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Sandra Bondarovsky

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Sandra Bondarovsky

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HISTÓRIAS TERAPEUTICAS “A morte de um filho É uma gravidez às avessas Volta para dentro da gente para uma gestação eterna” Bruno Gouveia

A dor mais inalcançável é a da perda de um filho. A expressão que mais se aproxima dessa dor achei-a no poema de Bruno, vocalista da banda Biquíni Cavadão.

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Na gravidez às avessas de meu filho Marcos, tão jovem, tão alegre, tão cheio de sonhos, um consolo: viveu pouco- 29 anos- mas intensamente. Essa intensidade foi uma constante de alegria e preocupação. Atuava muito rápido, intempestivamente: mudar de escola, fazer intercâmbio fora, escolher uma profissão, mudar a atividade profissional, casar, separar, casar de novo e ter filhos. Assim contribuiu para povoar o planeta com três maravilhosos filhos. Esses filhos são o seu maior legado. Eles mereceriam ouvir do próprio pai suas histórias. Não poderão fazê-lo. Minha vida foi povoada de histórias orais que além da convivência afetiva deram um norte e povoam minha existência. Procurei contar essas histórias para meus dois filhos. Hoje vejo o Roney Leon, meu amoroso filho mais velho, repassando as velhas histórias e ouço suas crianças repetindo, cada uma com sua versão, pois

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quem conta um conto aumenta um ponto. A esse respeito, Cecilia Meireles escreveu um texto: “Pergunte a cada pessoa. Você vai ver. Todos serão aquecidos, sustentados pelo círculo de histórias que criarem juntos. Embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem. Enquanto restar uma criatura que saiba contar a história e enquanto o fato de ela ser repetida, os poderes maiores do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança forem continuamente invocados a estar no mundo, eu lhe garanto que... será suficiente.” Impedida pela tragédia de relembrar para o Marcos, fatos da sua própria infância e juventude, resolvi escrevê-las em forma de relatos para meus netos. Minhas primeiras escritas foram sobre sua vida, suas histórias e aventuras. Seu irmão Roney iniciou o livro de relatos com um texto sobre as viagens que fizemos juntos à Nova York que termina com um lamento: “... Ainda tenho pena de mim e de todos que o amavam por não podermos nem sequer

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sonhar com as brincadeiras e o jeito do Marcos de 31,32,45,53...” As fotos ilustram, registram, contam, explicam, despertam memórias. Meus amigos me ajudam com revisão e edição. Conservar amigos é um viver cada vez mais inusitado no mundo de hoje, onde um número crescente de pessoas mora sozinho. A família extensa quase acabou e se tornou banal mudar de cidade ou país. 16


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Diante desse mundo globalizado pelas finanças e pelo consumo, relembro dos afetos até onde minha memória alcança, para que a nova geração conheça uma parte da vida de seus antepassados. Os aspectos pessoais de nossas vidas são atravessados por questões históricas, sociais, ideológicas e até espirituais. Aos meus netos, Ricardo, Fernanda, Estella, Eduardo, Maria Eduarda e Carolina e seus primos, Luiza e Theo.

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SUMÁRIO 22

O PRIMO DO SOGRO

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AMIGO ESPECIAL

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CONVERSA DE BARBEIRO

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OUTROS MUNDOS

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ELEIÇÕES

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ELIANA E IVANILDA

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PAPAI NOEL

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DESAPEGO

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O RÍSIVEL APRENDIZADO DE ISAAC

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CASAMENTOS E RETIRADAS

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MUDANÇA

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OURO PRETO E PAROS

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O MARIDO NU

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DONA ROSINHA, A BENZEDEIRA

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AS JÓIAS DO COFRE

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GUERRILHA URBANA OU RURAL

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RELÓGIOS SUÍÇOS

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O CASAL

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A VOLTA


O PRIMO DO SOGRO Michel apareceu à tarde na casa de Sylvia sem avisar. Casara-se aos vinte e dois anos, no último período da faculdade de direito, com uma jovem de apenas dezenove, do quarto período, que havia engravidado dele. Não havia levado todos os seus pertences. Deixara livros, apostilas, fotos e uma grande quantidade de medalhas e troféus que acumulava desde a infância. Sylvia não modificara seu quarto de solteiro. O novo apartamento em que morava em Botafogo não comportava seus objetos pessoais que a noiva considerava “tralha”. O imóvel era o presente de casamento do pai à filha do meio. Segundo relatava, a filha do meio era sempre a mais demandante e difícil de agradar. O pai da menina gostou da escolha da filha desde o namoro, 22


apostando muitas fichas naquele casamento que ao resto da família pareceu precipitado. Michel não foi buscar ou levar nenhum dos seus pertences. Foi simplesmente trocar a roupa para ir a um casamento em São Conrado. O apartamento de Sylvia na Lagoa ficava no caminho entre o Centro, onde Michel trabalhava, por indicação do sogro, que se encarregou de iniciar a carreira do genro, e o bairro do casamento. Estava acompanhado de um rapaz meio desconjuntado que aparentava cerca de trinta anos e apresentou-o como primo, morador de Brasília, seu futuro sócio. Era primo do sogro. Ele e o sogro se entendiam bem. Dirigia-se ao rapaz como primo e vice-versa. Ou porque não perguntou ou porque o esqueceu, Sylvia não soube me dizer o seu nome, quando me contou o episódio. Lola, a manicure que eu contratei para embelezar nossa mãe e que Sylvia incorporou à sua trupe de serviços, lhe pintava os cabelos e fazia as suas unhas na sala. Sylvia ficou constrangida por ser vista por um estranho em situação de intimidade feminina. Contratada para o encargo, Lola era coadjuvante fundamental nessa empreitada. O nome combinava com a figura. Era avó aos quarenta

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anos, mantendo-se elegante e empertigada como se fosse dançar uma rumba, de saltos altos e saias rodadas. Sorridente e falante gostava de dar palpites e conselhos nas atividades domésticas. Enquanto trabalhava, contava histórias balançando as saias e os cabelos. Quando nossa mãe morreu, anos depois, ela exclamou feliz como uma mexicana que festeja seus mortos: — Ainda bem que foi enterrada com unhas feitas. Contava o dia a dia e os percalços da vizinhança da Zona Oeste da cidade que crescia com a nova classe média em ascensão. Dessa vez relatava com detalhes como lhe furtaram o celular comprado recentemente. O primo animado com a conversa contou, por sua vez, o episódio que vivera no Centro da cidade com Michel: Por segurança, o primo chamou Michel para acompanhá-lo a uma casa de câmbio trocar reais por US$3.000,00 para uma viagem que faria a Cuba. Michel, que tinha 1,92m de altura e pesava quase 80 quilos, colocou as notas no bolso do paletó do terno. Um pivete teve o topete de passar a mão no bolso de Michel, pegar o dinheiro e correr. Muito rapidamente, contou o primo, antes que pudesse se dar conta do que estava acontecendo, Michel passou por cinco pivetes do bando, pegou o dinheiro do quinto, graças a seu porte, sua experiência de basquete e as suas técnicas de krav maga. Sylvia ouviu uma nota fora da partitura com menção do krav maga, pois sabia que Michel não havia tido contato com esse combate iniciado na Bratislava no final dos anos 1930 e associado às Forças Especiais de Defesa de Israel. O resto da melodia se harmonizava com as atitudes rápidas e eficazes do jovem acostumado a lidar com pivetes desde a adolescência. As ocorrências de episódios de natureza violenta com meus sobrinhos foram comuns na adolescência desses meninos que

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circulavam pelos bairros do Rio de Janeiro. Foram orientados a entregar sem reagir os objetos que portavam e voltavam muito revoltados com a violência. Michel mesmo já tinha sido obrigado a entregar um casaco que barganhara para não deixar ao bando seu novo tênis de basquete. Outro sobrinho, Bernardo, tivera uma experiência sui generis quando voltava da escola de ônibus. Sentara-se no banco

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traseiro, antes da roleta. Um pivete pediu-lhe o dinheiro. Quando abriu a mochila, lembrou-se que nada tinha, pois havia se esquecido de pegar o troco da merenda. O moleque penalizado pagou-lhe a passagem. Sylvia não denunciou o desafino. Silenciou desconfiada da associação feita pelo primo, que no meio da conversa disse pertencer a Opus Dei. Alguém dessa organização, pensou Sylvia, é capaz de confundir astúcia carioca aprendida na rua, com krav maga. Com graça, Michel contou o restante do episódio orgulhoso e risonho, sem mencionar nenhuma técnica importada. Apresentou como troféu o resgate extra, retirado do bolso do pivete: além dos dólares furtados, dois reais e um cartão telefônico. data?

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AMIGO ESPECIAL “... a memória e o dom de lembrar, dos quais provém todo desejo de emperecibilidade, necessitam de coisas que os façam recordar, para que eles próprios não venham a perecer” Hannah Arendt

OS DISCURSOS José Guaranys gostava de discursos. A cada ocasião festiva – aniversários, casamentos, batizados – lá estava ele pronto para falar e convocar outros participantes a usar da palavra. Em um dos meus aniversários, em um sítio que alugamos em Araras, Selma preparou uma feijoada, daquelas que só ela sabe fazer. Zé, além de discursar, convocou meus

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filhos a exercitar a oratória. Guardo ternas recordações sobre seus conteúdos. Isso porque eu merecidamente tinha fama de pouco disciplinadora e excessivamente protetora. Tinha pudor em telefonar para meus filhos em acampamentos, viagens, excursões e noitadas fora. Mas se não tivesse notícias, não conseguia sossego. Acabava ligando. Nessa tarde, Marcos, meu filho, declarou que adorava essas minhas investidas, sentindo-se amado, apaziguando meus receios de mãe invasora à la Woody Allen. Nesse dia, um dos convidados foi o Paulo Sergio. Quando ele se foi, Zé me chamou para uma conversa particular manifestando o seu desejo de que meu ilustre convidado fosse inserido no nosso projeto de “asilo pra frente”. Tratava-se de outra característica do Zé Fernando: fazer projetos. No fim de semana seguinte, aniversário do Rafael, Paulo Sergio já dormiu na minha cama e já fazia parte do núcleo. Faz-se necessário esclarecer que esse projeto seria para quando a gente ficasse bem velhinho, os filhos não aguentassem mais nossas idiossincrasias, moraríamos em uma propriedade com uma área comum para o lazer, uma casinha individual e toda infraestrutura para as necessidades, não só de saúde, mas especialmente de divertimento e prazer. No aniversário de 67 anos de nosso amigo Zé, desta feita em Búzios, ele iniciou seu discurso dirigindo-se à família e aos amigos presentes, explicando que muitos dos amigos também faziam parte da família. Para exemplificar, menciona ele, a Sandra, isto é, eu, que era mais do que amiga, era a família ampliada. Apesar de já saber desse conceito, quando a Lara ao me encontrar, exclamou ”tia Sandra”, ouvir explicitado em um discurso transformou-se em um júbilo.

