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CAPÍTULO 1

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CAPÍTULO 10

CAPÍTULO 10

—Já o estava. Vá-se embora, meu amigo, por sua filha lh’o rogo. Olhe que póde ser-me util; fuja… Abriam-se todas as portas e janellas, quando o ferrador se lançou na fuga, até cavalgar a egua. Um dos visinhos do mosteiro, que, em razão de seu officio, primeiro sahiu á rua, era o meirinho geral.

—Prendam-no, prendam-no, que é um matador!—exclamava Thadeu de Albuquerque.

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—Qual?—perguntou o meirinho geral.

—Sou eu—respondeu o filho do corregedor.

—V. s.^a!—disse o meirinho espantado; e, approximando-se, accrecentou a meia voz—venha, que eu deixo-o fugir.

—Eu não fujo—tornou Simão.—Estou prêso. Aqui tem as minhas armas.

E entregou as pistolas. Thadeu de Albuquerque, quando se recobrou do spasmo, fez transportar a filha a uma das liteiras, e ordenou que dois criados a acompanhassem ao Porto. As irmãs de Balthazar seguiram o cadaver de seu irmão para casa do tio.

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO 1

O corregedor acordara com o grande reboliço que ia na casa, e perguntou á esposa, que elle suppunha tambem desperta na camara immediata, que bulha era aquella. Como ninguem lhe respondesse, sacudiu freneticamente a campainha, e berrou ao mesmo tempo, aterrado pela hypothese de incendio na casa. Quando D. Rita acudiu, já elle estava enfiando os calções ás avessas.

—Que estrondo é este? quem é que grita?—exclamou Domingos Botelho.

—Quem grita mais é o senhor—respondeu D. Rita.

—Sou eu!? Mas quem é que chora?

—São suas filhas.

—E porquê? Diga n’uma palavra.

—Pois sim, direi: o Simão matou um homem.

—Em Coimbra?… E fazem tanta bulha por isso!

—Não foi em Coimbra, foi em Vizeu—tornou D. Rita.

—A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e mata em Vizeu! Ahi está um caso para que as ordenações do reino não prov-

idenciaram.

—Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje Balthazar Coutinho, sobrinho do Thadeu de Albuquerque. Domingos Botelho mudou inteiramente de aspecto.

—Foi prêso?—perguntou o corregedor.

—Está em casa do juiz de fóra.

—Mande-me chamar o meirinho geral. Sabe como foi e porque foi essa morte?!… Mande-me chamar o meirinho, sem demora.

—Porque se não veste o senhor, e vai a casa do juiz?

—Que vou eu fazer a casa do juiz?

—Saber de seu filho como isto foi.

—Eu não sou pae: sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogal-o, Senhora D. Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga ás meninas que se calem, ou que vão chorar no quintal. O meirinho chamado relatou miudamente o que sabia, e disse ter-se verificado que o amor á filha do Albuquerque fôra causa d’aquelle desastre. Domingos Botelho, ouvida a historia, disse ao meirinho:

—O juiz de fóra que cumpra as leis. Se elle não fôr rigoroso, eu o obrigarei a sêl-o. Ausente o meirinho, disse D. Rita Preciosa ao marido:

—Que significa esse modo de fallar de seu filho?

—Significa que sou corregedor d’esta comarca, e que não protejo assassinos por ciumes, e ciumes da filha de um homem, que eu detesto. Eu antes queria vêr mil vezes morto Simão, que ligado a essa familia. Escrevi-lhe muitas vezes dizendo-lhe que o expulsava de minha casa,

se alguem me désse a certeza de que elle tinha correspondencia com tal mulher. Não ha de querer a senhora que eu vá sacrificar a minha integridade a um filho desobediente, e de mais a mais homicida. D. Rita, algum tanto por affecto maternal e bastante por espirito de contradicção, contendeu largo espaço; mas desistiu, obrigada pela insolita pertinacia e cólera do marido. Tão iracundo e aspero em palavras nunca o ella vira. Quando lhe elle disse: «Senhora, em coisas de pouca monta o seu dominio era toleravel; em questões de honra, o seu dominio acabou: Deixe-me!»—D. Rita, quando tal ouviu, e reparou na physionomia de Domingos Botelho, sentiu-se mulher, e retirou-se.

