não mais contraria o sistema e a instituição artística completamente, visto que ela encontra-se presente nos livros de história da arte brasileira, e pode ser considerada como um ícone de ruptura pela própria academia. Mas apesar de agora essa performance fazer parte do sistema e dos livros de arte, ela não deixa de questionar e desconstruir as normas do gênero, do espaço expositivo, que foram impostas pela sociedade heteronormativa e pelo sistema da arte, respectivamente. A performance de Carvalho rompeu com o espaço expositivo fechado do museu, foi livremente às ruas dialogar com os transeuntes da São Paulo conservadora de 1956 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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questionando as imposições/construções socioculturais daquele período, que em grande parte assim continuam nos dias atuais. Antes a atitude de Carvalho fora vista com certo ineditismo e como afronta às regras artísticas, hoje pode-se ver que a obra está institucionalizada, seja pela própria história da arte, seja academia. Contudo essa obra não deixa de ser icônica para o período em que foi concebida. Certamente a partir dessa obra muitos outros artistas influenciaram-se ao analisar a maneira que Carvalho questiona as imposições sociais ao corpo e ao indivíduo. Dessa maneira, percebe-se que Experiência nº3 de Flávio de Carvalho foi uma obra que além de extrapolar o espaço expositivo do museu, extrapolou com as normas indumentárias, questionou e desconstruiu a imposição patriarcal daquela sociedade, questionando as construções socioculturais em que a sociedade está submetida. A revolucionária obra de Carvalho pode ser considerada como uma ruptura tanto para a arte tanto para os padrões socialmente aceitos daquela São Paulo de 1956. O seu passeio nesse dia 18 de outubro de 1956 certamente fez com que muitos que passavam na rua refletissem seja acerca da arte, acerca do comportamento daquele homem ou das regras indumentárias.

Flavio de Carvalho (1901-1977) Experiência nº3/new look Performance realizada em São Paulo no dia 18 de outubro de 1956

Ana Mendieta – sem título (facial hair transplant), 1972 A artista cubana radicada nos Estados Unidos, Ana Mendieta (1948-1985) utilizou-se do próprio corpo em suas obras, trazendo desde questões do corpo feminino ao imaginário pela busca de sua origem. Mendieta foi casada com o célebre escultor minimalista Carl Andre (1935), com quem morou em New York por um ano até seu trágico falecimento. Mendieta despencou do 34º andar do edifício onde vivia com Andre, muitas investigações foram feitas

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para apurar o caso, Andre fora intimado a depor e consequentemente fora considerado inocente. Em decorrência da revolução cubana inúmeras crianças emigraram de Cuba para os Estados Unidos como estudantes. Mendieta foi uma dessas crianças que emigrou, sua chegada ao estrangeiro fez com que sua percepção mudasse completamente. Mendieta era de uma família abastada com raízes europeias, sua vida muda completamente nos Estados Unidos, onde ela passa a morar em orfanatos, tendo que viver a base de caridade. Em decorrência da cor de sua pele Mendieta sofreu preconceito racial, era comum ouvir na rua frases como “volte para Cuba”. O preconceito sofrido por Mendieta fez com que isso se refletisse em seu trabalho artístico, essas experiências fizeram com que ela se autoproclamasse como uma artista e mulher de cor, ou como uma artista não branca (LÓPEZ-CABRALES, 2006). O preconceito sofrido pela artista refletiu-se em seu trabalho, de modo que além de considerarse uma artista de cor, pode-se ver uma forte carga política em sua obra. A relação que a artista desenvolve com a terra, com o meio ambiente e com o próprio corpo são evidências disso. A presença do corpo em sua obra é constante, a artista em suas obras elaborou diálogos de seu corpo com a terra, como na série executada três vezes no México Siluetas (1973/1974/1976) em que a artista imprime/delineia sua silhueta em elementos naturais como areia, terra, neve, árvores, grama, gelo ou rochas. Pode-se assimilar essa série ao momento migratório de Mendieta, que com apenas doze anos foi obrigada a deixar o país natal e ir junto de suas irmãs ao estrangeiro. Siluetas pode ser visto como um resgate, como um retorno à terra que a artista pertence, visto que a maior parte dessa série foi concebida no México, pois era um país onde a artista notava semelhanças com Cuba - já que as viagens a Cuba foram restringidas devido à falta de acordos diplomáticos. No México a artista via-se como integrante da sociedade, sentia-se similar às pessoas dali, com cor de pele igual, com o mesmo idioma natal, e com a cultura latino-americana bastante evidente. Siluetas é uma série que remonta um passado negado à artista, a negação de viver em seu país natal e pode ser compreendida como “obras que expressam o desejo de representar essa força feminina onipresente e a necessidade de regressar ao útero materno, é a sede de ser” (LÓPEZCABRALES, 2006, s/p.). Mendieta assume sua posição de mulher em meio a uma sociedade machista, exprimindo seu pensamento através de seu corpo em suas obras. Em Siluetas ressalta-se o corpo da artista, mas principalmente a ausência desse corpo, que encontra-se geralmente desenhado/delimitado na terra, grama. A presença da delimitação do corpo na terra é uma problemática interessante a ser analisada. Enfoca-se a presença da delimitação, mas não do corpo em si. O que encontra-se presente é o registro do corpo da 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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artista na terra. Pode-se relacionar ao momento do exílio nos Estados Unidos, arrancada bruscamente de sua própria terra, sendo levada para longe de sua família; e a obra encontra-se como um momento de reencontro, de reconexão com a terra de onde a artista fora arrancada. Pode-se ver como a busca das raízes que foram deixadas para trás em sua trajetória de vida. Além de trabalhar com o seu corpo nas Siluetas a artista o utilizou em diversas outras obras, bem como jogou com o conflito identitário, desconstruindo a binaridade de masculino e feminino. Como na obra Facial hair transplant (1972) em que a artista pede para que seu amigo Morty Sklar se barbeie para que ela transfira a barba cortada para o seu próprio rosto. Assim Mendieta gruda a barba em seu rosto, culminando em uma identidade ambígua que desconstrói as ideias patriarcais de atributos destinados ao sexo masculino ou feminino. Uma mulher com barba, a artista coloca em questão o paradoxo do feminino versus masculino. Questiona a identidade masculina e feminina, questiona as construções sociais impostas a uma fisionomia. Ao analisar a obra e a vida de Ana Mendieta é evidente o conflito identitário que a autora expressa em sua obra. Devido a suas experiências, Mendieta vivia uma identidade muito particular que se revela na sua arte, uma identidade fragmentada, descentrada, heterogênea, própria de alguém que não pertence a nenhum lugar. Como exilada, Mendieta possuía uma identidade fronteiriça. (LÓPEZ-CABRALES, 2006).

O ato de Mendieta usar barba nesta obra a torna uma figura cujo comportamento apresenta uma ambiguidade, questiona sexualidade: masculino ou feminino? O feito da artista ataca o binarismo socialmente aceito de homem/mulher, pois ela, usando a barba e sendo mulher enquadra-se nos dois. Assim o binarismo é desconstruído, pois a artista joga com a dualidade entre homem e mulher, sendo ambos ao mesmo tempo, ou nenhum, visto que não se enquadra nos parâmetros construídos pela sociedade patriarcal. Mendieta questiona, desconstrói e desnaturaliza as imposições sociais aos sexos, ao gênero atribuído a roupas, estilos e comportamentos. Ana fez com que o corpo da mulher fosse abstraído do trabalho algumas vezes, ela quebrou com as definições que a sociedade caracteriza como mulher e como o corpo da mulher deve parecer fisicamente para os outros. Mendieta transforma o corpo através do vidro, do sangue, de barba para mostrar como as mulheres não são mostradas na televisão ou nos filmes, mas sim como ela é no mundo real. (HEIDI, 2012).

É evidente a busca da liberdade do corpo da mulher, Mendieta mostra isso claramente ao transformar seu corpo tanto com a barba, quanto com as interferências que realizou com vidro. A transformação proposta pela artista em Facial Hair Transplant não é uma mera transformação corpórea, mas é uma transformação que joga com a ambiguidade, com os códigos binários sexuais de masculino, feminino – atuando como a desconstrução do 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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binarismo sexual imaginado. A obra coloca o espectador em uma posição questionadora, o que estou vendo? Do que se trata? Ao colocar-se a barba a artista assume uma sexualidade ambígua, o que questiona a lógica binária de masculino, feminino. A atitude de Mendieta ao colocar um bigode em seu rosto fez com que se questionasse a lógica do gênero na sociedade. A artista jogou com o binarismo sexual que compreende apenas homem e mulher, cada um com suas devidas características. O uso do bigode questionou as normas socialmente construídas, desconstruindo e desnaturalizando as ideias binárias socialmente aceitas pela heteronormatividade.

Ana Mendieta (1948-1985) Sem título (facial hair transplant), 1972 Fotografia em cor, 40,6 x 50,8cm

Considerações Finais À guisa de agrupar as ideias aqui apresentadas, pode-se constatar a importância dos estudos feministas e das teorias queer para o desenrolar da arte na contemporaneidade. Percebeu-se que os(as) artistas abordados(as) trouxeram amplos aspectos em que questionam o binarismo sexual e as imposições socioculturais de uma sociedade alicerçada no patriarcalismo. A ambiguidade presente nas imagens suscita a discussão da desconstrução e desnaturalização de algo que é imposto ao ser humano. Em suas obras, pode-se ver que os artistas, cada um a sua maneira, contrariaram as regras socialmente aceitas pela heteronormatividade e pela sociedade. Essas práticas artísticas no contexto queer expandiram os espaços para a arte, modificando as linguagens e as dimensões da expressividade subjetiva. Há um evidente deslocamento formal para a personagem artista. A performance como linguagem, ou a

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linguagem como performance, intensifica a subalternidade dos corpos abjetos, resignificando estéticas em devir. Não existe arte contemporânea sem divergências sexuais ou visuais. Nesse sentido, sugere-se que os questionamentos identitários constituem condições de possibilidade da arte contemporânea. Referências ALBARRÁN DIEGO, Juan. Representaciones del género y la sexualidad en el arte contemporáneo español. Foro de Educación, [S.l.], v. 5, n. 9, p. 297-309, sep. 2007. ISSN 1698-7802. Disponible en: <http://forodeeducacion.com/ojs/index.php/fde/article/view/195> Fecha de acceso: 23 mai. 2016. ALIAGA, Juan Vicente. Relatos desconformes: teoria queer, política e arte em um mundo póscolonial. In: GERALDO, Sheila Cabo; RIBEIRO, Marta; SIMÃO, Luciano Vinhosa (editores). Poiésis, Niterói, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zorge Zahar Editor, 2004. CRIMP, Douglas. Estudos culturais, cultura visual. Revista USP, Brasil, n. 40, p. 78-85, feb. 1999. ISSN 2316-9036. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/28422>. Acesso em: 21 mai. 2016. COLLING, Leandro. Mais definições em trânsito: Teoria queer. UFBA, Brasil. Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/TEORIAQUEER.pdf> Acesso em: 21 de mai. 2016. GAMSON, Joshua. Deben autodestruirse los movimientos identitarios? Un extraño dilema. In: JIMÉNEZ, Rafael M. Mérida. Sexualidades transgresoras. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icária editorial, 2002, p. 141 a 172. Disponível em: Google e-Books. HEIDI. Feminist Archive: Ana Mendieta. 2012. Disponível em: <http://courses.washington.edu/femart/final_project/wordpress/ana-mendieta/> Acesso: 24 mai. 2016. LOPEZ-CABRALES, María del Mar. Laberintos corporales en la obra de Ana Mendieta. Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2006. Disponível em: <https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero33/laberint.html> Acesso em: 20 de mai. 2016. LOTUFO, Flavio Roberto. Processo criativo de Flávio de Carvalho para sua experiência nº3. UNICAMP: II Encontro de História da Arte, p.339-349, Campinas, 2006. SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. In: Contra a interpretação. Porto Alegre: LPM, 1987. WARCHOL, Julie. Performed Invisibility: Ana Mendieta’s ‘Siluetas’. Disponível em: <http://www.smith.edu/artmuseum/index.php/Collections/Cunningham-Center/Blog-paperpeople/Performed-Invisibility-Ana-Mendieta-s-Siluetas> Acesso em: 20 de mai. 2016.

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OBRA E ENTORNO NA PRODUÇÃO DE ELIANE PROLIK, ENTRE 1990 E 2015. Juliana Largura

Resumo: Este artigo busca apresentar os resultados da pesquisa realizada no PIC 2015/2016, com o tema Obra e entorno na produção de Eliane Prolik, entre 1990 e 2015. A pesquisa bibliográfica e documental, esta última realizada no Museu Oscar Niemeyer (MON), Solar do Barão, Museu de Arte Contemporânea (MAC), bem como entrevista com a artista Eliane Prolik, fizeram parte do método escolhido para desenvolvimento da pesquisa em questão. Na escultura moderna, a relação entre o espaço, a obra e o espectador se modificam ao passo que as fronteiras da tridimensionalidade se ampliam. A escultura antes figurativa, modelada ou esculpida, se apresenta na obra de Prolik em matéria industrial, passando a se relacionar com o entorno, seja este arquitetônico ou urbano, e modificando as relações com o espectador. Partindo da ideia de isolamento metodológico (apresentado pelo historiador Artur Freitas) conceito o qual permite suspender, ou seja, retirar temporariamente o objeto de arte para análise, para posteriormente devolvê-lo a vida e a história, criou-se uma tipologia em torno das obras em questão e o entorno destas. Através desta tipologia desenvolvida, podemos definir quatro categorias de relação entre obra e entorno na produção da artista paranaense Eliane Prolik: intervalo entre peças (como nas obras Carne e Campânulas); a soma aos intervalos entre a parede (Naquilo e Defórmica); diálogo com o espaço arquitetônico (Atravessamento, Brises, Espelho-Espelho e Tapume) ou com o espaço urbano (Aparador e Cantos). Palavras-chave: arte paranaense; arte contemporânea; Eliane Prolik; escultura moderna; tridimensionalidade.

INTRODUÇÃO Este artigo analisa parte da obra de Eliane Prolik, reconhecida artista contemporânea paranaense, trabalha com obras tridimensionais que, entre outras coisas, problematizam a inserção espacial e a relação com o corpo do espectador. Suas obras bidimensionais oitentistas, exploravam a presença da imagem e da luz. Os trabalhos tridimensionais de Prolik surgem ainda na década de 80, momento em que a utilização de materiais industriais e a investigação dos modos de produção destaca-se no cenário local de arte contemporânea.

Sua investigação abrange a relação entre corpos

(escultórico e do observador) e amplia-se de modo a explorar o espaço arquitetônico, a paisagem e o entorno. Produções da década de 90, como Carnes (fig.01) e Cantos (fig.03) se relacionam com obras mais recentes da carreira artística de Prolik, como

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Atravessamento e Espelho-Espelho (fig.02), e caracterizam assim, o recorte temporal em questão. Para desenvolvimento de tal pesquisa, utilizou-se uma metodologia de análise da imagem, em que a própria imagem artística é o documento. Nesta, a imagem “não só constrói a nossa noção de história como consiste na própria história” (FREITAS, p.9, 2004). Torna-se necessário o isolamento da imagem para análise, porém, sem separá-la da História. Bem como mencionado por Ulpiano de Meneses (2003): “o uso documental da imagem “artística”, como vetor para não só produzir História mas também voltado para a elucidação de sua própria historicidade, é fato corrente, embora não dominante, na História da Arte.” Soma-se a esta metodologia, a pesquisa bibliográfica e documental, a última realizada no Museu Oscar Niemeyer (MON), Solar do Barão, Museu de Arte Contemporânea (MAC) e por meio da entrevista com a artista Eliane Prolik. Para esclarecer os pontos anteriores e na tentativa de organizar obras e entorno, criou-se uma tipologia. A análise das obras e de seus entornos em suas possíveis variáveis serão apresentadas no decorrer deste trabalho.

ARTE PARANAENSE E ELIANE PROLIK Eliane Prolik teve sua primeira participação no Salão Paranaense em 1981, com três trabalhos em heliografia e um audiovisual. Em 1982, participa do grupo Bicicleta¹ e em 1983, do Moto-contínuo². A negação do cavalete e a participação frequente do espectador, presentes em obras de artistas brasileiros como Lygia Clark, Hélio Oiticica, entre outros, é também comum tanto na obra de Prolik, como na obra de artistas paranaenses da mesma geração da autora desta, como Denise Bandeira, Laura Miranda, Carina Weidle, Rossana Guimarães, Eleonora Gutierrez e Didonet Thomaz. Desde a primeira década de produção da artista, a relação obra – entorno espectador se apresenta, como no caso da obra Lumen, a qual incorporava o espectador e o entorno através de espelhos que juntamente com heliografias, compuseram a obra exposta XIX Bienal Internacional de São Paulo, em 1987. Em 1991, Eliane Prolik desenvolve a obra Aparador, e em 1992, as obras Canto I e Canto II, para o projeto Escultura Pública³ que permitiu maior visibilidade da arte produzida na época. O fluxo contínuo e a urbanização presentes na capital paranaense

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na década de 90, eram evidenciados com a implantação de uma nova política de mobilidade urbana. Segundo a artista, a série Cantos possui ligação direta com a relação do transeunte, o espaço e a significação das políticas urbanísticas aplicadas: “Em Curitiba na época, se acentuava a ideia do fluxo como razão de ser da cidade [...] Interessava-me então, discutir uma possível interioridade citadina. As esculturas se inseriam em restos de calçadas ou ilhas de calçamento, não-lugares ou lugares sem significação própria.” (Prolik in Mesquita, 2005, p.97)

No mesmo ano, desenvolve a obra Carne, onde o uso da matéria industrial (cobre) e o trato com esta se distanciam do usual na escultura: “O cobre – condutor de energia – é trabalhado no calor do fogo, que impregna da cor vibrante, fazendo com que cada peça tenha uma superfície distinta, uma pele-memória que o fogo construiu.” (Mesquita in Chiarelli, 1997, p. 194). Há uma relação intrínseca entre o material industrial utilizado e o meio, visto que neste caso, a obra depende

não só da

disponibilidade do primeiro, como da mão-de-obra apta a moldá-lo.Tal ciclo gera um certo movimento local, propulsor de uma força tarefa específica entre a arte e o meio local industrial, necessários e presentes também nas obras de Atravessamento (2012) e Brises (2014). ESCULTURA MODERNA A relação entre espaço, obra e espectador se modificam ao passo que as fronteiras da tridimensionalidade se ampliam. Novos questionamentos se apresentam para a escultura, que até a Arte Moderna era vista somente como figurativa, modelada ou esculpida. Juntam-se ao desbaste e modelagem, também a colagem e a solda. Tal qual proposto por Judd em Specific Objects em 1965, esta nova categoria de “trabalho tridimensional”, não se encaixa nem como pintura, nem como escultura. O híbrido encontra o seu lugar, onde muitas vezes o objeto figurativo não se faz presente e a atenção se volta aos materiais utilizados e aos processos pelo qual a obra foi composta. A relação histórica da escultura com a ideia de monumento configurava a necessidade da relação entre base e objeto. Tal relação se desfaz na escultura moderna, em que a própria necessidade do objeto é questionada, e onde a base se faz presente, apenas se a obra assim solicitar. Esta nova arte de desenhar no espaço, trás consigo a complexidade de suas relações, que podem ser internas, como por exemplo: a relação da obra com a base (ou o fetiche desta, como conceito de Krauss), ou externas, como a

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relação da obra com o seu entorno, o espaço arquitetônico ou paisagem. Outro conceito de Krauss que se aplica as relações externas da obra é a condição negativa, ou seja, a ausência de local estável na escultura moderna. Para Tassinari (2001), três pontos são importantes na relação entre o mundo da obra e o mundo em comum na arte contemporânea: primeiro, os mundos se comunicam pelos sinais do fazer da obra; segundo, nesta comunicação, o mundo em comum se altera e terceiro, a relação do espectador com a obra é de inclusão e exclusão, na qual: O momento da exclusão vem da impossibilidade de o espectador desconectar-se de todo o espaço em comum, visto que um espaço em obra necessita ter aí seus apoios. A obra solicita o espectador para o seu mundo, mas ela só se individua completada pelo mundo em comum que o espectador não abandona inteiramente, mesmo quando a obra o conecta intensamente a ela.” (Tassinari, 2001, p.94-95)

A ausência do objeto figurativo modifica a relação do espectador com a obra, visto que essa possui signos dependentes do conhecimento anterior do espectador. A ausência de tais signos pode até ocasionar a não representatividade por parte de algumas obras. O questionamento e estudo das relações do entorno faz-se necessário e pertinente, a partir do momento em que “o espaço em comum passa a assumir funções que antes, na arte naturalista – e mesmo na formação da arte moderna - se cumpriam no próprio espaço da obra.” (Tassinari,2001,p.75). O questionamento deste carrega consigo um possível esclarecimento do termo “escultura”, bem como sua possível delimitação. Partindo da ideia de Freitas sobre o isolamento metodológico conceito o qual permite suspender, ou seja, retirar temporariamente o objeto de arte para análise, sendo posteriormente devolvido a vida e a história, criou-se uma tipologia em torno das obras em questão e o entorno destas. Através da tipologia, podemos definir quatro categorias de relação entre obra e entorno: intervalo entre peças (como nas obras Carne e Campânulas); a soma aos intervalos entre a parede (Naquilo e Defórmica); diálogo com o espaço arquitetônico (Atravessamento, Brises, Espelho-Espelho e Tapume) ou com o espaço urbano (Aparador e Cantos).

OBRA E ENTORNO

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A primeira tipologia definida entre obra e entorno é o intervalo entre as peças, presente nas obras Carnes e Campânulas. Em ambos os casos, as obras propositalmente tinham como base a mesa. As relações externas, entre obra e espectador, se ressignificam, ao passo que, a mesa representa o convívio e a troca. A obra Carnes possui certa “interioridade deslocada” defendida por Herkenhoff e que também é apresentada pela artista: “As esculturas remetiam ao interno e, imediatamente, ao movimento inverso, de seu exterior e entorno.” (Prolik in Mesquita, 2005, p.96). Nesta obra, a superfície do objeto (em cobre) carrega consigo o calor (conceito de Merleau Ponty explorado pela artista) e a mudança do centro da obra. A mudança, neste caso, é interiorizada e externalizada, pois ao considerar tanto o centro da obra, como o centro no espectador (o qual tem livre movimentação no entorno da obra), sugerem dois centros em movimento contínuo. Figura 01: Carne, Eliane Prolik, 1993

Fonte: Imagem Cedida por Eliane Prolik

As obras Campânulas e Naquilo possuem como semelhança a repetição de seus elementos, efeito o qual pode desencadear um possível escoamento de significado, segundo Foster (2014, p.126-127). Porém, a variável determinante nesta relação, é a relação espectador - obra - signo. Ainda que a repetição caracterize escoamento, o suporte ou o entorno, podem ser determinantes na afirmativa. O entorno vazio entre obras caracteriza a pausa necessária, o ponto ou a vírgula (ou quem sabe ambos). Longe de representar o nada, o vazio ao qual os olhos do espectador são direcionados, representa o breve entorno, constituintes do todo da obra. A segunda tipologia se constitui da soma dos intervalos na parede, presentes na série Defórmica e na obra Naquilo. A série Defórmica, realizada com tiras de fórmica coloridas em recortes que possuem relação direta com as dimensões humanas

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(braço/antebraço, perna/joelho, entre outras), nas quais “a cor e a variação das partes já tendem para o espaço real de observação” (FREITAS, 2010, p.25). Nota-se além da preocupação formal e colorímetra, a disposição interna das cores e a relação da composição da obra em correspondência com o espaço e a escala humana, ambas representadas dentro e fora da obra. Para o crítico de arte Ronaldo Brito: Ao aderir ao entorno contemporâneo, não euclidiano, Defórmica anuncia a feliz possibilidade de ordens instáveis e transitórias, por isso mesmo, atraentes. Colada ao plano do mundo, em franca empatia com a matéria mais comum do mundo, ela convoca um olhar qualificado e exigente, que se renova pelo exercício constante de perceber e discriminar diferenciações formais básicas, a incluir sem distinção, com a mesma intensidade, geometria e luz. (Brito, 2014)

O suporte soma-se à expansão da cor e o uso do espaço vazio amplia a tridimensionalidade na obra. O mesmo se aplica na obra Naquilo, formada de pias de banheiro brancas fixadas na parede. O intervalo entre pias, não somente pausa, como a amplia esta tridimensionalidade (já presente nas unidades em questão) e reafirma o deslocamento e a ressignificação. Porém, neste caso, a “obscuridade natural” do material (conceito de Krauss), se evidencia no fato de que as pias permanecem como objetos de uso e não como veículos de expressão. Nesse sentido, assim como os readymades transmitem “em um nível puramente abstrato, a ideia de simples exterioridade”, os tijolos refratários da Alavanca, de Andre (como as pias) tornam difícil “interpretá-los sobre uma perspectiva ilusionista ou identificar neles a alusão a uma vida interior da forma” (Krauss, 1998, p.300). A terceira tipologia forma-se do diálogo com o espaço arquitetônico, característica presente nas obras Atravessamento, Brises, Espelho-Espelho e Tapume. Em Atravessamento, a relação da obra com a escala humana faz o apelo para que esta seja percorrida e investigada. A identificação surge não somente na escala humana do adulto, as “prateleiras” presentes na lateral da obra permitem que tanto um adulto, como uma criança possam se relacionar com a obra de diversas maneiras. A forma de preenchimento do espaço demonstra também tal aptidão (ou a ausência desta) para percorrer a obra. Para Krauss, a passagem é a obsessão da escultura moderna, e é na passagem em que “a transformação da escultura – de um veículo estático e idealizado num veículo temporal e material -, que teve início com Rodin, atinge sua plenitude” (KRAUSS, 1998, p.341). Segundo a crítica de arte, tal obsessão coloca tanto o observador, o artista, como o mundo, numa “atitude de humildade fundamental a fim de

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encontrarem a profunda reciprocidade entre cada um deles e a obra”. (KRAUSS, 1998, p. 342). O centro de movimento passa a estar no observador, que não mais observa, mas, participa da obra. A própria existência da obra passa então a depender do observador. A relação de dependência tanto do espectador, como do espaço e tempo reais na arte contemporânea origina-se, entre outros aspectos, de um “hiato temporal”: “cápsulas de sentido sempre em devir, que nos fazem parar para nos tornarmos mais conscientes de nós mesmos: de onde estamos e o que somos.” (Chiarelli, 1997, p.171) Brises (2014) e Tapumes (2014), carregam consigo a ausência de relação hierárquica entre as unidades devido a repetição de forma e volume, como se através destas, o peso visual entre uma e outra unidade resultasse em força visual neutra. Ainda que em Brises, as unidades estejam suspensas, tal relação se manifesta. Em Espelho-Espelho (2014), a paisagem tem sua continuidade rompida e ao mesmo tempo continuada, pela escultura em espelhos. Tal qual a obra Sem título (Mirrored Boxes) de Robert Morris, 1965, onde figura e fundo se confundem. Novamente, fazendo uso dos conceitos de Kraus, afirma-se que a não paisagem é a arquitetura e a não arquitetura é a paisagem - sendo uma construída e cultural, e outra o não construído e natural). E onde, a escultura surge (no método Klen ou Piaget) como termo neutro entre paisagem e arquitetura. Figura 02: Espelho-Espelho, Eliane Prolik, 2015

Fonte: Imagem Cedida por Eliane Prolik

. A obra Aparador (atualmente exposta no Paço das Artes – São Paulo) se correlaciona tanto com o espaço urbano como com o espaço arquitetônico, se enquadrando tanto na terceira, como na quarta tipologia. Esta dupla relação se faz

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presente, pois, ao mesmo tempo em que se relaciona com a paisagem do espaço urbano, é dependente da cobertura do espaço arquitetônico. Elaborada de forma a ter dimensões de aparador (mobiliário doméstico), a obra se liga ao o espectador, nesta conexão e reconexão do corpo no espaço. Já a obra Cantos I e Cantos II, possuem uma relação intrínseca com o espaço urbano. Figura 03: Canto I e Canto II, Eliane Prolik, 1992

Fonte: Imagem Cedida por Eliane Prolik

Cantos tratam da ampliação do conceito de colagem na paisagem urbana. A inserção de uma obra no espaço público redireciona o fluxo de pedestres e carrega consigo o ato da mudança de percurso, pois, ainda que a obra não possa ou não deva ser percorrida, o espectador deverá desviar desta e reassumir um novo percurso. Tais obras trouxeram a discussão sobre o espaço público e a obra pública na capital paranaense. Hoje, ambas as obras realizadas para o projeto Escultura Móvel não se encontram no local de instalação inicial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda que possamos definir quatro categorias de relação entre obra e entorno: intervalo entre peças (como nas obras Carne e Campânulas); a soma aos intervalos entre a parede (Naquilo e Defórmica); diálogo com o espaço arquitetônico (Atravessamento, Brises, Espelho-Espelho e Tapume) ou com o espaço urbano (Aparador e Cantos), outras dimensões se apresentam na análise detalhada destas obras, e uma relação intrínseca à todas as obras tridimensionais analisadas é a relação tríplice: observador (ainda que este seja participante da obra), obra e entorno. A conexão entre estes três elementos imprescindíveis se dá na obra de Prolik, através do uso da escala. A

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proporção utilizada pela artista visa facilitar a identificação e decodificação dos signos impregnados na obra. Ainda que disponível visualmente, como Defórmica, a escala está presente também internamente na obra. E se além de visualmente, a obra solicite ainda a ação do observador (para que ele esteja presente na obra), como no caso de Atravessamento, a relação de proporção permanece. São conexões expandidas, tanto nas relações internas da obra - matéria e a possível tensão ocasionada por esta; o questionamento da unidade e do todo; a hierarquia no conjunto da obra - como as relações externas: o todo da obra com o entorno, a matéria desta com o meio e a sua a relação com a História. Percepções possíveis de serem aferidas através da metodologia de análise da imagem utilizada para o desenvolvimento deste artigo.

NOTAS 1 Grupo Bicicleta formado por Eliane Prolik, juntamente com Antonio Carlos Schrega, Denise Bandeira, Denise Roman, Geraldo Leão, Leila Pugnaloni, Luiz Hermano, Marco Antonio Camargo, Mohamed Ali, Raul Cruz e Rossana Guimarães apresentaram na sala de exposições do Teatro Guaíra a Mostra que se tornou um marco por trazer visibilidade a arte produzida no período. 2 Grupo Moto-contínuo era formado por Denise Bandeira, Eliane Prolik, Geraldo Leão, Mohamed Ali, Raul Cruz e Rossana Guimarães e explorava a ideia de circulação do trabalho de arte. 3 Projeto desenvolvido na capital paranaense pela Galeria Casa da Imagem e os artistas David Zugman, Denise Bandeira, Eliane Prolik, Laura Miranda, Rossana Guimarães e Yiftah Peled.

Referências: BRITO, Ronaldo. Da matéria do mundo. In: PROLIK, Eliane. Da matéria do mundo. Curitiba: MON, 2014. CHIARELLI, Tadeu. O tridimensional na arte brasileira dos anos 80 e 90: genealogias, superações. In: RIBENBOIM, R. (org.) Tridimensionalidade. São Paulo: Itaú Cultural, 1997. FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naif, 2014. FREITAS, Artur. A estética da presença: arte contemporânea em Curitiba nos anos 2000. In: FREITAS, Artur; JUSTINO, Maria José. Estado da arte: 40 anos de arte contemporânea no Paraná – 1970 – 2000. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2010. _____________. História e imagem: por uma abordagem tríplice. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n° 34, julho-dezembro de 2004, p. 3 – 21.

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KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MENESES, U. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 23, n.45, 2003. MESQUITA, Ivo (org.). Eliane Prolik: Noutro Lugar. São Paulo: Cosac Naify, 2005. TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

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A TELA E A CARNE EM ELISEU VISCONTI. Kethlen Kohl Rosângela Miranda Cherem

Resumo: Neste artigo apresentamos algumas reflexões sobre as pinturas de Eliseu Visconti, sobretudo, os nus de crianças, meninas em puberdade ou próximo dela. As obras subvertem a pintura do nu, pois ocultam o desejo do artista de possuir a carne através da criação pictórica. Palavra-chave: Eliseu Visconti, Nu, Pintura, Erotismo. Abstract: In this article we present some reflections about the paintings by Eliseu Visconti , above all, the children of naked girls in puberty or near it. How Works subvert the painting of the nude as conceal the wish of the artist to have a meat through the pictorial creation. Keywords: Eliseu Visconti, Naked, Painting, Eroticism.

A pintura como investigação: entre o tema e a coisa. Assim como outros artistas, Eliseu Visconti (1866-1944) dedicou muitos anos de sua carreira à pintura, incluindo nus. Conforme dados de seu site oficial, são muitas dezenas entre pinturas, esboços e desenhos deste gênero comum no período, embora não de crianças, sobretudo meninas em puberdade ou próximas dela, cujas telas causam um certo impacto e contrastam com suas cenas mitológicas e alegóricas, bem como paisagens e cenas cotidianas. Seu estudo do corpo subverte a pintura por conter uma mistura de preocupação estética com um bocado de sensualidade e erotismo. O pintor estudou diversos corpos em seus diferentes momentos, indo da infância à velhice, dos mais perfeitos aos mais desproporcionados, embora não disformes. Uma curiosidade pictórica o fez detalhar, através de diferentes situações, a relação do corpo com o tempo e suas marcas: o veludo da pele das crianças, a carne fosca do idoso, os pelos, as texturas dos tecidos, os objetos complementares ao ambiente. Aparentemente, diante da natureza dos procedimentos pictóricos em tempos de inquietações impressionistas e estéticas sucedâneas, o artista teria privilegiado as questões técnicas sobre as temáticas. Reconhecendo um meio onde a produção industrial e a reprodutibilidade técnica se acentuavam, reivindicava uma poética que não descuidasse da fatura, o que se confirma pelos seus trabalhos em cerâmica e vidraria. Todavia, observando

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atentamente, é possível avistar um cruzamento através do qual procurava manter vínculo com a tradição acadêmica e, ao mesmo tempo, assimilar as interrogações de um realismo ótico sofisticado à maneira de Courbet e Manet, passando pelas entradas de Degas e outros impressionistas. Borrando os limites daquilo que se convencionou rotular de pré-moderno ou tradicional e moderno, voltado para um questionamento acerca da imagem e dos problemas da realidade plástica, seu repertório implicava numa sorte de meta-pintura, ou seja uma abordagem pensante da pintura, onde o assunto era definido nela mesma pelo jogo de composição e desenho, cores e luzes, texturas e formas. Bem verdade que outros artistas do período e mesmo depois, mantendo sensibilidades e percepções semelhantes, incursionaram pela mesma temática e experimentações vizinhas, multiplicando exemplos como o fizeram na Argentina Eduardo Sívori com O despertar da criada (1867, óleo s/ tela, 192 x 131 cm); no México Felipe Gutiérrez com A caçadora dos Andes (1891, óleo s/ tela, 100 x 162 cm); no Peru Daniel Hernandez com Nu Reclinado (1899, óleo s/ tela, 93,3 x 151,1 cm). Tal parece ter sido também o caso de Nu com ventarola (1884), óleo sobre tela medindo 150 por 200 cm, executado enquanto Rodolfo Amoedo era bolsista na capital francesa. Nesta obra, sob a enigmática beleza de um corpo com rosto ausente, o artista materializou seu poder figural de fazer emergir pela matização das cores e sobreposição de texturas uma sensualidade carnal em pele e pelos. Vulneráveis em seu estado absorto, frágeis em seu sossego instável, entregues à languidão, incônscios ou perturbados pelo olhar alheio, os corpos nascem ora como pretexto para as fantasias dos espectadores (OLIVEIRA, 1991), ora como objeto das mais diversas experimentações plásticas, tornando-se ora corpo que tenta escapar através de um ponto de fuga, insinuando um tempo-espaço que se abre e se fecha sobre aquilo que ali se apresenta, ora jogo de fragmento e forma, mancha e cor viva, que nada pretende aludir para além ou atrás de si (GRUPO VELOX , 1999). Compondo e recompondo seu próprio arsenal pictórico, é importante assinalar que certos artistas realizaram este movimento a partir da imagem do corpo feminino deitado ou reclinado que reverberava desde as esculturas deitadas nos túmulos ou nos divãs conforme as cerâmicas antigas, relevos funerários e afrescos pompeianos, passando pela infindável série moderna, onde aquelas formas corpóreas retornam desde nas telas de Ticciano, Velásquez e Goya ou, posteriormente, nas de Diego de Rivera e Cândido Portinari. Se no fim dos oitocentos Nietzsche iria vaticinar a morte de Deus para falar do fim das certezas e dos grandes sistemas explicativos, desde algumas décadas antes realistas e simbolistas tentavam encarar os problemas da carne e do corpo feminino em tensão direta com certas noções de 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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beleza e anti-beleza. O corpo coagulado como matéria artística, literária ou pictórica, emblematizava a carne do mundo e a superfície das coisas, sendo que tanto na Europa como na América Latina tais injunções comparecem, quer no chamado ambiente acadêmico, como naquilo que o interrogou e buscou suceder. Neste sentido, para alcançar as pulsações contidas nas pinturas de Eliseu Visconti, talvez seja preciso ultrapassar as questões de território e nação para reconhecer que, por vezes mesmo cumprindo certas expectativas e atendendo às encomendas, os artistas conseguiram se distanciar do caráter ilustrativo e/ou narrativo, guardando naquelas formas todo um universo de inquietações e investigações plásticas que vinham sendo delineados desde o alvorecer moderno. Problemática que, por sua vez, adquire maior relevância em relação aos valores esboçados especialmente num tempo em que os sistemas explicativos iam sendo substituídos por sentimentos de extravio e errância, visibilizados na arte pela noção de bellum em contraposição ao belo e de desastre em substituição à aura das grandes certezas e crenças. Desse modo, se já parece lugar-comum dizer que estamos imersos no excesso de imagens a que somos bombardeados diariamente, torna-se pertinente à História da Arte considerar um campo em que os diferentes modos de produção e circulação imagética possam ser problematizados.

A série de Eliseu.

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Figura 1 - A caboclinha, Eliseu Visconti. 1891. Óleo sobre tela 96 x 50 cm. coleção particular.

Uma menina semi-nua está parada diante de um manto tingido de vermelho que recobre uma parede. Provavelmente é filha de alguma criada, pois sua pele possui uma tonalidade um pouco mais escura no rosto e na altura dos punhos e mãos. O braço direito porta uma pulseira e sua mão que se apoia no queixo corrobora um ar pensativo. Mais uma vez, parece tratar-se de uma montagem do retratista, pois não há naturalidade e leveza nos gestos, mas uma certa insegurança nos olhos que não fitam o observador e na ausência de sorriso. Destaca-se uma certa rigidez no corpo que está vestido apenas da metade para baixo, permitindo ver uma espécie grosseira de anágua sob uma vestimenta encardida e incompleta. Os pés parecem grandes e grosseiros, indicando alguém que andou muito tempo descalço.

Figura 2 - Nu de pé, Eliseu Visconti. 1892. Óleo sobre tela. 55 x 46 cm. coleção particular.

Assim como a Caboclinha essa outra menina nua parece desconfortável em frente ao pintor. Seus olhos melancólicos olham algum ponto distante enquanto a boca fechada parece amargar algo. Suas mãos grandes e desproporcionais sugerem que conhece os trabalhos braçais, quase sugerindo não pertencer ao corpo de uma criança. As pernas quase cruzadas parecem querer esconder sua genitália, enquanto os dedos de sua mão direita parecem contrariados em apontá-la, o que se confirma com a mão esquerda que, pelas costas segura seu punho direito. Pose adulta, corpo infantil, seguramente, o tédio e a contrariedade parecem predominar naquele retrato em situação de constrangimento.

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Figura 3- Menina com ventarola, Eliseu Visconti.1893. Óleo sobre tela. 65 x 81 cm. Museu nacional de belas artes, Rio de Janeiro.

Em a Menina com ventarola a relação entre corpo e pano é explicita. A pele apresenta uma textura lisa e macia, assim como os lençóis brancos que revelam uma parte do que está na beirada do colchão e contrastam com a parede. A menina encontra-se deitada sobre a cama, aquela criança é uma sorte particular de nudez. Cabelos curtos, olhos abaixados, um corpo que parece querer relaxar, enquanto a perna esquerda se contrai e reserva para não se expor em sua intimidade completa. A sensualidade insinuada se amplia na ventarola, objeto que faz parte do universo feminino e da sensualidade da mulher, deslindando por completo um semblante através do braço direito que se abre. A modelo apresenta estar à vontade, no entanto, sua pose com a ventarola não é natural, salientando que a cena deve ter sido composta pelo pintor.

Figura 4- Torso de menina, Eliseu Visconti. 1893. Óleo sobre tela. 76 x 63 cm. Pinacoteca do estado de São Paulo.