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AS DÉC ADAS Conhecemo-nos na década de 1960 no Movimento Estudantil na PUC. Gosto de me lembrar daquela época como nosso Jardim da Juventude. Nós só queríamos mudar o mundo, convictos de que poderíamos. Ali, nas salas, jardins, pilotis, café e quadras para esporte e shows, além de estudar a matéria específica de formação profissional, consolidávamos valores que norteariam a nossa entrada no mercado de trabalho, na constituição de famílias, na vida política e social do país. No final da década, a ditadura se escancara. Alguns estudantes morreram e ficaram presentes em nossa memória, outros foram presos e torturados. Há os que entraram na clandestinidade, os que se exilaram e os que foram exilados. É a época da dispersão, que se estende pela década de 1970 até a anistia no final do período. Para nós é a entrada no curso fundamental da vida adulta. Reencontramo-nos na década de 1980. Com carreiras, filhos, ex-cônjuges, amigos comuns, alguns perdidos, outros mantidos, alguns novos. Eis então que José assume a categoria de agregador, arrebanhando esses amigos para uma convivência ativa que se estende pelos anos 1990 e 2000, adentrando o século XXI. Quase meio século! AS GR ANDES E PEQUENAS FESTAS Não há como esquecer as festas em São Conrado, pois elas eram numeradas em fitas cassetes. Danças e músicas eram nossa forma de comemorar a vida. Ouvi dizer que alguém está recuperando essas saudosas fitas que a tecnologia transformou em dinossauros. Na verdade, começo a perceber que nós somos os dinossauros, já que as mudanças transformam muito rapidamente nossos hábitos, mas o Zé mantinha o que é mais importante: o hábito de reunir amigos. E mais, incorporava os 32


filhos dos amigos em nossa “tchurma”. Muitas relações foram estabelecidas nessas ocasiões. Além de organizar as próprias festas, nosso amigo incentivava os demais ao organizar comemorações, dando palpites, tirando os brinquedos da sala, diminuindo a luz, interferindo para que o ambiente se adequasse às danças. Essas eram as grandes festas. Havia também as pequenas, mais íntimas do dia a dia. Eram almoços e jantares em que ele introduzia os temas. Lembro-me de um almoço, no Centro da cidade, onde trabalhávamos na década de 1980, já separados dos nossos primeiros cônjuges, quando ele introduziu o tema da busca por novos parceiros. Fez-nos desenhar um mapa no qual tínhamos de encaixar o amor, começando pelo seu desenho. Este se constituía de círculos concêntricos em que o amor ocupava o centro. Não me recordo da hierarquia dos demais círculos. O meu desenho era um mapa cheio de reentrâncias e saliências, em que filhos, família

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e trabalho estavam tão estabelecidos que o ser que se aventurasse a se encaixar tinha de ser contorcionista. Evidentemente, ele achou a parceira mais rápido do que eu, quando encontrou a Selma, que acertou o tamanho da bermuda no presente de aniversário, adaptou a reforma da casa a ela e seu conjunto de filhos, os quais ele agregou aos seus. A casa foi vendida, outros namoros surgiram até ele se estabelecer em novo casamento com a Lílian, sempre o amor no centro, estendido a seus amigos, com as parcerias antigas fazendo parte. Orgulho-me de participar desse universo e sinto imensa falta do meu amigo muito, muito especial. 25 junho 2014

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CONVERSA DE BARBEIRO O CEMITÉRIO “Por que é tão difícil manter e romper as tradições?” Foi o que constatei, mais uma vez, no enterro da Bety, prima de meu pai, filha de Samuel Rinki, a primeira da geração desses primos, filhos de imigrantes judeus do Leste Europeu a casar-se e constituir família com um não judeu. Ela foi enterrada no cemitério judaico de Vilar dos Teles, um distrito do município de São João do Meriti, onde estão os restos mortais do Marcos, meu filho, bem como o de minha mãe, Estella. A cerimônia foi conduzida pela Chevra Kadisha (Associação Sagrada) do Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 2013. No cemitério peguei o guia do enlutado onde li que “acompanhar o corpo (funeral) e participar do enterro em si é considerado uma grande mitzvá, um preceito da Torá, uma bondade verdadeira, já que o falecido não tem como retribuir pelo que lhe foi feito”.

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No caminho de volta, de carona com o Mendel e Anna Helena, filhos da Sônia, prima do meu pai. Conversamos sobre as tradições, manutenção e rompimento, quando lhes contei a história do barbeiro que agora reproduzo. O ENCONTRO O ano era 1943. Estella estava com 22 anos, e a família e os amigos procuravam um parceiro para ela. Mas a moça era considerada difícil de encantar-se pelos jovens que lhe eram apresentados. Invariavelmente ela apontava defeitos intransponíveis. Era bastante exigente, na opinião de seus familiares. Os Berenzons, sua família, moravam em São Paulo, capital, depois de terem se estabelecido em Cruzeiro, a primeira moradia depois da Bessarábia. Elias, por sua vez, era considerado solteirão, pois já passava dos trinta, mas não estava muito interessado em se casar. Levava uma vida muito animada, segundo contavam aqueles que o conheceram em Barra Mansa onde moravam os Bondarovskys. Era uma família bem pequena: apenas a mãe viúva, Dora, e seus dois filhos, Elias e Samuel. Em algumas culturas existe a figura do “casamenteiro”, em inglês matchmaker. Dizem que na Índia esse personagem se chama “astrólogo hindu”, convocado pelas famílias que querem casar seus filhos para que o astrólogo informe aos noivos que está escrito nas estrelas que aquela união será santificada. Na cultura dos judeus ashkenazim, essa figura se chama shidduch, o que significa o encontro entre um homem e uma mulher ou o sistema de introduzir um casal de solteiros visando a um futuro casamento. Ignoro quem tenha feito a aproximação entre Estella e Elias. Essa aproximação começa, frequentemente, com alguém pró-

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ximo de um membro da família ou com pessoas que fazem desse processo uma mitzvá. A mitzvá ocorreu em Barra do Piraí, na casa dos tios do rapaz, Jacob e Clara Rinki. O pai dela, Leon Berenzon, viera antes conhecer o possível pretendente e assegurara à moça, com o seu português de sotaque carregado que o rapaz era “a morreno”, pois era essa a preferência declarada da jovem. No segundo encontro do casal, ainda em Barra do Piraí, Elias foi ao barbeiro, com quem teve o seguinte diálogo: — Quem é essa moça bonita que vi com você, Elias? É sua noiva? — Não é por enquanto, mas pode vir a ser. Ao relatar o diálogo para Estella, ela afirmou categoricamente: — Pode vir a ser, não. Vai ser! E assim foi. julho 2014

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OUTROS MUNDOS Aos poucos fui percebendo que meu corpo já não dava conta das tarefas diárias. Eu andava sentindo mesmo umas coisas esquisitas que, claro, não levei muito a sério. Sempre fui independente e continuei até onde pude. A mão começou a tremer. Tomei um remédio e dominei as tremedeiras e não contei a ninguém. Não queria dar preocupação. Fiquei na dúvida ao fazer um cheque, sem saber se eram milhões de cruzeiros, cruzados ou cruzeiros novos. Também, a moeda trocava de nome toda hora e muita gente ficava confusa. Sabia que como comerciante não podia vacilar. Escrevi o nome do dinheiro num papel. Guardei-o e consultava quando preciso. Não errei mais. Fui achando aborrecido me arrumar. Sempre fui vaidosa com muito prazer em me esmerar nos vestidos, joias, cabelos, unhas e maquiagem. Sabia-me bonita e era elogiada. Comecei a achar penoso experimentar roupas e ir ao dentista.

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Meus filhos começaram a me dar ordens invertendo o processo maternal. Detestei obedecer. Era autoritária, reconheço, porque sabia o que era melhor para mim, meu marido e para eles e comandava com meus olhos azuis que viam mais longe. Afinal, eu era vidente, tinha mediunidade, diziam-me os espíritas que me encontravam casualmente. Via o presente, o passado e o futuro de cada membro da família. Até que o presente começou a me escapar. Os dias da semana pareciam-me iguais. Não via diferença entre a quarta e o domingo. Já não sabia se aquele meu neto era o irmão ou ele mesmo, de quem eu mais cuidara. Ficaram parecidos depois de adultos. Ele queria colocar meu nome na filha que iria nascer, mas a tradição exigia que o nome fosse dado em homenagem aos mortos. 41


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Sonhava com meu pai e minha mãe. Quando acordava tinha dúvidas se eles ainda estavam lá. Desapeguei-me de minhas louças e pratarias. O que valiam elas se já não havia jantares e convidados. Nem me lembrava das joias que havia ganhado durante a vida. Elas estavam trancadas no cofre e esqueci o segredo. No dia marcado para o nascimento da bisneta, decidi que era hora de partir do planeta e viajar. Para outros mundos. Dei dois suspiros e fui. A menina nasceu linda uma semana depois. Ganhou meu nome. Tinha já extraído o imperecível do transitório.

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ELEIÇÕES O dia amanheceu ensolarado. Seu Elias estava radiante em ser mesário naquelas eleições presidenciais de 1955 na seção do Grupo Escolar Barão de Aiuruoca, na cidade que rapidamente se transformava de rural para urbana no eixo Rio-São Paulo. Voltara do pleito dando risadas de um eleitor que saiu da cabine de votação pedindo orientação ao mesário: – O prefeito Moacyr mandou eu votar com uma cruz no Sr. João Celino. Não acho esse nome. Os candidatos eram Juscelino Kubitschek, governador de Minas pelo PSD tendo como vice João Goulart do PTB, líder gaúcho que havia sido ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas. O suicídio de Vargas, que se matou com um tiro no coração em agosto de 1954, tinha estarrecido o país. Seu Elias encantou-se com a plataforma política voltada para o desenvolvimento, com o Plano de Metas estabelecido, cujo lema era “50 anos em 5”. Engajou a família na campanha. Além de concordar com a plataforma, via perspectivas de engrandecimento do seu ganha-pão: a loja de móveis que 44


se ampliava, com a substituição do baronato rural pela política trabalhista da chapa herdeira do governo Vargas. Sua mulher, solidária aos anseios do marido, transformou-se em presidente do Comitê Feminino da campanha JK e Jango na região. Como tal, recebeu dona Sara Kubitscheck em sua pomposa residência, construída em 1912, comprada de um fazendeiro de café, com quitutes e requintes. Junto com dona Sarah vieram as moças do PTB que ensaiaram com as crianças da casa as musiquinhas para cantar nos comícios: Foi uma arte que o diabo um dia fez unindo o Jânio ao Juarez mas a turma lá de trás gritou Juscelino já ganhou

