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CAPÍTULO XX

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CAPÍTULO CXVI

CAPÍTULO CXVI

parente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia.

Não, leitor, não me esqueceu a idade da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta anos. Não importa; o céu é mais velho e não trocou de cor. Uma vez que lhe não atribuas ao azul da alma nenhuma significação romântica, estás na conta. Quando muito, no dia em que perfez aquela idade, a nossa dona sentiu um calefrio. Que passara? Nada, um dia mais que na véspera, algumas horas apenas. Toda uma questão de número, menos que número, o nome do número, esta palavra quarenta, eis o mal único. Daí a melancolia com que ela disse ao marido, agradecendo o mimo do aniversário: “Estou velha, Agostinho!” Santos quis esganá-la brincando.

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Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as formas do tempo anterior à concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça miúda e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns do seu bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os quadris e o colo eram do mesmo estofador antigo.

Há dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá na nossa terra, onde as duas estações só diferem pela temperatura. Nela nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul.

Esta cor vinha-lhe do pai e do avô, mas o pai morreu cedo, antes do avô, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa idade cria sinceramente que todas as delícias deste mundo, desde o café de manhã até os sonos sossegados, haviam sido inventados somente para ele. O melhor cozinheiro da terra nascera na China para o único fim de deixar família, pátria, língua, religião, tudo, e vir assar-lhe as costeletas e fazer-lhe o chá. As estrelas davam às suas noites um aspecto esplêndido, o luar também, e a chuva, se chovia, era para que ele descansasse do sol. Lá está agora no cemitério de S. Francisco Xavier; se alguém pudesse ouvir a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria a dele, bradando que é tempo de fechar a porta ao cemitério, e não deixar entrar ninguém, uma vez que ele já lá descansa para todo sempre. Morreu azul; se chegasse aos cem anos, não teria outra cor.

Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza dava a mão à natureza, e de uma e de outra saía a mais bela cor que alma de gente pode ter. Tudo concorria assim para lhe secarem os olhos depressa, como vimos atrás. Se ela bebeu aquelas duas lágrimas solitárias, Y

pudera ter bebido outras pela idade adiante, e isto é ainda uma prova daquele matiz espiritual; mostrará assim que as tem poucas, e engole-as para poupá-las.

Mas há ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da cor azul, causa tão particular que merecia ir em capítulo seu, mas não vai, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta e pura. O Cabo das Tormentas converteu-se em Cabo da Boa Esperança, e ela venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Melo, ou ainda pior, no de Aires, mas foram bocejos de Adamastor. Consertou a vela depressa e o gigante ficou atrás cercado de Tétis, enquanto ela seguiu o caminho da índia. Agora lembrava-se da viagem próspera. Honrava-se dos ventos inúteis e perdidos. A memória trazia-lhe o sabor do perigo passado. Es aqui a terra encoberta, os dois filhos nados, criados e amados da fortuna.

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