Livro Desvendando Minas - Descaminhos do projeto neoliberal

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Gilson Reis (Org.)

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Professor de Biologia, Pós-graduado em Economia Brasileira e Mercado de Trabalho pela UNICAMP, Dirigente da CTB-Nacional, Presidente do Sinpro Minas e Vereador de Belo Horizonte.

REALIZAÇÃO:

Cedebras

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Fundação Mauricio Grabóis

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ISEM - Instituto 25 de Março de Sérgio Miranda

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Sinpro Minas - Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais

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Pedro Otoni (Org.)

Mestre em Ciência Política pela UFMG, especialista em Economia Política, diretor do Centro de Estudos Aplicados ao Desenvolvimento Brasileiro (Cedebras).

ORGANIZADORES:

Gilson Reis e Pedro Otoni COLABORADORES: Adelson França Jr, Clarice Barreto Linhares, Cláudio Contijo, Érica Anita Baptista, Fabricio Maciel, Gilberto Antônio Reis, José Luiz Quadros de Magalhães, José Tanajura Carvalho, Maria Eulália Alvarenga, Maria Lucia Fattorelli, Rodrigo Ávila, Ronald Rocha, Vanderlei Martini e Virgílio de Mattos

O livro Desvendando Minas – descaminhos do projeto neoliberal, organizado pelos professores Gilson Reis e Pedro Otoni, promete instigar a reflexão sobre os limites do bloco dominante mineiro, em especial seu principal representante no momento, o senador Aécio Neves. No entanto, os artigos que compõe a obra vão além e promovem uma investigação ampla sobre os diferentes aspectos da condição estrutural e conjuntural de Minas Gerais. A abordagem permite revelar os verdadeiros contornos do projeto em andamento no Estado, vendido como “moderno” e “eficiente”, mas que objetivamente reproduz o mesmo padrão histórico regional, pautado pela condição periférica e primário-exportadora. Os artigos que compõem a coletânea fazem uma leitura crítica de cada ação dos governos do PSDB e demonstram, com farta quantidade de dados, os estragos causados por suas gestões – e de seus fiéis aliados – ao importante estado de Minas Gerais. Entre outros mitos desmascarados está o do “choque de gestão”, praticado pelos governadores tucanos no Governo Estadual. O autor Ronald Rocha comprova esta orientação, tão badalada pela imprensa nacional, que serve apenas aos interesses do empresariado e agravou as desigualdades sociais no estado. No mesmo rumo, o autor Cláudio Gontijo aponta que o “choque de gestão” enriqueceu ainda mais os rentistas e travou o desenvolvimento da economia. Em outros terrenos, o desastre neoliberal também é esmiuçado. Na obra há estudos sobre a regressão da política agrária, sobre o “estado de choque” da saúde em Minas Gerais, sobre os descaminhos na política de educação, entre outros. O livro apresenta um rico apanhado do modo tucano de governar, o que o torna uma obra indispensável para o debate de ideias na sociedade brasileira, com vista a promover a reflexão e superação deste campo político definitivamente identificado com os interesses do mercado. Ele ajuda a desmistificar a trajetória do PSDB Mineiro e desmascara a mídia conservadora, que tanto fez e faz para blindar o seu cambaleante projeto político. Altamiro Borges Presidente nacional do Barão de Itararé


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Gilson Reis Pedro Otonni Organizadores

DESVENDANDO MINAS

DESCAMINHOS DO PROJETO NEOLIBERAL

Belo Horizonte 2013


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Projeto gráfico e capa: Mark Florest Foto capa: Ana Castelo Branco (Cúpula do Palácio da Liberdade) Revisão: Alexandre Vasconcelos de Melo Impressão: Gráfica O Lutador Tiragem: 2.000

ISBN: 978-85-7907-078-5

Realização: Cedebras Fundação Mauricio Grabóis ISEM - Instituto 25 de Março de Sérgio Miranda Sinpro Minas - Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais

Apoio: Contee - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino CTB - Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil Fitee - Federação Interestadual dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino SAAE/MG - Sindicato dos Auxiliares de Administração Escolar do Estado de Minas Gerais SINDIBEL - Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Belo Horizonte. Sindireceita - Sindicato Nacional dos Analistas-Tributários da Receita Federal do Brasil Sindicato dos Vigilantes de Minas Gerais Sindicato dos Metalúrgicos de Betim e Região SINJUS/MG - Sindicato dos Servidores da Justiça de 2ª Instância do Estado de Minas Gerais Sinpro Minas - Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais SINTDER-SINTTOP - Sindicato dos Trabalhadores Públicos em Transportes e Obras Públicas do Estado de Minas Gerais


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Sumário Prefácio............................................................................................. 09 Ronald Rocha A MITIFICAÇÃO DA EFICIÊNCIA NO “CHOQUE DE GESTÃO”........................................................... 11 Cláudio Gontijo NOTAS SOBRE A ECONOMIA POLÍTICA DO GOVERNO TUCANO EM MINAS GERAIS............................. 39 Maria Eulália Alvarenga Maria Lucia Fattorelli Rodrigo Ávila DÍVIDA PÚBLICA DE MINAS GERAIS: AUDITORIA JÁ!............................................................................. 69 Pedro Otoni ARRANJOS POLÍTICOS E DESENVOLVIMENTO DEPENDENTE EM MINAS GERAIS........................................ 91 Gilson Reis MINAS GERAIS: UM ESTADO E UMA ELITE A SERVIÇO DE UM PROJETO ELEITORAL........................ 139 José Luiz Quadros de Magalhães LEIS DELEGADAS: O LIMITE DA POLÍTICA E DA TÉCNICA, OU COMO O DISCURSO DA TÉCNICA ENCOBRE A POLÍTICA AUTORITÁRIA........... 155


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Gilberto Antônio Reis O SUS EM ESTADO DE CHOQUE.......................................... 171 Clarice Barreto Linhares Adelson França Jr. O DIREITO À EDUCAÇÃO NA BERLINDA: MINAS GERAIS E OS DESCAMINHOS NA CONDUÇÃO DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO..................... 193 Virgílio de Mattos SEGURANÇA PÚBLICA E SISTEMA PRISIONAL: POR QUE PRENDER OS POBRES EM MINAS GERAIS VIROU UM GRANDE NEGÓCIO?.......................................... 223 Vanderlei Martini QUESTÃO AGRÁRIA, REFORMA AGRÁRIA E VIOLÊNCIA NO CAMPO EM MINAS................................. 233 José Tanajura Carvalho OS TRIBUNAIS DE CONTAS, MAIS ALÉM DE HESITAÇÕES E COMPLACÊNCIAS NO EXERCÍCIO DO CONTROLE EXTERNO DO ESTADO........................... 265 Érica Anita Baptista AÉCIO NEVES E OS ENQUADRAMENTOS MIDIÁTICOS DE SUA PRESIDENCIABILIDADE............... 287 Fabrício Maciel O QUE SIGNIFICA A NOVA CLASSE MÉDIA?..................... 313 SOBRE OS AUTORES ................................................................ 327


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PREFÁCIO O livro Desvendando Minas: descaminhos do projeto neoliberal é uma obra de intervenção. Foi pensado para provocar reflexão e ação em seus leitores. A trajetória do tempo recente é percorrida dentro de “nuvens”; por isso os efeitos da turbulência são permanentes – partir do presente tirando as vendas do passado, lançando-se assim a abrir caminhos para o futuro. No plano teórico, o ponto de vista da crítica, não deve hoje ter limites; não deve aceitar barreiras; deve saltar para frente, superando e negando todas as provas factuais que lhe serão continuamente exigidas pela covardia intelectual. Para o pensamento crítico em Minas Gerais, voltou o momento da descoberta. O tempo da repetição, da banalidade erigida em discurso sistemático, está definitivamente terminado. Aquilo de que precisamos de novo, desde o princípio, é uma férrea lógica que tenha lado, uma coragem empenhada para si e uma capacidade de apontar caminhos para os outros, pelo e para além do seu aparato de crítica. O conjunto de textos que se agrupam cada um vão desmontando, “abrindo caminho com a machadinha afiada da razão”, as Minas Gerais do agora, sem opacidades e encobrimentos das possibilidades do vislumbre de um outro caminho, que só pode ser se guiado por outra via e de outra modernidade. Das salas de aula, ao chão das fábricas, do sistema prisional às ruas da cidade capital, temos em cada texto deste livro um fragmento que vai estabelecendo a construção de uma caixa de ferramentas necessária para forçar as frestas do discurso e consenso que se assentou na última década, para tanto, o necessário “dar combate à mistificação em sua própria casa”, é a linha de conduta dos textos. Segui-se o aprofundar da crítica dos dispositivos que foram montados para este consenso: gestão, eficiência, governo técnico, resultados; demolir esta narrativa para dela extrair categorias, sua origem e justificação e a luz das contradições expostas, apresentá-la a disputa dos rumos


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que correspondam às exigências do nosso tempo – liquidação progressiva, mas rigorosa, do poder de escolhas e de domínio sobre a vida da sociedade por parte das camadas dominantes, o que só será real se determinar a afirmação em crescendo do poder de escolha e da hegemonia de um poder público democrático, isto é, fundado no consenso e no apoio nas grandes massas trabalhadoras e populares. Pensar a crítica e a superação tem sido tarefa inglória. Até a universidade e a intelectualidade se estabeleceram sobre novos patamares, de horizonte curto e conservador, limitado à ambiência do bom-tom acadêmico que reproduz o mundo exatamente como ele está. Era preciso captar a teoria política crítica no patamar mais alto no qual foi abandonada nas últimas décadas, para, a partir dela, avançar. É necessário falar o inesperado e o angustiante num mundo no qual a angústia existe e é cada vez maior, mas não sabe o que falar nem tem voz. Minas Gerais precisa de um novo rumo, de uma ruptura com a atual orientação dominante, de um projeto de mudanças que seja capaz de promover o estabelecimento de um novo papel do Estado, capacitando-o para exercer uma intervenção reestruturadora, abrangente e continuada. Podemos inaugurar esse novo período; se nós podemos, logo devemos. Sérgio Danilo Miranda Rocha Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois (Seção Minas Gerais)


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RONALD ROCHA

A MITIFICAÇÃO DA EFICIÊNCIA NO “CHOQUE DE GESTÃO” Eu vejo o futuro repetir o passado Eu vejo um museu de grandes novidades O tempo não para Não para, não, não para (Cazuza, “O tempo não para”).

A palavra “eficiência” percorreu, de sua remota origem latina até a Carta Magna brasileira, uma longa trajetória, repleta de percalços e nuanças, ao longo da qual foi afetada por drásticas mudanças de sentido. Entre as mais notáveis estão as ocorridas nos anos de 1970 a 1990, quando acabou apossada pelos public managers – inclusive os agentes da administração estatal alinhados à chamada “Reforma Gerencial” (Bresser Pereira, 2001, p. 29) ou às suas derivações mais ou menos assumidas – e pela doutrina jurídica. Dedicado a certos aspectos da orientação traçada pelos últimos governos mineiros, o texto a seguir antecipa um extrato do livro As aventuras da eficiência na gestão pública – em fase de conclusão –, que dialoga criticamente com o liberalismo gerencial e o direito administrativo positivo.

O LUGAR DA GESTÃO PÚBLICA EM MINAS A política denominada “Projeto Choque de Gestão” – segundo a “Apresentação” da obra O Choque de Gestão em Minas Gerais: políticas da gestão pública para o desenvolvimento, escrita a várias mãos – teria surgido no processo eleitoral de 2002, “com o concurso de um grupo de técnicos de diversas áreas do conhecimento e com vasta experiência no trato da coisa pública”. Desde então, assumiu a posição de “linha condutora


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principal do programa governamental para Minas Gerais”. (Anastasia, 2006, p. 15). Seus autores manifestaram o propósito de oferecer uma resposta ao “dramático quadro” existente no Estado, em especial à denominada “falta de eficiência do serviço público”: Observava-se, objetivamente, um ambiente de desânimo nos atores responsáveis pelo processo de gestão, como que descrentes em qualquer reversão positiva de quadro tão nefasto. (...) Deste modo, o tema da boa gestão assumiu relevo nas discussões com o então candidato (Anastasia, 2006, p. 14 e 15).

Nesse mesmo livro se encontra citada na condição de antecedente a Emenda Constitucional nº 19, de 1998, mas apenas como sinalizador de uma prioridade na esfera da gestão: “ideal de um aparato público funcionando com plena eficiência” (Anastasia, 2006, p. 13). Semelhante discurso soa como se a iniciativa tivesse origem e se processasse, exclusivamente, no interior das Alterosas. O próprio governador, à época, após referir-se à questão do desenvolvimento, sintetizou sua mensagem numa frase única, imprimindo à vulgata ukelesiana (Ukeles, 1982), já universalmente famosa e repetida nos círculos conservadores desde os anos de 1980, uma tonalidade provinciana: “fazer mais e melhor com menos para (...) fazer de Minas o melhor Estado para se viver no Brasil” (Governo do Estado de Minas Gerais, 2006, p. 11). Assim, contrapondo os pleitos locais aos demais interesses existentes no colar federativo, tal lema se reafirmou como “visão de futuro” ao anunciar-se a “Segunda Geração do Choque de Gestão” (Vilhena, 2006, p. 352 e 356). O traço paroquial – típico da política tradicional mineira e face local do cosmopolitismo burguês, que nos seus momentos de arroubo protesta contra as derramas e opressões passadas para servir cordialmente aos poderosos do presente – iria apresentar-se novamente, seja afirmando-se “que a expressão ‘Choque de Gestão’,” portadora de intenções antes manifestadas pelo World Bank e por governos paulistas, teria sido “absolutamente inédita e profundamente criativa” (Anastasia, 2006, p. 16), seja destacando-se a sua “originalidade e singularidade (...) no panorama/trajetória das políticas de gestão nacionais e internacionais”, seja recusando-se a reconhecer qualquer influência das referências


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elaboradas pela “era da reforma do Estado” e pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 1995 (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 30 e 31). Assim, afirmou-se a tese de que o “novo paradigma de gestão (...) não estava vinculado a nenhum ideal finalístico de transformação – senão, talvez, ao ideal de eficiência” – e “não logrou alinhar meios e fins”. Dever-se-ia aproveitar, do governo Cardoso, tão somente a lição negativa – o que teria faltado: “a necessidade de construir um norte, (...) de se promover inovações gerenciais (...) e de integrar as políticas de gestão” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 31). Deduz-se, pois, que o “Choque de Gestão”, muito além de uma linha gerencial formulada com a intenção de transformar o padrão e o método então vigentes na administração pública, teve desde o nascedouro a pretensão de conter, imanentemente, o conjunto dos objetivos do Governo Estadual, como se fosse programático por si só. Em consequência, dispensou um projeto político amplo e estratégico para Minas Gerais, capaz de dirigir e protagonizar a coisa pública como sujeito insubmisso à lógica – material, organizacional e metabólica – intestina ao aparato estatal. Além do abraço de tamanduá, desdenhoso, enviado aos correligionários nacionais, os “choquistas” fizeram um silêncio barulhento: a ausência completa de referências a Bresser Pereira nos textos que apresentaram unificada, programada e setorialmente. Sem gastar papel e sem ocupar bits com pequenos registros sobre fogueiras de vaidades acadêmicas, rixas regionalistas e bicadas de personalidades políticas, vale a pena reter o contraste curioso entre as elaborações do ex-ministro da Administração Federal e Reforma do Estado expostas no Seminário de 1996 (Reforma do Estado e administração pública gerencial, 2006) e as opiniões oficiais dos gestores pertencentes ao primeiro governo Neves. Enquanto, no famoso colóquio de Brasília, a reiterada demarcação com o “neoliberalismo”, então no auge, caracterizava um ecletismo implícito, no quadro da subjunção político-prática à reação antipopular em marcha para “ajustar” o Estado e retirar direitos, a distância olímpica da equipe governamental mineira em relação àquele mesmo processo e a seus desdobramentos permitia, quando a direita gerencial já estava em fase de enfraquecimento, a tranquila assunção dos valores e métodos dominantes sob o manto de um ecletismo assumido e declamado


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(Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 32). No discurso político, não raro a omissão revela mais que a verbalização. O Bresser de hoje, depois de vivenciar muitas contradições, de romper com o PSDB, de reconciliar-se como o nacional-desenvolvimentismo e de firmar-se na trilha do republicanismo social-liberal, continua procurando esconjurar os fantasmas conservadores de ontem. Aqui nas Alterosas, porém, os gestores oficiais incorporaram sem conflitos de consciência os vultos pretéritos, insistindo apenas em definir os contornos próprios do terreno ideológico e das políticas que formataram em 2002. Para tanto, concentraram o ataque, não nos principais obstáculos sociais ao progresso econômico-social do País e dos mineiros – o capital monopolista-financeiro, externo ou interno, e o latifúndio, inclusive os políticos e partidos que lhes representam os interesses –, mas no que denominaram, com virulência incomum para quem diz agir “de uma maneira eclética” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 32), a “ideia nacionalista, xenófoba e autóctone de desenvolvimento (...) a partir da qual se buscava ‘independência econômica da nação’” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 28). A polêmica contra os pressupostos e os limites do nacional-desenvolvimentismo, que poderia ser acolhida se abordada sob um ângulo de esquerda e sem escatologia, é insuficiente para anuviar a evidência de que o fulcro do programa em aplicação pelo governo local representa – a despeito de suas singularidades e de sua recusa em admitir suas identidades genéricas – a radicalização liberal inaugurada pelas contrarreformas no aparelho de Estado e no processo de gestão pública dominantes na cena política internacional nas duas últimas décadas do século passado. Constituem exemplos lapidares e placas indicativas desse caminho – cuja renúncia a cúpula gerencial da administração pública mineira não tem como fazer de maneira consistente – o período Pinochet, orientado pelo conselheiro Friedman desde a primeira hora e gerido por seus Chicago Boys, assim como os mandatos de Thatcher, com suas privatizações e tributações regressivas, e de Reagan, com suas renúncias fiscais e elevações da dívida pública, ambos dando mais visibilidade à proposição de “reformar o aparato e a administração do Estado com base nos princípios que governam os negócios privados” e de adotar a eficiência


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como “sua meta primordial” (Menegasso, 2012, p. XX). Reserve-se lugar destacado ao cartão-postal neozelandês, que levou mais longe e que operou de modo extremo tais experimentos. Por fim, registrem-se os seus desdobramentos nas políticas do governo Cardoso. Eis por que, ao referir-se à “era da reforma do Estado”, ao constatar a substituição do “ideal do desenvolvimento” pela “necessidade pragmática (emblematicamente evocada no corolário do consenso de Washington) de promoção de um ajuste estrutural” – voltado à “adequação do sistema econômico e do Estado” à “economia de mercado globalizado” – e ao notar que tal situação “não apontava, portanto, um retorno triunfal do planejamento”, a primeira geração do “Choque de Gestão” em Minas Gerais recusou apenas a “ênfase nos meios”, resgatando seus efeitos por meio de uma postura que oscilou e por fim deslizou da contemplação ao elogio: Tal contexto (...) lograria uma década de ajuste fiscal e de reformas estruturais na ordem econômica, no perfil de atuação do Estado (a partir das privatizações, principalmente) e nas políticas sociais (previdência, principalmente). (...) a estabilidade econômica permitiu o ressurgimento do planejamento governamental, a partir da incorporação de metodologias de gestão de programas (Menegasso, 2012, p. 30 e 31).

O aparente formalismo se revela um claro comprometimento, de vez que serviu para encobrir o endosso à ordem do capitalismo monopolista dependente e facilitar a incorporação acrítica do passado. Aliás, até a menção reverente a certas formas transitórias, que diz respeito a transformações administrativas ocorridas durante o regime militar, integrou o padrão político dos public managers caboclos. Enquanto, nos anos de 1990, os federais defenderam – em termos, reconheça-se – o pioneirismo do Decreto-lei nº 200 e das propostas de Beltrão, em 2006 os estaduais aceitaram que se apresentasse o “Choque de Gestão” como legítimo herdeiro “de inovações na área pública para o Brasil durante o período 1965-1982”, abstraindo-se do terrorismo de Estado a pretexto da cordialidade mineira e identificando-se com o entulho tecnocrático remanescente da passagem pelo topo:


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Décadas depois, a arquitetura institucional de Minas Gerais ainda guarda relação com os fundamentos de então, marcada pelo brilho de uma tecnocracia modernizadora, que se beneficiava de um ambiente político autoritário, porém, relativamente brando no caso estadual (Gaetani, 2006).

O verniz de neutralidade – permitindo-se olhar pelo retrovisor sem sujar as mãos com a ideologia – serviu também para conferir glamour ao presente. Assim, repetiu-se o discurso do senso comum burguês contemporâneo, com elogios ao “desenvolvimento aberto, num contexto marcado pela globalização, integração e interdependência” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 28). Quando se reconheceu o papel do Estado, rendendo-se à visão positiva sobre a política que a classe dominante e seus representantes são sempre obrigados a praticar de algum modo, lançou-se mão do discurso tecnicista e amorfo de Castells, que escandalizou até um ilustre admirador e amigo: De modo que, após passar minha vida estudando e lutando para mudar meu país, quando por fim me torno presidente, agora me dizes, Manolo, que o Estado perdeu sua capacidade de ação. Obviamente, não posso aceitá-lo (Cardoso, 1998, p. 1).

Lavagens de roupa à parte, tentou-se diluir a função pública do principal agente político coletivo do capital, inclusive as atribuições e prerrogativas próprias de seu modo de existência mediado, para conceituá-lo como “rede” completamente aberta e disponível às “capacidades do mercado” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 28) – assim mesmo, nomeado como simples coisa e não como relação social. Segundo a referência intelectual adotada e nomeada, haveria no mundo contemporâneo uma “crise do estado nação” e a inviabilização “do estado plenamente soberano” (Castells, 1998, p. 2 e 7). Configurou-se, pois, uma afronta aos arts. 1º, I, e 4º, I, da Constituição Federal, que apresentam, respectivamente, como fundamento e princípio pétreos da República Federativa do Brasil, “a soberania” e a “independência nacional” (República Federativa do Brasil, 2008).


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O GOVERNO COMO FACILITADOR DO CAPITAL Sabe-se que muitos enunciados do arcabouço jurídico vigente, quando estão em causa os interesses e direitos do mundo do trabalho e das classes populares, existem à margem da vida fática – como homenagens formais da exploração e opressão à justiça e liberdade reais que faltam –, mas certamente não possuem uma vocação suicida. A retórica universal abstrata sobre o esmaecimento do Estado no capitalismo, de extração “pós-moderna”, completamente alheia ao mundo existente da economia e da política, adapta-se com suavidade às determinações fundadoras e articuladoras da sociedade civil concreta, que nenhuma teoria ou prática de gestão – mesmo que o quisesse, embora não esteja sendo o caso – poderia reverter ou neutralizar. O que os governantes mineiros vêm propondo e aplicando é um aparelho público a serviço direto da reprodução do capital e de sua ordem, para tanto dissolvendo e misturando, permanentemente, suas instâncias mediadas na sopa dos negócios e das relações coisificadas. Desse modo, suas orientações passam a desenvolver apenas um papel pragmático como mestre de cerimônias, para as quais o “desenvolvimento requer um efetivo Estado que jogue o papel de facilitador, encorajando e complementando as atividades dos negócios privados e individuais” (World Bank): Trata-se de um Estado incrustado na sociedade não apenas no sentido de que reproduz suas demandas, mas também no sentido de que promove ações conjuntas (...). O desenvolvimento requer um Estado eficaz, que encoraje e complemente o mercado e a sociedade civil, como parceiro, catalisador e facilitador (World Bank, 1997) (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 28).

Tal processo aconteceu sob os auspícios e a capacidade coatora da concepção e das diretrizes espargidas pelo World Bank, que financiou as políticas e controlou diretamente sua aplicação, numa ingerência que põe sob suspeição a soberania da coisa pública estadual na última década:


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O Banco Mundial esteve sempre conosco, acreditou no modelo de gestão. O primeiro financiamento que nós pegamos nunca teve contrapartida financeira. A contrapartida foram os resultados, e ele sempre nos cobrou muito (Vilhena, 2013).

Claro está que tamanho zelo de gestão mereceu os elogios efusivos do Diretor para o Brasil da corporação financeira internacional protetora: Em 2002, Minas Gerais (...) possuía uma dívida consolidada e um gasto com pessoal que consumiam, respectivamente, 275% e 66% da receita corrente líquida do Estado. Eleito naquele ano, o governador Aécio Neves firmou o propósito de colocar o Estado de volta no caminho do crescimento e da sustentabilidade por meio do (...) Programa Choque de Gestão. (...) Chamado a participar da primeira geração do Choque de Gestão, o Banco Mundial atendeu ao pedido do governo mineiro com um empréstimo para políticas de desenvolvimento de US$ 170 milhões, que visava apoiar a estabilidade fiscal, a reforma do setor público e o aprimoramento do setor privado. Iniciava-se aí uma parceria resoluta entre Minas Gerais e o Banco Mundial (Briscoe, 2008).

Osborne e Gaebler, também impressionadíssimos com a “era da informação” – mais uma periodização fenomênica –, batizaram tal perspectiva com uma expressão sintética e bem mais crua: “governo orientado para o mercado”, que por sua vez, utilizando o senso prático por meio de uma simples regra de três, “está para a atividade social e econômica da mesma forma que o computador para a informação” (Osborne; Gaebler, 1995, p. 310). Referiam-se – como nos EUA é comum e sintomático confundir-se – ao Estado, no qual juraram acreditar “profundamente”. Chegaram até a garantir que tal instituição tem condição de se tornar tão eficiente quanto a empresa privada: pode ser “reinventada” (Osborne; Gaebler, 1995, p. XII) e até aderir ao empreendedorismo (Osborne; Gaebler, 1995, p. 213). Basta abdicar de suas pretensões públicas e receber “o poder” que os autores do abecedário privatista, julgando-se onipotentes como deuses e caridosos como santos, prometeram “dar” ao “leitor” (Osborne; Gaebler, 1995, p. 359).


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Todavia, há controvérsias entre os especialistas em administração pública. Denhardt, mesmo com sua propensão a conciliar concepções e métodos distintos e até conflitantes, reconheceu que “o lado ‘sombra’ do empreendedor caracteriza-se por um foco estreito, uma falta de disposição de seguir regras e permanecer dentro dos limites”. Disse também que “a noção de gestores públicos agindo puramente como se o dinheiro do público fosse o próprio dinheiro – isto é, motivados por estrito autointeresse – vai contra uma longa e importante tradição (...) na administração pública democrática” (Denhardt, 2012, p. 208). Ademais, endossou o libelo de Mintzberg contra a substituição do cidadão pelo consumidor: “de meu governo espero mais do que apenas uma distante e fria transação comercial e menos do que um estímulo para o consumo” (Denhardt, 2012, p. 207). No rastro de Osborne e Gaebler, os gestores do governo mineiro também atribuíram um “papel central ao Estado” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 28) e lhe impuseram uma condição sine qua non, que nomearam: como o aparelho público “é menos eficiente” e não deve enfraquecer o mercado, que “é virtuoso em eficiência” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 27), seria preciso implantar “um modelo de gestão eficiente” (Anastasia, 2006, p. 5), que seja “mais focado”, não no cidadão, mas “no cliente beneficiário” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 30). Sob a luz dessa ribalta e ao longo da peça, a eficiência vagabundeou entre os personagens de objetivo, princípio, coisa, diretriz e função: respectivamente, como “ideal” de funcionamento a ser conferido ao “aparato público” (Anastasia, 2006, p. 13) e ao Estado (Duarte et al. 2006, p. 98), como qualidade do “modelo de gestão” (Anastasia, 2006, p. 5) ou elogio à sua “inserção (...) no texto de nossa Constituição Federal” (Anastasia, 2006, p. 13), como ausência “no serviço público” até 2003 (Anastasia, 2006, p. 14), como diretriz técnica “organizacional” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 24) e como foco de “gestão” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 24). A pretexto de garantir a consecução de todos esses sentidos variados e mutantes, em dose bastante para compor uma panaceia, os governantes resolveram criar cargos de recrutamento amplo em número suficiente para acolher os especialistas da nova era (Bernadi; Lopes, [s.d.], p. 3-6), que deveriam, preferencialmente, vir de fora do serviço


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público: puros e sem vícios. Em vez de fortalecerem o funcionalismo por meio de melhorias na carreira, na remuneração e na formação, sua opção foi contratar pessoas sem concurso, por meio de currículos, entrevistas e testes psicológicos, método não raro vulnerável a julgamentos subjetivistas e a escolhas pessoalizadas (Governo do Estado de Minas, 2007, p. 9-13). Reivindicando-se modernos, os governantes locais incharam e atualizaram a elite gerencial de Estado por meio da Lei Delegada nº 174, de 2007, que, nos arts. 18 a 21, instituiu os cargos de recrutamento amplo denominados Coordenadores Executivo e Adjunto do Programa Estado para Resultado – inspirados no Sistema Alta Direção, antes existente no Chile –, assim como Empreendedores Públicos I e II, esses destinados a atuarem na coordenação das áreas conhecidas como de resultado e na gestão de projetos em geral. (Estado de Minas Gerais, 2007). Ademais, com a Lei Delegada nº 182, de 2011, alocaram, por meio do art. 19, o Cargo de Empreendedor Público “no Escritório de Prioridades Estratégicas e nos órgãos e entidades encarregados de Programa Estruturador ou Área Estratégica”, bem como prorrogaram, através do art. 21, sua existência até 30/4/2011 (Estado de Minas Gerais, 2011b). Por fim, usaram o Decreto nº 45.578, de 2011, arts. 15 e 16, para conferir amplíssimas competências ao Núcleo de Entregas e de Empreendedores Públicos e à Superintendência de Empreendedores Públicos (Estado de Minas Gerais, 2011a). Assim, acreditam e apostam, não no trabalho como práxis social destinada a se criarem valores de uso, mas só na qualidade inerente aos leaders individuais que se autoproclamam. Em face da pergunta sobre o que seria preciso “para o ‘choque de gestão’ dar certo”, respondeu-se: Liderança. Se não tiver liderança não se implanta um projeto desses, porque na hora que define quais são os programas estruturantes, e que recursos vão estar alocados nesses programas, a pressão política para ter uma alocação diferenciada é muito grande. Essa liderança é fundamental num modelo desses (Vilhena, 2013).


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Tal situação, conformada por meio de simples atos administrativos, concorre para consolidar o contrário do que afirma o mito da sociedade pós-industrial e informacional, ou da “economia do conhecimento” (Governo do Estado de Minas Gerais, [s.d.]), onde o trabalho – complexo indispensável à efetivação dos serviços, das técnicas informáticas e das várias formas de saber – seria uma categoria irrelevante ou nula. Ironicamente, a massa de funcionários públicos, cujo número se expandiu consideravelmente durante o século XX, está hoje ocupando a exata posição que lhe foi reservada pelo desenvolvimento do capitalismo: a condição de vasto proletariado de serviços – centenas de milhares só em Minas Gerais, com prática sindical e consciência sensível –, agora apartado funcional e politicamente da cúpula governamental por uma camada intermediária, à imagem e semelhança do que ocorre na empresa privada. Eis a impressão que os gerentes da nova era causaram, como no caso dos assessores ligados à Pricewaterhouse, uma das várias empresas de consultoria contratadas por terceirização: “Vieram ensinar os servidores a serem servidores; na Fazenda ensinaram que o contribuinte é um cliente” (Jannotti, 2013). Semelhantes reações, decerto, foram creditadas ao corporativismo pelo desdém elitista que escolhera como alvo a “noção de uma gestão pública não voltada para os resultados” (Anastasia, 2006, p. 14). Ora, para o gênero trabalho, a teleologia, fundada em sua própria gênese ôntica, é um atributo essencial. Nenhuma de suas espécies, inclusive a improdutiva prestação pública, poderia dar-se de forma casual, contingente, ao léu, sem pretender alcançar um fim e um bem qualquer. Reivindicar a busca de efeitos não passa de truísmo, além de vã tentativa homicida contra o sujeito do labor anterior ao advento da “modernidade” gerencial.

RESULTADO DO VALOR E VALOR DO RESULTADO No afã de se contraporem à chamada administração “clássica”, que se comprazeria a considerar os meios e regras procedimentais, os public managers apresentaram, “na área de planejamento e gestão estratégica”, a quantificação percentual dos resultados alcançados no desem-


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penho de “Projetos (programas) Estruturadores” e “não estruturadores” como se fosse a fina flor da inovação (Almeida; Guimarães, 2006, p. 89 e 90). Na verdade, eram apenas os triviais índices comparativos de execução, aplicados a créditos autorizados e despesas empenhadas, muito mais pobres do que os cálculos da função-eficiência. Os governantes adotaram, ainda, como forma de efetivarem seu método administrativo, o mecanismo da “contratualização de resultados”, isto é, o “compromisso (...) que regula as relações (via de regra) entre o núcleo estratégico (formulador de políticas) e as entidades descentralizadas (executoras)” (Duarte et. al, 2006, p. 96). Depois de apresentarem como precedentes, calcados num estudo de Saraiva (2005), vários casos pontuais, transcorridos em épocas e situações distintas, nomearam os portos por onde realmente passou a sua jornada intelectual: A Grã-Bretanha (...) vem utilizando largamente esses instrumentos a partir de 1988, quando da implantação do programa Next Steps que deu origem à criação das Agências Executivas e introduziu a figura dos Framework Documents (...). Austrália e Nova Zelândia também adotaram mecanismos de contratualização de resultados no bojo de suas experiências recentes de reforma. (...) Shepherd (1988) coloca em relevo a experiência chilena que, na visão do autor, foi o país que mais avançou na reforma gerencial na região (Duarte et al., 2006, p. 97).

Ciosos, porém, da esparrela em que se metera Collor, cujo voluntarismo o levara à ilicitude e possibilitara o impeachment, recorreram, como base legal, ao princípio e às demais normas aprovados em 1998, por meio da Emenda Constitucional nº 19. O atual art. 37, XXII, § 8º, da Carta Magna, permitiu-lhes ampliar “a autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta (...) mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho” (República Federativa do Brasil, 2008). Assim, os valores de uso das prestações foram reduzidos a meras quantidades, cuja averiguação comporta boa dose de formalismo, quando não resvala para o subjetivismo.


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Sob o nome de Acordo de Resultados, os pactos negociais de gestão “entre dirigentes de órgãos e entidades do Poder Executivo” (Duarte et. al., 2006, p. 98) – regrados pela Lei nº 14.694 e pelos Decretos 43.674 e 43.675, de 2003 – substituíram profusamente as relações características do serviço público. Concorreu, ainda, para dissolver a singularidade típica do trabalho na esfera estatal o “mecanismo de premiação dos servidores”, usando a concessão de incentivos econômicos à “produtividade” – entendida como “redução das despesas correntes” e “aumento da arrecadação de receitas” – em vantagens pecuniárias de até 70%, pelo Adicional de Desempenho (Duarte et. al., 2006, p. 100 e 101), que rebaixa o papel da responsabilidade axiológica, política e técnica do funcionalismo: Por isso o acordo por resultados é o instrumento mais importante porque desdobra isso para todas as equipes de trabalho. Ele sabe que o resultado daquilo pode levá-lo a receber até um 14º salário de prêmio de produtividade. O princípio da meritocracia avaliado pelo resultado que ele alcança, mas ele é avaliado também individualmente, porque a remuneração dele uma parte é fixa e outra parte pela avaliação de desempenho (Vilhena, 2013).

Os próprios partidários do chamado Novo Serviço Público – que tantas vezes se perderam em considerações românticas sobre o Estado, ao procurarem conciliar os seus vagos valores democráticos e humanistas com a sensibilidade fractal e irracionalista “pós-moderna” – têm recusado a New Public Management, sob o argumento convincente de que sua tradição se mostra “exaltada pelos modelos de mercado e pela economia da public choice”, mais preocupada “em reduzir o red tape e aumentar a eficiência e a produtividade do governo”, e sempre determinada em sonegar aos trabalhadores “especificamente um contexto moral para a ação pessoal” (Denhardt, 2012, p. XII e XIII). No caso de Minas Gerais, os resultados obtidos ficaram longe de serem propriamente alvissareiros. A concentração de esforços dos governantes mirou, no primeiro momento, com métodos informados por fortes medidas de austeridade, a meta de “ajustar-se à dura realidade fiscal” (Governo do Estado de Minas Gerais, 2006, p. 11). Todavia, a


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despeito dos criativos volteios conceituais e contábeis adotados, assim como do volumoso marketing que martelou diuturnamente a consigna “déficit zero”, a dívida estadual continuou em curva ascendente, como demonstra um estudo sobre o assunto: Entre 31/12/2002 e 31/12/2010, a dívida contratual (DC) do governo do estado de Minas Gerais evoluiu, em valores nominais, de R$34.650,5 milhões para R$64.475,8 milhões, (...) uma variação de 87,2%. A dívida consolidada líquida (DCL), (...) aumentou, neste mesmo período, de R$32.941,7 milhões para R$60.200,7 milhões, com uma variação nominal de 82,7%. (...) Isso significa que, em termos reais, (...) a dívida continuou em expansão, apesar dos elevados encargos que o estado vem fazendo para o seu pagamento, desde a assinatura do contrato com a União (Oliveira; Contijo, 2012, p. 95 e 96).