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Juscelino já ganhou e Foi numa casca de banana que pisei pisei escorreguei quase caí mas a turma lá de trás gritou Juscelino vem aí Juscelino vem aí. Juarez Távora era o candidato da UDN. Foi um dos mentores da articulação política que resultou no suicídio de Vargas, além de líder dos que se opunham à criação da Petrobras. Defendia a posição que ficou conhecida como entreguista em relação à exploração do petróleo. Foi apoiado por Jânio Quadros, o então governador de São Paulo. O terceiro candidato daquela primeira eleição com cédula única era o Adhemar de Barros, conhecido como “rouba, mas faz”. Para completar o quadro de candidatos havia ainda o fundador e líder da Ação Integralista Brasileira, inspirado nos princípios do movimento fascista italiano. Caso ganhasse, seu Elias tinha muito a perder, pois combateu o integralismo com fervor e medo. Sérgio, seu filho de apenas seis anos, se engajou na campanha que o pai se empenhava, com seu coração ingênuo de criança. Montou na porta da loja de móveis uma banca com folhetos de propaganda da dupla JK e Jango. Cantava e dançava, nos palanques dos comícios na sua cidade e naquelas vizinhas, 47


junto com sua irmã de oito anos, as musiquinhas aprendidas. A apuração dos votos demorava mais de dez dias. Começou por São Paulo, onde Adhemar de Barros, herdeiro de família de cafeicultores, liderava na contagem dos votos. Um passante para mexer com o menino brincou: – E aí Sérgio? Adhemar está ganhando! Sergio tapou os ouvidos e entrou correndo na loja. Depois que a loja fechava, iam todos, adultos e crianças, para as casas das famílias dos correligionários amigos, ouvir a apuração no rádio. As crianças brincavam de pique-esconde nos quintais, enquanto os adultos aflitos acompanhavam os resultados. No fim da contagem a dupla JK e Jango ganhou as eleições e as metas foram cumpridas. Em 2014, Sérgio encontra casualmente Alberto, seu amigo de infância, que em 1955 tinha quatro anos e era chamado de Betinho. Este, então, recorda que conheceu Juscelino, o presidente da República, na casa do seu Elias, levado por sua mãe em uma recepção. Sérgio não denunciou o equívoco da memória do amigo, pois sabia que o presidente nunca estivera em casa de seu pai. Veio-lhe à mente a frase do filme O homem que matou o facínora, de John Ford: “Aqui é o Oeste senhor. Quando a lenda vira fato, publique-se a lenda”. Na véspera da eleição de 2014, que saudade do pique-esconde de 1955 e que vontade que houvesse um Plano de Metas para educação e saúde. 2014

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ELIANA E IVANILDA – Dona Laura, vou lhe contar o sonho que tive com a Ivanilda esta noite. Ela estava saltitante, magra e sorridente. O dia estava bonito, estávamos em uma varanda em frente ao mar de onde víamos a ponte Rio–Niterói e a Terceira Ponte. Ela dançava e eu dizia para ter cuidado para não cair. – Terceira Ponte? Onde fica, Eliana? – Em Vitória, onde eu a conheci em março de 1995. Ela dançava forró, mas era triste, rancorosa com a mãe que tinha lhe tirado o filho quando nasceu. O menino devia estar com mais de um ano. – Tirado por quê? – Porque ela era muito nova e não teria condições de criar. A mãe deu para uma família que a Ivanilda não sabia qual era. – Ela desistiu de procurar? – Sim, era muito jovem e se convenceu que não poderia mesmo criar. Começou o namoro com outro rapaz. Aquelas paixões repentinas que a senhora conhece. Depois me mudei para o Rio. Fui visitá-la em Vitória. Ela também veio me ver no Rio e nos 49


correspondíamos, embora ela não soubesse escrever direito. A patroa escrevia para ela. Quando se decepcionou com o namorado, ficou mais triste ainda e decidiu vir trabalhar no Rio. Ficou lá em casa até eu arranjar um emprego para ela com a dona Isa, com quem aprendeu a andar no Rio. Ganhou confiança. A dona Isa inscreveu-a em um curso com o chefe de cozinha José Hugo Celidônio. Lembra como ela fazia pratos sofisticados e saborosos com o maior prazer? Até que resolveu mudar de emprego. – Por que ela quis sair? – Os gênios das duas não combinavam. Foi então que ela foi trabalhar com a mãe da senhora que também não dava certo com ninguém. Embora eu não conhecesse essa história pregressa da Ivanilda, a partir daí eu a acompanhei e torci por ela. Minha mãe era independente e ativa, trabalhando fora e prescindindo de ajuda para cuidar da casa. Quando ficou velha o bastante precisou de acompanhante. Recusou várias pessoas porque achava magrinhas e insignificantes ou porque muito

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grandes e assustadoras. Ajeitou-se com a Ivanilda, quando já morava no Leblon, com minha irmã – comandante médica da Marinha – com quem aprendeu a comandar. Ares de baronesa, minha mãe gostava de tomar água de coco à beira-mar. Num desses passeios cogitaram, as duas, mudar-se para a avenida Delfim Moreira para melhor ver o mar. Num dia, sentadas no banco da praia perceberam um edifício todo escuro à noite. Acharam que era um prédio abandonado. Foram perguntar para o porteiro se tinha apartamento para vender. Por sorte não tinha, pois as duas deliraram e riram juntas. Fizeram uma boa dupla. Ivanilda, como todas as jovens, sonhava com um grande amor. Enrabichou-se no Rio com um homem casado, porteiro de um prédio da rua, e a mulher, ao descobrir, passou a persegui-la. Em seguida, envolveu-se com um rapaz dono de um bar na Rocinha. O rapaz morreu de Aids. Tentou levar o bar adiante com a mãe do namorado. Nessas idas e vindas de van do Leblon para Rocinha, encostou-se no Ferrugem, trocador da van que fazia o trajeto até Rio

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das Pedras que, além de levar os 16 passageiros sentados, abrigava mais quatro ou cinco pessoas em pé roçando uns nos outros. Minha mãe morreu no dia do debate entre Lula e Serra, em outubro de 2002. Ivanilda me ligou avisando que estava passando mal. Tinha aprendido também a lidar com situações delicadas sem perder a calma. Minha irmã ficou com ela em casa até a licença médica por gravidez da Bruna, a filha linda que teve com o Ferrugem. O parto foi difícil. Logo depois, uma dor de cabeça insuportável e o diagnóstico: esclerose múltipla. Primeiro um olho paralisou, em seguida as pernas, depois incontinência urinária. Engordou muito e teve escoriações pelo corpo. O trajeto da van mudou: Rio das Pedras-hospital, hospital-casa, até que o Ferrugem, como era esperado, exauriu-se. Ivanilda voltou para o Espírito Santo. Bruna foi para a escola e aprendeu a ler. É linda e esperta. A avó, mãe da Ivanilda, mudou-se de Marechal Floriano, cidade cercada pela Mata Atlântica, onde tem uma casa com o segundo marido e mais cinco filhos, para Vitória para acompanhar o trajeto da casa para o hospital e vice-versa.

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Ivanilda continuou em Vit처ria com m찾e e filha tentando ver a Terceira Ponte apesar da cegueira quase completa e de n찾o mais poder sentar-se na cadeira de rodas especial levada do Rio. Sucumbiu, mergulhando no mar da eternidade. Bruna continua linda e esperta. 2013

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PAPAI NOEL Gabriel nasceu em nove de dezembro de 2000. Seis anos depois, seu tio materno foi morto em um assalto num subúrbio do Rio, deixando a família inconsolável. No início de 2007 seu pai foi enterrado. Ele ainda não conseguia entender direito como o coração daquele pai, tão grande e tão destemido parara de bater assim de repente, na sua frente, naquele Carnaval em Angra, para onde ele levava suas fantasias para brincar. Perguntava incessantemente o que era a morte, se haveria sobrevivência, se havia alguma coisa errada com aquele coração, se veria o pai de novo, se precisava mesmo estudar, como era o céu, se o pai virara estrela, quem era Deus. A incredulidade que acompanha o luto infantil ainda estava presente quando, em julho de 2008, seu avô materno, relativamente jovem, considerado um herói pela família, colapsa repentinamente. A família da mãe sofria desnorteada. Naquele espaço curto de tempo eram muitos entes queridos, entre os quais dois pais a serem lembrados. O Noel, que morava no Polo Norte, foi esquecido. 54


No dia 25 de dezembro a tia, que não tinha filhos, fez um almoço de Natal e convidou as crianças da família. Achava aquela senhora seu dever alimentar ilusões infantis. Essa tia havia incorporado o arquétipo de velha que já nascera sábia, portadora de sabedorias populares e mitológicas. Na casa da tia, ele se deparou com os presentes deixados por Papai Noel. A primeira pergunta saiu triste: – Por que você acha que o Papai Noel não passou lá em casa? A tia aventou várias hipóteses: quem sabe ele não recebeu uma carta, quem sabe ele errou o caminho, quem sabe ele ficou preso na neve... Com olhinhos incrédulos ele perguntou à tia: – Como Papai Noel entrou na sua casa? Pela janela? A tia respondeu com voz firme, tentando disfarçar a ideia que surgiu como uma nuvem prestes a se dissolver: – Claro que não! Não vê que as janelas têm redes de proteção? Papai Noel gritou pela pequena chaminé que tem lá na cozinha: “Tia Cleuza, abre a porta!” Eu abri e ele entrou com os presentes. 55


Indo até a cozinha, Gabriel examinou a estreita tubulação do exaustor do fogão que varava a área de serviço. Pareceu duvidar. Enquanto refletia duvidando, chegou a prima com quem ele gostava de trocar ideias sobre coisas que não entendia bem. – Fernanda, sabe como Papai Noel entrou na casa da titia? Contou a história para a prima da mesma idade, mais cética, que duvidava da existência de um deus, e esperou a reação. A prima foi até a cozinha e olhou atenta a tubulação. Achou plausível, aceitando a hipótese de bom grado, pois havia presentes também para ela. A dúvida que persistia só foi desfeita no ano seguinte, quando Gabriel, já com nove anos, encontrou no youtube uma história que debochava dos critérios do velhinho que dera presentes bons a quem não merecia, e presentes ruins para o personagem falante em linguagem chula, com muitos palavrões. Ouviu a mesma gravação centena de vezes, junto com o tio, que gostava das críticas sociais embutidas na mensagem. Riam juntos. Era a vingança contra o velhinho vestido de vermelho que trazia fantasias importadas do Polo Norte para o calor do verão carioca. 2014

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DESAPEGO Cadê a esquina que estava aqui? Os três irmãos olham em silêncio para o terreno vazio onde, antes, fora construída a casa centenária com quintal e galinheiro, os seus espaços da infância. Havia ali também a concessionária e a oficina de automóveis do tio onde no princípio do século XX situava-se a cocheira, como contaram os mais velhos. Observo a cena como amigo da família. Também sinto falta da esquina, tendo frequentado aquela casa. A irmã mais nova com o espírito prático, ao lembrar a inscrição em um trabalho do artista Luiz Ernesto que vira recentemente na casa de uma amiga, arrisca: – Os instantes se renovam não se resignando às expectativas habituais. A mais velha, dramática, colecionadora de memórias, pega um ladrilho do chão para guardar de lembrança como se fosse um pedaço do muro de Berlim. Essa irmã vive olhando para trás, tentando segurar o tempo. Nem parece que foi educada em família de imigrantes, incentivada a olhar para frente e 58


abandonar o que ficou. Tira uma foto para guardar no baú que mantém em sua casa no Rio. Resiste ao esquecimento. Pensando bem, a casa foi mesmo um muro que dividiu a família em duas bandas. Passaram quarenta anos discutindo que percentagem dos imóveis cabia a cada banda, já que a mãe daqueles três irmãos continuou por muitos anos morando sozinha sem arredar os pés nem da casa nem da loja em outro terreno. Ela deixou São Paulo quando se casou na década de 1940 e fincou os pés ali por mais de 60 anos. As duas bandas se acertaram na segunda década do novo milênio. Fui testemunha, pois também fui advogado da banda desses três.

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O irmão do meio sorri amarelo. Ele é o negociador, o árbitro nas discórdias. É ele quem resolve. Deu a palavra final para a venda dos imóveis. Será que as duas irmãs trazem ainda resquícios do patriarcalismo? Tento descartar essa hipótese. Afinal, as duas são profissionais liberais bem-sucedidas e fazem parte da terceira geração de mulheres trabalhadoras independentes na família. Além do mais, são cheias de opiniões, como a mãe, a quem dei assistência como amigo e advogado quando já morava sozinha. Os pais desses três irmãos foram meus padrinhos de casamento. Há mais de meio século os três não moram mais por essas bandas, desde que foram enviados para estudar na capital. Eu também fui, mas voltei para as minhas origens. Os três construíram suas vidas longe dessas propriedades. Aliás, ninguém da família está aqui, nem no cemitério, onde algumas pessoas vão buscar lembranças e prantear seus mortos. O espanto inicial vai dando lugar ao desapego, diz-me a mais velha. A edificação era herança da avó. Dois dos irmãos agora são também avó e avô. Vendida a propriedade – ocupada por uma escola nos últimos anos –, a demolição já deveria ser esperada. Além de fotos e desenhos restam palavras que invocam um passado a ser contado, como faço agora. Em honra a essa amizade de mais de meio século. Amizade não é algo que se ache em qualquer esquina. Achei nessa. 2014

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O RISÍVEL APRENDIZADO DE ISAAC Isaac e Maria, imigrantes, recomeçavam a vida modestamente. A cidade de Barra Mansa, no Vale do Paraíba do Sul, lhes pareceu promissora no final da década de 1940 por localizar-se entre as metrópoles Rio de Janeiro e São Paulo e ainda ter um ambiente de interior. A moradia alugada ficava nos fundos da casa de Dona Orminda, viúva de meia-idade, no casarão de janelas verdes da Av. Joaquim Leite onde se concentrava o comércio. Essa escolha não era fortuita, pois a casa ficava a poucos metros da bonbonnière que o casal abriu na mesma rua, próxima do cineteatro Éden. Esse cinema construído na década de 1920 com mais de 700 lugares ampliou sua fama com a introdução do cinema falado, dez anos depois. A partir dos anos 1950 passavam animados filmes seriados aos domingos. A lojinha da bonbonnière, de uma só porta, foi instalada estrategicamente, e o capital inicial, suficientemente pequeno. Entre os atrativos – chocolates, amendoins confeitados, chicle61


tes e doces – estavam balas Ruth e Juquinha, muito populares. Surgiam outras balas com figurinhas de futebol com o incentivo daquelas premiadas que contagiavam crianças e adultos nas vendas, trocas e buscas de figurinhas raras no jogo do bafo. A sede dos transeuntes era saciada com refrescos de groselha, abacaxi e menta expostos em tubos de vidro e servidos por Maria em copos que acrescidos de soda transformavam as bebidas em espumantes coloridos e gelados irresistíveis para as crianças, lembra o então menino Luiz Augusto, que frequentava as sessões do Flash Gordon com sua babá Eva no cine Éden. À esquerda da casa de janelas verdes sentia-se o cheiro da padaria de Dona Carmen, imigrante italiana, com brinquinho de ouro adornando o rosto e um coque nos cabelos grisalhos. Circulando entre a cozinha e as cestas de pães, com seus largos quadris, sua baixa estatura e muito agitada, comandava o marido e o filho claro de bigodes retos para que a freguesia tivesse sempre pão quente. Mais dez passos, a loja do Sr. Abdo, uma das três lojas de tecidos da cidade, todas pertencentes às famílias sírio-libanesas. O filho Michel mantinha uma freguesia de classe média que, acompanhada das costureiras, escolhia as organzas, linhos, rendas e brocados. Colada à padaria via-se a farmácia do solteiro Chiquinho. Na ausência de fregueses, Chiquinho descansava encostado no poste em frente onde dizia estar aproveitando a vida não querendo namorar as moças que por ele se encantavam. Esse era o caminho percorrido até se deparar com as três portas de ferro da loja de móveis do Elias, de quem ficaram logo amigos enquanto assimilavam a forma de vida do novo país e o comportamento das pessoas. Isaac observava como os homens se abraçavam, dando pancadinhas nas costas uns dos outros, em uma proximidade física com gestos jamais vistos por aqueles novatos na cidade.

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Elias, muito expansivo e brincalhão, brasileiro por opção, era filho de uma viúva que migrara nos anos vinte da Rússia, foi logo explicando para os vizinhos que a Galícia de onde provinha o casal não era a espanhola, embora Isaac pudesse ser confundido com um cigano espanhol, com sua pele morena, cabelos e bigode preto e olhos verdes. Maria se assemelhava a uma camponesa portuguesa com pele muito branca, olhos claros, corpo roliço e rosto contornado por tranças presas no alto da cabeça. A Galícia do casal, situada a oeste da Ucrânia e ao sul da Polônia, era aquela que pertenceu ao império austro-húngaro e existiu até o final da II Guerra Mundial. Essa região foi ocupada

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pelo Terceiro Reich quando da invasão da Polônia. Isaac e Maria tinham números tatuados nos braços, mas era assunto que não gostavam de rememorar, sequer comentar. Elias falava em iídiche com o novo casal que aprendia o português e previu que deveria prosperar, pois os galicianos eram tidos gente muito esperta pelos judeus russos. A bonbonnière não tardou a garantir o sustento da pequena família que ganhou um novo membro com o nascimento de um menino, moreno como o pai, que recebeu o nome José. Zezinho era ainda um bebê quando Isaac, iniciando-se no ramo dos transportes, comprara um caminhãozinho e contratara um chofer, pois não sabia dirigir, e Maria dava conta de manter o comércio, trabalhando com afinco. Elias, por sua vez, já era pai de uma menina e esperava que seu segundo filho fosse um varão. Os deuses atenderam suas preces e em abril de 1949 nasceu seu filho que, em homenagem a Salomão, seu pai, vítima da gripe espanhola dos anos 1920, recebeu o nome de Shlomo em hebraico, como manda a tradição herdada. A mulher e a criança ainda estavam no hospital e Elias conclamava os amigos a visitá-los, enfatizando a beleza e a robustez do novo infante. O hospital mais moderno da região era o da Companhia Siderúrgica Nacional situada em um distrito da cidade de Barra Mansa, chamado Volta Redonda, em referência à curva que o rio Paraíba do Sul faz naquela localidade. Isaac, confirmando a esperteza, entabulara negócios de cargas daquela companhia, criando uma firma, que mais tarde se transformaria em uma poderosa empresa de transporte. Como se deslocaria para bem perto, foi um dos primeiros a chegar ao hospital que fora inaugurado junto com a Companhia. Entrou no quarto deparando-se com a mulher de Elias que amamentava um recém-nascido negrinho.

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— Não é lindo meu filho? Perguntou Elias. Isaac empalideceu. Arregalou os olhos verdes, ressaltado pelas grossas sobrancelhas pretas e não conseguia emitir nenhum som. Pensava em iídiche, pois não tinha ainda aprendido a refletir em português em situações constrangedoras. [— Coitado do Elias!] Este insistia sorridente: — Então não achou meu filho bonito? Isaac olhava a criança, a alegria do pai, a tranquilidade da mãe e não achava o que dizer em nenhuma língua. Continuava matutando: [— Coitado do meu amigo!] A criança passou a sugar o outro seio, e Isaac, olhando agora para o chão, permanecia mudo, sem enfrentar os olhos azuis da mãe ou a fisionomia sorridente do pai. Ficou assim parado em estupor quando percebeu entrar uma enfermeira no quarto com uma criança loura de olhos azuis, embrulhada em uma colcha de crochê da mesma cor que realçava a ascendência eslava do bebê. Gritou então aliviado percebendo ter apreendido que no Brasil os leites maternos se misturam, como todo o resto: — Shlomo é este, é este! Você me enganou!

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CASAMENTOS E RETIRADAS Saí do nosso apartamento da avenida Atlântica no dia do meu casamento em de agosto de 1970. Pela manhã, fomos a pé até a rua Djalma Ulrich, onde no cartório aconteceu o casamento, que teve como testemunhas o tio Samuel e a amiga Vera Maria. No almoço, no apartamento, compareceram a família e alguns poucos amigos e à noite embarcamos para Houston com poucos dólares na carteira, doados pelos meus irmãos, Sérgio e Cleyde, de sobras de suas viagens e uma promessa de bolsa de estudos de doutorado para o meu marido Carlos. Sérgio estudava engenharia na PUC. Havia se formado como oficial da reserva da Marinha com cerimônia pomposa para orgulho do meu pai, que sempre sonhou em ter um filho na Marinha. O sonho se realizou em dobro, pois mais tarde assistiu à cerimônia de entrada da Cleyde, que passou no primeiro concurso para ingressar como médica no Corpo Feminino da Marinha. Naquela época, ela ainda fazia o curso secundário no Colégio Brasil-América na turma que se preparava para o vestibular de medicina.

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Eu tinha uma relação terna com meu tio Samuel, apesar de minha mãe não se dar com a sua mulher, o que me valeu uma infância com pouca convivência com meus primos. Nesse dia, titio me mostrou um retrato meu que guardava, com orgulho, na carteira– a primeira da família nascida no Brasil. Eu era parecida com a mãe dele, segundo consta. Sérgio já namorava a Cynthia; casaram-se em 1972 e papai tropeçou no sobrenome dela: Silva. Meus pais planejaram um casamento judeu para a filha mais velha. Sempre faziam arranjos para que eu conhecesse bons partidos. A decepção de me ver casada, naquela cerimônia singela com o Carlos já era grande. O Sérgio quis poupá-los de outra. Quando perguntavam o sobrenome da namorada, ele dizia o Shermam da família da mãe. Até que um dia papai em seu escritório no banco de uma cooperativa que ele fazia parte na rua do Rosário soube que o senhor Jaime, pai dela, era Silva. Quando comentou no jantar, o que eu já sabia, Sérgio abandonou o prato e os talheres e se

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retirou da mesa. Era uma retirada provisória. A definitiva seria em 1972, quando o apartamento foi vendido e esvaziado; ele, formado e sozinho, funcionário novato no IBGE, saiu com uma mala e foi para o Leme, para um apartamento vazio, grande e sujo emprestado de um amigo do papai. Dormiu no chão com uma toalha por três noites. Depois, transferiu-se para a casa do parente de um amigo, o Dude, estudante vindo do Paraná. Dude continuou seu amigo por toda a vida. O fato de papai ser fornecedor de cimento para construtoras no Rio fazia com que relacionasse bem com donos de imobiliárias e construtoras. O Sérgio participava da cobrança desse fornecimento. Como a bolsa de estudo prometida ao Carlos não chegou naquele ano a Houston, nós também dormíamos no chão, até aparecer um colchão descartado no nosso condomínio. A mala do Sérgio merece um comentário à parte: era a mesma que ele levara para a Colônia de Férias Kinderland, em Sacra Família do Tinguá, aos 12 anos quando pegara o trem na Central do Brasil, sozinho, fugido da casa onde dormia em uma cama Drago-Flex. Cleyde, a irmã caçula, não precisou dormir no chão. Passou na Faculdade de Medicina em Volta Redonda e foi dormir na própria cama, com colchão confortável em Barra Mansa de onde só saiu depois de formada em 1977. A retirada nos mostrou que a vida é cheia de altos e baixos e acho que ficamos mais preparados para seguir a caminhada, cada um a seu modo, mas com lições comuns para acompanhar a trajetória, e solidários com os reveses e as alegrias. 2009

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MUDANÇA “Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. “ thiago de mello. “estatuto do homem”, art. vi