A ponto foi isto de entrar o juiz de fóra na sala de espera. O corregedor foi recebel-o, não com o semblante affectuoso de quem vai agradecer a delicadeza e implorar indulgencia, senão que de carrancudo que ia, mais parecêra ir elle reprehender o juiz por vir n’aquella visita dar a crer que a balança da justiça na sua mão tremia algumas vezes.

—Começo por dar a v. s.^a os pezames—disse o juiz de fóra—da desgraça de seu filho.

—Obrigado a v. s.^a Sei tudo. Está instaurado o processo?

—Não podia deixar eu de acceitar a querella.

—Se a não acceitasse, obrigal-o-ia eu ao cumprimento dos seus deveres.

—A situação do senhor Simão Botelho é pessima. Confessa tudo. Diz que matou o algoz da mulher que elle amava…

—Fez muito bem—interrompeu o corregedor, soltando uma casquinada secca e rouca.

—Perguntei-lhe se foi em defeza, e fiz-lhe signal que respondesse affirmativamente. Respondeu que não; que, a defender-se, o faria com a ponta da bota, e não com um tiro. Busquei todos os modos hones-

tos de o levar a dar algumas respostas, que denotassem allucinação ou demencia; elle, porém, responde e replíca com tanta egualdade e presença de espirito, que é impossivel suppor que o assassinio não foi perpetrado muito intencionalmente e de claro juizo. Aqui tem v. s.^a uma especialissima e triste posição. Queria valer-lhe, e não posso.

—E eu não posso nem quero, senhor doutor juiz de fóra. Está na cadêa?

—Ainda não: está em minha casa. Venho saber se v. s.^a determina que lhe seja preparada com decencia a prisão.

—Eu não determino nada. Faça de conta que o prêso Simão não tem aqui parente algum.

—Mas, senhor doutor corregedor—disse o juiz de fóra com tristeza e compuncção—v. s.^a é pae.

—Sou um magistrado.

—É demasiada a severidade, perdôe-me a reflexão que é amiga. Lá está a lei para o castigar; não o castigue v. ex.^a com o seu odio. A desgraça quebranta o odio de estranhos, quanto mais o affectuoso resentimento de um pae!

—Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que me falla. Cumpra os seus deveres, que lh’o ordena o corregedor, e o amigo mais tarde lhe agradecerá a delicadeza. Sahiu o juiz de fóra, e foi encontrar Simão na mesma serenidade em que o deixára.

—Venho de fallar com seu pae;—disse o juiz—encontrei-o mais ira do do que era natural calcular. Penso que por em quanto naaa póde esperar da influencia ou patrocinio d’elle.

—Isso que importa?—respondeu socegadamente Simão.

—Importa muito, senhor Botelho. Se seu pae quizesse, haveria meios de mais tarde lhe adoçar a sentença.

—Que me importa a mim a sentença?—replicou o filho do corregedor.

—Pelo que vejo não lhe importa ao senhor ir a uma forca?

—Não, senhor.

—Que diz, senhor Simão!—redarguiu espantado o interrogador.

—Digo que o meu coração é indifferente ao destino da minha cabeça.

—E sabe que seu pae não lhe dá mesmo protecção, a protecção das primeiras necessidades na cadêa?

—Não sabia; que tem isso? Que importa morrer de fome, ou morrer no patibulo?

—Porque não escreve a sua mãe? Peça-lhe que…

—Que hei de eu pedir a minha mãe?—atalhou Simão.

—Peca-lhe, que amacie a cólera de seu pae, senão o senhor Botelho não tem quem o alimente.

—V. s.^a está-me julgando um miseravel, a quem dá cuidado saber onde ha de almoçar hoje. Penso que não incumbem ao senhor juiz de fóra essas miudezas de estomago.