Fica registrado que, além dessa reversão de expectativa e das pífias despesas com políticas sociais, “notadamente a saúde e a educação”, o peso da austeridade caiu nos ombros dos servidores, vitimados pelo “arrocho dos salários” (Oliveira, 2010), tudo oficialmente definido como “promovendo os resultados buscados a custo menor” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 24). Tal escolha político-gerencial, que se tornou inercial e que o movimento sindical prossegue apontando severamente – inclusive com manifestações e greves –, determinou a compressão remunerativa logo em 2003, mesmo sob uma conjuntura econômica favorável: “O período de ‘caça ao gasto’ que marca este ano conseguiu produzir uma queda real de 3,1% das despesas correntes, com o congelamento dos salários do funcionalismo (queda de 5% reais no ano)” (Oliveira; Contijo, 2012, p. 85). Outrossim, mantiveram-se incólumes as disparidades regionais e o discreto crescimento econômico (Oliveira, 2010), de vez que suas dinâmicas se encontram atreladas, como simples subprodutos, à lógica metabólica do capital e do mercado. O Sistema Prisional é outro exemplo, desta feita na categoria das concessões administrativas. Trata-se de mais uma das medidas baseadas na Lei nº 14.868, de 2003, e encetadas no regime de Parceria PúblicoPrivada (PPP), que inclusive previa “estudos de modelagem” para a


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“construção de três mil vagas penitenciárias no âmbito do projeto estruturador Segurança Pública – Redução da Criminalidade Violenta”. A ideia, já esboçada em 2006, foi pagar “ao parceiro privado pelos serviços de operação, gestão e manutenção do presídio (ressalvadas a segurança externa e a direção-geral, que deverão ficar a cargo do parceiro público)”, na “estimativa de que o projeto possa aperfeiçoar o mecanismo de tutela e cuidado com o preso, viabilizando a sua reintegração posterior, gerando grande benefício à sociedade” (Athayde; Gusmão; Silva, 2006, p. 154 e 155). No início de 2013, o governador apresentou a “auspiciosa e inédita notícia” sobre a inauguração, em Ribeirão das Neves, da “primeira das cinco unidades do primeiro complexo penitenciário construído no Brasil, por meio de parceria público-privada”, para 3.040 detentos. A coisificação das relações sociais, típica do capitalismo, foi inspirada “no modelo inglês” e vista como “esforço ciclópico para humanizar todas as cadeias”. Caberá ao socioempresarial o conjunto dos serviços internos: além da guarda prisional, “as assistências médica, odontológica, psicológica, social e jurídica” (Anastasia, [s. d]), inclusive as socioeducativas, todas devidamente transformadas em mercadoria. Tal façanha recebeu a seguinte menção autoelogiosa e um tanto positivista: “maneira mais eficiente” de “modernização da gestão pública, sem sucumbir às armadilhas ideológicas ou às falsas dicotomias” (Anastasia, [s. d.]). Embora se proclame imparcial – vale dizer, uma volição técnica imune aos valores mundanos –, trata-se de opinião altamente controversa, que inclusive se encontra vivamente contestada pelo movimento popular na cidade, que engloba “entidades, igrejas” e “grupos organizados”: Não são estratégias de mercado, como a parceria público-privada, que poderão, em substituição à política pública, oferecer um serviço de qualidade e digno aos detentos, vistos pelo “mercado das prisões” como mais uma mercadoria de lucro para enriquecer alguns poucos empresários (...). É do conhecimento de todos que a privatização do sistema prisional em outros países não trouxe a redução da violência urbana (“Nós Amamos Neves”, 2012).


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Bresser, em pleno contencioso sobre a matriz da “Reforma Gerencial”, refutou o chamado “Estado liberal clássico” por se limitar, entre as “tarefas exclusivas”, tão somente às “Forças Armadas” e à “Polícia” (Bresser Pereira, 2001, p. 36). Referia-se, pois, ao minimum minimorum: ao piso cuja violação os próprios defensores da coisa pública nanica sempre julgaram inaceitável. Os dois últimos governadores de Minas Gerais, ao concederem o setor prisional ao comando econômicosocial do capital privado, retendo para si apenas a função de burocracia fiscalizadora externa, abriram mão do poder típico de polícia. Renunciando a tal prerrogativa extroversa de um modo que nem sequer o laissez-faire tradicional ousara fazer, situaram-se no lugar teórico, ideológico e prático do ultraliberalismo. O ex-ministro Paiva estava, pois, muito bem sintonizado com o espírito do “Choque de Gestão”, quando, após repetir as vulgatas e os chavões de praxe – “modernizar o Estado” e “fazer mais com menos” – , foi ao ponto nodal e teceu o elogio que julgou ser maior: “Um dos aspectos inovadores desse processo é a introdução efetiva e competente de experiências exitosas da gestão privada na administração pública” (Paiva, 2006). Seria exigir demais que percebesse a introjeção, além de meras práticas, métodos e valores, de relações sociais mercantis diretamente no aparelho estatal, destroçando por dentro o seu caráter mediador – instituição política – e, consequentemente, um dos princípios basilares da república democrática burguesa, tal como se configurou nos direitos conquistados pelas massas populares e recriados pelos “de cima” ao longo do século passado. Eis por que, mesmo no âmbito das teorias dedicadas à gestão e ao serviço público, tem havido um enorme desconforto: Como confessa Denhardt, a literatura teórica de administração pública tem se espelhado muito fortemente – para não dizer de forma exacerbada e acrítica – na literatura da gestão de negócios; a fundamentação teórica (public choice) do new public management é um exemplo inequívoco dessa afirmação (Menegasso, 2012, p. XXII).

A tentativa – ambientada na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Minas Gerais, com base em formulações afins – de fornecer


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um corpo conceitual à relação dos quadros governamentais, especialmente da elite tecnocrata, com as referências intelectuais desenvolvidas no mesmo campo ideológico durante os anos de 1990, embora rasa e pragmática, é sintomática: Ao invés do “Estado Mínimo”, preconizado até então, passou-se a dialogar sobre o “Estado Eficiente” como impulsionador do desenvolvimento. Emergiu então um novo paradigma de ação governamental centrado (...) em resultados que traduzem as principais demandas de serviços públicos por parte da população; modelos e práticas de gestão pública capazes de dotar o Estado de flexibilidade; inovação e rapidez em suas ações e propósitos. Ainda de acordo com o autor, essa é a essência do que se chama Estado Empreendedor (Tangari; Gonçalvez, 2012).

ALÉM DO LIBERALISMO A participação de técnicos provenientes da Fundação Dom Cabral no “Projeto Choque de Gestão” é um indício sobre as ideias que o hegemonizaram desde o início. Embora a celebrada instituição de ensino inclua, entre suas especialidades como “centro de desenvolvimento de executivos”, a preparação de “gestores públicos”, sua orientação enfatiza, seja a formação de “equipes que vão interagir crítica e estrategicamente dentro das empresas”, seja o “seu acesso a grandes centros produtores de tecnologia de gestão e a modernas correntes do pensamento empresarial (Fundação Dom Cabral). A presença dessa perspectiva repercutiu não apenas na concepção geral predominante, incluindo o chamado empreendedorismo, mas também na implantação dos acordos de resultados e das PPPs como instrumentos privilegiados. Assim, coeriu pessoas e aportes que vieram da empresa privada, da Universidade Federal de Minas Gerais, da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação João Pinheiro, constituindo um corpo de gestores identificados e envolvidos, doutrinária, política e profissionalmente, com o “Projeto Choque de Gestão”, bem como pessoalmente dependentes de seus resultados técnicos e desdobramentos eleitorais. A própria influência do Instituto de Desenvolvimento Gerencial, de 2003 a 2004, que mereceu um agradecimento especial (Anastasia,


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2006, p. 5), é muito esclarecedora quanto aos valores e à matriz da política estadual. Semelhante instituição, emblemática em promover consultorias a processos de ajustes em corporações empresariais e em governos desde o seu debute nos anos de 1980, quando introduziu a chamada Qualidade Total associada à Japanese Union of Scientists and Engineers, introjetou na administração pública a Metodologia Estruturada de Planejamento e Controle de Projetos (MEPCP), que exerceu um estrito controle sobre o “gerenciamento dos projetos estruturadores” (Almeida; Guimarães, 2006, p. 79). Tal linha gerencial, desenvolvida para o ambiente das corporações privadas, combina os conceitos contidos no guia prático Project Management Body of Knowledge, publicado pelo Project Management Institute, que rege os padrões estadunidenses, com a sequência PDCA – planning, do, check e act –, também conhecida como ciclo de Shewhart ou Deming, utilizado para se alcançarem resultados dentro de qualquer tipo de empresa, com vistas ao sucesso nos negócios. O dogmatismo já existente na generalização do procedimento para todas as unidades capitalistas particulares, reconhecidamente assimétricas, foi elevado à enésima potência em sua transposição mecânica ao domínio da administração pública, na falsa suposição de que sua universalidade abstrata responderia aos problemas concretos da gestão estatal. Ademais, destaca-se, desde a primeira hora, entre outras, a presença íntima do Instituto Publix, “uma organização que atua no mercado de consultoria” (Publix, O Instituto...). Em seu site, o livro O Choque de Gestão em Minas Gerais: políticas da gestão pública para o desenvolvimento – que apresenta a linha oficial – aparece como publicação própria, figurando o “Governo de Minas / Seplag” apenas na figura de “apoio” (Publix, Conheça nossas publicações). O feixe conceitual usado possui também o seu selo: desde “iniciativas de melhoria da governança pública”, até “abordagens, metodologias e instrumentos de gestão para resultados”, tudo devidamente ligado em “rede”, assim como legitimado por meio de apelos abstratos como “Ética, transparência e responsabilização” (Publix, O Instituto...), que não raro têm sido as túnicas de vestais. Trata-se, pois, de um aparato multiempresarial, que não apenas prenuncia, mas já realiza a simbiose direta e inflexível do capital e dos interesses privados com os órgãos e autoridades públicas maiores.


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Semelhante contexto diz muito sobre a linha de gestão em vigor no Estado de Minas Gerais, apontada pelos governantes como a menina de seus olhos: além da necessidade óbvia de políticas se integrarem entre si, a sua singular “adequação institucional voltada para o desenvolvimento”. Negando, segundo proclamaram, os pressupostos da Administração Pública Progressivista e o padrão da “burocracia ortodoxa”, os formuladores do “Choque de Gestão” se propuseram a coerir “meios e fins” na construção do seu “norte” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 29 e 31). Destarte, ao vincularem suas medidas “duras e necessárias (...) de primeira geração” – assim reconhecidas – com as diretrizes da chamada “reforma de segunda geração”, embutiram totalmente o conceito e as matérias referentes ao desenvolvimento nos mecanismos e procedimentos típicos de gestão, que por sua vez também já se encontravam dissolvidos, amalgamados e submetidos, com déficit de prerrogativas nacionais e de soberania, aos mitos da chamada “pós-modernidade”, como explicitaram na apresentação e na fundamentação de suas propostas. Por via de consequência, o desenvolvimento deixou de ser um problema nacional, articulado a um projeto alternativo para o País, que pressupõe o combate e a superação dos enormes obstáculos que lhe são interpostos pela formação econômico-social e pela ordem política vigente. Ao transformar-se em assunto exclusivo de gestão possibilista – calcada no já posto –, rebaixou-se, inapelavelmente, à mera reprodução do modo de produção capitalista tal como é, do atraso agrário e dos laços de dependência, bem como aos limites historicamente impostos ao regime político constituído sob a tutela monopolista-financeira e no curso de uma transição que conciliou com a herança deixada pelo regime político castrense. Mesmo que o Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado (PMDI), previsto na Constituição do Estado de Minas Gerais, se destine a estabelecer as diretrizes gerais para os demais instrumentos locais de planejamento, inclusive o Plano Plurianual de Ação Governamental, com suas revisões anuais, e as leis orçamentárias, a concepção em voga desde 2003 o vem rebaixando a mero capítulo da gestão administrativa, sujeito a pontuais alterações legislativas. Obviamente, os pioneiros sociais jamais podem ser indiferentes aos assuntos que afetam, mesmo indireta e levemente, a vida e os interesses dos trabalhadores e do povo.


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Todavia, é preciso ter plena consciência de que as políticas apresentadas anualmente à discussão pública em fóruns abertos permanecem ocultas no labirinto de sua forma – acessível somente a especialistas – e passíveis apenas de serem arranhadas em sua casca exterior. O PMDI 2011-2030 exprime tal concepção. De início, silencia sobre a estrutura monopolista-financeira da formação econômico-social mineira. Depois, quando se refere às vastas regiões rurais, esconde o latifúndio e omite a providência de reforma agrária ou democratização da terra, reivindicação histórica dos movimentos, entidades e partidos populares, limitando-se tão somente a anunciar uma rede para integrar “as ações de provimento de infraestrutura, crédito e apoio à comercialização”, com o objetivo exclusivo de “promover o desenvolvimento sustentável e a competitividade do agronegócio e da agricultura familiar” (Governo do Estado de Minas Gerais, [s.d.], p. 80). De fato, suas propostas se baseiam na concepção geral de que as mudanças tecnológicas e o conhecimento teriam substituído as relações sociais como ambiente e o trabalho como sujeito propulsor do desenvolvimento: A capacidade de uma sociedade e de sua economia gerar e assimilar mudanças tecnológicas é, cada vez mais, um fator chave para o crescimento econômico e o conhecimento tem se consolidado como um dos principais motores da economia mundial. Há um deslocamento gradual do valor da produção intensivo em materiais e energia, para a valorização do conhecimento e da inovação. Nesse contexto, confere-se importância crescente aos ativos intangíveis das empresas, abrindo novos segmentos e oportunidades de negócios (Governo do Estado de Minas Gerais, [s.d.], p. 26).

Em suma, trata-se de uma concepção pragmática, conservadora, tecnicista e autocrática de crescimento, que se define e milita contra as reformas de fundo que dariam possibilidade real, corte progressista, conteúdo democrático-radical, dimensão de justiça e caráter humano ao desenvolvimento econômico-social. Portanto, é preocupante sua pretensão à eternidade, expressa nos ordinais que denominam as sucessivas gerações do “Choque de Gestão”:


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O grande desafio a enfrentar agora é o de consolidar, institucionalizar o processo de transformação, de forma a assegurar a sua irreversibilidade (...). Por isto, não pode ser um projeto de um só governo, deve ser um projeto de Estado, mais ainda, um projeto da sociedade mineira (Vilhena, 2006, p. 354 e 355).

O anúncio da chamada “Terceira Geração do Choque de Gestão” contradita algumas afirmações feitas por ocasião da primeira. Em 2006, um compromisso lembrava que a “lei mineira” sobre as PPPs resguardaria “sempre, a participação da sociedade em todas as etapas do processo” e frisava que se abriria “à população a oportunidade de se manifestar sobre os projetos” (Athayde; Gusmão; Silva, 2006, p. 146 e 153). Hoje, o discurso é outro: os cidadãos eram “antes considerados apenas destinatários das políticas públicas implementadas pelo Estado” e só agora passariam a ocupar “também a posição de protagonistas na definição das estratégias governamentais”, de vez que a “sociedade civil organizada” seria um “ator ativo e imprescindível”. Esclarece, porém, para que não haja novos mal-entendidos, que a participação se dará nos interstícios da “organização do Estado em Redes” (Vilhena,Terceira Geração...). Nesse terreno institucional providencialmente fragmentado, fluido, movediço e errático, a presença das pessoas ocorreria tão somente em links informáticos, em conselhos meramente consultores e em reuniões com prerrogativas limitadas a detalhes ou trivialidades sem importância fulcral, assim mesmo circunscrita à esfera da mediação pública exterior e, ao fim e ao cabo, submetida, seja à palavra final da hierarquia político-burocrática, que jamais diluirá seu núcleo duro nas quimeras que divulga para quem queira acreditar, seja à lógica do capital – apelidada de mercado –, que prosseguirá prevalecendo na sociedade civil burguesa. Trata-se, mesmo, de uma “gestão da cidadania” (Vilhena, 2013): as classes populares apenas integrariam a cena como arremedo de sujeito político. As políticas encaminhadas na última década pelos governos estaduais de Minas Gerais declinaram ambições estratégicas e imprescritíveis, que estariam amparadas inclusive no art. 37 da Carta Magna, cujo caput cristaliza o princípio da eficiência. A aceitação de semelhante cláu-


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sula implica reconhecer – como definição de seu estatuto doutrinário e como pressuposto da ordem jurídica vigente – que sua presença, na condição de processo articulador de normas, regras e atos, impregna e orienta imperativamente o próprio ser da administração pública. Salvo contrário, o dispositivo constitucional responsável pelas relações internas indispensáveis ao bom funcionamento dos serviços estatais, consideradas irrenunciáveis, tornar-se-ia um mero enunciado diletante, sem efeito prático. Todavia, a base teórica e o esforço de hegemonia, respectivamente, apresentada e dispendido pela cúpula gerencial local, encontram-se em oposição flagrante, não apenas à lógica característica do serviço público, que se origina da sociedade civil para depois diferenciar-se em sua singularidade complexa, mas também ao próprio princípio constitucional da eficiência como processo efetivo, pois nega sua existência na prática ao dizer, de forma recorrente, que o Estado “é menos eficiente” e que somente o mercado “é virtuoso em eficiência” (Vilhena; Martins; Marini, 2006, p. 27). Nesses termos, desvela-se uma contradição insolúvel nas entranhas do status quo: ou bem os enunciados jurídicos maiores do País são apenas formais e estão realmente limitados pela vontade discricionária da classe dominante e de suas representações, o que implicaria a desagregação das mediações político-administrativas e a redução da coisa pública à sua essência de classe, ou bem as autoridades estaduais mineiras vêm trilhando um caminho que tangencia a ilegalidade, tornando o recurso à norma constitucional um artifício casuístico com vistas a adotarem, diretamente, a lógica empresarial. Semelhante aporia – e os dilemas que lhe correspondem – só poderá esfumar-se no momento em que a eficiência deixe, por meio da crítica ao gerencialismo burguês, de ser concebida como virtude cativa do capital privado, assim como passe, por meio da crítica ao direito positivo, a ser acolhida, não como princípio constitucional, que nunca deveria ser e para o qual jamais encontrará sustentação teórica consistente, mas como diretriz técnica integrante aos processos de planejamento e avaliação de políticas e atos na administração público-estatal.


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Cláudio Gontijo

NOTAS SOBRE A ECONOMIA POLÍTICA DO GOVERNO TUCANO EM MINAS GERAIS INTRODUÇÃO Afora os Balanços Anuais da Economia Mineira, publicados regularmente pela FIEMG, do Boletim de Conjuntura Econômica da Fundação João Pinheiro e de alguns poucos estudos sobre o assunto, como a coletânea organizada por De Oliveira e Siqueira, As muitas Minas (2010), é escassa a literatura sobre a estrutura e dinâmica da economia mineira, quanto mais da política econômica e financeira do governo do Estado, para não falar no rebatimento da política econômica do governo brasileiro sobre ela. Dado, contudo, as dimensões da tarefa, este texto não pretende suprir inteiramente essa lacuna, por demais ampla, mas apenas discutir, de forma crítica, algumas das características estruturais da economia de Minas Gerais e sua dinâmica cíclica, inserida na evolução da economia brasileira, suas transformações nas últimas décadas, assim como a estratégia de desenvolvimento abraçada pelo Governo Aécio Neves (1960-) e que não tem sofrido solução de continuidade no governo Antonio Augusto Junho Anastasia (1961-).

DO NACIONAL DESENVOLVIMENTISMO AO NEOLIBERALISMO FINANCEIRO A economia brasileira experimentou extraordinário processo de crescimento econômico e transformação estrutural entre a Revolução Constitucionalista de 1932 e a crise da dívida externa de inícios da década de 1980. Nesse período, dominado pelo nacional desenvolvimentismo, prevaleceu o denominado modelo de substituição de importações, que, embora acerbamente criticado por muitos economis-


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tas, foi o responsável pelo fato de o crescimento do PIB brasileiro se ter dado a um ritmo anual de 7,7% ao ano, superior, inclusive, ao do PIB mundial, que se expandiu a uma taxa anual média de 4,7% no período. Como consequência, o Brasil se tornou, já em 1961, quando do término do Programa de Metas de JK, no país mais industrializado do então chamado Terceiro Mundo. Esse acelerado crescimento econômico foi resultado do dramático processo de transformação da estrutura produtiva, com o decréscimo da importância relativa da agropecuária, cuja participação no PIB total a preços básicos recuou de 21% em 1947, para somente 11% em 1980, e do aumento paralelo da participação da indústria, que saltou de 26% para 44% no mesmo período. Em particular, ganhou destaque a indústria de transformação, cuja participação no PIB pulou de 20% para 34% (Figura 1). Ampliou-se, por outro lado, a participação da economia brasileira na economia mundial, de forma que a relação PIB do Brasil/PIB mundial passou de 1,6% em 1948, para 3,8% em 1980 (Figura 2). Esse aumento foi o resultado conjugado da ampliação da participação da agropecuária e da indústria brasileira, inclusive a da indústria de transformação, no valor adicionado desses setores no nível mundial.

Figura 1 - Participação da Agropecuária e da Indústria no PIB. Brasil, 1947-2009 Fonte: Ipeadata.


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Figura 2 - Participação do Brasil no PIB Mundial, 1948-2009 Fonte: Dados originais do Banco Mundial e do Ipeadata.

De fato, isso se pode verificar através do exame da Figura 3, que retrata a participação do Brasil no valor adicionado da agropecuária, produção florestal e pesca, assim como da indústria mundial, inclusive o dos segmentos da indústria extrativa e de serviços de utilidade pública e da indústria de transformação a partir de 1970. Em todos esses setores, a participação brasileira é crescente até inícios da década de 1980, quando, em razão da crise da dívida externa, o modelo nacional-desenvolvimentista foi colocado em xeque.

Figura 3 - Participação do Brasil no Valor Adicionado da Agropecuária e da Indústria Fonte: Banco Mundial e Instituto de Desenvolvimento Industrial.


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Graças, em parte, às denominadas Leis de Kaldor, que estabelecem que o ritmo de aumento da produtividade está positivamente correlacionado ao crescimento do setor industrial, observou-se, ao longo desse processo de crescimento econômico e transformação estrutural, sensível aceleração do crescimento da produtividade, ou seja, da eficiência da economia nacional em seu conjunto.1 A explicação das Leis de Kaldor reside no fato de que, desde a Revolução Industrial, a expansão do setor manufatureiro ocorre necessariamente com a incorporação do progresso técnico, que é inerente, como têm salientado vários autores, ao próprio sistema capitalista. Contudo, no caso dos países, como o Brasil, cujo processo de industrialização se deu de forma tardia, vale dizer, quando, no nível internacional, já se faziam presentes países com setores industriais maduros de alto conteúdo tecnológico, para não dizer dominados por oligopólios multinacionais, fizeram-se presentes especificidades marcantes. Para começar, a industrialização ficou condicionada, desde suas origens, ao protecionismo e aos incentivos governamentais, para não falar no contingenciamento cambial ou nas fortes pressões sobre a taxa de câmbio, resultantes do estrangulamento externo provocado pela queda das exportações de produtos primários causada pela Grande Depressão.2 De mais a mais, a inovação se deu mais pela importação de bens de capital dos países desenvolvidos do que pela introdução de novos produtos e novos processos criados e/ou desenvolvidos pelas empresas nacionais. Seja como for, o fato é que, impulsionados pelo processo de industrialização via substituição de importações, marcado pelo intervencionismo estatal sob diversas formas, vários países do Terceiro Mundo cresceram de forma exponencial entre meados da década de 1930 até princípios da década de 1970, sob o signo de acelerada e permanente revolução das tecnologias de produção. No caso do Brasil, as dimensões do seu mer1 As Leis de Kaldor (1967) estabelecem que: (i) o crescimento do PIB está positivamente correlacionado ao crescimento do setor manufatureiro; (ii) a produtividade do setor manufatureiro está correlacionada positivamente com o crescimento do PIB desse setor (Lei de Verdoom); (iii) a produtividade do setor não manufatureiro também está correlacionada positivamente com o crescimento do PIB do setor manufatureiro. Veja-se, também, Thirlwall (1989). 2 Veja-se Gontijo (2005).


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cado interno efetivo, resultante da expansão cafeeira verificada até 1930 e de seu mercado potencial, expresso pelo seu grande contingente populacional, viabilizaram empresas de escala relativamente grande em diversos setores da atividade econômica. Em contraposição, os países com mercados reduzidos, como no caso de Taiwan, Coreia do Sul e Singapura, a política de substituição de importações teve de ser complementada, de forma progressiva, por uma política de expansão das exportações, com a importação de insumos e componentes não produzidos domesticamente. Inserida no processo de industrialização brasileira, a economia mineira se ressentiu, desde cedo, de fortes entraves, causados pelo reduzido dinamismo de sua agropecuária, assentada, em grande medidas, em técnicas tradicionais e relações de produção arcaicas, onde predominavam, lado a lado com a pequena produção familiar, as grandes fazendas autossuficiente, alicerçadas no trabalho de meeiros e agregados. Carecendo de uma cafeicultura dinâmica, como a paulista, assentada no colonato, Minas não se industrializou, durante a República Velha, nas dimensões de São Paulo, apesar da instalação, desde cedo, da siderurgia de escala relativamente reduzida, em harmonia com a presença de grandes jazidas de minério de ferro de alto teor. Daí os esforços precoces de empresários e políticos mineiros no sentido de superar seu atraso relativo, claramente identificado quando da superação do modelo primário exportador, na esteira da Grande Depressão e do colapso da República Velha. Verificando que, ao contrário de São Paulo, a industrialização não iria resultar do dinamismo das forças de mercado, os políticos mineiros, muito cedo, alçaram o setor público estadual como o seu promotor. Como resultado, já no final da década de 1930, o Governo do Estado se lançou na experiência de montagem de um sistema energético público e, na seguinte, criou a primeira cidade industrial do País, em Contagem. Na sequência, empreendeu, década de 1950, enorme esforço no sentido de superar os estrangulamentos existentes ao nível do binômio energia e transportes, embora, como salienta Diniz (1981, p. 18), tenha sido somente com o programa rodoviário e energético nacional, em especial a transferência da capital federal para Brasília, que se superou definitivamente o isolamento geográfico mineiro. Apesar dos esforços do setor público, a industrialização de Minas, contudo, se manteve acanhada até fins da década de 1970, devido às suas


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características estruturais (dispersão das atividades econômicas; mercado interno restrito, em razão da lentidão da predominância de relações não assalariadas na agricultura, dominada por grandes fazendas autossuficientes; polarização das indústrias paulista e do Rio de Janeiro; topografia difícil). Mesmo os investimentos externos se deram em um montante modesto em relação ao verificado em São Paulo, restringindo-se principalmente aos setores de mineração e metalurgia. A frustração do processo de desenvolvimento econômico de Minas, todavia, não impediu que as lideranças estaduais atuassem de forma decisiva, através da ampliação do aparato institucional de apoio à industrialização, a começar pela criação do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), em 1962. Os parcos resultados do Banco (em grande parte em razão da exiguidade dos recursos disponíveis), contudo, levouo, em conjunto com a CEMIG, a constituir o Instituto de Desenvolvimento Industrial (INDI), em 1968. O próximo passou veio com a instituição do Conselho Estadual de Desenvolvimento (CED), que abrigaria o Gabinete de Planejamento e Coordenação do Governo do Estado, e, em seguida, a reforma fazendária, que promoveu a reestruturação interna da Secretaria da Fazenda. Além da instituição do caixa único, da centralização da arrecadação e da dívida pública através da rede bancária e do controle do sistema financeiro público estadual, esta reforma permitiu, como ressalta Diniz (1981, p. 162), transformar a Secretaria “em agente do desenvolvimento econômico, inclusive pela manipulação do sistema de incentivos fiscais e da participação acionária do Estado em empreendimentos considerados prioritários para Minas Gerais”. Além disso, ainda seriam criadas a Fundação João Pinheiro, encarregada de elaborar estudos e diagnósticos socioeconômicos, além de programas e projetos de desenvolvimento, da Companhia de Distritos Industriais (CDI), em 1971, e do CETEC, em 1972, que a exemplo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), seria orientado para o desenvolvimento em C & T do Estado, tendo em vista o seu progresso econômico. Seja em razão dos próprios vínculos estruturais entre a indústria mineira – especializada na produção de insumos industriais e em bens de capital – e a indústria brasileira, que passou por importante processo de mudança estrutural, devido à implementação do II PND, com o avanço dos setores de produção de insumos e bens de capital, seja devido


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aos esforços do setor público estadual, acima mencionados, o fato é que a economia mineira se acelerou relativamente à brasileira, com o aumento da participação de Minas no PIB do País. De mais a mais, com a instalação da FIAT, em meados da década de 1970, deu-se importante passo no sentido de ampliar a diversificação do parque industrial do Estado, reduzindo sua dependência tradicional em relação à mineração, à siderurgia e a outras indústrias produtoras de insumos básicos. A continuação desse processo, contudo, seria interrompida durante a “década perdida”, que assistiu ao colapso do nacional desenvolvimentismo. De fato, com a eclosão da crise da dívida externa, em princípios da década de 1980, e a decisão do governo militar de honrar os compromissos externos, não obstante a natureza eminentemente financeira do endividamento brasileiro, encetou-se drástico programa de ajuste macroeconômico, que afetaria o complexo de promoção do desenvolvimento, envolvendo instituições federais e estaduais, desembocando no seu progressivo esvaziamento.Além disso, através do processo de nacionalização da dívida externa, o custo do ajustamento macroeconômico foi efetivamente transferido para o setor público brasileiro e para as empresas estatais, resultando na crise fiscal do aparato público e na fragilização financeira dessas empresas. Paralelamente, as máxidesvalorizações cambiais e o atrelamento do câmbio às variações dos índices de preços provocaram forte aceleração inflacionária. No entanto, apesar do aumento da taxa de inflação e da sensível redução do ritmo de crescimento econômico, não houve mudança do modelo de desenvolvimento na primeira metade da década de 1980 e, passada a recessão de 1981-1983, a crise financeira do setor público pouco afetou as empresas privadas e o sistema nacional de promoção da inovação, apesar de as empresas estatais terem reduzido fortemente os seus investimentos, inclusive em novas tecnologias. Mas, enquanto o Brasil lutava, ao longo da década de 1980, com o estancamento econômico, a instabilidade inflacionária, a deterioração dos serviços públicos e a crescente ineficiência das estatais, a economia internacional voltava a reativar-se, a partir de 1983, em razão da recuperação da taxa de lucro (Figura 4), na esteira de novo ciclo da revolução técnicocientífica, oriunda da difusão das inovações proporcionada pela microinformática. A elevação da taxa de lucro viabilizou as políticas expansionistas


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dos Estados Unidos sob a presidência de Ronald Reagan, num contexto de queda dos preços reais do petróleo e da taxa de juros, sem que, conforme ocorrera na década de 1970, essa desembocasse na estagflação.

Figura 4 - Comportamento da Taxa de Lucro do Setor Privado, EUA e Europa, 1960-2002 Fonte: Duménil e Lévy (2004, p. 90).

Mais do que isso, em lugar de representar apenas uma recuperação temporária da trajetória de crescimento econômico, conforme ocorrera entre 1976 e 1978, desta feita à reativação econômica corresponderia uma nova fase de expansão do ciclo de Kondratief, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, se assistia ao aprofundamento da estagnação dos países do bloco socialista que se iniciara em fins da década dos setenta, a prenunciar a perda de legitimidade do regime comunista, preso na armadilha do estancamento econômico, obsolescência tecnológica, e, no caso da Polônia, Yugoslávia e de outros países do Leste Europeu, do endividamento externo. Dessa tensão gerada pela retomada do crescimento dos países capitalistas avançados, num contexto de reformulação da base tecnológica e de reafirmação da hegemonia financeira, que havia sido perdida durante a Segunda Guerra Mundial, de um lado, e o estancamento econômico e tecnológico dos países socialistas, num contexto de repressão política permanente, o regime comunista iria soçobrar, na esteira da tentativa de reformulá-lo.


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A conjugação do forte desgaste do modelo de substituição de importações nos países periféricos, incapazes de articular uma saída para a crise da dívida externa, com a crise – e depois do colapso – do bloco socialista, em meio à retomada do dinamismo da economia mundial, num contexto de nova revolução tecnológica, não poderia redundar em outra coisa que não o desprestígio do projeto nacional-desenvolvimentista, assentado no planejamento em larga escala e na intervenção do Estado na economia. No Brasil, a opção pelo neoliberalismo, com o abandono do projeto nacional-desenvolvimentista, ocorreu durante o governo do presidente Collor de Mello, que deslanchou tanto o processo de abertura dos mercados quanto de privatização das estatais, que foram reforçados durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na verdade, o processo de globalização se traduziu, até 2002, pelo aumento das transferências de recursos dos países não desenvolvidos para os países desenvolvidos, quer a título de remuneração dos fatores produtivos, quer a título do pagamento de royalties e direitos de propriedade intelectual. Já a adoção das políticas de liberalização do comércio exterior não resultou em melhoria da balança comercial desses países; antes pelo contrário, conforme o demonstraram as crises dos países latino-americanos (México, em 1995, Argentina, em 1995 e 2001, e Brasil, em 1999, para somente citar os mais importantes) e dos países asiáticos (Tailândia, Malásia, Indonésia e Coreia do Sul, em 1997), o liberalismo comercial provocou desequilíbrios expressivos, a requerer rígidas políticas de ajuste e fortes desvalorizações cambiais – com todo o conteúdo recessivo nelas implícitos – para a superação do quadro crítico. Os defensores da inserção incondicional no processo de globalização têm argumentado que, uma vez tendo sido removidas as distorções causadas pela intervenção governamental, os benefícios da recente revolução tecnológica liderada pela informática fluiriam ao redor do mundo, provocando o aumento da renda possibilitado pelos ganhos de produtividade, com o declínio do desemprego e a redução dos problemas sociais. A liberalização dos movimentos de capital, por outro lado, redundaria na queda das taxas de juros e no aumento dos investimentos, com a aceleração do crescimento econômico. No entanto, ao contrário do previsto, a taxa média de crescimento do PIB mundial, que atingira o patamar de 4,9% ao ano durante o período de forte intervenção estatal


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(1950-1973), caiu para 3,2% durante a década de 1980, atingindo 3,0% na década seguinte, num contexto de manutenção de elevadas taxas de juros, crises recorrentes, queda da taxa de investimento e ampliação, tanto dos problemas sociais quanto da disparidade entre os países ricos e os países periféricos, cuja participação no PIB mundial recuou de forma significativa depois de 1980. O mesmo se observou com a economia brasileira, cujo ritmo anual médio de crescimento caiu para 2,9% na década de 1980 e para apenas 1,6% na década seguinte, bem abaixo, portanto, da taxa de expansão da economia mundial. Repercutindo essa forte desaceleração, a economia mineira cresceu somente 1,7% ao ano na “década perdida”, muito abaixo, portanto, da economia nacional, embora se tenha invertido, na década seguinte, a relação, pois a economia de Minas Gerais se expandiu a um ritmo de 2,6% (Figura 5). De qualquer modo, contudo, essas taxas, se não caracterizam uma situação de completa estagnação econômica, significam um crescimento muito lento – consequência necessária, na década de 1980, da decisão do governo Figueiredo de honrar a dívida externa e, na década seguinte, da adoção do modelo neoliberal, com políticas fiscais restritivas, altas taxas de juros, privatização das estatais e liberalização dos mercados, particularmente das importações.

Figura 5 - Perfil do Crescimento das Economias Mineira, Brasileira e Mundial. Fonte: FMI e IBGE.


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DA BOLHA DO SUBPRIME À CRISE MUNDIAL O longo período de lento crescimento da economia mundial sob a dominância do capital financeiro, que se iniciou em torno de 1982, terminou com o novo ciclo expansivo, iniciado por volta de 2002, na esteira da bolha especulativa dos créditos hipotecários subprime, que conduziria à crise de outubro de 2008. Tudo começou com a adoção de uma política monetária expansionista pelo Federal Reserve (Fed) – o banco central dos Estados Unidos –, que objetivava enfrentar o estouro da denominada “bolha do dot.com”, “bolha da Internet” ou “bolha do mercado de alta tecnologia”, causada pela queda dos lucros da indústria de telecomunicações, que se tornaram negativos em 2000, depois de terem atingido US$ 35,2 bilhões em 1996. Ocorrendo em 4 de abril desse ano, o estouro provocou, além de brutal queda do valor das ações cotadas na Bolsa de Nova York e nos demais mercados de capital do mundo, drástica redução dos investimentos e do próprio nível do consumo, jogando a economia norte-americana na recessão, o que afetou seriamente o desempenho da economia internacional. Reagindo à crise, o Fed cortou a taxa de juros dos federal funds de 6,5% para 6% no dia 3 de janeiro de 2001, dando início a uma série de reduções que desembocaria em uma taxa de somente 1% a partir de 25 de junho de 2003, patamar que seria mantido até 30 de junho de 2004, quando, em razão da recuperação da economia norte-americana, foi elevada para 1,25%. À redução da taxa de juros e a implementação de uma política monetária folgada por parte do Fed se somou, depois do atentado terrorista de 11 de setembro de 2011, uma política fiscal também expansionista, condicionando novo e extraordinário ciclo de expansão da economia mundial, alicerçado, desta feita, na bolha dos créditos hipotecários subprime e no aumento do crédito ao consumidor. Nesse novo ciclo, os expressivos déficits em conta-corrente dos Estados Unidos, que chegaram a US$ 3.404,3 bilhões no quadriênio 2003-2007, funcionaram como uma verdadeira “máquina de dinheiro”, para usar a expressão de Rolfe e Burtle (1973, p 82), contribuindo decisivamente para que o ritmo de crescimento da economia mundial atingisse 4,8% ao ano durante o período 2003-2007. Efetivamente, o Brasil, então sob a Presidência de Lula da Silva, pôde “surfar” nessa onda expansiva, devido ao espetacular aumento das expor-


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tações brasileiras, que praticamente dobraram entre 2002 e 2005, saltando de US$ 60,4 bilhões para US$ 118,3 bilhões, e continuaram a aumentar de forma expressiva até 2008, quando atingiram US$ 197,9 bilhões, consolidando, assim, um aumento de 227,9% em apenas seis anos! Dos quase US$ 137,6 bilhões do acréscimo nas exportações nesse período, cerca de US$ 56,1 bilhões, ou 40,8%, corresponderam às vendas de produtos básicos, grande parte dos quais se destinou à China, cujas aquisições de produtos brasileiros cresceram 555,4%. Paralelamente, devido ao fato de o Brasil ter continuado a apresentar as mais altas taxas de juros do mundo, num contexto de moeda em valorização frente ao dólar, assistiu-se à volumosa entrada de capitais, tendo o País acumulado expressiva reservas internacionais, que pularam de US$ 37,8 bilhões em 2002, para US$ 206,8 bilhões em 2008. Essas reservas cambiais acrescidas, ao se transformarem em disponibilidades bancárias, induziram as instituições financeiras a expandir o crédito, o que resultou em forte impulso para o crescimento econômico, que ganhou força, apesar das políticas contracionistas do primeiro governo Lula da Silva. Assim, assistiu-se à nova, embora tímida, aceleração do crescimento econômico brasileiro, que se traduziu numa taxa de variação do

Figura 6 - Taxas de Crescimento do PIB Real do Brasil e de Minas Gerais Fonte: IBGE.