Hoje, ao rever minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Nossa turma de engenharia planejou uma viagem à Europa para depois da formatura. Pagamos durante os cinco anos. A maioria o fez com sacrifício. Eu inclusive. Era contra a ditadura, como meus melhores amigos. Fui às passeatas que o Movimento Estudantil organizava. Saí ileso. Reuníamos uma vez por semana com uma dirigente engajada em partido de esquerda ilegal. A nossa dirigente era linda. Nessas reuniões estudávamos a história econômica do Brasil,

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o marxismo e a organização do movimento contribuindo rumo ao socialismo. Era emocionante fazer parte de uma organização clandestina. Sonhava namorar a moça linda mais do que chegar ao socialismo, mas ela não correspondia aos meus olhares cobiçosos. Quando viajei deixei para trás a ditadura, o movimento, cacetadas, calabouço, gás lacrimogênio, tiros e mortes. Na mala nenhum livro de marxismo ou revolução. Quando aportei na Europa a repressão havia recrudescido. Muitos dos meus amigos foram presos. Avisaram-me que nos interrogatórios, para escapar à tortura, colocavam a culpa em mim, pois eu estava a salvo. Pedi asilo na França. O que seria uma viagem leve virou o exílio involuntário. No início me consolei com a solidariedade. Aos poucos fui me sentindo esvaziado. Já não fazia a barba. No inverno tinha preguiça de tomar banho. O metrô tinha cheiro de alho. Apelei para minha namorada. Ela viajou ao meu encontro. Durou pouco sua estada. Não suportou a vida que levava morando em um cubículo, sobrevivendo de biscates. As juras de amor tinham sido feitas em situação promissora. Tive outras namoradas. Sustentava-me pintando paredes e trabalhando em colheitas em vários países: pêssegos na Suíça, aspargos na Alemanha e tomates na Itália. Fui vigilante noturno no Centre Pompidou. Tinha mesmo insônia. Esperei a lei da anistia, que só saiu em agosto de 1979, por sorte antes do meu aniversário de 32 anos, nove dos quais sendo confundido com um árabe dado a aparência e o sotaque, pois embora falasse o francês correntemente, na tabacaria onde comprava cigarro invariavelmente me faziam repetir o que eu queria. Quando cheguei insistiram para que eu entrasse no PT. Es-

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tavam ainda achando que iriam mudar, se não o mundo, no mínimo, o Brasil. Perguntei sobre a dirigente lindinha. Foi estudar nos EUA, casou com um sueco e foi morar na Austrália. Não havia notícias posteriores. Não mudamos o mundo e nem tenho vontade de mudá-lo. Tratei de me adaptar a ele. Arranjei um bom emprego em uma empresa estatal. Constituí família aceitando as juras de amor renovadas pela namorada. Comprei um apartamento no Leme. Saudades da praia. Agora tenho um carro supimpa, uma casa na serra, e meus filhos trabalham em multinacionais. Se quiserem me convidar para jantar lembrando os velhos tempos, não falem em socialismo. Comprem um bom vinho, francês naturalmente, daqueles que não pude tomar quando lá estava. Vamos celebrar a vida que nos resta. Se for para viver de utopias, esperemos a chegada do Messias. 2014

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OURO PRETO E PAROS Conversando com o Roney de carona até o Centro, no caminho para a UFF, surgiu-me a lembrança de uma piada e lhe perguntei: – Você conhece essa que o papai contava? – Acho que você me contou há muitos anos, mas eu não me lembrava muito bem. Meus primos sabem menos histórias que o vovô contava do que eu. – Deve ser porque em cada geração um gosta de contar histórias. Na do papai, era ele e na minha, sou eu. A conversa prosseguiu e eu lhe perguntei como foi a viagem com a mulher e os filhos. – Foi ótima! Em viagem a gente se liberta da rotina e convive mais descontraidamente. Foi então que vim pensando que tenho de continuar contando as histórias do Marcos, que surgem junto com as minhas, não só para os filhos dele, mas também para os outros membros da família. Minhas histórias têm títulos de lugares de viagens, não por acaso, constato.

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No dia 12 de outubro, são três comemorações, embora poucos se lembrem de todas elas: Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil; Dia das Crianças e o Descobrimento da América. Nosso feriado nacional se deve somente à primeira. A nossa Aparecida é a Nª Sª da Conceição de cor escura. No dia 12 de outubro de 1992, era uma segunda-feira, estávamos, o Marcos e eu, em Ouro Preto. Tínhamos viajado em ônibus leito até Belo Horizonte em companhia de minha mãe que queria visitar sua irmã Dora com o marido e seus quatro filhos. Era uma casa grande e animada, com gatos e quintal em um bairro residencial. A mais risonha de todos é minha tia sempre com histórias engraçadas. Muito parecida com minha mãe, é onze anos mais nova, a caçula de cinco irmãos. Tem elegância paulista e temperamento mineiro adquirido. Apressou-se o casamento da tia Dora com seu noivo, o médico mineiro Moisés, em São Paulo, porque a minha avó Maria estava doente, com câncer na vesícula. Minha mãe mandou fazer vestidos de veludo cotelê enfeitados com fita larga de gorgorão vertical para minha irmã e eu para sermos damas de 73


honra. Um rosa com fita azul e outro azul com fita rosa. Viajamos de Barra Mansa a São Paulo de carro, um trajeto que fazíamos costumeiramente. Eu, por volta dos nove anos, e minha irmã, três, com o resto da nossa família. Ao chegarmos ao apartamento no Bom Retiro soubemos que vovó Maria não esperou. Foi-se no dia do casamento então adiado. Um vestido de noiva estava embrulhado em um lençol branco em cima da cama no quarto que dormiríamos. Eu temia que aquele lençol branco estivesse envolvendo minha avó e lá não entrava. Enviaram meu tio Maurício ao templo para avisar aos convidados que não haveria o casamento. Tio Maurício cumpriu as ordens familiares e saiu de órbita. Essa lembrança me acompanhou durante muito tempo e eu admirava como tia Dora havia mantido aquele casamento harmonioso e criado os quatro filhos, agora jovens adultos, alegres e saudáveis, reconhecendo a parte que cabia ao paciente e bondoso marido, quando ela, aos risos, contava as peripécias que no final tinha sempre a pergunta: – Não é Moisés? Ele invariavelmente respondia de forma sorridente e afirmativa.

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Naquele fim de semana do feriado, na casa da minha tia, as duas irmãs riam até se sacudirem com as lembranças. Marcos tomou um banho de banheira e alagou o banheiro. Minha família mineira se lembra do episódio como uma peraltice. No domingo à noite mamãe ficou em Belo Horizonte e o Marcos e eu pegamos o ônibus para Ouro Preto. Chegamos à rodoviária e pedimos informação sobre hotel. A moça que nos atendeu perguntou se gostaríamos de ficar em uma casa. Rumamos para a casa de uma professora de piano. No térreo ficava a sala de estar com um piano que era também uma sala de ensaio de um grupo musical. No segundo andar, cozinha, copa, banheiro e sala de televisão. Nessa televisão acompanhamos na noite seguinte o desastre do helicóptero em que viajava Ulysses Guimarães. No terceiro, uma surpreendente mansarda eram os nossos aposentos. Já aprendera a descobrir novidades de alojamento com meus filhos. Quando o Roney foi passar as férias em Londres, fomos também à Grécia e ali fizemos uma descoberta dessas. Nem eu nem ele conhecíamos aquele país. Em uma agência de viagem em Londres fomos escolher um pacote turístico de orçamento estudantil. Escolhemos Poros, que foi a ilha de Poseidón, uma pequena ilha vulcânica verdejante de pinheiros na zona do Peloponeso pela proximidade com o continente, a apenas 60 minutos usando o flying Dolphin, embarcação rápida que saía do porto de Pireu em Atenas. O pacote escolhido era o que os ingleses chamam de self catering ou apartamentos com serviços. Ficavam em um casario caiado de branco, com janelas azuis, de alguns andares, com entradas independentes, alcandoradas, que seguiam o terreno da encosta. Era verão, embora em Londres fizesse frio. No grupo de viagem, duas inglesas chamaram atenção por acharmos

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que eram típicas: cabelos vermelhos, peles muito brancas, agasalhadas até os ossos, duras no andar e aparentemente tímidas. Instalaram-se ao lado do nosso apartamento. Arranjaram namorados no primeiro dia e deram uma festa com muitas gargalhadas que ouvíamos quando estávamos na varanda. Aparentemente tinham bebido e comentamos como elas haviam se descontraído rápido em solo grego No dia seguinte, bate em nossa porta o dono do estabelecimento perguntando se ouvimos arruaça, pois alguns hóspedes vieram reclamar que não puderam dormir e não se sabia de onde vinha o barulho. Nada que atrapalhasse nosso sono, respondi, não querendo colocar “caroço no angu” das jovens inglesas. Saíamos, o Roney e eu, para a praia pelas manhãs, passeávamos à tarde pelas ilhas, entre elas Hydra e Spetses do Golfo Sa76


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lônico. [ou Sarónico?] Nosso olhar se deparava com as águas de um azul-escuro contrastando com o céu claro. Essas ilhas são servidas por pequenos portos com orlas marítimas estreitas e abundante comércio de artesanato. Os mosteiros estão sempre nas alturas. De volta a Poros, jantávamos nos restaurantes agradáveis da ilha. Cumprimentávamos sempre o proprietário nas idas e vindas. Depois do jantar eu ia dormir e o Roney saía para conferir os bares e discotecas da juventude. Nessa hora o escritório da pousada já estava fechado. No meio da semana fui pedir informações ao dono sobre os horários dos barcos para passarmos o dia em Atenas, explicando que estudava em Londres e estava recebendo a visita de meu filho do Brasil. Com entusiasmo de alívio que o grego exclamou sorridente: – Seu filho? Até então o homem pensava que éramos um par de amantes constituído de uma coroa quarentona e um jovem na casa dos vinte anos. Em Ouro Preto deixei claro que procurávamos um hotel ou pousada, meu filho e eu. Creio ser essa a informação responsável pela indicação de uma hospedagem tão peculiar após um telefonema à dona da casa. Saímos para jantar a boa comida local e pedi a chave para a volta. Não era preciso. A casa não ficava fechada, foi o segundo espanto. Andávamos pelas ladeiras, visitávamos museus e igrejas barrocas com obras de gênios como Aleijadinho e Mestre Athayde. Marcos fazia questão que tivéssemos sempre um guia nas igrejas. Adorou o primeiro na igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, decorada com ouro que os escravos roubavam de outras igrejas. Levavam o ouro embaixo das unhas ou onde mais fosse possível esconder. Não era propriamente roubo – acrescentou o nosso guia –, pois eram roubados em sua força

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de trabalho e “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. Isso me remeteu a Lenine em sua famosa frase: “O que é um assalto a banco diante de um banco?” O seu encantamento com as histórias contadas foi realizado pelos guias a partir dessa primeira igreja. Visitamos também as minas de ouro. Uma delas no caminho para Mariana foi especial. Descemos 315 metros, por um carrinho seguro por um cabo de aço, atingindo a profundidade de 120 metros. Além da grandiosidade da escavação, há um belo lago no chão da galeria, de azul intenso por causa do contato com o sulfeto de cobre. O Marcos, sentindo-se o Indiana Jones, ria muito do meu medo. A uma quadra da praça Tiradentes fica a feira de pedra-sabão, onde artistas locais produzem e vendem seu artesanato. Fomos conferir e decidimos trazer para o Roney uma mesa com o jogo de xadrez em pedra. O único problema era o transporte, que deixou de ser quando a proprietária da casa se ofereceu para levá-la até a rodoviária quando pegamos o ônibus leito de volta ao Rio. Foi a terceira surpresa da nossa hospedagem e que era acrescida ao nosso contentamento de estar levando um presente para quem como sempre nos esperava. 2010

