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CAPÍTULO XCI
— Entre, conselheiro, disse Pedro, o carro dá para três: eu vou no banquinho da frente. Entraram e partiram. — Bem, continuou Aires, é certo que vocês gostam dela, e igualmente certo que ela ainda não escolheu entre os dois. Provavelmente, não sabe que faça. Um terceiro resolveria a crise, porque vocês se consolariam depressa; também eu me consolei rapaz. Não havendo terceiro, e não se podendo prolongar a situação, por que é que vocês não combinam alguma coisa? — Combinar quê? Perguntou Pedro sorrindo. — Qualquer coisa. Combinem um modo de cortar este nó górdio. Cada um que siga a sua vocação. Você, Pedro, tentará primeiro desatá-lo; se ele não puder, Paulo, você pegue da espada de Alexandre, e dê-lhe o golpe. Fica tudo feito e acabado. Então o destino, que os espera, com duas belas criaturas, virá trazê-las pela mão a um e a outro, e tudo se compõe na Terra como no Céu.
Aires disse mais coisas antes de se apear à porta da casa. Apeado, ainda lhes perguntou: — Estamos de acordo?
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Os dois responderam de cabeça afirmativamente, e, ficando sós, não disseram nada. Que fossem pensando, é natural, e porventura o tempo lhes pareceu curto entre o Catete e Botafogo. Chegaram a casa, subiram a escada do jardim, falaram da temperatura, que Pedro achava deliciosa e Paulo abominável, mas não disseram assim para não irritar um ao outro. A esperança do ajuste é que os levava à moderação relativa e passageira. Vivam os frutos pendentes do dia seguinte!
Cá estava o quarto à espera deles, um brinco de arranjo e graça, de comodidade e repouso. Era a mãe que dava os últimos retoques todos os dias; ela cuidava das flores que seriam postas nos vasinhos de porcelana, e ela mesma as ia tirar à noite e pôr fora das janelas para que eles não as respirassem dormindo. Cá estavam as velas ao pé das duas camas, metidas nos seus castiçais de prata, um com o nome de Pedro, outro com o de Paulo, gravados. Tapetinhos de suas mãos, laços dados por ela nos cortinados, finalmente o retrato dela e o do marido pendurados à parede, entre as duas camas, naquele mesmo lugar em que estiveram os de Luís XVI e Robespierre, comprados na Rua da Carioca.
Ao pé de cada um dos castiçais acharam um bilhetinho de Natividade. Aqui está o que ela dizia. “Algum de vocês quer ir comigo à missa, amanhã? Faz anos que seu avô morreu, e Perpétua está adoentada.” Natividade esquecera de lhes falar antes, e, aliás, andava bem sem eles, mormente de carruagem; mas gostava de os ter consigo. Y
Pedro e Paulo riram do convite e da forma, e um deles propôs que, para agradar à mãe, fossem ambos à missa. A aceitação da proposta veio pronta; já não era harmonia, era uma espécie de diálogo na mesma pessoa. O céu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam de assinar; ou, se preferes, a natureza corrigia as índoles, e os dois rixosos começavam a ajustar o ser e o parecer. Também não juro isto, digo o que se pode crer só pelo aspecto das coisas. — Vamos à missa, repetiram. Seguiu-se um grande silêncio. Cada um ruminava o ajuste e o modo de o propor. Enfim, de cama a cama, disseram o que lhes parecia melhor, propuseram, discutiram, emendaram e concluíram sem escritura de tabelião, apenas por aceitação de palavra. Poucas cláusulas. Confessando que não podiam assegurar a escolha de Flora, concordaram em esperar por ela durante um prazo curto; três meses. Dada a escolha, o rejeitado obrigava-se a não tentar mais nada. Como tivessem a certeza final da escolha, o acordo era fácil; cada um não faria mais que excluir o outro. Não obstante, se ao fim do prazo, nenhuma escolha houvesse, cumpria adotar uma cláusula última. A primeira que acudiu foi deixarem ambos o campo, mas não os seduziu. Lembrou-lhes recorrer à sorte, e aquele que fosse designado por ela, deixaria o campo ao rival. Assim passou uma hora de conversação, após a qual cuidaram de dormir.
NEM SÓ A VERDADE SE DEVE ÀS MÃES
Às nove horas da manhã seguinte, Natividade estava pronta para ir à missa que mandava dizer na Matriz da Glória; nenhum dos filhos se lhe apresentou. — Parece que dormem.
E duas, três, quatro, cinco vezes, foi até à porta do quarto a ver se ouvia rumor, como resposta ao bilhete que deixara. Nada. Concluiu que teriam entrado tarde. Só não atinou que dormissem sobre o ajuste, nem que ajuste era. Uma vez que o fizessem em cama fofa, tudo ia bem. Enfim, acabou de calçar as luvas, desceu, entrou no carro e foi para a igreja. A missa era aniversária, como dizia o bilhete. Uso velho; o pai tinha a sua missa, a mãe outra, os irmãos e parentes outras. Não Ihe esqueciam datas obituárias, como não lhe esqueciam natalícias, quaisquer que fossem, amigas ou parentas; trazia-as todas de cor.
Doce memória! Há pessoas a quem não ajudas, e chegam a brigar consigo e com outros por abandono teu. Felizes os que tu proteges; esses sabem o que é 24 de março, 10 de agosto, 2 de abril, 7 e 31 de outubro, 10 de novembro, o ano todo, suas tristezas e alegrias particulares.
Voltando a casa, viu Natividade os dois filhos no jardim, à espera dela. Eles correram a abrir-lhe a portinhola do carro, e depois de a apearem e lhe beijarem a mão, explicaram a falta. Tinha resolvido ir ambos, mas o sono... — O sono e a preguiça, concluiu a mãe rindo. — Foi só o sono, disse Pedro. — Acordamos agora mesmo, acabou Paulo.
Disputaram dar-lhe o braço; Natividade os satisfez dando um braço a cada um. Em casa, ao mudar de roupa Natividade refletiu que, se Flora lhes tivesse feito algum pedido, eles acordariam cedo, por mais tarde que se deitassem; a memória serviria de despertador Passou-lhe uma sombra rápida, mas depressa se reconciliou com a diferença. Assim que, não foi por ciúme, mas para os trazer a outras seduções e separá-los da guerra ante a bela Flora, que a mãe teimou em levar os filhos para Petrópolis. Subiriam na primeira semana de janeiro. A estação seria excelente; anunciou festas, citou nomes, notou-lhe que Pe-