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PIB real de 4,2% ao ano no período 2003-2008, próxima, portanto, do ritmo da economia mundial no período, de 4,4% ao ano. Também Minas Gerais, agora sob o governo tucano, tiraria vantagem dessa fase de “vacas gordas”, com a sua economia se expandindo a um ritmo de 4,3% ao ano, muito próximo, portanto, tanto do ritmo da economia brasileira quanto da mundial. Todavia, refletindo suas características estruturais, marcadas, no âmbito industrial, pelos setores produtores de meios de produção, a economia mineira apresentaria, como registra a Figura 6, flutuações mais acentuadas do que a economia brasileira. Essa tímida aceleração do crescimento econômico mineiro a partir de 2003, contudo, não se refletiu em mudanças da estrutura produtiva que representassem avanços em termos da sua diversificação, retirando a dependência do Estado em termos de seus setores tradicionais. Antes pelo contrário, conforme se observa pelo exame da Tabela 1, que retrata a composição do valor adicionado bruto a preços básicos no período 1995-2012, além da tradicional perda de importância relativa do setor agropecuária, cuja participação recuou 1,6%, o aumento da importância relativa do setor industrial se deveu, além do crescimento da indústria de construção, que tem atravessado um período de expansão cíclica, graças, em grande parte, às maiores disponibilidades de crédito, à indústria extrativa, que se beneficiou enormemente das condições extraordinariamente favoráveis do mercado internacional, em que a presença da China como grande importador de minérios e outros produtos básicos se fez sentir de forma crescente. Aliás, também se pode notar a expressiva queda da participação do setor público – prestador de serviços essenciais à população – no período, para não falar na redução da importância relativa dos setores de energia, saneamento e limpeza urbana, produto, em grande parte, da interrupção dos investimentos em barragens pela CEMIG e da tímida atuação da COPASA.


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Tabela 1 Composição do Valor Adicionado a Preços Básicos Minas Gerais, 1995 – 2010 Em %

Fonte: IBGE.

Na verdade, essas modificações estruturais regressivas, que têm reforçado a dependência da economia mineira em termos de produtos primários, são o resultado, em grande parte, da própria dinâmica das exportações, que favoreceram particularmente a economia mineira a partir de 2003. A Figura 7 retrata a evolução dessas exportações por natureza do produto, revelando o seu extraordinário dinamismo no período 1998-2011, quando se expandiram a um ritmo anual de 13,9%, mas particularmente a partir de 2003, quando a taxa anual de crescimento pulou para 23,2% ao ano. Embora nesse último período as exportações de produtos industriais (incluindo semimanufaturados) se tenham expandido a um ritmo de 17% ao ano, o aumento das exportações de produtos básicos foi ainda mais espetacular: 28,4% ao ano.


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Figura 7 - Exportações de Minas Gerais segundo a Natureza do Produto (em US$ bilhões) Fonte: FJP.

A composição das exportações mineiras por produto se encontra retratada na Figura 8, que revela a importância fundamental dos produtos primários, como minério de ferro, que respondeu, em 200 por 45,5% das exportações mineiras, café (14,0%); ferro nióbio (4,1%), ouro (3,5%) e açúcar (1,8%). Quanto aos produtos industrializados, os únicos destaques são os veículos (4,0%), outros produtos de ferro/aço (1,6%), madeira e pasta química (1,5%) e ferro fundido (1,2%), muitos dos quais, conforme se pode comprovar, são semimanufaturados, próximos, em termos de cadeia produtiva, dos produtos primários. E a Figura 9 confirma essa perspectiva, ao mostrar a concentração das exportações mineiras nas mãos de somente algumas empresas, como a Vale do Rio Doce (40,6%), CBMM (4,5%), Fiat (4,0%), Namisa Minérios (3,7%) e Gerdau Açominas (3,5%).


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Figura 8 - Exportações de Minas Gerais por Produto em 2011 (em US$ bilhões) Fonte: FJP.

Figura 9 - Composição % das Exportações de Minas Gerais por Empresas em 2011 Fonte: FJP.

As figuras 10 e 11, por outro lado, também revelam os impactos da crise do subprime sobre a economia mineira, que, novamente em razão de suas características estruturais, sofreu relativamente mais do que a brasileira, em parte pela própria queda das exportações, que recuaram quase 20,2% em 2009 em relação ao ano anterior, enquanto o PIB caia 4,0%, contra uma queda do PIB brasileiro da ordem de 0,9%.


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O “CHOQUE DE GESTÃO” DO GOVERNO AÉCIO NEVES O governo Aécio Neves se iniciou com a identificação, pelos novos administradores do Estado, de um “gravíssimo quadro fiscal, com gravíssimo déficit orçamentário desde 1996, pelo que faltavam recursos para todas as despesas, inclusive para regular o tempestivo pagamento da folha de pessoal” (Anastasia, 2006, p. 13). Diante disso, sua primeira iniciativa foi, sem dúvida alguma, o denominado “choque de gestão”, que seria utilizado como peça-chave na promoção das “qualidades administrativas” do novo governo mineiro empossado em 2003. Expressão cunhada pelo Banco Mundial, o “choque de gestão” objetiva equilibrar o orçamento do setor público, através do aumento da receita e da redução de despesas, além da reorganização e suposta modernização do seu aparato institucional, implementando novos modelos de gestão, próprios da esfera privada, inclusive a implementação de parcerias público privadas. No caso de Minas Gerais, em que, além da crise fiscal, também se convivia com uma forma de funcionamento do estado “obsoleta e bolorenta” (Anastasia, 2006, p. 15), o governo tucano se propôs, numa primeira etapa, sanear as contas do estado, visando criar as condições minimamente requeridas para se avançar na retomada dos investimentos públicos e, com isso, abrir os caminhos para o reingresso de sua economia numa etapa de crescimento sustentado (De Oliveira; Gontijo, 2012, p. 81).

E, de fato, conforme mostra a Tabela 2, o déficit orçamentário, que atingira R$ 874,3 milhões no último ano do governo Itamar Franco (2002), caiu para menos de R$ 227,9 milhões no ano seguinte, tornando-se superavitário a partir de 2004, situação que se manteria indefinidamente até os dias de hoje. Na verdade, contudo, quando se subtraem as operações de crédito, verifica-se que o equilíbrio orçamentário foi efetivamente alcançado somente durante três anos – 2004, 2005 e 2008 –, voltando o setor público estadual a experimentar déficits superiores a R$ 1,0 bilhão no biênio 2009 e 2010, quando os bons ventos da economia mundial e bra-


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sileira em acelerada expansão haviam sido substituídos por um cenário adverso, particularmente em 2009, quando se fizeram sentir todos os efeitos negativos da crise do subprime. Tabela 2 Resultado da Execução Orçamentária Setor Público de Minas Gerais, 1998-2011 Em R$ mil

Fonte: Secretaria da Fazenda do Estado de Minas Gerais.

Porém, se os mesmos dados da Tabela 2 deixam claro que, contrariamente aos epígonos do “Choque de Gestão”, o mesmo não produziu o equilíbrio orçamentário no longo prazo, deixam de revelar os seus custos sociais, que foram pesados. De saída, a redução de despesas foi resultante, em primeiro lugar, do arrocho salarial obtido através do congelamento dos salários do funcionalismo num contexto inflacionário, que resultou, além de uma queda de mais de 10% dos vencimentos reais da categoria no período 2003-2004 (Tabela 3), em um recuo da relação despesas com pessoal (inclusive encargos)/receita corrente líquida do estado de pouco menos que 73,1% em 2002, para 67,1% em 2003 e 58,2% no ano seguinte, para alcançar o seu piso em 2005, quando chegou a pouco mais que 52,2%. Em segundo lugar, também contribuiu para o ajuste o contingencimento, em 2003, de 20% das despesas do Tesouro Estadual, com o corte real de 13,1% dos gastos com custeio e de 32,6% dos investimentos.


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Tabela 3 Governo do Estado de Minas Gerais: evolução das despesas, por algumas categorias econômicas e taxas de crescimento real – 1998-2010 Em R$ milhões de 2011*

Fonte dos dados básicos: Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Relatórios Técnicos da prestação de contas do Governador - vários anos; Secretaria da Fazenda do Estado de Minas Gerais. Relatórios da Execução Orçamentária. (*) Corrigido pelo deflator implícito do PIB de Minas Gerais.

Mas como era de se esperar, o corte do custeio afetou dramaticamente a prestação dos serviços sociais, inclusive na sensível área da segurança pública, causando verdadeira crise no setor, com o aumento expressivo da criminalidade, tendo a taxa de crimes violentos saltado de uma média de 35 por 100 mil habitantes em 2002 para um pico de quase 50 por 100 mil habitantes em meados de 2004. Na realidade, essa taxa continuou a aumentar nos próximos anos, tendo atingido 250 por 100 mil em 2011 e 324 por mil no seguinte, caracterizando verdadeira crise do setor de segurança pública do Estado.


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Figura 10 - Comportamento da Taxa de Crimes Violentos em Minas Gerais, jan. 2002-Marr. 2004 Fonte: FJP.

Mas, além dos cortes das despesas com investimentos e custeio, os cofres estaduais também se viram beneficiados por ter a União concordado em abater R$ 119,5 milhões dos encargos correspondentes ao Bônus do exterior que a União havia saldado em 1999, diante da suspensão dos pagamentos efetuada pelo governo Itamar Franco. Além disso, o Governo Estadual deixou de pagar R$ 250 milhões à CEMIG, por conta de sua dívida referentes à Conta de Resultados a Compensar (CRC). Do ponto de vista das receitas, o “Choque de Gestão” do governo tucano implementou o denominado Programa Modernizador da Receita, abrangendo a adoção do Simples; a desoneração tributária de 150 produtos; a simplificação tributária; a ampliação da substituição tributária; medidas de restrição da guerra fiscal e de combate à sonegação, a elevação das alíquotas do IPVA, do ITCD e das taxas estaduais; a melhoria da receita patrimonial, o reajuste da Unidade Fiscal do Estado de Minas Gerais e o aumento da receita da administração indireta. Mas, afora o recebimento de R$ 223 do Governo Federal a título de ressarcimento das despesas com as estradas federais, conforme negociado ainda pelo governo Itamar Franco, o que realmente aliviou as contas estaduais foi o crescimento da arrecadação tributária resultante da reativação da economia, que ganhou fôlego a partir de 2004, permitindo que a receita com ICMS crescesse a uma taxa anual média superior a


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9,0% de 2002 a 2008. Contribuição não desprezível também foi dada pela receita proveniente da quota parte do setor público estadual na arrecadação da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), que, graças principalmente ao aumento da produção de minério de ferro para exportação, saltou de R$ 33,1 milhões em 2004, para R$ 123,0 milhões em 2010, tendo ultrapassado R$ 181,4 milhões no ano seguinte. Em suma, nas palavras de De Oliveira e Gontijo (2012, p. 85), caso a economia mineira não tivesse experimentado um comportamento altamente favorável a partir de 2003 e uma ajuda extra das receitas extra orçamentárias não tivesse sido dada ao governo, além de se ter contado com a contribuição obtida com a adoção do instrumento da Contabilidade criativa, certamente essa história não seria tão exitosa.

E nada exitosa, na verdade, foi a história depois da desaceleração econômica provocada pela crise do subprime em fins de 2008, que desnudou a natureza do “Choque”, com o setor público estadual mergulhando, uma vez mais, em déficits bilionários, conforme apontado anteriormente. Isso sem falar, como não poderia deixar de ser, no crescente endividamento do Estado (Tabela 4), mesmo quando se desconsidera a dívida com a União, cuja evolução esteve condicionada quase que exclusivamente pelos termos do Acordo de 1997 e da Lei 9496/97, pelos quais os encargos da mesma ficaram em juros de 7,5% ao ano mais correção monetária do saldo devedor pelo IGP-DI. Além disso, estipulou-se que 13% da Receita Líquida Real do Estado seriam destinados para cobrir o seu serviço até 2028, sendo que o saldo devedor eventualmente existente em 31 de dezembro desse ano deveria ser liquidado até 2038. Embora, em larga medida, o governo mineiro não possa ser diretamente responsabilizado pela evolução dessa dívida, saliente-se que os termos do Acordo da Dívida foram estabelecidos pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, sem que nenhum político tucano, como o governador Eduardo Azeredo, ou o então deputado federal Aécio Neves, líder do PSDB na Câmara, tivesse protestado. Mais do que isso,


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somente a partir de 2012, depois de o Tribunal de Contas de Contas ter alçado sua voz, mostrando o absurdo dos custos da dívida com a União, foi que o governador de Minas, Antonio Anastasia, e o senador Aécio Neves passaram a criticar os termos da mesma. Tabela 4 Evolução da Dívida do Setor Público de Minas Gerais – 1998-2010 Em R$ milhões de 2011*

Fonte: Tribunal de Contas de Minas Gerais (*) Corrigidos pelo deflator implícito do PIB de Minas Gerais.

Mas mesmo quando se subtrai a dívida com a União, ainda assim o crescimento real da dívida pública mineira, ou seja, descontando-se a inflação, foi de 24,3% entre 2003 e 2010. É claro que, em parte, esse expressivo aumento se deveu à dívida com a CEMIG, que, a preços de 2011, saltou de R$ 4.118,5 milhões para R$ 5.341,4 milhões no mesmo período (aumento de 29,7%). Isso se explica, contudo, não somente pelos termos ainda mais abusivos do contrato entre o Estado de Minas e a CEMIG, da qual é o acionista controlador, mas pela decisão de não pagar a totalidade do serviço dessa dívida, mesmo quando as condições financeiras do setor público estadual o permitiram, para não falar no


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abatimento da mesma utilizando os recursos que cobriram a construção da Cidade Administrativa. Tratou-se, assim, como se verá na seção “Gestão ‘eficiente’, rumo incerto e obras faraônicas”, de opção política de elevado custo para os cofres estaduais. Mas mesmo quando se desconsidera a dívida com a CEMIG, ainda assim torna-se inescapável concluir que o governo optou claramente pelo endividamento do Estado, pois, a preços de 2011, a dívida restante saltou de R$ 6.867,8 milhões em 2003, para R$ 8.320,1 milhões em 2010, num acréscimo de 21,1% acima da elevação do nível de preços no período. Não se pode negar, portanto, que o governo Aécio Neves deixou pesado fardo para as gerações futuras de Minas Gerais, que terão que arcar com o pagamento de uma dívida muito maior.

GESTÃO “EFICIENTE”, RUMO INCERTO E OBRAS FARAÔNICAS Para o Banco Mundial, a gestão do governador Aécio Neves foi caracterizada como de muita eficiência, o que contribuiu para que a instituição concedesse vultosos empréstimos para o governo mineiro, entre os quais se destaca o financiamento de US$ 976 milhões, concedido em maio de 2008 sem outra contrapartida financeira que o cumprimento de 24 metas estipuladas em programas sociais em várias áreas, tais como educação, saúde, gestão e desenvolvimento econômico. Essa pulverização de recursos se revelou, inclusive, em projetos envolvendo expressivas somas, como no caso do Proacesso (Programa de Pavimentação de Ligações e Acessos Rodoviários), iniciado em 2004, com recursos próprios, mas que recebeu R$ 100 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 21 de dezembro de 2005. Prevendo o asfaltamento do acesso de 224 municípios, 60% dos quais localizados nas regiões Norte e Noroeste, assim como nos vales do Jequitinhonha, Mucuri e Rio Doce, aos principais eixos rodoviários do Estado, o Programa havia sido responsável, em fins de 2010, pela pavimentação de 4.528,6 km, com desembolsos de R$ 3.009,3 milhões. Embora, ao facilitar o acesso dos municípios a serviços e mercados regionais, certamente tenha melhorado a qualidade de vida das popu-


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lações beneficiadas, sua contribuição para o desenvolvimento econômico de Minas foi, na melhor das hipóteses, marginal, de modo algum justificando os recursos alocados. Do ponto de vista eleitoral, contudo, o Proacesso certamente rendeu vultosos juros políticos, o que leva a questionar quais teria sido a sua verdadeira motivação. Tampouco o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais foi utilizado de forma a financiar grandes projetos estruturantes, e, apesar do saldo de seus empréstimos, conforme mostra Gontijo (2005), ter aumentado 158,6% em termos reais no período 2003-2010, sua participação no total do crédito concedido pelo setor financeiro em Minas Gerais caiu de 1,66% em 2004, para 0,85% em 2009. Aliás, em fins desse ano, os créditos concedidos pelo Banco representavam somente 47,8% de suas aplicações, que se concentravam em ativos financeiros, em lugar, portanto, de estarem direcionadas ao desenvolvimento da economia estadual. No caso da CEMIG, a empresa parece ter abandonado, durante o governo Aécio Neves, qualquer compromisso com desenvolvimento mineiro, que foi trocado pelo comprometimento exclusivo com os seus acionistas. É bem verdade que, em virtude da nova regulamentação do setor elétrico brasileiro, a empresa se viu compelida a realizar determinadas inversões para manter sua posição competitiva. Não obstante, não foram construídas novas barragens,3 o que faz antever que, em futuro não distante, Minas possa ter problemas sérios em termos de disponibilidade de energia elétrica. Observe-se, por outro lado, que a operação de usinas geradoras de eletricidade é fonte de renda e de emprego para a população das cidades do interior. Mas se o governo mineiro pulverizou recursos em projetos políticos e não utilizou tanto o BDMG quanto a CEMIG como instrumentos de desenvolvimento do Estado, não deixou de gastar soma expressiva em propaganda, retratados na Tabela 5, o que, aliás, passou inteiramente despercebido aos “técnicos” do Banco Mundial, que não cessaram de 3

A última hidrelétrica construída pela CEMIG corresponde à Usina Hidrelétrica de Irapé, cuja construção se iniciou em 2002, por decisão do governador Itamar Franco, que objetivava com o empreendimento, além de obviamente expandir a oferta de energia do Estado, atender a uma área deprimida, em razão da localização do empreendimento, nos Municípios de Berilo e Grão Mogol.


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elogiar o governo tucano. Apesar de que grande parte desse tipo de despesas das empresas controladas possa se justificar por razões comerciais, o mesmo parece difícil quando se considera o setor público estrito senso, que despendeu R$ 803,65 milhões no período de 2003-2010, correspondendo ao governo Aécio Neves (embora o vice- governador, Antônio Anastasia, tenha governado no último ano). Observe-se que o total dos dispêndios com publicidade pela administração pública mineira mais aos gastos das empresas controladas pelo Estado com a mesma finalidade, que somaram R$ 1.342,37 milhões no período, foram superiores às estimativas das despesas envolvidas na construção da Cidade Administrativa, de R$ 1,2 bilhão, fora móveis e equipamentos. Por outro lado, se se considerar o total gasto somente pela administração direta, autarquias e fundações de Minas Gerais no período 2007-2011, incluindo, portanto, dois anos de governo Anastasia, tem-se um montante de R$ 581,03 milhões, bem próximo, portanto, do gasto pelo setor público de São Paulo durante o mesmo período (R$ 609,0 milhões). Em outras palavras, o governo mineiro gastou o mesmo que o governo de uma unidade da Federação, cujo PIB é três vezes o de Minas! Tabela 5 Gastos com publicidade Setor Público e Empresas Controlada pelo Governo de Minas Gerais, 2003 – 2011 Em R$ mil

Fonte: Tribunal de Contas de Minas Gerais.


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O desperdício de recursos públicos, contudo, não se restringiu à pulverização de investimentos em obras de fartos rendimentos políticos, mais de parcos benefícios econômicos, como no caso do Proacesso, ou aos abusivos gastos com publicidade, mas se cristalizou através da Cidade Administrativa Tancredo Neves, obra que, tendo, conforme mencionado, custado R$ 1,2 bilhões fora móveis e equipamentos, foi financiada essencialmente com recursos extraorçamentários, ou seja, com dinheiro da CODEMIG (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais), que recebe 25% dos resultados da Sociedade em Conta de Participação que tem com a CBMM, que explora o nióbio de Araxá. Se, conforme divulgado pela Agência Minas, em matéria divulgada no dia 4 de Março de 2013, o governo mineiro teria economizado cerca de R$ 110,9 milhões nos gastos com a manutenção de serviços da administração estadual em 2012 como consequência da Cidade Administrativa, pode-se ter uma ideia, ainda que aproximada, das perdas envolvidas no projeto. Isso porque, de saída, nesse cálculo não se toma em consideração o denominado custo de oportunidade do capital. Se, por exemplo, o governo de Minas Gerais tivesse investisse na CEMIG, cujo dividend yield é de aproximadamente 18%, teria obtido um rendimento anual próximo a R$ 216 milhões por ano (= R$ 1,2 bilhão x 18%), o que significa que a Cidade Administrativa estaria dando um prejuízo de R$ 105,1 milhões por ano. Isso, contudo, não seria tudo, pois se teria que abater a depreciação dos edifícios e demais construções da Cidade. Admitindo-se, então, uma taxa de depreciação linear de 2,5% (o que equivale a uma vida útil de 40 anos), ter-se-ia que somente o custo de depreciação da Cidade seria de R$ 30 milhões (= 1,2 bilhões x 2,5%), o que significa que o prejuízo seria de R$ 135,1 milhões por ano. Mas, por outro lado, se se tomar a taxa média de retorno dos investimentos da própria CEMIG, que estaria em torno de 15% reais ao ano, as perdas anuais do governo do Estado com esse elefante branco alçariam a R$ 182,9 milhões.4 4 Supondo uma inflação de 6,5%, ter-se-ia um rendimento nominal de aproximadamente 21,5%. Multiplicando-se por R$ 1,2 bilhão, chega-se a R$ 258 milhões. Somando-se, então, os custos de depreciação, de R$ 30 milhões, e subtraindo-se a economia de R$ 110,9 milhões, obtém-se R$ 182,9 milhões de perdas.


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Na verdade, considerando que os custos anuais da dívida do governo público mineiro para com a CEMIG eram de 8,18% de juros mais a variação do IGP-DI, se o governo mineiro tivesse aplicado, no dia 1 de janeiro de 2010, os R$ 1,2 bilhão gasto na construção da Cidade Administrativa no abatimento da dívida para com a CEMIG, então em R$ 4.646,8 milhões, teria economizado R$ 244,85 milhões somente nesse ano, mais R$ 441,15 milhões em 2011 e R$ 719,14 milhões em 2012. É ridículo, portanto, que economistas ligados ao governo mineiro tentem justificar, em termos financeiros, essa obra digna dos faraós, mas bem distante de qualquer gestão econômico financeira minimamente coerente! E, é necessário notar, essas perdas dizem respeito apenas às auferidas pelo próprio setor público estadual, não incluindo, portanto, o aumento do custo de transporte dos funcionários que trabalham na Cidade Administrativa, nem suas perdas em termos de bem-estar, por gastarem mais tempo no deslocamento e estarem mais distantes dos centros de prestação de serviços. É claro que essas perdas não estiveram no cálculo do governador, muito menos de muitos de seu staff, que se viram cegados pela avaliação positiva do Banco Mundial! Em suma, não existe qualquer justificativa econômico financeira para a Cidade Administrativa Tancredo Neves, cuja construção subtraiu vultosos recursos financeiros que poderiam ter sido utilizados com muito mais proveito em investimentos em infraestrutura, ou mesmo na construção de novas barragens. Sua motivação, portanto, somente pode ser o prestígio obtido por se ter construído uma “pequena Brasília”, o que certamente produz dividendos políticos, ainda que em detrimento do desenvolvimento do Estado e do bem-estar de seu funcionalismo e da população em geral.

CONCLUSÃO Em resumo, a partir da análise acima se torna inevitável concluir que, em lugar de concentrar recursos para promover a transformação estrutural da economia mineira, o governo Aécio Neves, além de desperdiçá-los em propaganda, os pulverizou em programas de reduzido impacto econômico, deixou de utilizar o BDMG e a CEMIG como ins-


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trumentos de desenvolvimento, além de construir a Cidade Administrativa, que cristalizou sérias perdas financeiras, tanto para o setor público estadual quanto para o funcionalismo. O pior é que, além de comprometer os recursos da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais, que no seu governo abriu mão de promover o desenvolvimento, recorreu ao endividamento em larga escala, comprometendo, assim, os governos futuros com seus pesados encargos.5

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KALDOR, N. Strategic Factors in Economic Development. New York: Ithaca, 1967. ROLFE, Sidney E.; BURTLE, James L. (1973). O Sistema Monetário Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. THIRLWALL, A. (1989). Growth and Development: With Special Reference to Developing Economies. The New Palgrave Development Economics. New York: Norton, 2003. p. 121-122. VILHENA, R.; MARTINS, H. F.; MARINI, C.; GUIMARÃES, T. B. (Org.). O Choque de Gestão de Minas Gerais: política da gestão pública para o desenvolvimento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.


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Maria Eulália Alvarenga Maria Lucia Fattorelli Rodrigo Ávila

DÍVIDA PÚBLICA DE MINAS GERAIS: AUDITORIA JÁ!

Nos anos de 1990, as dívidas públicas dos estados com o setor financeiro cresciam fortemente, devido principalmente às altíssimas taxas de juros estabelecidas pelo Governo Federal. No final daquela década, a União refinanciou essas dívidas mediante a emissão de títulos da dívida pública mobiliária federal interna, passando os estados à condição de devedores da União. Na época, muitos defenderam esta operação, sob o argumento de que ela permitiria uma redução das taxas de juros. Porém, na prática, apesar do rigoroso cumprimento dos acordos então celebrados, tais dívidas se multiplicaram, principalmente devido à onerosa remuneração nominal cobrada pela União, composta pelo indexador IGP-DI, acrescido de juros que variaram de 6 a 7,5% ao ano, dependendo do estado. Importante ressaltar que todos os pagamentos de juros e amortizações feitos pelos estados à União são utilizados por esta última para o pagamento da dívida pública federal, que consumiu 44% do Orçamento Geral da União em 2012. Estes 44% equivalem a mais que o quádruplo das transferências federais a todos os 27 estados e mais de 5.000 municípios brasileiros. A dívida do Estado de Minas Gerais e dos demais estados faz parte de um sistema maior, que viola o Federalismo para privilegiar os rentistas nacionais e estrangeiros. Conforme Relatório Parcial da Comissão Especial da Dívida Pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais,1 a dívida de Minas Gerais com a União era de R$ 14,85 bilhões ao final 1 Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (Comissão Especial da Dívida Pública) - Relatório Parcial, Belo Horizonte, maio de 2012, p. 8 e 9.


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de 1998. Apesar de o Estado ter pago à União a quantia de R$ 26,6 bilhões, até 2011 (quase o dobro da dívida original) o débito se multiplicou assustadoramente para absurdos R$ 59,3 bilhões, em 2011. Os encargos têm sido tão elevados que o Estado de Minas Gerais tem pagado à União, anualmente, mais de R$ 3 bilhões a título de serviço dessa dívida, além dos mais de R$ 6 bilhões de juros que são incorporados ao seu estoque. Dessa forma, o custo anual com o endividamento chega à casa dos R$ 10 bilhões, o equivalente a nada menos que um quarto de toda a Receita Corrente Líquida do Estado em 2012, ou ao dobro de todos os gastos estaduais com Segurança Pública, ou ao dobro de todos os gastos estaduais com Saúde, ou 56% a mais que todos os gastos com Educação. Portanto, é urgente investigar essa dívida monstruosa, que constitui hoje um dos principais entraves à garantia de justiça social a toda a população mineira. Faz-se necessária uma profunda auditoria dessa dívida, dadas as suas origens obscuras, como os “saneamentos” de bancos estaduais e os seus graves indícios de ilegalidades, tais como a aplicação de “juros sobre juros” (“anatocismo”).

A POLÍTICA DO GOVERNO FEDERAL PARA A NEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA DOS ESTADOS Não por acaso, a origem da renegociação das dívidas dos estados com a União vem da imposição do FMI, e cartas de intenções assinadas na década de1990. Da Carta de Intenções ao FMI de setembro/1990, itens 18, 20 e 28,”c”, constou: 18. O Governo lançou um ambicioso programa de privatizações que se destina a liberar recursos fiscais e a promover a eficiência da economia. O primeiro grupo de empresas públicas a serem privatizadas dentro dos próximos três anos inclui 10 firmas nos setores petroquímico, siderúrgico e de fertilizantes, com um valor preliminarmente orçado em US$ 15 bilhões líquidos (...) a receita proveniente da privatização será utilizada no resgate da dívida pública (grifos nossos).


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20. ... O acesso pelos Estados e Municípios a financiamento junto a bancos nacionais deverá sofrer restrições semelhantes àquelas impostas às empresas públicas federais e esses governos deverão saldar integralmente os juros devidos sobre suas obrigações para com o tesouro (grifos nossos). 28. c. ...O Brasil brevemente iniciará negociações para a reestruturação da dívida com os bancos comerciais credores a partir de um cardápio de opções incluindo instrumentos de mercado para a redução do principal e do serviço da dívida, bem como outros instrumentos de conversão da dívida a serem empregados em conjugação com nosso programa de privatização (grifos nossos).

Da Carta de Intenções ao FMI de dezembro/1991, itens 24 e 26, constou: 24. Um ambicioso programa de privatizações que deverá render aproximadamente US$ 18 bilhões foi iniciado em outubro de 1991, com a venda da USIMINAS – uma lucrativa siderúrgica que é a maior da América Latina... (grifos nossos). 26. Para facilitar um maior fortalecimento das finanças públicas, em outubro o Executivo submeteu ao Congresso propostas de mudanças institucionais que procuram fazer modificações na distribuição de receitas tributárias entre os governos federal, estadual e municipal para 1992 e 1993, a proibição de novas emissões de títulos de dívida pelos estados e um programa de reestruturação de dívida no qual o governo federal vai assumir as dívidas dos estados em troca de um programa de ajuste de 2 anos que vai facilitar a reestruturação dos gastos dos estados (grifos nossos).

O processo de endividamento dos estados brasileiros se acelerou a partir do início da década de 1990. A partir de 1997, a União aplicou modelo de ajuste fiscal aos estados da Federação, obrigando-os a privatizar o seu patrimônio em troca de “renegociação” de suas dívidas, além da assunção de dívidas dos bancos que seriam privatizados.


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Os acordos com o FMI propiciaram a implementação das políticas neoliberais listadas no chamado “Consenso de Washington”. O FMI exigia privatizações de empresas estatais estratégicas e lucrativas, sob a justificativa de que as receitas da venda de tais empresas serviriam para o pagamento da dívida. Também exigia a redução de gastos com pessoal e previdência social, liberalização dos fluxos de capital, redução de tarifas de importação, contenção de salários, além da própria negociação da dívida externa com os bancos privados e Clube de Paris, e tomada de empréstimos junto ao Banco Mundial para a implementação de mais medidas de ajuste estrutural. O processo legal que culminou com a edição da Lei 9496/97 assinada por Fernando Henrique Cardoso e seu ministro Pedro Malan, que estabeleceu critérios para a consolidação, a assunção e o refinanciamento, pela União, da dívida pública mobiliária e outras que especifica, de responsabilidade dos Estados e do Distrito Federal, vem dos compromissos assumidos com o FMI através das mencionadas Cartas de Intenções. As intenções (compromissos) foram cumpridas com a introdução das Leis 8388/91 e 8727/93, precursoras da Lei 9496/1997. O artigo primeiro da Lei 9496/97 determinou que poderiam ser incluídos no âmbito do Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados (PAF), dentre outros, as dívidas públicas mobiliárias dos estados e do Distrito Federal, bem como, ao exclusivo critério do Poder Executivo Federal, outras obrigações decorrentes de operações de crédito interno e externo, ou de natureza contratual, relativas a despesas de investimentos, líquidas e certas; os empréstimos tomados pelos estados e pelo Distrito Federal junto à Caixa Econômica Federal, com amparo na Resolução no 70, bem como, ao exclusivo critério do Poder Executivo Federal, outras dívidas cujo refinanciamento pela União, nos termos dessa Lei, tenha sido autorizado pelo Senado Federal até 30 de junho de 1999; compensar, ao exclusivo critério do Ministério da Fazenda, os créditos então assumidos com eventuais créditos de natureza contratual, líquidos, certos e exigíveis, detidos pelas unidades da Federação contra a União; assumir a dívida pública mobiliária emitida por estados e pelo Distrito Federal, após 13 de dezembro de 1995, para pagamento de precatórios judiciais.


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Para que a União assumisse as dívidas dos estados, estes tiveram de cumprir as metas e condições estabelecidas pelo PAF, além dos objetivos específicos para cada unidade da Federação e, obrigatoriamente, metas ou compromissos quanto à dívida financeira em relação à Receita Líquida Real (RLR);2 resultado primário; despesas com funcionalismo público; arrecadação de receitas próprias; privatização, permissão ou concessão de serviços públicos, reforma administrativa e patrimonial; despesas de investimento em relação à RLR. Os contratos foram assinados com o prazo, estipulado pela Lei, de 360 meses, ou seja, 30 anos, com juros calculados e debitados mensalmente, à taxa mínima de seis por cento ao ano, sobre o saldo devedor previamente atualizado. A atualização monetária estipulada, calculada e debitada mensalmente, com base na variação do Índice Geral de Preços Disponibilidade Interna (IGP-DI), calculado pela Fundação Getúlio Vargas, ou outro índice que vier a substituí-lo. A Lei também determinou expressamente que o pagamento da dívida dos estados seria automaticamente e integralmente canalizado para o abatimento de dívida pública de responsabilidade do Tesouro Nacional. Sob a justificativa de “salvar” os estados de uma taxa de juros altíssima – mas que era estabelecida pela própria União, por vezes em patamares de mais de 40% ao ano –, o Governo Federal refinanciou as dívidas dos estados, para que estes passassem a pagar uma remuneração nominal composta por juros (dependendo do estado de 6% a 7,5% ao ano) mais a inflação medida pelo IGP-DI. Apesar de essa operação ter sido anunciada como uma grande vantagem para os estados, ela se mostrou altamente onerosa, pelo fato de o IGP-DI possuir forte ligação com os preços no atacado e com as desvalorizações do real frente ao dólar. Por essa razão, o IGP-DI costuma apresentar uma taxa de inflação bem maior que os demais índices: de 2 Receita Líquida Real (RLR), conceito introduzido pela Lei compreendida como: receita realizada nos 12 meses anteriores ao mês imediatamente anterior àquele em que se estiver apurando, excluídas as receitas provenientes de operações de crédito, de alienação de bens, de transferências voluntárias ou de doações recebidas com o fim específico de atender despesas de capital e, no caso dos estados, as transferências aos municípios por participações constitucionais e legais. A RLR é divulgada mensalmente por portaria da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).


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1998 a 2010, o IPCA (índice comumente utilizado pelo governo para medir a inflação) apresentou variação de 123%, enquanto o IGP-DI apontou uma inflação de nada menos que 206% no mesmo período. A escolha do IGP-DI se mostrou altamente funcional à União, pelo fato de que, na época das renegociações das dívidas dos estados (1998), grande parte da dívida interna federal estava indexada ao dólar. Dessa forma, as grandes desvalorizações do real ocorridas em 1999 e 2002 aumentaram a dívida federal, mas também aumentaram as dívidas dos estados, de maneira que dessa forma, o Governo Federal conseguia equilibrar o aumento em seu passivo (dívida interna federal com o setor financeiro) com o aumento em seu ativo (dívida cobrada dos entes federados). O problema da dívida pública dos estados com a União não atinge só Minas Gerais, mas também outros 25 estados da Federação (exceto o Estado de Tocantins) e vários municípios (nestes os juros podem chegar a 9% a.a mais IGP-DI). Para melhor compreensão da edição das leis determinantes para o refinanciamento de das dívidas dos entes subnacionais pela União, temos que analisar o contexto em que elas foram editadas. Os estados assinaram contratos para pagamento de suas dívidas com a União em até 30 anos, atualizados pela variação do IGP-DI, com juros entre 6% e 7,5% a.a. Os entes federados comprometeram entre 11,5 a 15% da Receita Líquida Real (RLR). A determinante para a taxa de juros e o comprometimento da RLR foi a relação a que cada estado poderia dar de entrada, ou seja, qual patrimônio o estado ia privatizar. Conforme Análise Preliminar Nº 7 elaborada pela assessoria técnica da CPI,3 caso o índice de atualização monetária aplicado ao saldo devedor fosse o IPCA, o valor do saldo devedor das dívidas dos estados em 2009 seria bem menor, visto que esse índice acusou inflação de 119% de janeiro de 1997 a setembro de 2009, enquanto o IGP-DI apresentou índice de 196%. O gráfico a seguir dá uma ideia da evolução dos dois índices, bem como do ônus provocado pela utilização do IGP-D, ao invés do IPCA. 3 Fattorelli, Maria Lucia; Molina Aldo. Análise Preliminar nº 7 da CPI da Dívida Pública, Câmara dos Deputados.