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A modelo de cabelos curtos e escuros tem o corpo retorcido e encena uma pose com a mão direita na cintura, embora sentada e encostada na parede. As sobrancelhas levantadas estão muito perto da testa e o olhar sem alegria sugere uma mistura de espanto e desdém. A boca e bochecha ainda são de menina, mas estão longe de parecer esboçar um sorriso. Assim como a caboclinha, essa menina está com o vestido abaixo da cintura, embora este pequeno corpo indique que os seios estão a crescer. Provavelmente esta filha de escravos, serve como um objeto curioso ao pintor que encontra um corpo se transformando em outro, uma menina virando mulher. A No Verão (1894, óleo s/ tela, 58 x 80 cm) se assemelha a Menina com ventarola tanto na luminosidade quanto na composição pois a cama parece ser a mesma em um ângulo diferente. As duas meninas deitadas, sendo que uma está dormindo afundada no travesseiro e tão entregue ao sono que o braço escapa da cama. A que está desperta encara o pintorespectador, destacando-se um olhar suspenso entre a cumplicidade, a melancolia e a interrogação. Há uma espécie de naturalidade da cena cotidiana, ao contrário das outras pinturas que parecem ser artificialmente montadas pelo artista que parece apenas testemunhar o encontro da pele das meninas com o tecido branco dos lençóis em um momento não muito frio do ano. A composição de Gioventù (1898, óleo s/ tela, 65 x 49 cm) se diferencia de todas as outras, a menina se parece com um ser mitológico que vive com os pássaros na floresta, o que aproxima a cena mais da fantasia do que da realidade. Sua pele branca e acetinada contrasta com os olhos negros, realçados pelas sobrancelhas claras e quase despercebidas no rosto delicado. Anelando os cabelos ruivos, seu dedo fino encosta levemente no queixo, num movimento sutil que amplia a sensação de leveza. O tronco desnudo dá a ver os seios pequenos e em formação. Somente da cintura para baixo o corpo está envolvido num fino véu, cuja força de película também se estende ao braço esquerdo. A garota está cercada por pequenos pombos muito brancos num ambiente que parece uma figuração onírica ou irreal. Menino nu (1897, óleo s/ tela, 100 x 55 cm) Assim como a menina negra o garoto também está deixando de ser criança. O movimento do corpo parece mais suave diante da rigidez das outras modelos. Seu corpo está em desenvolvimento, os braços e as pernas estão crescendo mais rápido que o tronco. As extremidades, mão e pés, já são quase as de um homem. A pele branca e lisa sem pelos ainda é de uma criança. Mais um estuo dos corpos que estão a desabrochar, são magros, finos e desajeitados. Nem todos os nus de Eliseu Visconti foram de crianças. Nu masculino de frente (1893, óleo s/ tela, 80 x 58 cm), trata-se do nu masculino de um homem feito, provavelmente um 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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modelo usado para alguma aula de pintura, conforme indicam os cavaletes e as telas ao seu redor. Ao fundo encontra-se um outro modelo despido, permitindo reconhecer que o corpo nu era algo comum para um pintor trabalhar, observando estado emocional e biológico, bem como permite exercitar um olhar para as formas e volumes, cores e planos, constituindo-se como uma espécie de objeto a ser explorado e aprimorado através da pintura.

Figura 5- Velho sentado, Eliseu Visconti. 1894. Óleo sobre tela, 98,6 x 72,4 cm. Museu Dom João VI, Escola de Belas Artes, Rio de Janeiro.

Visconti não se contentou em pintar crianças na puberdade ou homens e mulheres na flor da idade. Pintou também corpos velhos e nada viris. É o caso do homem sentado com a mão direita colocada na altura do coração, enquanto deixa a outra descansada sobre a perna. Sobre a genitália traz o que parece ser uma folha ou cobertura verde, lembrando um Adão cansado, cujas mãos avermelhadas de quem se expõe longamente ao sol, contrasta com um corpo enrugado e fosco, a pele flácida, as costas corcundas, os cabelos brancos. Algumas pinceladas antes de finalizar. Como atualizar a questão dos nus de Eliseu Visconti? Um caminho parece se abrir quando se considera interlocuções mais recentes sobre a própria carnalidade da pintura. Considere-se a questão da representação pictórica da carne como uma problemática cara a Georges Didi-Huberman (DIDI-HUBERMAN, 2005), quando este autor observa que uma carne nua na arte nunca é como uma carne nua no mundo. Para o autor, a nudez na arte não se

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iguala à nudez real, pois é uma nudez simbólica e como tal, simulada, fingida, despojada de sua naturalidade. Ou seja, uma imagem nua na arte não é uma nudez real, mas uma desnudez, isto é, uma nudez idealizada. Ao ironizar a confusão entre nudez e desnudez, compara-a com o recalque freudiano, mecanismo de defesa no qual o sujeito cria uma anulação retroativa do desejo carnal que originou a apreciação artística, ficando apenas com a forma abstrata e metafórica da nudez. Tal confusão ignora a desnudez como um recalque da nudez real e carnal, um recalque do desejo. Em clave pós-freudiana, pondera que o recalcado nunca é aniquilado, mas funciona obliquamente, podendo-se considerar que a desnudez artística tira sua força, fascinação e sentido disso mesmo que busca ocultar, do desejo pela carne, do desejo do artista de possuir, de submeter, de criar a carnalidade, e do desejo do expectador de espiá-la, destrinchá-la. Dentre muitas possíveis, outra interlocução pertinente permite cruzar, ainda que com certos cuidados conceituais, as leituras de Merleau-Ponty (MERLEAU-PONTY, 1994) e Deleuze (DELEUZE, 2007) os quais parecem concordar num aspecto: a carne é anterior ao corpo e a sua conceitualização, figuração e/ou simbolização, enquanto o corpo é um conceito histórico, formado através de simbologias ao longo da história humana. A carne não tem forma, apenas o corpo a possui, é um poro aberto, atravessado pelo mundo e pela alteridade, é anterior ao humano, elo entre o humano e o animal, o abrigo da animalidade no homem. A carne é pré-histórica, pré-linguística, anterior a todo conceito, a toda forma. Antes de passar pela fase do espelho no narcisismo primário, a criança não tem um corpo, ela não se vê como um corpo formado, cujos membros formam um esquema figural. Ela é uma massa de carne, que não distingue entre uma boca que suga e um seio que nutre, ela é um poro aberto. Somos todos, homens e animais, de carne e sangue e ossos e tripas e excrementos, mas através da história, da cultura e da linguagem a criança aos poucos se constitui em um corpo imagético, conceitual. Explicando a capacidade de Rembrandt de representar a própria carnalidade, Jean Genet (GENET, 2002) assinala que o pintor nos confronta com o igual valor de todas as coisas, porque todas são reais, existem. Em todos os seus personagens os corpos cumprem bem suas funções: digerem, estão quentes, pesados, respiram, evacuam. Rembrandt parece querer mostrar que a carne está presente, que ela nasce, apodrece e morre e tudo isso tem o mesmo valor, logo, não precisa ser escamoteado atrás de uma figuração simbólica do corpo. Após pintar inúmeros corpos, em suas últimas obras Rembrandt vai direto ao assunto, pintando a própria carne. É como um grito ousado que assume de um só golpe que não somos apenas um corpo imagético e simbólico, mas que somos tudo isso: somos de carne, de bife, de 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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sangue, de lágrimas, de suores, de merda, de inteligência, de ternura, de outras coisas ainda, ao infinito, sem que nenhuma negue as outras, ou melhor: cada uma saudando as outras. Ao explorar o corpo e apreciar as pinceladas imprecisas, Eliseu Visconti permite certas aproximações com as questões do orgânico, da pele e da carne, bem como da pintura como ornamento capaz de revestir sua condição efêmera e perecível. Por certo não estava sozinho, embora não tenha sido associado ao modernismo de 22, suas inquietações traziam muito do que consideravam os contemporâneos de Freud, como Klimt (1861-1918) e Schiele (1890-1918). Certamente, não leu Nietzsche (NIETZSCHE, 1987), mas concordaria com o fato de que o conhecimento não é nobre e nem sublime, é logro, disfarce e engano assentado sobre a mentira, a matéria é um erro e o mundo não é orgânico. Considerando que a existência humana pressupõe o engano e que apenas o artifício faz a existência suportável, somente a filosofia pode fazer da existência um fenômeno estético e a arte fazer da mentira uma potência. Referências: DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. A lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. DIDI-HUBERMAN, G. Vênus rajada. Argentina: Ed. Losada, 2005. GENET, J. Rembrandt. Ed. José Olímpio: Rio de janeiro, 2002. GRUPO VELOX ( Org.). Pintura latinoamericana. Buenos Aires: Ed. El Ateneo, 1999. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1994. NIETZSCHE. Friedrich. Sobre verdade e a mentira no sentido extra-moral. In: Obras incompletas. São Paulo, Nova Cultural, 1987,vl. I. OLIVEIRA, Maria Alice Milliet (org). O desejo na Academia, 1847 -1916. Catálogo de Exposição. PINACOTECA-SP, PW, 1991

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DESCOMPOSTURA ERÓTICA

Louise Salomé

Resumo: Descompostura: momento de suspensão do ser fechado. Compositura, do latim, é o ato de colocar junto, numa posição adequada. A descompostura aqui é erótica enquanto encontro que desestabiliza. Eros como arrebatamento e perdição, não só união, eros como união porque arrebatamento e perdição. Experimentar a própria morte em vida, em atalho, passagem não como uma decomposição cujo fim é certo, porém como descompostura sem finalidade. Palavras chave: descompostura, erotismo, Georges Bataille, gozo, Jacques Lacan

Amar é desaparecer e encontrar a tua alma no outro. Alejandro Jodoroswsky

O solitário Para mim é odioso seguir e também guiar. Obedecer? Não! E tampouco- governar! Quem não é terrível para si, a ninguém inspira terror: e somente quem inspira terror é capaz de comandar. Para mim já é odioso governar a mim mesmo! Gosto, como os animais da floresta e do mar, de por algum tempo me perder, de permanecer num amável recanto a cismar, e enfim me chamar pela distância, seduzindo-me para voltar a mim. Friedrich Wilhelm Nietzsche Não por acaso começamos com essas duas epígrafes. O amor de Jodorowsky: perderse e se encontrar no outro entra em relação com o de Nietzsche no Solitário, perdendo-se se si mesmo no outro, no mundo, num desconhecido de si. Assim queremos introduzir esse movimento constante do erotismo: de formação e “desformação”, compostura e descompostura. 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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Dizer que um ser navega pelo rio do não ser, não é se se tratar de um absoluto não ser, nem de um absoluto ser, mas ambos se tocando mutuamente, se comunicando, penetrando, violando. Qual limite encontro ao tocar a pluralidade de um corpo que se oferece a mim? Isso é fundamental, pressupor necessariamente o outro. Podemos ser solitários mas não estamos sozinhos. Bataille colocava um paradoxo em relação ao não-saber: um não-saber que, sendo falado, implicava um saber, ou seja, positivo e negativo cada um sendo possível só “em relação” com o outro, só porque o outro existe e porque afeta intimamente, porque há dois em alguma medida isolados em si mesmos. O não-ser implica o ser como um oposto, e assim “o não-ser coloca o ser em jogo” e também o sentido contrário, o ser coloca o não ser em jogo: experimentar a morte em vida, todo o movimento das coisas, descompostura, reconfiguração. Esse aspecto de penetração entre o ser e o não ser seja talvez por onde o erotismo é considerado por Bataille com tanta atenção, a violência, a violação. O encontro é a comunicação íntima, a mútua descompostura de dois seres opostos. O ser é descomposto porque ele é olhado, tocado, penetrado com uma violência abrupta pelo não ser, por aquilo que é o radical oposto do ser. Não há apenas uma passividade do ser composto, se há ser, é porque há resistência, limites, uma resistência ao não ser, e aí vem a angústia, a angústia do ser diante do não ser. Se houvesse uma completa passividade, um total aberto à violência, o erotismo não teria a ver com perdição, violação, e experiência de morte. Não se trataria de descompostura, no fim das contas. Do latim compositura, a compostura é o ato de colocar junto, numa posição adequada. A descompostura aqui é erótica enquanto encontro que desestabiliza. Eros como arrebatamento e perdição, não só união. A partir do instante que há um arrebatamento, uma descompostura, é que pode haver união, união, de dois, e porque não de três seres? O isolamento se mantém em alguma medida, mesmo na sua superação pela comunicação. No livro de 1976, Otobiografias, Jacques Derrida vai pensar a autobiografia partindo do livro de Friedrich Nietzsche (livro que ele não queria que fosse publicado nem depois de sua morte): Ecce Homo- Como alguém se torna o que é. Nietzsche começa este livro falando que ao completar seus quarenta e quatro anos ele olhou para trás e olhou para frente, e nunca tinha visto tão belas coisas... “e assim eu conto a minha vida”, Nietzsche anuncia. Para Derrida essa vida, contada, é a vida do filósofo que ele inventou. E não seriam as autobiografias um fazer da vida uma obra de arte? Inventar uma vida para si, pela escrita, lembramos o que dizia a grande amada de Nietzsche, Lou Salomé: “Não te enganes, a vida vai tratar-te mal, portanto se queres uma vida, aprenda a roubá-la.” 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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Derrida se detém particularmente no aforisma que se chama Da redenção do Zaratustra de Nietzsche (livro inspirado em Lou Salomé), onde o filósofo alemão discorre sobre culpa e punição Até agora, segundo ele, o espírito humano se quis vingar do que foi, e a redenção seria justamente, não apenas aceitar, mas amar e transformar todo “assim foi” em “assim eu o quis”: amor fati, amor ao destino, “que seja este, doravante, o meu amor!”. Amar não apenas o seu destino trágico, amar também a dor de existir enquanto destino recomeçado a cada dia. Essa torna-se a formula de superação do homem, do que ele vai chamar na Gaia Ciência de: “espirito livre”. E quando você não mais se envergonhasse de si mesmo, estaria livre. Transforma a ação sofrida passivamente em potência para uma futura ação subjetiva. Derrida vai citar uma parte do Da redenção: E, quando saí da minha solidão e passei, pela primeira vez, nesta ponte, não acreditava nos meus olhos e olhei e voltei a olhar e, por fim, disse: “Isso aí é uma orelha! Uma orelha grande como um homem!” Olhei melhor: e, realmente, debaixo da orelha, movia-se alguma coisa, que dava pena, de tão pequena e grácil e mirrada. E, na verdade, a monstruosa orelha achava-se sobre um pequeno, fino caule – mas o caule era um homem! Quem pusesse uma lente diante do olho poderia, até, reconhecer ainda um pequeno rosto invejoso; e, também, que uma túmida alminha balançava no caule. O povo me disse, porém, que a grande orelha não era somente um homem, mas, sim, um gênio. Mas eu nunca acreditei no povo, quando ele falava de grandes homens – e guardei minha persuasão de que tudo aquilo era um aleijado as avessas, que tinha pouquíssimo de tudo e demais de uma só coisa. (NIETZSCHE. 2006. p. 171)

Derrida continua o texto falando sobre os estudantes sendo aqueles que “escutam”, relacionando os ouvidos, “órgãos mais expostos e abertos”, e a grande orelha de Nietzsche com o conceito de Unheimlich de Freud. Podemos lembrar de quando ouvimos nossa própria voz, gravada de alguma forma e repetida, é familiar enquanto nos reconhecemos ali e também estranho e assustador porque não é a mesma voz que ouvimos naquele outro instante em que falamos. Freud dedica um texto inteiro para falar do Unheimlich, que é traduzido como inquietante, o estranho, assustador. Algo que é estranho e ao mesmo tempo familiar. Se fazer ouvir é uma pulsão parcial que Lacan traz em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, falando que foi uma pulsão que o próprio Freud não comentou muito. “Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar.” (LACAN 1985 p. 190). Voltamos a hipertrofia da orelha de Nietzsche. Buracos sempre abertos. Um alarme de carro toca sem parar lá fora. Os cachorros da rua inteira não param de latir, é agosto, lua cheia. Escuto uma música na rua, e ela não sai da minha cabeça. A voz da pessoa num simples oi pelo telefone, que se aproxima. E as palavras de quem está perto. Palavras sussurradas. Palavras desviadas, nomes imundos. Silêncios imperfeitos. Respiração é

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som, não é palavra, como ainda escuto algum dizer? Desejo me fala, a roupa impaciente, quer cair. Assim quando acordar, posso narrar meus sonhos pra você. Dormindo ainda tens meu corpo. Lacan diz: tum tum tum faz a pulsão no coração, rom rom, o amor no ventre. Escuto. Escuto ainda a tua voz, não importa mais o que dizes, é a mim que te diriges. E quase não escuto, estas tão perto, e assim não falas e com tua voz me tocas. Passamos direto a esse aspecto prazeroso da constante abertura da audição, mas o prazer não deixa de acompanhar um aspecto de horror, que assusta, introduzido pela orelha do Nietzsche, encarada como Unheimlich pelo Derrida. Por que Nietzsche não vê no homem que carrega essa orelha monstruosa um gênio, como dizem pra ele, mas um deficiente? Por que ter uma orelha gigante, por que nunca conseguir parar de escutar é monstruoso? O que isso por exemplo tem a ver com o Saber, Saber tudo? Por que um ser carregaria uma orelha gigante a fim de “tudo ouvir”? Que desejo é esse? Esse desejo de tudo saber finalmente? Desejo de Deus? Desejo de fim? Sintoma de cansaço? Desejo de morte? Por que esta orelha gigante tá no mesmo aforisma sobre a culpa? Uma orelha gigante para ouvir o que está fora ou dentro de nós? Uma orelha gigante que alimenta nossa culpa? A orelha não seria justamente esse limiar entre o dentro e o fora? Buracos sempre abertos. O que isso tem a ver então com os estudantes no Derrida? Por que os estudantes são “os que escutam” e ao mesmo tempo escutar tem a ver com o Unheimlich? Talvez passando por aí, por esse aspecto inquietante da orelha gigante, o aspecto monstruoso dela, e não deixando, no entanto, de ver nesse “tudo escutar” um motivo de deleite, de prazer, aproximando mesmo do erotismo (e daí essa relação constante com o estranho, esse “ter que ouvir” o Unheimlich a todo instante, essa penetração constante do estranho em nós, volta a colocar prazer e violência próximos..), e mesmo mais do que aproximar prazer e violência, violação: por toda essa volta retornamos ao amor fati, ao dizer Sim ao destino, mesmo com tudo o que ele nos apresenta de estranho... dizer Sim talvez também... à orelha gigante. Se vemos uma ambiguidade aí mesmo nessa orelha gigante, doravante viramos a cabeça, são duas orelhas. Esse aspecto que Nietzsche dá por evocar, o desejo do absoluto, desejo de fim, fim do devir, o cansaço, a fraqueza que ele fala, em relação aos ideais, submeter-se a eles por exemplo – a orelha gigante sendo a manifestação corporal desse desejo, desejo de ouvir mais, não deixar passar um ruído. Por outro lado, tem o desejo de ouvir melhor, ou o começar a ouvir o que antes não se ouvia. Esse prazer que encontramos no escutar, com a pulsação constante dessa presença da vida, presença e transformação das 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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coisas, as vozes, os ruídos do mundo. E, para além desse prazer de sentir a vida, tem também o lado incômodo em relação àqueles barulhos que preferíamos evitar, mas por nos atravessarem independentemente do nosso controle, como uma violação mais escancarada mesmo, pra pensar talvez um movimento erótico constante do “nosso corpo” com o mundo, essa constante violação, penetração mútua... A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo, ramifica-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma): por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação. (BARTHES 1988 p. 64)

Não fazemos amor com as palavras? Com os escritores quando os escutamos? Tenho dois ouvidos. Não consigo tapar um lado para ouvir melhor o outro se a conversa que me chama atenção não é minha mas ao lado, no fundo. Se desvio minha atenção por uns instantes, não sei mais o que a pessoa que estou olhando me fala, é um ainda outro que escuto. Retorno para a minha conversa balançando a cabeça, disfarço com um aham, um sorriso, para meu interlocutor não perceber minha grosseria. Tem algo ali que prende, que faz querer ouvir outra pessoa, e não é só porque o que ela fala é interessante, tem algo na voz que toca. Um tipo de vibração do som entra no corpo e aquilo nos faz querer repetir, ouvir novamente. Descompostura, um momento de suspensão do ser. Navegar no rio do não ser e, levado pela correnteza, pelo vento não saber mais onde se esta. Não podemos sair completamente de nós mesmos senão não mais existiríamos. Como poderíamos então experimentar a própria morte se é onde já não mais estamos? Percorrer o encontro erótico, atalho do tempo, seria experimentar a própria morte em vida, não como decomposição lenta, porém como descompostura, violenta e abruptamente, é algo de você que se vai ao reconfigurar-se, desmontar-se, não apenas como um corpo portador de um nome desfigurado em autobiografia contada, como também a desmontagem do corpo da linguagem, castelos de areia construídos no ar. Paul de Man termina seu Autobiografia como autodesfiguração escrevendo o seguinte: A morte é um nome deslocado para um dilema linguístico, e a restauração da mortalidade pela autobiografia (a prosopopeia da voz e do nome) despoja e desfigura na exata medida em que restaura. A autobiografia vela uma desfiguração da mente da qual é ela mesma a causa. (MAN 2012 p.13)

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A Autobiografia como desfiguração, esfacelamento, muda a ideia de que a autobiografia é apenas um gênero literário entre outros para vê-la como uma forma de entendimento da literatura, entendimento de todos os gêneros: todos os relatos são autobiográficos? Para dar uma definição um tanto inicial e mesmo ainda aberta queremos dizer que descompostura erótica acontece nesse encontro com o estranho familiar que desestabiliza. Une sem fundir, arrebata sem destruir. Quando o amor expande, sai dos limites de um sujeito como unidade, desfigurando-se e despejando-se em outros seres, na terra, no oceano: Bataille vai usar o exemplo do sujeito como uma onda nas águas, não mais se conter, estar fora de si. O êxtase acontece na abertura do ser e a angústia no enclausuramento – fechamento do ser sobre si mesmo. Essas ideias não são tão definidas assim, comunicam-se e podem também se confundir. Qual o segredo para transformar a angústia em delícia? “Ensino a arte de transformar a angústia em delícia.” (BATAILLE. 1992 p.41).” Desdobrando essa ideia, para ir além dela, enlaçamos o transbordamento do sujeito em gramática. Eros como philia, amizade. A escrita faz escapar da prisão, seja ela feita de grades ou de corpo. O sujeito de alguma forma morre para se doar em palavras. Bataille sugere que na escrita exista um movimento de amizade, passividade diante de um estranho que toma conta, quando o perigo, mesmo assustando, não é mais evitado, e sim acolhido. Atemo-nos um pouco a O Erotismo para situarmos os pensamentos de transbordamento e dessubjetivação aqui. Tais pensamentos jogam com os pares: continuidade-descontinuidade, mundo sagrado - mundo profano. O mundo profano é o mundo do trabalho, em que seguimos as regras, usamos panos para esconder a nudez dos corpos e temos um nome e um número na identidade. Socialmente, somos aquilo que somos e não podemos não ser, ou ser outros. Entre nós e o mundo tanto dos seres como a paisagem em torno, existe um limite, uma descontinuidade. Um abismo instaura-se entre um ser e outro. Separados e solitários mesmo na multidão. Por outro lado, a continuidade total só encontraremos na morte. A tentativa aqui no entanto é de pensar uma morte enquanto vida, uma morte que não acontece no corpo mas na linguagem. A morte do sujeito pela escrita, o prolongar-se além de si mesmo. Além das ilusões de uma identidade. “Seja esse oceano”, diz Nietzsche, quando ser tudo e não ser nada são a mesma coisa. No mundo sagrado o lúdico precipita-se e o sujeito não mais sendo, pode vir a ser qualquer coisa. “Este livro é a narração de um desespero.” Georges Bataille começa a descrever seu livro no preambulo de Experiência Interior. Ele fala de seus próprios livros nos livros 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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mesmos. No decorrer do livro vai falando sobre a experiência de escrevê-lo: Praticamente, cada vez que tentei escrever um livro, o cansaço vinha antes do final. Tornava-me lentamente estranho ao projeto que tinha formado. Esqueço o que me inflamava na véspera, mudando de hora em hora com uma lentidão sonolenta. Escapo-me de mim mesmo e o meu livro me escapa; ele torna-se quase inteiro como um nome esquecido: tenho preguiça de procura-lo, mas o obscuro sentimento do esquecimento me angustia. (BATAILLE 1992 p. 64)

Escrever é angustiante e desejante. Ele se angustia na preguiça de escrever mas sabe que não consegue deixar de desejar fazê-lo. Em Madame Edwarda usa o pseudônimo de Pierre Angelique e assina o prefácio como ele mesmo, Georges Bataille. Escreve o livro com outro nome e assina o prefacio de seu próprio livro como se o escritor fosse outro. Quantos nomes ele possui? Mais tarde ele vai falar que escreve para apagar seu nome. Ainda em Otobiografias, Derrida traz a assinatura como um gesto performático. Antes de nascer já ganhamos um nome, ele é escolhido de acordo com o sexo e nos acompanha até depois da morte na lápide. Não temos como nos libertar dele. Os traços das letras seriam um mapa do nosso destino? Pela escrita descobrimos que tem um eu ali que nos ultrapassa, o pseudônimo é também um laço social, quando precisamos inventar e performar um nome para esse outro que surge em nós, que nós mesmos não autorizamos a usar nosso nome. Às vezes para escrever precisamos nos libertar do nosso nome. Lord Auch foi o primeiro nome de Bataille como escritor, escrita fruto de uma tentativa de lidar com seus tormentos internos. Seu primeiro romance já seria uma autoficção. Ele usa elementos de sua infância e fatos marcantes de sua vida, que no final ele mesmo aponta, para criar toda uma narrativa erótica fantasiosa, para expurgar aquilo que o marcava, como uma ferida na alma transbordada em texto. No fundo o escritor é antes médico. Deleuze diz: “Mais próximo de um médico do que de um doente, o escritor faz um diagnóstico, mas é o diagnóstico do mundo; segue a doença passo a passo, mas é a doença genérica do homem; avalia as possibilidades de uma saúde, mas trata-se, do nascimento eventual de um homem novo” (DELEUZE 1997p.64). A “narração de um desespero” não é o desespero de “um” homem, é “um” desespero que pertence aos homens: “um” pronome indefinido, pode ser qualquer um. O desespero de todos os homens. Que desespero é esse que Bataille nos fala? Perder toda esperança? Estaria na impossibilidade de dizer eu ou na impossibilidade de sair de si? Entrar em si e sair de si: duas impossibilidades. Enquanto vivos permanecemos. Ele aproxima o êxtase, que é o estar fora de

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si, de uma pequena morte. A pequena morte não é um morrer definitivo mas ela poderia matar o que te oprime. A erótica acontece como uma saída e um reencontro de si, no acolhimento de um desconhecido. Talvez como uma parte maldita de si mesmo que surge. Freud citando Schelling: “Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido... secreto e oculto, e veio à luz” (FREUD 2010 p227) Poderia o obscuro clarear? Talvez como um raio na treva que não podemos como um peão laçar e capturar. Um clarão que ofusca, o contorno vai desvanecendo e continuamos vendo seu brilho como uma luz que queima um pouco os olhos, assim como um resto que marca com o surgimento inesperado de um “estranho familiar”, daquilo que deveria ter ficado no escuro mas aparece. Tateando no escuro, o olhar logo se acostuma e começa a definir espaços e volumes, linhas não tão nítidas fazem uma coisa se mesclar a outra, o iso aumenta e tudo parece granulado, estaríamos sonhando? Tons de preto e branco ocupam o lugar das cores. O encontro com o desejo do outro é um momento de descompostura. Quando Bataille diz, no erotismo, 'eu me perco'. O outro me abre para meu próprio esquecimento de mim, como na música clássica dos anos 90 de Divinyls, I touch myself: “I search myself I want you to find me, I forget mylself, I want you to remind me.” No encontro com o outro, com o limite do corpo do outro, encontro meu próprio limite e o ultrapasso quando algo ali surge que nem eu nem ele conhecíamos: o gozo. Esqueço - mais uma vez: o sofrimento, o riso, o dedo. Ultrapassamento infinito no esquecimento, no êxtase, na indiferença a mim mesmo, a este livro: vejo o que nunca o discurso atingiu. Estou aberto, brecha escancarada, ao ininteligível céu, e tudo em mim se precipita, afina-se num último desacordo, ruptura de qualquer possível, beijo violento, rapto, perda na inteira ausência do possível, na noite opaca e morta, todavia luz, não menos incognoscível, ofuscante, que o fundo do coração. (BATAILLE 1992 p.66)

Bataille vai chamar de amizade essa abertura, acolhimento ao estranho- então passivamente me abro a um estranho e não mais me defendo dele mas quando abre suas pernas me lanço a beijar sua chaga viva! Assim como o narrador de Madame Edwarda beija seus lábios no meio das pernas. A escritura como uma amizade, uma passividade a um obscuro, transformaria uma defesa, que é a angustia, num desfrute: êxtase. Pensando a escrita como gozo, repetição da perda, onde o escritor parece estar buscando de alguma forma curar sua ferida, mas é a ferida do mundo que ele reflete escrevendo. Georges Bataille escreve seu primeiro livro em 1927 durante o ano em que se submeteu à análise com Adrien Borel. Tendo o psicanalista lhe sugerido que escrevesse suas

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fantasias que o atormentavam, A História do Olho além de desbordar essas fantasias em texto, dando corpo para um impossível, fantasia encarnada, marca o nascimento de um escritor que foi até o mais fundo de seus abismos. As questões do livro ultrapassam seus elementos autobiográficos, como, por exemplo, a cegueira e paralisia de seu pai e a morte de Granero, o toureiro. Mas conta a história de um objeto, o olho, que se estende num conto quase infantil, metamorfoseando-se em ovos, testículos... penetrando os mais diversos buracos, olhando para dentro do corpo. Ele olha, e o que é que ele vê? Talvez fossem as feridas do mundo que o escritor estaria tentando curar, quando os sintomas universais se refletem nele. Deleuze vai falar que o escritor é médico de si mesmo e do mundo, e não doente. A literatura aparece como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro, mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles? (DELEUZE 1997 p. 13)

Referências: BATAILLE, Georges. A Experiência Interior. São Paulo. Editora Atica S.A. 1992. ____ História do olho. Trad. Eliane Robert Moraes. São Paulo, Cosac Naify. 2012. ____Madame Edwarda. In: Oeuvres complètes III. Paris, Gallimard. 1981. ____O Erotismo. Trad. Fernando Sheibe. Belo Horizonte, Ed. Autêntica. 2013. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro, F.Alves:1988. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo. Ed. 34.1997. DERRIDA, Jacques. Otobiografias. La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre próprio. Buenos Aires. Amorrortu. 2009. FREUD, Sigmund. Obras completas vol. 14. História de uma neurose infantil. (“O homem dos lobos”). Além do princípio de prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo Cézar de Souza. Editora Schwarcz. Companhia das Letras. 2010 LACAN, Jacques. O seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar:1985 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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MAN, Paul de. Autobiografia como Des-figuração. Trad. Joca Wolff. Sopro 78. Florianópolis. 2012. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo. Companhia das Letras. 2001. _____Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva.-15 ed. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2006.

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desCOLONIZAR BIOGEOGRAFIAS – ESTÉTICA BUGRESCA COMO OPÇÃO DESCOLONIAL DA ARTE

Marcos Antônio Bessa Oliveira Resumo: O Projeto Moderno europeu continua sendo desenvolvido na arte brasileira. Na atualidade teorias/teóricos tratam as produções artísticas brasileiras aplicando conceitos importados dos “centros no ocidente”. Corpos biogeográficos da arte brasileira são pensados como corpos nórdicos e norte-americanos. Este trabalho quer discutir, como proposta descolonial, uma opção outra de estética que oportunize descolonizar corpos artísticos biogeográficos periféricos para priorizar a cultura do ser, saber e sentir sensíveis na arte. Palavras-chave: fronteiras, biogeografias, estética bugresca, descolonização, linguagens. Abstract: The European Modern Design continues being developed in Brazilian art. In theory/theorists today treat Brazilian artistic productions applying concepts imported from “centers in the West”. Biogeographical bodies of Brazilian art are thought of as Nordic and American bodies. This paper wants to discuss, as decolonial proposal, another aesthetic option that oportunize decolonize peripheral biogeographical artistic bodies to prioritize the culture of being, knowing and feeling sensitive in the art. Keywords: borders, biogeografias, bugresca aesthetics, decolonization, languages. Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos (Ribeiro, 1995: 19).

Este trabalho vem fazer uma proposta, ao tratar de alguns pontos fundamentais na produção crítica e artística (que também poderá ser pensada para a produção pedagógica) em Artes Visuais, sobre descolonialidade dos corpos biogeográficos como epistemologia de/para a produção de conhecimentos e artísticas através das produções em Artes Visuais. De certa forma, essas discussões devem e passarão sempre por questões relacionadas à “estéticas” enquanto produção de conhecimento e de “julgamento/qualificação” de produções artísticas. Ou seja, de uma forma ou de outra, as discussões no campo das artes estão sempre assentadas em pressupostos que querem melhor pensar a produção da arte como saber. Neste caso, as reflexões sobre Aiesthesis descolonial (discutidas por Walter Mignolo, 2012) e de Aiesthesis

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(bio)descolonial (Bessa-Oliveira, 2013)1 faço-as de pano de fundo para pensar minha ideia neste trabalho de uma estética bugresca, sem nenhum sentido pejorativo da ideia de bugres subalternos mantida pelos discursos dominantes. A discussão toma como partida uma estética colonial que, no meu entender, é de natureza histórica moderna, estabelecida por um discurso colonial edificado com a colonização histórica da América Latina; mais precisamente as colonizações ocorridas após o século XVI realizadas pelas missões da Espanha e de Portugal. Logo, torna possível dizer que a colonização é quase sempre imperante nas produções artísticas/teóricas da arte brasileira desde esses primórdios. Portanto, a ideia é propor uma discussão de uma proposta epistêmica descolonial que busca retomar uma antiga noção de Aiesthesis como sensibilidade biogeográfica. Mas, igualmente, proponho também uma discussão crítica da relação que aqui será estabelecida (por isso chego a pensar que o melhor termo seria falar em “desrrelação entre alguns pontos fundamentais edificados na história europeia”2). Ainda que não fosse exposto claramente desde o título, a ideia de “Aiesthesis Descolonial” é discutida por um pensamento crítico de língua hispânica (Mignolo, 2012) que quero por em contraposição ao meu pensamento epistêmico de uma Aiesthesis (bio)descolonial (Bessa-Oliveira, 2013), hoje tratada como “Estética Bugresca”, para pensar as produções em artes no Brasil, por conseguinte, pensada em língua portuguesa que, ainda que o Brasil esteja situado geograficamente em um bloco latino de língua estrangeira (espanhola), quero pensar a produção artística e crítica brasileiras a partir da condição póscolonial latina brasileira. Nesse sentido, cabe uma passagem de Mignolo que é ilustrativa para a questão: Também faz algum tempo os acadêmicos tiveram como pressuposto que se “você está” na América Latina deve-se “falar acerca” da América Latina, que neste caso devia ser uma mostra de sua cultura. Tais expectativas não sugerem se o autor vem da Alemanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos. Nesses casos não se pressupõe que devas falar de sua cultura, pode funcionar como uma pessoa de mente teórica. Como sabemos: o primeiro mundo tem conhecimento, o terceiro mundo tem cultura; os Nativos Americanos têm sabedoria, os Anglos Americanos têm ciência. A necessidade do lançamento de uma descolonialidade política e epistêmica se põem em primeiro plano, assim como a instauração de conhecimentos descoloniais, são passos necessários para imaginar e construir sociedades não-imperiais/coloniais, 3 democráticas e justas. (Mignolo, 2009, 10) (Tradução livre minha)

1

Naquela primeira reflexão sobre outras possibilidades estéticas para as Artes Visuais fazia uso do termo Decolonial – em espanhol como citado por Walter D. Mignolo – no entanto, agora grafo já em português, em tradução livre minha, para Descolonial visando aproximar ainda mais a reflexão para o lócus cultural brasileiro sul-mato-grossense. 2 Isso é importante ser dito, especialmente tendo em vista a problemática que também será tratada, considerando determinados problemas de teorizações para pensar as produções da América Latina. 3 “También hace algún tiempo los acadêmicos tuvieron como supuesto que sí “eres” de América Latina debes “hablar acerca” de América Latina, que en ese caso debías ser una muestra de tu cultura. Tales expectativas no surgen si el autor viene de Alemania, Francia, Inglaterra o Estados Unidos. En esos casos no se presupone que debas hablar de tu cultura, puedes funcionar como una persona de mente teórica. Como sabemos: el primer

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Os pressupostos estéticos modernos há muito tempo já não contemplam em “leituras”, sejam analíticas ou não, as práticas artístico-culturais contemporâneos quase que de um modo geral. Sejam as práticas desenvolvidas na Europa ou Estados Unidos (centros do pensamento Moderno e Pós-Moderno respectivamente), pior quando são sobre as práticas latinoamericanas. Os estudos baseados em análises restritivas ou classificatórias tiveram seu lugar epistemológico no estruturalismo e em um período longo pós-estrutural no caso brasileiro. Se, por um lado, isso pode ser dito por que na contemporaneidade ocorre uma multiplicidade de técnicas, teorias ou por diferenças das práticas artísticas atuais, por outro, pode-se constatar que se deve ao fato de que o sujeito biográfico, sua identidade cultural multíplice e o seu próprio lócus geoespacial, (histórico cultural local ou geográfico de enunciação (como prefiro)), alteram qualquer forma de leitura tradicional que possa ser feita das práticas artístico-culturais contemporâneas ou ainda mesmo das práticas históricas brasileiras. É deste prisma que a epistemologia descolonial, por conseguinte uma “Estética Bugresca”, não corrobora na totalidade das ideias pós-modernas, menos ainda nas formulações pós-estruturalistas e estruturalistas modernas, em que estão ancoradas grande parte das produções em Artes no Brasil. Dito de outra maneira: não é mais prática comum, em qualquer que seja a “leitura” de sujeitos, objetos e práticas artísticas – estética ou cultural –, feita na contemporaneidade, ignorar o sujeito enquanto corpo presente da obra artística “analisada”. O sujeito, nesse sentido, tendo em mente “sua identidade cultural multíplice e o seu próprio lócus geoespacial, (histórico cultural local ou geográfico de enunciação)”, como me referi antes, constitui o que chamo de sujeito biogeográfico.4 Do mesmo jeito também é impossível pensar no discurso teórico contemporâneo, ou mesmo desde o discurso crítico histórico, na omissão do bios e da “opinião” do crítico que investiga. Portanto, é impossível que desconsideremos os diferentes lugares geográficos enunciativos de onde partem e de onde são feitas essas “leituras” epistemológicas. Os corpos artísticos que encenam na contemporaneidade já não são contemplados por discussões que estabeleçam dicotomias assentadas em pressupostos modernos. A atualidade mundo tiene conocimiento, el tercer mundo tiene cultura; los Nativos Americanos tienen sabiduría, los Anglo Americanos tienen ciencia. La necesidad del desenganche y la decolonialidad política y epistémica se pone en primer plano, así como la instauración de conocimientos decoloniales, pasos necesarios para imaginar y construir sociedades no-imperiales/coloniales, democráticas y justas.” (Mignolo, 2009, 10) 4 A noção de sujeito biogeográfico está melhor discutida no texto “BIOGEOGRAFIAS OCIDENTAIS/ORIENTAIS: (i)migrações do bios e das epistemologias artísticas no front” que será publicado na edição número 15 dos Cadernos de Estudos Culturais: Ocidente/Oriente: migrações, a sair ainda no primeiro semestre de 2016. Mas a título de ilustração ao leitor, o conceito está formulado a partir da ideia de que o sujeito, sua identidade e seu espaço geográfico migram e estão sempre associados/associando-se aos lugares de onde partem ou chegam e com suas memórias e histórias.

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tem emergência em pensar, por exemplo, as relações entre as fronteiras por onde a liquidez dos corpos cênicos está transbordando em busca de resignificar suas biogeografias. E são espaços com essa natureza biográfica que se inscrevem, por conseguinte, sensações, emoções e experimentos artísticos que os conceitos modernos já não sustentariam um reconhecimento para além da ideia de corpos (se)parados. Igualmente a esse entendimento do corpo artístico como transeunte entre os lados opostos das fronteiras, mas que se aproximam e se tocam sempre, o próprio conceito de fronteira deve ser compreendido pelas epistemologias contemporâneas, caso evidente para a “Estética Bugresca”, como um lugar do movimentar-se entre, para além e aquém desse lugar supostamente delimitador edificado pelos discursos dos poderes (da arte e político) que estabelecem os fins e começos de corpos e espaços. Diferentemente do que se propôs com a estética moderna que o sujeito autor dos processos artísticos quase sempre era posto de lado, o lugar enunciativo também não era abordado e que a obra de arte tinha por conta própria sua “aura”, na contemporaneidade emerge possibilidades outras de leituras críticas e de fazeres artísticos que estão antecipadamente

ancorados

no

ser,

sentir

e

saber

biográficos.

