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CAPÍTULO XC
CAPÍTULO LXXXIX
O DRAGÃO
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Vejamos o que é que estes ajustaram. Vinham de estar com Aires no teatro, uma noite, matando o tempo. Conheceis este dragão; toda a gente lhe tem dado os mais fundos golpes que pode, ele esperneia, expira e renasce. Assim se fez naquela noite. Não sei que teatro foi, nem que peça, nem que gênero; fosse o que fosse, a questão era matar o tempo, e os três o deixaram estirado no chão.
Foram dali a um restaurant. Aires disse-lhes que, antigamente, em rapaz, acabava a noite com amigos da mesma idade. Era o tempo de Offenbach e da opereta. Contou anedotas, disse as peças, descreveu as damas e os partidos, quase deu por si repetindo um trecho, música e palavras. Pedro e Paulo ouviam com atenção, mas não sentiam nada do que espertava os ecos da alma do diplomata. Ao contrário, tinham vontade de rir. Que lhes importava a notícia de um velho café da Rua Uruguaiana, trocado depois em teatro, agora em nada, uma gente que viveu e brilhou, passou e acabou antes que eles viessem ao mundo? O mundo começou vinte anos antes daquela noite, e não acabaria mais, como um viveiro de moços eternos que era.
Aires sorriu, porquanto ele também assim cuidou, aos vinte e dois anos de idade, e ainda se lembrava do sorriso do pai, já velho, quando lhe disse algo parecido com isso. Mais tarde, tendo adquirido do tempo a noção idealista que ora possuía, compreendeu que tal dragão era juntamente vivo e defunto, e tanto valia matá-lo como nutri-lo. Não obstante, as recordações eram doces, e muitas delas viviam ainda frescas, como se viessem da véspera.
A diferença da idade era grande, não podia entrar em pormenores com eles. Ficou só em lembranças, e cuidou de outra coisa. Pedro e Paulo, entretanto, receosos de que os adivinhasse e compreendesse o desprezo que lhes inspiravam as saudades de tempos remotos e estranhos, pediram-lhe informações, e ele deu as que podia, sem intimidade. Ao cabo, a conversação valeu mais que este resumo, e a separação não custou pouco.
Paulo ainda lhe pediu Offenbach, Pedro uma descrição das paradas de 7 de setembro e 2 de dezembro; mas o diplomata achou meio de sal-
tar ao presente e particularmente a Flora, que louvou como uma bela criatura. Os olhos de ambos concordaram que era belíssima.
Também louvou as qualidades morais, a finura do espírito, tais dotes que Pedro e Paulo reconheceram também, e daí a conversação, e por fim o ajuste a que me referi no começo deste capítulo e pede outro.
CAPÍTULO XC
O AJUSTE
— Quanto a mim, um de vocês gosta dela, senão ambos, disse Aires.
Pedro mordeu os beiços, Paulo consultou o relógio; iam já na rua. Aires concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e não trepidou em dizê-lo, acrescentando que a moça não era como a República, que um podia defender o outro atacar; cumpria ganhá-la ou perdê-la de vez. Que fariam eles, dada a escolha? Ou já estava feita a escolha, e o preterido teimava em a torcer para si?
Nenhum falou logo, posto que ambos sentissem necessidade de explicar alguma coisa. Tinham que a escolha não era clara ou decisiva. Outrossim, que lhes cabia o direito de esperar a preferência, e fariam o diabo para alcançá-la. Tais e outras idéias vagavam silenciosamente neles, sem sair cá fora. A razão percebe-se, e devia ser mais de uma; — primeiro, a matéria da conversação, — depois, a gravidade do interlocutor. Por mais que Aires abrisse as portas à franqueza dos rapazes, estes eram rapazes e ele velho. Mas o assunto em si era tão sedutor, o coração, apesar de tudo, tão indiscreto, que não houve remédio senão falar negando. — Não me neguem, interrompeu Aires; a gente madura sabe as manhas da gente nova, e adivinha com facilidade o que ela faz. Nem é preciso adivinhar; basta ver e ouvir. Vocês gostam dela.
Eles sorriam, mas já agora com tal amargor e acanhamento que mostravam o desgosto da rivalidade, aliás sabida deles. Tal rivalidade era também sabida de outros, devia sê-lo de Flora, e a situação lhes parecia agora mais complicada e fechada que dantes.
Tinham chegado ao Largo da Carioca, era uma hora da noite. Um vitória da Santos esperava ali os rapazes, a conselho e por ordem da mãe, que buscava todas as ocasiões e meios de os fazer andar juntos e familiares. Teimava em emendar a natureza. Levava-os muita vez a passeio, ao teatro, a visitas. Naquela noite, como soubesse que iam ao teatro, mandou aprestar a vitória que os conduziu para a cidade, e ficou à espera deles.