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75 Inflação acumulada (%) – 1996 a 2009 – IPCA X IGP-DI

Fonte: Ipeadata.

Segundo o Relatório Final da CPI da Dívida na Câmara dos Deputados, encerrado em maio de 2010, aprovado pela base do governo e também pelo próprio PSDB em maio de 2010, o IGP-DI apresentou comportamento “volátil”, pois englobou a dilatada variação do dólar ocorrida em 1999, por exemplo, dentre outras, e provocou custo excessivo aos estados, pelo fato de ter se mostrado um índice de inflação bem maior que os demais índices utilizados no país. Além dessas condições onerosas, os estados foram obrigados a privatizar seu patrimônio, o que também constituía uma exigência do FMI. Da Carta de Intenções ao FMI de novembro/1998, item 13, constou: O programa de ajuste fiscal acordado com os estados inclui metas específicas para cada estado no que concerne ao resultado primário o desempenho da receita as razões folha de pagamento e gastos de investimentos/receita bem como privatizações e outras reformas estruturais. Os acordos também dotam o governo federal de poderes para no caso de um estado deixar de pagar sua dívida reestruturada como programado reter a receita compartilhada com aquele estado e até embargar suas próprias receitas. Em conjunto com a negociação desses acordos o governo e o Senado atentos para o fato de que o acesso ir-


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restrito pelos estados aos fundos de empréstimo levou à escalada da dívida estadual até meados dos anos 90 envidaram esforços no sentido de limitar vigorosamente o recurso dos estados à contração de dívidas. Especificamente o Senado proibiu as emissões de novos títulos estaduais bem como a tomada de empréstimos por estados com déficit primário; resoluções do Conselho Monetário Nacional reduziram substancialmente os limites dos empréstimos bancários aos estados e municípios bem como os limites dos empréstimos no exterior por essas entidades. Ademais a privatização ou liquidação da maioria dos bancos estaduais o cumprimento de estritos padrões de prudência quanto aos ainda existentes bem como o atual processo generalizado de privatizações eliminaram a maioria das alternativas de financiamento de déficits pelos estados (grifos nossos).

Para consolidar o compromisso estabelecido com o FMI foi editada, em 2000, a Lei Complementar no. 101, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, também assinada por Fernando Henrique Cardoso, Pedro Malan e Martus Tavares. Essa Lei Complementar vem disciplinar as finanças públicas, principalmente para garantir o pagamento da dívida pública. Em seu Capítulo VII – Da Dívida e do Endividamento, engessa a administração pública dos entes subnacionais, ferindo de morte o federalismo brasileiro e contrariando o que preceitua o caput do art. 18 da Constituição Federal, que determina que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos. O engessamento promovido pela LRF pode ser comprovado com a leitura do art. 31, em que proíbe a realização de operações de crédito, ressalvado o refinanciamento do principal atualizado da dívida mobiliária; obriga os entes subnacionais a ter resultado primário necessário à recondução da dívida ao limite, sendo que se este for ultrapassado, fica o ente impedido de receber transferências voluntárias da União ou do Estado. O controle de qual ente subnacional que ultrapassou o limite fica a cargo do executivo federal e ainda o Ministério da Fazenda verificará o cumprimento dos limites e condições relativos à realização de operações de crédito de cada ente da Federação, inclusive das empresas por eles controladas, di-


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reta ou indiretamente. Ou seja: a autonomia dos entes subnacionais na Constituição tornou-se letra morta. A partir da consolidação dos acordos, toda a dívida pública mobiliária interna passa a ser federal. A União atuou como uma Instituição Financeira, em que a autonomia do gestor público ficou condicionada a esta “operação bancária”.

OS CONTRATOS E ADITIVOS DO ESTADO DE MINAS Minas Gerais assinou, em 18 de fevereiro de 1998, o Contrato 004/98/STN/COAFI com a União, nos moldes da Lei 9496/97, no valor de 10,185 bilhões de reais, em valores da época, dos quais a maior parte era correspondente a Letras Financeiras do Tesouro Estadual (LFTE). Minas Gerais passou a comprometer 13% da sua Receita Líquida Real com o pagamento da remuneração bruta, que compreende: juros de 7,5% a.a mais a inflação medida pelo IGP-DI. Os valores desse contrato sofrem alterações conforme explicaremos mais adiante. A negociação de 1998 com a União envolveu, além do refinanciamento da dívida do Estado (no valor de R$ 10,185 bilhões), o refinanciamento da dívida referente ao saneamento de bancos no âmbito do Programa de Apoio Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados (PROES),4 no valor de R$ 4,34 bilhões. O empréstimo de R$ 4,34 bilhões de reais do PROES foi justificado pela necessidade de promover o saneamento e a privatização dos bancos estaduais. Tal empréstimo também foi submetido à remuneração nominal composta por atualização monetária medida pelo IGP-DI, acrescida de juros de 6% a.a. Não se conhece a verdadeira origem dessas dívidas refinanciadas, que em 1998 somaram R$ 14,8 bilhões, e no final de 2011, apesar do cumprimento dos acordos, chegou a R$ 59,3 bilhões. Por essa razão reivindicamos a realização de completa auditoria dessas dívidas, desde a sua origem.

4 Autorizado pelo Senado Federal, em maio de 1998, através da Resolução 45.


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No ano de 2010, por exemplo, o Estado de Minas Gerais pagou à União R$ 3,1 bilhões (montante insuficiente para pagar sequer os elevados juros), e ainda transferiu para o estoque da dívida o valor de R$ 6,1 bilhões. Além de caracterizar a ilegal prática de anatocismo, esse procedimento tem provocado o crescimento da dívida como uma bola de neve e sem qualquer contrapartida ao povo mineiro: no ano de 2010, o saldo da dívida passou de R$ 48,7 bilhões para R$ 54,8 bilhões. Nessa circunstância, constata-se que é totalmente falacioso o discurso a respeito do “déficit zero” em Minas Gerais. Para o professor Fabrício de Oliveira, Secretário Adjunto da Fazenda durante o Governo de Itamar Franco, no primeiro ano do governo Aécio Neves, além de não se reconhecer a dívida do Estado, o governo a converteu em “déficit zero”. Segundo o Professor “esta foi uma obra de ficção que se transformou na propaganda do governo do Estado”. “Só que, se há dívida, é porque há déficit. No final das contas, a propaganda caiu por terra e a dívida reapareceu em valor infinitamente superior à capacidade de pagamento do Estado.” Fabrício afirma que “eles usaram um conceito equivocado. O conceito de resultado orçamentário não diz nada sobre o resultado do desempenho das finanças públicas.”5 Desse modo, a evolução da dívida pública de cada ano é determinada pelo déficit orçamentário e também pela própria estrutura da dívida contraída anteriormente. “A questão da sustentabilidade financeira da dívida mineira tornou-se central”, ressalta. Segundo os contratos, o início do pagamento da dívida se daria 30 dias após a assinatura dos contratos, ou seja, o governo de Eduardo Azeredo6 deveria começar o pagamento das parcelas. Segundo o professor Fabrício de Oliveira,7 o governo de Eduardo Azeredo não pagou nada, ou seja, quem assinou os contratos não pagou nada, deixando o início do pagamento das parcelas para o próximo governador que iria assumir em janeiro de 1999, ou seja, Itamar Franco. O contrato gerou também obrigações de privatização de empresas estatais, como antes 5 Artigo “Dívida Pública Mineira cresce 4,5 vezes em uma década”, revista Mercado Comum, ed. 228, p. 65. 6 De janeiro 1995 a dezembro de 1998. 7 Revista Mercado Comum, ed. 228, p. 64.


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mencionado, e realização de pesado ajuste fiscal para garantir o pagamento da dívida com a União. Para melhor esclarecimento, entraremos em algumas questões técnicas do contrato celebrado entre o Estado de Minas Gerais e a União em 18 de fevereiro de 1998. O valor inicial de R$ 10,185 bilhões foi obtido a partir da fórmula a seguir:8 D = VLFTE + VBB + VCEF + VBancos - VIPI Os valores nominais em reais são os constantes do quadro abaixo (em R$): D

VLFTE

10.184.651.441,68 9.784.508.829,17

VBB

VCEF

VBANCOS

VIPI

38.775.133,07

270.647.687,97

141.407.947,90 (50.688.156,43)

Fonte: Primárias (contrato e aditivos). Valores apontados no Segundo Termo Aditivo de Rerratificação ao Contrato de Confissão, Promessa de Assunção, Consolidação e Refinanciamento de Dívidas, de 30 de novembro de 1998. Elaboração Econ. Maria Eulália Alvarenga - Auditoria Cidadã da Dívida - Núcleo Mineiro.

Depreende-se que o valor da dívida mobiliária (dívida em títulos, indicada pela sigla VLFTE) era a parcela mais relevante da dívida objeto de refinanciamento. Do valor apurado (D), R$ 9,212 bilhões seriam pagos em 360 meses, e o restante (R$ 973 milhões) seriam pagos por meio da chamada “conta gráfica”, ou seja, uma conta cuja fonte de recursos foi a privatização de diversos ativos estaduais. Conforme quadro a seguir, vê-se que o Contrato inicial sofreu alterações de valores desde a sua assinatura, em 18 de fevereiro de 1998, até o Quarto Termo Aditivo, assinado em 28 de dezembro de 1998. Nesse termo, também se prorroga o prazo para liquidação do saldo de8 D = dívida inicial; VLFTE = valor das Letras Financeiras do Tesouro Estadual; VBB = valor do débito com o Banco do Brasil; VCE = valor do débito com a Caixa Econômica Federal; VBancos – valor dos débitos com vários bancos privados; VIPI – valor do que o Estado tinha a receber da União referente à crédito de atualização monetária do IPI-EXPORTAÇÃO.


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vedor da conta gráfica, ou seja, até esta data o Governo de Minas ainda não o havia quitado totalmente. O prazo para pagamento do saldo devedor da conta gráfica foi novamente prorrogado em 28 de janeiro de 2000, quando as ações da Ceasa e da Casemg foram transferidas para a União. COMPOSIÇÃO

DÍVIDA INICIAL

DÍVIDA DEDUÇÃO VCG Parcelas REFINANCIADAFORMULA

DÍVIDA INICIAL

11.827.540.208,92

10.184.651.441,68 972.845.803,38, deduzido crédito IPI - Exportação R$50.588.156,43(a tualização monetária)

LFTE - em 31-396

11.353.243.881,84

9.784.508.829,17 AMORTIZAÇÃO VCG

40.596.059,64

38.775.133,07

CEF

281.843.159,03

270.647.687,97

Operações de dívida fundada

151.857.108,41

141.407.947,90

IPIEXPORTAÇÃO

(50.688.156,43)

(50.688.156,43)

Banco Brasil -

360 vencendo a primeira 30 dias após a assinatura do contrato 1/12 de 13% da RLR

Fonte: Contrato 004/98/STN/COAFI e Aditivos – Elaboração Econ. Maria Eulália Alvarenga - Auditoria Cidadã da Dívida - Núcleo Mineiro.

Estudos feitos com base em dados disponibilizados pelo Tesouro Nacional e Banco Central à CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2009/2010 indicaram que apesar do baixíssimo valor de mercado dos títulos da dívida mobiliária dos estados, essa dívida foi refinanciada pela União a 100% de seu valor de face, o que representou claramente uma brutal transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado.


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A DÍVIDA DO ESTADO DE MINAS GERAIS COM A CEMIG A Dívida do Estado com a CEMIG teve início em 1995, mas sua história data de 31 de dezembro de 1989 em decorrência da Lei Federal 7976/90, quando Minas Gerais refinanciou com o Tesouro Nacional, através do Banco do Brasil, dívidas externas originárias da utilização de empréstimos-ponte (Avisos MF-09 e NF-30), incluindo empréstimos de antecipação de receitas-ARO. A Auditoria Cidadã da Dívida através de seu Núcleo Mineiro fez uma análise preliminar do contrato e aditivos da dívida de Minas com a CEMIG e apurou que indicam graves indícios de ilegalidades. Os pagamentos desta dívida beneficiam principalmente os acionistas privados da CEMIG, que detêm 76,61% das ações da empresa, sendo que 46,45% do total se encontram nas mãos de estrangeiros.9 Em 31 de maio de 1995 o valor dessa dívida era de R$ 602 milhões, e depois de 17 anos de onerosos pagamentos, a dívida se multiplicou por mais de nove vezes, tendo chegado a R$ 5,6 bilhões ao final de 2011.10 Tal crescimento se deve às taxas de juros nominais absurdas, nos últimos anos compostas pela combinação da taxa de 8,18% ao ano acrescida da atualização monetária medida pelo IGP-DI; taxas ainda mais elevadas que o tão questionado custo da dívida de Minas Gerais com a União. Uma análise preliminar dos contratos e aditivos dessa dívida já mostrou diversos e graves indícios de ilegalidades: • Taxas de juros abusivas, violando princípios jurídicos relacionados ao equilíbrio contratual; • Aplicação de “juros sobre juros”, já considerados ilegais pela Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal.

9 Disponível em: <http://cemig.infoinvest.com.br/static/ptb/estrutura_acionaria.asp >. Acesso em: mar. 2012. 10 Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2011/11/17/internas_economia,262399/governo-de-minas-quer-pagar-divida-com-a-cemig.shtml>.


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• O contrato prevê a vinculação de arrecadação de tributos ao pagamento da dívida, violando-se art. 167, IV da Constituição Federal, além do Código Tributário Nacional. Em 23 de janeiro de 2006, foi assinado aditivo contratual determinando que as taxas de juros poderão ser elevadas para o absurdo patamar de 12% ao ano (mais o IGP-DI) caso o Estado, por exemplo, “...permitir a redução da distribuição e pagamento dos dividendos e juros sobre o capital próprio das subsidiárias integrais da CEMIG para a CEMIG...”, ou “...reduzir a distribuição e o pagamento de 50% do lucro líquido da CEMIG a título de dividendos e juros sobre o capital próprio...” (Quarto Aditivo, Cláusula Sétima). Dessa forma, o contrato estabelece uma obrigação ao Estado, que não guarda nenhuma relação com o endividamento, e visa estritamente garantir os lucros aos acionistas da empresa, em sua maioria privados, em detrimento do interesse público que a empresa deveria defender. Recentemente, no final de 2012, o governo do Estado negociou esta dívida, por meio da tomada de empréstimo de cerca de R$ 4 bilhões junto ao Banco Mundial e outras instituições internacionais, alegando que assim teve um desconto de R$ 1,9 bilhão e passaria a pagar juros de 4,62% (taxa média ponderada pelos saldos e pela projeção da LIBOR) ao ano, ou seja, 4,62% mais a variação cambial.11 Tal renegociação foi realizada sem que perguntas básicas formuladas pelo Núcleo Mineiro da Auditoria Cidadã da Dívida à Comissão Especial para Renegociação da Dívida da Assembleia Legislativa de Minas durante todo o ano de 2012 fossem respondidas: • Quanto o Estado já pagou à CEMIG, desde 1995? • Qual o efeito das taxas de juros abusivas e dos “juros sobre juros”? • Quais as imposições de políticas que o Banco Mundial fará ao Estado, em troca do empréstimo para o refinanciamento da dívida com a CEMIG? 11 Conforme “Mensagem nº 143/2011, do Governador Antonio Anastasia” (Projeto de Lei nº 2.700/2011).


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Até quando o Estado irá pagar esta dívida, considerando que o novo contrato assume o pagamento da variação cambial, que é incerta? A partir de análise preliminar do contrato e aditivos da dívida do Estado de Minas Gerais com a CEMIG, a Auditoria Cidadã da Dívida (Núcleo Mineiro) protocolou junto à Assembleia Legislativa de Minas Gerais em 23 de março de 2012, no Gabinete do deputado Adelmo Leão,12 e em 26 de março de 2013 nos Gabinetes dos deputado Bonifácio Mourão13 e Dinis Pinheiro,14 Carta Aberta15 aos Deputados da ALMG e à População do Estado de Minas Gerais denunciando os graves indícios de irregularidades. Os gráficos a seguir demonstram o crescente estoque da dívida do Estado de Minas Gerais com a CEMIG, apesar dos elevados pagamentos anuais, também demonstrados.

Fonte: DCD/SCGOV/STE/SEF-MG - Elaboração Econ. Maria Eulália Alvarenga - Auditoria Cidadã da Dívida- Núcleo Mineiro.

12 Presidente da Comissão Especial para Renegociação da Dívida Pública de Minas Gerais.

13 Relator da Comissão Especial para Renegociação da Dívida Pública de Minas Gerais.

14 Presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerias.

15 Íntegra publicada na revista Mercado Comum, ed. 226, p. 8, e site da Auditoria Cidadã da Dívida: <http://www.auditoriacidada.org.br/pagina-do-nucleo-mineiro-daauditoria-cidada/>.


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Fonte: DCD/SCGOV/STE/SEF-MG- Elaboração Econ. Maria Eulália Alvarenga - Auditoria Cidadã da Dívida - Núcleo Mineiro

A PROPOSTA DE RENEGOCIAÇÃO FEITA EM 2013 PELO GOVERNO FEDERAL No início de 2013, o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 238/2013, que altera as taxas de juros das dívidas dos estados e municípios com a União. Essa nova proposta não enfrenta o problema da renegociação das dívidas dos entes subnacionais, que está em sua origem e vem se acumulando desde a assinatura dos convênios, conforme já expusemos. O PLP propõe a modificação para a remuneração nominal cobrada dos entes federados: redução do percentual dos juros para 4% a.a. e a troca do indexador de inflação para o IPCA, índice calculado pelo IBGE. Também prevê que se tal remuneração for superior à “Taxa Selic”, prevalecerá a Selic. Tal remuneração ainda é extorsiva, especialmente considerando que será aplicada sobre o saldo da dívida inflada por ilegalidades e ilegitimidades desde a origem dos convênios. Analisando-se o texto do Projeto, verifica-se que, ao contrário do anunciado pela imprensa, o PLP não prevê a redução do percentual de comprometimento da receita com o pagamento destas dívidas, ou seja, estados e municípios não terão nenhum alívio financeiro por muitos


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anos, já que os extorsivos juros superam o limite legal de comprometimento. Isto significa que os entes subnacionais continuarão efetuando elevados pagamentos dessas dívidas à União, que, por sua vez, emprega tais recursos unicamente para pagar a dívida federal ao setor financeiro. Além disso, o PLP não é aplicável às dívidas relativas ao “saneamento” dos bancos estaduais (PROES - Medida Provisória 2192/70), que representa grande parte do endividamento de muitos estados, e continuará com taxas de juros de 6% mais o IGP-DI. A renegociação proposta pelo PLP 238/2012, no que se refere às dívidas estaduais, será somente aquela referente aos contratos com base na Lei 9496/97. O art. 4º do PLP estabelece: Art. 4º Fica a União autorizada a adotar, nos contratos de refinanciamento celebrados entre a União, os Estados e os Municípios, com base, respectivamente, na Lei no 9.496, de 11 de setembro de 1997, e na Medida Provisória nº 2.185-35, de 24 de agosto de 2001, as seguintes condições: I - quanto aos juros, serão calculados e debitados mensalmente, à taxa mínima de quatro por cento ao ano, sobre o saldo devedor previamente atualizado; e II - quanto à atualização monetária, será calculada e debitada mensalmente com base na variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado - IPCA, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, referente ao segundo mês anterior ao de sua aplicação, ou outro índice que venha a substituí-lo. Parágrafo único. Os encargos calculados na forma dos incisos I e II do caput, cujo somatório exceder à variação da taxa SELIC no mesmo mês, deverão ser substituídos, para todos os efeitos, pela referida taxa (grifos nossos).

Em sua exposição de motivos, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, reconheceu o abuso do custo do refinanciamento decorrente da Lei 9.496, o que chamou de “discrepância”:


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Em 2011, a taxa Selic foi de 9,78%, enquanto a atualização monetária acrescida de juros dos contratos com Estados e Municípios variou entre 17,98% e 21,32%. Essa discrepância tem acarretado dificuldades para que os referidos entes federativos cumpram seus compromissos financeiros, econômicos e sociais.

Conforme cálculos a seguir, fruto de simulação elaborada pela Auditoria Cidadã da Dívida para a dívida de Minas Gerais, caso aplicadas as condições oferecidas pelo PLP 238, partindo de um estoque de R$ 63,4 bilhões no início de 201316 e considerando-se todos os pagamentos devidos como efetuados, em 2028 (ano da suposta quitação completa da dívida, segundo a Lei 9.496), o estoque dessa dívida ainda estaria em R$ 84 bilhões. Pagamento (9% da RLR)

Saldo Devedor Final do Ano

Saldo Devedor Início do ano

Juros (IPCA+ 4%)

2013

63.400.000.000,00

6.156.140.000,00

3.040.519.901,88

66.515.620.098,12

2014

66.515.620.098,12

6.458.666.711,53

3.335.754.384,35

69.638.532.425,30

2015

69.638.532.425,30

6.761.901.498,50

3.659.656.135,07

72.740.777.788,73

2016

72.740.777.788,73

7.063.129.523,29

4.015.008.745,78

75.788.898.566,24

2017

75.788.898.566,24

7.359.102.050,78

4.404.866.095,00

78.743.134.522,02

2018

78.743.134.522,02

7.645.958.362,09

4.832.578.592,82

81.556.514.291,28

2019

81.556.514.291,28

7.919.137.537,68

5.301.821.974,19

84.173.829.854,78

2020

84.173.829.854,78

8.173.278.878,90

5.816.628.887,88

86.530.479.845,80

2021

86.530.479.845,80

8.402.109.593,03

6.381.423.552,89

88.551.165.885,93

2022

88.551.165.885,93

8.598.318.207,52

7.001.059.779,88

90.148.424.313,58

2023

90.148.424.313,58

8.753.412.000,85

7.680.862.684,51

91.220.973.629,92

2024

91.220.973.629,92

8.857.556.539,47

8.426.674.451,17

91.651.855.718,22

2025

91.651.855.718,22

8.899.395.190,24

9.244.904.540,38

91.306.346.368,08

2026

91.306.346.368,08

8.865.846.232,34

10.142.584.771,25

90.029.607.829,17

2027

90.029.607.829,17

8.741.874.920,21

11.127.429.752,54

87.644.052.996,84

2028

87.644.052.996,84

8.510.237.545,99

12.207.903.181,51

83.946.387.361,32

Ano

2.771.415.460,65

2012

Fonte: Elaboração economista Rodrigo Ávila (Auditoria Cidadã da Dívida).

16 Juros = IPCA + 4% a.a, usando a estimativa do IPCA para 2012, para todos os anos; Crescimento anual da Receita Líquida Real: IPCA + crescimento real de 4%%; obs.: simulou-se essas condições também para o ano de 2012, apesar de o PLP prevê-las apenas a partir de 2013.


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Como se depreende da tabela acima, estas novas condições não resolvem o problema da dívida de Minas, que continuará crescendo, dado que os juros nominais (IPCA mais 4% ao ano) são muito superiores ao limite de 9% da Receita Líquida Real. É bom lembrar também que, apesar de a Selic estar, no final de abril de 2013, em 7,5% ao ano (abaixo do IPCA + 4%), a qualquer momento essa situação pode modificar e reiniciar o ciclo de elevação, como já ocorrido no dia 17 de abril, quando a taxa subiu 0,25%. Esta nova proposta procura legitimar uma dívida repleta de questionamentos, tais como a aplicação de juros sobre juros (já considerada ilegal pelo STF) e o recente erro de R$ 2,1 bilhões no estoque da dívida de MG com a União, denunciado pela Auditoria Cidadã da Dívida (Núcleo Mineiro).17 As análises de sustentabilidade pressupõem a utilização de estimativas de evolução econômica de médio e longo prazo, que são particularmente questionáveis num contexto de grande volatilidade da economia e incertezas comprovadas pelas constantes revisões – para baixo – de distintas previsões publicadas por organismos nacionais e pelo governo brasileiro. O mais grave é que o histórico do endividamento dos estados brasileiros é permeado de denúncias de ilegalidades e irregularidades, a exemplo das comprovadas pela CPI dos Precatórios em 1997. Diante disso, é necessário realizar ampla auditoria dessa dívida desde a sua origem. Por essa razão, são altamente preocupantes as campanhas que estão sendo veiculadas para convencer a opinião pública de que uma “Renegociação” da dívida seria positiva para o Estado de Minas Gerais. Uma re-

17 Erro dado ao conhecimento aos deputados através de Carta da Auditoria Cidadã da Dívida (Núcleo Mineiro), protocolada em 6 de setmbro de 2012 nos gabinetes dos deputados Adelmo Leão e Bonifácio Mourão. Constatamos a utilização de taxas de juros maiores que as constantes da Res. do Senado, 7,5%, que autorizou os financiamentos do Estado de Minas no âmbito da Lei 9496. No arquivo “Lei 9496 – após jan. 2007.xls recebido pela comissão da SEF e repassado ao Núcleo Mineiro na coluna “Juros” – detectamos que a taxa de juros mensais foi obtida dividindo 0,075 por 12, obtendo-se 0,00625; com este procedimento a taxa aplicada cumulativamente chega a 7,76% a.a (1,00625 elevado a 12). O mesmo problema ocorre com a dívida referente ao saneamento dos bancos estaduais, cuja taxa de 6% acaba sendo 6,17 a.a.(não incluída no erro de 2,1b).


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negociação sem auditoria constitui passo temeroso e representa até mesmo um risco de empacotar operações ilegais e ilegítimas. A auditoria deve preceder qualquer renegociação, para que as parcelas ilegais e ilegítimas sejam segregadas, e o processo garanta a participação cidadã.

AUDITORIA JÁ! O momento atual exige o enfrentamento do problema, especialmente diante do ambiente de crise financeira internacional que tem comprovado a geração de “dívida pública” a partir da atuação especulativa do setor financeiro bancário, com fortes impactos sobre a sociedade. É fundamental garantir transparência e promover a democratização do conhecimento sobre esse importante tema, mobilizando a sociedade em busca da Justiça Fiscal e Social. O Estado de Minas não pode continuar pagando uma dívida ilegal à custa de sacrifício social. Somos o 3o Estado mais rico do Brasil, mas essa situação não favorece à sua população, que possui mais de três milhões de pobres e miseráveis, comunidades carentes, analfabetos, sem moradia ou vivendo em moradias inadequadas, sem acesso a saneamento básico. Faltam recursos para investimentos em segurança, saúde, educação e transportes, sendo que nossas estradas são as mais perigosas do País. Pagamos elevados tributos ao Estado, principalmente o ICMS (embutido em produtos comercializados) e o IPVA (devido por todos os proprietários de veículos, do qual 50% são repassados aos municípios). O Estado recebe parte dos impostos pagos pelos mineiros ao Governo Federal (Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados) através do Fundo de Participação dos Estados (FPE). A dívida de Minas com a União tem baixo risco e alta liquidez porque se o Estado não pagar mensalmente, o valor que deveria ser pago (máximo 13% da RLR) o valor do repasse do FPE será retido pela União. Por tudo isso, reivindicamos a realização de completa auditoria da dívida com participação cidadã, para que todo o povo mineiro possa saber, por exemplo: qual a origem dessa dívida do Estado de Minas Gerais? Qual a sua justificativa e contrapartida? Onde foram aplicados os recursos? Até que ponto está sendo respeitado o princípio do federa-


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lismo e a autonomia dos entes federados? Quem se beneficiou da venda das LFTEs? Qual era o valor real de tais letras no mercado, uma vez que a União as refinanciou por 100% de seu valor de face? Qual a origem da dívida do PROES que foi repassada para o Estado de Minas Gerais? “O movimento social da Auditoria Cidadã da Dívida procura respostas para estas e outras questões”,18 pois a subtração de recursos para o pagamento dessa onerosa dívida está diretamente relacionada à ausência de serviços sociais de qualidade – saúde, educação, transporte público urbano e intermunicipal, segurança, etc. Em 2012, o investimento do Governo Estadual, em todas as áreas foi de R$ 3,2 bilhões, cifra muito inferior ao valor destinado à dívida com a União. O princípio da transparência está sendo desrespeitado e o povo que tem arcado com essa pesada conta tem o direito a todas as informações sobre esse processo.

18 Disponível em: <http://www.auditoriacidada.org.br>.


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ARRANJOS POLÍTICOS E DESENVOLVIMENTO DEPENDENTE EM MINAS GERAIS INTRODUÇÃO A importância da dimensão política na história da industrialização é ponto pacífico nas principais leituras sobre a formação econômica mineira. Assim, o papel do Estado ganha centralidade, como indutor econômico de primeira ordem, um substituto dos capitalistas, ou até como produtor dos mesmos. Tendo a intervenção estatal como constante, diferentes arranjos políticos foram articulados em Minas ao longo do século XX, com o intuito de combater o atraso relativo perante seus vizinhos, São Paulo e Rio de Janeiro.1 Os arranjos políticos governantes em Minas alinham-se à noção de que o progresso – em especial a industrialização – foi negado ao Estado pela ação de forças externas, nacionais ou internacionais. Essa crença social, com algum fundamento material, sedimentou-se durante décadas no núcleo de decisão estadual, produzindo uma ideologia de enfrentamento à defasagem industrial. A vontade consciente e organizada na dimensão política deveria ser mobilizada como contra a tendência à marginalização econômica proveniente da livre ação do mercado. Com o advento do processo de liberalização econômica do final do século XX ocorreu uma mudança na política de compromisso entre 1 “(...) a trajetória esperada em contextos de atraso econômico é no sentido da primazia de fatores políticos sobre fatores de mercado. Esta primazia aparece, antes de tudo, no caráter diretivo de que se reveste o processo de desenvolvimento. O Estado, seus aparelhos e sua burocracia assumem particular importância como espaços de coordenação estratégica da economia e de articulação dos interesses dos diversos atores – tradicionais e emergentes – envolvidos no empreendimento da modernização” (Dulci, 1999, p. 37).


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os membros do condomínio de poder instalado em Minas Gerais. Os governos do PSDB (Partido da Social Democracia), a ideologia do “Choque de Gestão” e o “aecismo” estão inscritos nesse registro, que figura como “ruptura” com a noção de desenvolvimento regional e consolida a adesão subordinada ao padrão de reprodução do capitalismo dependente, em sua fase globalizada. O trabalho é divido em três partes. A primeira, denominada “Minas Gerais: a categorização como problema”, trata da questão metodológica, explorado as categorias, conceitos e tipologias empregadas na literatura correspondente. Nesta oportunidade, apresento o contorno do estilo de abordagem empregado no trabalho, em diálogo crítico com as análises de referência sobre o tema. A segunda, intitulada “Descaminhos do desenvolvimento regional mineiro”, analisa os diferentes arranjos políticos mineiros e sua relação com o desenvolvimento regional. A terceira parte, “A ideologia do Choque de Gestão”, apresenta o lugar político dos governos estaduais do PSDB na trajetória de Minas. Concluo apresentando uma sumária sistematização dos arranjos políticos indicados e apontamentos sobre os contornos e limites do pacto de compromisso neoliberal. Evidentemente, a análise aqui apresentada não é exaustiva, tampouco o método empregado pretende abordar a totalidade do tema, em sua complexidade e nuances. Seu objetivo é, ainda que de forma limitada, desenvolver uma abordagem pela qual os acontecimentos da histórica econômica do Estado sejam interpretados pela política. Ou seja, procura identificar como o debate sobre o desenvolvimento regional se manifesta como poder.

MINAS GERAIS: A CATEGORIZAÇÃO COMO PROBLEMA Estilos de abordagem A maior parte da literatura, que aborda direta ou indiretamente a política mineira e o tema do desenvolvimento regional, utilizam de maneira pouco rigorosa, e até mesmo abusiva, categorias que merecem um tratamento atencioso. Refiro-me principalmente ao uso corrente dado


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aos termos: Elites Mineiras, Oligarquias e Tecnocracia.2 O propósito do item é oferecer, a título exploratório, elementos para uma melhor compreensão do uso das categorias, que são componentes do objeto do artigo. Sem a pretensão de oferecer uma perspectiva minuciosa, mas apresentar a questão da categorização e tipologia dos setores sociais como um problema em aberto. Utilizo a obra do argentino Jorge Graciarena, Poder y clases sociales en el desarrollo de America Latina (1967), como ponto de partida para o tratamento das categorias Elite, Oligarquia na relação entre “sistema político” e “desenvolvimento econômico”. O autor constrói, em seu estudo, uma linha argumentativa que aborda de maneira bastante profícua a interpretação das estruturas sociais e do poder político como um sistema complexo de interações. Assim, a determinação estrutural, em termos de classes sociais, é traduzida analiticamente para a dimensão política, materializando em “estruturas de poder” e “estruturas sociais”. Tal operação enriquece de conteúdo a luta de classes, transportando-a para níveis mais concretos de percepção, ou seja, indica a forma objetiva em que os interesses classistas se manifestam no cotidiano. Importa, para Graciarena, a maneira como esse processo de concreção política dos interesses classistas incide no caso específico da América Latina, e como o sistema político se relaciona com o desenvolvimento econômico no subcontinente.

Centralidade da política em formações sociais periféricas: Minas Gerais como exemplo O Estado nas sociedades periféricas é o principal recurso mobilizável pelas classes para materializar suas pretensões de poder social e econômico. É naturalmente um recurso escasso e se estabelece como centro da disputa entre os interesses contraditórios da sociedade. As causas desse fenômeno são muitas; no entanto, atenho apenas a esta: a situação de subordinação das sociedades de capitalismo dependente em relação à 2 A obra de Otávio Soares Dulci, Política e recuperação econômica em Minas Gerais (1999), contraria a regra geral, pela qualidade e profundidade, não obstante a discordância marginal que tenho em relação ao uso das categorias elencadas acima.


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dinâmica econômica dos países centrais implica na conformação de um quadro desfavorável às necessidades de reprodução das burguesias locais. Em termos econômicos, a ausência de controle efetivo do excedente econômico leva o empresariado e a oligarquia da periferia do sistema a buscar proteção na capacidade de inversão pública, ou se associar de maneira subalterna ao capital internacional, ou ainda, o que ocorre com grande frequência, procurar as duas possibilidades. Quanto aos aspectos sociais, será por meio dos instrumentos do Estado, do uso de seus recursos de autoridade, que tanto a burguesia quanto a oligarquia são capazes de conservar uma ordem social marcadamente desigual, suscetível constantemente a confusões populares, e por vezes revoluções, que desafiam sua condição dirigente. Essa formulação, um tanto simplificada e genérica, colabora com o entendimento do papel da política em formações sociais dependentes, na medida em que a tomamos como um primeiro lastro para a resposta ao problema. Como afirma Graciarena: Em los países subdesarrollados, las expectativas sobre la situación económica y, también, las relaciones ante sus efectos están puestas mucho más em el gobierno que en la economía. Aun en países o grupos donde la ideología dominante tiene fuertes tonos manchesterianos la responsabilidad principal por la situación económica sin excepción le es atribuída al gobierno, pues las diferentes actitudes del público al respecto se expresan en su mayor parte a través del sistema político (Graciarena, 1967, p. 77). En el subdesarrollo el impulso de las fuerzas económicas espontáneas no sólo es débil sino raquítico y enfrenta una multitud de interferencia que sólo pueden salvarse mediante una acción coordinada al nivel más general, es decir, mediante un plan o programa de desarrollo que debe ser lanzado y sostenido politicamente (Graciarena, 1967, p. 87, grifo nosso).