As

identidades

culturais/biográficas dos sujeitos e os lugares geográficos desses sujeitos (artistas ou críticos) são pressupostos necessários para melhor contemplar e compreender as práticas artísticoculturais desses lugares marginalizados pelos discursos históricos hegemônicos (europeu ou norte-americano) que os distinguem como subalternos. Especialmente porque desses lugares (a exemplo de Mato Grosso do Sul meu lócus enunciativo) as práticas artísticas e as formulações críticas sobre essas práticas ainda são objetos suscetíveis às produções conceituais dos centros hegemônicos. O exposto, por conseguinte, faz evidenciar que não é uma noção única de estética, especialmente aquela ancorada no belo, que produzirá conhecimento dos lugares que estão às margens dessas fronteiras edificadas pelos discursos dominantes. Por isso é que se torna possível pensar em estéticas no plural para melhor contemplar as diferentes produções artísticas no Brasil. Mas cabe lembrar que estética sempre implica categorias “estilísticas” e quase sempre são edificadas por algum discurso que estão/são do/no poder. Dessa feita, os discursos elitistas, reforçados por conceituações historicistas ou pré-estabelecidas, os quais não tenho a intenção de ressaltar neste trabalho como prioritários, provocam desrrelações conceituais. Superando a noção de belo da estética moderna iniciada com o “gosto” clássico dos gregos e romanos, penso que tomar como ponto principal sujeitos biográficos e lugares geográficos de enunciação muda a noção tradicional de estética imperante ainda na

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contemporaneidade.5 Da perspectiva que se esboça a “Estética Bugresca” o sujeito não deve ser tomado como aquele artífice da antiguidade, nem como o autor que morreu na modernidade e, menos ainda, como aquele sujeito que constitui sua obra alheia ao seu entorno geográfico e biográfico. Esses são pontos relevantes também para uma crítica na atualidade que não se quer praticante de uma estética moderna. Pensando nessa direção, qual a estética que corrobora pensar melhor essas produções de Artes Visuais em contextos com essas histórias biogeográficas todas em evidencia na contemporaneidade? Ou seja, como tratar criticamente práticas artísticas (crítica e plástica e pedagógicas) que não estão inscritas nessa noção de estética histórica? A resposta que emerge dessas questões está assentada na proposição de descolonizar biogeografias – a partir de estéticas outras, a exemplo de uma “Estética Bugresca” – como opção para descolonizar o ser, o fazer e o saber sobre a arte ocidental; especialmente ainda sobre as muitas artes e sujeitos locais inscritos no lócus enunciativo brasileiro que não mais simplesmente somatizam as questões importadas da Europa ou dos Estados Unidos aos seus corpos biogeográficos. Chamar a esse rol de práticas de somatização e exteriorização é uma forma de enfatizar suas diferenças em relação às modalidades de internalização, marcantes na constituição das identidades vigentes na modernidade. Na atualidade, a intimidade se volta para fora a fim de encontrar um olhar que a reconheça , atribuindo-lhe sentido e valor, deixando de ser um refúgio secreto para se tornar a matéria produzida na presença explícita do outro. (Ortega; Zorzanelli, 2010, 68)

O “Ser” latino já evidencia desde o seu bojo de criação uma ideia de exclusão construída pelos discursos hierárquicos. Como ressaltado anteriormente pela passagem de Walter Mignolo somos cultura; não contamos grandes narrativas; não produzimos conhecimentos. Mas, pensados a partir de uma noção outra de estética, somos culturas não inconscientes de outras; ser latino é propor lugares geográficos outros como pontos de partida para articulações de reflexões críticas ou artísticas como produções de conhecimento. Portanto, a latinidade, extra-discursos hegemônicos, tem características livres de estéticas elitistas, hegemônicas ou binárias que nos forçam indagarem sobre outras possibilidades estéticas cotidianamente. A estética moderna foi e é classificadora e elitista por natureza histórica. Toma como ponto de produção – artística e crítica – sempre um antecessor clássico,

5

Mesmo que essa estética contemporânea não tome à risca o conceito de beleza edificado pelos gregos e romanos, é comum nos julgamentos críticos das produções artísticas e em várias produções artísticas a relevância de ressaltar uma relação de proximidade com essa estética histórica. Seja lendo Aristóteles ou Platão, seja lendo Descartes, Kant ou Nietzsch. Igualmente temos nas salas de aulas um ensino, do básico ao superior, pautado na História da Arte como único ponto de partida.

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branco, fálico e burguês situado na Europa e/ou nos Estados Unidos para julgar as demais produções dos lugares fora dos centros do mundo. Os postulados teóricos pós-coloniais, pensados no e para os lugares “fora dos eixos” da crítica e das teorias das Artes Visuais, por exemplo, são capazes de reverter, sem manter os antigos binarismos – centros X periferias; arte X não-arte – e as modernas análises, as novas possibilidades de leituras sobre as produções artístico-culturais latino-americanas. O mesmo é possível dizer que serve para as práticas e produções (artísticas e críticas) brasileiras e de locais culturais específicos, como Mato Grosso do Sul: sempre reforçado como o meu lócus geográfico de enunciação, já que defendo essa situacionalização biogeográfica e histórica para pensar crítica e diferentemente sobre as produções artísticas dos muitos locais nacionais. Desse lócus geográfico, por exemplo, podemos falar em Estética Bugresca (Bessa-Oliveira, 2013), estética fronteriza (Anzaldúa, 2007) ou estética da boa vizinhança, em sensibilidade biográfica ou lócus geográfico de enunciação que caracterizariam parte do bios e da geografia artística desse Estado na linha limítrofe do Brasil que faz divisas com o Paraguai e a Bolívia. Pensada por sujeitos biográficos com a ferida aberta (Anzaldúa, 2007) na própria carne pelos processos colonizadores, homogeneizantes e fronteiriços ao mesmo tempo, a disseminação indígena, a escravidão, chacinas e assassinatos marcam a ferida biográfica brasileira aberta pelo discurso colonizador e mantida aberta pelo discurso estético moderno. Nesse sentido, valendo-me de leituras que propõem uma “pós-ocidentalização” dos lugares periféricos e, por conseguinte, das práticas e sujeitos que vivem e produzem desses lugares, esta noção de estética outra toma ainda como ponto de partida a ideia de sensibilidade biográfica e o lócus de enunciação migrante para evidenciar que tal perspectiva, apesar de valer-se de sujeitos e lugares específicos, não se centra em um único lugar ou sujeito/prática como únicas possibilidades de proposição para essa leitura. Desse modo, pensar em Estética Bugresca requer a consciência de que o Uno não é o todo e a ideia de que as alteridades e identidades são cada vez mais móveis. Portanto, se articula desse lócus fronteiriço sul-matogrossense, tendo alguns sujeitos e obras artísticas específicas como exemplos, como se fosse pensada a partir de outro lugar da geografia brasileira, da condição primária de que estéticas outras sempre devem ter em mente que a sensibilidade biográfica (multíplice) e a diferença do lócus de enunciação migrante, por conseguinte biogeografias são muitos e variadas no território nacional.6 6

Esta proposta de pensar a produção artística toma da noção de que a articulação que temos como estética – artística e crítica – tem como ponto principal a ideia da história de que o Ocidente é o centro do mundo. Por

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Rediscutir essas diferenças entre “estéticas” faz sentido justamente porque a pergunta que se estabeleceu no início deste trabalho, a partir das nossas produções em Artes Visuais, por exemplo, pode ser refeita da seguinte forma: qual é a estética, já que estou propondo estéticas no plural, que melhor contemple pensar as produções em Artes Visuais (artísticas, teóricas/críticas, e porque não pedagógicas) levando em conta a diversalidade (Mignolo) da produção nacional brasileira e a nossa condição de lugar periférico, pós-colonial e subalterno? Daqui em diante não tomo como referência a América Latina como um todo. Fica estabelecida aqui a preocupação com a especificidade da produção artística de Mato Grosso do Sul. Mas distintos lugares, biografias, geografias, biogeografias e práticas, nas relações outras que também são importantes e, sem levar tudo isso para um lado binário “qualitativa/quantitativa”, quero ressaltar as especificidades que essas diversalidades provocam nas diferentes produções e como nos compreender enquanto artífices e também como produtores de conhecimento a partir delas. Ao contrário dos universais abstratos das epistemologias eurocêntricas, que subsumem/diluem o particular no que é indiferenciado, uma “diversalidade anticapitalista descolonial universal radical” é um universal concreto que constrói um universal descolonial, respeitando as múltiplas particularidades locais nas lutas contra o patriarcado, o capitalismo, a colonialidade e a modernidade eurocentrada, a partir de uma variedade de projetos históricos ético-epistémicos descoloniais (Grosfoguel, 2008, 22).

Todos temos claramente definido que nossa produção, seja em Artes Visuais, seja em qualquer outra linguagem artística ou prática, é de cunho ex-colonial. Também reconheço que conseguinte, a proposta epistemológica agora pensada é outra, não como nova, pois não se trata de continuidade de nenhuma proposta epistêmica anterior considerada soberana e referenciada exclusivamente no passado. No plano das Artes, tomando as linguagens artísticas, pouca coisa pode ser, digamos assim, explicada pela informação semântica. Já no plano da objetividade, informação enquanto ato de direcionar algo a alguém, a estética deixaria a desejar. Pensando nessa relação díspare e dicotômica que se quer estabelecida, entre informação semântica e informação estética, é possível dizer que a estética “exemplificaria” melhor com a informação subjetiva as práticas das Artes Visuais e a semântica objetivaria ao sujeito um número melhor (ou grau maior) de entendimento da informação formal. Já que se pensa em Arte como gosto e informação como educação, ou ainda que uma dependesse da outra: Arte com educação ou educação com arte. Ou seja, no plano da semântica, que teoricamente há um número maior de (in)formados que fazem sua compreensão (receptores (não-educado) da mensagem/informação), o percurso entre informação e objetivo é reduzido dado o grau simplificado e inferior das informações contidas. Enquanto que para a estética o caminho demandaria um indivíduo supostamente apto (educado) à compreensão das informações que estão em um plano da subjetividade, um sujeito não leigo e “bom leitor” das informações estéticas. Isso, claro, sem levar em conta que a subjetividade de cada um é variante e diferente e sem estar tomando como parâmetros, como se pensa numa análise pautada por uma estética moderna, outras possibilidades de interpretações. Mas esse não é o pensamento de quem está assentado numa reflexão que leve em conta apenas a natureza histórico-moderna da estética. Pois, a estética moderna toma como ponto de partida o sujeito conhecedor e educado para o entendimento da informação, visto pela ótica das Artes Visuais, aquele que conhece de fio a pavio a suposta História da Arte Ocidental que nos fora contada até hoje como a história da produção artística mundial, por exemplo. Por isso, do meu ponto de vista, é que ainda se fala em arte com educação e vice-versa, por exemplo, e se cobra do sujeito educação para olhar a arte.

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o brasileiro, tanto na crítica quanto nas práticas artísticas (teoria e obra artística, especialmente), lida muito bem com as diferentes propostas críticas que (i)migram e ancoramse em nossas reflexões artístico-intelectuais. É muito comum, nesse caso, o “bom trato” da crítica e do artista brasileiros em relação às novidades críticas e artísticas que por aqui aportam cotidianamente a partir do que se diz e faz lá fora. Entretanto, é possível afirmar que esse “bom trato” (teórico e artístico) não se dá a partir de uma tradução cultural dessas produções vindas de fora. O Brasil é a única ex-colônia portuguesa que se torna, pela própria língua, mais periférica no contexto do bloco cultural de língua espanhola.7 Impera também dessa “convivência”, entre o Brasil e o bloco linguístico espanhol latino, a relação de diferença entre nós e aqueles com maioria de etnias indígenas. Portanto, as nossas reflexões e as dos outros países latinos têm que ser específicas em comparação às da Europa, dos Estados Unidos e na própria América Latina; tudo isso graças à diferença e influência coloniais (portuguesa no nosso caso e espanhola no deles) que se “deixaram” ser feitas. Se nesses países do bloco latino-americano as forças campesinas são intensas e articuladamente intelectualizadas, no Brasil os indígenas (diga-se de passagem, o termo indígena também é criação da ideia de Ocidente pleno) são tomados como chucros, bugres (tratados com preconceito e pejorativamente) e quase sempre analfabetos. Os índios no Brasil brigam e são mortos pelas terras, como ocorre no meu próprio lócus geográfico, ainda se valendo de armas selvagens (arcos, flechas e lanças de madeira) e, quando muito, das armas de fogo tomadas dos próprios brancos em represálias armadas a partir de tocaias. Quero dizer que, na maioria dos países latino-americanos que são andinos, por exemplo, a etnia indígena ainda é muito marcada no bios daqueles sujeitos, enquanto que no caso do Brasil a mistura étnica entre índios, negros e os colonizadores, desde a chegada dos europeus por aqui, é muito mais forte que a “pureza” racial deles. Desde a descoberta das terras brasileiras a chegada (e partida) de diferentes indivíduos de culturas estrangeiras trouxe uma mistura incomum e inclassificável à identidade racial e cultural brasileira. Traços étnicos 7

Já que nossa colonização é questão que me interessa e, por conseguinte, deve ser pensada tendo em mente que na própria América Latina a situação da produção nacional brasileira, em relação à subalternização e a questões de colonialidade, é muito mais acirrada por causa da língua, tomo-a para pensar porque nossas práticas em Artes Visuais ainda são subalternas e contemporâneas – na crítica e na prática – ao mesmo tempo. É preciso ter na memória, quando se fala em práticas artísticas brasileiras na América Latina, que a nossa língua portuguesa nos coloca em estado maior de exclusão em relação aos outros países do continente para os países europeus. Por isso, como teorizar essa produção nacional brasileira se, para muitos teóricos, a teorização da própria América Latina enquanto lócus geográfico enunciativo, quase que hegemônico de língua espanhola, não nos serve pela questão diferencial que nos parece básica? A língua que falam em quase todos os países das Américas, principalmente os países “mais ao sur”, por conseguinte tão subalternos como o Brasil, é a espanhola.

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de alguns desses estrangeiros trazidos à força são sempre tomados com preconceitos e de maneira discriminatória até nos ditos populares brasileiros. Isso fora demarcado aqui desde a epígrafe de Darcy Ribeiro que encima essa discussão. De certa forma podemos concordar que a articulação crítica daqueles (latino-americanos de língua espanhola) não nos sirva por causa da diferença linguística. Mas, no entanto, assim como os discursos crítico e artístico brasileiros se valem muito bem dos europeus e norte-americanos, não é o isolamento em um bloco UNO que parece ser a saída para lugares de natureza histórica subalterna por imposição (colonização histórica), podemos ter a latinidade deles em “favor” da nossa. Pois, se, por um lado, o discurso crítico latino é linguisticamente diferente, impera nele a mesma condição subalterna que a nossa. Já de outro jeito, se o discurso crítico e artístico europeu e norteamericano

bem

nos

serve

desde

que

nos

deixemos

colonizar

histórico

e

contemporaneamente –, por um e por outro em momentos diferentes, não é possível que continuemos concordando que a “estética” e produções dos latinos nos são indiferentes. Igualmente, não nos deve ser mais ponto pacífico que os conhecimentos (artístico e crítico) só porque são vindos da Europa e dos Estados Unidos nos sirvam melhor para que os repliquemos nas nossas práticas em Artes Visuais como únicas soluções. Faço essa proposição crítica em relação a outras estéticas para pensar nossa produção nacional em Artes Visuais tomando como ponto a produção de um lócus geográfico de enunciação relegado ao esquecimento. Como também porque esse lugar ainda fora dividido de outro lócus não menos esquecido. Levo em conta que Walter Mignolo vai advertir, por exemplo, que a proposta Descolonial pensada por ele, como estética pós-colonial, tem caráter especialmente político e social para pensar em lugares colonizados pela coroa espanhola. Sobre isso, já esbocei minha preocupação antes, mas, por ora, quero pensar a minha opção de estética bugresca (bio)descolonial como opção epistemológica brasileira.8 Mesmo que tenhamos no sangue a colonialidade como toda a América Latina, tomo as questões geográficas, a crítica brasileira e a crítica biográfica como parâmetros, já que estas foram pensadas quase que exclusivamente por críticos brasileiros, não deixando escapulir da reflexão a já ressaltada diferença linguística entre nós brasileiros e os demais países latinos. A discussão sobre as diferenças entre norte e sul incide igualmente na questão teórica, levando-se em conta que a produção de teorias — vinculada ideologicamente a um pensamento abstrato e à racionalidade objetiva — teria lugar nos países mais desenvolvidos, localizando-se a prática dessas teorias nos países periféricos, dotados de irracionalidade e subordinados ao saber produzido nas

8

Reforço que essa ideia não tem nenhum caráter nacionalista. Mas, contrapondo à estética moderna, realça outras possibilidades estéticas em produções artísticas e críticas locais brasileiras.

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metrópoles. A imagem utilizada recai no símbolo feminino, que, associado ao discurso corporal e à sensibilidade, opõe-se ao discurso masculino, à racionalidade, concentrado na cabeça, na parte superior do corpo (Souza, 2002, 165).

De certa forma a passagem endossa o que apresentei anteriormente, com a passagem de Walter Mignolo, quando se refere à ideia de que as práticas artísticas dos países localizados na parte de baixo do globo apenas servem como exemplos daquelas produções de conhecimentos erigidas na Europa ou Estados Unidos. Refiro-me exatamente à ideia que faz a crítica cultural Eneida Maria de Souza ao dizer que nossas práticas (culturais e teóricas) são subordinadas ao conhecimento daqueles: do mesmo jeito nossas práticas parecem sempre estar à disposição como objetos de análises a partir do que se dá como produção crítica (do conhecimento) dos países e sujeitos estrangeiros. Precisamos grafar o prefixo “des” ao lermos o Brasil. Referências: ANZALDÚA, Gloria. Bordelands/La frontera: the new mestiza. São Francisco: Aunt Lute Books, 2007. BESSA-OLIVEIRA, Marcos Antônio. “Paisagens biográficas — Imagens pós-coloniais — Retratos culturais”. In: Grau Zero — Revista de Crítica Cultural, do Programa de PósGraduação em Crítica Cultural, da Universidade do Estado da Bahia, Alagoinhas: Fábrica de Letras, v. 1, n. 1, jan./jun. 2013, p. 249-278. _____. “BIOGEOGRAFIAS OCIDENTAIS/ORIENTAIS: (i)migrações do bios e das epistemologias artísticas no front”, In: Cadernos de Estudos Culturais: Ocidente/Oriente: migrações. V. 5, n. 15. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2016. (No Prelo) GROSFOGUEL, Rámon. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós−coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global”. In: Eurozine, p. 1-24. Disponível em: http://www.eurozine.com/articles/2008-07-04-grosfoguelpt.html - acessado em: 08 de outubro de 2014. MIGNOLO, Walter. “PRIMERA PARTE: Lo nuevo y lo decolonial”. In: GÓMEZ MORENO, Pedro Pablo. Estéticas y opción decolonial/Pedro Pablo Gómez, Walter Mignolo. -- Bogotá: Universidad Distrital Francisco José de Caldas, 2012, p. 20-47. _____. “Desobediencia Epistémica (II), Pensamiento Independiente y Libertad De-colonial”. In: Otros logos: Revista de Estudios Críticos. Centro de Estudios y Actualización en Pensamiento Político, Decolonialidad e Interculturalidad. Universidad Nacional del Comahue. Año I. Nro. 1, 2010, p. 8-42. Disponível em: http://www.ceapedi.com.ar/otroslogos/Revistas/0001/Mignolo.pdf - acessado em: 25 de julho de 2013. ORTEGA, Francisco; ZORZANELLI, Rafaela. Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. (Coleção contemporânea: Filosofia, lietaratura e artes)

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RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. (Humanitas).

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JARDIM - LABIRINTO: UM CAMINHO INEVITÁVEL PELAS PAISAGENS DE CRISTINA IGLESIAS Maryella Sobrinho

Resumo: O presente texto apresenta e analisa a obra Chambre Végétale III da escultora espanhola Cristina Iglesias. Relacionando os conceitos de labirinto, jardim e paisagem, trazidos à tona graças aos aspectos visuais e plásticos da referida obra, busca-se refletir acerca dos tipos de espaço criados pela artista. Para desenvolver este pensamento, nos baseamos no conceito de heterotopia, desenvolvido por Michel Foucault. Palavras-chave: labirinto, paisagem, Cristina Iglesias, espaço, heterotopia. Abstract: This article presents and analyses the work of art Chambre Végétale III, from the spanish female sculptor Cristina Iglesias. Connecting the conceptions of labyrinthe, garden and landscape, broughten to light thanks to visual and plastic aspects of the referred work, we seek to think over the types of space created by the artist. To develop this thought, we base on the concept of heterotopy, developed by Michel Foucault. Keywords: labyrinthe, landscape, Cristina Iglesias, space, heterotopy.

Em abril de 2016, foi inaugurada uma exposição da escultora Cristina Iglesias ¹, no Musée de Grenoble ², França. Levando o mesmo nome da artista, a mostra é tida pela instituição como uma “bela oportunidade para descobrir seu trabalho” ³, pois além de reunir um número considerável de obras, apresenta alguns de seus trabalhos mais significativos. Desde a década de 1990, Iglesias desenvolve uma série de esculturas categorizadas como “espaços vegetais” 4, que criam espaços paisagísticos, à medida em que possibilitam ao espectador uma relação com a natureza e com o ambiente que o cerca. Um desses espaços é Chambre Végétale III ou Habitación Vegetal III (2000), apresentada ao público em diversas exposições anteriores e recentemente, ocupou uma das grandes salas do museu em Grenoble. Mas o que seria um quarto vegetal, ou uma habitação dessa natureza? Quem nela viveria senão os insetos jardineiros, os casulos que guardam e aguardam outra estação?

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Contrário a ideia de aposento fechado, Chambre Végétale III (ver figura 1) nos convida a entrar e percorrer essas contradições, passagem e quarto de espera de outros tempos, que a princípio, não sabemos para onde nos levará. Perdidos, nesse labirinto de iluminação fraca, com corredores sinuosos, quase muros de isolamento cobertos pela hera como sugestão de cerca viva. A obra nos convida a tocar as paredes, quando constatamos que a natureza alí alojada trata-se na verdade de relevo esculpido por Iglesias.

Figura 1- Cristina Iglesias, Chambre Végétale III, 2000. Musée de Grenoble. Foto: Site oficial da artista

O relevo verde escuro assume a forma de um emaranhado de raízes e pequenas flores que ornamentam galhos cobertos por uma barrotina, matéria semelhante ao lodo, sedimento característico de terras inundadas, como margens transbordadas ou o leito de um rio. Tal qual uma vegetação ilusória, tenta nos ludibriar; como um herbário íntimo, nos convida a permanecer descobrindo seus rumos. (ver figura 2)

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Figura 2- Cristina Iglesias, Chambre Végétale III, 2000. Detalhe. Musée de Grenoble. Foto: Thiago Santos

Ao continuar a caminhada pelo labirinto bifurcado, encontramos outras opções, outras aleias e alamedas, uma dessas trilhas nos trai. Nos leva a um lugar sem saída. Ao retomar o percurso e optar por outro rumo, deparamo-nos com um espelho e com a imagem refletida dos corredores, criando impressão de infinitude. Estamos perdidos novamente (em algum momento não estivemos?). Na tentativa de encontrar a saída, direcionamo-nos a outra bifurcação que desembocavem outros corredores até que finalmente, saímos de Chambre Végétale III. Considerando a expografia da mostra, para chegar a outras obras de Iglesias, temos que perambular perdidos nas associações de pensamento, no ir e vir de ideias que, cresce desgovernado, como as paredes vegetais que a artista sugere. Com esta breve descrição de Chambre Végétale III, vemos que, embora o título da obra sugira este como espaço a ser habitado, trata-se de um lugar de passagem. E como qualquer corredor, palavra que sugere a passagem dolorida - onde se corre em dor -, pode provocar sensação de desconforto e claustrofobia (ver figura 3). Para a arquitetura, os corredores, com função única de comunicar ambientes, dependendo de sua configuração, são um problema. Representam desperdício de espaço ao abrigar o vazio (Teixeira, 2009, p.30). Bem ao contrário, para Iglesias,

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eles são elementos essenciais em seu trabalho, equilibrando vazios e cheios, natureza e cultura, conforto e desconforto. É por meio de corredores que Iglesias constrói sua escultura, seu labirinto - jardim, nos fazendo a pergunta a respeito da palavra que o conforma no imaginário da arte.

Figura 3- Cristina Iglesias, Chambre Végétale III, 2000. Detalhe. Muséé de Grenoble. Foto: Site oficial da artista

O labirinto e o jardim: metáforas para perda de si e da tentativa de controle Considerando o aspecto formal, os labirintos costumam ser considerados conjuntos de corredores entrecruzados, salas e caminhos sem saída, podendo ser construções bidimensionais, como os jogos de passatempo onde o jogador deve descobrir o percurso fazendo o menor trajeto possível, mas com a vantagem de visualizar sua configuração espacial, pois ele se apresenta como uma planta baixa. Já os tridimensionais, como tipos de determinados jardins, necessitam de imersão corporal e acionam múltiplos sentidos para que se possa desvendar os caminhos confusos e evitar as armadilhas. (ver figura 4)

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Figura 4- Labirinto de Horta. Barcelona. Foto: autor desconhecido. Disponível em http://www.spainisculture.com/

Em ambos os casos, todo labirinto deve ser formado por um “entrecruzamento de caminhos, dos quais alguns não têm saída e constituem, assim, impasses; no meio deles é mister descobrir a rota que conduz ao centro dessa bizarra teia de aranha.” (Chevalier, 1982, p. 530) Enquanto conceito, O labirinto é um dispositivo que tem o poder de multiplicar espaço, gerando diferentes rotas possíveis em uma superfície reduzida. Um espaço vazio e delimitado pode ser compreendido à primeira vista, mas um labirinto exige um tempo e esforço de inteligência para chegar a um entendimento. (Maderuelo, 2006. p.2) 5

As ideias de esforço e desorientação que são atribuídas a este dispositivo são reforçadas quando nos apoiamos na hipótese de que “o labirinto no sentido próprio não existe”. (Peyronie, 1998, p.560) Sua origem histórica é incerta, embora seja inevitável a lembrança do mito grego de Teseu e o Minotauro, cujo labirinto é descrito de diferentes maneiras e a arqueologia jamais encontrou provas concretas dessa construção. (Peyronie, 1998,p, 562) Possivelmente, representa uma metáfora para o Palácio de Cnossos, assim como a Torre de Babel descrita na Bíblia Cristã possa ter sido na realidade, um Zigurate. A certeza que se tem é de que representa uma aporia. Dessa forma, labirintos podem ser florestas, um relacionamento complicado, uma metrópole, uma grande biblioteca, jardins e uma obra de arte, escultura, instalação, como a de Iglesias.

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Como atentamos anteriormente, as paredes dos corredores de Chambre Végétale (rever figuras 1 e 2) remetem a uma natureza paralisada pelo tempo, que deixa suas marcas no acúmulo de matéria orgânica nas divisões do labirinto, e também à um deslocamento espacial, pois um fragmento de vegetação é retirado de seu ambiente de origem e anexado à uma construção humana. Mesmo que forma não - declarada (a artista se assume como escultora, não paisagista), Iglesias constrói uma paisagem, aliando elementos naturais e culturais. O ato de fazer paisagem é comum a todos, mesmo que inconscientemente. Ao observarmos um território, o contextualizamos, usamos vários recursos lingüísticos para relacionar elementos e atribuir significados. Desde o enquadramento, até a escolha dos elementos compositores, observamos o diálogo entre o meio e o homem. É uma relação de troca: espera-se algo da paisagem e ela espera algo do observador. O meio é uma fonte de estímulos e também é uma realidade modificada com o agir do homem. (Cauquelin, 2007, p.31)

Iglesias faz uso da paisagem para desenvolver uma reflexão sobre a arte em relação ao espaço, e do corpo neste, para então construir um outro tipo de espaço, possibilitando-nos a redescoberta dos lugares aos quais se faz a referência visual e plástica, além de convidar-nos a vivenciar outros mundos 6. Por meio de obras que transitam entre as linguagens da escultura e da instalação, Iglesias articula percepção, olhar, espaço, experiência, luz, tempo e corpo; questões caras à arte da paisagem. Contextualizando sua produção em relação à história da arte, é importante lembrar que tais questões sempre permearam diversas pesquisas artísticas, com número a perder de vista. Mas é especialmente a partir da década de 1960, com o desenvolvimento de linguagens artísticas como a land art, outras maneiras de propor paisagens na arte surgem como alternativas de vivência da realidade. (Archer, 2013 p. 94-100) A paisagem artística não só é vista como é sentida, pois outros sentidos além da visão são recrutados para experienciação da obra e espaço envolvidos. (Cauquelin, 2007, p.114 - 155) Iglesias não constrói qualquer espaço paisagistico; para produzir Chambre Végétale III Iglesias busca na natureza elementos específicos para compor um jardim. Trata-se então de uma natureza domesticada, moldada pela artista. Para Javier Maderuelo (1997, p.9), citando John Hunt, o “jardim é a arte da paisagem mais sofisticada”7 , pois não só aponta a necessária relação entre arte e natureza, mas deixa clara a união entre as forças naturais com a força criadora do artista. Para o autor, o costume corriqueiro

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de definir o jardim como um sítio destinado ao cultivo de vegetação ornamental acaba por atribuir a este gênero paisagístico uma visão pejorativa. Assim, diferencia tal visão vulgar, associada à “jardinaria”, do jardim. O jardim, é uma “construção física e intelectual”. (Maderuelo, 2009, p.10) O conceito de jardim trata-se de questão filosófica, estando articulado à recriação de mundo paradisíaco que possa ser habitado pelo homem. Enquanto a realidade é cruel, sofrível e infeliz, o jardim é agradável, saudável e belo. Ora, mas o jardim não seria também da ordem das coisas reais? O jardim é um mundo real, mas não este do cotidiano, e sim da fantasia, do sonho, da utopia que por meio da arte tornam a realidade comum suportável. Mas não nos deixemos enganar pelas inúmeras qualidades do jardim. Ele é também o lugar das proibições, de onde podemos ser expulsos, como Adão e Eva foram banidos do Éden. Principalmente um jardim como o labirinto de Iglesias, onde nos maravilhamos com um mágico fragmento de mundo, ao mesmo tempo que nos sentimos desconfortáveis com sua iluminação cênica. Nele, somos obrigados a enfrentar nossa própria imagem quando menos esperamos e temos barreiras físicas que nos impedem de prosseguir nosso caminhar. Esse jardim é tão dúbio quanto a natureza humana, tão frágil quanto o homem que o habita, “é um lugar onde se unem sentimento e pensamento.”8 (Castro, 1997, p.17) A fragilidade do jardim é extrema, compreendê-lo é quase decifrar um palimpsesto: imagem do universo ou microcosmo, recordação do Paraíso, imagem do corpo humano, teatro de confronto entre a ordem e o caos, narrativa mitológica, alegoria, discurso; em ocasiões, autobiográfico, mescla do simbólico e do meditativo.9 (Castro, 1997, p.17)

A partir das breves concepções de labirinto e jardim que acabamos de expor, pensamos da possibilidade de ver Chambre Végétale III como uma heterotopia, conceito desenvolvido por Michel Foucault (2001).

Heterotopia: arte como espaço de ilusão e compensação Para tratar a questão do espaço na atualidade, Foucault (2001) aponta algumas das experiências espaciais na história da sociedade ocidental, que culminaram em diferentes concepções. Durante a Idade Média, o espaço de localização era visto dentro de uma hierarquia de oposição (sagrado versus profano, celeste versus terreno); mas a partir das descobertas de Galileu Galilei, este

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espaço findo passa a ser infinito e a extensão toma lugar da localização. As experiências anteriores desdobram-se atualmente no que o autor chama de posicionamento: De uma maneira ainda mais concreta, o problema do lugar ou do posicionamento se propõe para os homens em termos de demografia: e esse último problema do posicionamento humano não é simplesmente questão de saber se haverá lugar suficiente para o homem no mundo problema que é, afinal de contas muito ímportante -, é também o problema de saber em que relações de vizinhança, que tipo de estocagem, de circulação, de localização, de classificação dos elementos humanos devem ser mantidos de preferência em tal ou tal situação para chegar a tal ou tal fim. Estamos em uma época em que o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos. (Foucault, 2001, p. 413)

Por estes motivos, o autor julga que o espaço constitui-se um desconforto contemporâneo, pois embora tenha se expandido, na prática permanece dotado de certa sacralização, como era no medievo, reconhecido por meio de oposições. Como exemplo, temos o espaço privado versus público, espaço de lazer versus de trabalho, dentro versus fora, entre vários outros. A fenomenologia nos ensina, por meio de seus processos descritivos, formas de qualificar os espaços, geralmente os de dentro. E é justamente em sua oposição, qualificando o fora como espaço de posicionamento, que o autor detém sua reflexão para propor o conceito de heterotopia. O fora é o lugar que passamos a ocupar à medida que o espaço no qual estamos inseridos incentiva-nos a sairmos de nós mesmos; “esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em sí mesmo um espaço heterogêneo”, onde as relações que ali se constituem exigem posicionamentos incompatíveis e impossíveis de serem sobrepostos, mas que ainda sim, estão em relação com outros, contradizendo-se a si mesmos. (Foucault, 2001, p.414) A utopia e a heterotopia são os tipos principais de espaços reconhecidos por Foucault (2001). O primeiro, trata-se de um espaço de posicionamento sem lugar real, sendo então, irreal. O segundo, sendo um conceito formado a partir de dois termos, hetero (outro) e topia (espaço), constitui-se como tipo de espaço de alteridade, físico e ao mesmo tempo mental. Para Foucault, as heterotopias são produções culturais presentes em toda a história da humanidade, surgidas a partir de funções geralmente relacionadas ao espaço que a circunda. São espaços que ligam temporalidades e espaços distintos, sendo locais separados da sociedade. Todas as culturas constróem heterotopias para si, assumindo diferentes formatos de acordo com a função que desempenham - podendo inclusive, desaparecer quando desnecessárias. As heterotopias de crise são os locais destinados aos posicionamentos dos indivíduos em crise, longe do julgamento da

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sociedade. Ocupando o lugar desta, há a de desvio, que abriga os indivíduos de posicionamento indesejado, já que a anterior tem desaparecido. Outro exemplo de heterotopia em estado de desaparecimento, é a de purificação, isolada e supostamente impenetrável, onde indivíduos submetem-se a rituais. Vemos que as funções são variáveis, pois A heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis (...) o exemplo mais antigo, talvez, seja o jardim. (...) O jardim é a menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo. O jardim é, desde a mais longínqua Antigüidade, uma espécie de heterotopia feliz e universalizante... (Foucault, 2001, p. 418)

Além de justapor espaços, as heterotopias ligam-se a recortes de tempo, originando uma heterocronia existente dentro e fora do tempo, ao reunirem fragmentos temporais, acumulando os noutro espaço, exemplificada por Foucault como as bibliotecas e museus, onde não por acaso, encontra-se Chambre Végétale. Como heteropia temporal, Chambre Végétal III existe dentro e fora do tempo, diferente da natureza “natural”, é indeteriorável. Para criar uma heterotopia de ilusão, Iglesias utiliza diversos objetos para iludir o público e possibilitar uma fantasia, como o espelho, que funciona como uma heterotopia no sentido em que ele torna esse lugar que ocupo. no momento em que me olho no espelho ao mesmo tempo absolutamente real. em relação com todo o espaço que o envolve, e absolutamente irreal. já que ela é obrigada. para ser percebida. a passar por aquele ponto virtual que esta lá longe. (Foucault, 2001,p. 415)

Temos o espaço ilusório e mimético, com as raízes entrelaçadas esculpidas em resina e também com a presença dos espelhos no interior da obra. Lembremos também de histórias que este labirinto presentifica, como na mitologia, ou os sonhos que sonhamos - quem nunca sonhou estar perdido? Finalmente, temos com este jardim-labirinto um lugar real pois ele existe de fato e pode ser experimentado, porém busca assumir condições de outro mundo, sendo então um dispositivo de compensação.

Mas, como toda heterotopia, a obra de Cristina Iglesias é complexa o

suficiente para merecer um olhar mais atento. Sair dessa obra sem o fio de Ariadne é impossível, é como se, para sempre, nossas lembranças estivessem envolvidas por aquela flora imaginária. ______________ Notas ¹ Cristina Iglesias nasceu em San Sebastián, em 1956. Estudou Ciências Químicas (1976-1978) e após um breve período em Barcelona praticando cerâmica e desenho, estudou escultura na Chelsea School of Art em Londres, UK

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(1980-1982). Com bolsa Fulbright, estudou no Instituto Pratt, 1988. Em 1995, foi nomeada Professora de Escultura na Akademie der Künste Bildenden em Munique (Alemanha) e em 1999 ela ganhou o Prêmio de Artes Visuais Nacional da Espanha. Em 2012 ela ganhou o Big Kunstpreis Berlim. Representou a Espanha na Bienal de Veneza, na 42ª edição em 1986 e na 45ª edição em 1993; na Bienal de Sydney, em 1990. Também participou das Bienais de Taipei (2003), Santa Fe (2006) e na Trienal de Folkstone (2011). Disponível em http://cristinaiglesias.com/biografia/ Acesso em 13 de julho de 2016. ² Com duração de 23 de abril a 31 de julho de 2016, a mostra Cristina Iglesias teve curadoria de Guy Tosatto. ³ Texto de apresentação da exposição Cristina Iglesias, veiculado pelo Musée de Grenoble. Disponível em http://www.museedegrenoble.fr/1713-cristina-iglesias.htm. Acesso em 13 de julho de 2016. 4 Série de 22 esculturas/instalações permanentes e temporárias, desenvolvidas desde 1990. Temos um exemplar no Brasil no Instituto Inhotim (Minas Gerais), intitulada Vegetation Room (2010-2012). 5 El laberinto es un artificio que tiene la facultad de multiplicar el espacio al generar diferentes recorridos posibles sobre una superficie reducida. Un espacio vacío y acotado se puede entender con una simple mirada, pero un laberinto reclama un tiempo y un esfuerzo de inteligencia para llegar a su comprensión 6 Em entrevista, Cristina Iglesias afirma: “Me gusta construir espacios y ofrecer la experiencia de habitarlos. (...) Me gusta jugar con la percepción de las cosas. No incorporo la figura humana en mi obra, pero el espectador cumple una función esencial, puesto que a él está destinada la pieza. Es el espectador quién mira y recibe el impacto de una obra.” Disponível em http://elpais.com/diario/2003/03/20/cultura/1048114801_850215.html. Acesso em 14 de julho de 2016. 7 El arte de los jardines es la forma más sofisticada del arte del paisaje. 8 Es un lugar en el que se unem sentimiento y pensamiento. 9 La fragilidad del jardín es extrema, comprenderlo es casi descifrar un palimpsesto: imagen del universo o microcosmo, recuerdo del Paraiso, imagen del cuerpo humano, teatro de un confrontación entre el orden y el caos, narración mitológica, alegoría, discurso, en ocasiones, autobiográfico, mezcla de lo simbólico y lo meditativo.

______________ Referências: ARCHER, Michel. Arte Contemporânea, uma hisória concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2013. CASTRO, Fernando. La pasión del olvido. In MADERUELO, Javier. El jardín como arte. Huesca: ARPrelieve, 1997 CAUQUELIN, Jacqueline. A invenção da Paisagem. Sao Paulo: Perspectiva, 2007. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1982, p.530. DIEL, Paul. O simbolismo na mitologia grega. São Paulo: Attar editorial, 1991. p.55. FOUCAULT. Michel. Outros espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. MADERUELO, Javier. En el laberinto. In El Pais. Edição impressa em 1 de abril de 2006 __________________ El jardín como arte. Huesca: ARPrelieve, 1997 PEYRONIE, André - Labirinto. In BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. 2a Edição. RIANO, Peio H. La escultura transparente de Cristina Iglesias desfigura el Museo Reina Sofía. In EL Confidente. Edição impressa em 5 de fevereiro de 2013. TEIXEIRA, Carlos M. História do Corredor. In Entre. São Paulo: Instituto Cidades Criativas, 2009.

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3. Teoria e História da Arte

OLHANDO UM OLHAR: UMA LEITURA SOBRE A FOTOGRAFIA DE HIROSHI SUGIMOTO. Resumo: Este trabalho visa fazer uma reflexão sobre a série “Seascape” de Hiroshi Sugimoto, série onde o fotógrafo cria um conjunto de imagens que jogam com nossa percepção transitando na ideia do real x fictício na fotografia. Primeiramente tentarei desdobrar sobre algumas questões sobre sua vida e obra tentando analisar como o fotografo joga com o referente fotográfico por meio do deslocamento das técnicas e procedimentos da própria linguagem remetendo a ideias do pós-estruturalismo e compreender seu gesto e o motivo da inserção do fotografo como artista no campo da arte. Palavras Chave: Hiroshi Sugimoto, fotografia, gesto, pós-estruturalismo

Figura 01 – Hiroshi Sugimoto – seascape (baltic sea ruegen) - 1996 – Fonte: http://foto.espm.br/index.php/referencias/a-arquitetura-do-tempo-por-hiroshi-sugimoto/

Introdução O objetivo desse trabalho é fazer uma leitura da série de fotografias de Hiroshi Sugimoto “Seascape” (Figura 01) para refletir o que o torna um artista e o que, em seu trabalho, o instaura como autor no campo da arte. Para isso inicialmente tentarei me deter sobre a vida e a obra do artista, em suas referencias e nos universos seu trabalho transita. Depois tentarei fazer a análise desses conceitos tentando compreender quais jogos são impostos por ele e quais os diálogos que ele estabelece com a história da arte. Por ultimo, tentarei refletir o que faz dele um artista, quais elementos ele coloca em questão para adentrar no discurso da arte, para buscar refletir sobre o que permite transformar suas fotografias em um objeto de arte.

