4 minute read

CAPÍTULO CIII

Next Article
CAPÍTULO CXVI

CAPÍTULO CXVI

CAPÍTULO CI

O CASO EMBRULHADO

Advertisement

Também os gêmeos achavam o caso embrulhado. Quando iam a S. Clemente, tinham notícias da moça, sem que lhes dessem certeza do regresso. O tempo andava; não tardaria que consultassem a sorte, como dois antigos.

A rigor, não contavam as semanas de interrupção, uma vez que a escolha se não dava, e eles podiam trazer da consulta o contrário da inclinação definitiva da moça. Reflexão justa, posto que interessada. Cada um deles não queria mais que prolongar a batalha, esperando vencê-la. Entretanto, não confiavam um do outro este pensamento gêmeo, como eles. Ambos se iam sentindo exclusivos, a afeição tinha agora o seu pudor e necessidade de calar. Já não falavam de Flora.

Nem só de Flora. Crescendo a oposição, recorriam ao silêncio. Evitavam-se; se podiam, não comiam juntos; se comiam juntos, diziam pouco ou nada. Às vezes, falavam para tirar aos criados qualquer suspeita, mas não advertiam que falavam mal e forçadamente, e que os criados iam comentar as palavras e a expressão deles na copa. A satisfação com que estes comunicavam os seus achados e conclusões é das poucas que adoçam o serviço doméstico, geralmente rude. Não chegavam, porém, ao ponto de concluir tudo o que os ia tornando cada vez mais avessos, a ponto de ódio que crescia com a ausência da mãe. Era mais que Flora, como sabeis; eram as próprias pessoas inconciliáveis. Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade. Pedro, a pretexto de sentir mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi dormir mal em outro não menos quente que o primeiro.

CAPÍTULO CII

VISÃO PEDE MEIA SOMBRA

Entretanto, a bela moça não os tirava da mesma alcova sua, por mais que buscasse deveras fugir-lhes. A memória os trazia pela mão, eles entravam e ficavam. Iam depois embora, ou de si mesmos, ou empurrados por ela. Quando tornavam, era de surpresa. Um dia; Flora aproveitou a presença para fazer um desenho igual ao que dera ao conselheiro, mais perfeito agora, muito mais acabado.

Também cansava. Então saía do quarto e ia para o piano. Eles iam com ela, sentavam-se aos lados ou ficavam defronte, em pé, e ouviam com atenção religiosa, ora um noturno, ora uma tarantela. Flora tocava ao sabor de ambos, sem deliberação; os dedos é que obedeciam à mecânica da alma. Para os não ver, inclinava a cabeça sobre o teclado; mas o campo da visão os guardava, se não era a respiração que se fazia sentir defronte ou dos lados. Tal era a sutileza dos seus sentidos.

Se fechava o piano e descia ao jardim, sucedia muita vez que os ia achar ali, passeando, e a cumprimentavam com tão boa sombra, que ela esquecia por instantes a impaciência.

Depois, sem que os mandasse, iam embora. Nos primeiros tempos, Flora tinha medo que a houvessem abandonado de todo, e chamava-os dentro de si. Ambos tornavam logo, tão dóceis, que ela acabou de se convencer que a fuga não era fuga, nem eles sentiam desespero, e não os evocou mais. No jardim era mais rápido o desaparecimento, talvez pela extrema claridade do lugar. Visão pede meia sombra.

CAPÍTULO CIII

O QUARTO

Sei, sei, três vezes sei que há muitas visões dessas nas páginas que lá ficam. Ulisses confessa a Alcinos que lhe é enfadonho contar as mesmas coisas. Também a mim. Sou, porém, obrigado a elas, porque sem elas a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que não conheci. Conheci esta, com as suas obsessões ou como quer que lhes chames.

Nem por isso, nem ainda porque houvesse colhido algum abatimento e nervos, deixava Flora de enfeitar muito, de se fazer mais linda, e ter mais de um namorado incógnito, que suspirava por ela. Não faltava quem a admirasse de passagem, e fosse vê-la, quando menos, no banco verde, à porta do jardim, ao pé da irmã de Aires. Pode ser que conhecesse algum, Gouveia, por exemplo; em verdade, era como se os não visse.

Um deles valia mais que todos pela carruagem, — tirada por uma bela parelha de cavalos, — capitalista do bairro. A casa dele era um palacete, os móveis feitos na Europa, estilo império, aparelhos de Sèvres e de prata, tapetes de Esmirna, e uma vasta camara com dois leitos, um de solteiro, outro de casados. O segundo esperava a esposa.

“A esposa há de ser esta”, pensou ele um dia, ao ver Flora.

Era maduro; trazia o rosto batido dos ventos da vida, a despeito das muitas águas de toucador; ao corpo faltava aprumo, e as maneiras não tinham graça nem naturalidade. Era o Nóbrega, aquele da nota de dois mil-réis, nota fecunda, que deitou de si muitas outras, mais de dois mil contos de réis. Para as notas recentes, a avó perdia-se na noite dos tempos. Agora os tempos eram claros, a manhã doce e pura.

Quando viu a moça, e fez a reflexão que lá fica, estranhou-se a si próprio. Vira outras damas, e mais de uma com escritos nos olhos, dizendo-lhe o vazio do coração. Esta era a primeira que veramente lhe prendeu a vontade e lhe deteve o pensamento. Tornou a vê-la; a gente vizinha notou porventura a freqüência recente do capitalista. Enfim, Nóbrega

This article is from: