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CAPÍTULO LVIII
um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moça; falavam de coisas mínimas, alheias ou próprias, tudo o que bastasse para os reter disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo viera o mesmo que fora, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que ela não podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mistério, Pedro teria o seu.
D. Cláudia interrompia-os, de vez em quando, a propósito da escolha; mas, tudo acaba, até a escolha de chapéus. Foram dali aos vestidos. Paulo, não sabendo da presidência, estimou esta casualidade para as acompanhar de loja em loja. Contava anedotas de S. Paulo, sem grande interesse para Flora; as notícias que ela lhe dava acerca das amigas, eram mais ou menos dispensáveis. Tudo valia pelos dois interlocutores. A rua ajudava aquela absorção recíproca; as pessoas que iam ou vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou não, serviam de ponto de partida a alguma digressão. As digressões entraram a dar as mãos ao silêncio, e os dois seguiam com os olhos espraiados e a cabeça alta, ele mais que ela, porque uma pontinha de melancolia começava a espancar do rosto da moça a alegria da hora recente.
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Na Rua Gonçalves Dias, indo para o Largo da Carioca, Paulo viu dois ou três políticos de
S. Paulo, republicanos, parece que fazendeiros. Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a última vez que os vira ia já a alguma distância. — Conhecem? perguntou às duas.
Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe talvez fizesse alguma pergunta política, mas deu por falta de um objeto, advertiu que o não comprara, e propôs voltarem atrás. Tudo era aceito por ambos, com docilidade, apesar do véu de tristeza, que se ia cerrando mais no rosto da moça. Aquelas encomendas tinham já um ar de bilhetes de passagem, não tardava o paquete, iam correr às malas, aos arranjos, às despedidas, ao camarote de bordo, ao enjôo de mar, e àquele outro de mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. Daí o silêncio crescente, que Paulo mal podia vencer, de quando em quando; e contudo ela estava bem com ele, gostava de lhe ouvir dizer coisas soltas, algumas novas, outras velhas, recordações anteriores à partida daqui para S. Paulo.
Assim se deixaram ir, guiados por D. Cláudia, quase esquecida deles. No meio daquela conversação truncada, mais entretida por ele que por ela, Paulo sentia ímpetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se pensara nele, ou, ao menos, sonhara com ele algumas noites. Ouvindo Y
que não, daria expansão à cólera, dizendo-lhe os últimos impropérios; se ela corresse, correria também, até pegá-la pelas fitas do chapéu ou pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, dançaria com ela uma valsa de Strauss ou uma polca de ***. Logo depois, ria destes delírios, porque, a despeito da melancolia da moça, os olhos que ela erguia para ele eram de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida de descobrir se é a mesma do sonho e do pensamento. Assim lhe parecia ao estudante de Direito; pelo que, quando ele desviava o rosto, era para repetir a experiência e tornar a ver-lhe os olhos aguçados do mesmo espírito crítico e de livre exame. Quanto ao tempo que os três gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparações, não há memória, dele, nem necessidade. Tempo é propriamente ofício de relógio, e nenhum deles consultou o relógio que trazia.