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Sobre a vida e obra de Hiroshi Sugimoto Hiroshi Sugimoto é um fotógrafo, arquiteto e colecionador japonês, nascido em Tokio. Em 1974 se gradua na Art Center College of Design em Los Angeles e no mesmo ano se muda para Nova York. Fortemente influenciado pelos trabalhos e escritos de Duchamp, dos dadaísta e surrealistas, fotografou marinhas, teatros e arquiteturas de uma maneira muito particular. O uso da câmera de grande formato e as longas exposições colocam Sugimoto no grau da mais alta capacidade técnica. Seu trabalho também apresenta aspectos filosóficos e conceituais relevantes, é um grande experimentador e conhecedor da linguagem que utiliza. Participa de Exposições por todo o mundo tais como Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, Metropolitan Museum of Art em Nova York, Deutsche Guggenheim em Berlim entre tantas outras. Em 2005 a Japan Society de Nova York e Arthur M. Sackler Gallery de Washington organizou uma turnê “Hiroshi Sugimoto: história da história” com sua coleção de objetos orientais. Uma constante na produção de Hiroshi Sugimoto parece ser a relação entre a ficção e a realidade, em sua série “Dioramas” (Figura 02) utiliza animais empalhados de um museu de história natural para construir cenas realísticas utilizando todo tipo de encenação, não apenas animais empalhados, mas a cena conta ainda com animais vivos, problematizando ainda mais o jogo do real/virtual na fotografia.

Nessa série de

trabalhos Sugimoto leva ao extremo a encenação fotográfica, não só nos elementos que constituem a cena mas em todo o clima e atmosfera que envolve a imagem,. A posição dos animais, com suas asas abertas e em posições de movimento, bem como o tema (os abutres, a carniça, a hiena) e o clima que envolve a imagem situam-na no campo das cenas plausíveis de serem entendidas como reais.

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Figura 02 - hiroshi_sugimoto__hyena_jackel_vulture_1976 – Fonte: http://foto.espm.br/index.php/referencias/a-arquitetura-do-tempo-por-hiroshi-sugimoto/

Em outra de suas famosas séries, “Theatres” de 1978 (Figura 03), Sugimoto fotografa salas de cinema e drive-ins antigos dos Estados Unidos utilizando o projetor do filme como única fonte de luz, Sugimoto se utiliza da longa exposição, quase sempre equivalente ao tempo do filme, para ressaltar a tela luminosa no centro da composição e como essa ilumina os detalhes e particularidades da arquitetura, o resultado são cenas fantasmagóricas, quase espirituais que como em uma pintura barroca, um único feixe de luz revela as dobras e desdobramentos dos volumes arquitetônicos quase como uma negação ao conteúdo do filme em prol de uma intensa contemplação das formas e detalhes da arquitetura. Assim, seja por meio da encenação ou da iluminação decorrente dos longos tempos de exposição, o artista traz a tona questões entre o real e o imaginário, entre o fato e o fictício.

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Figura 03 - hiroshi_sugimoto__movie_theatre_canton_palace_ohio_1980 – Fonte: http://foto.espm.br/index.php/referencias/a-arquitetura-do-tempo-por-hiroshi-sugimoto/

A série Sea-Scapes Pergunto-me quais são as dúvidas que passam na cabeça de quem se propõe a olhar a série “Seascape” de Hiroshi Sugimoto pela primeira vez (Figura 01). Conquanto podemos identificar do que se trata seu tema, há um primeiro momento em que parecemos nos questionar e estranhar os elementos que a compõe, a construção formal, nitidamente geométrica é estranhada ao se saber que se trata de uma fotografia. As imagens dessa série não são imagens dadas, obrigam o observador a se colocar diante da obra e refletir sobre aquilo que vê, contudo, quais são os meios que ele utiliza? Creio que o primeiro jogo importante que aparece nessas imagens é a questão da fotografia em preto e branco. Como diz Fussleri não existe no mundo lá fora cenas em preto e branco e, portanto, o uso desse elemento implica uma atitude conceitual. De fato o uso do preto e branco nessas imagens ajudam ao deslocamento do real a ficção, a falta de cor colabora a que em um primeiro olhar não compreendemos bem do que se trata o elemento (ou ao menos que este elemento não precisa ser real). O contraste dos tons ressaltam as duas superfícies diferentes remetendo a um quadro concreto ou abstrato, essa compreensão também se apresenta pela geometrização da imagem e a exata centralização dos elementos colaboram a construção da imagem mental dos dois retângulos fortalecendo o jogo visual.

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Outro fator que parece atuar com relevância na obra do fotografo japonês é o uso que ele dá ao recorte fotográfico, utilizando-o a ponto de eliminar os elementos que podemos ter de referência da imagem para captar apenas o elemento essencial de sua composição (os limites) entre o céu e o mar, conceito pensado por Philipp Duboisii que fala do uso de um corte efetivo, um tipo de corte que, retirando todas as suas referencias desvincula a imagem de seu espaço referencial. Se o recorte espacial é um fator importante para Sugimoto o corte temporal também parece atuar a mesmo nível. São grandes tempos de exposição (as imagens noturnas exige um amplo tempo de exposição da maquina) e consequentemente grandes tempos de experiência que se sintetizam em uma única imagem, em um único momento de contemplação. Muito de seu trabalho se situa na observação de pequenas fraturas de tempo, pequenos relances que saltam a nossos olhos em uma singela distração do olhar, mas para ele e na captura de sua imagem são motivos de horas de contemplação. Contudo, apesar de todos os distanciamentos presentes em sua imagem a fotografia ainda se faz presente. Sendo uma captação da realidade o objeto registrado não pode deixar de (mesmo disfarçadamente) se fazer presente, os contrastes em claro e escuro na forma inferior bem como a iluminação do elemento nos remete a um espaço de tempo em que provavelmente todos nós já nos vimos, (o preto e branco ajuda na dimensão atemporal), não é uma hora especifica do dia, mas qualquer um dos momentos em que nossa atenção pode se desviar e contemplar os limites entre o céu e o mar. Parece ficar claro que tais considerações remetem a escola “crítica benjaminiana” que colocava a essencialidade artística da fotografia na relação entre o fotografo e seu instrumento, e portanto, ao menos nessa leitura em particular, no trabalho de Sugimoto é ai que a sua dimensão artística parece se encontrar. Tendências pós-estruturalista na fotografia de Hiroshi Sugimoto O pós-estruturalismo diz respeito a um pensamento que se baseia na desconstrução da análise literária e retrata uma ruptura com esquemas meta-narrativos. Para o pós-estruturalismo a realidade é uma construção social e subjetiva onde nem o subjetivo se sobressai ao social nem o social se sobressai ao subjetivo, ambos se articulam construindo a realidade.

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Conquanto possa ser difícil tentarmos levantar todas as direções e reflexões que acompanham o pensamento pós-estruturalista penso que, ao menos no campo aqui abordado, podemos encontra alguns destes apontamentos no texto “a doutrina da semelhança” de Walter Benjamin, texto no qual o autor interroga o que é a semelhança. Nesse breve texto Benjamin alerta de que para avaliar o significado da palavra não basta pensar no que compreendemos hoje como a palavra semelhança, o “círculo existencial regido pela lei da semelhança era outrora muito mais vasto”iii. Partindo da semelhança presente na interpretação astrológica chega a um conceito de semelhança não sensível, uma interpretação feita por algo que não é diretamente igual mas que o representa, no caso da astrologia (exemplo utilizado pelo autor) um jogo entre a posição dos astros e os elementos divinatórios que eles significavam. Devemos contar fundamentalmente com o fato de que os processos celestes fossem imitáveis pelos antigos, tanto individual como coletivamente, e de que essa imitabilidade pelo homem, isto é, a faculdade mimética que este possui, deve ser considerada, por ora, como a única instancia capaz de conferir à astrologia seu caráter experimental iv

Assim como para a astrologia, é provável que a faculdade mimética tenha sido significativa para o ato de escrever nos tempos em que a escrita se originou, e, ao longo de sua história, a escrita teria se transformado, da mesma forma que a linguagem oral, em um arquivo de semelhanças, de correspondências não sensíveis que nada tem haver com aquilo que o simboliza, mas que o representa. A palavra e a língua são onomatopaicas e a chave que torna isso é o conceito de semelhança não sensível. Se ordenarmos as palavras das diferentes línguas que possuam uma significação em torno desse significado, como seu centro, seria então de investigar como todas essas palavras – que frequentemente não tem em si a menor semelhança – são semelhantes ao significado situado no centrov

Essa dimensão mágica da linguagem e da escrita também não se desenvolve de maneira isolada da dimensão semiótica, todos os elementos miméticos da linguagem constituem uma intenção fundada, “só podem vir a luz sobre um fundamento que lhe é estranho”vi e portanto o conceito significativo nos sons das frases é por onde emerge esse semelhante. Mas como toda essa semelhança não sensível esta presente no ato de leitura existiria ainda uma diferença fundamental diante da linguagem, um duplo sentido da palavra leitura, Benjamin dá a ela uma significação profana e mágica, estabelecido por meio da diferenciação entre um aluno que lê o alfabeto e o vidente que interpretava os

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céus, no primeiro o ato de ler não se desdobra nos dois componentes, não tem semelhança a aquilo que representava, já no segundo o astrólogo lê a posição dos astros e ao mesmo tempo o destino das pessoas. Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um médium em que as faculdades primitivas de percepção do semelhante penetram tão completamente, que ela se converteu no médium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente como antes, no espirito do vidente ou sacerdote, mas em suas essências, nas substancias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas.vii

Portanto, a transformação do conceito de semelhança acabou por passar das mãos do vidente que lia os astros em algo que lhe era igual (em sua essência semelhante) para uma linguagem escrita ou falada que se baseia em seu valor simbólico e/ou semiótico. Diante disso gostaria de falar sobre um trabalho de Arnaldo Antunes que me parece transitar bem sobre o tema discutido, na poesia “fora de sí” (Figura 04) os desarranjos gramaticais como “eu fico fora de si” ou “eu fica fora de mim”, por exemplo, ressaltam a ideia geral do poema que é o ficar fora de sí, contudo o que está implícito nesse jogo, nesse gesto se dá nos próprios elementos da linguagem que aqui é rearranjada em prol de uma problematização poética específica. Fora de sí Eu fico louco, Eu fico fora de si. Eu vai embora, Eu fica fora de mim.

Eu fico um pouco, Depois eu saiu daqui. Eu vai embora, Eu fico fora de si.

Eu fico oco, Eu fica bem assim, Eu fico sem ninguém em mim. Figura 04 – Arnaldo Antunes – Fora de si - 1995

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Assim, o pós-estruturalismo coloca em jogo a própria linguagem, realocando seus elementos em prol de uma ação particular. Suas bases não estão apenas nos valores conceituais de seus elementos, mas também no jogo dos caracteres e procedimentos da própria linguagem, trato esse presente no trabalho do fotografo japonês. O artista, o autor e seu gesto Creio que para pensar o artista em seu primeiro plano, somos levados a pensar o autor que ele representa. O artista, assim como qualquer outro autor, está inserido em um campo de discurso. A função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contem, determina, articula o universo do discurso, ela nasce e se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações especificas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um individuo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a varias posiçõessujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar.viii

Um ponto importante da reflexão de Foucault é o distanciamento que ele faz entre o autor – sujeito real – e a função autor, sendo essa ultima a questão ao qual ele se detém. Um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.); ele exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal nome permite reagrupar um certo numero de textos, delimita-los, deles excluir alguns, opô-los a outros. ix

No texto “o autor como gesto” Argabem ressalta essa diferenciação proposta por Foucalt e refaz esse caminho teórico para perguntar o que é esse apagamento do autor (sujeito real), “O que significa, para um individuo, ocupar o lugar de um morto, deixar as próprias marcas em um lugar vazio?”x Por meio de um dialogo com a obra “a vida dos homens infames”xi, também escrita por Foucault, Argabem reflete sobre a ideia de que naqueles documentos e escritos, assim como as obras, “vidas foram postas em jogo”, por meio do documento ou da obra não temos acesso as pessoas, elas só se apresentam por meio de breves experiências que tiveram ao longo de suas vidas e portanto, esse apagamento do autor (individuo real), é uma característica própria da natureza do documento, E assim como em certos livros velhos que reproduzem ao lado do frontispício o retrato ou a fotografia do autor, nós procuramos em vão decifrar, nos seus

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traços enigmáticos, os motivos e o sentido da obra como exergo intratável, que pretende ironicamente deter o seu inconfessável segredo. xii

Segundo Argabem poderíamos ser levados a pensar que o ato de julgamento e registro destes documentos, dessas pessoas infames poderia (ao menos por um instante) fazer brilhar aquelas vidas na imensa obscuridade da história, contudo, segundo o entendimento do autor, o documento não destaca o sujeito mas subtrai dele toda possível apresentação e o “autor (infame) está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central.” xiii

E dessa forma conclui O sujeito – assim como o autor, como a vida dos homens infames – não é algo que possa ser alcançado diretamente como uma realidade substancial presente em um lugar; pelo contrário, ele é o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos que foi posto – se pôs – em jogoxiv

Assim, conhecer o artista, o sujeito, o autor e/ou mesmo os infames por meio dos documentos e obras que deixaram é conhecer um embate, uma disputa entre os dispositivos e os sujeitos que neles estão instaurados. Contudo, esse jogo não acontece de uma maneira qualquer “A história dos homens talvez não seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram – antes de qualquer outro a linguagem”xv. Os dispositivos também possuem aquilo que lhes é próprio, ou como diz Foucault, a própria função autor tem importância diferente dependendo do dispositivo em que esta instaurada. Hiroshi Sugimoto por sua vez, traz em seu ato questões sobre o real e a ficção, entre a vida e o sonho, utilizando para isso um gesto dentro da própria linguagem, deslocando seus valores característicos em prol de uma proposição poética. Referencias Bibliográficas:. ARGAMBEM, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e politica: ensaios sobre literatura e historia da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: brasiliense, 2012. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appenzer. Campinas – SP: Papirus, 1993. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985 FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, musica e cinema; organização e seleção de Manuel Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.

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http://www.sugimotohiroshi.com/ http://foto.espm.br/index.php/referencias/a-arquitetura-do-tempo-por-hiroshi-sugimoto/ i

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appenzer. Campinas – SP: Papirus, 1993. iii BENJAMIN, 2012 p. 117 iv op. cit p. 119 v op.cit. p 120 vi op .cit. p 121 vii op. cit. p 121 viii FOUCAULT, 2015. p. 277 ix FOUCAULT, 2015. p. 277 x ARGABEM, 2015. p. 58 xi FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, musica e cinema; organização e seleção de Manuel Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. xii ARGABEM, 2015. p. 62 xiii op. cit. p.59 xiv op. cit. p. 63 xv ARGABEM, 3007 p. 63 ii

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URBAN SCKETCHERS E A “DES-COBERTA” DA CIDADE

Paulo H. Tôrres Valgas

Resumo: Esse artigo aborda o Urban Sketchers, grupo de desenhistas urbanos fundado pelo espanhol Gabriel Campanario em 2008, tratando de suas práticas pelas ruas das cidades onde vivem e para onde viajam, no intuito de mostrar como eles têm no desenho de locação a possibilidade de descobrir as cidades e o mundo onde vivem, trazendo a tona o que está imperceptível ou é corriqueiro. Para isso, serão retiradas crônicas, depoimentos e desenhos do blog oficial do grupo, fonte principal de divulgação de sua produção. Palavras-chave: Urban Sketcher, cidades, descoberta. Abstract: This paper discusses the Urban Sketchers, group of drawers that was founded by an spanish, Gabriel Campanario, at 2008, discussing their practices through streets in the cities where they live and travel for, in order to show how they have in the drawing location the possibility to discover cities and the world where they live in, bringing out what is noticiable amd unexceptional. For this, will be taken chronicles, testimonies and drawings from the official blog of the group, the main source of dissemination of their production. Keywords: Urban Sketcher, cities, discovery A cidade é um produto do processo civilizatório humano, estando presente nas civilizações mais antigas, desde a Ásia à América. É historicamente reduto da vida humana mais organizada socialmente, local de trocas, de produção artística e de admiração para muitos. No Império Romano, todos os caminhos levavam à Roma, a grande capital, de onde saíam as decisões e onde ocorriam os eventos mais importantes do Império. No fim da Idade Média, os relatos de Marco Polo sobre as cidades, falsos ou não, encantavam a quem ouvia. A cidade torna-se obra de arte no Renascimento, quando do seu ressurgimento na Europa Ocidental. No século XIX, a industrialização fez a população urbana superar a rural nesta região e a metrópole transformou-se no símbolo da modernidade. Desde então, temos nos inspirado nas capitais da época: Paris neste mesmo século e Nova Iorque, no século XX. A cidade é um reduto de sensibilidade, segundo Sandra Pesavento, que também afirma: ser citadino (...) implicou formas, sempre renovadas ao longo do tempo, de representar essa cidade, fosse pela palavra, escrita ou falada, fosse pela música, em melodias e canções que a celebravam, fosse pelas imagens, desenhadas, pintadas ou projetadas, que a representavam, no todo ou em parte, fosse ainda pelas práticas cotidianas, pelos rituais e pelos códigos de civilidade presentes naqueles que a habitavam. (2008, p. 11)

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Moradores ou admiradores sempre tiveram a cidade como fonte de inspiração. Às cidades reais, afirma Pesavento, “corresponderam outras tantas cidades imaginárias, a mostrar que o urbano é bem a obra máxima do homem, obra esta que ele não cessa de reconstruir, pelo pensamento e pela ação, criando outras tantas cidades, no pensamento e na ação, ao longo dos séculos (idem). Essas cidades invisíveis, para citar o nome do livro de Ítalo Calvino, foram registradas por artistas, pintores ou desenhistas, poetas, dramaturgos e jornalistas, que contagiaram muitos com sua paixão. Pesavento questiona ser possível pensar em Paris, São Petersburgo, Buenos Aires e Porto Alegre sem pensar em Proust e Baudelaire, Dostoiévski e Tolstói, Jorge Luís Borges e Mário Quintana (2007, p. 18-9). Além destes, lembramos do Rio de Janeiro, Berlim, e Londres ao falar em João do Rio, Hoffman e Edgar Allan Poe, se tratando de literatura; e Nova Iorque, Paris, Veneza, Delft e Florianópolis quando citamos Hopper, Guys, Monet, Canaletto e Vermeer e Victor Meirelles. Nos dias atuais, a prática da observação e representação da cidade não está adormecida. Observando a experiência do Urban Sketchers, grupo que tem buscado estabelecer uma conexão sensível com a paisagem urbana, podemos ter certeza disso. O grupo foi criado em 2007 pelo ilustrador e jornalista espanhol Gabriel Campanario, hoje radicado nos Estados Unidos e colaborador do jornal The Seattle Times. O USk nasceu no Brasil a partir da iniciativa do arquiteto Eduardo Bajzek e dos artistas plásticos João Pinheiro e Juliana Russo. Desde então, o grupo cresceu e hoje tem quase cinquenta correspondentes no blog e mais de quatro mil membros no perfil do Facebook, distribuídos em cidades brasileiras como São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Curitiba, Goiânia, Brasília e Recife. Hoje, de acordo com o site oficial “Usk Brasil”, o grupo tem membros em mais de vinte países, como Portugal, Brasil e Argentina; cerca de 50 blogs, além de 175 mil desenhos publicados no Flickr. Anualmente, promovem-se encontros internacionais para compartilhar experiências, realizar e participar de seminários e sair às ruas em grupos para desenhar. Desde 2010, esses encontros vêm acontecendo e já foram sede as cidades de Portland (Estados Unidos-2010), Lisboa (Portugal-2011), Santo Domingo (República Dominicana-2012), Barcelona (Espanha-2013), Paraty (Brasil-2014), Cingapura (2015) e Manchester (Inglaterra-2016). No encontro de 2014, em Paraty-RJ, houve uma média de 250 participantes. Além destes, há encontros municipais e estaduais, e em abril de 2016 ocorreu o “I Encontro Nacional USk Brasil” em Curitiba. No site do grupo, explica-se que buscam arquitetos, ilustradores, designers gráficos, pintores e educadores que tenham “a mesma paixão pelo desenho de observação das cidades e das cenas urbanas” e que publiquem “mais que apenas desenhos na web, 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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compartilhando também a narrativa e as circunstâncias em que esses desenhos foram feitos.” O fundador também criou um manifesto no qual destaca a visão que agrega o grupo e está disponível no seu site: I- Nós fazemos desenhos de locação, através da observação direta, seja em ambientes externos ou internos. / II- Nossos desenhos contam histórias do dia a dia, dos lugares em que vivemos, e para onde viajamos. / III- Nossos desenhos são um registro do tempo e do lugar./ IV- Nós somos fiéis às cenas que estamos retratando. / V- Nós utilizamos qualquer tipo de técnica e valorizamos cada estilo individual. / VI- Nós nos apoiamos e desenhamos juntos. / VII- Nós compartilhamos nossos desenhos on-line. / VIII- Nós mostramos o mundo, um desenho de cada vez. (URBAN SKETCHERS BRASIL)

A antropóloga e pesquisadora do USk, Karina Kuschnir, destaca a valorização do desenho do espaço urbano e da relação do desenhador com a sua própria cidade ou com as cidades por onde viaja, sendo uma das características que singulariza esse projeto (2012, p. 5). A relação com o desenho, portanto, é uma constante na vida dos sketchers, que o tem como fio condutor de sua prática diária, que os leva a diversos lugares. Michel de Certeau (2000) afirmou que “aquele que perambula pelas ruas pode perder a visão do todo, mas realiza uma exploração corporal e sensitiva, apropriando-se de maneira nova dos espaços da cidade.” O sketcher carioca Rafael Fonseca tem uma relação muito intensa com o que faz e acredita que os desenhos não têm importância em si, mas sim os lugares onde eles o leva (2011). Já o sketcher Fabien Denoel, do Espírito Santo, diz que “desenhar é (...) o prazer de andar, de parar num lugar, de olhar, atirar traços numa folha de papel, deixando a sua mão falar a linguagem das formas, olhar de novo e, entrar pouco a pouco, cada vez mais profundo na realidade de um lugar (2011). Simon Taylor, sketcher de Curitiba, diz que desenhar dentro do USk mudou muito sua visão da cidade, já que passou a “observá-la com muito mais paixão e interesse.”. Ele relata também que suas viagens nunca mais foram as mesmas, visto que o sketchbook é um item indispensável em sua mala. (2015a) Flávio Ricardo, sketcher de São Carlos, afirma que desenhar tornou-se uma obrigação e que não vê “melhor maneira de registrar locais, coisas ou eventos” que experimenta senão pelo desenho, que é quando ele pode rememorar de forma muito mais intensa seu contato – aprofundado pela observação atenta que o desenho exige – com o mundo que o cerca. (2014). Por levá-los a lugares diferentes, físicos ou não, esses desenhos contam a biografia de seus autores. A sketcher paulista Leni Fujimoto diz: “meus desenhos são a minha história." Ela continua: “trata-se de lugares por onde ando, frequento, viajo; as pessoas que vejo, e as minhas impressões sobre elas; com uma certa frequência,

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complementadas por cores, que auxiliam nessa expressão” (2012). O sketcher Adriano Melo relata seu prazer em representar o que vê e os locais por onde passa; que descobre detalhes despercebidos em sua própria cidade, Mogi das Cruzes (2011). Ronaldo Kurita diz que só conheceu São Paulo de verdade explorando-a para os trabalhos universitários de urbanismo, e que sempre se surpreende, pois até hoje faz novas descobertas (2015). Reinoldo Klein, sketcher paranaense, diz que encontrou no desenho uma oportunidade de materializar a sua percepção particular sobre a rica composição do tecido urbano. Não só seu ponto de vista, mas seus croquis também lhe oportunizavam observar o que a cidade tinha a dizer sobre sua história, significados e conteúdo: “o traço é capaz de registrar minhas memórias de diferentes tempos, mas também simboliza a necessidade sobre um tempo de pausa (emergente) entre nossos percursos”, tratando da nossa pressa de alcançar o ponto de chegada diário.(2013) O sketcher português André Duarte diz que uma das coisas que mais o atrai no desenho de observação é “a “necessidade” de relação entre desenhador/observador e o objecto/espaço” que pretende-se desenhar. Ele continua: “(…) Desenhar obriga-nos a perceber como se compõem e estruturam os elementos que nos rodeiam. (...) Desenhar temme tornado mais rico – mais observador, mais sensível à relação homem/espaço” (2015). Em seus encontros informais, sketchers saem às ruas procurando por objetos para capturar, para sentir e tornar seu. Tal como um flâneur, porém com suas canetas de desenho, aquarelas e papéis ao invés de apenas suas pupilas e memória. Seguem o conselho de Pierre Hamp, citado por Benjamin (apud 2002, p. 213): “sair de casa como se viesse de longe; descobrir um mundo, que é aquele no qual se vive, começar o dia como se desembarcasse de Cingapura, como se jamais tivesse visto o capacho de sua própria porta nem o rosto dos vizinho do mesmo andar.” O sketcher novaiorquino Danny Gregory destaca que importa “apenas desenhar a partir daquele “lento, cuidadoso e contemplativo olhar””, valorizando “cada dia e cada objeto, por mais simples que fosse”. Isso inclui, para ele, “latas de comidas abertas, velhos pares de sapato, uma esquina de Nova York – tudo pode ganhar espaço em seus cadernos de desenhos.” (apud KUSCHNIR, 2012, p. 4). Esse pensamento casa com a definição da antropóloga e pesquisadora do USk, Karina Kuschnir, “a última frase do manifesto tornou-se um símbolo do grupo”, pois “é um lema que chama atenção para um fenômeno interessante no mundo atual: conhecer o mundo através dos desenhos.” (2012, p. 2). Destacando a expressão show the world, ela afirma que não se limita a “mostrar o mundo”, mas também explorar, conhecer, apresentar, revelar, expor, demonstrar, tornar visível. Sobre o processo de escolha do que será desenhado, João Pinheiro (2011a) diz que não se trata de um processo científico, mas por uma “mistura de senso estético, perspectiva, 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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ângulos, linhas, intuição, batidas de coração, memória” , pois “desenhar não se encaixa no processo de produtividade capitalista, está em outra esfera.” Nesta busca, o inesperado, o inusitado, podem ser capturados. Aquilo que é kitsh. Tal faz Jony Coelho quando desenha um telefone público de sua cidade, em forma de tubarão (imagem 1), onde não raro vê-se turistas se fotografando com a cabeça dentro da boca do esqualo (2013). Mesmo não sendo tão utilizado, por razões óbvias, a obra ainda faz sucesso entre os urbanitas. A paulista Fernanda Vaz faz o mesmo com um objeto muito mais corriqueiro: um poste de iluminação (2011). Com seu desenho, podemos ver a beleza deste tão difundido objeto.

Imagem 1: Jony Coelho. Lanchonete chafariz no cento de Tubarão. 2013. Disponível em: http://brasil.urbansketchers.org/2013/12/orelhao-tubarao.html

João Pinheiro (2011b) relata sobre desenhar perto de sua casa: “Na rua fico revendo os lugares e remontando acontecimentos passados. Pintaram um muro, derrubaram uma casa, cadê aquela árvore que tinha aqui, aquele bar mudou de dono...", reflete enquanto anda, e cita o verbo criado “remembrando”, relacionado à recordar. Ele ainda diz que parece estar “remendando uma colcha de retalhos, ligando pontos de saudade na cabeça, tudo através do desenho.” Ele acredita que “desenhar nos dá a possibilidade de parar e refletir, de ver a paisagem, de ver o mundo fora da casa de máquinas, ver como é lá fora.” Ele relata, enquanto desenha a rua Erva Mularinha, em São Paulo, que apesar de famosa e muito procurada e de

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ele sempre passar por ela, só a “descobriu que esta era a tal rua tão procurada quando sentei na calçada para desenhá-la.” Flávio Ricardo, quando relata suas férias na cidade onde passou sua infância e adolescência, em Santa Bárbara d'Oeste, diz que procurou, através do desenho, redescobri-la, lutando contra o olhar viciado, acostumado a procurar e a encontrar tudo aquilo que pensa saber da cidade, que sempre dizia que nela não há nada de interessante. Ele diz que colocar em evidência aquilo que passa desapercebido é uma das qualidades da atividade de desenhar. Ao falar do desenho de um vendedor numa barraquinha, diz: “Não sei dizer bem o porquê da escolha do objeto. Talvez estas ideias já estivessem latentes, esperando que fossem desenhadas.” (2015a) Em outra postagem, ele afirma: Prefiro fazer, sempre que possível, meus deslocamentos a pé. A percepção do ambiente construído, sem a mediação do automóvel, ou a velocidade aumentada de qualquer outro meio, é muito mais intensa para o pedestre. Quando, ainda, o caminho é rotineiro e bem conhecido, procuro variar o percurso, buscando desvios e caminhos alternativos. Muitos dos desenhos que faço, principalmente nas cidades que frequento, repletas de paisagens habituais para mim,começam por um percurso deste tipo. Nesta busca por percepções renovadas, sinto especial interesse por locais nos quais percebo uma ruptura do traçado urbano habitual. A rigidez com que são delimitados o espaço público, separado, sem transição, do espaço privado dos edifícios por muros ou grades, torna-se, nesses locais, um livre jogo de conceitos espaciais habitualmente estanques. (2015b)

Em um desenho de uma praça, Flávio Ricardo diz que a presença de um fusca foi o que despertou o interesse e determinou o recorte a ser feito no cenário, afirmando que não fosse este fusca estacionado, provavelmente não teria desenhado essa praça (...)” Na imagem 3, a luz do sol do final da tarde, atravessando um vão entre edifícios, ressalta também um contraste: “A tríade de matrizes (azul, laranja escuro e verde) em formas orgânicas contrastando com a ortogonalidade e neutralidade de tons da pequena casa em reforma” é destacada por ele, que afirma: “Mais uma vez, não fosse a presença da caçamba de entulhos, esta esquina passaria despercebida” (2015c)

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Imagem 2: Flávio Ricardo. R. Olívio Saes. 2015. Disponível em: http://brasil.urbansketchers.org/2015/11/sobre-desenhos-de-carros.html

Simon Taylor, ao viajar para Buenos Aires, registra, da janela do hotel, uma casinha de dois andares bem no topo de um prédio imenso. Essa sensação é caracterizada por ele como indescritível, pois a arquitetura da casa não tinha nada a ver com a do edifício, parecendo ter sido transportada magicamente de uma paisagem rural europeia para os píncaros da América do Sul (2015b). O sketcher José Clewton (2015) relata sua participação na “Caminhada Histórica" pelo bairro do Alecrim, em Natal, onde pode perceber locais frutos de movimentos históricos, como o cemitério secularizado e as marcas da ocupação dos migrantes do interior do estado. No percurso, ele registra a arquitetura religiosa, o cotidiano dos bares e a forte presença militar, que ele remete à herança da II Grande Guerra. Vale acrescentar o sentimento do flâneur, personagem típico das ruas das cidades, citado por Marco Menezes: o de ser autônomo, pois este não estaria condicionado pelo hábito que automatiza a percepção e impede a apropriação da cidade pelo cidadão. Seu contato com a massa urbana é aquele do olhar, ele vê a cidade (2004, p. 69). Tal comparação remete também à atitude do poeta, que encontra o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heroico, tornando-se como um trapeiro, que tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Na lixeira ele encontra tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu (BENJAMIN, 2002, p. 78). A produção artística tem o poder de abrir os olhos àquilo que ninguém vê. Alain de Botton, filósofo suíço, defende essa máxima no seu livro “A arte de viajar”, dedicando um capítulo à maneira como Van Gogh possibilitou-nos ver a Provença e lembrando Oscar Wilde, quando este afirma que

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“não havia fog em Londres antes que Whistler o pintasse”(2012, p. 231). Benjamin também destaca Eugene Atget, fotógrafo de Paris, alguém que “buscava as coisas perdidas e transviadas”, argumentando que quando algumas publicações de vanguarda mostram unicamente detalhes, “ora um fragmento de balaustrada, ora a copa desfolhada de uma árvore cujos galhos se entrecruzam de múltiplas maneiras sobre um poste de gás, ora um muro ou um candelabro” (1994, p. 101). Carlos Medeiros, sketcher paulista, nesta mesma linha de pensamento, ao desenhar uma rua onde uma árvore projeta sombra sobre a rua (imagem 4): Este segundo tem a ver não com o local em si. Esta cena poderia ter sido feita em qualquer outro lugar, o importante no meu ponto de vista é parar e observar não somente marcos arquitetônicos, ou elementos extremamente marcantes e chamativos no local. E sim a simplicidade de elementos comuns e cotidianos em um local como um bairro residencial silencioso, e por esse motivo abstraí os demais elementos como carros e casas. No momento as sombras e o silêncio me chamaram mais a atenção. (2015)

Imagem 3: Carlos Medeiros. Av. Indianópolis x R.dos Araes. 2015, Disponível em:

<http://brasil.urbansketchers.org/2015/08/ola-todos.html>

Descobrir a cidade, então, a partir do desenho, é uma atividade antiga, renovada atualmente pelo movimento Urban Sketchers e por tantos outros que tem surgido pelo mundo, no intuito de registrar paisagens, patrimônios, o cotidiano do povo (ou seja, contar histórias pelos traços). A atividade parece ser um presente do autor ao mundo ou à história e às artes, mas é, sobretudo, um presente a si mesmo, pois leva-o a lugares físicos e emocionais que sem essa prática, talvez fosse mais rara ou difícil. Enfim, o desenho de locação tem o poder de

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abrir os olhos e fazer enxergar, tornarmos mais sensíveis ao que nos rodeia e ajudar-nos a construir uma identidade pessoal e social, além do imenso prazer estético que tal prática demanda. Que não falte fôlego e coragem para os desenhistas. Para nós, que não falte mais oportunidades de fruir em suas produções, descobrindo mais da cidade e do mundo em que vivemos. Referências: BAPTISTA, André D. Conheça os Correspondentes: André Duarte Baptista, de Torres Vedras (Portugal) Urban Sketchers Brasil. 2015. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2015/09/conheca-os-correspondentes-andre-duarte.html> Acesso em 14 jul. 2016 BENJAMIN, W. The Arcades Project. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2002. _________________. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOTTON, Alain de. A arte de viajar. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. CAMPOS, Fernanda V. 1º Encontro Mensal de Urban Sketchers! Urban Sketchers Brasil. 2011. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2012/06/1-encontro-mensal-de-urban-sketchers.html> Acesso em 14 jul. 2016 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. V. 1. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. CLEWTON, José. Dia da "Caminhada Histórica" pelo bairro do Alecrim, Natal/RN. Urban Sketchers Brasil. 2015. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2015/06/dia-da-caminhada-historica-pelo-bairro.html> Acesso em 14 jul. 2016 COELHO, Jony. Orelhão Tubarão. Urban Sketchers Brasil. 2015b. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2013/12/orelhao-tubarao.html> Acesso em 15 jul. 2016. DENOEL, Fabien. Conheça os correspondentes: VITÓRIA - ES Fabien Denoel. Urban Sketchers Brasil. 2011. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2011/09/conheca-os-correspondentes-vitoriaulo.html> Acesso em 15 jul. 2016. FONSECA, Rafael. Conheça os correspondentes:Rafael Fonseca. Urban Sketchers Brasil. 2011. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2011/08/conheca-os-correspondentes-rio-de_26.html> Acesso em 14 jul 2016. FUJIMOTO, Leni. Conheça os correspondentes: São Paulo - SP Leni Fujimoto. Urban Sketchers Brasil. 2012. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2012/01/conheca-os-correspondentes-sao-paulo-sp.html> Acesso em 14 jul. 2016 KLEIN, Reinoldo. Conheça os Correspondentes: CURITIBA - PARANÁ Reinoldo Klein. Urban Sketchers Brasil. 2013. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2013/04/conheca-os-correspondentes-curitiba.html> Acesso em 14 jul. 2016 KURCHNIR, Karina. Desenhando a cidade: Proposta para um estudo etnográfico no Rio de Janeiro. 2012. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2012/01/110_2045-karina.pdf> Acesso em 25 jan. 2016. KURITA, Ronaldo. Conheça os Correspondentes: Ronaldo Kurita, de São Paulo/SP. Urban Sketchers Brasil. 2015. Disponível em: <http://brasil.urbansketchers.org/2015/05/ronaldokurita.html> Acesso em 14 jul 2016 MEDEIROS, Carlos. Introdutório com marcadores em SP. Urban Sketchers Brasil. 2015. Disponível em: 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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DESTRUIÇÃO, MEMÓRIA E O ENCANTO DAS RUÍNAS Rafael Fontes Gaspar

RESUMO:Frente à diversidade de práticas voltadas à participação do indivíduo no espaço urbano, este artigo destina seu olhar sobre as expedições fotográficas da arquitetura urbana em ruínas, denominada de urban exploration. O livro Nadja, de André Breton, fundamenta essa análise em dois pontos: primeiro, o caminho errante do personagem que deambula pelas ruas de Paris; segundo, a expressão de Breton que diz: “a beleza será convulsiva, ou não será”. A afirmação de Breton diz respeito a uma beleza que é dinâmica, uma beleza que vem da loucura, do instinto, do abandono, contrária à ideia de beleza harmônica e racional. Essa abordagem talvez permita compreender o encanto do abandono no urban exploration. Palavras-chave: ruínas, surrealismo, urban exploration. ABSTRACT:Among the diversity of practices aimed at individual's participation with the urban space, this research aims his look at the photographic expeditions of urban architecture in ruins, that is called urban exploration. So the book Nadja by André Breton based the research about two points: first the wandering path of the character who wanders the streets of Paris and second, the Breton expression that says, "the beauty will be convulsive or will not be." The statement Breton it refers to a beauty that is dynamic, a beauty that comes from the madness, instinct, abandonment, contrary to an idea of hamonic and rational beauty. Maybe so possible to understand the charm of abandonment in urban exploration. Palavras-chave: ruins, surrealism, urban exploration. O urban exploration, grosso modo, é a prática de expedições individuais ou coletivas que tem como objetivo percorrer todos os cantos da cidade, entrar em lugares abandonados, proibidos, percorrer os esgotos da cidade, ou escalar os edifícios mais altos. Considerada um hobby, essa prática pode revelar um lado político, mesmo destituída dessa finalidade, visto que seus adeptos a praticam pela diversão, embora, por outro lado, mostrem, com essas expedições, uma posição de quem pretende romper com as fronteiras citadinas, através de uma ressignificação da experiência contemporânea com a cidade. Aliás, a grande contribuição do urban exploration deve-se ao registro fotográfico que mostra a beleza dos lugares esquecidos da cidade, revelando a destruição da memória das construções antigas. Essa diversão oculta o caráter político dessas expedições, pois, infiltrar-se nas estranhas da cidade, nos lugares esquecidos, permite pensar sobre uma nova possibilidade de o sujeito recriar sua relação afetiva e subjetiva com a cidade moderna, assim como fizeram os grupos The San Francisco

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Suicide Club e Cave Clan, considerados os primeiros a realizar essas expedições contemporâneas. A respeito da bibliografia do urban exploration, pode-se tomar como base os livros de Bradley L. Garrett, Explore everything: place-hacking the city e de Ninjalicious (pseudônimo de Jeff Chapman), Acess all areas: a user’s guide to the art of urban exploration, um manual que explica sobre o preparo e as dificuldades, no qual o explorador organiza um glossário e apresenta uma linha do tempo que narra a história do urban exploration, ao considerar as primeiras visitas e expedições a lugares abandonados como os antecedentes da prática do grupo, como primeiro relato, a descrição de Walt Whitmann, publicada em 1861 sobre o túnel abandonado na Atlantic Avenue, no Brooklyn. Assim como a visita dos dadaístas realizada em 1921, que incluía André Breton, Paul Eluard, Francis Picabia e Tristan Tzara em uma expedição para uma igreja abandonada em Paris, a St. Julien le Pauvre, para Robert Motherwell: Por instigação de Breton, os dadaístas, portanto, decidiram desistir de exposições e peças de teatro e organizar “excursões e visitas” por Paris. Convites foram enviados para encontrar Dada na rua. Folhetos informaram o público sobre um encontro em 14 de abril, no jardim da igreja de St. Julien-le-Pauvre. Outras visitas foram planejadas: o Louvre, o Buttes-Chaumont, a estação de St. Lazare, o Mont du Petit Cadenas e do Canal de l'Ourcq, e assim por diante, mas apenas a primeira “visita”, em que Breton e Tzara falaram, realmente ocorreu (MOTHERWELL, 1981, p. 184, tradução nossa). i

Figura 1 – Anônimo. Dada excursion to Saint-Julien-le-Pauvre, Paris. Disponível em: www.metalocus.es/content/en/blog/playgrounds-reinventing-square. Acesso em: 22 abr. 2015.