Tal caracterização exposta acima me parece válida para o caso de Minas Gerais, sobretudo por ser uma formação subnacional que reúne de maneira bastante clara as principais componentes do capitalismo depen-


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dente, definido por Diniz como uma “caricatura do capitalismo brasileiro atual: moderno, selvagem, público e estrangeiro” (Diniz, 1981, p. 21). No entanto, nos interessa níveis mais concretos de análise, no qual essa formulação geral se manifesta como operações políticas dos atores sociais. Para esse intento, utilizo dois conceitos presentes em Graciarena (1967): os conceitos de “situação objetiva de poder ou poder real” e “poder efetivo ou político”. O primeiro pode ser definido como o poder de cada ator (grupos, setores sociais, organizações etc.) em decorrência da sua posição própria na estrutura social, ou seja, deriva do volume, importância e do tipo de propriedade que controla, ou ainda sua localização (central ou marginal) na estrutura produtiva. O segundo é determinado pelo lugar que indivíduos ou grupos ocupam no interior das instituições de importância política (governo, parlamento, exército etc.). Diante desse enquadramento analítico podemos ter grupos que mesmo não possuindo poder real amplo, ou seja, determinado estruturalmente, acabam por controlar, por meio da sua posição institucional (dentro do Estado), um grande volume de recursos políticos. Em Minas Gerais, esse procedimento de compensação do baixo poder real por meio da acumulação de poder efetivo é uma chave de interpretação para o entendimento da centralidade da política no Estado. Esta abordagem possui um ganho analítico em relação àquelas que, ao estilo antropológico, procuram estritamente na cultura e na tradição a explicação para o comportamento dos mineiros na seara pública. Como trataremos na seção “Descaminhos do desenvolvimento regional mineiro”, os agentes econômicos em Minas Gerais sempre estiveram em desvantagem relativa perante o centro dinâmico da economia brasileira Rio-São Paulo. Tal condição levou-os a concentrar suas forças na direção do Estado, no lugar de apostar a disputa no terreno do mercado, ambiente em que suas fragilidades estavam expostas e sem possibilidades de recuperação de posição pelo expediente econômico, stricto sensu. Elites, oligarquias e tecnocracia em Minas O uso dos conceitos como elites, oligarquias e tecnocracia reflete uma preocupação justa dos autores em, ao analisar o sistema de poder em Minas, não reduzirem suas interpretações a apenas categorias de natureza estrutural (classes sociais), sem nenhum tratamento de objetiva-


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ção na dimensão política.3 Seria um equívoco procurar uma correspondência direta e incondicionada entre situação de classe e a manifestação de seus membros na disputa social, política e econômica. Tal estilo ganha em elegância o mesmo que perde em capacidade elucidativa. A ação de cada classe social não pode ser entendida como um sistema de operações calculadas e sempre informadas por seus interesses gerais, não se trata de um regime de “escolhas racionais”.4 Assim, é admissível, e até mesmo necessário, a formulação de categorias que operem no sentido de atribuir vigor as análises, por meio de sua objetivação. É igualmente necessário evitar o uso abusivo e até mesmo intuitivo de conceitos, que carecem de tratamento reflexivo para cumprir com sua função explicativa; é o caso dos conceitos dispostos acima. Dulci (1999) sustenta a existência em Minas de quatro elites: agrária, política, empresarial urbana e técnica. As duas primeiras teriam um registro tradicional (rural) e as duas últimas seriam produto da modernização e urbanização, bem como as elites política e técnicas estariam identificadas com o setor público, enquanto as elites empresarial urbana e agrária ao privado. O autor afirma pela existência um “jogo das elites” na conservação do seu poder político, em um período de transformações (industrialização), no qual a diversificação social decorrente da urbani3 Para uma análise política é imperativo levar em conta os conflitos no interior das classes, entre grupos que, mesmo tendo a mesma inscrição estrutural, divergem e disputam a direção e o controle do poder. 4 Tão pouco as instituições classistas – sejam entidades sindicais (patronais ou de trabalhadores), associações, partidos ou movimentos populares – representam os interesses de toda a sua “base social”. Tal pensamento “representativo” não é mais que uma ideologia burguesa, que contamina até mesmo setores reformadores e revolucionários. A representação perfeita, a correspondência direta entre direção e dirigidos, a pureza dos tipos ideais, a coerência incondicionada à vontade geral são, no máximo, ilusões úteis à ordem. Apenas o pensamento, as ideias, os programas e as proposições são passíveis de representação; partidos e outras instituições representam um enunciado que tem origem em um grupo ou liderança que, em uma conjuntura específica, é apoiada por maioria ou parcelas de determinada coletividade, importantes o suficiente – seja por seu número, seja pelo os recursos econômicos e políticos que controla – para se materializar, em seguida, por imposição ou concertação, em uma linha geral válida para todos, não excluindo as ações de oposição e sabotagem desta orientação por parte do setor vencido pertencentes a este mesmo conjunto social.


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zação impõe atualizações do papel e da importância de cada elite, em conflito ou justapostas em um acordo de modernização conservadora. Em outra perspectiva, Amilcar Vianna Martins Filho, em sua Economia política do café com leite, 1900-1930 (1981), assume mais incisivamente o conceito de oligarquia mineira, enfatizando as ideias de patrimonialismo e clientelismo. A administração pública, nesta abordagem, estaria a serviço dos interesses mais imediatos e discricionários da oligarquia, que de forma arbitrária tomaria as decisões, sem necessidade de intercâmbio político com outros setores sociais. Em sua perspectiva, a questão da modernização precoce em Minas Gerais é rejeitada, bem como o significado político do Estado na construção de um projeto de desenvolvimento para além dos interesses particulares imediatos dos oligarcas. Cabe, no entanto, precisar inicialmente as características que distinguem os conceitos de oligarquia, elite e tecnocracia e com isso identificar a pertinência ou não do seu emprego no caso mineiro. E mesmo sendo válido, é importante observar a extensão e profundidade do seu emprego.5 A oligarquia, conceitualmente, é identificada como um estrato social que tem origem estrutural nos setores primários, e em algumas situações, terciários. É dizer, ao que se refere às classes sociais, a oligarquia, predominantemente, é composta por latifundiários e/ou proprietários de minas. Tendo seu ambiente de reprodução conectado com espaço rural, caso dos latifundiários, e no espaço urbano, no caso da oligarquia rentista da extração mineral. A fonte principal do poder real (situação objetiva de poder) é a propriedade da terra, em termos gerais. A base de recrutamento oligárquica é restrita aos proprietários; possuem alto grau de solidariedade entre seus membros que constroem relações baseadas, prioritariamente, nas afinidades regionais, socioculturais e parentais. O lastro econômico dessa homogeneidade oligárquica está na manutenção do controle fundiário e na conservação do sistema primário-exportador, 5 A categorização ofertada no tópico não é exaustiva, tampouco descreve com precisão a realidade dos arranjos políticos em Minas Gerais. Os termos indicados devem ser entendidos como uma aproximação, limitada, do objeto do artigo. Será por meios destas categorias que desenvolveremos os argumentos adiante, nos quais os conceitos que porventura se encontrem com carga abstrata serão dotados de maior concretude.


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tendo, portanto, um alto grau de dependência econômica com o exterior. O tipo de controle social oligárquico é mais indireto no que se refere ao controle das instituições e pulverizado geograficamente em termos de sua fonte de irradiação de poder, isso porque dispõe de instrumentos próprios de imposição de sua autoridade, não dependendo exclusivamente dos aparelhos de estado (polícia, tribunais, etc.). O Estado é, portanto, instrumento e não fonte de poder oligárquico. Assim, internamente à oligarquia, o poder é exercido por meio de expedientes personalizados (laços de amizade e familiares), no que se refere ao controle externo, também é personalizado e se manifesta pelo coronelismo, caciquismo e caudilhismo (Graciarena, 1967, p. 58-59). A elite, tratando ainda no nível conceitual, é conformada, em termos de origem de classe, de modo mais heterogêneo, no qual o recrutamento de seus membros é realizado, predominantemente, em setores urbanos da pequena burguesia, profissionais liberais e indivíduos de origem oligárquica que transitam para ocupações de maior exigência de conhecimento técnico-acadêmico. As bases de incorporação e ascensão no interior da elite são menos pessoais e seguem critérios funcionais, assumindo padrões de racionalidade mais avançados do que a oligarquia. Logo, a solidariedade é mais frágil entre seus membros, e está sustentada por requisitos ideológicos e práticos, excluindo em grande parte interações de natureza parental e afinidade pessoal. A autoridade é exercida de maneira direta, emanada do posto na estrutura estatal e instituições dotadas de poder político; nesse caso o Estado é fonte de poder. Assim, o estilo de controle social elitista passa muito mais pela utilização do poder efetivo (institucional) do que de sua situação objetiva de poder, via de regra mais restrita se comparada com a oligarquia. Deriva dessa condição que o poder da elite é mais político do que econômico. A base que unifica e divide a elite é necessariamente o controle da política de Estado. Seu estilo de controle social externo é impessoal, se dá por meio da força policial, sistema judiciário, propaganda e discursos, nos quais suas posições são difundidas como o “interesse geral” da população. Procuram estabelecer um “consenso social” em torno da ideia de que a elite é eficaz, moderna e impessoal, e estaria melhor preparada para a condução dos serviços públicos. A relação entre elite e agentes do capital externo se dá, prioritariamente, pela convergência de aspectos ideoló-


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gicos e políticos, em termos de modernização, progresso e desenvolvimento (Graciarena, 1967, p. 58-59). Cabe, a partir dessa caracterização geral dos conceitos de elite e oligarquia, desenvolver uma categorização que se aproxime da realidade mineira, haja vista que a formulação acima opera apenas como fundamento e não esgota a questão. Os conceitos “puros” são didáticos e auxiliam a exposição, mas estão longe de abarcar a complexidade do fenômeno social. Em Minas Gerais, a estratificação social assume configurações particulares, próprias de sua condição periférica dentro de um espaço nacional dependente. É importante destacar, seguindo a proposta de tipificação de Graciarena (1967), que tanto a elite quanto a oligarquia se transformam e imbricam-se durante o processo de modernização, distanciando-se do registro conceitual exposto anteriormente. Nesse sentido, é fundamental o apontamento de tipos intermediários, que mesmo apresentado algum nível de ambiguidade conceitual, aproxima-se de maneira mais apropriada à realidade objetiva. Se a hipótese deste artigo estiver correta, existiu em Minas uma sequência histórica de grupos dirigentes que transitaram do padrão oligárquico para o elitista dentro de um sistema de reconciliações permanentes sustentada por uma política de compromissos dentro do bloco dominante estadual. Até o fim do Ciclo do Ouro, Minas Gerais foi dirigida por uma oligarquia mineradora, marcadamente urbana e escravocrata, dentro de um padrão monolítico de exercício do poder, constrangido diretamente pelo poder colonial. Será com o declínio da atividade mineradora que o centro de reprodução da autoridade oligárquica se transfere para o espaço rural, ou seja, para o interior do Estado e se pulveriza geograficamente. A desconcentração espacial da autoridade oligárquica veio acompanhada da perda relativa de poder real. Distribuídas por rincões isolados e desarticulados, a oligarquia, agora com um padrão de reprodução latifundiário, encontra-se em uma situação bastante desconfortável, possuindo um baixo dinamismo econômico e constrangida pelo crescimento dos seus vizinhos paulistas e fluminenses. A oligarquia latifundiária de Minas, como resposta à situação desfavorável, transita com relativa rapidez e precocidade, se comparada


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com situações semelhantes na América Latina,6 para um padrão de reprodução mais aberto. A necessidade de enfrentar a vulnerabilidade econômica e de poder levou a oligarquia estadual a construir um conjunto de compromissos que teve como centro a diversificação produtiva e industrialização, e possui como marco histórico (e também simbólico e funcional) a construção da capital Belo Horizonte em 1897 e a realização do Congresso Agrícola, Comercial e Industrial de 1903, fenômeno que será desenvolvido adiante. Tal “tomada de consciência” da oligarquia de Minas Gerais, principalmente no que se refere a sua adesão ao paradigma de modernização via industrialização, expõe de maneira objetiva a transfiguração que sofria internamente. Em outros termos, a oligarquia latifundiária reinventava-se com uma oligarquia pluralista (Graciarena, 1967, p. 65). A necessidade de desenvolvimento econômico, associada ao compromisso de manutenção do sistema oligárquico, levou a construção de um regime político-social regional que a um só tempo conservou prerrogativas dos setores tradicionais e incorporou, de forma subalterna, às principais esferas de decisão, em especial à administração do Estado, setores até então segregados do circuito do poder. Essa capacidade de agregação é demonstrada na própria configuração dos delegados ao Congresso de 1903, composta majoritariamente por membros do interesse do latifúndio, porém com a participação ampla de profissionais liberais e empresários da indústria e do comércio (Dulci, 1999). Outro aspecto importante e distinto do período anterior reside na questão da administração estadual; os oligarcas passam a necessitar contundentemente do controle do Estado para gerenciar os compromissos e o programa modernizador; o uso do poder efetivo (institucional) torna-se imperativo. O processo de atualização da oligarquia gesta no seu interior o início de sua caducidade. A inclusão dos setores urbanos (engenheiros, comerciantes, industriais) dentro do bloco dirigente estadual lhes confere, em um ambiente de modernização, uma autoridade política embalada pela crença informada pelo positivismo, que indica como virtude 6 Esse fenômeno ocorrerá com maior frequência na América Latina a partir da década de 1930.


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a ordem, a modernidade e a cientificidade na condução da administração pública, da economia e da sociedade. A acumulação de força desses setores urbanos no interior dos governos irá promover uma nova atualização do bloco dirigente mineiro a partir da década de 1930, com a formação de uma elite propriamente dita. Nos anos de 1930, ocorre a conformação de um novo arranjo político estadual no qual o sistema oligárquico pluralista é substituído pelo sistema elitista. Nesse sentido, cabe destacar que a mudança do arranjo político não se dá por meio de uma ruptura ou exclusão de partes do anterior, mas por uma reconfiguração da hierarquia dos setores no interior do bloco dirigente. Ou seja, os setores oligárquicos perdem espaço de direção e autoridade política na administração do Estado. A mudança sem ruptura se dá principalmente porque os termos do pacto de modernização não se alteraram e os compromissos entre setores urbanos e a oligarquia permaneceram vigentes. Cabe ainda ressaltar que a forma de composição social da elite mineira, que também incorpora membros de origem oligárquica que adquiriram conhecimento técnicoacadêmico ou migraram para o setor industrial ou comercial, colabora para uma relativa “estabilidade na mudança”, ou seja, a perda de poder efetivo da oligarquia não aparece para os sujeitos, em seu tempo, como uma derrota frontal. Por outro lado, o próprio ambiente econômico, os negócios no ramo agrícola, também se modernizava gradativamente, e com isso diminuía a possibilidade de qualquer reação explosiva por parte desse setor. A elite mineira que assume o controle político do Estado a partir dos anos de 1930 é tampouco típica, poderíamos defini-la como elite-conservadora. No sentido de que suas pretensões em executar um programa de modernização sempre foram fortemente constrangidas por sua política de compromissos com os setores oligárquicos. Ou seja, o processo de mobilização social dos anos de 1930 e 1940 – em que a massa popular, principalmente urbana, começa a operar como um ator político relevante não teve o mesmo efeito e extensão em Minas Gerais. A abertura para a participação social não foi uma opção razoável para a oligarquia, receosa dos questionamentos “dos debaixo” em relação ao regime de privilégios, principalmente fundiários, que ostentava. A estratégia da elite mineira foi procurar garantir o máximo de unidade no


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interior do arranjo político, executar uma política de desenvolvimento preservando os interesses dos setores incorporados ao arranjo, e fazer o enfrentamento ao capital estrangeiro primário-exportador de minério. Alcançar o controle do Governo Federal sempre foi uma pretensão perseguida e por vezes conquistada, no sentido de levar às últimas consequências a lógica de compensação da perda de poder real por meio do controle do poder efetivo. A chamada tecnocracia apresentada nas obras de Dulci (1999) e Diniz (1981) como um setor social “a parte” da elite dirigente, a meu ver, é imprópria. Dulci, inclusive afirma que existe uma “elite política” e uma “elite técnica” (Dulci, 1999, p. 157). Ocorre que toda elite dirigente requer a conformação de um quadro técnico amplo de profissionais especializados, ou seja, uma intelectualidade de Estado que seja formuladora das diretrizes administrativas, e legitimadora social das opções políticas do grupo hegemônico, por meio do discurso da racionalidade na condução da coisa pública. Não há razão em admitir a existência de uma “elite técnica” com interesses próprios em Minas Gerais, apartados do grupo dirigente, tampouco podemos perceber um governo de técnicos, conforme sugere a noção de “tecnocracia”. O que levou a cristalização da ideia de “tecnocracia” ou “elite técnica” na literatura e no pensamento dos mineiros foi menos sua existência factual e mais a profunda habilidade da elite-conservadora em legitimar socialmente suas posições e manobras, que se apresentavam para a sociedade como decisões embasadas cientificamente. Não é produtivo descartar o papel da intelligentsia de Estado nas decisões do Governo; não é este o sentido do argumento aqui apresentado. Tampouco reduzir o parecer do conhecimento produzido pelos técnicos a meros instrumentos de legitimação. De outro modo, afirmo que a distinção entre “Elite Técnica” (ou tecnocracia) e “Elite política” é formal e didática, tem o valor de reconhecer a importância e existência, em Minas Gerais, de um pensamento articulado em torno do tema do desenvolvimento, que teve como lastro estudos de peso sobre a realidade regional. Enfim, é preciso reconhecer a virtude do argumento apresentado na literatura e salvá-lo dos seus excessos. Esta elite mineira também alterou sua configuração interna e sua diretriz política-ideológica, a partir da década de 1950, em decorrência


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da derrota de seu projeto de industrialização e diversificação produtiva. A elite-conservadora – que resistiu às propostas do capital estrangeiro voltadas para a especialização produtiva com ênfase na exportação de minérios in natura – ao perder o projeto da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) – perdeu também a possibilidade de se constituir como vanguarda do parque industrial de coque nacional, o que possibilitaria ao Estado uma posição muito mais igualitária perante São Paulo e Rio, e muito menos subalterna em relação ao capital externo. Esta derrota estratégica do projeto da elite-conservadora fez ascender em poder, no interior do arranjo político e do pacto de compromisso, setores conectados política-ideologicamente como as empresas multinacionais. Assim, mais uma vez uma nova hierarquia é formada no interior do bloco dirigente, que marginalizou o pensamento desenvolvimentista da elite-conservadora e ao mesmo tempo seguiu sustentando os privilégios dos setores remanescentes da oligarquia do interior. Podemos definir este novo setor social hegemônico como elite-dependente. A elite-dependente se caracterizou pela associação com o capital externo e pela especialização produtiva, iniciada no governo JK, por meio da política conhecida como “Binômio Transporte-Energia”, conforme será abordado adiante. A fonte de poder efetivo da elite-dependente não é unicamente o Estado (governo e administração), mas de maneira substancial, as instituições e companhias estatais. É o caso da CEMIG, BDMG e INDI, que, mesmo sendo instituições públicas, possuíam um alto nível de autonomia perante a administração e influenciaram decididamente os rumos da economia mineira. Esta autonomia perante o governo não implica antagonismo entre governantes e estas instituições, mas uma divisão complexa de tarefas, com algum nível de conflito, dentro de um registro de compromissos internos à elite. A autonomia administrativa e financeira das instituições (CEMIG, BDMG, INDI) contribuía, e segue contribuindo, para a execução da política do bloco dirigente, e da elite em específico, sem necessitar do cumprimento de procedimentos da administração pública direta, em especial os sistemas de controle financeiro, jurídico e políticos dos atos do Executivo, próprios do regime republicano e das democracias liberais. A elite-dependente logrou ampliar seu poder efetivo para além dos governos e adquirir uma liberdade de condução que faz lembrar os regimes oligárquicos.


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Sistema regional de poder e arranjos políticos Cabe agora indicar os contornos e o padrão de relação entre os diferentes grupos políticos dirigentes em Minas Gerais. Para tanto, indicamos a noção de sistema regional de poder e arranjos políticos. O primeiro pode ser definido como o padrão de relação dos diferentes grupos políticos na condução/manutenção/disputa do poder regional, quando analisado do ponto de vista histórico, ou seja, com um alcance temporal mais longo. O segundo refere-se a diferentes configurações hierárquicas desses grupos, em uma determina situação, ou seja, trata-se da conjuntura do poder. Em Minas, o sistema regional de poder se aproxima do que Graciarena definiu como “política de compromisso”. Podemos descrever este sistema da seguinte maneira: En general, la política de compromisso se puede caracterizar como formada por acuerdos tácitos o manifiestos entre grupos políticos cuyo fundamento principal consiste en: a) el reconocimiento y aceptación de la legitimidad de los intereses de los grupos que participan em dicha política, lo cual coincide en gran medida con la propia definición que de sus intereses formulan dichos grupos; b) supone por lo tanto la legitimidad de los grupos mismos; c) el compromisso gira en torno de la definición y delimitación de las áreas cubiertas por los intereses reconocidos y legitimados y la instauración de mecanismos de institucionalización del conflito entre los diferentes intereses representados, y d) inmediatamente el compromiso supone una afirmación de la importancia de conservar el status quo logrado, aunque esto pueda ocasionalmente coincidir, sin negarlo con um sostenido forcejeo sobre las fronteras de las áreas compreendidas por los diferentes intereses reconocidos (Graciarena, 1967, p. 84, grifos do autor).

O uso de tal caracterização colabora para o entendimento de que em Minas Gerais, historicamente, foi construído um regime específico de interação entre os grupos dirigentes (oligarquias e elites) que tem como núcleo de convergência os seguintes pontos: a) manutenção da oligarquia, da elite e do empresariado (posteriormente) no interior do bloco dirigente e no controle da administração estadual; b) desenvolvi-


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mento de uma política de modernização via industrialização; c) manutenção da unidade territorial do Estado; e d) disputa econômica e política com o centro dinâmico do capitalismo brasileiro, São Paulo e Rio de Janeiro. Ressalta-se, para não haver engano, que este sistema regional não esteve isolado das alterações políticas e econômicas brasileiras; o que se afirma aqui é que Minas se insere no espaço regional por meio desde sistema, criando obviamente um estilo de interação no cenário nacional que lhe é característico. Caracterizo este pacto entre os membros do consórcio de poder como política de compromissos oligarca-elitista. O sistema regional de poder, sob uma política de compromissos, não implica necessariamente deduzir a existência de estabilidade no Estado. Os conflitos entre as diferentes frações do bloco dirigente é uma constante histórica, porém não se dá por meio de rupturas de grande impacto, ou por meio da exclusão de setores inteiros. As cisões, geográficas ou políticas no interior do bloco poderiam acarretar uma maior marginalização do Estado no ambiente nacional e uma fragilização do condomínio de poder instalado, perante os setores excluídos da política de compromisso, o que não interessa a nenhum membro do pacto de compromisso. Foi por meio desta habilidade em administrar suas fragilidades que o bloco dirigente, ao longo da história do Estado, logrou conservar sua importância na política nacional – mesmo não sendo Minas a principal força da Federação. Daí cristalizou-se a ideia – alimentada pelos mineiros, diga-se de passagem – de que Minas Gerais seria o “fiel da balança” da política brasileira. Em resumo, o sistema regional de poder em Minas é caraterizado pela manutenção de um pacto de compromissos entre as elites e oligarquias, em suas diferentes composições históricas. Há, logicamente, o reconhecimento da legitimidade de seus membros em possuírem espaços de poder efetivo, mesmo que a configuração da relevância de cada parte se altere ao longo do tempo. Os conflitos entre frações do condomínio de poder são administrados por meio da acomodação de interesses (distribuição de espaços) dentro da administração estadual e suas extensões, que procura considerar, geralmente, o peso político e sua funcionalidade para a preservação do sistema. Utilizo a noção de arranjo político7 para definir uma determinada configuração de forças sociais no interior do bloco dirigente. Isso porque


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os grupos políticos e estratos sociais que compõem o pacto de compromissos do sistema regional de poder estão submetidos, internamente, a uma ordem social competitiva e assimétrica; é dizer que os membros do bloco possuem recursos econômicos e políticos diferentes em volume, extensão e efetividade e, portanto, controlam parcelas distintas do poder efetivo. A competição gera alterações na hierarquia internas dos membros do bloco, e, logo, um rearranjo entre forças dominantes e forças subalternas. Trata-se de uma definição de alcance médio (em termos históricos), o que podemos indicar como a conjuntura do poder. A título de exemplo, durante o período de oligarquia pluralista em Minas Gerais o arranjo político era composto pelos oligarcas nas posições centrais e a elite era incorporada de maneira subalterna ao bloco. A partir da década de 1930, esta hierarquia se altera, pelas razões apresentadas neste trabalho, o que leva a uma mudança do lugar ocupado por cada um dos setores: os oligarcas são marginalizados dentro do bloco e a elite-conservadora sai da condição de subordinação e passa a ocupar o lugar de força dirigente. Em resumo, a hipótese do artigo indica que Minas Gerais possui um sistema regional de poder regido por uma política de compromisso oligarca-elitista entre os membros do condomínio de poder. Sob esta condição, se desenvolveram diferentes arranjos políticos, desde a oligarquia pluralista (final do século XIX até a 1930), elitista-conservador (entre as décadas de 1930 e 1950) e elitista-dependente (da década de 1950 até 1985). Da metade da década de 1980 em diante ocorreu uma alteração de grande profundidade, que encerra a vigência daquela pactuação, que é substituída por uma de natureza neoliberal, conduzida por um arranjo político distinto em composição social e programa, denominado político-empresarial. 7 Cabe ressaltar que a noção de arranjo político não se confunde com a de coalizão partidária, que possui um alcance muito limitado, restrito a acordos eleitorais e de governo. Um determinado arranjo político geralmente absorve a possibilidade de pactos eleitorais diferentes, sem necessidade de alterações substanciais em sua arquitetura interna. Até mesmo durante um governo, pode existir diferentes coalizações partidárias em seu percurso. Uma vertente de explicação possível para este fenômeno situa-se na compreensão de que a correspondência entre posição partidária e representação de interesses de estratos sociais é frágil, em termos gerais.


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DESCAMINHOS DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL MINEIRO Raízes do atraso No período colonial as iniciativas de manufatura encontravam-se bloqueadas por determinação legal proveniente da Metrópole. Situação que levou Minas a se especializar durante todo o Ciclo do Ouro no processo de extração mineral e cultura de gêneros alimentícios auxiliares à atividade mineradora. Com o colapso da extração aurífera (1760), o centro dinâmico da economia regional foi transferido para a Zona da Mata e Sul Mineiro, aproveitando do impulso da demanda fluminense de gêneros alimentícios gerado com a instalação da Corte no Rio de Janeiro (1808), e com a expansão da cafeicultura no Vale do Parnaíba (1830) (Paula, 2002). A indústria siderúrgica nasce prematuramente em Minas surge como resultado das condições particulares da província, geograficamente isolada e sustentada pelo trabalho escravo. Segundo Paula (2002, p. 7), a siderurgia se desenvolve em Minas, durante a maior parte do século XIX, como atividade auxiliar a extração subterrânea de ouro, aliando técnicas de fundição africanas e equipamentos europeus. A produção siderúrgica comercial agia no sentido de “substituir a importação” de peças de ferro provenientes do exterior, uma vez que não encontravam disponíveis no país. No entanto, o que parecia ser um sinal promissor para o processo de industrialização se demonstrou um obstáculo. “O papel do escravo será, ao mesmo tempo, catalisador e bloqueador no avanço da siderurgia mineira da época” (Paula, 2002, p. 7). A partir de 1880, com a abolição da escravidão e a ampliação da rede férrea no território mineiro, que reduziu o preço de peças importadas, a manufatura siderúrgica entrou em colapso, antes de completar a transição do artesanal beneficiamento do ferro com emprego de trabalho escravo, para a indústria moderna empregadora de mão de obra assalariada. O isolamento geográfico, a inexistência de um polo exportador e de um polo articulador regional, a escassa mão de obra assalariada, a ausência de um mercado consumidor interno, a dispersão espacial da atividade econômica e da força de trabalho e dificuldades técnicas na


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exploração da atividade principal do estado (a minério-siderurgia)8 são fatores de obstrução ao desenvolvimento industrial mineiro oitocentista, tanto na siderurgia como em outros ramos (têxtil por exemplo).9 No final do século XIX, enquanto a região central de Minas sofria os efeitos da integração das ferrovias e a abolição do trabalho escravo, Rio de Janeiro, São Paulo e a Zona da Mata (Juiz de Fora) acumulavam capital com o comércio exterior do café. Fonte de recursos que se demonstrou estratégica para o primeiro ciclo de industrialização paulista e fluminense. Restou a Minas a condição periférica, desarticulada regionalmente, sem poupança e mercado consumidor. Ao seu favor, apenas um enorme contingente humano, que na República é uma vantagem considerável quando conversível em votos. Os mineiros fazem política por necessidade A oligarquia estadual – até o momento, dispersa em disputas locais – se vê obrigada a enfrentar o problema da integração regional do Estado e produzir uma linha geral de intervenção governamental que combatesse a condição periférica. O símbolo desta “tomada de consciência” se materializa na construção da nova capital, Belo Horizonte, marco de um novo arranjo de poder em Minas. Porém será no Congresso Agrícola, Industrial e Comercial, realizado em 1903, em Belo Horizonte, organizado pelo Governo do Estado, sob a direção de Francisco Salles (1863-1933), que se estabelece uma convicção prática em torno de uma agenda “desenvolvimentista regional” (Dulci, 1999, p. 43).

8 Para uma maior discussão sobre os elementos elucidativos da incapacidade de Minas, acompanhar o impulso dos estados vizinho, cf. Diniz (1984). 9 Até mesmo o setor aurífero não desempenhou papel relevante na economia mineira do século XIX. “O balanço que podemos realizar a respeito do desempenho produtivo das Cias. Estrangeiras na mineração aurífera subterrânea em Minas Gerais, no século XIX, é de fracasso. (...), identificamos três fatores para tal fato: o elevado número de Cias., representava uma considerável dispersão de capital; alto custo no emprego de tecnologias nos empreendimentos; por fim, a maioria das jazidas trabalhadas pelos empreendimentos estrangeiros compunha-se de depósitos já esgotados ou de uma pobreza de produção que nunca teria permitido uma exploração mais rentável deste ramo” (Paula, 2002, p.10).


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Como afirma Dulci (1999), o Congresso mobilizou frações sociais urbanas e setores da oligarquia latifundiária para a problemática da crise mineira, e sua resposta mais destacada foi indicar o Estado como centro promotor da recuperação econômica. A intervenção estatal era entendida como a articulação de uma série de diretrizes protecionistas, visão que irá evoluir posteriormente para a ideia de uma economia do setor público. Na dimensão política, stricto sensu, o Congresso funda o que podemos chamar de “partido” de Minas, ou seja, um campo de convergências de posições da oligarquia latifundiária e dos extratos urbanos (engenheiros, profissionais liberais, industriais e comerciantes) em torno de uma proposta de ação junto à União e ao governo estadual. Os setores dirigentes mineiros entenderam que a unidade de ação seria seu trunfo nos tempos de República. O instrumento do voto, a força dos caciques em seus “currais eleitorais”, um programa definido, poderiam, se articulados, elevar o status político das lideranças mineiras no regime republicano. Dulci (1999, p. 45) indica, com razão, que um dos resultados práticos do Congresso foi a eleição do primeiro mineiro à Presidência da República em 1906, Afonso Pena (1847-1909), e João Pinheiro (1860-1908) à presidência estadual também em 1906, devido ao papel que desempenhou durante o evento. Minas se consolida como um operador importante no jogo do poder nacional, internamente gesta um arranjo político que promove a aliança estratégica, ou seja, uma política de compromissos entre a oligarquia e setores sociais urbanos. Classifico este arranjo político como oligarquia pluralista. As políticas econômicas no âmbito estadual prevista no Congresso foram iniciadas na gestão de João Pinheiro,10 que se destacou pela ten10 “Pinheiro era empresário da indústria, mas no governo via-se como ‘direto representante das classes produtoras’, dedicado à tarefa de mobilizar todas as suas frações em torno da estratégia de modernização. Avesso ao jogo miúdo dos chefes políticos, referia-se como frequência à necessidade de substituir a ‘política partidária’ pela ‘política econômica’, querendo significar que o estilo convencional de política, próprio das disputas oligárquicas de poder, devia dar lugar a um padrão político-administrativo diferente, orientado para os interesses da produção. Para ele, papel principal no projeto de recuperação econômica cabia às ‘classes conservadoras’. Estas, no entanto, careciam de organização, e o Estado devia ajudálas a se estruturar, tanto no plano empresarial quanto no plano corporativo, na agregação de interesses” (Dulci, 1999, p. 46-47).


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tativa de diversificação econômica, sem recuar da preocupação central em relação ao setor agrícola. Uma característica relevante do pensamento de Pinheiro foi a aposta na constituição de uma “intelectualidade de Estado”: funcionários públicos que por meio da técnica e relativa independência em relação às disputas oligárquicas poderiam impulsionar as diretrizes de desenvolvimento regional. A “ideologia do tecnicismo”, inaugurada por João Pinheiro, marcará de maneira bastante profunda a lógica de legitimação do poder governante em Minas (com repercussões até os dias atuais), abrindo caminho para a formação um novo arranjo político de natureza elitista, décadas depois. Esta opção pelo progresso técnico se manifestou concretamente na década de 1920, com a instituição da Escola Superior de Agricultura e Veterinária em Viçosa (Dulci, 1999, p.51), que teve como objetivo formar quadros para funções dirigentes das estruturas estatais, em especial para a Secretaria de Agricultura de Minas Gerais, secretaria, à época, que de fato coordenava a política de desenvolvimento, inclusive em outros campos como a indústria e o comércio.11 Na década de 1930 as Ciências Agrárias são substituídas pelas Engenharias no fornecimento de técnicos, “intelligentsia” para as funções estatais, a Escola de Minas de Ouro Preto12 e a Sociedade Mineira de Engenheiros serão as principais instituições difusoras do pensamento técnico-desenvolvimentista no âmbito estatual. Esta hegemonia dos engenheiros será rompida ape11 Segundo Clélio Campolina, “foi pois na Secretaria de Agricultura que se formou o ‘embrião da Tecnocracia Mineira’, deslocada posteriormente para outros órgãos, de acordo com cada momento político e institucional. Na década de 1950, na CEMIG. Na década de 1960, na CEMIG e no BDMG. Na década de 1970 seria generalizada por toda a administração pública estadual (...)” (Diniz, 1981, p. 42). 12 Mesmo tendo sido fundada em 1876, ou seja, antes da Escola Superior de Agricultura e Veterinária de Viçosa, cujo projeto é de 1920 e a inauguração ocorreu em 1926, a Escola de Engenharia de Minas de Ouro Preto só assumirá a vanguarda do pensamento técnico estatal na década de 1930. Isso porque o projeto da referida escola data da primeira metade do século XIX, quando ainda havia uma pulsão no sentido da dinamização econômica no setor mineral, que seria apoiado pela expansão do ambiente urbano. No período em que foi inaugurado o cenário havia mudado, a crise da mineração levou a transferência do setor dinâmico da produção para o setor agrícola, o que explica a predominância dos técnicos vinculados à agricultura na administração estadual.


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nas na década de 1970, quando os economistas ganham espaço e assumem a posição central na direção técnico-político das estruturas de Estado (Diniz, 1981, p. 40-42). O “desenvolvimentismo regional” foi o fundamento ideológico da elite que se formava no interior da política de compromisso oligarca pluralista; vislumbrava a industrialização, tanto da agricultura como da cadeia produtiva do minério como chave de superação do atraso. A partir da década de 1930, com a predominância dos engenheiros no interior da intelectualidade estatal, se manifesta de maneira mais decidida os debates acerca da estratégia de desenvolvimento em Minas. Minas conquista – como resultado da política de substituição de importações, protecionismo, investimento técnico e instalação de empresas voltadas para o beneficiamento local dos minérios – um lugar de destaque na siderurgia nos anos de 1920. Dulci (1999, p. 57) destaca a instalação da Belgo-Mineira (associação entre capitais luxemburgueses e mineiros) como um exemplo exitoso de industrialização regional, que impedia a exportação de minérios em estado bruto. Os mineiros se tornam liderança na média siderurgia, porém lhes faltava a capacidade de criar plantas industriais de grande porte. A CSN seria uma promessa (Dulci, 1999, p. 58). “Minério não dá duas safras” Nas condições específicas de Minas, a questão da extração e beneficiamento do minério de ferro assume um papel central nas disputas de interesses e concepções.13 A disputa de posições entre a diversificação econômica e a modernização via especialização produtiva por meio da indústria pesada será o código pelo qual se decifra os acontecimentos regionais na maior parte do século XX. Desde 1920, a oposição do Governo de Minas em relação ao plano de extração mineral sem benefi13 Foge do escopo deste artigo explorar, com a devida riqueza de informações, a interessante e complexa dinâmica que formou o primeiro ciclo de industrialização do Estado. Assunto formulado com êxito nos trabalhos de Clélio Campolina Diniz, Estado e capital estrangeiro na industrialização mineira (1981) e Otávio Soares Dulci, Política e recuperação econômica em Minas Gerais (1999). É pertinente, para os objetivos específicos deste trabalho, apresentar apenas alguns apontamentos que auxiliem o argumento desta análise.


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ciamento foi contundente. Resistência sintetizada na frase “Minério não dá duas safras”, atribuída a Artur Bernardes (1875-1955), presidente de Minas Gerais entre 1920 -1924. Os anos de 1930 serão para o Brasil, e para Minas, decisivos na constituição de um programa de desenvolvimento econômico. O nacionalismo modernizante e conservador da Revolução de 30 apontou a necessidade de emancipação industrial nacional, tendo como pano de fundo a crise econômica mundial eclodida em 29. Restrições no mercado internacional para as exportações brasileiras alimentaram a necessidade de resposta ao problema do subdesenvolvimento. Com o advento da Revolução de 30 as bases de reprodução do poder das oligarquias regionais alteram significativamente. Rompe-se o esquema eleitoral no qual se apoiava a República Velha; a eleições para postos de comando nas principais cidades e nos estados são substituídos pela a indicação de interventores, feitas diretamente por Getúlio Vargas (1882-1954). Este novo arranjo político brasileiro reduz significativamente o poder de barganha da oligarquia pluralista mineira, que não poderia lançar mão da sua ampla base eleitoral como elemento de pressão e ascensão aos postos de comando centrais da Federação, bem como legitimar-se internamente como ator central do arranjo político regional. Esta situação promove uma reconfiguração do condomínio de poder em Minas; os setores urbanos da política de compromisso assumem a liderança do bloco dirigente devido a sua conexão ideológica com o processo de modernização no nível nacional. Surge um novo arranjo de tipo elitista-conservador, remanejando a oligarquia à posição secundária no plano político estadual. 14 Os anos de 1920 e 1930 foram marcados pelo confronto entre o Governo de Minas e as empresas estrangeiras de extração mineral. As elites e a tecnocracia governante pleiteavam que qualquer empreendimento estrangeiro deveria vir associado à implantação de unidades industriais de beneficiamento dos minérios no território do Estado, garantindo a transferência tecnológica, emprego e retenção de parcelas dos lucros. Nesse sentido, se opuseram a todas as propostas que estavam relacionadas à exploração para a exportação de matéria-prima sem nenhum tipo transformação. O caso icônico foi a disputa em torno dos interesses da Itabira Iron; chefiada pelo também emblemático Percival Farqhuar, de capitais ingleses, a empresa tinha como projeto a extração de minério de ferro bruto para a exportação, sem qualquer tipo de beneficiamento.