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O MARIDO NU Estella sabia que o marido, Elias, não estava bem nos últimos anos. Ele saiu aturdido da prisão militar em 1964, acusado de comunista, sem nunca ter sido militante. Achava ela que os últimos meses de prisioneiro tendo sido passados em cárcere civil, com pessoas solidárias com ideias e ideais semelhantes, visitas de amigos e parentes e algumas regalias haviam curado as feridas provocadas pelos militares. Tinha ele cinquenta e dois anos e há mais de quarenta labutava pelo sustento e pela inserção social na cidade de interior do Estado do Rio de Janeiro. Era um homem rico, bem-sucedido, gozando de muito prestígio no município, achando-se incólume a qualquer tipo de agressão. Ela esperava que o período na prisão civil fosse livrá-lo do pesadelo, enquanto aguardava o habeas corpus que depois de alguns meses foi concedido pela Justiça Militar. Percebeu que não quando ele se retraiu com medo de um guarda municipal na feira de domingo, na praça do Bairro Peixoto, em Copacabana, onde a família fazia as compras das verduras e frutas para alimentar os filhos estudantes, menores de idade, que já mora81


vam no Rio de Janeiro sozinhos. Eram as torturas nas prisões militares que o assombravam quando se deparava com um indivíduo fardado. Nos anos seguintes, apesar de conservar a labuta, o humor e muitas amizades, não tinha o mesmo vigor, via-se logo. Mas caminhar era preciso e superar o medo também. Decidiu ampliar os negócios modernizando sua fábrica de latas, que ainda eram feitas pelo processo de litografia, associando-se a jovens engenheiros. Tinha fé na juventude e em homens mais instruídos. Ele próprio não tinha passado da escola primária. Essa fé o levou à bancarrota e à falência. Dinheiro e prestígio costumam andar de mãos dadas. Perdido um, o outro vagueia sem precisão do caminho a seguir. Ele, assim, foi fazendo piada da própria sorte, apoiado em casos semelhantes, especialmente na literatura judaica, rica em episódios de sobe e desce de acordo com as circunstâncias dos países retratados. Apegou-se mais e mais aos filhos, ajudando-os a se estabelecerem em suas profissões liberais e trabalhos escolhidos depois que se formaram. Vieram os netos. E quem tem netos não pode reclamar da sorte, pensava. Saía do interior nos fins de semana para estar com a prole, que crescia e o encantava. Na caminhada, a saúde começou a fazê-lo tropeçar, ficando diabético, alérgico e com restrições, até culminar com uma operação de próstata malsucedida. Naquele fim de semana, Elias decidiu que não iria ao Rio visitar os filhos. Fora convidado para um casamento no município de Resende, onde tinha boas relações. Passaria aquele fim de semana confraternizando-se com os amigos nas bodas. Comeu e bebeu sem restrições. Voltou satisfeito para casa. Dormiu bem abraçadinho com a mulher, que lhe acompanhava nos dias ensolarados e nos de tempestade com galhardia e coragem.

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A conta chegou na madrugada, quase amanhecendo. Estella acordou e viu o marido nu caído na sala de jantar. Ligou para mim, sua filha: — Sandra, seu pai está caído na sala de jantar e eu não tenho coragem de ver o que aconteceu. Ele não se mexe. — Mãe, provavelmente ele morreu. Sem sofrimento e isso é bom. Ele já não estava mesmo muito feliz. Lembra-se do tio Jacob, que teve de cortar a perna por causa da diabete? Considere ser uma benção. Falarei com meus irmãos e iremos todos para aí, já. Enquanto isso chame uma amiga, vizinha para lhe dar forças. Que tal Dona Cedinha que mora aí do lado? Ou Dona Maria que mora em frente? — Está bem, respondeu Estella com voz aparentemente conformada Pegamos o carro e fomos os três filhos, juntando energias para consolar a mãe e tomar providências. Vimos o sol nascer na estrada Rio-São Paulo naquele dia dezenove de dezembro de 1982. Em janeiro, Elias faria setenta e um anos. Morreu aos setenta, noves fora os anos de chumbo da ditadura, viveu bem e aproveitou a vida até o último dia. Viu os filhos formados, estabelecidos participando de todas as vitórias com o peito estufado. Já havia algumas pessoas na sala de jantar quando chegamos e vimos o corpo coberto com um lençol. Tio Samuel tomara as primeiras providências. O caixão fora levado para a maçonaria onde começou o velório, que teve continuidade na Praça da Bandeira no Chevra Kadisha e finalmente descansara no cemitério da Vila Rosali, onde já estava sua mãe. Estella depois me contou que Dona Mercedes, apelidada de Dra. Cedinha, em episódio que não vem ao caso agora, queria saber por que ele estava nu.

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— Ora mamãe, ele estava dormindo com a mulher dele, na casa dele, e os judeus não são vestidos para o próprio enterro, já que os caixões são fechados. Ficam nus para serem lavados no cemitério, antes de vestir a mortalha e se vão do mundo assim como vieram, nus.

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DONA ROSINHA, A BENZEDEIRA Desta vez será tudo diferente, decidiu Sylvia, quando resolveu ter um segundo filho. Melhor que fosse uma menina, ficaria com um casal. Resolveu se fixar. Era nômade. Ia para aonde o vento a levasse. Viver era correr riscos. Os riscos do Brasil ditatorial eram de morte. Optou pela vida no exílio. Casada foi com o marido enfrentar outros riscos. Ele a levou para o Texas, onde os tornados vindos do mar de Galveston na costa do Golfo do México eram frequentes. O terreno era árido: era a terra do petróleo. Plantar foi penoso, tuberculose incluída, quando o corpo fraquejou na batalha da sobrevivência. Colher gratificou. Voltou da terra dos caubóis com um filho alegre e a profissão valorizada com o grau de mestre. Teto seguro, trabalhos estáveis para ela e o marido deram condições de uma nova semeadura em terras cariocas. Casa ar85


rumada, enxoval caprichado – com a ajuda da mãe – exercícios para o parto garantiram uma espera tranquila. Diria mesmo animada, já que a família participava. A criança tinha pressa em sair do ventre. Estava pronta antes da hora. O parto foi uma correria: contrações aceleradas assustaram o colega Márcio que a levou do trabalho até o hospital aonde chegou antes do médico. O residente de plantão acudiu. Um cirurgião pediatra apareceu para tranquilizar. Em uma respiração mais forte o menino pulou em suas mãos ainda no quarto. O profissional se encantou com a natureza do bicho-homem. Sylvia também. O nome estava escolhido se fosse homem: Marcos A natureza tem surpresas. Passou a desfrutar uma maternidade tranquila. Aquela quietude desejada foi ameaçada com o anúncio da visita da amiga da mãe – que tinha fama de olhar de seca pimenteira – em sua casa. A filha da mesma idade havia morrido de parto e a criança não se salvou. Sylvia recebeu a visita na hora da amamentação. Marcos com dois meses, parrudo, belo, com um cabelo repartido do lado, igual a um rapaz, parecia já ter seis meses de vida. Sugou até dormir placidamente durante a permanência da senhora. Quando acordou com fome, a visita se fora e o leite tinha secado. Sylvia se considerava uma vaca leiteira, atributo que julgava ter herdado da mãe – que fora ama de leite, – ligou angustiada para sua progenitora que morava no interior do Estado do Rio de Janeiro. — Alô, mãe será que Dona Rosinha benze à distância? — Não sei. Vou perguntar. A avó era benzedeira das crianças da família. Engraçado que só as crianças eram vítimas de mau olhado que aquela avó

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curava benzendo em língua estrangeira e cuspindo para os lados para espantar algo como um feitiço. Quem já viu as atividades de uma benzedeira sabe que elas sussurram se dirigindo ao além e de vez em quando se ouve uma palavra solta. Depois que avó morreu a mãe recorria à Dona Rosinha. A mãe ligou de volta anunciando que tudo se resolveria se Sylvia comprasse um pente fino, desses de catar piolho, passasse nos seios, dizendo algumas palavras, tipo mantra, com um copo d’água ao lado na hora da amamentação, mantendo o ritual por três dias. Deveria ainda jogar a água fora a cada manhã em água corrente. Sylvia correu à farmácia e fez tudo como mandado, acreditando que há certos tipos de quebranto que nenhum médico é capaz de curar. No dia seguinte o leite voltou abundantemente. Era a memória da avó e a cultura popular falando à alma. junho 2012

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AS JÓIAS DO COFRE A notícia apareceu na Folha de S. Paulo do dia 15 de setembro de 2011: Clientes do Banco Itaú da av. Paulista recorrem às empresas de segurança, de inteligência e detetives para recuperar as joias de 170 cofres roubados. O crime é tido como um dos maiores assaltos a banco do país. Sabrina se reconhece na notícia embora não lhe diga respeito, não tem cofres, nem mora em São Paulo. Sentada no sofá vermelho da sua sala, em frente à Lagoa, alterna a leitura dos jornais com o medo do esquecimento. Nessas horas, liga-me. Eu agora sou tradutora. Meu ganha-pão continua com palavras. Comecei a trabalhar ainda estudante na equipe do dicionário do filólogo Antônio Houaiss. Ela é economista. Sempre trabalhou com números. Pede-me que escreva a história. Inventou agora que é memorialista. Faço-o pela amizade de meio século. Diz ela que surgiu uma encrenca com outro cofre, mas não quer me falar por telefone. Ela ainda conserva alguns medos da época da dita88


dura. Meteu-se, ainda estudante, em movimentos de esquerda. Diz que quer se lembrar de como enfrentou encrencas. Eu, quando preciso desabafar, não para lembrar, mas tentando esquecer, ligo para ela. Ela ainda não está surda, como eu. Ouve-me com paciência e me acalma. Diz que tudo vai dar certo com tanta competência que eu acredito. Por sorte, morando em São Paulo, eu assino a Folha e confiro a motivação. Eis a história passada por ela. No dia 15 de março de 1990, toma posse o presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello. Um dia depois de sua posse foi instituído um pacote econômico para conter a inflação que de março de 1989 a março de 1990 chegou a 4.853%. — Quase 5.000%! – enfatiza. O “Plano Collor” como foi chamado substituiu o cruzado novo pelo cruzeiro. Bloquearam por 18 meses os saldos das contas correntes, cadernetas de poupança e demais investimentos superiores a Cr$ 50.000,00. Ainda lendo os jornais de domingo inteirando-se do pacote, Sabrina recebe um telefonema de seu chefe notificando que todos os economistas do banco em que trabalhava seriam deslocados para agências comerciais da instituição com a missão de atender os clientes na segunda-feira pela manhã. Sabrina protestou: — Eu, especialista em empréstimos governamentais, atender gente em relação a um pacote que nem entendi. Na Barra da Tijuca? Meu trabalho é com investimentos públicos, no Centro da cidade. — São ordens superiores e eu sou o responsável no Rio. E dê-se por satisfeita, pois na listagem você deveria ir para Deodoro e nós aqui no plantão conseguimos trocar pela Barra, menos longe de sua casa, afirmou enérgico o chefe.