A excursão dadaísta à igreja abandonada de St. Julien le Pauvre é uma evidência das primeiras expedições realizadas por lugares abandonados em cidades contemporâneas. Nesta perspectiva, as fotografias urbanas do urban exploration serão analisadas mediante uma

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relação do movimento contemporâneo com seus antecedentes. Para Bradley Garrett, em Explore everything: Os escritos de Walt Whitman, Charles Dickens, Baudelaire e muitos outros artistas e grupos, incluindo os dadaístas, surrealistas e situacionistas, servem como figuras inspiradoras para as noções contemporâneas da prática do urban exploration, com a sua paixão por descobrir o perigo, o precário, o impróprio e o absurdo dos espaços urbanos (GARRETT, 2013, p. 16, tradução nossa). ii

Ao analisar a cidade pelo prisma da imagem, é possível perceber, nos escritos surrealistas sobre a cidade de Paris, imagens que evocam as ruas, os monumentos e os lugares em abandono a partir da memória e da imaginação do sujeito que caminha pela cidade. O homônimo romance de Breton, Nadja, escrito em forma de diário, relata o caminho de dois personagens que se cruzam pelas ruas de Paris, Breton e Nadja. Um diário composto de fragmentos e lembranças, por fotografias da cidade, por telegramas, pelos desenhos feitos da personagem, etc. Diz Breton: “Comecei por rever vários dos lugares a que este relato conduz; fazia questão, na verdade, tanto em relação a algumas pessoas como objetos, de tomar uma imagem fotográfica do mesmo ângulo especial em que eu próprio as havia considerado” (2012, p. 138). O romance revela uma Paris através da memória afetiva com os lugares e espaços da cidade e o percurso da narrativa deixa pistas por onde é possível traçar um mapa imaginário da cidade quanto aos monumentos. Nessa linha de reflexão, que analisa as descrições literárias sobre cidades, monumentos e ruínas, pode-se ter como exemplo de viajante na antiguidade, Pausânias, que foi um arqueólogo, mitógrafo e um geógrafo grego, que contribuiu para o conhecimento da Grécia Antiga com suas descrições sobre localidades gregas e do Peloponeso. Sua obra Descrição da Grécia (160-176) é o resultado de observações que fizera em suas expedições nas primeiras décadas do século II, quando percorreu as regiões da Ásia Menor, como Síria, Palestina, Egito e Macedônia, além da Europa pela península helênica e da Itália. Considerado um dos livros mais antigos sobre viagens na literatura europeia, sua obra era destinada aos romanos cultos e apreciadores de viagens à Grécia. A importância de Pausânias para os estudos sobre ruínas é a atenção dada às suas descrições sobre as obras de arte, os monumentos, os templos e as esculturas, e também pelas construções que sobreviveram, sendo que muitos edifícios, os quais provavelmente desapareceram, devem ser semelhantes aos de suas descrições. Nesta perspectiva, muitos artistas do século XVII e XVIII dedicaram seu trabalho a pintar ruínas, como Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) e Gian Paolo Pannini (1691-1765), que moravam em Roma, cidade com muitas ruínas. As peregrinações dos artistas por Roma e pela Itália no século XVI deram origem às vedute que, no século XVIII, encontram seu apogeu em

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Veneza e Roma. A obra de Piranesi situa-se na redescoberta da Antiguidade com as escavações em Herculano (1719) e Pompeia (1748). O interesse pela arqueologia permeia toda sua produção e revela a relação entre a natureza e a arquitetura como um organismo vivo, pois retratou algo que está sujeito ao ciclo de mudança, de vida e morte, característica da condição humana. Esse período foi marcado pelas viagens do Grand Tour, em que artistas, historiadores e arqueólogos viajavam para encontrar antigas ruínas. Reportamo-nos a um novo tipo de viajante que surge no século XVIII em conexão com as transformações econômicas e culturais na Europa do Iluminismo e da Revolução Industrial. Trata-se, aqui, não do viajante de expedições de guerras e conquistas, ou do missionário ou peregrino, tampouco do estudioso ou cientista natural, ou do diplomata em missão oficial, mas sim, do grand tourist, conforme era chamado o viajante amante da cultura dos antigos e de seus monumentos, com um gosto exacerbado por ruínas que beirava a obsessão e uma inclinação inusitada para contemplar paisagens com seu olhar armado no enquadramento de amplas vistas panorâmicas, compostas segundo um idioma permeado por valores estéticos sublimes. Um viajante dispondo acima de tudo de recursos e tempo nas primeiras viagens registradas pela historiografia da prática social de viajar por puro prazer e amor à cultura. Goethe foi um poeta que também estava interessado pelas descobertas arqueológicas na região da Itália. Em Italian Journey, ele realiza um relatório baseado em diários e cartas sobre suas viagens à Itália entre 1786 e 1788. Quando percorria as ruínas italianas, percebia que caminhava sob um passado clássico que ainda permanecia vivo, assim que conhecera o monte Vesúvio e as áreas arqueológicas, como a cidade de Pompeia. Ao chegar à cidade de Roma, após uma breve passagem por Florença, conheceu artistas alemães do período neoclássico como Johann Heinrich Wilhelm Tischbein e Angélica Kauffman. Tornou-se amigo de Tischbein, sendo que ambos viajaram juntos até Nápoles, onde o artista realizou esboços de Goethe para depois compor o retrato do poeta sobre as ruínas. Logo depois, a amizade entre os dois tornou-se incompatível, e eles se separaram em suas viagens. Tischbein não apresenta Goethe (Figura 2) como um artista ou escritor, com papéis ou canetas, com o intuito de não definir o poeta, mas apresentá-lo como um cidadão do mundo. Goethe apresenta uma visão cosmopolita do cidadão e viajante humanista da modernidade. Na imagem surge a profundidade do espaço com uma paisagem topográfica que identifica as ruínas e os fragmentos, como os aquedutos que aparecem, compondo os diferentes estilos arquitetônicos de um período romano antigo. Assim, a pintura consiste na esperança e reconstrução humana desse olhar iluminado que repousa sobre os escombros das antigas civilizações.

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Figura 2 - Johann Heinrich Wilhelm Tischbein. Goethe in the Roman Campagna, 1787. Óleo sobre tela, 164 x 206 cm. Museu Städel, Frankf-urt, Alemanha. Disponível em: www.staedelmuseum.de/en/collection/goethe-roman-campagna-1787. Acesso em: 22 jan. 2015.

Por todos esses aspectos, constata-se que a produção estética do urban exploration também revela um encanto pelas ruínas, como foi visto pelo Grand Tour, assim, este artigo aproxima a beleza vista pelo encanto do abandono através do surrealismo proposto por Breton, que surge como um encanto terreno, transitório, que está no abandono, nas coisas pequenas, imperceptíveis, uma beleza que existe entre o sonho, a imaginação e a vida terrena. Breton, em Nadja, apresenta como impulso: “A beleza, nem dinâmica nem estática. O coração humano, belo como um sismógrafo. Reino do silêncio...” (BRETON, 2012, p. 146). O conceito de beleza para o surrealismo se define por um encanto que vem do inconsciente, transitório, efêmero, fruto da histeria e da loucura, do maravilhoso, contrário à ideia de beleza racional, do sublime e do eterno. Breton conclui o romance dizendo que: “A beleza será CONVULSIVA, ou não será” (Idem, ibidem). Para Karl Heinz Bohrer, no artigo O ético no estético, “essa definição leva a noção de beleza de seu peculiar estatismo para um dinâmica absoluta. Ela é um evento que, como observa Breton, deixa atrás de si não só a ideia clássica de beleza, mas também a romântica” (BOHRER, 2001, p. 19). No Manifesto Surrealista publicado em 1924, Breton diz que “o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo” (BRETON, 1985, p. 45). Para ele, o maravilhoso não depende do valor estético ou moral. Sua proposta revolucionária aparece novamente no Manifesto, quando afirma que o “ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral” (BRETON, 1985, 58). O maravilhoso é considerado como uma espécie de choque, uma sensação convulsiva de admiração, uma perturbação dos sentidos, e essa sensação vertiginosa torna-se a qualidade da arte.

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Para Hal Foster, em Compulsive Beauty, o maravilhoso pode ser entendido como o fenômeno que Freud denominou de “estranho”. No livro, o autor realiza uma desconstrução do surrealismo, pois, se para Breton o surrealismo era um símbolo de amor e revolução, Foster analisará o movimento sob uma perspectiva mais obscura, de uma arte direcionada à compulsão, ao mistério e à morte. Primeiramente, ele analisa o movimento surrealista através da aproximação com a psicanálise freudiana. Depois, redefine as categorias do surrealismo, maravilhoso, beleza convulsiva e a possibilidade objetiva a partir da concepção de estranho em termos freudianos. E assim, discorre sobre duas perspectivas de abordar o maravilhoso como beleza convulsiva: primeiro, o maravilhoso como beleza convulsiva será visto como um estranhamento entre estado animado e inanimado; em seguida, o maravilhoso como acaso objetivo manifestado no encontro inesperado e o objeto encontrado que será revelado como uma lembrança misteriosa de compulsão à repetição. Ambos os termos, beleza convulsiva e o acaso objetivo, implicam choque, o que sugere que o maravilhoso também envolve a experiência traumática, que pode até ser uma tentativa de trabalhar através da experiência “histérica”. Desta forma, também o maravilhoso pode ser entendido em termos de repetição que rege o estranho e a pulsão de morte (FOSTER, 1993, p. 21, tradução nossa).

A morte e o maravilhamento sob a perspectiva de um princípio estético convulsivo são categorias que se aproximam, nesse contexto de abandono, do urban exploration. O Manifesto Surrealista de Breton mostra a “ruína romântica” e o “manequim moderno” como exemplos do maravilhoso. Andre Govia, por sua vez, apresenta diversas fotografias em que retrata o manequim com a ruína, como podemos observar na Figura 3. O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo. [...] Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu que tenho do gosto a ideia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro ir mais longe que os outros (BRETON, 1985, p. 47)

Figura 3 – Andre Govia. The humans are watching. 2013. Disponível em: www.fluidr.com/photos/andregovia. Aceso em: 10 abr. 2015.

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Foster analisa o manequim sobre o processo de mercantilização, que representa a fetichização da mercadoria. O surrealismo apresenta objetos estranhos e deslocados de sua função original para causar uma perturbação estética, como um modo de representar a repressão histórica; o reprimido se repete e perturba as normas individuais e da sociedade. A intenção do surrealismo é redirecionar o retorno do reprimido para fins críticos. Foster analisa o maravilhoso como uma espécie de choque da experiência surrealista, enquanto que o retorno ao reprimido surge como uma crítica ao desenvolvimento do processo capitalista e tecnológico, que obscurece o desejo e o trauma. Cada um combina ou funde dois termos opostos: na ruína, o natural e o histórico, e no manequim, o humano e o não-humano. Na ruína, o progresso cultural é capturado pela entropia natural, e no manequim, a figura humana é entregue à mercadoria que for. De fato, o manequim é a própria imagem da reificação capitalista. Em suma, em ambas as imagens, o animado se confunde com o inanimado, uma confusão que é estranha, justamente, porque evoca o conservadorismo das unidades, a imanência da morte em vida (FOSTER, 1993, p. 21, tradução nossa). iii

Para Foster, a dimensão social da beleza compulsiva indica como crítica o exemplo das bonecas de Hans Bellmer (Figura 4) que, além do sadismo, apresentam conexões entre a violência presente no fascismo com a estética surrealista, que retoma o reprimido como objeto crítico. A beleza convulsiva analisada pela psicanálise está vinculada à violência, ao erotismo e à morte. A partir dessas considerações, o maravilhoso e a morte se aproximam desse princípio estético convulsivo. A meu ver, as fotografias do urban explorer Andre Govia podem ser refletidas sobre o estranhamento estético causado pelas bonecas de Hans Bellmer.

Figura 4 – Hans Bellmer. Foto. Plate from La Poupée. 1936. Impressão em gelatina de prata. Artists Rights Society (ARS), New York /ADAGP, Paris. 2014. Disponível em: www.moma.org/collection/artist.php?artist_id=452. Acesso em: 10 jun. 2015.

A beleza convulsiva contra a ideia de belo da concepção antropomórfica clássica ganha força com o período entre as guerras mundiais, quando o corpo humano aparece dilacerado, 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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fazendo com que a beleza convulsiva dessas obras transgrida a noção clássica do belo. A noção de beleza proposta pelo surrealismo de Breton se inspira na obra de Lautréamont. Eliane Robert Moraes, no préfacio de Nadja, diz que Breton transforma a herança de Lautréamont, isto é, as criaturas fantásticas dos Cantos de Maldoror, os seres assombrosos e todo cenário repulsivo em trajetos que procuram ver o maravilhoso pelas ruas parisienses. A frase de Lautréamont, “Belo como... o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação” (LAUTRÉAMONT apud MORAES, 2002, p. 40) reverberou pelo movimento surrealista. Essa experiência poética permitiu aos jovens surrealistas, após os quatros anos de destruição da Primeira Guerra Mundial, experimentar novas formas da experiência poética. Segundo Eliane Moraes, Desde Lautréamont, as ilusões da realidade vinham sendo colocadas em xeque. A estranha associação entre uma máquina de costura e um guarda-chuva, que parece ter sido capturada nas páginas publicitárias de algum jornal, indicava uma atitude igualmente determinada em duvidar dos significados usuais desses objetos, inscrevendo-os numa nova cadeia de metamorfoses (MORAES, 2002, p. 46).

Eliane Moraes, em O Corpo Impossível, discorre a partir do modernismo francês de Lautréamont, do surrealismo e do pensamento de Georges Bataille, sobre a produção estética a respeito do corpo dilacerado que transgrediu o antropomorfismo clássico. No entanto, esta pesquisa pretende compreender a beleza convulsiva de Breton através do estranhamento e da pulsão de morte, em vez de caminhar pelos estudos do erotismo freudiano no surrealismo, ou no pensamento de Bataille. O objetivo consiste em analisar o que é perturbador como belo, para tentar compreender o encanto que existe nas fotografias de lugares abandonados. Marcel Duchamp, com seus ready-mades, causou estranhamento quando deslocou os objetos de seus lugares convencionais. Segundo Eliane Moraes, “a máxima de Breton traduzia o sentimento estético de todo um grupo de escritores e artistas que, ao dar as costas às exigências da identidade, se entregava com paixão ao projeto de duvidar das formas e de deslocar continuamente os sistemas de referências” (2012, p. 15). Assim, o maravilhoso deve ser pensado como algo inexplicável, que não pode ser racionalizado. O exemplo de maravilhoso em Breton pode ser compreendido com a noção de beleza convulsiva em Amor Louco: “A beleza convulsiva terá de ser erótico-velada, explodente-fixa, mágicocircunstancial, ou não será beleza” (BRETON, 1971, p. 25). Breton anuncia o belo com o maravilhoso no Manifesto Surrealista através da relação com o estranho, em Nadja conclui a obra, comparando a beleza com o estado convulsivo, que se estende em Amor Louco, como uma definição de beleza convulsiva que indica pontos enigmáticos. Tomemos como exemplo a expressão “erótico-velada” mencionada por Breton

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ao se referir ao mimetismo natural das fotografias de Blossfeldt, nas quais a forma das flores tornam-se semelhantes à arquitetura. As fotografias de Brassaï também são mencionadas como exemplo de formas involuntárias, de objetos do cotidiano transformados, inconscientemente, em formas estranhas. Foster explica que Breton também se refere a dois exemplos para ilustrar a categoria “explodente-fixa”, em que a imobilidade dessa categoria sugere uma pulsão de morte. Breton usa o exemplo de um trem abandonado em uma floresta (Figura 5), a ambiguidade da beleza convulsiva mostra a máquina imóvel, diante da velocidade da máquina e da ideia de progresso, a natureza cresce por cima dela: “Natureza aqui é vital ainda que inerte: ela cresce, mas só sob o disfarce da morte, para devorar o progresso do trem, ou o progresso que uma vez simbolizou” (FOSTER, 1993, p. 25, tradução nossa)iv.

Figura 5 – Foto. Locomotiva abandonada publicada em Minotaure, 1937. Reprodução do livro Compulsive Beauty de Hal Foster.

A segunda imagem da categoria “explodente-fixa” é ilustrada por uma fotografia de Man Ray publicada no jornal Minotauro n°5. Mostra a imagem de uma dançarina de tango que simboliza a compulsão e o assombro, fazendo com que o movimento dos gestos e das feições mostre o aspecto compulsivo, erótico e destruidor. Por último, a terceira categoria, a beleza convulsiva “mágico-circunstancial” apresenta-se como uma repetição não só do trauma sugerido nas fotografias surrealistas, entre o estado inanimado e animado, mas sobre o trauma de si mesmo, pessoal. A beleza convulsiva aproxima-se dos efeitos de trauma e repetição relacionados ao processo fotográfico sobre o inanimado e o animado nas fotografias surrealistas. O princípio estético da beleza convulsiva abordado permite aproximar o maravilhamento e a morte como categorias situadas no abandono. O encanto e a sensação perturbadora causada

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pela imagem dos lugares em abandono são compreendidos por esse princípio estético. Assim como os surrealistas deslocam a função original dos objetos cotidianos transformando-os em objetos perturbadores, as fotografias do urban exploration deslocam o conceito de uma beleza centrada sobre a ideia romântica e racionalista para um conceito de estética convulsivo. O encanto do abandono favorece o crescimento das exposições fotográficas sobre o urban exploration e o aumento da propagação de imagens interessadas nas ruínas desperta a curiosidade de indivíduos em se arriscar nessas expedições para encontrar lugares perdidos, que resistem ao tempo, encobertos por uma pulsão de morte. Esse encanto pelas ruínas revela lugares que guardam memórias afetivas, individuais ou coletivas, lugares que são recipientes de memória, os quais exigem uma reflexão sobre a destruição da memória dessas construções abandonadas. i

“At Breton’s instigation, the Dadaists therefore decided to give up exhibitions and plays and arrange ‘excursions and visits’ through Paris. Invitations were sent out to meet Dada in the street. Leaflets gave the public a rendezvous for April 14 in the garden of the church of St. Julien-le-Pauvre. Other visits were planned: to the Louvre, the Buttes-Chaumont, the St. Lazare station, the Mont du Petit Cadenas and the Canal de l’Ourcq, and so on, but only the first ‘visit,’ at which Breton and Tzara spoke, actually took place” (MOTHERWELL, 1981, p. 184). ii “The writings of Walt Whitman, Charles Dickens, Baudelaire and many other artists and groups, including the Dadaists, Surrealists and Situationists, serve as inspirational figureheads contemporary notions of the practice of urban exploration, with their passion for discovering dangerous, precarious, incongruous and absurd urban spaces” (GARRETT, 2013, p.16). iii “Each combines or conflates two opposed terms: in the ruin the natural and the historical, and in the mannequim the human and the nonhuman. In the ruin cultural progress is captured by natural entropy, and in the mannequim the human figure is given over to the commodity form-indeed, the mannequim is the very image of capitalist reification. In short, in both images the animate is confused with the inanimate, a confusion that is uncanny precisely because it evokes the conservatism of the drives, the immanence of death in life” (FOSTER, 1993, p. 21). iv “Nature here is vital yet inertial: it grows but only, in the guise of death, to devour the progress of the train, or the progress that it once emblematized” (FOSTER, 1993, p. 25).

Referências: BOHRER, Karl Heinz. O ético no estético. In: ROSENFIELD, Denis (Org.). Ética e estética. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BRETON, André. Amor Louco. Trad. Luiza Neto Jorge. Lisboa: Editorial Estampa, 1971. ________. Nadja.Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2012. ___________. Manifestos do Surrealismo. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985. FOSTER, Hal. Compulsive Beauty. October Books: Massachusetts Institute of Technology, 1993. GARRETT, Bradley L. Explore everything: place-hacking the city. London: Verso, 2013. GOETHE, Johann Wolfgang von. Italian Journey. Trad. W. H. Auden e Elizabeth Mayer. London: Penguin Books, 1970. GOVIA, Andre. Abandoned Planet. Carpet Bombing Culture, 2014. MOTHERWELL, Robert. The Dada painters and poets: an anthology. 2nd ed. Boston, Mass.: G.K. Hall, 1981. MORAES, Eliane Robert. Prefácio. In: Nadja. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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__________. O Corpo Impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. NINJALICIOUS. Access all areas: a user’s guide to the art of urban exploration. Toronto: Infilpress, 2005.

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RAUL POMPÉIA: O [DES]DOBRAMENTO COMO CRÍTICO DE ARTE

Samara Muller Pelk

Resumo: A proposta dessa comunicação é abordar o desdobramento da escrita de Raul Pompéia, uma vez que a produção literária dedicada ao romance e ao poema em prosa contribui para o desenvolvimento das críticas sobre artes plásticas, tendo em vista a linguagem poética do escritor. Para tanto serão apresentados dois textos de autoria do escritor que o legitimam como crítico de arte no modelo da crítica de arte francesa do século XIX. Palavras-chave: Raul Pompéia; Crítica de arte; História da arte no Brasil Abstract: The purpose of this communication is to address the unfolding of writing Raul Pompéia, since the literary production dedicated to the novel and the prose poem contributes to the development of the criticism of art, in view of the poetic language of writer. Therefore will be submitted two of the writer authored texts that legitimize as an art critic in the model of the French art critic of the nineteenth century. Keywords: Raul Pompéia; Art Criticism; History of brazilian art

O escritor fluminense Raul Pompéia (1863-1895) mesclou durante sua vida toda a sorte das produções artísticas: escreveu pelo menos quatro livros publicados – sendo eles Uma Tragédia no Amazonas (1880), As Joias da Coroa (1882), O Ateneu (1888), e, o póstumo, Canções sem Metro (1900) –, desenhou caricaturas publicadas em jornais da época; ilustrou seu próprio livro O Ateneu e capas de livros de outras autorias; foi professor de Mitologia da Escola Nacional de Belas Artes; e, por fim, foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional. Concomitante a essas produções Raul Pompéia escrevia crônicas e críticas sobre literatura, teatro e artes plásticas para jornais dos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, entre as décadas de 1880 e 1890. A reunião dessas tarefas contribuiu para dedicar suas letras às críticas de artes plásticas, observando tanto a fatura quanto a comunicação de sentimentos nas obras de arte. Na historiografia literária brasileira, considerando geralmente apenas o livro O Ateneu (1888), Raul Pompéia aparece como um escritor de variadas vertentes estilísticas, não existindo um consenso entre os literatos em qual delas encaixá-lo. Segundo Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira (2015), não seria possível defini-lo como restritamente

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realista, pois “[...] já houve quem o dissesse impressionista, afetado pela plasticidade nervosa de alguns retratos e ambientações, por outras razões se poderiam nele ver traços expressionistas, como o gosto do mórbido e do grotesco com que deforma sem piedade o mundo do adolescente” (Bosi, 2015, p.194). Já a proposta de Ivan Teixeira (2012) é que a escrita de Raul Pompéia seja caracterizada pelo impressionismo por sugerir efeitos de luz e cor dos ambientes a fim de criar experiências sensoriais, para ele “[...] é fundamental saber que [Pompéia] experimentou visceralmente as técnicas e os efeitos do Impressionismo, dando provas disso não só nas reiteradas descrições de O Ateneu, mas também em suas páginas teóricas [...]” (Teixeira, 2012, p.9). Para tanto ele exemplifica com um trecho do romance: Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes variadas de Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendentes do gás interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de fora. Erigia-se na escuridão da noite, como imensa muralha de coral flamante, como um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra, como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva intensa dos romances cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para uma entrevista de espectros e recordações [...] (Pompéia, 1905 apud Teixeira, 2012, p.11).

Esse aspecto na escrita de Pompéia, ou seja, a descrição a partir de sugestões se desdobra também nas críticas sobre artes plásticas. Analisemos um trecho da seguinte crítica publicada na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 09 de setembro de 1888, Exposição Weingaertner, na galeria Pacheco. Quadros de interior e de ar livre. Os interiores são de primeira ordem, salvo alguma dureza de desenho em certas figuras. Surpreende a perfeição com que o artista distribui as perspectivas de colorido e a correção linear com que dispersa o atropelo inapreciável de todos os detalhes pitorescos. Aquele espólio de artista curiosamente revolvido, violado pela indiscrição brejeira dos herdeiros alegres, é um mimo de agrupamento de pessoas e objetos. As atitudes são fáceis, acertadas e graciosas; os panos dobram-se admiravelmente; as fisionomias respiram alma, comunicando-se na atmosfera profunda sob os arcos pesados da arquitetura; a luz fulgura real em pontos perdidos, em ouros da mobília, reflexos de seda, verniz de mármores, destacando-se da tranquila obscuridade do salão adentro, no desmancho da velha biblioteca de alfarrábios, pelas antigas paredes denegridas, testemunhas consternadas do vandalismo inventariante. As telas de céu e paisagem não agradam tanto. Parece que as próprias figuras ressentem-se da deslocação do talento do artista, mais a gosto nas perspectivas limitadas. Não se destacam os planos de verdura, graduam-se pouco os tons de sombras, mesmo levando em conta a limpidez do dia italiano, de que nos mandou Henrique Bernardelli, não há muito, tão boas cópias (Pompéia, 1983, p.120-121).

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Essa crítica corresponde à primeira exposição individual de Pedro Weingärtner, realizada após mais de dez anos vivendo em países da Europa, como a Alemanha, França e Itália. Segundo Bohns, nessa exposição, no estúdio do pintor-fotógrafo Insley-Pacheco, Weingärtner apresentou cerca de dez quadros pintados minuciosamente como se fossem fotografias; entre eles, possivelmente aqueles que o artista pintou na Europai (Bohns, 2005, p. 81). Pompéia avalia, nessa crítica, o trabalho de Pedro Weingärtner (1853-1929) conferindo os erros e acertos do artista na fatura das telas, principalmente elogiando as cenas de gênero e preterindo as cenas de paisagem pintadas pelo artista. No trecho grifado, percebemos o processo de criação do escritor: ele aproveita para elaborar sensações de ambiente a partir de figuras de linguagem e, dessa forma, poetiza a tela. Observemos outra crítica de Raul Pompéia publicada no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 07 de setembro de 1891, sobre Henrique Bernardelli (1858-1936), Até no tão difícil capítulo das artes, não deixou razões de queixa a finda semana. Começou logo pela exposição de pintura de Henrique Bernardeli. Um sucesso. Uma grande tela de paisagem sobretudo, mereceu altíssimos aplausos. Uma planície verde, onde se aveludam rebentos tenros de feno e vão muito longe acabar contra uma floresta de escasso arvoredo, através do qual transparece uma claridade de crepúsculo vespertino. Alguns campônios passam. Não é um simples quadro esta pintura: é uma verdadeira escola de paisagem. O artista, com a mais nobre audácia, propõe-se aí um verdadeiro problema de habilidade de fatura e de talento, e o resolve, de modo incrível. Propõe-se nada menos que obter, com o simples, o ingrato desdobramento de um pano de campina, através da luz difusa de hora em que não há mais sol e por uma tarde úmida em que a própria luz restante do espaço fica embebida em nevoeiros pardos, todos os efeitos da profundidade, da distância, da perspectiva; propõe-se comunicar ainda à sua composição, esses escassos elementos de pitoresco toda a vida possível, toda a animação da verdade flagrante. E Henrique Bernardeli o consegue sobejamente no admirável quadro. Rápidas modulações de verde sobre a terra, matizes de imperceptível transição no colorido vegetal; a mais disso, uma estrada rasa que abraça em curva um canto da tela, estrada tão verde aliás como o campo e disfarçada em um rebrotar da relva dos caminhos mal batidos, e ainda uns paus de cerca e um distante monte de feno seco que mal se acentuam em uma tonalidade do crepúsculo sem relevo. Só com isso a paisagem anima-se, vive, palpita, realiza-se tão sedutoramente, tão interessante, tão vária, como se a povoassem mil incidentes, como se preparassem mil efeitos, com todo o sistema dos planos de bastidores, que de costume se armam. E, talvez principalmente, por efeito do contraste violento, que destaca a animação do

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campo mais próximo de uma floresta ao fundo floresta europeia, espectral, raquítica, fumacenta, cuja ramaria ao longo esbate-se, quase se difunde nas sombras do céu; o panorama foge diante do espectador, escapa-se a si mesmo, enche e aprofunda o espaço com uma impressão de ar, de verdade, de existência que perturba, despertando-nos o instinto de palpar a tela, a ver se há mesmo entre a moldura algum obstáculo de pano e tinta (Pompéia, 1982, p. 347-348).

Percebemos novamente a importância que Pompéia faz na descrição da tela e na proposição da atmosfera criada pelo artista ao escrever sobre a luz da cena, principalmente, nessa crítica elogiosa ao trabalho de Bernardelli. A construção da imagem mental serve também para o leitor que de alguma maneira não pode comparecer a exposição, contudo, a preocupação de Pompéia aqui parece muito mais se encaminhar para uma configuração poética, em que se combinam a maneira de escrever utilizando-se muito do subjetivo com a tela pintada. O trabalho do escritor não se limita em apenas descrever gratuitamente a obra de arte com a finalidade de relacionar o trabalho plástico do artista com o seu trabalho literário, posto que ele também observa a composição, a cor, a perspectiva da tela. Essa maneira que Pompéia utiliza para escrever sobre uma obra de arte está de acordo com a atividade do crítico no século XIX, em que se associava a pensamentos pouco ortodoxos, ou seja, “[...] as referências que tradicionalmente haviam servido para interpretar e avaliar a produção artística – a universalidade das categorias estéticas, as regras, a hierarquia dos gêneros, a finalidade da arte – entram em crise no início do século XIX”ii (VALVERDE, 2003, p.106). Interessava, portanto, para o crítico francês do século XIX um julgamento mais flexível e que servisse de mediação entre público (esse sendo espectador, leitor, fruidor e comprador) e obra de arte. A partir dessa flexibilidade o crítico poderia ajustar do seu modo a crítica, como é o caso do poeta Charles Baudelaire (1821-1867) que considerava a questão da imaginação como o aspecto que permeia o conteúdo da obra de arte e o espectador. Para o poeta francês a arte seria capaz de sugerir sentimentos e devaneios, em razão disso, a crítica ser pessoal do ponto de vista do escritor e ao mesmo tempo suscitar novas abordagens no leitor. O desenvolvimento verbal das sensações de luz, cor, atmosfera, som e movimento a fim de apresentar uma obra de arte se evidencia na escrita de Raul Pompéia tendo em vista a sua produção poética. O escritor por mais de 12 anos escreveu e reescreveu poemas em prosa, editados e publicados em 1900 sob o título Canções sem Metro, sendo filiada a vertente simbolista. Contudo, Regina Lucia Araújo defende que essa publicação se identifica como um gênero híbrido, pelas preocupações formais e pela subjetividade dos textos (Araújo, 2006).

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Para Gilberto Araújo a escrita do poema em prosa é favorável para os princípios de Pompéia, para ele, O poema em prosa constitui, desse modo, o suporte expressivo que mais eficazmente supre os anseios pompeianos de autenticidade e de libertação. A brevidade característica do gênero, levando o escritor a exprimir o máximo no mínimo, privilegia o ritmo e a analogia como recursos menos precários de perseguir tudo aquilo que parece escapar à linguagem. O inconcluso do fragmento assume potencial iluminador (Araújo, 2013, p.25).

Conforme Anna Maria Guasch, uma das ações da crítica é a de avaliar a obra de arte, para ela esse processo “[...] dificilmente pode separar-se da experiência individual ou da experiência do gosto, um gosto que é subjetivo e depende de cada indivíduo, mas que por sua vez é histórico e social na medida em que este indivíduo pertence a um espaço e a um tempo determinado, [...]” (Guasch, 2003, p.230). Na crítica escrita em circunstância da exposição de Henrique Bernardelli, particularmente sobre um quadro de paisagem, Pompéia, assim como em outras situações, atesta para a sua experiência individual – percebido na construção elogiosa do texto – e o contexto artístico do momento – a partir de 1882, com a chegada do artista alemão Georg Grimm (1846-1887) no Brasil, a pintura de paisagem se consagra como um gênero autônomo concebendo a chamada escola de paisagem nacional, conhecida como Grupo Grimm. Esse aspecto de subjetividade na escrita de Raul Pompéia se configura na crítica impressionista, em que a sensibilidade e o temperamento do crítico são uma necessidade para escrever. Segundo os dois principais críticos impressionistas, Jules Lemaître (1853-1914) e Anatole France (1844-1924), o indivíduo sendo mutável (no sentido de variados estados emocionais) a crítica também deveria ser concebida a partir de uma impressão instantânea, conforme aquilo que o espectador-crítico sentiu com a obra de arte (Wellek, 1967). É interessante perceber que a linguagem poética do escritor se desdobra em variados gêneros literários, como na poesia, na crítica e no romance. E essa nova afirmação para a figura de Raul Pompéia – como crítico de arte – contribui para a história da arte, também se atrelando a interdisciplinaridade entre os domínios da literatura e das artes visuais, como mais um julgamento para as produções artísticas do século XIX no Brasil. É observado, portanto, a atividade de crítico de arte e a contemporaneidade de Pompéia que se afirma não somente pela sua investida na defesa da pintura de paisagem nacional, como também no conjunto de ideias que a crítica de arte do século XIX propôs. Imagens:

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WEINGÄRTNER, Pedro (1853-1929) Paisagem, 1900 Óleo sobre tela, 51 x 101 cm. Pinacoteca do Estado de São Paulo, SP/Brasil

WEINGÄRTNER, Pedro (1853-1929) Chegou Tarde, 1900. Óleo sobre tela, 74,5 x 100 cm. Museu Nacional de Belas Artes, RJ/Brasil

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BERNARDELLI, Henrique (1857-1936) .Vista de Roma, 1884. Óleo sobre tela, 74,5 x 100 cm . Museu Nacional de Belas Artes, RJ/Brasil

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BERNARDELLI, Henrique (1857-1936) Paisagem de Ouro Preto, s/d. Óleo sobre tela, 31,7 x 15 cm. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand , SP/Brasil

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De maneira que Raul Pompéia não dá o título das obras que menciona, escolhi algumas obras que se aproximam com a data e gênero referidos na crítica tanto para Pedro Weingärtner quanto para Henrique Bernardelli.. ii Todos os trechos citados retirados do livro La crítica de arte: história, teoria y práxis, de Anna Maria Guasch, tiveram tradução livre pela autoria do artigo.

Referências: ARAÚJO, Gilberto. Introdução. In: POMPÉIA, Raul. Canções sem metro (org. Gilberto Araújo). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. ARAÚJO, Regina Lúcia de. Raul Pompéia: jornalismo e prosa poética. 2006. 216f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. BOHNS, Neiva Maria Fonseca. Continente Improvável: Artes Visuais no Rio Grande do Sul do final do século a meados do século XX. 2005. 383f. Tese (Doutorado em Artes Visuais) –Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Ed.: 50. São Paulo: Cultrix, 2015. GUASCH, Anna Maria. Las estratégias de la crítica de arte. ._ In.: GUASCH, Anna Maria (org). La crítica de arte: história, teoria y práxis. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2003. POMPÉIA, Raul. (org. Afrânio Coutinho). Crônicas 2. Obras vol. VII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. POMPÉIA, Raul. (org. Afrânio Coutinho). Crônicas 4. Obras vol. IX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. TEIXEIRA, Ivan. Raul Pompeia: Cadeira 33, patrono. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2012. VALVERDE, Isabel. La crítica de arte em el siglo XIX: prácticas, funciones, discursos._ In.: GUASCH, Anna Maria (org). La crítica de arte: história, teoria y práxis. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2003. WELLEK, René. História da Crítica Moderna: 1750-1950. São Paulo: Herder (Ed. USP), 1967. REFERÊNCIA DAS IMAGENS: Pedro Weingärtner (1853-1929), Paisagem, 1900, Óleo sobre tela, 51 x 101 cm Fonte:<<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3a/Pedro_Weing%C3%A4rtner__Paisagem,_1900.jpg>> Último acesso em agosto de 2016. Pedro Weingärtner (1853-1929), Chegou Tarde, 1900, Óleo sobre tela, 74,5 x 100 cm Fonte: <<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/62/Chegou_tarde-weing-MNBA.jpg>> acesso em agosto de 2016.

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Henrique Bernardelli (1857-1936), Vista de Roma, 1884, Óleo sobre tela, 74,5 x 100 cm Fonte:<<http://www.dezenovevinte.net/artistas/biografia_hbernardelli_arquivos/hb_vista.jpg>> Último acesso em agosto de 2016. Henrique Bernardelli (1857-1936), Paisagem de Ouro Preto, s/d, Óleo sobre tela, 31,7 x 15 cm Fonte:<<http://masp.art.br/masp2010/upload_pic/original/0290%20P%202008%20Masp_0800.jpg>> acesso em agosto de 2016.

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MARIA MARTINS: (DES)FIGURAÇÕES DA FORMA Tais Canfild da Silva

Resumo: O presente artigo trata da escultora brasileira Maria Martins, que desenvolveu sua carreira com participação no movimento de vanguarda surrealista, e das transformações que o trabalho da artista experimentou a partir do ano de 1943. Essas mudanças acarretaram numa gradual deformação da forma nas suas esculturas, que, mesmo se mantendo figurativas, alteraram-se de forma mais subjetiva na representação da figura humana. Palavras-chave: Maria Martins, escultura, desfiguração, metamorfose, surrealismo. Abstract: The present article addresses brazilian sculptor Maria Martins, who developed her career with participation in the surrealist avant-garde, and the transformations that the work of the artist experienced since 1943. These changes resulted in a progressive deformation of the form in her sculptures, that even though kept being figurative, changed in a subjective way in the representation of the human figure. Keywords: Maria Martins, sculpture, disfigurement, metamorphosis, surrealism.

Escultora, pintora, pianista, escritora e designer de joias, Maria Martins (Campanha, MG, 1894 – Rio de Janeiro, RJ, 1973) foi uma artista de carreira bastante distinta, destacando-se de forma mais proeminente no exterior do que em seu país de origem a partir de sua transferência para Paris em 1924. Ao se mudar para a França e posteriormente para outros países com o marido Carlos Martins1, Maria teve contato direto com artistas e intelectuais de ponta das vanguardas europeias e rapidamente se associou ao grupo de surrealistas a convite de André Breton (1896-1966), que rasgou elogios para a artista após ver suas obras em uma exposição que ela dividiu com Piet Mondrian (18721944). O convívio com o grupo surrealista permitiu que ela tivesse contato direto com as ideias e as teorias propostas por eles, que influenciaram diretamente sua produção artística e permitem à crítica considerá-la surrealista. Neste artigo, serão tratados mais especificamente os trabalhos em escultura produzidos pela artista após a exposição de

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O divórcio não era permitido por lei no Brasil naquele período, então ela se casou com o embaixador Carlos Martins na França no ano de 1926. O casamento com o embaixador não impediu que a artista tivesse um romance com Mondrian e também com Marcel Duchamp (1887-1968), de quem muito se aproximou.

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1943, período que foi decisivo para a transformação da forma e da figuração no trabalho da artista. Maria: New Sculptures foi inaugurada em 22 de março de 1943 na Galeria Valentine, em Nova York, sendo esta sua terceira exposição individual. A mostra foi, sem dúvidas, um ponto fulcral na carreira da escultora, marcando um momento de mudanças decisivas em seu trabalho. Na exposição foram apresentadas esculturas que representavam oito personagens do folclore brasileiro – Amazônia, Cobra Grande, Boiuna, Iara, Iemanjá, Aiucá, Iaci e Boto. Foi a partir desse momento que a representação, principalmente da figura humana, tomou outros rumos no trabalho de Martins. Essas alterações também coincidem no emprego definitivo do bronze como seu principal material de trabalho – ela utilizou inicialmente materiais menos nobres, como madeira e cerâmica, começando a trabalhar com bronze apenas em 1941, quando iniciou suas aulas com Jacques Lipchitz (1891-1973) nos Estados Unidos. A técnica mais utilizada pela artista passa a ser a moldagem em cera perdida pela maleabilidade que possibilitava, pois permitia que apenas uma cópia de cada peça fosse executada. Sobre a série Amazônia, esculturas apresentadas na exposição de 1943, Verônica Stigger2 comenta que “a figura humana começa a se integrar cada vez mais com a natureza, confundindo-se com esta, e em última instância, metamorfoseando-se a ela” (Stigger, 2013, p. 23). É possível perceber, portanto, que a série de esculturas dá passos em direção a uma moldagem mais arrojada, ainda que utilize uma estrutura convencional, e mesmo com o emaranhado de formas que lembram folhas e galhos, a escultura ainda é majoritariamente simétrica e as representações figurativas ainda são bastante reconhecíveis (Mesquita, 2013). A partir de 1943 as esculturas da artista passam a ter volumes com feições menos identificáveis nas representações figurativas, com uma deformação de membros e rostos desfigurados, que se misturam cada vez mais a outros elementos representados – as obras sofreram, assim, uma metamorfose. É importante destacar que a figuração continuou constante na obra da artista, mas o que mudou foi a maneira como ela era representada – antes mais simétrica e reconhecível, passou por transformações que a alteraram para algo que tendia, por vezes, ao abstrato. Talvez as obras que melhor evidenciem essas mudanças morfológicas sejam Glébe-Ailes de 1944 e N’oublies pas que je viens des tropiques de 1945: 2

Curadora da exposição retrospectiva do trabalho de Maria Martins intitulada Metamorfoses, realizada no MAM (Museu de Arte Modederna) de São Paulo no ano de 2013.

