4 minute read
CAPÍTULO LXVII
da segunda, não houve repressão nem briga. Ao jantar, falaram pouco. Paulo referia os sucessos amorosamente. Conversara com alguns correligionários e soube do que se passara à noite e de manhã, a marcha e a reunião dos batalhões no campo, as palavras de Ouro Preto ao Marechal Floriano, a resposta deste, a aclamação da República. A família ouvia e perguntava, não discutia, e esta moderação contrastava com a glória de Paulo. O silêncio de Pedro principalmente era como um desafio. Não sabia Paulo que a própria mãe é que pedira ao irmão com muitos beijos, motivo que em tal momento, ia com o aperto do coração do rapaz.
O coração de Paulo, ao contrário, era livre, deixava circular o sangue, como a felicidade. Os sentimentos republicanos, em que os princípios se incrustavam, viviam ali tão fortes e quentes, que mal deixavam ver o abatimento de Pedro e o acanhamento da outra gente sua. Ao fim do jantar, bebeu à República, mas calado, sem ostentação, apenas olhando para o teto, e levantando o copo um tantinho mais que de costume. Ninguém replicou por outro gesto ou palavra.
Advertisement
Certamente, o moço Pedro quis dizer alguma frase de piedade relativamente ao regímen imperial e às pessoas de Bragança, mas a mãe quase que não tirava os olhos dele, como impondo ou pedindo silêncio. Demais, ele não cria nada mudado; a despeito de decretos e proclamações, Pedro imaginava que tudo podia ficar como dantes, alterado apenas o pessoal do governo. Custa pouco, dizia ele baixinho à mãe, ao deixarem a mesa; é só o imperador falar ao Deodoro.
Paulo saiu, logo depois do jantar, prometendo vir cedo. A mãe, receosa de o ver metido em barulhos, não queria que ele saísse; mas outro receio fê-la consentir, e este era que os dois irmãos brigassem finalmente. Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o que negou. Não é menos certo que ela raciocinou alguns minutos antes de resolver, do mesmo modo que eu escrevi uma página antes da que vou escrever agora; mas ambos nós, Natividade e eu, acabamos por deixar que os atos se praticassem, sem oposição dela, nem comentário meu.
CAPÍTULO LXVI
O BASTO E A ESPADILHA
Vieram amigos da casa, trazendo notícias e boatos. Variavam pouco e geralmente não havia opinião segura acerca do resultado. Ninguém sabia se a vitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato. Daí a ingenuidade com que alguém propôs o voltarete do costume, e a boa vontade de outros em aceitá-lo. Santos, embora declarasse que não jogava, mandou pôr as cartas e os tentos, mas os outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e sem ele, não havia graça. Quis resistir; não era bonito que no próprio dia em que o regímen caíra ou ia cair, entregasse o espírito a recreações de sociedade... Não pensou isto em voz alta nem baixa, mas consigo, e talvez o leu no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, se buscasse algum, mas amigos e cartas não deixavam buscar nada. Santos acabou aceitando. Provavelmente era essa mesma a inclinação íntima. Muitas há que precisam ser atraídas cá fora como um favor ou concessão da pessoa. Enfim, o basto e a espadilha fizeram naquela noite o seu ofício, como as mariposas e os ratos, os ventos e as ondas, o lume das estrelas e o sono dos cidadãos.
CAPÍTULO LXVII
A NOITE INTEIRA
Saindo de casa, Paulo foi à de um amigo, e os dois entraram a buscar outros da mesma idade e igual intimidade. Foram aos jornais, ao quartel do campo, e passaram algum tempo diante da casa de Deodoro. Gostavam de ver os soldados, a pé ou a cavalo, pediam licença, falavam-lhes, ofereciam cigarros. Era a única concessão destes; nenhum lhes contou o que se passara, nem todos saberiam nada.
Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais entusiasta e convicto. Aos outros valia só a mocidade, que é um programa, mas o filho de Santos tinha frescas todas as idéias do novo regímen, e possuía ainda outras que não via aceitar; bater-se-ia por elas. Trazia até o desejo de achar alguém na rua, que soltasse um grito, já agora sedicioso, para lhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta dela; se desse, bastavam-lhe os braços e as mãos.
Propôs cantarem a Marselhesa; os outros não quiseram ir tão longe, não por medo, senão de cansados. Paulo, que resistia mais que eles à fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora. — Vamos esperá-la do alto de um morro, ou da Praia do Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã. — Eu não posso, disse um.
Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era perto de duas horas Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o último recolhido foi sozinho para Botafogo.
Quando entrou, deu com a mãe que esperava por ele, inquieta e arrependida de o haver deixado sair. Paulo não achou desculpa e censurou a mãe por não dormir, à espera dele. Natividade confessou que não teria sono, antes de o saber em casa são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se. — Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado não lhe contes nem lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se passar esta noite.