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Os mineiros14 e setores nacionalistas (em especial militares) do governo Vargas eram partidários da implantação de uma companhia siderúrgica de coque nacional, ou que pelo menos mantivesse em solo nacional o beneficiamento e todo o sistema logístico sobre controle do País. No entanto, Vargas procurava uma alternativa mais rápida para a questão siderúrgica, que implicava admitir a participação estrangeira no setor. As discussões e impasses foram resolvidos no final dos anos de 1930, com a derrota dos mineiros e a implantação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) no Rio de Janeiro, com a participação de capitais norte-americanos, resultado dos compromissos assumidos com os aliados na II Guerra Mundial. Tal decisão ganhou justificativa técnica que desabonava a opinião de Minas Gerais. A principal seria que o Estado, mesmo sendo a principal fonte de matéria-prima, não dispunha de malha de transporte e capacidade energética (elétrica e de carvão) suficientes para acolher tal projeto. Porém, as justificativas técnicas geralmente legitimam posições políticas, a derrota estava situada na dimensão estratégica, com a vitória do capital estrangeiro e setores do capital nacional a ele associado, com a colaboração do Estado Brasileiro. Em síntese, a situação de dependência se modernizava, era o amanhecer da industrialização associada e subordinada ao capital internacional: a articulação ou tripé composto por capitais públicos e privados nacionais e o capital estrangeiro. A maldição de Percival Farqhuar Durante a década de 1940 Minas Gerais atraiu plantas industriais diversas, tendo como base a participação do capital estrangeiro em associação com o Estado. No entanto, cada contrato possuía diferentes configurações em termos de participação acionária, direção empresarial e objetivos relativos aos planos de desenvolvimento estabelecidos pelo Governo. Em outro campo, o Governo Mineiro apostou na criação de distritos industriais (Contagem e Santa Luzia) para procurar atrair os empresários por meio de incentivos de toda ordem. Para que estes projetos industriais se desenvolvessem era necessário solucionar a questão energética e logística no Estado.


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Quadro 1 Empresas Instaladas em Minas Gerais (1940-1960) CARÁTER DAS PRINCIPAIS EMPRESAS INSTALADAS EM MINAS GERAIS (1940-1960) Empresa

Atividade

Composição do capital

Fundação

Companhia Vale do Rio Doce

Exploração e exCapital Americano e Inportação de Miné- glês + Estado (União) rio de ferro

1942

Acesita S.A

Siderurgia

Capital Inglês + Privado brasileiro

1944

Alumínios Minas Gerais S.A

Alumínio

Controle acionário da Alcan – Capital Canadense

1952

Cia. Mannesmann Siderurgia

Capital Alemão

1952

Usiminas

Capital Japonês + Estado (Mineiro)

1958

Siderurgia

Fonte: elaboração do autor.

Em 1947, o Governo Mineiro, dirigido por Milton Campos (19001972), lança o Plano de Recuperação Econômica e Fomento da Produção, como estratégia para superar o atraso regional. Mesmo sendo amplas as preocupações contidas no Plano, será no Governo Estadual de Kubitschek (1951-1955) que é tomada a decisão de enfrentar de maneira concreta os gargalos apontados naquele documento. Os esforços governamentais se dão prioritariamente no setor energético e de transporte, política que ficou conhecida como “Binômio Energia e Transporte”. Kubitschek defendia uma via de industrialização que teria como primeira etapa uma especialização intensiva (energia); na sua visão, esta deveria ocorrer com a ampla participação do setor privado, inclusive estrangeiro. Por isso, a opção pelo sistema de holding sociedades anônimas (S.A) e não por autarquias. A unificação do setor elétrico estadual como um primeiro passo, seguindo da constituição de uma empresa vigorosa o suficiente para atrair capitais externos. Desse pensamento surge a proposta da CEMIG S.A.


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Criada em 1952, a CEMIG S.A foi constituída pela unificação da maioria dos projetos elétricos em que o Estado era acionista, e ainda contou com a capitalização do Fundo Estadual de Eletrificação (fundado em 1947), frações da Taxa de Recuperação Econômica, recursos do BNDE e recursos estrangeiros (Eximbank, BIRD) (Dulci, 1999, p. 102). A fundação da empresa significou, em grande medida, uma nova configuração do arranjo político governante em Minas, que perdeu seu caráter protecionista e sua lógica de substituição de importação; e inaugura um padrão de relacionamento com o capital estrangeiro cada vez mais intenso e colaborativo. Em linhas gerais, o desenvolvimento regional começa a ser entendido como um concurso, cada vez mais amplo, de capitais externos e públicos, e não como um impulso autônomo (com participação dirigente do Estado) via diversificação econômica e solidificação do mercado interno. Pode-se dizer que a CEMIG foi uma resposta mineira à perda do projeto siderúrgico nacional (CSN em especial), em sintonia com a expansão da economia capitalista mundial do pós-guerra. A autoridade da CEMIG S.A ultrapassou a mera coordenação da política energética, passou a assumir o papel de núcleo diretivo da política de desenvolvimento regional, tendo concentrado entre seus quadros parte significativa da intelligentsia presente nas estruturas estatais. A empresa, mais tarde, em parceria com o BDMG (Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais), cria em 1968 o Instituto de Desenvolvimento Industrial (INDI), um grande operador do processo de industrialização em Minas Gerais, por meio da especialização, concentração regional (em Belo Horizonte) e associação ao capital estrangeiro. No setor de transportes o enfoque foi na malha rodoviária com o fortalecimento do Departamento de Estrada de Rodagem (DER) – criado em 1946. A ampliação e pavimentação das vias possibilitou o fortalecimento das grandes empresas construtoras, por meio de uma transferência gigantesca de recursos do setor público para o capital privado, como aponta Diniz (1981, p. 80). As rodovias se ampliaram e o capital da construção civil pesada se expandiu enormemente, aquecendo o setor de equipamentos, serviços e de cimento. 15 15 Inclusive, a associação entre JK (1902-1976) e o setor da construção civil, mesmo sendo pouco estudada, salta aos olhos devido ao estilo monumental de suas obras.


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Ao longo da década de 1950 a presença econômica estrangeira consolida-se em Minas Gerais e a resistência mineira em relação a este tipo de capital, principalmente no setor de extração mineral, se flexibiliza e surge um novo padrão de relação entre Estado e capital externo, que mesmo possuindo antagonismo em alguns projetos é marcado pelo sentido de “colaboração” e complementaridade. Na dimensão política a eliteconservadora, protecionista e partidária da diversificação produtiva, perde força e é substituída paulatinamente por uma nova elite, gestada, em grande parte, no interior das instituições como CEMIG, BDMG, INDI e CDI (Companhia de Desenvolvimento Industrial), que apoiava projetos voltados à especialização produtiva. O arranjo elitista-conservador é substituído, até o final da década de 1960, por um arranjo elitista-dependente, portador das ideias de associação com o empresariado dos países centrais. A recuperação econômica mineira começa a se concretizar, porém em uma situação de desenvolvimento dependente e associado. Ou seja, mesmo com forte presença do Estado, cada vez mais os centros de tomada de decisão econômica tornam-se exteriores a Minas e ao País. A especialização industrial imbricada como o capital estrangeiro se manifesta como maldição que assolará Minas Gerais e contaminará suas estruturas até os tempos atuais. Devido a sua capacidade de condenar diversas gerações de mineiros, seria apropriado chamá-la de A Maldição de Percival Farqhuar. “If Minas Gerais is good for all these companies it must be good for your company, too!”16 O desenvolvimento industrial mineiro, embora em ascensão, encontrava-se constrangido pelos limites impostos ao fomento à indústria no Estado. Dependia do BNDE e do Banco do Brasil para o financiamento de projetos, porém, estas instituições ou apenas apoiavam projetos grandes e novos (BNDE) ou projeto já consolidados (Banco do Brasil), fazendo com que a incipiente burguesia industrial mineira se tornasse cada vez mais marginal ao processo de desenvolvimento capitalista. 16 Frase de um folheto do INDI intitulado “The industrial calling of Minas Gerais” – dirigido a empresários estrangeiros – a chamada diz “Se Minas Gerais é boa para todas estas empresas deve ser boa para sua empresa também!” ao apresentar 125 empresas estrangeiras em operação em Minas, citado por Diniz (1981, p. 208).


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O BDMG, criado em 62 pela administração de Magalhães Pinto (1909-1996), foi uma resposta a esta situação. A sua proposta teve origem no interior do Departamento de Estudos Econômicos da FIEMG (Dulci, 1999, p. 1820), que também pleiteava uma refinaria de petróleo na região central do Estado e logrou sucesso na implantação da Refinaria Gabriel Passos, em Betim. A tese central era a de que Minas necessitava autonomia de financiamento para colocar em práticas suas próprias orientações industriais, independente, ou pelo menos com maior autonomia, em relação ao BNDE e ao Banco do Brasil. O BDMG, com o intuito de se capitalizar, assumiu uma estratégia bastante clara: aprofundar a relação com o capital estrangeiro. As primeiras iniciativas do banco foram realizar estudos sobre a situação econômica mineira, tanto no sentido de compreender o cenário e escolher caminhos para a ação, como também no sentido de demonstrar aos investidores a viabilidade da região em termos de oportunidades de negócios. Os estudos realizados pela instituição – que logrou concentrar boa parte da intelligentsia estatal, agora com maior participação dos economistas – ganharam notoriedade e audiência governamental e do empresariado. O BDMG consolidou autoridade suficiente para influenciar as opções governamentais em torno da política de desenvolvimento. Por meio de acordos entre a CEMIG e o BDMG, é fundado em 1968 o Instituto de Desenvolvimento Industrial (INDI),17 com a proposta de: analisar a situação econômica de Minas Gerais, identificando 17 Porém a parceria entre CEMIG e BDMG na criação do INDI não era desprovida de tensões internas importantes, principalmente na dimensão da concepção do Instituto. Como afirma Fausto Brito, “a CEMIG não estava em nada interessada nos chamados estudos macroeconômicos propostos pelo BDMG (...), nem muito menos preocupada com a correção de desequilíbrios, integração ou polos, dentro de um planejamento de longo prazo, mas numa análise pragmática de economia procurando identificar setores com oportunidades potenciais para investimentos (...). Uma outra divergência era quanto a reinvindicação da CEMIG de contratar uma empresa de consultoria estrangeria para assessorar a organização e os primeiros passos do INDI. (...) Entretanto a divergência mais funda parecia ser uma disputa de hegemonia. De um lado a estratégia de ocupação de espaços do BDMG. De outro a CEMIG com sua tradição de autonomia, concepção de desenvolvimento industrial mais pelo lado da demanda de energia elétrica, querendo refazer sua posição política dentro da estrutura do Estado” (Brito, 1984, p. 248-249). A concepção da CEMIG, mais uma vez, foi bem-sucedida.


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oportunidades e gargalos à industrialização e encontrar e atrair investidores potenciais (Diniz, 1981, p. 160). O INDI, conforme apresenta Diniz (1981, p.158), “no seu afã de industrializar o Estado a qualquer custo desenvolveu sua estratégia de apoio irrestrito ao capital estrangeiro e de concentração em torno de Belo Horizonte”. O BDMG completa a configuração institucional do programa de industrialização com a constituição da Companhia de Distritos Industriais - CDI (1971). Na realidade, foi a transferência de atribuições do Departamento de Industrialização da Secretaria de Agricultura a uma companhia autônoma, sem direção direta do corpo político do Estado. O objetivo da CDI foi dinamizar as já existentes cidades industriais, principalmente fomentar a expansão das mesmas, com a atração de novas plantas industriais. O BDMG, INDI e CDI, com a colaboração da CEMIG, advogaram junto ao governo uma nova estratégica de atração de investimentos, via incentivos fiscais variados, em especial o ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias). Inclusive foi criado pelo governo o Gabinete de Incentivos Fiscais, em parceria com o BDMG. Esta ação indiscutivelmente surtiu efeitos no processo de atração de capitais privados para Minas, com destaque para sua fração estrangeira. A constituição institucional da industrialização mineira – pioneira no Brasil, diga-se de passagem – possui duas dimensões. A primeira, que se manifestará na década de1960, trata da consolidação da política de Estado, que retira da administração pública direta o centro da decisão sobre a industrialização, processo que é identificado pela literatura como “fortalecimento da tecnocracia”, que prefiro identificar como uma atualização institucional da política de desenvolvimento, agora sob a lógica da elite-dependente. Esta forma de condução, não é, a meu ver, de uma simples elevação do poder social dos técnicos, como querem al-

18 “Tais órgãos facilitavam o acesso e eliminavam os labirintos da burocracia pública e, por outro lado, pelo caráter de autonomia administrativa e financeira, dispunham de facilidades, rapidez e eficiência nas suas ações, inclusive na arregimentação e contratação de pessoal. Eram aspectos que viriam desempenhar papel relevante como mecanismo de apoio e promoção aos novos empreendimentos industriais mineiros, especialmente ao capital estrangeiro” (Diniz, 1981, p. 165-167).


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guns, mas um tipo específico de visão do papel do Estado, que surge em Minas de maneira bastante precoce. A tríade BDMG-INDI-CDI,18 e posteriormente a Fundação João Pinheiro, passam a orientar a política econômica estadual, e, além disso, realizam operações na execução desta política, ou seja, formulam e encaminham. A criação de autarquias, companhias mistas, S.A(s), nesta fase, aparece, segundo a concepção do setor dirigente, como enfrentamento aos limites burocráticos e procedimentais da administração pública, que impediria a plena reprodução do capital. A criação de empresas e instituições com “vida própria”, administrativa e financeira, seria uma forma de retirar da esfera pública a decisão sobre o desenvolvimento, que deveria ser – segundo a ideologia da época – “neutro” e acima da política. Como destacado na seção anterior, a elite-dependente criou e expandiu-se por diversas instituições com relativa autonomia em relação ao governo, elevando radicalmente seu poder efetivo e as bases de manifestação de sua orientação. É importante destacar que a elite-dependente, com setores transvestidos retoricamente de “técnicos”, diluídas nestas instituições, estava permeada de empresários e seus agentes, uma vez que a “pureza” do setor técnico contrasta com a necessidade da burguesia industrial mineira de se associar à estrutura estatal e paraestatal, no intuito e necessidade de se reproduzir enquanto classe. A intelligentsia de Estado, mesmo com alguma autonomia relativa perante as disputas políticas mais imediatas, operava e opera interesses dos setores mais organizados e dinâmicos do empresariado, seja por confluência ideológica, uma vez que são reprodutores do “consenso social” edificado pela hegemonia, seja por convergência de interesses e/ou barganha, ou até mesmo pela imbricação social entre empresariado e técnicos. Cabe ressaltar o pensamento das instituições que compõe a tríade, informado de fundamentos liberais, que assume na prática uma postura econômica heterodoxa. Não se trata, neste momento, de deixar nas mãos do mercado, strito sensu, toda a responsabilidade da dinâmica econômica regional. Para esta intelectualidade estatal e paraestatal o mercado deveria ser estimulado pelo setor público; os investidores deveriam ser atraídos, informados e mobilizados para um projeto de industrialização elaborado, na dimensão estratégica, pelo setor público. As ações


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do Estado, segundo a concepção destas instituições, deveriam ser a de criar as condições para que as leis do mercado funcionassem de maneira plena. No entanto, o processo de associação com o capital externo trouxe como resultado a construção de uma configuração política que lhe é característica, no qual os interesses econômicos internacionais começam a se manifestar como campo político específico, dotado de condições de hegemonia – fato que ocorre durante a década de 1970. A segunda dimensão se relaciona com a colaboração entre a tríade e o capital estrangeiro no processo de autonomização institucional. A formação de instituições administrativamente e financeiramente autônomas criou uma situação bastante oportuna para os investidores externos, que por décadas sofreram resistência da elite-conservadora. No novo cenário, o BDMG, o INDI e a CDI se relacionavam, teciam acordos e fechavam negócios diretamente com instituições internacionais, sem necessitarem da decisão e procedimentos inerentes à administração pública. A organização interna do INDI seguia padrões operacionais do setor privado, até mesmo com a utilização de um conjunto de bloqueios administrativos, visando impedir a chamada interferência “política”. Esta forma de administração, que se afirmava “neutra”, faz parte de um expediente cuidadosamente inspirado e configurado pela CEMIG, que havia assumido esta linha desde sua constituição. Como afirma Fausto Brito: O INDI acabou por encontrar o objetivo fundamental de sua estratégia: servir de ponte entre o Estado e o capital, particularmente o capital estrangeiro. E a eficiência e agilidade eram enormes: ia-se ao encontro dos empresários, oferecia-se estudos e facilidades e caso abrissem possibilidades o INDI assumia os seus interesses e os defendia com a maior agressividade dentro do próprio aparelho de Estado. O que se queria era minimizar os riscos dos capitalistas (Brito, 1984, p. 253).

A conclusão que se segue à análise de Brito (1984) é a de que no afã de “industrializar-se a qualquer custo” o poder político de governo em Minas, a partir da década de 1970, perde uma parcela significativa do controle sobre o processo de desenvolvimento industrial. A autonomia (em relação ao Executivo e ao Parlamento) adquirida da CEMIG,


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BDMG, INDI e CDI, ao meu entender, deve ser considerada como uma reconfiguração do arranjo político dirigente em Minas, no qual a chamada elite-dependente, da qual tratamos, assume um contorno liberal-cosmopolita. Em outros termos, adere ao pensamento hegemônico, de desenvolvimento capitalista – associado, em detrimento do projeto nacional-desenvolvimentista (Bielschowsky, 1995, p. 148 -179). Em alguma medida, será neste período que, definitivamente, Minas Gerais sintoniza-se e se subordina ao ritmo e ao padrão de reprodução do capitalismo brasileiro e mundial. A chamada “perda de substância” de Minas Gerais e de seu condomínio de poder, bem como a derrota do projeto regional de desenvolvimento, tem seu ponto de definição na década de 1970. Será com a “estrangeirização” da economia mineira, via constituição de uma industrialização especializada, fortemente imbricada com a primário-exportação, que o empresariado local abandona qualquer possibilidade de autonomia e adere de maneira subalterna ao novo padrão. O crescimento econômico – Milagre Econômico Brasileiro – sustentou de maneira bastante forte a tese da CEMIG e das demais instituições, que tinha na associação com o capital estrangeiro seu principal enfoque. A especialização industrial – motivada pela tríade, sob a regência onipresente da CEMIG – resultou na degradação da política de compromissos, entre elite e oligarquia. A centralização espacial da indústria e a concentração econômica dos anos de 1970 irá promover a decomposição do lugar político do interior mineiro, solapando a autoridade das oligarquias sub-regionais, que mesmo não sendo dizimadas por completo, começam a operar em uma circunscrição bastante estreita, praticamente reduzida aos seus municípios de origem e cada vez mais pressionada pela expansão da empresa capitalista do setor agropecuário. Conforme afirma Lemos (1984, p. 143): (...) a excessiva especialização da indústria nascente de Bens de Capital em Minas – que constituiu de um certo modo condição para o seu próprio nascimento – determinou já, de início, os seus próprios limites na medida em que se viu forçada a “abstrair” todo o setor tradicional que era e ainda é, de longe, a maior expressão quantitativa (em termos de valor econômico) do mercado regional.


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A política de compromisso não pôde resistir ao poder econômico e político do capital estrangeiro, que estabeleceu a grande indústria de bens de capital e de exploração de minérios. A especialização (e a concentração e centralização) industrial resultou na marginalização das subregiões, pauperização e queda demográfica. O tempo das oligarquias e da elite-conservadora havia passado; suas pretensões hegemônicas no processo de desenvolvimento regional sucumbiram-se mediante a ríspida dinâmica do capitalismo dependente. Se antes as mesmas manobravam o capital estrangeiro por meio do Estado, procurando estabelecer pactos que lhes colocassem na liderança do processo de industrialização, agora a associação aos investimentos externos se dá de maneira totalmente subalterna, sem margem para discutir condições de ordem estratégica. A estratégia conduzida pela elite-dependente logrou impulsionar a economia de Minas, na esteira e além, do Milagre Econômico. Enquanto o Brasil, de 1970-1975, crescia à taxa média de 10% a.a, Minas crescia a 11% a.a; a desaceleração que ocorreu no nível nacional a partir de 1975 somente afetou o Estado a partir de 1978. A desaceleração se transformou em retração e Minas Gerais começa a ter um desempenho econômico inferior ao nacional no início dos anos de 1980. A especialização da indústria mineira deixou consequências importantes para a dinâmica econômica, social e política dos anos de 1980 em diante. Vejamos algumas, que ao meu entender, se destacam: 1) Minas Gerais perdeu definitivamente a possibilidade de condução de um projeto de desenvolvimento regional. Forma-se uma nova configuração da direção do Estado, uma articulação entre os representantes locais do capital externo e a elite-dependente. O sentido dado ao desenvolvimento é a ampliação indiscriminada da especialização produtiva. 2) A concentração fundiária no campo, com intensa expansão da monocultura. Evolução do fluxo migratório para os centros urbanos. Adoção de um padrão agrícola baseado em uma maior intensidade de capital e orientado para o comércio exterior (principalmente na região do Triângulo Mineiro), resultando


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na marginalização de parcelas importantes de pequenos proprietários e no êxodo rural. 3) Em relação à renda, os 50% mais pobres, que em 1960 participavam com 18,8% da renda estadual ao final dos anos de 1970, passaram a participar com 11,9%. Enquanto isso, os 5% mais ricos, no mesmo período, passaram de 29,3% para 41,7% (Raposo; Machado, 2002). O resultado do processo de especialização produtiva, no qual o crescimento econômico está diretamente associado à concentração absoluta de capital, foi a degradação das economias sub-regionais e a marginalização de grande parte da classe trabalhadora mineira. 4) O endividamento público dobra de volume entre 1972 e 1981, processo que segue crescendo até o presente momento. Enquanto isso, o ICM no período diminui sua importância relativa. Em síntese, este é o futuro que os debates ocorridos 70 anos antes, no Congresso de 1903, procuravam evitar. Os diferentes arranjos políticos em Minas tinham como núcleo de convergência a superação do atraso regional, porém, a partir da década de 1950, o vigor do seu pensamento enfraqueceu, principalmente com advento da perda do projeto da CSN. A maior parte de suas ações, após este período, foi tomada em condições defensivas no quadro nacional de forças; foram respostas às situações instaladas alheias à vontade e além da capacidade de intervenção imediata. Como nos diz Saul Leblon: “Não há desenvolvimento sem hegemonia.” A habilidade política e a ousadia de algumas manobras mineiras foram insuficientes para se materializar como hegemonia, tanto no interior do Estado, quanto nacionalmente, após a década de 1960. Como resultado de ordem mais geral, Minas Gerais se cristalizou na posição importante, porém subalterna, dentro da hierarquia dos estados da Federação Brasileira. Baile liberal e ruptura com a política de compromisso A partir da década de 1980 fica cada vez mais evidente que o atrelamento intenso da estrutura produtiva de Minas Gerais ao capital externo determina o ritmo do crescimento econômico estadual. Tal situação elevou o desempenho econômico a patamares levemente su-


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periores, se comparado ao crescimento nacional no mesmo período. No entanto, este crescimento é cada vez mais divorciado de um projeto de desenvolvimento. Na seara política, a liderança mineira se fragiliza, produzindo mais uma alteração no arranjo dirigente estadual. Como afirma Dulci (2001), a “tecnocracia”, em sua terminologia, sofre um duro golpe, com o fim do regime militar, seu modus operandi não consegue se adaptar prontamente às mudanças do regime político. Segundo Diniz (1986), em artigo intitulado “O paradoxo mineiro: fortalecimento econômico e enfraquecimento político”, Minas Gerais, a partir de 1984, entra numa trajetória de crescimento, porém tal processo não se manifestou em termos de fortalecimento político dos setores dirigentes do Estado no âmbito nacional. Quanto à estrutura econômica do Estado, nos últimos 30 anos não ocorreram mudanças profundas na dinâmica do desenvolvimento dependente. Algumas alterações significativas no nível nacional, como a liberalização19 da economia nos anos de 1990, tiveram em Minas impactos menos intensos do que no resto do país. A modernização neste período atualizou o padrão de subordinação ao capital externo, ainda sob o registro da especialização industrial. Não obstante, ocorreram mudanças em aspectos auxiliares ao paradigma produtivo instalado. Foi o caso da ampliação da produção de bens de consumo duráveis e de capital durante a década de 1980 e 1990 (Raposo; Machado, 2002). Porém, a orientação exportadora manteve-se sólida, bem como todas as suas consequências perversas no âmbito social. Quanto à dimensão política, a instalação de uma democracia representativa no Brasil dentro de um ambiente de pressão política e de massas contra a ditadura militar criou como subproduto a aversão intensa, desde a academia até as entidades classistas, a tudo que é estatal; qualquer iniciativa do Estado passa a ser identificada imediatamente 19 Dado ao “significativo grau de dependência da economia mineira em relação ao mercado externo, haja vista o coeficiente de exportação do Estado, tornando a mais vulnerável às políticas macroeconômicas nos cenários externo e interno. Em que pese essa característica, a economia mineira parece não ser prejudicada pela liberalização comercial, porque os setores de maior participação na pauta de exportação mineira são intensivos em capital e esses não foram beneficiados pela política tarifária brasileira dos anos 80” (Raposo; Machado, 2002)


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como autoritária. Colaborando com esta situação no âmbito nacional, o ambiente externo passava por profundas mudanças com o desmantelamento dos Estados de Bem- Estar Social e a ascensão do pensamento ultraliberal nos países centrais. A somatória destes dois processos criou uma situação insustentável e incompatível com a tradição mineira de condução social e de governo, tanto na administração direta como na indireta, na qual os técnicos possuíam um papel de destaque. Dulci nos oferece elementos deste fenômeno: (...) Governo Newton Cardoso (1987-90) se encarregaria de comprovar cabalmente seu diagnóstico do fim da tecnocracia, ao promover uma espécie de desmanche do Estado que dificilmente seria revertido mais tarde à luz das novas ideias de liberalização e reforma do Estado vigentes nos anos 90 (Dulci, 2001, p. 644).

O ocaso do arranjo dirigido elite-dependente em consórcio com setores remanescentes da elite-conservadora e da oligarquia,20 sendo as duas últimas incluídas de maneira subalterna, abre espaço para uma modificação muito mais profunda do que aquelas expostas até o momento. Trata-se não apenas de uma mudança de arranjo político, mas de uma alteração nas bases da política de compromisso oligarca-elitista, no qual a questão do desenvolvimento regional não é mais a base do pacto entre os diferentes setores do bloco dirigente. Para Dulci (2001), com o fim do Regime Militar, o empresariado se destacou na ocupação de postos-chave no Governo Estadual e suas instituições de apoio, bem como no Parlamento. Este fenômeno seria consequência da diversificação social ocorrida com a urbanização-industrialização do Estado e com o processo de privatização das empresas estatais. Como afirma, com razão, o autor, a imbricação entre empresariado, técnicos e agentes de governo não é uma novidade em Minas. Todavia, a arquitetura do poder se altera e confere aos “homens de ne20 “Quanto à elite política tradicional, seu antigo monopólio de poder foi claramente fragilizado pela expansão de uma estrutura capitalista que se irradia cada vez mais para o campo político, fazendo coexistir várias modalidades de organização político-eleitoral” (Dulci, 2001, p. 644).


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gócio” um estatuto político de prestígio, mas com uma diferença importante, sem uma política de compromissos de longo prazo, ou seja, sem um projeto de desenvolvimento definido para o Estado. A relação entre empresariado e Governo Estadual, apoiada em um cenário de liberalização, gera novas formas de reprodução de poder político e de acumulação de capital. Diferentemente de períodos anteriores – quando o Estado apoiava a construção de um ambiente de negócios, estimulando e orientando a iniciativa privadas em áreas eleitas como prioritária em cada período (agricultura, mineração, metalurgia, etc.) –, agora o próprio Estado (e suas funções) se transforma em um nicho de mercado. A perda da capacidade da burguesia mineira de disputar o controle da produção pesada (indústria de transformação) – áreas intensivas de capital hoje controlada predominantemente pelo capital estrangeiro – fez com que a mesma migrasse para ramos que ainda oferecem oportunidades para proprietários de capitais menores. Boa parte dos agentes do governo tem seu ramo de atividade ligado ao fornecimento de mercadorias e serviços para o próprio Estado. São consultores, fornecedores de insumos para atividades do serviço público, empresários da logística e da manutenção e empreiteiros de toda ordem. Setores da burguesia local que dependem diretamente de um posto (ou acesso privilegiado) no governo para viabilizarem suas atividades econômicas. A própria função exercida pelos “técnicos” mineiros, e suas instituições paraestatais, é transferida para o setor privado, por meio de contratação de empresas de consultoria. Os grandes planos de outrora, ligados a uma ideologia fortemente influenciada pela ideia de planejamento regional, são substituído por projetos, muitas vezes tratados isoladamente e na maioria dos casos sem correspondência com um objetivo geral articulador. Tais projetos, desde sua concepção, passando por sua implantação e até mesmo sua gestão em alguns casos, são desenvolvidos por empresas particulares contratadas pela Administração Pública e financiadas por bancos, também vinculados ao Estado ou a União. Os estudos de viabilidade econômica, impacto ambiental, planos de negócios, relatórios de monitoramento, todos realizados por consultorias e auditorias “independentes”, leia-se privadas, acabam por construir em seus produtos, contratados pela Administração, a própria


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demanda de seus serviços. Não obstante, estas mesmas empresas também prestam serviço para o grande capital lotado nos ramos mais dinâmicos, completando a associação entre a burguesia local e o setor internacionalizado da economia mineira. Destaque para o setor de mineração e empresas agropecuárias, demandantes desde tipo de serviço, que transitam entre a necessidade de legitimação técnica de sua atividade altamente nociva à economia local – e ao bem-estar das populações residentes em suas áreas de atuação – e ao lobby dentro das instâncias de governamentais e agências reguladoras estaduais. O estágio do desenvolvimento do capitalismo no Brasil não pode conceber apenas a participação dos proprietários de capital na direção do Estado, como afirmam algumas posições marcadamente (ou unicamente) informadas pela ideologia que professam. Concretamente, no regime político vigente, a função de governo requer políticos profissionais, cuja carreira é construída dentro de um ambiente competitivo em termos eleitorais e de financiamento. A composição dirigente da administração atual é formada por uma acomodação complexa de diversos setores, correspondentes a diferentes bases sociais e interesses sob a hegemonia, no caso de Minas, de uma claque altamente vinculada ao alto setor exportador e seus associados. Dessa forma é configurado um sistema de reprodução política, em que o operador adere ao projeto do setor dirigente, no sentido de viabilizar-se eleitoralmente, e ao construir viabilidade ou importância eleitoral, é admitido em escalões preponderantes das instâncias de decisões do governo. Esta trajetória política no interior do bloco dirigente depende mais da funcionalidade do sujeito para os interesses ali sedimentados do que da origem social ou familiar como fora outrora. O empresariado local e estrangeiro atua tanto no lançamento de seus membros à direção do Governo, quanto no patrocínio de carreiras de políticos profissionais, independentes de sua origem de classe. Este novo cenário, que se materializa de maneira mais pronunciada a partir da década de 1990, edifica um novo arranjo político e uma nova política de compromissos. Quanto ao arranjo, não se trata de modelo elitista, stricto sensu, isso porque não há mais um impulso modernizador efetivo, por parte do setor dirigente. A administração pública é subordinada aos interesses mais imediatos do mercado, divorciadas de um pensamento estratégico


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no âmbito regional. Quanto à composição, os “homens de negócios” e os “políticos de carreira” estão imbricados como força principal no interior do bloco dirigente, a oligarquia latifundiária é residual, pois perdeu espaço para o empresariado rural. As chamadas elite-dependente e elite-conservadora são alijadas do espaço de poder efetivo e por não deter um lugar de destaque de reprodução do poder real foram desmanteladas enquanto agrupamento. Fundamentalmente, trata-se de uma composição entre o empresariado local (principalmente dos ramos da construção, imprensa, transporte e logística, agropecuária e bancos) e os agentes do capital estrangeiro (mineradoras em particular). É possível definir este arranjo como político-empresarial. O pensamento articulador dos atores é fundamentalmente liberal (ou neoliberal), desnacionalizante, privatista e conectado aos interesses do capital externo. No que se refere à política de compromissos entre os atores do condomínio de poder, esta se materializa no aprofundamento da “guerra fiscal” com os demais estados da Federação, além de toda uma política de incentivos e desonerações do grande capital privado. Ocorre uma concentração do poder no Governo Estadual – no que se refere à articulação dos atores do bloco dirigente –, desmantelando o intercâmbio político com as subregiões. A política de compromisso oligarca-elitista, que de algum modo ainda preservava a interlocução com as referências locais, é suplantada, e em seu lugar assume o que denomino de política de compromisso neoliberal. Não há preocupação, neste cenário, em garantir a inclusão das lideranças regionais, isso porque a situação dos municípios – principalmente aqueles com menos de 200 mil habitantes – pós-Constituição de 88 é extremamente frágil; sua capacidade de iniciativa é mínima em termos políticos e econômicos; desse modo, os prefeitos são muito mais “clientes” do Governo Estadual do que membros do condomínio de poder.

A IDEOLOGIA DO CHOQUE DE GESTÃO Os governos do PSDB no Executivo estadual é resultado, em termos gerais, deste arranjo político-empresarial instalado em Minas Gerais nas ultimas décadas e radicalizado com o ritmo intensivo de liberalização econômica dos anos de 1990.


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Evidentemente a hegemonia neoliberal do período não é o único fator explicativo das sucessivas vitórias eleitorais daquela legenda no Estado; as variáveis conjunturais (crise fiscal estadual, incapacidade de investimentos, etc.), o carisma e a origem do Senador Aécio Neves (1960-) – principal referência do PSDB mineiro – e a ausência de um projeto político alternativo dotado de virtudes hegemônicas também cooperaram significativamente no estabelecimento do PSDB como força principal no Governo Estadual. Porém importa, para o objeto deste artigo, a atenção mais acurada à interpretação do grau de correspondência entre a política dos governos pesedebistas e o arranjo político-empresarial em Minas do que a análise das circunstâncias imediatas que definiram o quadro eleitoral a partir de 2002; missão igualmente importante e necessária, mas pertencente à outra dimensão analítica que extrapolaria o escopo deste trabalho. O primeiro passo que devemos identificar ao analisar a permanência do PSDB no governo de Minas Gerais na última década é desconstruir alguns equívocos referentes a esta legenda e seu líder estadual. O Senador Aécio Neves representaria, segundo o que a propaganda oficial e extraoficial difunde, os interesses, tanto dos setores modernos, quanto do “interior político” tradicional do Estado. Como vimos, o lugar político da maioria dos municípios é frágil e os interesses microrregionais estão completamente alijados do atual arranjo político. Não há, na política mineira, nenhuma força organizada que galvanize programaticamente e materialmente os interesses do poder municipal. As administrações municipais, hoje, são mais assistidas (mesmo de uma forma insuficiente) pelos programas da União do que aqueles apresentados pelo Governo do Estado. A interação entre prefeitos e governo do Estado se dá principalmente por intermédio dos deputados estaduais, que com este serviço possuem um instrumento a mais na construção de sua viabilidade eleitoral. Mesmo que simbolicamente – por meio do carisma e da origem – Aécio dialogue com os setores do “interior”, de longe implica identificá-lo como representante dos mesmos. O apoio dos políticos do interior, em especial dos prefeitos, está relacionado à sua posição completamente subalterna no jogo do poder, no qual a opção é quase sempre pelo “situacionismo” ou “governismo”, no intuito de receber


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apoio material para sua administração e/ou apoio político para sua carreira na vida pública. Daí deriva as formulações extraoficiais de apoio ao PT no âmbito nacional e ao PSDB em Minas por parte de lideranças locais, que necessitam estar no interior do polo governista a qualquer preço e dialogar por dentro as possibilidades eleitorais mais prováveis de vitória. Acontece que este fenômeno é tão generalizado que até mesmo Aécio depende desta ambiguidade eleitoral para viabilizar-se como referência política no Estado; exemplo disso é que não poderia nas últimas eleições enfrentar frontalmente a legenda rival e seus candidatos à Presidência da República. Aécio recorre ao expediente da “mineiridade” para dialogar com sua base eleitoral, e de alguma forma se colocar com o representante desta identidade, principalmente no que se refere às suas pretensões presidenciais. Tal operação carece de conteúdo, pois em nenhum momento é esclarecido o que venha a ser o projeto que a “mineiridade” apresenta para o país. A simbologia da “mineiridade” tem desempenhado função marcante nesse sentido, talvez mais para dar coesão às próprias elites, operando como uma espécie de ideologia da classe dominante, do que para generalizar um senso de identidade regional entre a população. De todo modo, sua importância como instrumento ideológico é patenteada pelo uso frequente que dela têm feito as autoridades e os intelectuais ao longo do tempo. Sobretudo em conjunturas de disputa com o poder central (Dulci, 2001, p. 641).

