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CAPÍTULO XXIV
seu pé, que apareçam, que cresçam, que embranqueçam, como é seu costume delas, salvo as que não embranquecem nunca, ou só em parte e temporariamente. Tudo isto é sabido e banal, mas dá ensejo a dizer de duas barbas do último gênero, célebres naquele tempo, e ora totalmente esquecidas. Não tendo outro lugar em que fale delas, aproveito este capítulo, e o leitor que volte a página, se prefere ir atrás da história. Eu ficarei durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como não as entendemos então, as mais inexplicáveis barbas do mundo.
A primeira daquelas barbas era de um amigo de Pedro, um capucho, um italiano, frei***.
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Podia escrever-lhe o nome, — ninguém mais o conheceria, — mas prefiro esse sinal trino, número de mistério, expresso por estrelas, que são os olhos do céu. Trata-se de um frade. Pedro não lhe conheceu a barba preta, mas já grisalha, longa e basta, adornando uma cabeça máscula e formosa. A boca era risonha, os olhos rútilos. Ria por ela e por eles, tão docemente que metia a gente no coração. Tinha o peito largo, as espáduas fortes. O pé nu, atado à sandália, mostrava agüentar um corpo de Hércules. Tudo isso meigo e espiritual, como uma página evangélica. A fé era viva, a afeição segura, a paciência infinita.
Frei*** despediu-se um dia de Pedro. Ia ao interior, Minas, Rio de Janeiro, S. Paulo, — creio que ao Paraná também, — viagem espiritual, como a de outros confrades, e lá ficou por um semestre ou mais. Quando voltou trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba estava negra, não sei se tanto ou mais que dantes, mas negríssima e brilhantíssima. Não explicou a mudança, nem ninguém lhe perguntou por ela; podia ser milagre ou capricho da natureza; também podia ser correção de homem, posto que o último caso fosse mais difícil de crer que o primeiro. Durou nove meses esta cor; feita outra viagem por trinta dias, a barba apareceu de prata ou de neve, como vos parecer mais branca.
Quanto à segunda de tais barbas, foi ainda mais espantosa. Não era de frade, mas de maltrapilho, um sujeito que vivia de dívidas, e na mocidade corrigira um velho rifão da nossa língua por esta maneira: “Paga o que deves, vê o que te não fica.” Chegou aos cinqüenta anos sem dinheiro, sem emprego, sem amigos. A roupa teria a mesma idade, os sapatos não menor que ela. A barba é que não chegou aos cinqüenta; ele pintava-a de negro e mal, provavelmente por não ser a tinta de primeira qualidade e não possuir espelho. Andava só, descia ou subia muita vez a mesma rua. Um dia dobrou a esquina da Vida e caiu na Y
praça da Morte, com as barbas enxovalhadas, por não haver quem lhas pintasse na Santa Casa.
Or, bene, para falar como o meu capucho, por que é que este e o maltrapilho voltaram do grisalho ao negro? A leitora que adivinhe, se pode: dou-lhe vinte capítulos para alcançá- lo. Talvez eu, por essas alturas, lobrigue alguma explicação, mas por ora não sei nem aventuro nada. Vá que malignos atribuam a frei*** alguma paixão profana; ainda assim não se compreende que ele se descobrisse por aquele modo. Quanto ao maltrapilho, a que damas queria ele agradar, a ponto de trocar algumas vezes o pão pela tinta? Que um e outro cedessem ao desejo de prender a mocidade fugitiva, pode ser. O frade, lido na Escritura, sabendo que Israel chorou pelas cebolas do Egito, teria também chorado, e as suas lágrimas caíram negras. Pode ser, repito. Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mas ao tempo dá Deus habeas corpus.
ROBESPIERRE E LUÍS XVI
Tanto cresceram as opiniões de Pedro e Paulo que, um dia, chegaram a incorporar-se em alguma coisa. Iam descendo pela Rua da Carioca. Havia ali uma loja de vidraceiro, com espelhos de vário tamanho, e, mais que espelhos, também tinha retratos velhos e gravuras baratas, com e sem caixilho. Pararam alguns instantes, olhando à toa. Logo depois, Pedro viu pendurado um retrato de Luís XVI, entrou e comprou-o por oitocentos réis; era uma simples gravura atada ao mostrador por um barbante. Paulo quis ter igual fortuna, adequada às suas opiniões, e descobriu um Robespierre. Como o lojista pedisse por este mil e duzentos, Pedro exaltou-se um pouco. — Então o senhor vende mais barato um rei, e um rei mártir? — Há de perdoar, mas é que esta outra gravura custou-me mais caro, redargüiu o velho lojista. Nós vendemos conforme o preço da compra. Veja; está mais nova. — Lá isso, não, acudiu Paulo. São do mesmo tempo; mas é que este vale mais que aquele. — Ouvi dizer que também era rei... — Qual rei! responderam os dois. — Ou quis sê-lo não sei bem... Que eu de histórias, apenas conheço a dos mouros que aprendi na minha terra com a avó, alguns bocados em verso. E ele ainda há mouras lindas; por exemplo, esta; apesar do nome, creio que era moura, ou ainda é, se vive... Mal lhe saiba ao marido!
Foi a um canto e trouxe um retrato de Madame de Stael, com o famoso turbante na cabeça. Ó efeito da beleza! Os rapazes esqueceram por um instante as opiniões políticas e ficaram a olhar longamente a figura de Corina. O lojista, apesar dos seus setenta anos, tinha os olhos babados. Cuidou de sublinhar as formas, a cabeça, a boca um tanto grossa, mas expressiva, e dizia que não era caro. Como nenhum quisesse comprá-la, talvez por ser só uma, disse-lhes que ainda tinha outro, mas esse era “uma pouca-vergonha”, frase que os deuses lhe perdoariam, quando soubessem que ele não quis mais que abrir o apetite aos fregueses. E foi a um armário, tirou de lá, e trouxe uma Diana, nua