—De certo não—redarguiu irritado o juiz—-Faça o que quizer. E, chamando o meirinho geral, entregou-lhe o réo, dispensando o aguazil de pedir força para acompanhal-o.

O carcereiro recebeu respeitosamente o prêso, e alojou-o n’um dos

quartos melhores do carcere; mas nú e desprovido de tudo o carcere. Um outro prêso emprestou-lhe uma cadeira de pau. Simão sentou-se, cruzou os braços, e meditou.

Pouco depois, um criado de seu pae conduziu-lhe o almoço, dizendo-lhe que sua mãe lh’o mandava a occultas, e entregando-lhe uma carta d’ella, cujo conteúdo importa saber. Simão, antes de tocar no almoço, cujo cabaz estava-no pavimento, leu o seguinte: Desgraçado, que estás perdido! Eu não te posso valer, porque teu pae está inexoravel. A occultas d’elle é que te mando o almoço, e não sei se poderei mandar-te o jantar! Que destino o teu! Oxalá que tivesses morrido ao nascer! Morto me disseram que tinhas nascido; mas o teu fatal destino não quiz largar a victima.

Para que sahiste de Coimbra? a que vieste, infeliz? Agora sei que tens vivido fóra de Coimbra ha quinze dias, e nunca tiveste uma palavra que dissesses a tua mãe!

Simão suspendeu a leitura, e disse entre si:

—Como se intende isto?! Pois minha mãe não mandou chamar João da Cruz!

E não foi ella quem me mandou o dinheiro?

—Olhe que o almoço arrefece, menino!—disse o criado. Simão continuou a ler, sem ouvir o criado: Deves estar sem dinheiro; e eu desgraçadamente não posso hoje enviar-te um pinto. Teu irmão Manoel, desde que fugiu para Hespanha, absorve-me todas as economias. Veremos, passado algum tempo, o que posso fazer; mas receio bem que teu pae saia de Vizeu, e nos leve para Villa Real, para abandonar de todo o teu julgamento á severidade das leis.

Meu pobre Simão! Onde estarias tu escondido quinze dias?! Hoje mesmo é que teu pae teve carta d’um lente, participando-lhe a tua falta nas aulas, e sahida para o Porto, segundo dizia o arreeiro que te acom-

panhou. Não posso mais. Teu pae já espancou a Ritinha, por ella querer ir á cadêa. Conta com o pouco valor de tua pobre mãe ao pé d’um homem infurecido como está teu pae. Simão Botelho reflectiu alguns minutos, e convenceu-se de que o dinheiro recebido era de João da Cruz. Quando sahiu com o espirito d’esta meditação, tinha os olhos marejados de lagrimas.

—Não chore, menino;—disse o criado—os trabalhos são para os homens, e Deus ha de fazer tudo pelo melhor. Almoce, senhor Simão.

—Leva o almoço—disse elle.

—Pois não quer almoçar?!

—Não. Nem voltes aqui. Eu não tenho familia. Não quero absolutamente nada da casa de meus paes. Diz a minha mãe que eu estou socegado, bem alojado, e feliz, e orgulhoso da minha sorte. Vai-te embora já.

O criado sahiu, e disse ao carcereiro que o seu infeliz amo estava doudo. D. Rita achou provavel a suspeita do servo e viu a evidencia da loucura nas palavras do filho. Quando o o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado d’uma rapariga camponeza: era Marianna. A filha de João da Cruz que, até áquelle momento não apertava sequer a mão do hospede, correu a elle com os braços abertos, e o rosto banhado de lagrimas. O carcereiro retirou-se, dizendo comsigo: Esta é bem mais bonita que a fidalga!

—Não quero ver lagrimas, Marianna—disse Simão—Aqui, se alguem deve chorar sou eu; mas lagrimas dignas de mim, lagrimas de gratidão aos favores que tenho recebido de si e de seu pae. Acabo de saber que minha mãe nunca me mandou dinheiro algum. Era de seu pae aquelle dinheiro, que recebi.

Marianna escondeu o rosto no avental com que enxugava o pranto.

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