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— Menos longe, obrigada, resmunga conformada. Sabrina aboleta-se em frente à TV para ouvir a ministra da fazenda, Zélia Cardoso de Mello, respondendo as dúvidas da população, suas também, quando o entrevistador pergunta: — Agora de Quixeramobim, no Ceará: Dona Mercedes pergunta como ela faz para liberar os 150 mil cruzados novos que juntou para a operação da filha. — Não tem problema. Nesse caso ela deve se dirigir ao Banco Central para pedir autorização –, responde a ministra, prima do presidente, com pose acadêmica. — Vamos então passar para uma dúvida de Curitiba. Não, não, antes outra pergunta de Quixeramobim. Ah, a mesma pergunta: Dona Mercedes diz que não existe agência do Banco Central na cidade ou mesmo na região. — Então ela deve se dirigir à delegacia de polícia do município –, sentencia a economista. Sabrina pula na poltrona, sentindo-se na pele de dona Mercedes: — Ministra ignorante! Será que nunca foi a uma delegacia de polícia do interior? Não tem ideia que a mulher não vai conseguir a operação da filha? Que arrogância! Ainda sob o impacto da entrevista de domingo, Sabrina chega à agência bancária da Barra no dia seguinte deparando-se com uma fila de clientes esperando a abertura do expediente. Recebe instruções do gerente geral para separar as pessoas encaminhando-as para guichês específicos evitando o tumulto dentro do estabelecimento bancário: contas a pagar, cadernetas de poupança, cheques a descontar, investimentos, penhor, empréstimos, etc. Na fila, uma senhora aflita: — Moça, você não está me entendendo, eu não tenho investimentos. Passei dois meses no hospital. Tenho condomínio

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vencido, conta de médico e quero só retirar o salário que foi depositado nesse período na minha conta para pagar minhas dívidas. — Não senhora, tá difícil mesmo de explicar, mas a senhora é que não está me entendendo: não vai dar para tirar o dinheiro todo. O limite de saque é de 50 mil, o resto está bloqueado, retido no banco, dá para entender? – Sabrina tenta convencer à senhora que não vai dar para liberar os recursos confiscados. Uma ambulância interrompe o diálogo. Um comerciante português sofreu um ataque cardíaco dentro da agência, por não poder retirar o dinheiro para pagar seus empregados do armazém. Termina o expediente, bufa Sabrina lembrando-se da ministra paulista. De um tempo pra cá deu para implicar com os paulistas que exercem cargos no governo federal. Segundo dia de atendimento. Novamente fila na porta e controle na entrada. O fax cospe instruções novas que o gerente vai transmitindo aos funcionários. Duas horas da tarde, uma colega espalha o boato: — vai haver confisco nos cofres particulares nas agências bancárias. Sabrina leva um susto: — As joias da mamãe! O cofre na agência do Banerj fora aberto na conta do irmão depois que o pai morreu. Ela tinha uma chave para retirar as benditas quando a mãe ia às festas. A mãe não gostava de bijuterias. Sabrina se lembra dos dois cofres com os quais conviveu: um na loja, grande, pesado ao lado do relógio de parede onde eram guardadas as duplicatas, contratos e outros documentos; o outro no seu quarto atrás de um quadro pintado a óleo com barcos ao longo da cais de Angra dos Reis onde dormiam as joias da mãe. Na instalação viu-se a grossa espessura da parede

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da casa feita de pedras, construída em 1912. Sabrina era pequena quando instalaram o cofre. Quando o pai morreu, a mãe ficou sozinha no casarão, as joias guardadas e o segredo para a abertura do cofre, esquecido. Com medo de a mãe ser assaltada e sem conseguir decorar o segredo, os irmãos resolveram guardar as joias no cofre do Banerj na rua Sete de Setembro, no Centro do Rio de Janeiro, sob os protestos da mãe: — Mãe, o ladrão dá uma paulada e você cai dura antes de achar o segredo. Esta casa é muito vulnerável! Sabrina corre para o Centro e vê a agência com filas, tal qual a da Barra. Explica para o segurança que não quer entrar no térreo, mas no subsolo, onde ficam os cofres. O segurança aponta-lhe outra fila que já dobra a rua da Quitanda. Espantada descobre que o mundo dos subsolos é mais popular do que imaginava. Muitos dessa fila estão de sandálias havaianas e camisas rotas entre os engravatados. Entra na fila pensando: — Vou ser assaltada quando sair! Vem à cabeça o orgulho da mãe ostentando o colar de pérolas de três voltas com fecho de esmeraldas na sua formatura; do anel de safira que fora da avó, dos brincos de água-marinha; outras joias que nem estão no cofre, como o colar de ouro que o pai lhe dera aos dezoito anos; o anel que perdeu aos sete anos no banheiro da estrada com seu nome gravado. Lembra-se ainda do ar zombeteiro do pai quando a mãe pede uma aliança de brilhantes: — Ué, quando casou você não disse que passaria a pão e água? A garganta aumentou e agora quer diamantes? A notícia do jornal avança e eu agora reparo que instintivamente comecei a mexer no meu colar de pérolas, não pelo valor, mas pela estima:

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Diamantes africanos, esmeraldas colombianas e estojo prussiano cravejado de rubis estão entre os objetos roubados. Será que esse roubo vai virar um filme? Ela se pergunta ao mesmo tempo em que constata que agora anda misturando lembranças e sonhos. O jornalista escreve sobre a trajetória esperada para os objetos roubados: Joias valiosas são passadas para receptadores que, imediatamente, tentam levá-las aos países da América do Sul e de lá ao Leste Europeu, China ou Rússia para onde é quase impossível investigar. Sabrina conta que saiu do Banco abraçada às joias que estavam dentro de um saco. Pegou um táxi com o coração explodindo, como se tivesse se safando de um roubo. Chega a casa arfando, mas feliz: salvou as joias da mãe. Lembrando ainda, pega o telefone e me passa a história antes que a esqueça. Deu para esquecer e misturar eventos e pessoas e cismou que tem de deixar as histórias escritas para os descendentes. Sabe pouco das estórias das avós. Agora tem a mesma idade que a mãe que não se lembrava do segredo do cofre. Eu também tenho, penso agora já me identificando com a história dela passando os dedos nas pérolas do pescoço. 2012

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GUERRILHA URBANA OU RURAL Selma era seu nome de guerra. Embananou-se na discussão sobre a guerrilha. Seria no campo ou na cidade? Não acreditava na luta armada em que a esquerda havia aderido. Seus amigos presos, mortos, desaparecidos ou na clandestinidade. Estava entre os poucos que ainda tinham vida civil normal. Trabalhava como economista de Federação das Indústrias da Guanabara fazia um ano. Seu chefe imediato era do Comando de Caça aos Comunista (CCC). Circulava livremente pelas ruas. Por isto era encarregada de esvaziar aparelhos, recolher dinheiro, manufaturar documentos falsos, dar assistência às bases estudantis. Mudava de roupas ás pressas, no banheiro do emprego, quando tinha que ir ao subúrbio. Temia que tal liberdade não durasse muito. — Não nasci para destruir o capitalismo- pensou e por sorte disse para alguns amigos. Melhor seria construir o socialismo: casar, ter filhos, ensinar, trabalhar sem medo da polícia. Marcara 94


um “ponto” na Confeitaria Colombo de Copacabana com a dirigente da VAR PALMARES . Escolheu uma mini saia xadrez, símbolo da moda daqueles anos introduzido pela inglesa Mary Quant, blusa branca, manga três quartos. Achou-se compatível com as jovens elegantes do bairro que adotavam a moda europeia. Falou por telefone naqueles dias seu antigo namorado, Pedro, que um companheiro da base apelidara de “animal sadio” por ser um vigoroso atleta do basquete do Flamengo sem medo de fazer pichação de madrugada quando ia para a rua acompanhar a amada. Há dois anos não se falavam ou se viam, desde que decidiram acabar o namoro de quatro anos por discordâncias ideológicas. Embora Pedro fosse contra a ditadura, não queria arriscar o pescoço em movimento de jovens “filhinhos de papai”, como chamava, em que ela se metera. Ele estudara com bolsa o curso de engenharia da PUC e tivera dificuldade de se manter no Rio de Janeiro vindo do interior. Fez o mestrado. Tinha vocação para professor, descobrira ao dar aulas para se manter. Acabara de ganhar uma bolsa de doutorado. Viajaria para os EUA em seis meses. Combinaram jantar juntos. Queria conferir se ela tinha mudado muito ou permanecia com aquele seu jeito de menina com o cabelo repartido no meio formando uma longa e grossa trança até a cintura pelo qual ele se apaixonara desde que ela tinha 16 anos. Selma pegou a bolsa e foi para confeitaria. Se a dirigente não aparecesse em cinco minutos, significava que caiu o ponto: eram as regras de segurança. Teria que decidir entre a guerrilha urbana ou rural naquela tarde. A alternativa era “desbundar” o termo vergonhoso usado para quem abandona a luta e deixa seus companheiros na pior, sem respaldo. Sentou-se com Lia, para o chá e não teve coragem de dizer que não acreditava mais na luta armada, quiçá na luta. Lia era mais velha, mais experiente e mais resoluta. Selma pediu mais

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tempo para decidir. Argumentava os prós e os contra das teorias divergentes das duas organizações, embora acreditasse menos ainda na “teoria do foco” assimilada e transposta para o país. As ideias ficaram confusas quando terminou a faculdade. Até então era estudante, preparada para correr da polícia em passeatas, se achando corajosa e esperta na luta contra a ditadura. Era admirada por seus pares e ímpares. Era enfática nas discussões, sustentando opiniões. Fora presa em movimento de rua e solta na madrugada, enquanto outros ficaram nas dependências do DOPS. Os estudos sobre Política e Economia, por vezes artes, varavam as madrugadas e terminavam com um chope animado no Baixo Leblon. A coragem se desvanecendo a cada notícia vinda da cadeia ou da clandestinidade. O cerco apertando. Alguns escaparam tornando-se exilados ou “desbundaram”. O que sobrava era a solidariedade a quem estava no pau de arara. Uns abrindo o bico outros resistindo. Soubera que seu amigo, franzino e de verbo afiado nas assembleias, convicto de seus ideais confessara entregando os companheiros e A a Z, quando a pílula de cianureto não funcionou. Tinha medo de não resistir à tortura se fosse presa dedurando os companheiros ou de enlouquecer. A decisão de como se processaria a guerrilha foi sendo adiada. O namoro antigo reatado. Poucos meses se passaram até Selma desembarcar em Houston no Texas. Casou-se no mesmo dia que partiu com o doutorando atlético, grávida, de mini vestido de crochê laranja, feito para ela com esmero, por Alice, uma velha amiga da família que a presenteara há poucos dias. O silêncio era o preço de uma vida nova desconhecida nas terras dos cowboys onde não seria procurada por velhos amigos queridos, nem por inimigos. Pagou o preço por cinco anos. Uma pechincha, considerando as opções.