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Figura 1: Maria Martins, Glébe-Ailes, 1944. Bronze, 117 x 119 x 41 cm. Coleção Roberto Marinho. Foto: Catálogo Metamorfoses

Figura 2: Maria Martins, N’oublies pas que je viens des tropiques, 1945. Bronze, 93 x 122 x 66 cm. Coleção Hecilda e Sergio Fadel. Foto: Catálogo Metamorfoses

A mesma figura feminina de seios proeminentes foi representada nas duas esculturas, realizadas entre o espaço de um ano. Enquanto Glébe-Ailes possui um corpo vagamente

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antropomórfico, N’oublies pas que je viens des tropiques tem uma forma mais selvagem e uma figuração pouco reconhecível. Para Stagger, “a ideia era mostrar como a desfiguração do humano, nesta obra, é sempre já o início da figuração de outra forma, que se aproxima ora do vegetal, ora do animal” (Stigger, 2013, p. 64). As duas estruturas superiores de Glébe-Ailes, que parecem remeter a asas, continuam a existir na escultura do ano seguinte, porém com formas inextricáveis e que lembram folhas ou galhos de um a floresta – é notável que a associação da figuração com a natureza aparece de forma constante no trabalho de Martins. Outra diferença marcante entre as duas obras são as cabeças, pois a escultura que anteriormente possuía feições de rosto na peça de 1944 é praticamente irreconhecível na obra posterior, que possui um formato alongado na parte superior do que seria a cabeça e que não é possível de ser identificada. Além disso, ambas as esculturas lembram esfinges, dada a sua estranha anatomia. As formas são selvagens, repletas de sensualidade, o tratamento da superfície é tátil e chama à sensação. Em ambas as esculturas, uma presença então reprimida pelos contornos convencionais decide se manifestar. É como se uma interioridade despertasse. Só que ela desperta de maneiras diferentes em cada trabalho. Na peça de 1944, é como se uma gárgula saísse da vagina da escultura. Uma cabeça e duas asas brotam do interior de uma forma até então contornada e roubam seu desenho, passam a compartilhar sua forma, tornam-se siamesas de sua forma. Esse corpo parasitário quer usar o corpo da mulher, o conflito se instaura, o volume se contorce, a pele se estria, mas nada se rompe. Essa é a natureza da escultura, esse volume metamórfico, deformado, mas indissoluto (Mesquita, 2013, p. 61-62).

Mesmo com a utilização da técnica de cera perdida, que tornava cada obra um único exemplar, a artista parecia ter uma tendência à seriação. Em Impossible, três esculturas de diferentes materiais e com pequenas modificações foram realizadas ao longo de uma década (entre 1940 e 1950). Todas elas apresentam a mesma constituição de dois corpos, um feminino e o outro masculino, emaranhados por estruturas que substituem as cabeças. A figura masculina possui uma forma que lembra uma água-viva, quase uma Medusa, enquanto a feminina lembra uma planta carnívora – aqui a desfiguração da forma se faz mais uma vez presente. Nessas esculturas o impossível parece ser justamente o desejo de aproximação entre os dois amantes, que nunca se concretiza devido às suas formas tão diferentes, que não se encaixam. A bestialidade e o lado mais selvagem são características dessas obras, com formas pantanosas e que exalam mistério, estranhamento e até mesmo certa angústia. É o hibridismo que impera, pois ao passo que reconhecemos formas humanas nos dois corpos, as duas cabeças são irreconhecíveis, desfiguradas.

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Figura 3: Maria Martins, Impossible, déc. 1940. Bronze, 178,6 x 167,5 x 90 cm. Coleção Banco Itaú. Foto: Catálogo Metamorfoses.

Em O Canto da Noite as formas são arredondadas e a representação do canto fica evidente nos emaranhados que parecem representar a música. Da base dessa escultura se projetam dois aspectos alongados, que fazem alusão a membros de um corpo com mãos de aparência pontiaguda que são finalizadas em garras afiadas. A base da escultura lembra vagamente o formato dos seios femininos, mas essa obra de caráter abstrato e subjetivo nos permite fazer apenas suposições. Como afirma Tiago Mesquita, “as figuras de Maria Martins parecem não estar a perder a forma, mas a mudar de forma. Por isso, parece-me mais rico pensar a forma de Maria Martins em termos de suas deformações” (Mesquita, 2013, p. 62). A deformação é, nas obras de Martins, a maneira encontrada pela artista de representar formas do inconsciente e dos sonhos, que são por natureza abstratas, como sentimentos de desejo e até mesmo o ato de emitir sons através da voz. O título da obra é inspirado pelos cantos de Zaratustra do filósofo Friedrich Nietzsche, considerado pela artista o seu mais belo poema. Nietzsche utiliza o canto para falar do desejo em seus poemas, estratégia que certamente foi reproduzida no trabalho de Martins – o desejo é representado em O Canto da Noite em suas formas curvas e sensuais, que reluzem com o polimento do bronze (Stigger, 2013).

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Figura 4: Maria Martins, O canto da Noite, 1968. Bronze polido, 165 x 200 x 108 cm. Coleção Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Foto: Catálogo Metamorfoses.

É interessante notar de que maneira Maria Martins representou a temática da mitologia greco-romana, tão explorada nas mais variadas obras realizadas por célebres artistas na História da Arte. Embora figurativa, a produção da artista se desenvolveu a partir de uma metamorfose das formas e volumes. Na escultura Prometheus II de 1948, Martins realiza uma obra de caráter onírico, em que a figura humana se dilui em meio à representação de uma floresta, culminando nas mãos agigantadas da figura principal, remetendo ao fogo roubado por Prometeu no mito – a artista representa um corpo humano desfigurado, de formas alongadas e de elasticidade, um confronto contínuo entre forma e tensão. A águia, animal que está presente no mito greco-romano, parece estar mesclada às formas vegetais próximas à base da escultura. Ao representar a temática da mitologia clássica de uma maneira muito poética, singular e autoral, a artista não trata apenas da dimensão anedótica dos mitos, mas também busca a sua forma mais intrínseca e expressa na essência para suas interpretações. Em Prometheus II, ela mescla a forma humana com aspectos que remetem à natureza, integrando e diluindo a figura de Prometeu entre galhos e formas vegetais, inclusive ao deformar as mãos da figura representada, que se confundem com os galhos em um jogo de metamorfose.

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Figura 5: Prometheus II, 1948. Bronze, 104,5 x 57,3 x 94 cm. Coleção Geneviève e Jean Boghici. Foto: Catálogo Metamorfoses.

Ao residir boa parte de sua vida no exterior, a artista teve também possibilidade de contato e aproximação com o Oriente, interesse que culminou na produção escrita de dois livros de memórias sobre a China e a Índia. Maria Martins também se destacou como fomentadora do meio cultural brasileiro, principalmente após seu retorno ao Brasil nos anos 1950, participando ativamente da criação da Bienal de São Paulo e também do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A vida pessoal e a trajetória internacional da artista influenciaram, indubitavelmente, sua produção artística e literária. A questão da forma e do material no trabalho de Maria Martins foram motivos de depreciação, principalmente pelo crítico Clement Greenberg (1909-1994), que era admirador da arte expressionista abstrata e menosprezada qualquer forma de figuração. Greenberg escreveu sobre o trabalho da artista, considerando seu desenho simétrico e suas relações formais muito previsíveis, chegando a deferir o termo “barroco” para o trabalho de Martins. A artista também sofreu duras críticas quando voltou para o Brasil no início dos anos 1950, principalmente daqueles que apoiavam o movimento concreto, que ganhava força no país. Mario Pedrosa (1900-1981), outro critico de viés formalista, critica a artista ao afirmar que sua obra é

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carregada de “excesso de personalidade”, além de considerar suas esculturas de uma assimetria formal. As críticas levaram Maria Martins a direcionar seu trabalho para a literatura e a artista foi gradualmente deixando de produzir esculturas para se dedicar à escrita. Acreditase que esse esses fatores contribuíram para o “apagamento” da importância e relevância que Martins teve para a história da arte brasileira, tendo-se em vista a escassez de produção crítica sobre seu trabalho e sendo constatado que boa parte da produção escrita sobre ela é centralizada em sua biografia e sua vida pessoal, devido às polêmicas de seu romance com Marcel Dumchap. É notório que exista uma carência quanto ao estudo mais aprofundado de seu legado artístico e, sendo assim, justifica-se a escolha desta comunicação em tratar principalmente da obra da artista e de suas temáticas sem colocar sua biografia em posição de destaque – é indiscutível, no entanto, que a vida pessoal e principalmente a carreira realizada no exterior transformaram sua obra, principalmente pela ligação que ela teve com a vanguarda interacional do surrealismo. Diversos artistas brasileiros flertaram com as ideias e questões trazidas pelo movimento surrealista, mas Martins foi, talvez, a única deste grupo a incorporar de forma mais plena as ideias trazidas pelo surrealismo em suas obras, pelo contato direto que teve com o movimento e pelo grau de aprofundamento que teve com as proposições dessa vanguarda. As características tão caras ao surrealismo podem ser encontradas ao longo da produção da artista, que incorporou os elementos do onírico e do inconsciente aos temas que retratou em suas pinturas e esculturas. A obra de Martins é singular justamente por incorporar estes elementos em suas obras para criar narrativas de temas até então não trabalhados no surrealismo da vanguarda internacional – o folclore brasileiro, por exemplo, presente na série Amazônia. Não é difícil entender por que André Breton se encantou com o trabalho da brasileira ao ver a exposição de 1943, assim como fica evidente a influência que o movimento teve no trabalho da artista, modificando-se acentuadamente a partir do ponto de contato com artistas daquele movimento. Maria Martins incorporou elementos surrealistas que possibilitaram a libertação das figuras em suas esculturas, uma libertação que por muitas vezes deforma, desfigura, transforma: Na escultura de Maria Martins, o volume torna-se uma arena para conflitos dos mais complexos, mas também represa embates mais violentos. [...] Talvez a insistência no volume tenha retardado o diálogo da artista com a produção mais recente, mas produziu monstros, monstros que se parecem conosco. Aliás, que se parecem com o Brasil. Um país profundamente violento, com conflitos esgarçados que permeiam todas as relações interpessoais. Um lugar que não nomeia os conflitos, e segue a vida como se tudo pudesse ser resolvido na união.

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Esta, no mais das vezes, produz monstros. Maria Martins nos faz ver uma unidade deformada e violenta (Mesquita, 2013, p. 63).

A carreira internacional traçada por Martins e os contatos que ela teve com os artistas do movimento surrealista se refletem, assim, de forma direta em seu trabalho, com a derradeira mudança a partir da exposição de 1943. A vivência com esses artistas possibilitou à artista uma imersão de diversas influências internacionais que foram definitivas para a incorporação dos elementos oníricos, da potencialização do selvagem nas formas orgânicas e das transfigurações de suas obras após esse período. E ela vai além, pois se diferencia dos artistas surrealistas que a inspiravam ao passo que utiliza os mitos e folclores brasileiros para incorporar estes elementos em suas esculturas, criando assim um trabalho de caráter singular e de forte impacto visual. Referências: CANADA, Manoel José. Maria Martins: Um imaginário esquecido. 2006. Dissertação de Mestrado. Universidade Estatual Paulista, São Paulo, 2006. COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. COSTA DA MATA, Larissa. As Máscaras Modernistas: Adalgisa Nery e Maria Martins na Vanguarda Brasileira. 2008. Dissertação de Mestrado no Curso de Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Florianóplis, 2008. GONÇAVES FILHO, Antonio. ‘Maria’ discute o legado da escultora Maria Martins. Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 15 e maior de 2010. Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,maria-discute-o-legado-da-escultora-mariamartins,551993> MESQUITA, Tiago. Maria Martins: Variações em Série. In: STIGGER, Veronica. Maria Martins: Metamorfoses. Catálogo da Exposição Metamorfoses. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2013. STIGGER, Veronica (org.). Maria Martins: Metamorfoses. Catálogo da Exposição Metamorfoses. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2013.

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PAISAGENS SUBMERSAS Emanuel dos Santos Monteiro Doutorando em Artes Visuais (Poéticas Visuais), PPGAV-UFRGS

Este ensaio é uma breve compilação de trabalhos que formam a série Paisagens submersas, produzidos durante o período do mestrado no PPGAV-UFRGS, e que integram a dissertação Paisagens permeáveis (2015)1. Desenvolvo trabalhos em desenho, pintura e livros de artista, explorando a partir dessas linguagens os desdobramentos do conceito de paisagem. Levanta-se uma discussão acerca do olhar sobre os espaços mais próximos (espaço da casa) que se desdobram nas distâncias do espaço exterior (quintal, natureza), considerando o aspecto material destes motivos. A relação dialética entre o próximo e o distante, presente na elaboração das imagens também se dá no jogo estabelecido entre o formato livro e a paisagem. As paisagens podem ser vistas aqui como um livro que ao abrir-se, configura-se em disposições panorâmicas. A relação entre o livro (abrir-fechar) e a paisagem, reintera a relação entre interior e exterior da casa. A imagem da matéria em estado de deterioração é uma questão que perpassa estes desenhos. A casa em ruínas é um espaço que se apresenta confuso e híbrido, pois já não pode demarcar claramente os limites entre o espaço da cultura e da natureza. A ruína reintegra a cultura à natureza. Segundo Jean Starobinski2, as ruínas - sempre ligadas ao esquecimento - seriam formas materiais que serviriam como testemunho sobrevivente de uma dada época. Testemunho que se torna mais eloquente quando anunciado nos rastros encontrados nos destroços de uma edificação, de um lugar, de uma história, de uma palavra, de um livro. O autor diz: “Sobrevivência que é esquecimento. A poética da ruína é sempre um devaneio diante da invasão do esquecimento” (1994, p. 202). www.emanuelmonteiro.com

1

Dissertação realizada no PPGAV-UFRGS, orientada pela Profa. Dra. Marilice Villeroy Corona. MONTEIRO, Emanuel dos Santos. Paisagens permeáveis. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2015. Disponível em: <www.lume.ufrgs.br/handle/10183/134920> acessado em 28 de nov. 2016. 2 STAROBINSKI, Jean. A invenção da liberdade: 1700-1789. São Paulo: Ed. Unesp, 1994. 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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Fig. 1. Emanuel Monteiro. Livro de Ancorado. Aquarela, macerado de flor de Espatódea e ponta-seca sobre livro, 26 páginas, 25 x 18 x 2 cm, 2014-2015

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fig. 2. Emanuel Monteiro. Na espera, envelhece o Sol. Carvão vegetal, flores e ramos secos, folha de ouro, resíduos de parede, macerado de flor de Espatódea e ponta-seca sobre papel, 170 x 320 cm, 2015

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fig. 3. Emanuel Monteiro. Os dias. Macerado de flor de Espatódea e ponta-seca sobre papel, 190 x 420 cm, 2015

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fig. 4. Emanuel Monteiro. Insônia. Insônia, macerado de flor de Espatódea, ponta-seca e resíduos de flores sobre papel, 77 x 143 cm, 2015. Foto: Claudia Hamerski

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fig. 4. Emanuel Monteiro. Era meu chão. Macerado de flor de Espatódea e ponta-seca sobre papel, 77 x 143 cm, 2015

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fig. 5. Emanuel Monteiro. Mirante. Aquarela, macerado de flor de Espatódea e ponta-seca sobre papel, 86,2 x 120 cm, 2014. Foto: Leli Baldissera

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fig. 6. Emanuel Monteiro. Uma sombra sem voz. Macerado de flor de Espatódea e ponta-seca sobre papel, 93,5 x 102 cm, 2014. Foto: Leli Baldissera

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fig. 7. Emanuel Monteiro. O sol ergueu-se mais. Aquarela, macerado e ponta-seca sobre papel, 78 x 84 cm, 2014. Foto: Leli Baldissera

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fig. 8. Emanuel Monteiro. O sol ainda não nascera. Aquarela, macerado e ponta-seca sobre papel, 78 x 84 cm, 2014. Foto: Leli Baldissera

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P.ER.CO. Paula Monterrey Sobral

Áudio – 7’37” Montagem sonora. Direcionamentos oferecidos por transeuntes na cidade.

O ensaio sonoro aqui apresentado faz parte de um projeto maior de uma investigação estética do caminhar em uma cidade no interior do estado de São Paulo, Pirassununga. Esse projeto, que configura uma pesquisa final da graduação do curso de Artes Visuais, se apresenta, nesse momento, como uma oportunidade de afastamento dos espaços/Cidades reconhecidas pelo discurso contemporâneo como parte de um processo criativo, explorando as potencialidades de troca na fronteira entre o tradicional e o contemporâneo ou do contemporâneo no tradicional. As relações interpessoais nos espaços públicos de cidades de médio e pequeno porte acabam sendo marcantes na rotina de seus habitantes. Ainda hoje, as calçadas representam lugar de importante convívio entre as vizinhanças, fazendo parte da arquitetura de algumas casas a construção de bancos do lado de fora dos portões das residências. A praça central também segue sendo espaço de encontro e convívio, principalmente aos Domingos; e a avenida principal é o bar a céu aberto, lugar de caminhada, relacionamento e lazer. Parte do processo dessa pesquisa do caminhar como possibilidade de imersão em um espaço contra a finalidade produtivista e ferramenta de

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descoberta despretensiosa das potencialidades estéticas presentes na cidade, passa pelo reconhecimento dos diferentes modos de estar lúdicos já existentes de forma prática na vida da cidade, que não se enquadram em uma normativa produtivista, necessariamente. Assim, provindo de uma investigação artística das relações e dinâmicas dos indivíduos que compõem essa cidade, o ensaio aqui apresentado é uma reflexão poética das pequenas errâncias cotidianas.

Pequenas Errâncias Cotidianas – P.ER.CO.

A experiência de buscar por um endereço, o passear por um bairro que nunca esteve, o se perder ao desviar de trajetos habituais ou mesmo perder sua orientação espacial seguindo indicações anteriores são experiências comuns que ocorrem cotidianamente no espaço da cidade e que ao mesmo tempo representam uma ruptura da rotina e uma abertura para novas percepções em relação ao lugar e a paisagem urbana. O título sugere a proposta de explorar o conceito da errância a partir do cotidiano. Independente da extensão territorial de uma cidade, a experiência mesmo que rápida de se perder e da necessidade de um referencial de direção existe no funcionamento comum dos espaços urbanos e é nesse momento que acontece a abordagem entre transeuntes desconhecidos para pedir informação. Apesar dos aplicativos de localização global e as novas tecnologias terem suprido parte dessas necessidades de deslocamento por áreas desconhecidas, ainda existe a abordagem pessoal para o estabelecimento de uma trajetória nos espaços quando se perde o referencial.

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Ao pedir indicação na rua estamos abertos, a partir da experiência do outro naquele lugar, para a determinação da direção para a nossa própria experiência. O código com que a direção é determinada acontece relacionando a posição atual em que ambos se encontram e os possíveis referenciais comuns. A abordagem dessa relação parte do reconhecimento de que as orientações orais dos possíveis trajetos possuem um gama de códigos próprios da vivência do lugar, buscando na descontextualização espacial dessas expressões de orientação uma carga poética.

P.ER.CO é o ensaio dessa experiência real no espaço da cidade, uma coletânea de indicações de direções e abordagens de outros transeuntes em diferentes situações no trajeto urbano.

Ainda que proveniente de uma experiência o ensaio sonoro se propõem como uma experiência em si. O desvio dos códigos de orientação de seus referenciais, de seu espaço, cria uma abertura de diálogo entre o processo criativo e as vivências individuais do público do ensaio. Uma relação interpessoal relacionada a uma localização específica é suspensa pela forma de áudio, a pessoa que indica o caminho já não possui rosto e a direção já não leva a lugar nenhum. A experiência é de desorientação. As possíveis leituras dessa experiência sonora provêm, justamente, da imaterialidade de uma situação espacial e do desconstruir esses códigos de sua função original. Uma errância das pequenas errâncias.

Para além de um registro e uma reflexão P.ER.CO é um convite aberto. O deslocamento de uma situação em diferentes contextos é capaz de gerar debate sobre uma condição comum e gerar novos diálogos.

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des_ orientar. Desorientar aqui não é entendido como ‘sem direção’. No desvio da experiência existe uma abertura para a ressignificação da orientação de uma relação com o espaço que não está presente.

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PAISAGEM SONORA II Isabelle Mesquita

Os rios que eu encontro vão seguindo comigo. Os Rios, de João Cabral de Melo Neto.

Rio Uatumã, afluente da margem esquerda no Rio Amazonas Afluente – desvio do rio principal.

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Esta proposta consiste na exibição de um videoarte intitulado Paisagem sonora II, o vídeo revela paisagens sonoras ou "soundscapes", capturados no rio Uatumã, localizado próximo ao município de São Sebastião do Uatumã no Amazonas, na Região do Baixo Amazonas a 255 km de Manaus. Percorrendo os desvios desse rio, o som constrói paisagens que nascem de memórias e como uma experiência sensorial,

possibilita vários significados,

identificação que remete a sensações guardadas na memória visível, invisível ou ainda no inconsciente. A paisagem sonora existe no ambiente, pode ser manipulada e modificada de acordo com as interferências neste lugar, possíveis trajetos encontrados em busca de um som entre os sentidos e se comportam como afluentes, que alimentam e formam um rio. Esses desvios estão relacionados a códigos arquivados na memória. Um lugar de fluxos contínuos sonoros, que possibilita a construção de um caminho desviado: lua, escuro, canoa, homem remando, movimento, ruídos, floresta, animais, lanterna, sapos, insetos e um rio.

Paisagem Sonora é um conceito que tem origem na palavra inglesa soundscape e que se caracteriza pelo estudo e análise do universo sonoro que nos rodeia. Uma paisagem sonora é composta pelos diferentes sons que compõe um determinado ambiente, sejam esses sons de origem natural, humana, industrial ou tecnológica.

Sinopse: Um homem em uma canoa rema no meio da floresta alagada de madrugada. Em alguns momentos, uma lanterna ilumina seu caminho à procura de uma passagem segura em meio a floresta. A lua o acompanha, refletida na superfície das águas. As imagens são quase nulas, porém o som ambiente constrói uma paisagem sonora. O videoarte Paisagem Sonora II tem duração de cinco minutos e em seguida a exibição do filme (alta resolução), proponho um momento para uma conversa e explanação sobre o material com o público, com tempo estimado de 15 minutos, totalizando 20 minutos de apresentação. Este trabalho é um desdobramento de uma pesquisa realizada para um documentário intitulado Rio Uatumã: Paisagem Sonora, fruto de um intercâmbio entre a Universidade Estadual do Paraná/FAP e a Universidade Federal do

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Amazonas, realizado no município de São Sebastião do Uatumã, em setembro e outubro de 2015. Link de acesso ao vídeo: https://vimeo.com/174843921 (baixa resolução)

Memórias O trabalho foi realizado a partir de lembranças da minha infância, quando visitava meus avós no Amazonas. O Rio Uatumã escorre entre a floresta cheia de sons e significados, inconscientemente esses códigos ficarm arquivados em minha memória, por esta razão, quando fui a campo captar o material, não sabia exatamente que imagem encontrar, mas sabia o que poderia ouvir. O exercício da escuta me fez perceber o quanto uma imagem chega rapidamente à retina, velocidade da luz, mas o som não, este tem o tempo dilatado, que necessita de um exercício cerebral na construção dos significados e conteúdo. Rio No rio Uatumã assim como em toda a região norte do Brasil, a fé chega de barco, chegam de barco também os bois, o ribeirinho, a noiva, a madeira, o alimento, a pesquisa…a vida vem de barco.

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Rio Uatumã Fonte: acervo do artista.

Uatumã – afluente – desvio – escamas - lodo – risos- peixes – encontro – barco – paz – esperança – natureza – margem –madeira – árvores – raízes - verde - descanso - bois – transporte – imersão – infância – avô – transparência – reflexo - som – imagem – castanhas – boto – pescaria – caboclo – jacaré – pirarucu - zagaia – lontra – peixe-boi – baré - tucunaré – terra- ribeirinhos – tikunas – uaimiris-atroaris - uirapuru – tapuias – arco – flecha - verde - navegar – canoa – remo – construção naval – procissão – afluentes – iguarapés – piranha – carauaçu – pacu – jaraqui – sardinha – pássaros – cantos – floresta – amazônia – tucanos – araras – papagaios – galhos secos – igapó – cipó – noite – estrelas - sapos - céu – chuva – úmido - castanheira – farinha – onça – oca - sucuri – tambaqui – ingá – preservação – índios – malhadeira – tarrafa – piracatinga - aracu – matrinxã – arraia – pirarara – cubiu – curimatã – guariba – curupira – tribos - lendas – pôr-do-sol – temporal – banzeiro – aranhas - ariranha – cigana – camaleão – jibóia – amor – avó – pai – lembranças – bichos – motor – rabeta – poraquê – carnaúba – andiroba – cedro – angelim-em-pedra – minérios – bauxita – papagaios –

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tracajá – praia – ovos – falcão – gavião – urubus - quintal – casa flutuante – casamento – tarrafa – anzol – água – cheio – raso – largo – estreito – lago – canal – macaco – capivara – fluxo - anta – tatu – seringal – influxo - frutas – plantas – orquídeas – medicina – besouros - vaga-lume – água – fartura – escassez – rede de embalar – macaxeira – biju - tapioca - distância – riqueza – brilho – ouro – reprodução – lua – lanterna - lamparina – pé-de-moleque – bana frita - curumim - cunhantã – borracha cardume – enxame – caba – carapanã – insetos –– zumbidos – ruídos – luz – trevas lágrimas – aurora – pescador – calor - palafitas – sabores – tucumã- acaí – buriti – cupuaçu – cheiros - ninhos – desvio – escorre - flui – gostos – canções – tracajá – abil – andiroba - taperebá – lágrimas - rio – memória – mar.

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XI CICLO DE INVESTIGAÇÕES PPGAV: DES-­‐ UDESC 2016 Lívia Auler

O

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COMUNICAÇÕES

DE

ENSAIOS

VISUAIS/SONOROS, PERFORMANCES E OFICINAS, consiste em um vídeo de aproximadamente 10min. Essa projeção será composta por fotografias, vídeos e textos (que aparecerão principalmente em forma de áudio). São diversas formas – visuais, sonoras e textuais – de contar uma história, também ela com suas variadas facetas. A história em questão é sobre uma Oma, (avó em alemão), com 95 anos, contada por duas de suas netas, a partir de perspectivas temporais e vivenciais diferentes – uma é professora e doutora em Letras/Literatura, 55 anos, e a outra é jornalista, fotógrafa e estudante de Artes Visuais, 26 anos. O impulso inicial para falar sobre isso foi o seguinte fato: a Oma, cidadã alemã que veio para o Brasil na infância, no ano de 1925, nunca se naturalizou brasileira e não pode passar a sua cidadania para filhos e netos. O motivo? Ser mulher. No momento em que é frustrada a tentativa de obtenção de cidadania por parte materna, automaticamente todos os caminhos são fechados. Ao expor, descrever e discutir o tema podemos investigar mais profundamente o que determinado fato significa. E, principalmente, de que forma podemos alterá-­‐lo. São formas de, cada vez mais efetivamente, desconstruir as premissas de uma sociedade patriarcal e rever a figura da mulher como o ser secundário, inferior ou coadjuvante da História. A Arte abre espaços para discutirmos sobre temas pessoais que são, ao mesmo tempo, universais. Partindo de uma questão aparentemente subjetiva, podemos seguir para uma crítica maior em relação à sociedade e mostrar, inclusive, um desacordo com o sistema vigente. E é assim, ao manifestar descontentamento com a situação e a vontade de desconfigurá-­‐la, que somos capazes de desfazer os comportamentos e tradições já ultrapassadas. Também a condição temporal está presente na proposta, diante da adiantada idade desta Oma que se busca representar, uma vez que sua presença ainda próxima está assinalada pela finitude. Então, para que a desmemória / o esquecimento não perturbem ainda mais o delicado momento que se avizinha, recorre-­‐se ao passado, ao tempo passado com ela.

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O recordar como busca ativa, segundo Paul Ricceur, é um ato inteiramente dependente de nossa vontade e só existe, de forma persistente e concreta, na medida em que lhe damos a forma de uma linguagem, seja a oral, a imagética ou a escrita, e o ressignificamos. Nestas micronarrativas aqui apresentadas estão presentes as vivências de outrora, os diálogos que procuraram recuperar o vivido e o olhar observador, tão substancial para aquilatar o que se vai vivendo, agregando, reunindo, dissipando ou transformando. Também o passado é visto, por vezes, com as lentes de uma percepção contemporânea, atribuindo a fatos e situações o sentido que lhes damos hoje. Por último, olhar para a existência de uma mulher integrada em seu momento histórico e cultural, que praticamente atravessa o século XX, a partir dos anos 20, e ingressa no XXI, significa, ainda, atribuir aos seus movimentos os sentidos que uma perspectiva feminista “enxerga” e discute nos tempos atuais. No processo de tornar o passado uma narração, quando o relato foi acompanhado de lacunas, quando o recordar se esbateu com elementos apagados pela passagem do tempo, recorremos à imaginação sem constrangimentos. Isto porque o amálgama entre a realidade experimentada e a ficcionalização do real está inegavelmente presente em todas as nossas narrativas: as sobre nós mesmos, as sobre os outros, as sobre os fatos tal como foram por nós percebidos. Se a essência está calcada no que de fato foi, a moldura, as circunstâncias, a atmosfera para muitas das cenas foi produto da criação imaginativa, pois sem ela os acontecimentos seriam secos e pobres em sua feição. É essa a lição maior da Literatura, e da Literatura Memorialista em especial.

CENA I – Onde tudo começa

(-­‐ Oma, recordas algo da infância na Alemanha ou da viagem de navio para cá?) Wanda, neste momento, tem mais de 90 anos. Inverno de 192... cidade portuária de... na Alemanha pós 1ª. Guerra. A memória da Oma resguardou uma viva impressão, a única daquele período. Elisa, a mais velha, Wanda, a menor, estão acompanhadas da mãe Marta e partirão em breve para o Brasil ao encontro do pai Franz, que tinha viajado um ano antes, numa prática comum a milhares de emigrantes que buscavam fugir da Europa convulsionada, arrasada pelas mortes e destruição. Debruçadas, com as mãos apoiadas no parapeito da janela do hotel naquela fria manhã, observam um grupo de crianças malvestidas e esfomeadas lá embaixo. Então, a porta dos fundos, próxima à cozinha, se abre e 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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a ânsia de pegar o alimento transforma seus rostos. As crianças disputam as cascas de batata! Neste momento, as irmãs são inseridas numa realidade atroz que até o momento desconheciam. Capão da Canoa, RS, noite de Ano Novo de 2015-­‐2016. Os preparativos para a ceia vão sendo finalizados, os aromas tomam conta da sala iluminada e decorada. A Oma, com a idade de 95 anos, seguirá sua rotina de olhar o telejornal no horário de sempre. As primeiras notícias mostram desabrigados de enchentes e crianças em sofrimento. Ela se levanta, séria, resoluta, e diz: “Hoje não vou mais assistir. É muito triste ver tudo isto quando entre nós, aqui, e ao nosso redor, há tanta fartura...”. Cena II -­‐ O luxo da Leitura... A Oma havia crescido num lar tendo como valor a leitura, porém esta prática foi desmerecida pelo marido, o Opa. Seu pragmatismo foi reafirmado ao longo da vida, e ela teve de criar estratégias para ler sem ser vista, pois para ele uma mulher deveria cuidar da casa e, lhe parecia incomodado, que a leitura (uma perda de tempo) competia com as tarefas diárias. Havia livros, revistas, etc., sob os colchões, conforme relata minha mãe, Avani. Ao percorrer os quartos pela manhã, por vezes ela se demorava na arrumação, lendo aos pedaços, com os ouvidos atentos. Porém, a cada quinze dias o Opa saía cedo, para dar atendimento odontológico aos colonos ainda mais no interior, numa “picada”, retornando somente à tardinha. Naquele dia, segundo minha mãe Avani, a Oma lia e as tarefas ficavam para depois, com um ou outro atraso debelado antes que ele retornasse. A insurreição feminina era a ordem do dia! E se manifestava pela sede de leitura! A casa e o tom a ela impresso eram dela, ao menos nesse dia! (Como gosto de imaginar as camas desarrumadas, a roupa por lavar, o almoço feito às pressas, um pouco mais tarde. Que gosto deveria ter a liberdade, como esses dias eram secretamente almejados!) Cena V – Os sacrifícios diários A manhã era friíssima. Encontro a Oma no galpão de baixo. O cheiro forte de sabão feito em casa por ela impregna todo o ar, pois há uma tina onde a roupa é fervida. Ela está em frente ao tanque, o ambiente é atravessado pela luz que vem de uma janela grande logo acima, por onde o sol esmaecido do inverno entra, e pelo vapor da tina fervente, mais adiante. Da torneira desce a água gelada, semi-­‐solidificada pelo frio da noite. Ela lava a roupa ali, sem proteção nas mãos. Cheiro forte, luz irradiada por todo o recinto de madeira, a noção do quanto a água com

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que ela lidava lhe fazia doerem as mãos... Posso ver esta imagem, recriando-­‐a em seus mínimos detalhes e impacto sobre a minha percepção. Cena VII – As revistas No entender de minha mãe, casada com um pastor luterano, certas revistas não seriam lá boa leitura para uma jovem adolescente, segundo uma moral rígida e que tolhia o contato com qualquer coisa dita “mundana”. No entender da Oma, tenho razões para supor que seu código nunca foi tão rígido. Aliás, ela deu provas disto ao aceitar com tranquilidade muitas reviravoltas e comportamentos fora dos padrões mais conservadores que os netos e netas (depois bisnetos) lhe trouxeram, ao longo da vida, seja nos modismos adotados, no modo de vida ou nos relacionamentos que estabeleceram. Assim, há uma certa altura, passei a encontrar um pequeno acervo de revistas (fotonovelas) me esperando, guardadinhas, para ler nas férias. A adolescente literalmente “se refestelava” com essas leituras (os enredos? As fotografias?) feitas sob as árvores, bem longe de tudo e de todos como convém ao que se quer “proibido”. Cena IX – A costura As habilidades que uma mulher tinha de ter, de acordo com a época, a Oma as tinha todas. Assim, tarde da noite, depois que todos estavam dormindo, marido e cinco filhos, ao longo de quase três décadas (entre 1930-­‐1960) a Oma se sentava para costurar as roupas da família. Fez os enxovais dos bebês, seguiu costurando as roupas das crianças, dos adultos e depois os enxovais das filhas que iriam casar. Com o tempo, a revista de modas alemã Burda tornou-­‐se acessível. Os tecidos e aviamentos eram cuidadosamente escolhidos em Lajeado e, dali, sairiam os moldes e modelos que as moças da casa iriam usar (as mais bem-­‐vestidas das proximidades). A primeira a se casar, Avani, ganhou inclusive alguns vestidos e conjuntos ao sair de casa, pois uma “frau” de pastor tinha de se vestir bem, segundo ela dizia. As tuas horas de sono, Oma, foram assim consumidas, e os teus olhos... Mas que força tinhas! Cena XIII -­‐ Um ser com espírito independente Porto Alegre. Estamos no carro, indo para um consultório oftalmológico onde ela deverá fazer uma seção de raios laser. A conversa, não sei como, chegou na seguinte questão e eu a ouço dizer, com um júbilo secreto: Oma: -­‐ “O que eu mais gosto é de ser independente. Fazer as coisas por conta própria, sem precisar de ninguém...” Paradoxalmente, a essa mulher muitas coisas não lhe foram permitidas, muitas outras lhe limitaram o poder de ação e o poder de visão lhe tolheria os passos daí por diante. A maior parte de sua vida já tinha sido vivida quando 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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essa revelação sobre sua personalidade foi assumida tão integralmente. Necessitaria na década seguinte de acompanhantes (sempre a contragosto), mas lutou com todas as forças para manter-­‐se por si até onde pôde. Minha avó, de quem ouvi estas palavras e em meu íntimo te segui, assim que terminaste de falar: -­‐ “Eu também, Oma”. Cena XIV – A queixa No arrazoado da vida trabalhosa que a Oma teve, numa mulher que soube amealhar o mais que pôde para que não faltasse no futuro, de acordo com a perspectiva dos descendentes de imigrantes alemães que viam na economia doméstica uma forma de se sobrepor a possíveis dificuldades, uma queixa foi formulada uma única vez, mas reveladora de toda uma relação que não a poupou. Por que ela teve de fazer o trabalho pesado? Por que, já que ele (Opa) não o fazia, não fora contratado um ajudante? Isto é, levar fardos de feno nas costas até o final do potreiro para alimentar as vacas, nos anos iniciais, quase diariamente? Nós o sabemos, o Opa controlava o dinheiro e o segurava, como ninguém... A sovinice tornou-­‐se motivo de risos entre filhos e netos, com o passar dos anos. Mas, para ela, foi demais. O esforço, as dores, a coluna vergada apontavam o excesso. Se até um vizinho, um dia, vendo-­‐a partir lenha com o machado, grávida, lhe dissera: “Uma senhora no seu estado não devia fazer esse trabalho”, conta ela! Em casa, essa percepção não acontecia e o Opa fez questão de ser servido até o fim. Assim como também não conheceu os dias frios e chuvosos ou o calor extremo, pois seu diâmetro de movimentação foi entre a casa e o gabinete de dentista, embaixo do mesmo teto limpo, aquecido no inverno, fresco no verão.

Cena XVI – Os favores do progresso

O pão saía do forno de barro. A roupa era lavada manualmente. O fogão era à lenha. O ferro de passar era a carvão, pesadíssimo. As massas de bolos eram batidas até os braços perderem as forças. Mas aos poucos a casa foi recebendo as inovações. A Oma se esforçou e aprendeu rapidamente. Sabia manejar todos os aparelhos eletrodomésticos e eu percebia nela o entusiasmo pelas novidades. Tinhas todos os motivos para isto, Oma! Cena XVII – As mãos da Oma (Conclusão) Capão da Canoa, RS, noite de Ano Novo de 2015-­‐2016. A Oma tem 95 anos. Já há mais tempo o cachorrinho da bisneta sabe para onde ir no momento em que os fogos de artifício mais o atormentam enchendo-­‐o de terror, e ela, mais uma vez, pressente o que fazer. O animalzinho pula para o colo da Oma e as suas mãos o confortam, fazendo com que o tremor devagarinho 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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vá desaparecendo. Segue-­‐a pela casa e escolheu dormir embaixo da sua cama, mesmo tendo um contato esporádico com ela. As mãos da Oma, sobre ele, me atraem. Leio nelas a ternura, a firmeza, a constância. Mãos belas, entregues ao cuidado. Leio nelas o passado exigente e tão multifacetado que pediu delas toda a sorte de trabalhos, acompanhados que foram por gestualidades amorosas. Faz pouco que essas mãos acolheram entre as suas as mãos da filha, de 74 anos, a precisar de cuidados. A maternidade não finda e lá está a Oma tomando a iniciativa. A ação nos ensina, mais que as palavras. A cena reverbera repleta de significados. •

FOTOGRAFIAS Fazem parte das imagens: retratos da Oma, fotografias da cidade onde ela nasceu

(Neurode, atualmente chama-­‐se Nowa Ruda e fica em território polonês) e da casa onde morou por muitos anos, no interior do Rio Grande do Sul. Muitas das imagens sugerem o abandono, os lugares fechados, o impedimento, o desaparecimento, a invisibilidade. Tudo isto acaba se interligando com a situação da mulher no contexto que está sendo abordado.

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Da tarefa de encontrar pessoas quando em estado de arte : Processos artísticos socialmente engajados com jovens residentes do maciço do Morro da Cruz, Florianópolis. Vinicius Oliveira O presente ensaio visual consiste em um conjunto de vinte imagens fotográficas realizadas por jovens de comunidade da região central da cidade de Florianópolis. Estas imagens revelam aspectos materiais (infraestutura, serviços, etc) do bairro conhecido como Alto Caieira, localizado no maciço do Morro da Cruz. Os encontros com o grupo de jovens com idades entre 13 e 15 anos foram realizados no Centro Social Ir. Celso, instituição mantida pela congregação dos Irmãos Maristas, e organizados como oficina de Artes durante um período de 4 meses. Tratam-se de um conjunto de imagens que não persegue o estatuto de fotografias de arte, mas sim de operar como sinalização para o processo aberto que se levou a cabo naquele período. As fotografias podem ser lidas em qualquer direção, não havendo nenhuma hierarquia que possa a vir a estabelecer escala de maior valor e/ou maior qualidade. Durante as atividades da oficina, o registro fotográfico foi utilizado como recurso e tática para explorar o local de moradia dos jovens, desafios e desejos. Outra intenção, a de maior interesse ao propositor, foi a de provocar situações de compartilhamento de responsabilidades através de derivas pelas ruas e vielas do bairro, e deste modo, abordar e pontuar a heterogeneidade do grupo como reflexo das complexidades locais. Para alcançar tal objetivo, o trabalho se iniciou nos espaços internos do Centro Social com atividades de desenho e pintura. O tema sugerido foi o das mandalas, particularmente em seus componentes simbólicos e terapéuticos (auto organização e harmonização coletiva). Esta etapa incluiu intervenções no Centro Social, uma das quais integra este ensaio na medida em que foi o momento onde o grupo se mostrou suficientemente sensibilizado para a realização das saídas. A partir desta experiência surge a pergunta: É uma reflexão sobre ou é uma declaração das possibilidades da ação artística? Existem, ao menos, dois modos de relacionar a ação propositora aqui apresentada com o tema do XI Ciclo de Investigações. O mais evidente está na submissão de um relato de ação educativa dentro da linha de Processos Artísticos. Esta seria uma operação de descontinuidade na medida em que, apesar das intensas e produtivas pesquisas realizadas em linhas do Ensino de Arte quanto à ação do professor-artista, ainda faltaria um maior movimento de pesquisadores e artistas em pensar práticas educativas dentro dos campos das Poéticas, Processos ou Linguagens. Um segundo modo que justifica a relação ao tema DES- é o modo em como àquela proposição intencionou um desvio no modo de conduzir a atividade pedagógica em um local que oferece o 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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serviço de contraturno à crianças e jovens adolescentes de comunidades carentes. Ao realizar derivas dentro da pŕoprio local de moradia, aqueles jovens apresentaram seu bairro ao propositor, ao mesmo tempo em que elaboraram processos de compartilhamento de afetividades durante a duração de cada uma daquelas incursões. Deste modo, através de uma descontinuidade na maneira de pensar e apresentar propostas em arte (pública, comunitária, etc), e pelo desvio que a deriva proporcionou ao grupo, as relações entre os saberes e vivências com a função poética ativaram espécie de re-significação subjetiva e de rupturas processuais que elaboraram os conteúdos a partir da emergência daquelas subjetividades em estado de encontro. Pretende-se apresentar as imagens fotográficas em formato de apresentação de slides em formato vídeo, acompanhado por narração em off. Para tal, será necessário um conjunto cpu/monitor ou projetor. em espaço de circulação do Centro de Artes, A apresentação também poderá ser realizada como comunicação oral acompanhada das imagens.

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XI Ciclo de Investigações do PPGAV

COMUNICAÇÃO- ENSAIO VISUAL- Processos Artísticos Contemporâneos

SOBRE SER RIO OU DA NECESSIDADE DE DESVIO Annaline Curado Piccolo

Amores são águas doces, paixões são águas salgadas Queria que a vida fosse essas águas misturadas Eu que já fui afluente das águas da fantasia Hoje molho mansamente as margens da poesia... Eu sou memória das águas. (Roberto Mendes/Jorge Portugal) Talvez o título deste ensaio pareça um desvio de assunto. Não será por acaso. Há algo de líquido dentro dos Processos Artísticos Contemporâneos, das Artes Visuais, do ser Arte, de todas as áreas do conhecer, do aprender, de cada um de nós. Há algo que não cabe entre essas vírgulas, algo que as transpassa, que é fluído, sinuoso, que pode ser calmo ou caudaloso, mas que é sempre movimento. Essa coisa misteriosa que surge entre rochas, corre, cai, conflui, aflui, alimenta-se das trocas e desemboca. Isso que carregamos, colocamos e muitas vezes canalizamos no dentro, tem no vai-vem do colocar-se para fora seu principal sustento, o seu sentido. Nossos rios nasceram curvas, desvio, são da ordem do desordenadamente confluente, mas estão sendo constantemente disciplinados a sobreviver em retidão, buscando um possível desaguar no fim do túnel. Entre margens concretadas, limitam-se as experimentações, as convivências, as misturas e aprendizados comuns e necessários ao sobreviver do percurso. Deturpados, nossos rios tornam-se mero discurso, nomes nas placas das ruas que os sobrepõem. Diante desse contexto, de uma urbanização que desconhece os meandros do habitar, de uma educação que insiste em ser disciplinar, de uma sociedade que desaprendeu a ser rio e de rios que não encontram-se com o mar, este ensaio é sim uma proposta de desvio. Foi transitando para e por fora (des) dessas estradas (vias) domesticadas, na confluência entre artes visuais, educação, histórias orais, plantas medicinais, arquitetura, geografia e mergulhada em prosas e poesia que fui compondo o percurso e as práticas de minha pesquisa de mestrado, intitulada: “CASA-NÔMADE (afetivações urbanas)”. Podemos chamá-la de transdisciplinar, caso sintamos necessidade de ordená-la em algum lugar, mas acho que como tudo que é rio ela nasceu mesmo para propor algo mais parecido com um “desdisciplinar”. Mais uma vez um desvio, agora como invenção gramatical. Como é comum à Arte (essa que em muitos momentos ainda lembra-se de seu ser aquoso) isso de permitir-se o inventar, foi por aqui que resolvi desembocar. Trago a seguir algumas páginas de um processo de pesquisa que se propôs a praticar, investigar e instigar uma outra palavra-ação inventada: a afetivação urbana. Efetivar o afeto entre as pessoas no e com o espaço urbano é tentar dar passos rumo a um possível processo de descanalização dos nossos rios internos. Recortes que contém o todo, fotografias que traçam percursos, textos que mostram imagens, histórias que ocupam espaços, pessoas que desenraízam, afetos que conduzem à casa, um ensaio visual 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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A menina senta no chão de terra, pega um graveto na mão e começa a desenhar. Ela já sabe que aquelas formas são letras e que com elas pode escrever seu nome. Junta algumas letras, aleatoriamente, quase formando uma palavra. Querendo saber qual a pretensão da criança, alguém lhe pergunta: “O que você escreveu?” Olhando pra cima como quem consulta a imaginação, ela responde: “Sabe o que é, a moça do alfabeto me ensinou essas letras e disse que eu podia brincar com elas”.

a menina Agata e o alfabeto Assentamento Boa Esperança- SP

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dois ou um? atento ao comum, seguir os caminhos do meio na dúvida, soltar o freio... escutar a estrada escrita perder o prumo, sem sair do rumo quebrar a rima!

desnortear o texto questionar os papéis ....................... descobrir o que vive além rebaixar os títulos deixar a palavra MUDA falar

das margens

O C U P A R..........O............... E S P A Ç O agir no/com texto!

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PRINCÍPIO NÔMADE DO SER ou sobre as distâncias entre ser e estar estar pouco diz sobre o ser quem é está mesmo quando longe há quem diz estar e não é dizer é querer ser ser é estar sem dizer distâncias estão quando ditas dizer é um modo de estar ser é um modo de ex-istir praticar um estado fora do alcance do pensar o ser muda sempre de lugar está sempre, de passagem

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da busca pelo ar, ou a nossa natureza sufocada 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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quanto mais perto mais caro, o perto depende da estação do ano, perto da UFSC é uma constante, perto da lagoa, até dezembro, longe as vezes é o atravessar a ponte; é preciso estar propício à mudanças, do tipo em seis anos, dez casas diferentes; donos que colocam seus imóveis em imobiliárias tendem a ser mais desapegados do negócio, imobilíarias tendem a exigir o impossível; direto com o proprietário normalmente quer dizer vizinho do mesmo; tem casas muito ruins muito caras, tem casas muito boas relativamente baratas, as ruins quase sempre fazem as melhores propagandas, ruim é quando esquecem que você respira e resolvem alugar a garagem como casa, muito bom é quando até os passarinhos querem entrar; a ilha é uma área de preservação permanente, a ilha é uma área de especulação permanente, quem não tem salário 4 vezes maior que o valor do aluguel, nem cheque-caução, nem família afeto. funciona! habitar o desterro ou questões imobiliárias Florianópolis-SC

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especul(ações) imobiliárias: em menos de 24h o cartaz foi arrancado Florianópolis-SC 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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Água que boia sobre água. Ilha cercada por um rio de possibilidades, vontades. Desejos ensinados a nadar quadrado. O vidro mantém a ordem, detém os peixes em seu estado, calado, privado, público-privatizado. Quem tenta escapar nadando morre afogado. A questão é perceber que as barbatanas podem ser asas. Nesse mundo-água resistente é peixe que aprende a voar... Mas os aquários são bonecas russas e até os rios andam sendo canalizados. Um peixe que voa sozinho, foge, mas o aquário se mantém, É preciso voar junto. Cardume-ventania. Quebrar os vidros, cair no rio e perceber o nado desgovernado. A profundidade é um mistério! sob aquários e profundidades Porto Alegre-RS

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O carbono-capital sobe à cabeça, congestiona, dói, até que tudo o que pensa em todos se corrói. Ambulâncias e polícias circulam pelas veias entupidas, violentas vias, sanguíneas áreas. A pele se arma de concreto, num tom cinza-decreto. Sem trato direto, sem tato. Afeto? Tantos sem teto! Olhar tangente. Tanta gente perto, tão longe, buscando um tal “certo”. Paladar calejado, cansado de tanto nada mastigado. Difícil digestão, tudo duro, tudo muro, tudo murro. O pulmão, asfaltado, suspira calado, feito rio canalizadosufocado debaixo do chão. O coração, músculo involuntário, segue batendo, sem-salário. Revolução vai ser o dia em que ele aprender a dizer NÃO! Quando perceber qual modelo de corpo-cidade-sociedade seu trabalho leva adiante, bem capaz de ter um infarto fulminante. sob a falência múltipla dos órgãos públicos São Paulo-SP

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XI CICLO DE INVESTIGAÇÕES PPGAV: DESPROPOSTA DE OFICINA PROCESSING EM SISTEMAS GENERATIVOS Duração: 3 horas Calixto Bento

SINOPSE A trama que reveste a produção imagética inerente as novas mídias digitais encontra no seu núcleo, em plena atividade, um fio condutor numérico inicial, expresso entre zero e um, derivando expressões complexas e comandos que movimentam esse novíssimo maquinário capaz de receber, interagir e ressiginifcar em tempo real. O belo nessa contemporaneidade é uma razão que impõe distinções subjetivas, excitando superfícies e forma a despertar potencias. O belo é um devir com um código fonte obscuro, submerso em programação e dados. Por qual caminho a ciência e a arte coincidiram até essa experiência estética contemporânea? Com base nessa premissa busco experimentar os métodos de programação em Processing1 na geração de sistemas generativos, ordenados, desordenados e complexos tendo como ponto inicial o entendimento do caos proposto pelo filósofo e matemático Henri Poincaré2 através da revisão de seus próprios estudos que indicavam uma regularidade nos corpos celestes, essa revisão foi desenvolvida através da observação da simples da expressão matemática: x2-1. Atribuindo a variável “x” um número entre zero e um é possível observar um comportamento linear nos resultados, retornando a essa variável “x” o resultado obtido. Já uma variação dessa equação, 2x2-1, apresenta no mesmo sistema uma irregularidade de resultados, apresentando uma desordem numérica, revelando a Poincaré uma prova do comportamento aleatório na natureza, logo, o caos. Essa experiência elementar na ciência moderna será transposta na programação em Processing, em superfície poética de forma a aplicar essa variável numérica como gatilho de performance generativa. 1

Linguagem aberta de programação baseada em Java através de uma interface de desenvolvimento voltada a criatividade numérica e computacional - https://processing.org/ 2

STEWART, Ian. Será que Deus joga dados?: a nova matemática do caos. Zahar, 1991, p. 25 - 26.

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A dinâmica se estrutura em três etapas: conhecimento do processo de programação visual e criativa; experimentação da linguagem em processos generativos e aplicação dos experimentos como superfície visual. A dinâmica necessita de um computador por participante, sem a obrigatoriedade de acesso à internet. É necessário um sistema de projeção audiovisual e não é necessário conhecimento prévio de programação ou informática especifico.

JUSTIFICATIVA A linguagem Processing é aberta e acessível a qualquer interessado e as possibilidades de aplicação em uma poética contemporânea são amplos e não popularizados no país. A relação entre codificação, interação e exportação de projetos viabilizam tecnicamente a produção imagética digital aos pesquisadores sem o conhecimento necessário para a atividade. Segundo Anne Cauquelin3, é necessário ter o entendimento do processo, sendo a imagem um momento derivado dessa linguagem, que convém o conhecimento do seu vocabulário que foge ao que ela representa. Em outras palavras, a obsessão pelo modelo matemático propõe uma superfície sensível que foge ao cientificismo que a derivou, levando a uma apreciação estética alheia ao conhecimento técnico que a origina. Mais do que uma linguagem técnica, a dinâmica se propões a despertar potencias de ação e subjetividades a essa abstração numérica e cientifica de forma a fomentar a experimentação digital e a prática de livre digital.

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CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea - Uma introdução. São Paulo : Martins Fontes, 2005, p. 157

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Desengordurar Observatório Móvel

Produção de sabão artesanal nas dependências da Udesc

Sinopse Desengordurar é um processo alquímico por meio do qual é realizada a eliminação

de gorduras. Combina dois momentos: a solidificação, quando produzimos o sabão, e a dissolução, quando limpamos ou lavamos superfícies, objetos e roupas de uso cotidiano. Esta oficina reintroduz em nosso local de trabalho, a universidade, a prática da saponificação que inicia com a coleta do óleo de cozinha usado e se encerra, enquanto micropolítica, com a formação de ciclos de consumo mais autônomos. Será solicitado aos participantes que puderem colaborar, que tragam o óleo já utilizado que possuírem disponível em suas casas. ​ Objetiva­se relacionar o

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processo de produção de sabão com a rotina de trabalho na universidade, tanto entre aqueles que utilizam os espaços somente como usuários, como entre aqueles responsáveis por sua manutenção, os funcionários dos serviços gerais. Justificativa A arte de utilizar a própria gordura, devidamente acondicionada e combinada com outros elementos, para eliminar gorduras é um conhecimento que costumava ser transmitido por meio da cultura oral. Conforme a região, o clima e os hábitos da comunidade, desenvolviam­se receitas, cujos segredos dominavam os antigos. Tais práticas foram substituídas por processos industriais e absorvidas pela lógica mercadológica, de modo que as pessoas deixaram de produzir o próprio sabão para comprá­lo pronto. O óleo de cozinha usado tornou­se um rejeito e adotou­se o detergente industrial. Tanto um quanto outro, quando dispensados, contaminam o solo e mananciais de água. Produzir o próprio sabão é um meio de colocar em prática as micro utopias, recuperando o sentido do "fazer com". Pensar esta temática dentro da universidade é também uma tática desviacionista que introduz entre nós uma prática específica e nos torna cúmplices dentro do sistema de reprodução econômica. A oficina propõe pensar na desconexão entre nossas escolhas e atos cotidianos e os impactos que causamos. É uma forma de descondicionamento dos usos e costumes, lembrando que é na esfera do cotidiano e das micropolíticas que nossas práticas de fato se concretizam, é por meio da experiência no real que podemos desarmar as estruturas e criar redes de colaboração para relembrar os meios tradicionais de fazer as coisas necessárias para o dia­a­dia. Deste modo a oficina objetiva colocar­se como um espaço para construção coletiva de saberes relacionados à saponificação, um encontro para compartilhar receitas. Neste aspecto, desengordurar é também dissolver e dispersar saberes, culturas e crenças sedimentadas que padronizam nossas relações sociais.

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Plano de oficina 1. Introdução: apresentação dos participantes; abordagem das implicações do uso do sabão industrial e vantagens da produção do próprio sabão; reunião dos materiais (o óleo de cozinha usado trazido pelos participantes); 2. Receitas: troca de receitas e escolha de uma entre os participantes para produção do sabão; exemplos de receitas: Receita tradicional Ingredientes: 4 litros de óleo de cozinha usado 1 litro de água quente (fervendo) 1kg de soda cáustica Dissolva a soda na água quente (fora do fogo). A reação libera gases, deve­se usar luvas e máscara de proteção. Acrescente o óleo. Mexer por 25 minutos e derramar em uma forma. Deixar descansar por 15 dias e cortar em barras. Sabão de limão: Ingredientes: 3 litros de óleo de cozinha usado 1 litro de suco de limão 500g de soda cáustica Raspas de limão

Dissolva a soda no limão. Acrescente o óleo lentamente e com cuidado. Mexer por 25 minutos e derramar em uma forma. Deixar descansar por 15 dias e cortar em barras. *Existem muitas variações destas receitas, que levam ingredientes diversos, dentre eles a cinza (peneirada e coada com água), o abacate, o mamão, farinha de milho, etc. Serão apresentadas algumas destas variações

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para que os participantes possam seguir experimentando em casa e com os amigos. 3. Modo de fazer: a alquimia; b​ asicamente, a saponificação consiste em uma reação química na qual um éster (o óleo) ao reagir com uma base inorgânica (ou sal básico) transforma­se em um sal orgânico e um álcool (sabão e glicerol); Além do processo químico, abordar os ditos populares relacionados (ex.: sabão de vento sul não presta..., nem quando tem muita gente em roda); como consertar receita de sabão que não deu certo; concentração na hora de misturar os ingredientes!

Oficina de produção de sabão no Horto do HU em junho de 2016.

4. Lavação: encerramento da oficina com uma ação de lavação (será utilizado um sabão previamente preparado, já que o sabão que iremos preparar na oficina precisa descansar por 15 dias). Serão lavados objetos, materiais e panos de uso no espaço de trabalho da universidade; se tiver sol, quarar; lembrar cantigas de trabalho; estender um varal e esperar secar.

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Materiais necessários

Sabão pronto para ser embalado e distribuído Para a produção do sabão: Luvas Máscara de proteção 1 Balde ou lata grande para fazer a mistura dos ingredientes Colher de pau grande (adaptada com um pedaço de pau de 1 metro de comprimento) Peneira Caixa de papelão e sacos plásticos para forrar (para fazer a forma) Óleo de cozinha usado (solicitado também aos participantes que possam contribuir) Outros ingredientes: soda cáustica, cinzas, limões, gotas de óleo essencial Fogareiro (caso seja realizada a receita com água quente)

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Para a ação de lavação: Bacias Objetos, materiais e panos de uso nos espaços de trabalho da universidade (solicitado aos funcionários dos serviços gerais) Corda de varal Grampos

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PASSEIO LAMBE-LAMBE Letícia C. Lima Sinopse Deslocar(-se), desobedecer, desafiar, desapegar. Caminhada pela cidade de Florianópolis para colagem de lambe-lambes (cartazes de tamanho variado, geralmente reproduzidos em xerox, colados em espaços públicos com cola de farinha - o grude). Nos encontraremos nas escadarias da Catedral Metropolitana de Florianópolis (Centro) e de lá partiremos para nosso passeio. A rota será definida a partir do desejo dos participantes. Encoraja-se qualquer tipo de intervenção urbana (stencil, grafite, pixo, tagging, yarn bombing, distribuição de material, etc.) e documentação da ação ao longo do percurso. Preferencialmente deve ocorrer à noite ou em fim de semana. A proponente se responsabiliza por 1 garrafa de grude e 5 brochas, mas recomenda-se que os participantes tragam seus próprios materiais. Número ilimitado de participantes. A ação terá duração de 3 horas. Justificativa Em abril de 2014, quatro artistas do Grupo E.T.C. responderam processo por crime ambiental, em Florianópolis, por aplicarem o stencil “Cidade à Venda” em um viaduto, após serem pegas em flagrante em uma operação questionável da polícia. “Conforme a Secretaria de Comunicação da Prefeitura da Capital, a interferência ‘Cidade à Venda’ não é considerada artística por conter cunho político e manifestação clara contra a gestão municipal” (DIOGO, 2014). Em 2016, na mesma cidade, quatro ativistas estão sendo processados por “conspurcação” após colarem cartazes lambelambe com conteúdo político em espaços públicos. “Conspurcar significa manchar, sujar, deteriorar de forma permanente” (BRASIL, 1998), abrangendo – no entendimento dos legisladores – grafites, pichações e lambe-lambes que não sejam aprovados pelas autoridades municipais ou pelos proprietários das paredes e que não tenham “o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado”. Estas duas ocorrências evidenciam não só um entendimento estreito e conveniente das leis, mas o modus operandi de uma cidade fechada, de territórios claros

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e policiamento constante. Uma cidade de fachada, onde a pluralidade só prospera na medida que fomenta o turismo e perpetua a imagem platônica de um balneário com índices altíssimos de qualidade de vida e uma vida noturna agitada. A polícia militar e a prefeitura se habilitam a conferir status de arte ou vandalismo, mas os resultados são extremamente previsíveis. (É fácil perceber, neste caso, a arbitrariedade destes dois conceitos. O que e quem define o que é arte? Para além das qualidades formais, conceituais e discursivas da obra, temos um sistema da arte contemporânea – praticando um modelo que oscila entre o academicismo e o capitalismo corporativo – que delibera e decide, que sanciona e legitima, de modo a sustentar e ser sustentado pela atual conjuntura. É difícil comprar e vender uma intervenção urbana, por seu caráter contextual e anti-establishment.) Chamam de ofensa à lei ambiental o stencil no viaduto, mas não o viaduto. Não o shopping construído em cima de um mangue, a alguns quilômetros dali. Não o beach club que recebe celebridades no verão. Não o aterro que afasta o mar para dar espaço para empreendimentos imobiliários milionários. Temos uma polícia truculenta em uma cidade conservadora, que reiteradamente demonstra seu descontentamento com manifestações que contradigam o status quo, apoiados, desde 2016, por uma lei antiterrorismo

cuja

redação

permite

interpretações

amplas,

comportando

a

criminalização de movimentos sociais e populares. Sob estas condições, é urgente que reclamemos a cidade. O espaço urbano não pode ser limitado meramente à geografia, um terreno por onde se chega do ponto A ao B, ininterruptamente. É um local de convivência e de conflito, onde estão as pessoas. Locais de permanência e fluxo, de ocupação e vazio, que também nos pertencem pois os praticamos. Esses lugares não são definidos por seus proprietários ou pela administração municipal: são parte da vida da população, que continuamente os ressignifica. Precisamos estar na cidade – intencionalmente, não por acaso – para pensar as demandas reais dessa cidade e das pessoas da cidade. Segundo Harvey (2013): O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer as nossas cidades, e a nós mesmos, é, a meu ver, um dos nossos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados.

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Florianópolis é uma cidade para se conhecer de carro: os bairros têm infraestrutura interna, mas são afastados uns dos outros; o transporte coletivo (não é público) é caro e pouco eficiente; há pouca calçada e ciclovia. Deslocar-se pela cidade ganha, neste panorama, uma carga política, assim como demorar-se nela. O passeio pelas ruas – um percurso despreocupado e fortuito – é realizado majoritariamente por turistas. Essa prática é retomada por aqueles que realizam intervenções urbanas. Há locais conhecidos de grande concentração de intervenções, onde é costumeiro deixar uma contribuição, mas é preciso circular para conhecer outros muros, tapumes e paredes. Intervir na paisagem é um ato político, qualquer que seja o teor da manifestação: é uma desobediência. É colocar-se, presentemente, no centro de um desafio ao ideário da limpeza, da organização, da lei e a ordem. A eleição do corpo e da cidade como materiais de trabalho artístico pretende designar um valor de automodelagem às regiões de experiência da cotidianidade social, bem como produzir interferências críticas nesses cenários de autocensura e microrrepressão para que se desatem novas potencialidades de conduta e entendimento. O corpo e a cidade, submetidos à violência cotidiana, foram assim reconquistados pela arte que os contagiou com a sua inobediência. (RICHARD, 2002: 17) Uma vez aplicada, a intervenção urbana fica à mercê das intempéries e das reações daqueles que passam por ela. Não é incomum lambe-lambes serem arrancados minutos após serem colados, grafites e pixos serem apagados, etc. É preciso desapegarse não só da integridade física da intervenção, mas da ideia da autoria. Ela passa a compor a paisagem, um detalhe na experiência da cidade, incontrolável. Esta proposta de ação pretende reunir um grupo considerável de artistas e/ou interventores urbanos para estar na cidade, com seus materiais, e decidir, enquanto coletivo, seu caminho. Existe potência em habitar a cidade e estar junto com outras pessoas, partilhando de um momento de prática artística pois, além de promover um ambiente seguro para todos os presentes, facilitam-se trocas entre pessoas com interesses afins. Artistas que não estão habituados com o espaço urbano poderão, sob tutela do grupo, experimentar este novo domínio.

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Referências BRASIL, Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/direito-facil/conspurcacao>. Acesso em: 20/07/2016. DIOGO, Marciano. Grupo responde por crime ambiental após espalhar mensagem "Cidade à Venda" pela Capital. Notícias do Dia, Florianópolis, 29/04/2014. Disponível em: <http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/162767-arte-ou-pichacao.html>. HARVEY, David. O direito à cidade. Piauí, São Paulo, n. 82, junho de 2013. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-82/tribuna-livre-da-luta-declasses/o-direito-a-cidade>. Acesso em: 18 de junho de 2015. RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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XI Ciclo de Investigações do PPGAV Proposta de Oficina - Pinhole:

fotografar o DES_ Cássia Oliveira

Sinopse Esta oficina de fotografia artesanal, conhecida como Pinhole 1, propõe a construção de narratividades, tanto orais quanto visuais, a partir das construções imagéticas captadas pela latinha Pinhole. Ao realizar esta oficina em momentos e contextos diversos, com público infantil e adulto, observamos a frustração diante dos resultados fotográficos nem sempre desejosos para o olhar já treinado e acostumado com a mimese da realidade - a frustração se dá diante das distorções, desfoques, ausências, desmanches, desordens, nebulosidades etc. No entanto, busca-se refletir acerca destas experiências fotográficas onde a representação estética fica em segundo plano e dá lugar a ensaios feitos ao acaso, seguindo apenas o olhar do sujeito fotografo imbuído de imaginação, memória e estórias, ressignificando os efeitos DES_ imprevisíveis e significativos deste processo. A partir da leitura poética de Manoel de Barros em “O fotografo”, busca-se protagonizar a presença da ausência nesta fotografia Pinhole, registrar os silêncios, desfigurar o nítido e discutir as construções narrativas a partir do ‘descaso’ com a excelência da imagem representativa, deseja-se incluir todos os resultados fotográficos como possibilidades de diálogos. A parte prática da oficina requer um espaço pequeno para a montagem de um laboratório fotográfico provisório para a revelação das imagens, preferencialmente com uma pia, latinhas pinhole, químicos de revelação e fixação de imagens. A descrição da oficina segue abaixo no desenvolvimento da proposta.

Pinhole: fotografar o DES_ A ideia desta oficina surge de um questionamento feito por um grupo de estudantes/pesquisadores sobre uma investigação na qual me debruço e que invoca a presença das narrativas orais como deflagradoras de visualidades construídas especificamente a partir da técnica artesanal de fotografia conhecida como Pinhole. Na 1

Pin-hole (buraco de alfinete) é uma máquina fotográfica sem lente, feita artesanalmente e que ajuda a entender o princípio básico da fotografia.

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pesquisa em questão me proponho a refletir sobre as narrativas orais e as construções visuais que os sujeitos2 elaboram a partir desse arcabouço de imaginários que as estórias podem suscitar em cada um/uma - desejo investigar os atravessamentos que podem ser construídos entre a oralidade (ancestral, cotidiana, imaginária) e as visualidades e viceversa, além das potencialidades desses diálogos para a construção de uma experiência docente. Elegi, em meio às inúmeras alternativas de visualidades (desenho, cinema, vídeo, fotografia digital etc) o Pinhole, por ser, seu processo em si, uma experiência poética de criação de visualidades – por ser artesanal, por criar imagens nítidas, mas também por desconfigurar, desconstruir, desmontar. A questão levantada sobre esta investigação faz surgir um problema acerca da “qualidade” das visualidades produzidas, ou seja, como os sujeitos participantes poderiam se apropriar da Pinhole de tal forma que conseguiriam captar imagens capazes de significar/representar narratividades (orais e visuais). Tal conflito desloca a atenção do olhar pesquisador destas imagens do nítido para o desfocado, da composição das formas para a desconstrução, da representação visual para a desordem, na tentativa de considerar como resultado do processo o que a maioria poderia evidenciar como erro. Predominam hoje as fotografias digitais com números de megapixels cada vez maiores garantindo máxima nitidez, com isso, causa estranhamento observar imagens que não apresentam uma resolução tão sofisticada. Embora a oficina com a Pinhole permita produzir “boas” fotografias, ocasionalmente nos deparamos com resultados distorcidos, desfocados, com ausências que o enquadramento não consegue captar e isso se deve principalmente ao seu caráter experimental e artesanal. Estas imagens desfocadas, fragmentadas e desformes nos interessam como uma forma de ampliar o diálogo sobre os novos significados que poderiam provocar e os novos sentidos à narratividade, possivelmente vinculados à imaginação e ressignificação do que se vê, levando o sujeito a construir um olhar diverso. Maurice Blachot diz que “[...] a essência da imagem é estar toda fora, sem intimidade, e, no entanto, mais inacessível e misteriosa do que o pensamento do foro íntimo; sem significação, mas invocando a profundidade de todo sentido possível; irrevelada e todavia manifesta, tendo essa presença-ausência [...] (BLANCHOT, 1998)

2

Os sujeitos participantes desta pesquisa são um grupo de cerca de dez crianças com idades entre oito e treze anos.

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É nessa presença-ausência construída entre as realidades e ficções da trama fotográfica que pretendemos nos delimitar para investigar os desdobramentos narrativos possíveis dessa ‘imagem-erro’. Para Manoel de Barros, poeta das sobras e insignificâncias, “é preciso transver o mundo”, o ver para ele se “afasta da visão empirista da realidade, que se vincula à crença perceptiva do olhar.” 3 Na mesma medida, a fotografia também é uma forma de romper com as fronteiras do visual e de encontrar na realidade as ficções que o olho não vê, mas a imaginação e memória constroem - um modo de extrapolar com a mera função de reprodução mimética do visual. Para Manoel é preciso ver com a imaginação, transver o mundo, plantar ausências, fotografar o invisível. Em “O fotógrafo”, Manoel de Barros procura evidenciar o DES_, aquilo que não poderia ser representado visualmente por não “existir” concretamente em materialidade: “Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada a minha aldeia estava morta. Não se ouvia barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era um carregador? Estava carregando um bêbado. Fotografei este carregador. Tive visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmin no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça. Representou para mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador. Fotografei a Nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva. A foto saiu legal.”

Manoel de Barros figura o não visível e vai construindo imageticamente uma poesia que retrata a presença do perdão, da existência e do silêncio. A experiência da Pinhole e o exercício desta reflexão é o de não excluir as imagens que porventura não revelem a representação mimética da realidade e tentar dialogar com o que o sujeito deseja construir a partir de seu olhar e o que esta técnica permite como resultado.

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ANDRADE JR (2004-2005).

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Portanto esta oficina deseja examinar os intervalos, espaços e lacunas que compõem o DES_, prefixo usado de uma forma geral para criar sentidos de ausência, falta, negação. O XI Ciclo de debates se apropria deste termo para gerar questionamentos que possam ampliar seu uso, colaborando para a construção de sentidos que extrapolem a vulgarização comumente atribuída ao termo. A partir destes atravessamentos entre a Pinhole e as narrativas, a poesia de Manoel de Barros e o debate acerca dos DES_, propomos esta oficina de modo que possamos experimentar pelo processo fotográfico, a inserção das imagens desfocadas, distorcidas e deformadas na construção de narratividades visuais e orais. Desenvolvimento da Oficina Pinhole A oficina será realizada a partir da leitura poética de “O fotografo” de Manoel de Barros, no intuito de eleger o DES_ como assunto fotográfico. O fato é que naturalmente teremos resultados diversos (com imagens nítidas e bem resolutas e ao mesmo tempo imagens desfocadas, distorcidas e deformadas) por consequência da própria técnica artesanal em questão. Inicialmente faremos uma breve apresentação da técnica da Pinhole para compreender o processo e em seguida a leitura do poema para que cada participante possa ir construindo seu olhar fotográfico. O desenvolvimento prático da oficina compreende a captura da imagem a partir da latinha e a revelação e fixação em um laboratório fotográfico. Após o processo de revelação podemos expor os resultados e realizar uma roda de conversa sobre as expectativas, frustrações e conclusões, desde a leitura da poesia passando pela técnica da pinhole até a construção da narrativa a partir dos resultados visuais de todo tipo – com ou sem qualidade (DES_).

Materiais necessários 4 Químico revelador Químico fixador Papel fotográfico 03 bacias para os químicos e a água Lâmpada vermelha Lona preta Tesoura Luvas 4

Os materiais serão de inteira responsabilidade do proponente, mas caso haja possibilidade de auxílio para aquisição, será bem vindo.

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Fotografias Pinholes de oficinas realizadas no ano de 2013.

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Referências Bibliográficas ANDRADE JR, Antônio Francisco de. Com olhos de ver: poesia e fotografia em Manoel Barros. Cadernos de Letras da UFF – PIBIC – GLC, núms. 30-31, 2004-2005. BARROS, Manoel. Ensaios fotográficos. São Paulo: Leya, 2013. KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

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DESANDAR

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Beatriz Cruz Livia Piccolo

O projeto DESANDAR, iniciado em julho de 2015, é composto por uma série de programas performáticos para o sujeito, a cidade e o fim do mundo. Idealizado por uma dupla de artistas, DESANDAR precipita-se em dois territórios distintos que dialogam entre si: o corpo e a linguagem.

Justificativa O fundamento do projeto DESANDAR é a recusa à normopatia do corpo e da palavra. O sujeito que encara e experimenta os programas de performance concebidos não tem estratégia de sobrevivência fixa, não anda e não fala obrigatoriamente para frente, não possui destino definido e não esconde suas contradições. A experiência do DESANDAR acontece para “​ desconjuntar o sujeito que se é, que se acostumou a ser”​ .1 Trata-se de uma tática para desajustar o corpo viciado e desalinhar as ideias congeladas. Surge da experiência com práticas de deriva urbana, de errar pela cidade, de andar sem um rumo ou objetivo ​ a priori.​ Quanto mais o corpo anda e deixa-se afetar pelo espaço da cidade, quanto mais vivencia práticas para colocar-se em relação com o ambiente urbano, mais abre espaços internos. Produz, assim, lugares singulares que ressoam, criam outras direções e estabelecem um percurso infinito entre corpo, cidade e palavra. Assim como as derivas, as ações do DESANDAR podem acontecer infinitamente, tensionando tempo, espaço, corpo e linguagem. O projeto pode acontecer nas mais diferentes cidades e pode agregar novos programas continuamente. Alguns dos programas já foram realizados pelas performers, de forma independente ou em eventos de performance. Outros existem apenas através das palavras cravadas no papel. No campo da linguagem DESANDAR consiste em pensar a ​ palavra em performance. ​ A partir do prefixo ​ des ​ acoplado a determinados verbos, o projeto DESANDAR propõe programas de performance que podem concretizar-se efetivamente no corpo do performer, no espaço público, ou virtualmente no ato da leitura, seja ela silenciosa ou vocalizada, no espaço íntimo. Destroçar-se, desfabular-se, desencantar-se, desapegar-se e descrever-se são alguns dos verbos contidos no projeto. Cada verbo gera uma pequena fabulação que, por sua vez, constitui um programa de performance diferente. No campo semântico os verbos existem para designar ação, processo ou estado. O projeto apropria-se do prefixo des ​ para expandir os verbos em direções inesperadas, desmontando seus sentidos óbvios e permitindo ao sujeito a transformação identitária, o esgarçamento de si e o encontro com o imprevisto. Nesse sentido, dialoga com a proposta do Ciclo de Investigações de entender o ​ des como um convite ao debate, a uma certa abertura para o encontro com o outro e com novos significados, que geram algo que está por vir. 1

Rosane Preciosa em sua tese de doutorado: R ​umores Discretos da Subjetividade: Sujeito e Escritura em Processo​ , na p.52.

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DESANDAR os verbos é a procura por uma voz narrativa que propõe a si mesma uma prática de ação discursiva ao mesmo tempo inútil, subversiva e infinita. Atuando na construção e na transformação da subjetividade do sujeito que performa, fala, lê e/ou escuta, a voz narrativa do projeto DESANDAR se apropria do prefixo ​ des ​ para encontrar e inventar sentidos. Sem a onipotência e a onipresença da voz em terceira pessoa, a voz narrativa no projeto DESANDAR é em primeira pessoa. Entretanto, não se trata de uma voz lírica ou confessional, mas antes uma voz que está em constante movimento. Aqui a palavra não tem função clara nem destina-se a um interlocutor em especial. No papel, trata-se de uma escrita performativa que dialoga com a poesia e com a literatura contemporânea. Vocalizada, trata-se de um discurso que flerta com a música experimental. Experimentada na prática do corpo torna-se estratégia para intervir em si mesmo e na cidade. Ritos diários, semanais ou pontuais que sugerem maneiras de identificar a produção e transformação da subjetividade. Abaixo apresentamos parte dos ​ programas que compõe o Projeto DESANDAR. Em seguida, a sinopse da perfomance proposta para ser realizada durante o XI Ciclo de Investigações do PPGAV/UDESC.

DESANDAR

Série de programas performáticos para o sujeito, a cidade e o fim do mundo.

DESCREVER-SE PARA DESANDAR Encontro um muro na cidade. Faço dele a página dura do meu diário íntimo. Escrevo no muro algo meu. Uma confissão urgente. Exponho-me minuciosamente e enumero minhas partes essenciais de modo que o passante tenha a imagem mais exata possível de quem eu sou, hoje. DESAPEGAR-SE PARA DESANDAR Recolho objetos obsoletos que estão na minha casa. Livros que não serão mais lidos, objetos inteiros ou quebrados, roupas, cadarços de tênis, antigos CD’s, preservativos velhos, qualquer objeto sem uso. Espalho os objetos pela cidade, em deriva. Deixo-os como vestígios meus. Não irei recuperá-los nunca mais. Talvez eles sejam incorporados a outras vidas. Talvez eles se percam. Talvez virem lixo ou fotografias. DESTROÇAR-SE PARA DESANDAR Encontro destroços na cidade. Micros e macros. Hiper e nanos. Troços de grades, vidros, árvores, muros, calçadas, estruturas urbanas. Cada destroço é uma informação primeira que me afeta e ativa uma certa ressonância interna. Traço linhas com eles. Me alinho, me circulo, me espiralo, me monto, me (des) monto.

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DESAPARAR­SE (ponte) PARA DESANDAR Escolho uma ponte. Levo uma tesoura e uma garrafa. Mostro meu cabelo e peço que pessoas cortem as porções que são inúteis, que tirem desigualdades. Pergunto o que elas fariam com as porções desatadas. Deixo­me no meio fio. Ando pela cidade procurando superfícies que reflitam pessoas. DESAPARAR­SE (beira de rio) PARA DESANDAR Escolho a beira de um rio. Levo uma tesoura e um espelho. Mostro meu cabelo e deixo que o vento e as nuvens apurem meu estilo. Busco uma fuga secreta para meus pensamentos. Desligo­me daquilo que internamente delineia meu estilo. Escondo as porções desatadas em um local que ninguém possa encontrar. Guardo, porque talvez o que foi inútil deixou de ser. DESVENDAR-SE PARA DESANDAR Ando observando as casas que tem placa de vende-se. Ando observando locais na cidade onde muitas casas têm placas de vende­se. Escolho uma delas. Escrevo na placa a palavra DES. Coloco uma venda nos olhos e permaneço na frente dela. Ambas anunciadas. Negocio comigo mesma o que fazer ali. Não alieno-me mediante a falta de visão. Troco por audição, tato e olfato. Pergunto­me se esta casa já cedeu (ou se irá ceder) sua própria liberdade por certo preço. Revelo para ela um pensamento: o tipo de cidade que queremos não pode ser separado do tipo de pessoas que queremos ser. DESFRUTAR-SE PARA DESANDAR Me alimento de frutas compradas nas feiras da cidade ou roubadas de redes de supermercados. Aprecio os sabores dos frutos e dissabores do corpo. Usufruo das frutas para que me comam. Me masturbo com elas. Escrevo sobre a experiência. Saio pela cidade espalhando o relato escandaloso. DESCARACTERIZAR-SE PARA DESANDAR

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Escolho pessoas e peço que me vistam com suas próprias roupas por uma semana. Arrisco uma nova caracterização. Cubro-me, envolvo-me, envergo-me por um outro contorno cotidiano. Delineio figuras no meu corpo, modos de ser ou estar. DESENCANAR-SE PARA DESANDAR (para Yoko Ono) Falo a expressão foda­se para o céu, para a parede, para o ralo, para o cano. Três vezes ao dia, durante cinco dias. DESTILAR-SE PARA DESANDAR Ando pela cidade em deriva. Toda vez que passo por um boteco, entro e me purifico. Escolho uma bebida destilada, bebo. Gotejo palavras em um guardanapo. Derramo-me num selfie em cada local. Volto a andar. Repito o procedimento até me sentir fracionado. DESCOLAR-SE PARA DESANDAR Tiro fotos das partes do meu corpo, internas e externas. Colo em postes dos caminhos que faço regularmente. Faço desunir os órgãos que antes estavam colados em mim. DESAGUAR-SE PARA DESANDAR Ando sem calcinha. DESCONFIGURAR-SE PARA DESANDAR Crio para mim um novo álbum de retratos da infância. Revejo o conjunto de elementos culturais encontrados numa determinada área, num determinado tempo. Configuro novas adjetivações. Revisto-me de novos atributos. Dou a figura um outro caminho. Outras dúvidas, outras expectativas, um novo medo da morte, se ele existir. DESOBSTRUIR-SE PARA DESANDAR Escolho uma via pública atravancada, uma grande avenida, uma rua muito movimentada no horário de pico. Ando enquanto descrevo em voz muito alta aquilo que vejo. Desatravanco as palavras. Não paro de andar enquanto falo em voz forte e sonora, para ser ouvida longe, sobre a mulher que não sei ser. Removo aquilo que me faz parar de falar. Paro enquanto faço sair em tom elevado e áspero aquilo que sinto. DESENTERRAR-SE

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PARA DESANDAR Visito um cemitério. Escrevo, no local, um pequeno texto do gênero ficção­científica sobre a morte da cidade. DESFABULAR-SE PARA DESANDAR Visito um lugar da minha infância, da adolescência e da idade adulta. Em cada lugar, invento uma nova memória. Escrevo as memórias­futuras que nunca existirão. DESEDUCAR-SE PARA DESANDAR Perco toda a educação. Perco o decoro. Falo todos os palavrões que conheço, em fluxo. Invento outros. Na rua, no banheiro e na loja de doces.

Sinopse A perfomance DESTROÇAR­SE PARA DESANDAR Para o XI Ciclo de Investigações do PPGAV/UDESC a dupla propõe o projeto DESANDAR a partir de um dos programas que a compõe: ​ destroçar-se. A ação de destroçar-se constitui a espinha dorsal da proposta a ser realizada, no corpo e na linguagem. Em deriva, a performer 1 encontra destroços na cidade. Troços de grades, vidros, árvores, muros, calçadas, estruturas urbanas. Macro e micros. Hiper e nanos. Em outro ambiente, traça linhas com eles. Se alinha, circula, espirala, monta e (des) monta. Cada destroço é uma informação primeira que afeta a artista e ativa uma certa ressonância interna. Por meio da força de cada troço urbano, organiza e (des)organiza fragmentos da cidade enquanto (des)organiza seu próprio corpo. Enquanto isso a performer 2 destroça as palavras. Ao ler os programas de performance do projeto, ou seja, ao ler os verbos, a performer inverte e inventa novos sentidos, faz uso da repetição, do silêncio, da fragmentação e da subversão semântica. Para isso utiliza um microfone e um pedal de ​ looping. ​ Troços de palavras e de sílabas geram novas paisagens sonoras. A partir da voz a performer ativa e destroça os programas performáticos pensados por ela mesma. No mesmo espaço a dupla de artistas realiza a ação de destroçar-se nos dois territórios propostos, ou seja, no corpo e na linguaguem. Ao final da performance deixam-se os vestígios materiais. Os troços recolhidos em deriva e reorganizados na performance; as fotos do destroçar­se em ocasiões anteriores e as palavras que seguem ecoando no ambiente.

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Descrição da ação: Performer 1 - Com um carrinho de supermercado, a performer sai em deriva pelos arredores do espaço onde a performance acontece, recolhendo destroços urbanos. Coleta restos de concreto, vidro, pedras, tijolos, calçamento e etc. Volta ao espaço. Espalha fotos da organização de destroços feita em outras cidades. Divide os troços coletados por suas cores, texturas e tamanhos. Organiza o material traçando linhas em diferentes formatos e direções. Completa os desenhos com seu próprio corpo desnudo. Guia-se pelos verbos: alinhar, desalinhar, circular, espiralar, arruinar, montar e desmontar. Ao final, solicita ao público que a cubra com os destroços. Permanece por alguns minutos contornada pelos fragmentos da cidade. Levanta-se. Deixa restar no espaço um corpo reorganizado, esculpido de destroços urbano. Performer 2 - De pé em frente a um microfone a performer lê cada um dos programas de performance do projeto, a saber: descrever-se, desapegar-se, destroçar-se, desaparar-se, desvendar-se, desfrutar-se, descaracterizar-se, desencanar-se, destilar-se, descolar-se, desaguar-se, desconfigurar-se, desobstruir-se, desenterrar-se, desfabular-se, desviar-se e deseducar-se. Aos pouco vai destroçando cada programa, subvertendo frases e pontuações, fazendo uso de silêncios, gritos, ruídos e diversos sons vocais. Com o auxílio do pedal de looping a performer cria ecos, ressonâncias, delays e manipula digitalmente no ato da 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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performance aquilo que diz, em tempo real. As palavras são tratadas como objeto e uma nova paisagem sonora é instalada no local. As ações das duas performers acontecem simultaneamente e num mesmo espaço, propondo a fricção da ação de destroçar­se no corpo e na linguagem. Espaço: ​ Hall ou espaço expositivo. Duração: ​ Entre 1h30 ­ 2h, dependendo da disponibilidade do evento como um todo. Obs.: As performers estão abertas para proposições da organização neste sentido. A deriva para coleta dos destroços é realizada apenas pela performer, não é acompanhada pelo público. Preferencialmente é realizada no dia anterior à performance. Materiais (Levados pelas performers) Microfone, pedal de looping, mesa de som. (Solicitados ao Ciclo de Investigações): Amplificador. Carrinho de supermercado (A performer possui um, mas caso seja possível conseguir na própria cidade facilitaria pela logística do transporte)

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Exemplos de imagens distribuidas no espaço:

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TÁTICA DO DESINTOXICAR: DA ATMOSFERA RURAL À CASA HORTA Gracia Casaretto Calderón RESUMO Neste artigo apresento o processo de criação do trabalho Casa Horta como desdobramento da minha pesquisa em andamento como mestranda no PPGAV/UFPEL denominada Atmosfera rural: experiência e resiliência na arte contemporânea, provocando-me a pensar o trabalho em arte em contextos que tangem a agroecologia, assim como na potência de uma prática artística capaz de gerar transformação em mim e no outro, apropriandome do termo desintoxicar como tática de ação para pensar a poética no contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE Atmosfera rural, Casa Horta, Arte contemporânea, Contexto, Tática do desintoxicar. ABSTRACT In this paper I present the creative process of the Casa Horta (House Garden), a work which has unfolded a consequence of my research project being developed in the Master's program of the PPGAV/UFPEL called Rural Atmosphere: Experience and resilience in contemporary art, causing me to consider works, in art, in relation to contexts that touch upon agroecology, as well as an art practice's potential and capacity to generate transformation in myself and in the others, leading me to appropriate the term detoxify as a action tactic for reflecting about the poetic in contemporary. KEYWORDS Rural atmosphere, Casa Horta, Contemporary Art, Context, Detoxify tactic.

O presente trabalho está vinculado a minha pesquisa em andamento como mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas denominada Atmosfera rural: experiência e resiliência na arte contemporânea, na linha de pesquisa Processos de Criação e Poéticas do Cotidiano. Mantendo investigação há cerca de um ano, neste texto busco expor os desdobramentos que envolveram a construção do trabalho Casa Horta. Tal trabalho é pensado e desenvolvido no contexto da zona urbana do município de Pelotas (RS) como tática artística para compartilhamento da sensação de uma atmosfera que denomino – atmosfera rural, a qual considero potencializadora de transformações a partir de sua experiência. A origem da sensação dessa atmosfera específica decorre da minha percepção sobre aspectos físicos e sociais da zona rural entre os municípios de Pelotas e Canguçu (RS), onde estão localizadas pequenas propriedades familiares de produção agroecológica¹. Região que venho explorando e mantendo contato desde o início da investigação. Como alicerce central da pesquisa, o trabalho Casa Horta se configura como uma 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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prática artística em constante processo que se dá a ver na ativação de um terreno baldio localizado no centro da cidade de Pelotas: espaço de uma casa em demolição onde no decorrer da pesquisa foi construída uma horta; um lugar de experiência coletiva no qual atuo como propositora de encontros, diálogos, práticas. Percebo, dessa maneira, o compartilhamento da atmosfera rural no ambiente da Casa Horta a partir das experiências coletivas que ali se dão; da difusão de informações sobre modos de vida sustentáveis e que tendem a preservação do meio ambiente. Assim, imersa numa pesquisa transpassada por problemáticas que tangenciam o contexto da agroecologia, como o uso dos agrotóxicos e outros fatores que acabam por “intoxicar” diversos aspectos do cotidiano, proponho reflexão sobre os contextos da arte, como também sobre as possíveis transformações “desintoxicantes” que se deram em mim e no outro durante esse percurso poético através da utilização de uma tática do desintoxicar como procedimento de ação artística. Reflito sobre uma prática em arte desvinculada da noção de concepção de objetos. Percebo que o próprio contexto da pesquisa demanda a transformação do artista em vista da necessidade de se pensar outras relações interpessoais e novas maneiras de estar no mundo, e a urgência de intervalos para a desaceleração cotidiana em virtude de um inquietante predomínio de desinteresse e desatenção sobre problemáticas contemporâneas. Atmosfera rural Durante a pesquisa pude inteirar-me sobre alguns dos aspectos que compõem e envolvem a atmosfera rural percebida, desde o estilo de vida das famílias que trabalham com a agroecologia, até os projetos que se desenvolvem na região para combater a utilização dos agrotóxicos. São questões cotidianas emergentes e problemáticas alarmantes que abrangem não só a comunidade rural, como também a urbana do município de Pelotas e região. Busco, assim, reflexão a partir do pensamento do físico e escritor Fritjof Capra (2004, p. 23) que considera os problemas contemporâneos sistêmicos, interligados e interdependentes, sendo que suas soluções requerem uma mudança radical na percepção, no pensamento e no valor frente ao mundo.

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O novo paradigma pode ser chamado de uma visão de mundo holística, que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas. Pode também se denominado visão ecológica, se o termo “ecológica” for empregado num sentido muito mais amplo e mais profundo que o usual. A percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza (e, em última análise, somos dependentes desses processos). (CAPRA, 2004, p. 25)

Uma mudança de percepção que vem alterando minha relação com mundo. Ampliou meu entendimento sobre a noção da atmosfera rural, sobre a investigação que me desloca e provoca a pensar a partir de renovadas perspectivas para a articulação do trabalho em arte, os contextos da arte contemporânea, assim como o papel do artista enquanto ser no mundo. A proximidade com o contexto rural, e a procedente cultivação da minha relação subjetiva com o lugar a partir das experiências, despertam-me sobre a conexão da arte com outras áreas de estudo que tangem o contexto de forma interdisciplinar, como a Educação e a Ecologia. Identifico, assim, crescente interesse enquanto artista de aprofundar conhecimentos acerca das questões ligadas a preservação do meio ambiente, a ecologia. Um desejo de participar da constituição de territórios e realidades existentes, no limiar subjetivo da arte que tange a noção de micropolítica. Acerca das dimensões da micropolítica na arte, Katia Canton (2009) escreve sobre a possibilidade de se pensar e relacionar questões cotidianas, articular ideias frente a realidade vivida: a atuação do artista como agente político. Sobre o mesmo conceito, Suely Rolnik discute sua significativa dimensão, como também a dos indivíduos e seus atos na constituição dessa rede complexa e integrada da vida. (...) multiplicidade substantivada, devires imprevisíveis e incontroláveis é o que vai constituindo o plano imanente ao diagrama que o rizoma, em seu nomadismo, corporifica. Plano sempre variável, sempre remanejado e recomposto pelos indivíduos e pelas coletividades. (ROLNIK, 2011, p. 61)

Plano variável que entendo substancialmente formado pelas relações, ações, pensamentos e o corpo de indivíduos que coabitam espaços urbanos e rurais – por coletividades que se formam em determinados espaços. Casa Horta Nesse processo, percebo possível tática para transpor a atmosfera rural em outro contexto através da geração da própria atmosfera dentro da zona urbana. Procedimento artístico que poderia ser pensado como uma tática para desintoxicar o corpo e a terra como 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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uma ação micropolítica. Assim, elaboro projeto de proposição artística para a construção de um espaço híbrido, entre horta e jardim, em um terreno baldio localizado na zona central da cidade de Pelotas: a Casa Horta. Terreno ocioso, pertencente a meus familiares, onde em outubro de 2015 iniciei o processo de criação nesse lugar na região central da cidade que permaneceu fechado e sem uso por cerca de oito anos. Com setenta metros quadrados de área, aproximadamente 85% de área encoberta por piso e 15% por telhado, já habitavam ali inúmeras plantas que encontraram formas de nascer por entre frestas. Ali existiu uma casa, hoje em estado de demolição. A parede da fachada permanece inteira, tal qual uma casca que resguarda um interior vazio, livres de teto e paredes (Fig. 1). Não há energia elétrica nem água no local. Em vez disso, há reflexão sobre a captação e o armazenamento de água, sobre formas de se habitar em um local com limitações de recursos.

Figura 1 - Exterior e interior do local, Pelotas (RS); out. 2015. Registros fotográficos da autora.

A falta de energia elétrica parece isolar o local dos meios virtuais de conexão, do exterior. Lugar que a primeira vista pode causar estranhamento, um deslocamento do habitual tendo em vista os locais que costumam oferecer formas de convívio na cidade. Um local

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atípico, território potente e provocativo de sensação outras; induz ao exercício do desapego, da liberdade desses tantos materiais que envolvem o cotidiano. Plantar sem terra, é desafio. No terreno, o desafio foi plantar sobre uma “exconstrução” urbana que cobriu todas as áreas de terra. Foi preciso força braçal para a organização do espaço: deslocamento de tijolos, telhas e madeiras, e finalmente, a construção de canteiros com o carregamento de aproximadamente vinte sacos de terra deslocados da zona rural. Trabalho que exige a participação do outro para dar forma a uma ideia, ativa o intercâmbio físico; envolve parentes, amigos e conhecidos. Arte com caráter participativo, realizada para e com o outro, vincula uma relação estreita, suscita um “estar junto” (ARDENNE, 2006). A partir da visão de Ardenne (2006) sobre a arte participativa, reflito sobre a característica do artista que opta, segundo o autor, por selar um pacto com a democracia, com a consolidação social, e funda sua obra sobre a intuição de um déficit de comunicação, sobre o sentimento de uma distribuição desigual do sensível. Para tanto, debruço-me a pensar arte como meio para a criação de contextos que provoquem experiência, espaço para práticas de comunicação, ações, contato com o meio ambiente; penso sobre táticas que suscitem o alargamento perceptivo do coletivo. Almejo formas de acessar o sensível que habita o outro, assim como percebi ser sensibilizada pela e através da atmosfera rural. Dessa maneira, inicialmente convido pessoas próximas para habitar este espaço para juntos dialogarmos, sem um discurso dirigido, sem pressa, desconstruindo o ritmo cotidiano urbano e permitindo certa desaceleração mais humana ou talvez vegetal, orgânica, respiratória. Objetivo disponibilizar intervalos de tempo e espaço na cidade com a oportunidade, para mim e para outros, de propor atividades para semear, plantar, produzir o que, literalmente, nos move e alimenta o corpo. Até o momento, diversas ações vêm acontecendo neste lugar onde tento compartilhar a experiência da atmosfera rural dentro da cidade. E talvez busco essa tática como a culminação de um processo de desintoxicação do corpo e dos pensamentos até o ponto de perceber o que me sensibilizou pela primeira vez que senti a zona rural se deslocar em mim, deixando sua atmosfera leve, desintoxicante, inominável.

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Desintoxicar Nessa pesquisa, o termo desintoxicar é pensado como uma tática artística que me aproprio para incitar reflexão sobre a “toxidade” que invade o cotidiano. Um procedimento poético do desintoxicar, considerando meu objetivo enquanto artista de compartilhar a sensação da atmosfera rural. Neste sentido, a desintoxicação pode ser, também, um conjunto de operações que levam colaboradores e participantes ao espaço da Casa Horta para um processo que cultiva a experiência da atmosfera rural. Em decorrência da pesquisa confronto o termo desintoxicar sobretudo frente ao panorama das práticas nocivas associadas ao uso de agrotóxicos que são utilizadas no cultivo de alimentos e que resultam na intoxicação não somente de plantas e animais, como também do solo, da água do ar. Sob essa ótica percebo indícios de desintoxicação através de uma renovação perceptiva sobre o entorno decorrente dessa imersão mais integral na investigação, no qual me dediquei a experienciar a realidade do contexto rural. Um movimento que me fez não só repensar toda a prática artística que vinha desenvolvendo até então, como também meu papel enquanto artista e cidadã. Nesse processo, inúmeras foram as transformações que se deram em mim e que reverberaram numa dedicação cotidiana disposta a pensar hábitos na busca por um consumo consciente que opta pelos alimentos orgânicos (sem agrotóxicos), por uma alimentação saudável, pela prática do plantar, por auxiliar em projetos que visam a qualidade ambiental rural e urbana da região. Hábitos que também acabam por sensibilizar pessoas ao meu redor, e os quais tento compartilhar em ações no espaço da Casa Horta. A Casa Horta funciona então como espaço criado, deslocado, que abre uma fenda dentro da zona urbana de Pelotas, onde são praticadas atividades saudáveis associadas as pessoas da zona rural da região que são conscientes das necessidade de sua contemporaneidade e a urgência de plantar e cultivar valores sociais, políticos e hábitos agroecológicos. Percebo a desintoxicação na Casa Horta principalmente durante os encontros e experiências coletivas nesse lugar que é pensado justamente como tentativa de dar espaço ao diálogo, a comunicação, ao contato com o outro e com a terra. Local que vem sendo frequentado desde dezembro de 2015 por grupos que objetivam aprender, plantar, dialogar (Fig. 2), e que, até o momento, já acolheu cerca de seis encontros e duas oficinas de horta. Em constante atividade e planos em andamento, a Casa Horta está

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disponível a comunidade e outros artistas para a execução de projetos no espaço, instantes de sensibilização, propagação de informação.

Figura 2 - Primeiro encontro na Casa Horta; dez. 2015. Registro fotográfico da autora.

Assim, entendo essas transformações desintoxicantes como oriundas da relação do meu corpo com aspectos do espaço, com o outro, capazes de atualizar minha percepção de mundo. Qualidades perceptivas sensoriais que penso se fazerem no exterior e no interior do ser, de maneira integral. Reflexão que encontro identificação análoga no conceito de corpo vibrátil em ROLNIK (2011), que o explica como vibração/percepção dos órgãos dos sentidos que são despertados por forças do mundo que os afetam e as quais passam a fazer parte do próprio corpo. “Re-conhecer” meu espaço, aprender sobre mim - auto-conhecimento -, a partir do outro, de contatos e experimentações sentidas, vividas. Experiências investigativas que me provocam a “superação da anestesia da vulnerabilidade ao outro. (...) presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade” (ROLNIK, 2006, p. 2).

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Reflexão A Casa Horta como trabalho participativo, reflete características de uma obra que almeja maior solidariedade social, e considera o espectador um colaborador, um cidadão e um ser político: “Ser artista hoje em dia é falar aos outros e escutá-los ao mesmo tempo. Não criar sozinho, mas coletivamente” (ARDENNE, 2006, p. 122, tradução nossa). Perspectiva participativa que penso expandir a visão do artista em relação ao contexto social e político em que trabalha. Uma arte contextual que para Ardenne (2006) se constitui em um desejo social que o artista possui em intensificar sua presença na realidade coletiva, sem intermediários, sendo seu trabalho a chave para confrontar a realidade. Arte que percebo transitar por entre dimensões sociais e espaciais, e que abrange diversas áreas de conhecimento que se entrelaçam e complementam, indicando vias para se pensar o trabalho em arte e alargando a consciência de mundo. Contextos de investigação que me conduziram a um processo e prática aliados ao estudo da Ecologia e da Educação na tentativa de vislumbrar meios, relações, possibilidades, num paralelo com as considerações do pesquisador Grant Kester sobre projetos colaborativos na arte. Projetos os quais o autor crê possuírem dimensão pedagógica explícita (2006, p. 11): Enquanto as narrativas políticas dominantes perdem, seu espaço de legitimidade se abre a novas histórias, (...) novas visões para o futuro. E esse senso de possibilidade, acredito, que anima a notável profusão de práticas artísticas contemporâneas preocupadas com a ação coletiva e o engajamento cívico (…). (KESTER, 2006, p. 25)

Dessa maneira, entendo que vislumbrar a criação através da ótica homem-ecologia permite que o trabalho artístico seja possível em outras dimensões, onde penso que a latência da arte é capaz de permear por via ético-política da educação sobre o meio ambiente, meio social e individualidade humana, com referência ao conceito de ecosofia do psicanalista e filósofo Félix Guattari. Sobre a questão da crise ecológica a qual me aproximei no decorrer da pesquisa, Guattari (1990, p. 8) acredita que ela somente poderá ser esclarecida com “uma articulação ético-política - a que chamo ecosofia - entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana)”. E a arte como indicativo para esse esclarecimento, com seu potencial criativo transformador de subjetividades culturais, objetivando necessária reinvenção do meio ambiente, enriquecimento de modos de vida e de sensibilidade (GUATTARI, 1990, p. 8).

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Perspectivas sociais e espaciais que penso o artista capaz de trabalhar através da subjetividade da arte, por meio da consciência da dimensão do espaço que o cerca. Por ora, na Casa Horta estão sendo realizados encontros frequentes como também mutirões para sua organização: construção de novos canteiros e composteira, armazenamento de água, plantio, trocas de sementes. Com o tempo, com a formação de uma rede de contatos e interessados, penso que grupos afins se unirão para a elaboração de outros projetos e ações. Além disso, o próprio contexto do trabalho pode vir a questionar acerca da ativação de outros terrenos baldios existentes na cidade. Trabalho que percebo como desejo de construir momentos da atmosfera rural na zona urbana, a Casa Horta reflete em um projeto que se dá a ver como uma obra em construção, com a necessidade da participação do outro, considerando seus movimentos e indicações acerca dos passos seguintes para a sua materialização, imersa em uma rede com o todo, com o coletivo, com a comunidade. Um prática artística que busca por instantes de sensibilização com o outro, imersa nessa esfera da vida de indivíduos e individualidades distintas, mas que percebo, em meu contexto, carentes de contato, afeto, e experiência conjunta. Constrói um percurso poético capaz de afetar a mim e ao outro, com a qualidade de desintoxicar hábitos, percepções, subjetividades. Como ser e artista hoje, olho para o que está próximo de mim, percebo minha família, meus amigos, e as possibilidades de construir uma ideia com o que tenho em mãos. Uma sensibilização e desintoxicação que inicia no interior da minha própria casa, para então vir a se expandir em tantas outras direções.

Notas ¹ Disciplina científica que enfoca o estudo da agricultura por uma perspectiva ecológica para conservação da biodiversidade, restabelecimento do balance ecológico dos agroecossistemas, de maneira a alcançar uma produção sustentável (ALTIERI, NICHOLLS, 2000, p. 14-17).

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Referências

ALTIERI, Miguel; NICHOLLS, Clara. Agroecología: Teoría y práctica para una agricultura sustentable. México: PNUMA, 2000. ARDENNE, Paul. Un arte contextual: creación artística em el medio urbano, em situación, de intervención, de participación. Murcia: Cendeac, 2006. CANTON, Katia. Da política às micropolíticas. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2004. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990. KESTER, Grant H. Colaboração, Arte e Subculturas. Disponível em: <http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/up/arquivos/200611/20061117_141808_Cadern oVB02_p.10-35_P.pdf> Acesso em: 17 abr. 2015. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2011. _______. Geopolítica da Cafetinagem. 2006. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf> Acesso em: 10 dez. 2015.

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UM LUGAR RESSONANTE: ENTRE O ESPAÇO DA PEDRA E DA ARQUITETURA Thiago costa guedes

RESUMO Esse artigo corresponde a uma série de trabalhos contextuais acontecidos durante uma residência artística na Patagônia Argentina a partir da coleta de uma pedra. Nesse conjunto processual está o interesse em investigar situações de geometrização e escala entre corpo, objeto e paisagem. Após a citada experiência, apresento como desdobramento desses trabalhos uma pesquisa que se debruça sobre um fazer artístico situado na intersecção entre os campos da arte e da arquitetura. PALAVRAS-CHAVE Geometrização da paisagem; Escala do corpo; Lugar ressonante; Arte-Arquitetura. ABSTRACT The present article represents a series of contextual works started through the collection of a stone. The process occurred during an artistic residency in Argentine Patagonia. This procedural event shows interest in investigating situations of geometrization and scale between body, object and landscape. Resulting of these works from the residency experience I present a research which focuses on an artistic view between the fields of art and architecture. KEYWORDS Geometrization of landscape; body scale; resonant place; art-architecture.

Introdução Reside em uma pedra coletada durante derivas pelo deserto na Patagônia Argentina a intenção em construir um espaço a partir da escala de um corpo determinado (do artista, primeiro autor deste trabalho). Um lugar ressonante híbrido que transite entre ser um abrigo, observatório, objeto transitório na paisagem, ou menir. Para construir esse espaço que emerge em direção a uma “quase arquitetura” foi necessário entender o trabalho dentro de uma trajetória

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processual, que se desenvolve em diferentes direções, linguagens e procedimentos entre os territórios da arte e da representação gráfica digital. É objeto central dessa pesquisa poética investigar situações limítrofes que transformam uma paisagem natural em artificial, além das relações de escala entre a paisagem, o corpo e o objeto de arte sob tais circunstâncias. Pensando que a presença do corpo em si pode ser uma maneira de artificializar e domesticar uma paisagem, Antropoplástico é a transposição entre um fragmento síntese primitivo da paisagem (pedra), traduzida para uma representação sintética mediada pela escala do corpo. A etapa seguinte a esta experiência direta com a paisagem se desenvolve no campo da modelagem gráfica digital. O modelo (pedra) foi escaneado e seus parâmetros alterados no espaço virtual a partir da escala específica do corpo do artista. Entendendo o corpo como parâmetro de transformação das coisas que estão a sua volta, permitiu compreender o corpo como uma ferramenta tecnológica contextual, e a interface do software como uma paisagem virtual de tradução dos parâmetros. O movimento de tradução que se estabelece entre o espaço virtual e o espaço real, segundo Walter Benjamin, permite com que haja uma sobrevida do original e ao mesmo tempo sua falência. Constitui-se como objetivo investigar o quanto e o que se conserva das propriedades do modelo original diante do processo trans-formato de um objeto para um meio de expressão. Nicolas Bourriaud afirma que a topologia e a tradução são práticas de deslocamento e questiona: “o que é que se mantém em um objeto e o que é que se perde na operação que consiste em reconfigurar suas propriedades e coordenadas? ”. (BOURRIAUD, 2011, p.138). A revisão teórica dessa pesquisa constitui em averiguar uma bibliografia multidisciplinar que contemple e estabeleça tangências entre as áreas de interesse circunscritas aqui. Entendemos que para contribuir com o assunto proposto nesse artigo é preciso tencionar os campos de atuação para encontrar na intersecção das esferas de conhecimento um lugar comum entre linguagens. Com base nisso foi proposto um olhar do ponto de vista da arte contemporânea projetado para os circuitos da representação e fabricação digital.

Antropopedra

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Essa experiência inicia com a coleta de uma pedra específica durante uma residência artística. O processo descrito aqui se encaminhou para o uso de ferramentas de modelagem digital e tornou visível as possibilidades de representação que temos acesso. Por um lado, evidencia a necessidade de problematizar a relação mediada pelo uso da tecnologia entre o corpo e a representação do natural. Sobretudo em grandes centros urbanos podemos identificar uma aparente conformidade com a condição da experiência mediada. É habitual a relação com o artificial como projeção de um ambiente natural à medida que esse vai sendo banido do espaço construído, principalmente dos espaços coletivos de convívio. Nesse sentido o artificial se coloca como mediador de uma experiência do natural, cada vez mais individualizada, privatizada, estandardizada (Acosta, 2005). O crítico Mario Pedrosa em um artigo para o Jornal do Brasil expressou: “O homem de hoje é moderno porque não aceita o ambiente ou o meio natural passivamente” (Pedrosa, 1959, p.183).

A princípio, a pedra foi submetida a um processo de digitalização tridimensional (scanner 3D Creaform, categoria Handyscan, modelo Uniscan). O equipamento possui tempo de leitura de 18.000 medidas/s, resolução de 0.100mm, precisão de até 0.08mm. Configurou-se uma nuvem de pontos e, a partir dela uma densa malha triangular que conecta cada um dos pontos para gerar a superfície poligonal que quer representar a forma. Essa é a execução do primeiro momento do processo trans-formato: a falência do original e a formação de uma imagem virtual. A lógica antropométrica utilizada para controlar a densidade da malha transformando o modelo foi a altura do corpo do artista (1,75m), que é uma estratégia recorrente no seu processo criativo, esta malha foi sendo simplificada. Foram empregadas as técnicas de desenho paramétrico para associar o referido parâmetro de altura como fator para a redução do número de polígonos da malha. Este

processo,

realizado

por

meio

das

ferramentas

de

modelagem

digital

(Rhinoceros/Grasshopper) deu origem a quinze exemplares diferentes do modelo. Desta maneira, estas representações foram se deformando e perdendo gradativamente o número de polígonos numa tendência ao tetraedro, poliedro com o menor número de faces, distanciandose das características que o definiam, como textura, peso e forma. Cada novo exemplar é uma possibilidade que se expande, como um gradiente tridimensional da materialidade do modelo, não se tem total controle sobre como essa deformação irá acontecer, tornando imprevisível o resultado desse processo. 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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O passo seguinte foi imprimir em material plástico (PLA) exemplares tridimensionais da pedra por uma impressora 3D que se utiliza de um processo de fusão e depósito por camadas – FDM. Para garantir a reprodução das características irregulares de toda a superfície do modelo, por este método de impressão, foi conveniente seccioná-lo em duas partes. As bases de cada uma das partes correspondem à seção do modelo, tendo sido coladas de maneira a tentar reproduzir o mais fiel possível à geometria da pedra com toda sua superfície rugosa. Quanto ao resultado não podemos dizer que o exemplar impresso, à direita da figura, é exatamente uma cópia. Talvez o correto seja afirmar que se originou um novo objeto, pertencente de características próprias e imanentes. Nesse caso o conceito de desenho paramétrico foi usado para transformar um modelo existente.

Figura 01. Imagem do processo de antropometria, simplificação gradativa do número de polígonos; Figura 02. Imagem de um exemplar da pedra impressa em material plástico, 2015.

Dessa análise, foram selecionados os dois últimos exemplares impressos do processo de antropometria, propositalmente os exemplares que mais se distanciam da aparência inicial da pedra, para a partir da especificidade dessa forma projetar uma ampliação em escala do objeto em direção a construção de uma arquitetura. Esse objeto começa a ser pensado como protótipo mínimo de um espaço construído, e que habitar, ainda que uma espacialidade temporária, pode ser uma maneira de artificializar um lugar. Propor habitar essa espacialidade, levando em consideração o desenvolvimento do seu processo, desde a coleta da pedra até a constituição de um lugar que se projeta em direção a uma arquitetura, é uma maneira de fazer o processo reverberar em territórios inesperados. Por isso, essa é a construção de um lugar ressonante, que amplifica as ações que o antecederam e que também pode abrigar outras ações. As definições sobre como essa espacialidade vai se comportar

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devem aparecer durante sua prática, quando for ocupado e quando ocupar definitivamente um lugar. (P1) + (P2) Os protótipos são constituídos por dois elementos complementares que são chamados provisoriamente de (P1) e (P2), protótipo 1 e 2, ambos obedeceram aos parâmetros de altura do corpo do artista (1,75m) para serem ampliados em escala. Sua forma é proveniente do já mencionado processo antropométrico. Nesse ponto, a pesquisa toma uma corrente em direção à definição das características desses protótipos, levando em consideração que não existe necessariamente uma função específica para o uso, mas que pode assumir uma função ambígua e transitar entre abrigo - observatório - objeto. O primeiro elemento (P1), que é também o maior, teria possivelmente a capacidade de abrigar, de ser um lugar para observação ou funcionar como um objeto transitório na paisagem. O segundo elemento (P2), é uma espécie de “pedra volátil”, funciona quase como um fragmento que retorna à errância da ação inicial. Esse segundo objeto pode ser entendido como um amuleto, onde reside a memória de pedra, a antropometria, a impressão em plástico e a construção de um objeto de arte. Pensando ainda na empregabilidade dos materiais, podem ser categóricos e resolver tanto a estrutura quanto o revestimento numa só escolha, ou então partir para um uso menos preciso e mais informal do material, onde o controle sobre esse material está em indicar as condições e direcionar seu fluxo. O conjunto de escolhas que convergem para uma forma específica do objeto não dependem, nesse caso, de uma determinação, e sim uma orientação do material. Por esse motivo, há uma articulação das condições do material que remetam ao espaço, em oposição a uma composição formal do todo. Diante dessas questões, fez-se necessário a fabricação de maquetes de estudo. Essas projeções do trabalho servem como antecipação de eventuais desvios em outra escala e ao mesmo tempo podem apontar para diferentes caminhos, como outra maneira de fazer reverberar sentido ao processo. Sua potência e autonomia enquanto objeto emerge do volume processual, da justaposição do todo, cada parte é um fragmento que remonta e conduz para uma experiência. As primeiras maquetes dos protótipos foram virtuais, essa etapa de concepção digital foi importante pois possibilitou a visualização das proporções físicas dos protótipos e seu redimensionamento. Além dessa 29, 30 e 31 de agosto de 2016 - Florianópolis/SC

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linguagem tornar possível comunicar e veicular o trabalho em diferentes plataformas, possui especificidades que apontam para outros meios possíveis de percepção do trabalho. Me apropriar dessa visualidade específica do campo da arquitetura é parte da concepção contingente do projeto.

Figura 03, 04, 05: Exemplares de maquetes para P1 + P2, 2015.

Partindo de uma noção do protótipo (P1) enquanto uma projeção de arquitetura, ou que se projeta em direção a uma linguagem arquitetônica no modo ampliado de relacionar-se com os espaços, está implícita a condição da percepção desse objeto em relação ao contexto. Por sua vez, a percepção acontece concomitante à experiência do espaço físico pelo observador, na relação que este estabelece com a obra enquanto arquitetura. Sobre essa triangulação, Robert Morris denomina duração o tempo presente da “experiência espacial imediata”.

“Ao perceber um objeto, alguém ocupa um espaço distinto – o espaço próprio de alguém. Ao perceber o espaço arquitetônico, o espaço próprio de quem percebe não é distinto, mas coexiste com aquilo que é percebido. No primeiro caso quem percebe circunda, no segundo é circundado. Esta tem sido uma polaridade permanente entre a experiência na escultura e a da arquitetura”. (Morris, 1978).

Se esse projeto tangencia o campo da arquitetura é na sua intima preocupação em reivindicar a percepção de atuação dessas múltiplas espacialidades, e compreender e compreender a especificidade do lugar de onde partiu para o lugar onde está construído ou instalado. Stan Allen discute no seu texto Condições de campo um lugar menos sedimentado e mais “vulnerável” para a arquitetura: “uma arquitetura que não investe na durabilidade, na estabilidade e na certeza, mas deixa espaço para a incerteza do real”. (Allen, 1999, p.102). Desse ponto de vista está subentendido nesse projeto uma ideia de mobilidade, pois ainda que seja transportado e relocado em outro espaço/contexto, ainda assim carrega consigo

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informações de outra origem, por esse motivo esse espaço construído tende a não ser estático, como uma instalação permanente, mas um espaço em trânsito. Sobre a propriedade de uma arte móvel, Nicolas Bourriaud identifica na produção de alguns artistas contemporâneos o surgimento do trajeto como princípio construtivo do trabalho. Para o autor, esse artista “homo viator” é o “protótipo do viajante contemporâneo”, e o cerne dessa produção se desenvolve da sociologia do nosso ambiente visual: a globalização, a banalização do turismo e a erupção da internet no início da década de 90. Bourriaud discute as características estéticas dessa produção que chama de forma-trajeto, um “excesso de informações, que obriga o espectador a entrar em certa dinâmica e construir um percurso pessoal” (BOURRIAUD, 2011, p. 114). Esse mesmo conceito é tratado de forma análoga no livro Un Arte Contextual de Paul Ardenne, onde o autor se refere ao tema como obra móvel, e acrescenta que uma obra móvel deve incidir sobre uma articulação direta com a realidade, num sentido de uma apresentação em oposição a sua representação. Diz o autor: “Un obra de arte móvil es espácio concentrado y potencial, es tanbién uma parábola de la existência de un territorio que hay que conquistar sin cesar, la realidade” (ARDENNE, 2002, p.109). Francis Alÿs, entre outros artistas contemporâneos, é citado tanto por Nicolas Bourriaud quanto por Paul Ardenne como um exemplo de artista que o trabalho se desenvolve sobretudo do percurso, da travessia. Embora não tenha sido esse trabalho especificamente discutido pelos autores nos referidos livros, trago como referência para a pesquisa uma publicação intitulada Numa dada situação de Francis Alÿs sobre um trabalho apresentado na ocasião da 29ª Bienal de São Paulo. Durante anos perseguindo tornados nos planaltos ao sul da Cidade do México, na tentativa de se infiltrar no olho pacífico do vórtice com uma câmera, o artista reuniu desenhos, recortes de jornais, citações, textos, vídeo, pinturas e colagens que situa o espectador em um cenário documental demarcado por contradições políticas e sociais. Esse conglomerado de informações que o artista apresenta gera uma parábola narrativa que envolve situações de diferentes tempos, meios, circunstâncias, mas que em um dado momento caótico se entrecruzam e criam um outro sentido. “El arte de la movilidad, por lo tanto: un arte de la matéria, del instante y de la acción, propicio a desarrollar, em cualquiera que se vea confrontado a él,

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unas sensaciones mentales, visuales y inclusa una sensibilidad cinestésica inédita que obliga a repensar lo ordinário de lá estética”. (ARDENNE, 2002, p.109)

Além da propriedade de mobilidade na produção desse artista, seu trabalho torna-se referência para a pesquisa mais especificamente sobre uma maneira prática de entendimento das circunstâncias. Os trabalhos são resultado de uma experiência de lugar, e a partir disso o pensamento se desenvolve para estabelecer conexões relativas ao contexto. Outro ponto dessa produção é seu desdobramento no tempo dos acontecimentos, cada ação é pautada por um ritmo que dispara outra possibilidade de continuidade do processo. Portanto, entendo que a ideia de mobilidade não está necessariamente em seu sentido prático de mover-se de um lugar ao outro, mas sim na transposição de sentido pelas articulações que se estabelecem. Assim como a parábola de Francis Alÿs encontra-se numa linguagem comum do ser em devir, esse trabalho é entendido também como um projeto em trânsito, situado no percurso, numa zona híbrida entre um fazer em arte e arquitetura. Remete a uma condição atemporal, tanto no seu desenvolvimento prático, quanto na posição que ocupa dentro da linha processual do trabalho como um todo. A ideia de produzir um protótipo de arquitetura não se encerra como fim do processo, mas é outro campo em meio a uma série de desdobramentos que abriga novos horizontes a serem descobertos. Referências ACOSTA, Daniel Albernaz. Paisagem portátil: Arquitetura da natureza estandardizada. 2005. 86 f. Tese (Doutorado em Arte) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. ALLEN, Stan. Condições de campo. In: SYKES, A. Krista [org.]. O campo ampliado da arquitetura: Antologia teórica 1993-2009 Trad: Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 91-103. ALYS, Francis. Numa dada situação. Trad: Vários tradutores. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 152p. ARDENNE, Paul. Un arte contextual: Creación artística em médio urbano, em situación, de intervención, de participación. Cartagena: Cendeac, 2002. 176p. BENJAMIN, Walter. O Autor como produtor: Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 1ed. São Paulo: Editora brasiliense s.a, 1985. p. 120-136. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. Trad: Dorothée de Bruchard, São Paulo: Martins Fontes, 2011, 192p. CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. Trad: Frederico Bonaldo. 1ed. São Paulo: Editora G. Gili, 2013. 188p.

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FOSTER, Hal. O complexo arte – arquitetura. Trad: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 285p. MORRIS, Robert. O tempo presente do espaço. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia. [orgs. ]. Escritos de artistas: anos 60/70. Trad: Pedro Süssekind. Et al. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 401-420. RAFFESTIN, Claude. Uma concepção de território, territorialidade e paisagem. In: PEREIRA, Silvia Regina; COSTA, Benhur Pinós da; SOUZA, Edson Belo Clemente de. [orgs.]. 1ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p. 13-23.

Notas 1

A ferramenta CAD usada para a alteração da imagem no espaço virtual foi Rhinoceros/Grasshopper.

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