Mas há uma diferença essencial, entre as pretensões mineiras à Presidência da República sob a vigência de outros arranjos políticos e a que se apresenta agora; nesta, não há um conjunto de proposições que lhe atribua sentido prático. Até o momento, é apresentada como pura vontade, sem nenhuma virtude. Outra noção equivocada, bastante difundida, seria que o Senador Aécio Neves e o Governador Antônio Anastasia (1961-) teriam inaugurado o chamado governo “técnico”. Como foi longamente discutido anteriormente, as administrações estaduais em Minas, durante todo o século XX, se apoiaram na ideologia de que as opções de governo eram regidas por


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critérios científicos, e também foi discutido as pretensões de tal tipo de discurso. Acontece que os governos do PSDB Mineiro são menos “técnicos” do que divulgam se comparados à tradição governante mineira. Independentemente das consequências práticas, a maior parte dos arranjos políticos anteriores eram informados por algum grau de correspondência com o Positivismo, com o enfretamento ao subdesenvolvimento regional por meio do Estado em diferentes níveis de interação com o capital privado nacional e estrangeiro no sentido de promover a industrialização. Isso não ocorre no caso dos governos do PSDB em Minas; a ideia do “governo técnico” é essencialmente propaganda, pois é ausente de um plano de desenvolvimento. Assim, a “técnica” pesedebista está restrita à gestão da própria estrutura administrativa, sem nenhum objetivo maior, mesmo que retórico. A construção da Cidade Administrativa, a utilização de métodos empresariais como o Acordo de Resultados e fixação de metas para os funcionários são exemplos deste estilo de governo. O chamado “Choque de Gestão”, grande palavra de ordem do bloco governante, é impreciso por ser marcadamente ideológico, porém legitima um conjunto de procedimentos que reduz a presença do Estado nas áreas sociais e debilita as condições de trabalho do funcionalismo público estadual, com a justificativa de “ampliar a eficiência”, “reduzir custos”, etc. Porém, o que interessa aqui é analisá-lo em seu significado político, e nisso a ideia de Choque de Gestão demonstra a situação de fragilidade do Estado na execução de suas atribuições. O pensamento de curto prazo que lastreia esta concepção atribui à administração pública a causa ou a solução para um problema que é de ordem estrutural. Porém a chamada “gestão técnica” ganhou penetração social, em razão de sua capacidade em dialogar com o senso comum, com o conjunto de preconceitos antiEstado difundidos na população durante a década de 1990. Este tipo de operação política só se sustenta em ambientes favoráveis economicamente, quando a pressão social sobre a estrutura pública é mais fraca em decorrência do crescimento econômico, como o que aconteceu na última década. Tais condições se deterioraram nos últimos anos; a crise fiscal – destaque para a dívida pública – se intensifica e coloca em posição bastante difícil a manutenção deste slogan, bem como desafia os limites da “contabilidade criativa” do Governo de An-


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tônio Anastasia (2010-). Em suma, o “aecismo” é um volume imenso de ideologia liberal com um baixo teor de ideias. É resultado de uma longa crise política mineira, que perdeu a capacidade de condução de um projeto de desenvolvimento regional. O Choque de Gestão e o próprio estilo de governo do PSDB Mineiro, marcado por um cosmopolitismo exacerbado, agride e condena à inoperância quaisquer ações na dimensão regional, pois não possui uma política informada pela necessidades objetivas dos Estado. Aécio Neves é uma liderança construída por dentro do poder estabelecido, e é neste ponto que reside sua força, porém também significa a cristalização da perda de conteúdo histórico do condomínio de poder em Minas Gerais. Sua existência, como o único presidenciável mineiro, revela, antes de tudo, a posição subalterna do Estado na dinâmica do poder nacional.

CONCLUSÕES A imbricação histórica entre política e economia em Minas Gerais é característica de atraso no processo de modernização, próprio de formações sociais dependentes. A ação estatal, nesta situação, é tomada como central no sentido de gerar dinamismo e desenvolver as estruturas econômicas e sociais. A iniciativa do desenvolvimento se coloca, necessariamente, como uma iniciativa política, que disciplina e orienta os agentes do mercado. Tal abordagem, consequentemente, modifica a realidade sobre a qual opera, e forma, em mediação com os interesses em jogo, novas configurações do cenário, exigindo atualizações políticas que lhe sejam correspondentes. Verifica-se em Minas, no período estudado, quatro arranjos políticos distintos, três deles lastreados por uma política de compromisso centrada na noção de desenvolvimento regional, e o último sob a referência da globalização liberal. Apresento no Quadro 2, de forma sintética, as características principais dos arranjos políticos em Minas Gerais.


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133 Quadro 2 Arranjos políticos em Minas Gerais Características

Período

(continua)

Tipos de arranjos políticos em Minas Gerais (Século XIX – 2013) Oligárquico Pluralista

Elitista-Conservador

Elitista - Dependente

Político - Empresarial

1889-1930

1930-1950

1950-1985

1985 ....

Oligarca-elitista

Política de Compromisso

Neoliberal

Composição de classe

Latifundiários – Burguesia Industrial e Comercial (orientada para o mercado Interno) – Pequena Burguesia Urbana

Burguesia Industrial e Comercial (orientada para o mercado Interno) – Pequena Burguesia (Profissionais Liberais) Latifundiários

Burguesia Industrial e Comercial (exportadora), Pequena Burguesia (profissionais Liberais) - Latifundiários, empresários associados ao capital externo.

Burguesia Industrial e Comercial. Empresariado associado ao capital externo.

Setor Dirigente

Latifundiários

Composição elitista: Burguesias e Profissionais Liberais

Composição Elitista: Frações da burguesia associadas ao capital externo.

Composição: Políticos Profissionais, associados à ideologia liberal.

Fonte de Poder Real do Setor Dirigente

Propriedade Fundiária

Pequena e média propriedade de capital industrial e comercial; orientada para o mercado interno.

Pequena e média propriedade de capital industrial e comercial.

Difusa. Propriedade de capitais em diferentes ramos.

Relação com o Poder Efetivo

Instrumental. Instituições como instrumento de poder

Dependente. Instituições (principalmente o Estado) como fonte de poder

Dependente. Instituições estatais e “paraestatais” como fonte de poder

Instrumental. Instituições estatais e “paraestatais” como instrumento de poder e ambiente de negócios.

Relação com o Estado

Instrumental- Estado como instrumento de Modernização

Dependente. Estado como principal promotor do processo de modernização.

Colaborativa. Estado como indutor do processo de industrialização por meio da atração de capitais.

Parasita. Estado como espaço de negócios.


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134 (conclusão) Relação com o Capital Externo

Antagônica. Colaboração focalizada em atividades de transformação industrial. Resistência às atividades relacionadas à exportação sem beneficiamento.

Relação com o Capital Privado Nacional

Colaborativa. O em- Colaborativa. O em- Colaborativa e an- Limitada. Focalizada presário deveria ser presário deveria ser tagônica. O em- em setores ofertanassistido pelo Estado. assistido pelo Estado. presário local deve tes de serviços ao se associar ao capi- Estado e ao capital tal externo. externo.

Recrutamento Dos membros

Prioritariamente Flexível, se dá por Flexível, se dá por Flexível, se dá por entre proprietários critérios ideológicos e critérios ideológi- critérios ideológicos fundiários, com aber- funcionais. cos e funcionais. e funcionais. tura para setores urbanos.

Base Ecológica do Poder

Rural

Estilo de Externo Personalizado: Coronelismo Controle

Interno Personalizado. Vínculos pessoais

Antagônica. Colaboração focalizada em atividades de transformação industrial. Resistência às atividades relacionadas à exportação sem beneficiamento.

Colaborativa. Subordinada. AssoAtração de capital ciação intensa com o estrangeiro, sem capital estrangeiro. restrições de atividades, visando à industrialização.

Urbano

Urbano

Urbano

Impessoal. Procedimentos de autoridade do Estado e mecanismo de reprodução de ideologia.

Impessoal. Procedimentos de autoridade do Estado e mecanismo de reprodução de ideologia

Impessoal. Propaganda e demais mecanismo de controle social.

Impessoal. Procedimentos racionalizados.

Impessoal. Procedimentos racionalizados.

Impessoal: Relações de negócios.

Dependência Externa

Principalmente Econômica

Principalmente Econômica

Econômica e polí- Econômica e tica-ideológica política-ideológica

Setores Econômicos Predominantes

Primário (agricultura)

Primário (mineração e agricultura)

Energia e Transporte.

Primário (mineração e Agricultura).

Baseada na industria- Baseada na industria- Baseada na espe- Baseada na Política de Desenvolvimento lização e diversifica- lização e diversifica- cialização produ- “primarização” ção produtiva. ção produtiva. tiva produtiva (ultraespecialização). Secretaria de Estado Secretaria de Estado CEMIG, BDMG, Centros de da Agricultura, Indús- INDI e CDI decisões sobre a da Agricultura tria e Comércio. política de desenvolvimento/ Aparato Institucional

Difuso. Com predominância da CEMIG e Fundação João Pinheiro.

Técnicos das Base da Intelectualidade Ciências Agrárias. de Estado

Administradores Públicos

Fonte: elaboração do autor.

Predominantemente Engenheiros e Engenheiros. Economistas


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A permanência do PSDB como legenda diretora da coalização partidária governante em Minas não significa nenhuma alteração substantiva no arranjo político vigente, é, sobretudo, derivação do mesmo, sob um contexto de liberalização econômica profunda. O “aecismo” é a significação política da ausência de uma plataforma de desenvolvimento regional; indica antes de tudo a flacidez das lideranças do condomínio de poder instalado no Estado. Não obstante seus limites, o PSDB Mineiro logrou estabelecer uma conexão bastante profunda com os setores empresariais associados ao capital externo, atuando com manifestação de poder efetivo, daqueles cuja situação objetiva de poder (poder real) provém das atividades econômicas primário-exportadoras. Esta articulação está apoiada na política de compromissos neoliberal, introduzida em Minas nas últimas duas décadas, pelo arranjo político-empresarial. Desta relação deriva sua capacidade eleitoral e de governo. É impreciso, portanto, definir a liderança do Senador Aécio Neves como expressão das “Elites” e/ou “Oligarquia” mineiras; esta correspondência só é possível na dimensão do carisma, não possuindo uma base sólida em termos políticos e econômicos. Primeiro, porque tanto as elites quanto a oligarquia são vestigiais no Estado, não se apresentando como operadores políticos relevantes no cenário atual. São luzes foscas do passado. Segundo, porque a ideologia professada e a política manifesta pelo PSDB e por Aécio Neves não possui correspondência material com os arranjos políticos anteriores; a política de compromissos na qual se filia é diferente, até mesmo antagônica, com aquela elaborada pela oligarquia e pelas elites, em seu tempo, conforme foi tratado neste trabalho. A política de compromissos oligarca-elitista não evoluiu para uma de natureza neoliberal, de outro modo foi derrotada pelo avanço do capitalismo dependente e da globalização. Objetivamente, Aécio e o PSDB são manifestações políticas dos setores do empresariado associado ao capital estrangeiro. Será no padrão de relação entre bloco dirigente estadual e classes subalternas que Aécio Neves e o PSDB convergem com a tradição mineira. O condomínio de poder em Minas sempre foi alheio às reivindicações “dos debaixo”, não produzindo nenhum intercâmbio político sólido – para além da ideologia da “mineiridade” – com a camada de


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trabalhadores rurais e urbanos. O ponto de contato entre o compromisso oligarca-elitista e o neoliberal reside na exclusão sistemática das massas populares do arranjo político dirigente.

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Gilson Reis

MINAS GERAIS: UM ESTADO E UMA ELITE A SERVIÇO DE UM PROJETO ELEITORAL O Estado nasceu da necessidade de refrear o antagonismo de classes. No próprio conflito dessas classes resulta, em princípio, que o estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante que, também graças a ele, se torna a classe politicamente dominante e adquire, assim, novos meios de oprimir e explorar a classe dominada. Engels

MINAS: TARDIA, PATRIMONIALISTA E DEPENDENTE Ao longo dos tempos, teses e conceitos foram difundidos sobre a forma e o conteúdo de se fazer política e do pensamento dos políticos mineiros. “O mito da mineiridade”. Debatem-se interpretações acerca da tradição, da conciliação, da habilidade e do paradoxal convívio entre o pensamento liberal e conservador dos políticos locais. A política do centrismo, como modus operandi, impõe-se no “fazer política” em Minas. A contradição instala-se nos momentos de intempestivas disputas regionais e desaparecem nos permanentes arranjos de unidade em âmbito nacional, com o objetivo de influenciar os rumos da política e o controle do poder central. Via de regra, as camadas populares e os trabalhadores sempre estiveram deslocados dos projetos políticos e econômicos das elites locais.


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A nossa Minas, de identidade cultural e econômica, remonta ao século XVII: imensas cadeias montanhosas, uma exuberante floresta tropical, um sertão que carrega o próprio mundo – tudo isso formando uma barreira natural à sua ocupação, que somente ocorreu depois de quase 200 anos da chegada dos portugueses em território brasileiro. Para dificultar a investida dos “descobridores”, uma imensa população indígena, concentrada nas encostas, vales e rios do território mineiro, resistia aos invasores em duras batalhas. Indígenas dispostos a impedir a ocupação do território – quer pelos emboabas vindos do Nordeste brasileiro, via Rio São Francisco; quer pelos bandeirantes vindos de São Paulo, que nas picadas da Zona da Mata Mineira, buscavam o caminho das minas. As circunstâncias naturais e humanas, assim, dificultaram e retardaram a ocupação da região. Com o descobrimento das primeiras minas de diamante e ouro no final do século XVII, a região transformou-se de forma rápida. Minas foi, então, alçada à condição de capitania em princípios do século XVIII, tornando-se, em seguida, Província e Estado. A ocupação urbana de Minas ocorreu de forma fragmentada, originando, desde o início de sua formação, as “sub-regiões”: Ouro Preto, Araxá, Paracatu, Mariana, Sabará, São João Del Rei, Diamantina e demais cidades. Destaca-se que a ocupação dispersa, fragmentada e autônoma do solo mineiro, foi, nesse aspecto, muito diferente das ocupações urbanas até então constituídas ao longo da costa brasileira e de algumas outras regiões. Tais ocupações, até então, concentravam-se em grandes polos urbanos, como Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus, entre outros. A extraordinária riqueza acumulada por meio da exploração, do ouro e do diamante; a intensa concentração populacional nas regiões mineradoras – Ouro Preto chegou a ter 150 mil habitantes no século XVIII; o inchaço da máquina burocrática; a ampliação do comércio; o fortalecimento do poder político local; a municipalidade; a imigração de famílias portuguesas vindas do norte – com um forte sentimento religioso; as ideias liberais que chegavam do Velho Continente; e o conservadorismo político dominante dos coronéis, contribuíram, em tom de convergência, com a configuração do perfil humano, político, econômico e social de Minas Gerais.


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A formação das “sub-regiões” de Minas foi, assim, gradativamente construída. A fragmentação territorial constituída por vários pequenos núcleos urbanos se consolidou em vários polos de poderes locais. A municipalidade, marca central do arranjo de forças em Minas, consubstanciou, então, a tradicional política mineira. A constituição ideológica, familiar e territorial das elites seguiu viva ao longo do tempo e, ainda hoje, está forte e presente nas várias regiões do Estado. É importante frisar que, no que tange às disputas locais, a radicalidade é um lugarcomum – com muito raras exceções. Todavia, no que se refere à ocupação de espaço nas esferas de poder central, os liberais e conservadores, em vários momentos da história, se uniram estrategicamente para melhor atenderem aos seus interesses de classe.

A SAGACIDADE DE UMA ELITE OPORTUNISTA Com o esgotamento do ciclo do ouro, as elites mineiras entram em crise. Gradativamente, iniciou-se um processo de aproximação com o poder central. Essa manobra política e econômica ficou mais evidente com a proclamação da República e consequente constituição da chamada República Velha. A aproximação política tinha, nesse período, um objetivo central: influenciar, em âmbito nacional, as diretrizes governamentais e garantir os interesses particulares das elites mineiras. Essa ação política pode ser historicamente caracterizada pela incapacidade dessas mesmas elites de investir, desenvolver e planejar a economia do Estado, com raríssimas exceções. Com a ausência de um projeto local, as elites mineiras se fortaleceram historicamente através da permanente ação política na esfera nacional. Esta movimentação sempre teve como objetivo a ocupação dos espaços institucionais, para influenciar e/ou conduzir os rumos da política nacional. Sempre objetivaram apropriar do excedente econômico nacional, via controle do aparelho estatal, que, por sua vez, é garantido graças ao clientelismo, ao patrimonialismo e à barganha política. A construção da unidade em torno dos objetivos nacionais e a consolidação dos projetos de poder das elites mineiras ganhou força ainda maior quando foram chamadas a interferir nas rupturas institucionais


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ou nos acordos de cúpula. Nessas circunstâncias, as elites mineiras sempre colocaram seus interesses de classe acima de suas convicções ideológicas, segundo a lógica do pragmatismo político. É também nesse movimento de convergência de interesses de classes que se sobressaem os interesses particulares, o enriquecimento ilícito, o acúmulo de patrimônio, a transferência de recursos públicos a pessoas e grupos econômicos politicamente vinculados aos seus projetos particulares e até mesmo a subserviência e dependência aos interesses externos, de países, governos e empresas multinacionais. É muito elucidativa a maneira como essas elites se comportaram na Primeira República. A aliança entre mineiros e paulistas, a conhecida política do café com leite, foi a consolidação de um projeto de poder a partir do aparelhamento da máquina estatal. Essa arquitetura política possibilitou conduzir as elites mineiras na viabilização do seu projeto de poder a partir da apropriação dos recursos de âmbito federal. Em grande medida para contemplar interesses particulares e de grupos econômicos locais. O que se observa nesse período é a completa ausência de um projeto de desenvolvimento para Minas e para o Brasil. É importante destacar que alguns autores identificam nesse período pequenas fissuras entre as elites mineiras. Uma parcela dessas elites começou a pensar e projetar um posicionamento de caráter nacional desenvolvimentista. Com o fim da República Velha e consequente ruptura entre mineiros e paulistas, as elites de Minas, mesmo divididas internamente, se reorganizaram rapidamente no plano nacional. Setores minoritários da composição orgânica das classes dominantes veem na instalação do Estado Novo a possibilidade de avançar na construção de um projeto mais ousado do País. Esse novo projeto seria concebido a partir das potencialidades humanas e naturais comparativas de Minas, em relação a outros estados, rompendo definitivamente com as estruturas agrárias, até então dominante no Estado. Esse grupo apoiou e participou da fundação do Estado Novo. Sob o comando de Benedito Valadares as elites mineiras somaram forças, assim, ao projeto de desenvolvimento nacional encabeçado pelo Presidente Getúlio Vargas. As elites mineiras e o Estado de Minas Gerais vivenciaram, no período dos anos de 1940 a 1975, o apogeu do seu projeto político e eco-


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nômico de poder. Foram 35 anos de intenso progresso econômico para Minas e para o Brasil. Nesse período, a economia de Minas passou por grandes transformações e diversificações. A criação da CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) e a exploração mineral; a implantação de grandes siderúrgicas, como Usiminas, Acesita, Açominas; a consolidação dos bancos públicos, como BEMGE, Credireal e Minas Caixa; a construção e a ampliação do setor energético, como CEMIG, Furnas, CHESF; o ordenamento de uma extensa malha rodoviária e ferroviária; a fixação, nas varias regiões do Estado, de grandes universidades federais e escolas técnicas; a criação do polo industrial em Contagem e Betim, que atraiu dezenas de grandes empresas; a implantação da Regap (Refinaria Gabriel Passos); enfim, são esses alguns dos exemplares práticos do apogeu supracitado. Também nesse período ocorreu a ocupação do cerrado mineiro e os projetos de excelência para a lavoura e pecuária no Triângulo Mineiro, no Sul e no Alto do Paranaíba. Planejamento, investimento, financiamento, projetos estratégicos, economia minimamente planejada e um crescimento médio da ordem de 8% ao ano. O período de ouro da economia nacional e mineira não resultou, entretanto, em melhoria das condições de vida da grande maioria da população e dos trabalhadores. O modelo continuava concentrador e excludente. É importante destacar que nessas três décadas e meia o país passou por duas ditaduras: o Estado Novo e o Regime Militar. Entre as duas ditaduras ocorreu um breve período de democracia, que levou um mineiro à condição de Presidente da República – Juscelino Kubitschek. JK, um liberal desenvolvimentista, da cidade de Diamantina, representou no plano nacional o auge do projeto das elites mineiras. Entretanto, o governo, mesmo desenvolvendo a economia no plano local e nacional, encontrou sérias dificuldades no campo da política, inclusive com setores determinados das elites mineiras, que tentaram, por diversas vezes, inviabilizar o seu governo. Também é importante destacar que o projeto desenvolvimentista de JK tinha como centro transporte e energia e uma profunda dependência externa.


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MINAS GERAIS: 30 ANOS DE CRISE E RECUOS Parcelas majoritárias das elites mineiras se propuseram, a partir do ano de 1964, diante de uma nova ruptura, apoiar o golpe militar e associar-se aos interesses do regime de exceção. O Governador Magalhães Pinto e o General Olímpio Mourão comandaram, a partir de Minas, grande parte da logística política do golpe de Estado. A ação política arquitetada no Estado levou as elites a apoiarem a sangrenta Ditadura Militar. As Forças Armadas locais, a Polícia Militar, a classe média e o Governo Estadual foram decisivos para o sucesso do golpe de 64. Nunca esteve no horizonte das elites mineiras um projeto popular e democrático com desenvolvimento e distribuição de renda. As reformas de base, propostas pelo Governo João Goulart, soavam aos ouvidos dessas elites como uma afronta. O apoio ao golpe estava, portanto, mais que justificado. Nos primeiros anos do regime militar, Minas Gerais foi cenário de grandes investimentos do Governo Federal – possivelmente os maiores em toda a história da República. Grandes hidroelétricas, indústrias siderúrgicas, estradas, bancos públicos, Universidades Federais, ferrovias. Minas Gerais era a vitrine do modelo desenvolvimentista do regime militar. Minas era o próprio “milagre brasileiro”. Minas e suas elites não eram somente beneficiárias dos grandes investimentos e obras realizados pelos generais; eram parte do próprio regime, com a presença civil sacramentada pela figura de Vice-Presidentes: Pedro Aleixo, José Maria Alckmin e Aureliano Chaves de Mendonça. Contudo, com a crise do petróleo em 1972 e o aprofundamento da crise da dívida pública externa brasileira, o modelo de desenvolvimento nacional entrou em colapso, assim como a economia de todo o país. Minas Gerais foi severamente atingida pela crise e suas elites se tornaram novamente reféns de suas escolhas. Recessão, inflação, desemprego, baixo crescimento da economia, endividamento dos setores público e privado, baixos investimentos e a crise do regime foram se avolumando ano após ano. Com a crise econômica e social, acentuouse a crise política. O regime militar não mais conseguia manter a sociedade silenciada sob o seu cassetete e enclausurada nas prisões. A morte


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de dezenas de civis brasileiros nos porões da ditadura ganhou manchetes mundo afora. Os trabalhadores em condições de carestia enfrentavam as baionetas nas praças e ruas do país. O regime militar sucumbiu à realidade política e social. Assim, o retorno da democracia e das liberdades políticas era a chama que novamente acendia corações e mentes de todos: liberais, conservadores, sindicalistas, igrejas e a sociedade em geral, sem excluir, claro, as elites mineiras. Com a crise instalada em todas as suas dimensões – política, econômica e social –, o regime militar anunciou o retorno à democracia de forma lenta e gradual. Foi o período das greves em massa, da Teologia da Libertação, da luta contra a carestia, das “Diretas Já”, da Constituinte e das reivindicações por eleições livres. Nesse cenário de intensa luta política, de grandes mobilizações populares, de profundos desajustes econômicos, fazem surgir, novamente, o oportunismo das elites mineiras, rompendo com o movimento das “Diretas Já” e apoiando o Colégio Eleitoral. Foi o conhecido acordo de cúpula: tradicional saída por cima. O mineiro Tancredo Neves, então governador de Minas, vai se juntar a um dos lideres civis do regime militar, José Sarney. Estavam, novamente, as elites mineiras, liberais e conservadores, juntos para controlarem as estruturas de poder; unidas para reassumir o Governo Federal. O plano não demorou a falhar. Tancredo Neves, eleito pelo Colégio Eleitoral, sequer tomou posse. Sua morte trouxe consigo a morte da esperança das elites mineiras, que, desde JK, não tinham a oportunidade de assumir o cargo mais alto da República. O governo Sarney assumiu com a desconfiança de todos os segmentos que conduziram o mineiro Tancredo Neves à Presidência, incluindo os generais, que o consideravam traidor do regime. Fato é que o governo de transição, denominado Brasil Novo, enfrentou as mesmas dificuldades do período anterior: inflação, desemprego, baixo crescimento, entre outros. José Sarney lançou o Plano Cruzado, numa tentativa de retomar o desenvolvimento nacional, o qual logo se mostrou frágil e inconsistente. Do outro lado, as lutas populares aumentaram. A sociedade exigia um novo ciclo de desenvolvimento com distribuição de renda. As elites mineiras, fragilizada com a morte de Tancredo Neves, sumiram do cenário político nacional. Nenhum dos candidatos à Presidência da República do


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ano de 1989 era oriundo das fileiras político-partidárias do Estado de Minas. Todavia, lá estava Itamar Franco: “baiano” de Juiz de Fora, candidato a Vice-Presidente na chapa de Fernando Collor de Mello. O segundo turno das eleições presidenciais foi marcado pelo inusitado, pelo inesperado: Collor e Lula foram ao segundo turno. De um lado, Collor, um neoliberal com pouca expressão na política nacional – a não ser pela rotulagem de “caçador de marajás” –, trazia consigo o velho discurso moralista das elites brasileiras. Do outro, Lula, sindicalista ligado ao jovem Partido dos Trabalhadores (PT), metalúrgico e líder sindical dos metalúrgicos do ABC paulista, que vinha sacudindo o país com centenas de greves. A crise política e econômica presente no país indicava tensões e desdobramentos incertos. As elites mineiras se unificaram em torno de Fernando Collor, um neoliberal de primeira viagem. Seu Vice era exatamente o engenheiro Itamar Franco, nascido na Bahia, mas que desenvolveu toda a sua trajetória política em Minas Gerais, na região da Zona da Mata Mineira. Itamar Franco, vale destacar, representava parte da elite política em ascensão no Estado de Minas desde os anos de 1940. Isso porque a economia desenvolvimentista de Getúlio Vargas e Benedito Valadares transformou profissionais liberais em novos líderes da elite política do Estado. O governo Collor foi um fracasso previamente anunciado. Mesmo sintonizado com o programa neoliberal em franco desenvolvimento no mundo, seu governo não conseguiu mobilizar os setores sociais, políticos e econômicos para sustentar o projeto. A ausência do apoio derivava, sobretudo, da percepção que esses setores nutriam acerca da fragilidade política que representava o governo Collor de Mello. Mesmo assim, Collor iniciou algumas medidas liberalizantes no comércio, na indústria e, principalmente, no setor financeiro. Parcela das elites nacionais e mineiras tinham pressa na implementação do modelo neoliberal que, àquela altura, adquiria status de hegemônico, tanto no plano ideológico, quanto no plano político. Novamente, o país entrou em turbulência: Collor sofreu o impedimento, com amplo apoio da sociedade – inclusive dos setores liberais e conservadores que o levaram à Presidência. Itamar Franco assumiu com uma ampla coalizão partidária, um amplo espectro de forças políticas, da extrema direita ao centro-esquerda. Entretanto, assim como


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Collor, Itamar não era um Presidente confiável para liderar a implementação do projeto neoliberal. Por isso, enfrentou a oposição de setores mais engajados, principalmente a elite paulista. Mas Itamar foi muito útil nessa curta transição: estabilizou a economia e projetou uma liderança capaz de derrotar Lula e liderar a aplicação do modelo neoliberal no país. Novamente estava um mineiro influenciando negativamente os rumos da política nacional em convergência com os interesses das elites locais e nacionais. Sob pressão das elites nacionais, fundamentalmente a paulista, com pouco apoio das elites mineiras e premido pelas lideranças políticas liberais e conservadoras, Itamar realizou dois movimentos: estabilizou a economia com o Plano Real e lançou o ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, para a disputa eleitoral. FHC, com amplo apoio de setores liberais e conservadores, incluindo as elites mineiras, derrotou Lula em sua segunda disputa pela Presidência, e iniciou, de forma implacável, a implantação e consolidação do neoliberalismo, por meio do aprofundamento do Estado Mínimo.

AS ELITES MINEIRAS REALIZARAM O SEU PRÓPRIO FUNERAL Itamar Franco, ao entregar o governo a Fernando Henrique Cardoso, também entregava a certidão de óbito do inacabado projeto nacional de desenvolvimento. Parcelas majoritárias das elites mineiras e brasileiras estavam coesas em torno do projeto de Estado Mínimo. Era o início da afirmação e da hegemonia do projeto neoliberal. Em Minas, o Governador Eduardo Azeredo; em Brasília, o Presidente FHC. Em pouco tempo, as estruturas dinâmicas do Estado foram, uma a uma, entregues ao mercado. O processo de privatização foi arrasador. Todo o sistema financeiro, siderúrgico, mineral, ferroviário. Setores elétricos, petrolíferos, bancos públicos e as universidades federais instaladas em Minas, que também estavam na mira da privatização, não tiveram concluído o mesmo fim planejado. A luta popular, a pressão de setores nacionalistas e de personalidades políticas que se opunham ao projeto neoliberal, inviabilizou a destruição completa das estruturas do Estado.


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Depois de um longo ciclo histórico, as elites de Minas e do Brasil abandonaram o projeto de Nação e se colocaram como sócias minoritárias do sistema financeiro internacional e das grandes transnacionais. As grandes nações capitalistas e suas elites empresariais, em virtude da crise internacional, buscaram recompor seus lucros, comprando ativos de empresas estatais pelo mundo afora. Encontraram no governo tucano de FHC um terreno fértil para consolidar seus objetivos. O que marcou esse período, para além das privatizações das empresas nacionais, foi justamente o ajuste macroeconômico e financeiro patrocinado pelo Governo Federal. O ajuste foi feito em benefício único e exclusivo dos interesses do setor financeiro nacional e internacional. Foi desse período o extorsivo acordo das dívidas federal e estadual; a liberalização dos fluxos de capitais; o câmbio flexível; os juros estratosféricos; o aumento da carga tributária; os superávits primários; a Lei de Responsabilidade Fiscal; a Reforma do Aparelho do Estado; a destruição e sucateamento do parque industrial nacional; o desemprego; a focalização das políticas públicas de educação e saúde; a ausência de investimentos estatais em infraestrutura; e, finalmente, a incapacidade dos governos de empreender níveis – ainda que elementares – de planejamento para impulsionar a economia. Contudo, o projeto neoliberal, do Estado Mínimo, não conseguiu novamente unificar toda a elite mineira – fundamentalmente, o setor produtivo industrial, que ficou estrangulado pelas medidas econômicas e estruturais do Governo Federal. Parte do setor industrial de Minas e do Brasil rompeu, então, com o Governo Federal e iniciou suas críticas ao modelo neoliberal. Na prática, o neoliberalismo abriu profundas contradições entre o setor produtivo e o setor financeiro, base do projeto do governo FHC. Foi nesse cenário de crise interna e externa, de disputa entre “rentistas” e “desenvolvimentistas”, que uma parcela das elites mineiras realizou, pela primeira vez na história, uma “ruptura política à esquerda”. A tradicional elite mineira, mesmo diante da situação crítica da economia, mantinha seu apoio ao modelo rentista e neoliberal. Porém, sob o comando de José Alencar, importante industrial do ramo têxtil, uma parcela da elite mineira rompeu com a política local. Setores industriais que criticavam o modelo neoliberal articularam, então, com setores de-


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senvolvimentistas e das esquerdas, um novo rumo para o Brasil. Agora sob a hegemonia da centro-esquerda, conduzida principalmente pelo Partido dos Trabalhadores, parte das elites mineiras que projetavam pela primeira vez na história, uma perceptiva de desenvolvimento com distribuição da renda. No plano nacional, entretanto, a tradicional elite de Minas mantinha seu apoio ao governo FHC. No início da implantação do modelo neoliberal, o país viveu um curto período de crescimento econômico e estabilidade monetária, provocada pelo Plano Real. Todavia, a fragilidade estrutural econômica e financeira e a ausência de um planejamento estatal colocaram o projeto neoliberal em rota de crise: o modelo não se autossustentou. A situação se agravou com o baixo crescimento da economia, o desemprego, a ausência de investimentos em infraestrutura, o aumento da dívida pública, a instabilidade econômica e as fragilidades estruturais. O Brasil “quebrou” três vezes nesse período, tendo que recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para honrar os seus compromissos. As eleições de 2002 foram, então, realizadas sob um cenário de crise interna e externa. As elites mineiras, agora, em disputa local e nacional. No Estado, o imprevisível Itamar Franco rompia com o PMDB e se aproximava de Aécio Neves. A candidatura petista em Minas foi sacrificada, e Itamar Franco promoveu uma aliança informal entre Lula e Aécio, o Lulécio. Itamar Franco investiu forte no projeto eleitoral nacional, com o claro objetivo de derrotar FHC e seu candidato tucano, José Serra. Lula, em aliança com mineiro José Alencar, venceu as eleições nacionais, e Aécio Neves foi eleito Governador de Minas. Iniciouse, nessas condições, um novo ciclo político de contradições estratégicas entre Minas e no Brasil.

A GESTÃO EM CHOQUE, OU CHOQUE DE INDIGESTÃO? O resultado das eleições de 2002 representou uma dura derrota ao modelo neoliberal no Brasil. A aproximação do Partido dos Trabalhadores com setores desenvolvimentistas consolidou uma aliança de


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centro-esquerda. Foi um gesto de ousadia que, de um lado, abriu novas perspectivas para o Brasil e, do outro, consolidou importantes fissuras no campo popular democrático e entre as esquerdas no país. Vale ressaltar como questão central que Minas estava, mais uma vez, presente e influenciando os rumos da nação. A presença de José Alencar representava, além do setor produtivo, a divisão das elites mineiras no plano nacional. Contudo, no plano estadual havia sido eleito o neoliberal Aécio Neves. A vitória de Aécio Neves ao Governo de Minas acendeu, nas velhas e tradicionais elites mineiras, a possibilidade de disputar novamente o Governo Federal. Aécio, o novo, é o líder do velho liberal-conservadorismo mineiro. Mesmo aparentando jovem e dinâmico, Aécio Neves é o herdeiro de gerações e gerações de políticos tradicionais das várias regiões do Estado. Com esse legado, o Governador construiu um poderoso sistema de poder local capaz de sustentar seu Governo e, mais precisamente, o seu projeto, que reflete o projeto das elites mineiras: a Presidência da República. Aécio recebeu o Estado atrofiado, fruto da gestão neoliberal desenvolvida desde os anos de 1990, iniciada pelo tucano Eduardo Azeredo. É importante destacar que Aécio Neves foi, no Congresso Nacional, um dos principais parlamentares responsáveis pela articulação política do projeto neoliberal. Foi líder do governo FHC e Presidente da Câmara dos Deputados. Eleito Governador, sem um projeto de desenvolvimento para o Estado, anunciou o “Choque de Gestão” como vitrine e principal meta de governo. Implantou a administração gerencial do Estado. Não obstante, o governo iria, ainda, organizar-se financeiramente a partir de vultosos empréstimos bancários e da instrumentalização de empresas estatais que haviam sobrevivido à sanha privatista: CEMIG, COPASA e CODEMIG. Aécio Neves organizou o seu governo a partir da construção de um poderoso sistema de poder. Tal sistema se constituiu a partir de ampla aliança envolvendo partidos políticos, instituições públicas e privadas, Ministério Público Estadual, Poder Judiciário, imprensa, entidades empresariais, parte do movimento sindical, ampla maioria da Assembleia Legislativa, clubes de futebol, Igrejas, etc. –, em torno do governo e do ambicioso projeto eleitoral nacional. Na história recente


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de Minas jamais se viu tamanha concentração de poder como a observada ao longo do Governo Aécio Neves. No plano governamental, Aécio Neves e Anastásia venderam ao Brasil, por meio da mídia oligopolizada, e por uma intensa propaganda governamental, o chamado “Choque de Gestão”. Esse modelo gerencial de Administração Pública foi desenvolvido no Chile nos anos de 1970 e aperfeiçoado na Inglaterra e EUA nos anos de 1980, como proposta “modernizante” da máquina estatal. Entretanto, o gerencialismo não passa de uma ferramenta político-administrativa para a consolidação do projeto neoliberal. Três princípios básicos norteiam as ações do modelo: resultados, terceirização e gestão compartilhada entre o público e o privado. Primeiramente, os “resultados” são medidos pela eficiência governamental a partir da pactuação e apuração de metas, quase sempre descoladas da realidade fática e das condições objetivas à sua realização. Não refletem, portanto, resultados de fato favoráveis ao cidadão. O método consiste em estabelecer parâmetros de baixo nível qualitativo, com o objetivo de alcançar resultados quantitativos “eficientes”: é a meta pela meta. Em segundo lugar, está a intensificação da “terceirização”. O modelo gerencial faz uma profunda crítica à burocracia do Estado. Imputa a morosidade da máquina e a ineficiência aos seus trabalhadores. O modelo abandona, ainda, em grande parte, os concursos públicos como forma de admissão e impõe a terceirização como forma de alcançar a eficiência orçamentária, com a redução de custos. Com essa ação, precariza o trabalho, diminui os salários e reduz a qualidade dos serviços prestados à população. Por fim, a gestão compartilhada é o terceiro alicerce do modelo. Consiste em transferir para o setor privado ações e políticas públicas de responsabilidade do setor público: educação, saúde, segurança, entre outras. A síntese do “Choque de Gestão” consiste em diminuir investimentos na estruturação e no fortalecimento da Administração Pública; terceirizar; abandonar qualquer intervenção planejada do Estado na economia; transferir recursos públicos para o setor privado e focalizar as políticas públicas de saúde, educação e segurança. Afirmar-se que o método de administração gerencial é, em última instância, uma espécie de neopatrimonialismo.