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RELÓGIOS SUÍÇOS Na casa éramos três a repartir o espaço e o cotidiano com reflexões filosóficas e opiniões contundentes com muitas risadas, brigas e lágrimas. Meu pai casara-se novamente pela terceira vez. No primeiro casamento, suas visitas eram diárias; no segundo, semanais e no terceiro, em ocasiões excepcionais. Durante nossa infância, em decisões sobre escolas a frequentar, viagens de férias, meu pai era consultado. Na adolescência pontificava em seu estilo autoritário e exercia o direito ao veto pelo pátrio poder. Concordaram com o desejo de Michel de um intercâmbio no curso secundário na Califórnia. Terminado o ano letivo, meu irmão tinha se adaptado mais do que o esperado. Saiu do Brasil no meio do segundo ano do secundário e descobriu um atalho que o levou a concluir o high school, o secundário americano. Destacou-se no basquete e como líder do campeonato regional já estava matriculado em uma faculdade americana. Meu pai decidiu: — Lá ele não fica!

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Seguindo o estilo maternal, fizemos uma viagem, os três, pelo litoral da Califórnia tentando convencê-lo, com reflexões filosóficas, opiniões contundentes, risadas, brigas e lágrimas, à volta. Fomos bem-sucedidos. Michel voltou indeciso quanto à carreira a seguir. Minha mãe conversava sobre interesses, vocação, habilidades e dificuldades. Meu pai apresentou um tobogã do qual ele escorregou em um curso de direito internacional na universidade em que lecionava. Escolheu o atalho pontificado e abençoado pelo pai. Certo dia, anunciou que a nova namorada, colega da faculdade, estava grávida. Nós três conversamos sobre maternidade, paternidade, recém-nascidos, juventude, sexo e precedências: essência versus existência. Michel dormiu na casa da namorada e ligou cedo: — Mãe, vai haver casamento. Minha mãe ofereceu um jantar para as famílias se conhecerem. Meu pai presente, como de hábito nas resoluções. O pai da noiva anunciou: — Já providenciamos tudo: a igreja católica, recepção, apartamento e emprego. Considero Michel meu filho, como os outros três. Comprei quatro relógios suíços para comemorar. Minha mãe, não religiosa, solicitou uma benção judaica, invocando uma tradição ancestral que ela conhecia vagamente e que Michel prezava. Meu pai ficou mudo. Vi meu pai impotente pela primeira vez e meu irmão entrar, por um atalho, para uma corporação jurídica, comemorada com relógios suíços. 2012

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O CASAL Enquanto se discute a lei no Congresso, os jornais do dia 10 de maio de 2013 anunciam em letras garrafais negritas: “Mesmo sem lei, casamento gay já é legal em metade dos Estados brasileiros”. Faço minhas contas para saber há quantos anos, ou melhor, décadas, se passou a história que vou contar. Ando com o relógio do tempo para frente ou para trás? Decido começar pelo início da década de 1960. As meninas estudavam no Ginásio Nossa Senhora do Amparo, colégio de freiras da cidade de Barra Mansa. Piano era quase obrigatório, em sucursal do Conservatório de Música na casa das irmãs Schettino. Solfejávamos para aprender o instrumento e animar os saraus. As moças de classe média deveriam se casar até os vinte cinco anos, depois de formadas no curso normal de onde saíam professoras. Curso superior representava uma aspiração para os varões que podiam se organizar em repúblicas na capital para terem o título de doutor. Estávamos na metade do século vinte, herdeiras de vaticínios como os de minha avó que proclamava com seu sotaque carregado: 99


— Até “as” vinte cinco você escolhe a marido. Depois tem que aceitar o que aparecer. Vera Maria era minha melhor amiga e seguia o figurino das moças da cidade, enquanto eu tinha sido enviada ao internato no Rio de Janeiro, indo nos fins de semana para o interior organizar com as meninas nossos “arrasta-pés”. Eu namorava escondido na casa da Vera Maria no bairro Verbo Divino, que ganhou esse nome por causa da escola de padres, na época frequentada só por meninos. Casamos com aqueles que escolhemos antes dos vinte cincos: ela com o Luiz Augusto que estudou direito no Rio e eu com Carlos Alberto que estudou engenharia, morando em república, também no Rio. Quando, na década de 1970, meu marido e eu voltamos dos EUA, onde fomos fazer pós-graduação, Vera Maria e Luiz Augusto eram donos e professores de um colégio moderno, situado em uma ilha no rio Paraíba do Sul, em Barra Mansa. Ajudaram-me a escolher uma escola no Rio, seguidora de métodos educativos inovadores que seguiam, para nosso rebento americano, o Roney, que se adaptou rápida e harmoniosamente na Escola Constructor Sui, de onde saiu, como o nome indica, “construtor de si mesmo”. Quando me separei do primeiro marido, na década de 1980, Vera Maria ficou solidária por eu ter me tornado uma mulher desquitada. Vinha sempre me visitar no Rio, convidando-me para algum programa, garantindo-me que eu não seria discriminada por ela nessa nova condição que chocava minhas ami-

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gas do interior. Era liberal e fraternal. Naquela noite íamos ao cinema. Antes do filme, Vera Maria me apresentou dois galantes rapazes, um deles primo do Luiz Augusto com quem permaneceu casada a vida inteira. Pensei: — Ela está preocupada comigo. Trouxe dois rapazes interessantes para eu escolher, sentando-me entre eles antes de começar a sessão e entabulando conversas animadas. Vera Maria fez-me então um convite: — Sandra Helena, vamos ao banheiro. — Obrigada, não estou com vontade. — Sandra Helena, vamos ao banheiro retocar a maquiagem! Diante da insistência, assenti. — Sandra Helena, você sentou-se no meio de um casal. — AH Era mesmo uma amiga fraternal e liberal, antes das leis que trinta anos depois ainda estão sendo aprovadas. 2013

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A VOLTA A volta é sempre difícil. Para os que se foram em exílio voluntário, os que fugiram, os que foram trocados em sequestros, para os que não foram e ficaram torturados ou machucados. Há ainda quem não consegue ou não quer mais voltar. Depois do choro, o remédio é dar a volta por cima, quando possível, seguindo frente, relembrando e homenageando os que tombaram. Selma não era mais Selma. Não tinha mais nome de guerra. A guerra contra a ditadura, que ainda estava no poder, tinha sido perdida. Porém, uma ditadura derrotada e encurralada, sendo desmontada de forma “lenta, gradativa e segura”, conforme descreve Elio Gaspari em seus livros sobre o período. O período inicia-se com a vitória da oposição nas eleições em novembro de 1974 e os movimentos sociais deflagrados pela morte de Vladimir Herzog em 1975. Era necessário batalhar por um teto e um trabalho que garantisse o pão de cada dia. De quebra, o leite da criança que já existia e o desejo de um outro filho adiado pelo exílio. O emprego ainda era difícil. Havia a Secretaria Nacional de Informa102


ção (SNI) nas empresas e organismos públicos para evitar que “subversivos” ocupassem cargos. O diploma de mestrado e a ênfase em econometria, que andava na moda, facilitaram furar a barreira. Os passos concomitantes eram dados para retornar aos afetos. Eles eram muitos e continuaram sendo: a família que cresce trazendo alegrias, envelhece e ajuda, os amigos de infância que não mudam, os de juventude que ainda estavam no caminho, novos amigos que se formam na trajetória percorrida. Entre os amigos de infância, o casal, Vera Maria e Luiz Augusto, donos de uma escola em uma ilha no rio Paraíba do Sul em Barra Mansa, onde eu nascera e meus pais ainda viviam, vieram comigo ao Rio de Janeiro ajudar na procura de uma escola para meu filho americano-brasileiro.

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Entre os amigos que estavam no Rio de Janeiro, alguns são aglutinadores por natureza. Promovem encontros, festas, passeios, dão as mãos e incentivam a dar a volta. São generosos. A esses, cabe relembrar os episódios e homenagear com carinho. Começo pelas meninas do Bennett, pois o discurso de nosso paraninfo, Hugo Weiss, na formatura do curso secundário experimental que se constituía em uma nova forma de ensinar proposta pelas chamadas “reformas de base” foi gravado pelo DOPS em 1964 e desbaratado naquele dia. Não podíamos supor que vestidas com esmero em trajes de gala branco naquela cerimônia que coroava anos de estudo e aprofundamento que ressaltavam as injustiças do mundo, iniciava-se para muitas de nós um passo na tentativa de subverter a ordem vigente. Para outras, serem solidárias e compreensivas acalentando o passado comum. O papel de reunir as amigas nos anos que se seguiram coubera à Tuca, antes de seu embarque para a China, recebendo em sua cobertura na Figueiredo Magalhães. Passou o bastão para a Vania Chalfun que calorosamente continua unindo essas antigas amigas secundaristas, agora senhoras, “um pouco meio velhas” - como descreveu um dos meus netos – nas dores e alegrias que a vida reserva a cada uma de nós, no seu apartamento no Posto Seis em Copacabana pelas décadas que se seguiram. Do nosso núcleo de combate de estudantil da PUC o destaque foi assumido pelo José Guaranys, o Zé. A partir de dança e música ele promoveu os mais animados bailes e festas para os adultos, isto é, nós, que reuníamos em volta dele. Também festas infantis com os filhos que cresciam naquela ampla casa em um condomínio em São Conrado a beira de um riacho. Não deixava a peteca cair, cutucando os menos animados, buscando os mais reservados, apresentando novos amigos, que resultaram em vários casamentos. Alugamos casas nas férias para passar o 104


verão com as crianças e os amigos. Entre esses amigos, o Tjerk, nosso holandês-brasileiro, nessa época com suas duas lindas filhas, que com o passar dos anos e o aparecimento da Heloisa no horizonte, incrementou a família com mais quatro rapazes formidáveis. Quando Tjerk foi morar no mesmo prédio do Alfredo Wagner na Rua Prudente de Morais, quase esquina com a rua Aníbal 105


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de Mendonça em Ipanema, começaram os dois amigos a organizar viagens especialmente para brincar o carnaval e passeios, sempre com música. O forte do Alfredo, além da militância política no movimento estudantil, em que estivemos juntos, sempre foi a dança, com seu dom de sedução. Na segunda metade dos anos 1970 nosso amigo começou uma militância antropológica com resultados políticos e não mais parou até os dias de hoje, como atestam a rede de 255 pesquisadores, 212 formas organizativas com 142 entidades apoiadoras na produção de fascículos, mapas e boletins informativos que se iniciaram com sua luta. Mas como ninguém é de ferro e afetos fortalecem, nos intervalos

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dessa militância pelo país e no exterior, sempre mandando cartas e cartões, nos encontrávamos mormente em Leopoldina onde no sítio de seu pai, onde Alfredo foi montando um grande arquivo e, com o apoio da família recebia os amigos, agora com filhos, entre esses Sergio Campos. Se não tinha lugar para todos dormirem, nenhum problema. As crianças acampavam em frente à sede do sítio, nadavam em rios e lagos e andavam nos cavalos. Para os adultos, músicas com sanfoneiros locais e danças. E nessas danças 108


improvisadas nossos afetos foram mantidos e assim vão seguindo enquanto envelhecemos ao longo das décadas de 1970, 1980, 1990, avançando pelo século XXI. No final da década de 1990 o destino me uniu ao antigo companheiro de lutas: Paulo Sergio Duarte, que se tornou meu companheiro de vida. Ele também é um aglutinador. Como professor de História da Arte e rico em cultura, humor e amizades, agregou outros afetos, alguns que eu perdera o contato no exílio e encampou os que eu tinha

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adquirido e conservado. Graças a essas características nos casamos, fantasiados, em uma festa junina no ano 2000, comemorando Brasil 500 anos. Ele de português e eu de índia e um casamento ecumênico celebrado por um cacique e um padre. Rio, abril de 2015

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