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É importante destacar que, diante do modelo gerencial desenvolvido nos últimos dez anos, Minas Gerais ficou paralisada. A economia mineira tem o mesmo perfil estrutural há 40 anos. Ao longo dos dez anos do governo Aécio e Anastásia, não houve melhoria na dinâmica econômica do Estado. Minas assistiu a uma importante “desindustrialização”, com recuo nos investimentos em setores produtivos. Zona da Mata, Vale do Aço e Leste de Minas são exemplos dessa decadência. A economia mineira concentra hoje cerca de 79% de toda a riqueza produzida nas commodities minerais e vegetais. Com raríssimas exceções, esse governo não planejou e não organizou nenhuma plataforma de desenvolvimento estratégico para o Estado de Minas. O que vimos em Minas Gerais em dez anos foi o aumento da dívida pública, que passou de 34 bilhões, em 2002, para 100 bilhões de reais, em 2012. Os encargos com a dívida pública, em oito anos, passaram de 300 milhões de reais para 2,7 bilhões de reais. A dívida da CEMIG chegou à extraordinária cifra de 5 bilhões de reais. No mesmo período, a receita tributária pulou de 10,4 para 25,5 bilhões de reais. O governo de Minas contraiu, nos dez últimos anos, 20 bilhões de reais em empréstimos. Em suma: mesmo com o crescimento extraordinário da receita tributária, a dívida pública de Minas explodiu no governo Aécio Neves e Anastásia. É importante ressaltar que essa dívida draconiana foi imposta aos Estados pelo governo FHC, sob a coordenação do Deputado Federal Aécio Neves, em 1998. Se a economia e as finanças não vão bem, nota-se que o investimento do governo mineiro nas políticas públicas também apresenta resultados desfavoráveis, recuando significativamente ao longo dos últimos dez anos. Estudos indicam que o governo sequer cumpriu com os dispositivos previstos na Constituição do Estado, que definem recursos para áreas sociais. As fontes de financiamento da educação, saúde e segurança foram severamente rebaixadas no período. A ausência completa de uma política habitacional, de reforma agrária, de investimento na infraestrutura, é marca da ausência do governo. O servidor público foi destituído de seus direitos; foram determinadas reduções salariais, perda de vantagens e a introdução de metas de produtividade. Soma-se a tudo isso à quase destruição da previdência pública estadual (IPSEMG), a ausência de concursos públicos, as terceirizações e a criação


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da MGS – empresa mista que emprega sem concurso milhares de trabalhadores em situação precária. Por fim, esse governo ainda imputa uma permanente criminalização aos movimentos sindicais e populares. Com base no projeto histórico das elites mineiras, o qual remonta a um ciclo histórico de três séculos, nos últimos dez anos se construiu em Minas uma ampla aliança entre liberais e conservadores para governar o Estado, sem perder o foco no Palácio do Planalto. Implantou-se um poderoso sistema de poder local e um programa de administração gerencial amplamente neoliberal. A gestão é referenciada nos três pilares descritos no presente texto. Aécio Neves e ampla parcela das elites mineiras buscam pavimentar o caminho para disputar a Presidência da República. No entanto, a situação se agrava a cada movimento: o Senador mineiro, até o presente momento, não se mostrou pessoa confiável aos olhos dos demais setores das elites nacionais. O PSDB apresenta-se dividido. Há uma disputa interna entre paulistas e mineiros que vem desde 2002, ou melhor, da República Velha. Os aliados tradicionais encontram-se enfraquecidos – fundamentalmente, os Democratas. O Senador, ainda, mesmo apoiado por grande parte das elites de Minas, não é unanimidade no Estado. Para complicar a situação do tucano, a mineira Dilma Rousseff, que nunca foi referência política para as elites mineiras – aliás, muito pelo contrário –, é candidata à reeileição, com apoio público do Presidente Lula, que a depender do processo político eleitoral, poderá ser alçado à condição de candidato. Tem o seu governo aparecendo em todas as pesquisas com uma grande aprovação popular. Ao que tudo indica, finalmente, e a título de registro histórico, Minas estará mais uma vez no centro da disputa nacional. Desta vez, definitivamente dividida entre dois projetos antagônicos. O artigo apresenta uma curta reflexão sobre o processo da formação histórica, política, econômica, humana e social de Minas Gerais. O recorte apresentado é uma breve radiografia do comportamento das elites mineiras no que refere ao “mito da mineiridade” e à ação política de destacadas lideranças do Estado, a partir do jogo institucional local e nacional. É importante destacar que o bloco de poder que hegemonizou e controlou Minas Gerais ao longo do tempo, invariavelmente, se comportou com uma visão pequena e míope das potencialidades do Es-


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tado. A atitude foi quase sempre objetivando interesses particulares e ou de agrupamentos políticos, vinculados aos interesses econômicos locais. O patrimonialismo é a marca e a afirmação de uma elite apequenada, de um Estado, que, embora repleto de possibilidades, apresenta-se frágil e dependente das commodities minerais e agrícolas. Um modelo econômico e social concentrador de renda e riqueza, construído desde a Primeira República ao Choque de Gestão. Contudo, observam-se, em alguns momentos da história, fissuras no bloco de poder das elites mineiras. Devo destacar três momentos que marcaram essas rupturas, que colocaram parcelas dessas elites em outra dimensão da luta política e na construção concreta de um Estado desenvolvido, vinculado a um projeto de país mais independente. Primeiro no governo Getúlio Vargas, que rompeu com o modelo agrário exportador e iniciou uma nova fase do desenvolvimento nacional. Em Minas, a esse projeto, aderiu o governador Benedito Valadares. Segundo, com o Presidente Juscelino Kubitschek, que pese um projeto de desenvolvimento externamente dependente, avançou a interiorização do Brasil e sua modernização/industrialização. Terceiro, na luta contra o neoliberalismo, projeto que afundou o país numa profunda crise social e econômica, aflorou uma aliança entre capital e trabalho para reconstruir um novo projeto de desenvolvimento, em contraposição ao modelo rentista dependente. Nesse esforço nacional se juntam Lula e José de Alencar, um líder operário e um empresário. Frente a um cenário de disputa intensa, entre dois projetos antagônicos, que devemos refletir sobre o processo político em curso. Aécio Neves se apresenta como o novo, o moderno. Mas, sua bibliografia, sua história e suas convicções ideológicas o coloca em condições de igualdade aos seus pares históricos, que ao longo do tempo governaram Minas e o Brasil. Aécio Neves, de São João Del Rey, é herdeiro de várias gerações de mineiros, liberais e conservadores, que a partir de suas subregiões, ascenderam ao poder em Minas e no Brasil. Essas mesmas elites buscam impor novamente o seu representante na disputa nacional, que se vencedor, conduzirá o Estado brasileiro, o povo e os trabalhadores a um profundo retrocesso político, econômico e social.


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José Luiz Quadros de Magalhães

LEIS DELEGADAS: O LIMITE DA POLÍTICA E DA TÉCNICA, OU COMO O DISCURSO DA TÉCNICA ENCOBRE A POLÍTICA AUTORITÁRIA DE MINAS ATÉ A ITÁLIA Vivemos um momento ideológico que repete uma técnica de alienação do passado liberal. Naquele momento, no século XIX, por exemplo, o pensamento liberal se afirmou no Estado constitucional liberal como uma teoria natural: a economia liberal era a única natural e não era possível, por meio da história e do direito, contrariá-la. Da mesma forma naturalizaram o direito. Agora, com a hegemonia ideológica neoliberal, passaram a “matematizar” a economia, esvaziando esta de seu conteúdo político e, com isto, esvaziando a política, ao retirar a crença na possibilidade de a política transformar a economia. É como se, de novo, estivéssemos condenados a um único sistema econômico, político e social. “Matematização” ou “naturalização” da economia, centralização da economia; discurso do fim da história; privatizações; criminalização dos movimentos sociais; esvaziamento da política, que passa a ser substituída pelo discurso da técnica; aumento do direito penal e controle sobre a sociedade; discurso moralista e moralização do conteúdo do direito; estes são os perigosos fenômenos que de novo tomam conta de nossa sociedade e que se refletem na realidade de nosso Estado de Minas Gerais. Já vimos estas estratégias em outros momentos da História, e em nenhuma delas o resultado foi positivo. Em muitos casos resultaram em um grande aumento da violência do Estado e em alguns, no desaparecimento da já comprometida democracia representativa majoritária. Na União Europeia, o poder financeiro assumiu o poder, e as democracias representativas majoritárias se encontram comprometidas com a impossibilidade de os governos eleitos alterarem as políticas eco-


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nômicas determinadas pelo poder financeiro global e pelo Banco Central Europeu, pelo FMI e pelo governo alemão. Grécia e Itália chegaram a ser governadas por banqueiros. O discurso ideológico da superioridade da técnica sobre a política foi assumido pela mídia, que na atual realidade pertence aos grupos econômicos que governam a Europa. As eleições italianas de fevereiro de 2013 nos convida a refletirmos a realidade das democracias representativas e majoritárias, radicalmente em crise na Europa e nos EUA. Não vamos tratar aqui da ausência de opções, mas das falsas opções que se apresentam, muitas vezes mostradas de forma corajosamente inocente. Trata-se da armadilha do discurso moralista de combate a corrupção e do fim das ideologias apresentadas por políticos e novos partidos que dizem não se enquadrar nas classificações tradicionais de centro, direita e esquerda. A superficialidade do discurso pode condenar estes partidos ao fracasso, fracasso perigoso, pois o processo em que estas “soluções” se apresentam encobrem as reais causas de tudo o que está ocorrendo.

A IDEOLOGIA Em primeiro lugar, podemos nos perguntar o que é ideologia, para podermos entender o surgimento de partidos políticos que se dizem pós-ideológicos ou neutros o que é uma gigantesca bobagem. A palavra ideologia pode ser compreendida como um sistema de ideias mais ou menos coerente, por meio do qual acessamos o mundo. Nosso olhar, nesse sentido, é sempre ideológico. Um outro sentido para a palavra ideologia é a sua compreensão como mecanismo proposital de encobrimento, mecanismo de distorção da realidade. Nesse sentido, ideologia é mentira. Os mecanismos ideológicos de distorção e encobrimento atuam em dois grandes espaços: na formação de nossa compreensão do mundo, na atribuição de significados aos significantes essenciais (o que a família, a escola e a Igreja fazem com as pessoas nos primeiros anos de vida) e no encobrimento e distorção dos fatos, nos impedindo de construir nossa interpretação sobre o “real” ao nos impedir o acesso aos fatos, ou então, ao distorcer estes mesmo fatos (o que a mídia, a propaganda, o marketing, a igreja, a universidade, os cursos


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técnicos e outros aparelhos continuam fazendo com as pessoas para o resto da vida). Reconhecendo que não há fatos puros (não temos acesso ao “real”, mas sim, à “realidade”, que é o “real” interpretado), os mecanismos ideológicos encobrem o “real” (que pode ser compreendido também como sendo o próprio aparelho ideológico). Assim, no lugar de construir nossa interpretação sobre o “real”, construímos nossa interpretação do “real” (a realidade) sobre uma falsa representação deste. Nós, pessoas (seres que vivem), somos autopoiéticos (autorreferenciais e autorreprodudivos). Isto significa que somos seres interpretativos. Nossa única possibilidade de acessar o “real” que está fora de nós será sempre, inevitavelmente, por meio de nós mesmos. Assim, estamos, por enquanto e até onde podemos compreender e experimentar, condenados a nós mesmos. Entre nós e o “real” estamos nós mesmos, e o que podemos conhecer é a “realidade”, ou seja, o “real” interpretado. O que chamamos de “real” é um, possivelmente existente, absoluto inacessível, ao qual teremos acesso a fragmentos interpretados pelo nosso “olhar”. Por vezes encontramos o “real” em sua forma brutal, como experiência radical e violenta e logo indescritível: a violência de um “campo de concentração”, nos muitos que existem por aí. O real é a base para a construção das realidades, o que seria desejável, mas que raramente ocorre nestes tempos de embates ideológicos radicais pela construção dos sentidos dos fatos, das palavras, dos sistemas, da existência, enfim, do sentido de onde nos encontramos e do que fazemos no mundo. Partidos, governos, governantes e políticas públicas que se dizem não ideológicos são, portanto, uma impossibilidade ou algo indesejável. Impossibilidade, pois todos nós somos, no sentido positivo, seres ideológicos que permanentemente interpretamos o mundo por meio de nossas pré-compreensões. Indesejável, uma vez que um partido ou um governo técnico (a técnica está a serviço de ideologias ou constitui ela mesma uma ideologia), sem ideologia (ainda no sentido positivo como um conjunto de ideias), seria um partido sem programa, sem marco teórico para compreensão do mundo, da sociedade, da economia e da política e mesmo assim continuaria a ser ideológico. Um partido não ideológico seria, portanto, um partido de mentira ou ideológico no sentido negativo. Poderiam dizer que estes partidos não se enquadram nas classificações tradicionais modernas ocidentais de centro, esquerda e di-


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reita, mas este não parece ser o caso, mesmo porque um partido fora do sistema dificilmente poderia atuar dentro deste sistema. Este é o perigo da crítica generalizada aos políticos e à política. O problema não são (só) os políticos, nem a política, mas como é feita a política e em que sistema se insere os políticos e a política. Nesse sentido, estes partidos sem ideologia (por isto altamente ideológicos no sentido negativo) tendem a reproduzir tudo o que os partidos que eles dizem combater fazem, uma vez que aceitam entrar no sistema e atuam “inocentemente” dentro do sistema com uma crítica moralista perigosa. Da mesma forma, os políticos antipolíticos, ao entrarem no sistema representativo (o partido antipolítico “Cinco Estrelas” da Itália fez 25% do Parlamento), tendem rapidamente a serem absorvidos pelo sistema que eles combatem moralmente, logo, superficialmente.

“MATEMATIZAÇÃO” DA ECONOMIA: O FIM DA HISTÓRIA? Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico, para o qual não tem alternativa, uma vez que este sistema é natural e logo, o único possível, vitorioso, não há saída. Para estas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina. Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo, a economia não pode mais ser regulada pelo Estado, pelo Direito e pela Democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A “matematização” da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, ou se a economia é uma questão de matemática, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os economistas matemáticos, por meio de seus cálculos, jamais o povo. Isto ajuda a entender o processo crescente de indiferenciação dos projetos econômicos dos partidos políticos em muitos países do mundo.


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Esta é a ideologia que sustenta um mundo governado pela criação permanente de demandas, pelo desejo criado de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, se é que algum dia mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que os seus desejos são os nossos desejos.1

A DESPOLITIZAÇÃO DO MUNDO, O DISCURSO DA TÉCNICA E A NATURALIZAÇÃO DO DIREITO A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek, “a luta pela hegemonia ideológico-politica é por consequência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas”.2 Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo, 1 Algumas palavras problemáticas aparecem no texto: “ideologia” e “desejo”. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra “ideologia” aparece no sentido marxista: “Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica à religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver ‘idealismo’) e particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um elo necessário entre formas ‘invertidas’ de consciência e a existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver ‘contradição’) e as oculta. Em consequência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica” (DICIONÁRIO de pensamento marxista, p. 184). 2 Interessante não apenas ler esse livro como a obra desse fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem-vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes.


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pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural e o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos, mas são direitos naturais, devemos nos perguntar quem é capaz de dizer ou quem pode dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Ao contrário, se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história, e logo, o conteúdo destes direitos deve ser construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto, do qual todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmarmos estes direitos como naturais, fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os direitos humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro espaço sacralizado, intocável. Neste outro espaço encontraremos o significado sacralizado do que é natural. Quem é este que pode dizer o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza?

O CONTEXTO O filósofo esloveno Slavoj Zizek (2004, p. 18), em sua obra Sobre la violencia: seis reflexiones marginales,1 desenvolve três conceitos de violência que são importantes para entendermos os equívocos das políticas publicas de combate à violência e que podem ser utilizadas para compreender o equívoco das críticas e ações políticas superficiais moralistas que ignoram a necessidade de compreensão e desmonte das armadilhas estruturais e simbólicas do sistema. Zizek nos fala de três formas de violência: a) Uma violência subjetiva que representa a decisão, vontade, de praticar um ato violento. A violência subjetiva representa a quebra de uma situação de (aparente) não violência por um ato violento. A normalidade seria a não violência, a paz e o respeito às normas (normalidade), que é interrompida por um ato de vontade violento. b) A violência objetiva, diferente da violência subjetiva, é permanente. A violência objetiva são as estruturas sociais e econômicas, as permanentes relações que se reproduzem em uma sociedade hierarquizada, excludente, desigual, opressiva e repressiva.


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c) A violência simbólica é também permanente. Esta violência se reproduz na linguagem, na gramática, na arquitetura, no urbanismo, na arte, na moda e outras formas de representação. Para entendermos melhor, podemos exemplificar a violência simbólica presente na gramática: em diversos idiomas os sobrenomes se referem exclusivamente ao pai; ou ainda, o plural, no idioma português, por exemplo, sempre vai para o masculino. Assim, se estiverem em uma sala 40 mulheres e um homem, diremos: “eles estão na sala.” O plural, para uma mulher passeando com um cachorro, será: “eles estão passeando.” A violência simbólica, assim como a violência estrutural, objetiva, atuam permanentemente. Assim, de nada adianta construirmos políticas públicas de combate à violência subjetiva sem mudarmos as estruturas socioeconômicas opressivas e desiguais (violentas) ou todo o universo de significações e representações que reproduzem a desigualdade, a opressão e a exclusão do “outro” diferente, subalternizado, inferiorizado. Um exemplo interessante: a escola moderna é um importante aparelho ideológico,2 reproduzindo a mão de obra necessária para ocupar os postos de trabalho que permitirão o funcionamento do sistema socioeconômico, assim como reproduzindo os valores e justificativas necessárias para que as pessoas se adéquem e não questionem seriamente o seu lugar no sistema social (e no sistema de produção e reprodução). A escola, portanto, tem a fundamental função de uniformizar valores e comportamentos. O recado da escola moderna é: adéque-se; conformese; este é o seu lugar no sistema. Simbolicamente, a escola moderna diz diariamente isso aos seus alunos, por meio do uniforme. Sem o uniforme, a meia, a calça, a camisa e os sapatos da mesma cor, o aluno não pode assistir à aula. Durante muito tempo, e ainda hoje em algumas escolas, uniformizam-se os cabelos, o andar, o sentar, e claro, mais um monte de outras coisas mais complexas, como o pensar, o desejar e o gostar. A criança desde cedo deve se vestir da mesma forma, se comportar da mesma maneira; palavras mágicas, sem as quais as portas não se abrem. Pois bem, vamos ao problema: a criança, mesmo que não seja dito por meio da palavra (o


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que também ocorre), simbolicamente percebe, diariamente, todo o tempo, que não há lugar para quem não se normaliza, para quem não se uniformiza, para quem não aceita a padronização. O recado, muito claro da escola moderna, é: o uniformizado é o bom; não há lugar para o diferente (não uniformizado); para o que se comporta diferente, se veste diferente, ou de alguma forma não se enquadra no padrão. É claro que esta criança, processando o recado permanente (dito e repetido de várias formas), irá compreender que o padrão é bom e o diferente do padrão é ruim. No seu universo de significados em processo de construção, o diferente deve ser excluído, afastado, punido, uma vez que o que foge ao padrão não pode assistir à aula, não pode sequer permanecer na escola. Logo, quando esta criança percebe alguém ou algo em alguém que para ela é diferente do padrão (o cabelo; uma roupa; a cor; a forma do corpo; da fala; do olhar), esta criança irá de alguma forma reagir à ameaça do diferente, excluindo e punindo o diferente “ruim”. Em outras palavras, a escola moderna ensina diariamente à criança a praticar o “bullying”. Vejamos então a ineficiência das políticas de combate à violência, à discriminação, à corrupção que padecem, todas, deste mal. No exemplo descrito acima, a escola, o Estado, os governos, criam políticas públicas pontuais de combate ao “bullying” (a tortura mental e agressão física decorrente da discriminação do “diferente”), ao mesmo tempo que mantém uma estrutura simbólica que ensina a discriminação (o “bullying”). Voltemos aos conceitos de violência: toda política de combate à violência, às drogas, à corrupção, será sempre ineficaz se não transformarem as estruturas sociais e econômicas que permanentemente criam as condições para que esta violência subjetiva se reproduza, assim como o sistema simbólico, que continua, da mesma forma, reproduzindo a violência. Para acabar com a violência subjetiva só há uma maneira: acabar com a violência simbólica e objetiva. Para acabar com o “bulling” na escola, só mudando as estruturas uniformizadoras e excludentes presentes permanentemente na escola; para acabar com a corrupção, só transformando o sistema social e econômico e de valores (condições objetivas e simbólicas) que reproduze as condições para que esta (a corrupção) se torne parte da estrutura social e econômica vigente.


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De nada adiantarão as constantes políticas pontuais de combate à corrupção se estas políticas atacarem apenas os efeitos de forma repressiva e (ainda pior) com o direito penal, o aumento do controle e da punição. Os resultados serão enganosos, sempre, se não respondermos algumas perguntas: por que a corrupção? Quais são os elementos estruturais e simbólicos em nossa sociedade que reproduzem as condições para a corrupção? De nada adiantarão partidos políticos e políticas moralistas de critica à corrupção se estes partidos e os seus políticos não compreendem as causas estruturais e simbólicas da corrupção. Só há uma forma de eliminar a corrupção da política e livrar a sociedade dos políticos corruptos, como buscam estes partidos moralistas (como se nesta sociedade e entre os seus cidadãos também não ocorresse corrupção): desconstruindo a sociedade, a economia e a política estruturalmente e simbolicamente corruptas e construindo algo novo, tarefa que parece fora do alcance dos inocentes discursos moralistas. Pois bem, de posse de conceitos teóricos acima debatidos, resumimos: a) vivemos em um mundo onde os discursos neoliberais e o sistema capitalista financeiro são hegemônicos; b) a ideologia que sustenta está hegemonia é uma ideologia negativa, ou seja, que falseia, encobre e distorce propositalmente o real; c) a centralidade do discurso econômico do capitalismo financeiro se sustenta em diversos discursos ideológicos e entre estes o discurso das técnicas sobre a política e a despolitização da economia com a “naturalização” e/ou “matematização” do discurso econômico; d) no Brasil, as políticas neoliberais são introduzidas no governo Collor de Mello, com seu aprofundamento no governo de Fernando Henrique Cardoso, em que as técnicas e fatos anteriormente descritos são visíveis;


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e) em Minas Gerais, a hegemonia neoliberal é representada pelos governos do PSDB, embora não possamos afirmar que, alguma vez em nosso Estado, tenhamos conhecido ou experimentado um governo democrático e popular. Isto, até o momento, jamais ocorreu; f) esloveno Slavoj Zizek, que nos explica a impossibilidade de mudar a realidade social, econômica, política, práticas vigentes de violência, corrupção, drogas, sem trocarmos, mudarmos radicalmente as estruturas sociais e econômicas, estruturais e simbólicas da sociedade em que vivemos; g) com estas informações e reflexões, podemos concluir que a compreensão de qualquer mecanismo legal, do funcionamento do sistema jurídico e suas instituições, dos mecanismos processuais e do próprio Judiciário, do Executivo e do Legislativo, só pode ocorrer se contextualizada. Não é possível compreender o funcionamento de um sistema político, do Legislativo e do Executivo e dos mecanismos jurídicos fora de um contexto histórico que representa toda uma trama de relações sociais, econômicas, políticas em um sistema de relações de poder sustentado em valores e compreensões de mundo, h) em outras palavras, a utilização de um mecanismo como a lei delegada, o funcionamento de uma democracia representativa ou qualquer outro regime e sistema político, só é possível compreendendo os instrumentos ideológicos, os jogos de poder, os valores que sustentam práticas políticas e econômicas. Não é possível uma Teoria Geral do Estado como pretendiam os alemães do início do século XX. Uma teoria do Estado válida para qualquer realidade histórica. É claro que um sistema político constitucionalmente previsto funcionará de forma distinta e com resultados distintos em realidades históricas diversas.


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O problema não é a utilização das leis delegadas, mas em que contexto, representando quais interesses, este mecanismo constitucional é utilizado. A questão não é trocar pessoas no poder de quatro em quatro anos. Nomes diferentes, mas os mesmos interesses representados e as mesmas práticas políticas com aparência renovada. Isto é ideológico no sentido negativo. De nada adiantam eleições periódicas e secretas se não há opção de transformação social para construção de uma sociedade democrática, onde todos tenham espaço, vez, fala e voz. No atual contexto, democracia constitucional significa, em grande parte do tempo, uma máquina de legitimar decisões previamente construídas por quem detém efetivamente o poder. Isto é um teatro. Por isso, a discussão da utilização de leis delegadas no governo do PSDB só tem efetiva importância compreendendo o significado das políticas adotadas pelo partido e os interesses efetivamente representados nestas políticas. Por este motivo, um espaço menor para as leis delegadas neste texto, pois estas só são mais um instrumento de atuação de um poder que se insere em uma política hegemônica global que tem recebido o nome de neoliberalismo, e que hoje se encontra em sua fase de capitalismo financeiro global. Minas está dentro de tudo isto, e Minas só irá mudar quando sairmos de tudo isto. Não será fácil, mas ocorrerá, de uma maneira (com a conscientização e ação popular) ou de outra (com o colapso do sistema que está em curso nos centros globais de poder). Com tudo isto, vamos falar um pouco das leis delegadas, tema proposto para estudo neste livro.

LEIS DELEGADAS: OS INSTRUMENTOS E SEUS CONTEXTOS DE APLICAÇÃO Pelo que já foi dito, o problema não são as leis delegadas. A questão que deve ser considerada é, em que contexto são aplicados mecanismos jurídicos. Em que medida estes mecanismos determinam e em que medida são determinados pelo contexto histórico, social, cultural e econômico. Podemos dizer, por exemplo, que a previsão de um sistema de governo previsto na Constituição de um país funcionará de maneira diferente em contextos políticos distintos. Assim, um mesmo sistema


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de governo (parlamentar, presidencial, diretorial ou semipresidencial) terá um funcionamento distinto e servirá a interesses e objetivos diferentes em sistemas sociais, econômicos e culturais distintos. Por exemplo, Cuba, Suíça e China adotam variações do sistema diretorial, e França, Venezuela e Rússia, variações do sistema semipresidencial. É claro que, se os sistemas constitucionais de governo variam de acordo com o contexto em que são introduzidos, estes sistema têm, também, uma capacidade de determinar, em certa medida, relações econômicas, sociais e políticas, mantendo, conservando ou, menos, modificando a realidade. Por exemplo, nos EUA, o sistema presidencial, com eleições indiretas para presidente e vice-presidente da República, constitui um sistema de filtro poderoso, que, juntamente com outros mecanismos legais estruturais, como o bipartidarismo real, o financiamento privado de campanha, as agências de Estado autônomas (como o FBI, CIA, NASA), o voto secreto no colégio eleitoral e a inexistência de vinculação do voto do “grande eleitor” (o eleitor do partido no colégio eleitoral que escolhe o presidente dos EUA) ao partido e candidato que o escolheu funcionam como um mecanismo de proteção contra escolhas que ameacem a permanência de uma democracia controlada, em que as escolhas são restritas, à prova de transformações radicais. Assim, mecanismos legais, instituições, estruturas e sistema políticos determinam e são determinados pela realidade, sendo necessário o estudo de cada caso concreto para perceber em que medida determinam e em que medida são determinados pela realidade histórica. Sem dúvida, todo o aparato constitucional de democracia representativa majoritária é hoje, em muitos Estados nacionais, um mecanismo de limitação das escolhas democráticas, uma limitação da democracia real, popular. Este aparato constitucional em países como Reino Unido, Alemanha, França, Espanha Portugal e EUA, entre muitos outros, impedem que as pessoas enxerguem alternativas ao sistema socioeconômico e político em que vivem, funcionando o Legislativo, o Judiciário e o Executivo como máquinas processadoras de falsas legitimidades. O sistema não permite alternativas reais; as escolhas no Parlamento e no Executivo são delimitadas; os partidos políticos servem como espaços de segregação, onde rótulos condenam ideias ao esquecimento ou estranhamento. O mais interessante é que o sistema é capaz de levar as


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pessoas a se exilarem em partidos políticos que nunca chegarão ao poder, porque suas ideias, inseridas como estranhas à grande maioria na democracia representativa liberal, permanecerão carimbadas pela sigla e nome das legendas em que as pessoas se autoexilam. Alguns partidos são criados para nunca chegarem ao poder, justamente pela sigla e significantes que adotam. O pior é que estes partidos legitimam, fazem parte da máquina de legitimação de decisões e de estabilização e manutenção da realidade socioeconômica e cultural hegemônica no poder. Ingleses, franceses, italianos, norte-americanos e espanhóis parecem estar condenados (pelo menos enquanto a máquina de legitimação e encobrimento da democracia parlamentar e do Judiciário funcionarem) à mesmice. Não há alternativa visível. Diante de tudo isto, chegamos a um mecanismo pequeno, pontual, que se insere dentro desta máquina processadora de legitimidade artificial: as leis delegadas. O que é uma lei delegada? Temos uma democracia real em Minas Gerais? As decisões do governo representam a vontade popular construída de forma livre e dialógica em contextos de negação de qualquer forma de exclusão e construção coletiva das decisões? Ora, se a resposta para as duas últimas questões acima é positiva, não há nenhum problema em adotar as leis delegadas. Se não, a lei delegada apenas servirá para acelerar o processo de decisão, que por não ser realmente democrático, diminuirá a possibilidade de resistência às decisões e políticas que podem não favorecer as pessoas, cada pessoa em Minas Gerais. O leitor tem a resposta para estas duas últimas perguntas. Quanto à primeira pergunta: as leis delegadas são normas primárias elaboradas pelo chefe do Executivo (poder ser a Presidente; o governador ou o prefeito), que decorre de autorização do Poder Legislativo. Na autorização do Poder Legislativo para o chefe do Executivo legislar em seu lugar estão estabelecidos os limites deste poder provisório e excepcional. O procedimento da lei delegada divide-se em três fases: uma fase de iniciativa, uma fase constitutiva e uma fase complementar (Gonçalves Fernandes, p. 851). Na fase inicial ocorre a solicitação por parte do chefe do Executivo ao Legislativo correspondente (Prefeito para Câmara; Governador para Assembleia Legislativa e Presidente para o Con-


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gresso Nacional). A solicitação é discutida e votada na respectiva Casa; se for no Congresso Nacional será em sessão conjunta das duas Casas (a solicitação deverá ser encaminhada ao presidente do Senado). Uma vez autorizada a elaboração, promulgação e publicação da lei delegada será feita pelo chefe do Executivo. A delegação será feita em forma de resolução, que especificará o prazo e limites dos poderes legiferante do chefe do Executivo.

CONCLUSÃO Minas Gerais jamais viveu uma efetiva democracia popular. Diante de uma história de privilégios e desigualdades sociais e econômicas, Minas Gerais e o Brasil viveram curtos períodos democráticos representativos. Acompanhando a história brasileira, vivemos uma curta experiência de democracia representativa e majoritária de 1946 até o Golpe empresarial militar de 1964, no qual a elite empresarial e financeira teve papel determinante. Nesse período experimentamos ajustes políticos de elites políticas fundadas em um poder agrário, financeiro e industrial em torno de famílias de proprietários que batizaram a nossa política com os seus sobrenomes. Os movimentos sociais no campo e na cidade foram e ainda são criminalizados e os meios de comunicação concentrados se impõem uma autocensura. A máquina de falsa legitimação funciona a pleno vapor, como trem mineiro que marcha e avança firme na manutenção de privilégios e desigualdades. A criminalidade alcança índices assustadores e hoje em Belo Horizonte ocorrem mais homicídios do que em muitas zonas de conflitos armados pelo mundo. A diferença é que em Belo Horizonte morrem sempre os mais pobres, e os crimes ocorrem nos bairros onde estas pessoas moram, diferente de Bagdá, onde uma bomba pode matar pessoas em qualquer bairro da cidade. Em todo este quadro, as leis delegadas aparecem como um mecanismo que pode apenas acelerar as decisões, encurtar o processo de discussão com a finalidade de permitir a construção de espaços para a privatização (inclusive transformando o encarceramento de pessoas em um bom negócio) e a aceleração do “desenvolvimento” econômico,


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avançando para a construção de um Estado e de cidades com mais consumo, mais automóveis, mais violência, mais competição, individualismo, controle e repressão. Nada de novo, o Judiciário continuará aplicando as leis, mandando retirar as pessoas que não têm casa da propriedade de um magnata especulador ou “higienizando” a cidade expulsando os “feios” pobres do espaço urbano construído para “belos” automóveis; o Legislativo continuará a criar leis que beneficiem os investimentos de grandes empresas, e empresários que trarão mais produção e pagarão salários muito aquém do lucro que embolsam; nossas montanhas continuarão a desaparecer, gerando empregos e lucros muitos superiores aos empregos que geram; enfim, as engrenagens da enorme máquina do Estado moderno continuará legitimando o sistema, que como um trem a todo o vapor, continuará a nos levar para mais consumo, mais produção, mais dinheiro, mais violência, mais lucro, mais competição, mais.... Um dia esse trem vai mudar, mas para que isto ocorra, é fundamental enxergar como funcionam suas engrenagens. O trem processador de legitimidades de uma falsa democracia nominal só irá parar no dia em que as pessoas enxergarem para o que este trem serve, e finalmente tomarem a casa de máquina, mudarem a direção e construírem uma nova estrada que nos leva a uma sociedade que tenha espaço para todos e cada um. Este será o dia que construiremos uma efetiva democracia real.

REFERÊNCIAS DICIONÁRIO de pensamento marxista. Tom Bottomore (Ed.). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2001. GONÇALVES FERNANDES, Bernardo. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador : Editora Jus Podium, 2013. ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l’intolérance. Paris: Climats, 2004.


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Gilberto Antônio Reis

O SUS EM ESTADO DE CHOQUE

INTRODUÇÃO A medicina define o estado de choque como uma condição clínica decorrente de várias situações patológicas, que se caracteriza pela redução no volume do fluxo sanguíneo nos tecidos orgânicos. Sem sangue em quantidade suficiente para atender suas necessidades vitais, o organismo torna-se incapaz de manter as funções fisiológicas normais. O estado de choque é acompanhado de diversos sintomas. Na fase inicial, a vítima pode apresentar ansiedade e agitação, evoluindo com sensação de fraqueza e tonturas, apatia e, finalmente, perda da consciência. Trata-se, portanto, de uma emergência médica, ou seja, uma condição aguda com risco de morte, exigindo ação rápida e imediata. Introduzida no jargão político pelos neoliberais, à palavra “choque” foi associado um sentido positivo, de ação decisiva e competente para resolver problemas da política econômica e da administração pública. Contudo, os resultados obtidos pela aplicação do receituário neoliberal têm mostrado que tais “choques” são mais adequadamente traduzidos pelo significado clínico dessa palavra. A descrição da evolução dessa concepção e das suas aplicações pelos governos neoliberais pode ser verificada na obra da jornalista, escritora e ativista canadense Naomi Klein. No livro, publicado em 2007, e no documentário homônimo, A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo do desastre,1 a autora revela a trajetória do neoliberalismo no Ocidente desde o início dos anos de 1970. Ela põe fim ao mito de que a democracia seria um pré-requisito da proposta neoliberal. A tese principal da autora é a de que a imposição de políticas econômicas neoliberais tem sido precedida de um estado de choque coletivo. O objetivo 1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ME-dKv2W9xU>.


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seria deixar a sociedade civil, em especial os trabalhadores, em situação de insegurança, de desorientação, sem saber como reagir às rápidas mudanças econômicas impostas pelos governantes. A autora demonstra que a onda de governos neoliberais foi inaugurada com o golpe de Pinochet contra Salvador Allende. A ditadura chilena foi o laboratório do neoliberalismo. Liderados pelo economista Milton Friedman, os Chicago boys implantaram no Chile políticas econômicas radicais de abertura de mercados, desregulamentações de bens públicos e privatizações. Depois do Chile vieram a ditadura argentina, Ronald Reagan e Margaret Tatcher. O oportunismo no uso de um estado de choque coletivo para impor os interesses dos capitalistas transnacionais fica claro quando a autora mostra que, depois de um tsunami no Sri Lanka, os moradores do litoral atingido não puderam voltar para suas casas, pois os terrenos seriam vendidos para a construção de resorts de luxo. Outro exemplo foi o choque a que foi submetida a população do Iraque com a invasão do seu país pelos norte-americanos, seguida pela privatização de praticamente toda a infraestrutura pública iraquiana. O dano generalizado que o neoliberalismo causou e continua causando demonstra o verdadeiro sentido do choque neoliberal, aproximando-o do sentido que lhe é atribuído pela medicina, como doutrina que produz desemprego em massa, aumenta a desigualdade social, concentra o capital nas mãos de corporações transnacionais e enfraquece o poder estatal. Em Minas Gerais, durante o governo Aécio Neves (2003 a 2010), esta doutrina foi implementada sob o rótulo de “choque de gestão”.

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS): UMA CONQUISTA CIVILIZATÓRIA DA SOCIEDADE BRASILEIRA Na década de 1980, na contramão da onda neoliberal, no contexto dos movimentos sociais que lutaram contra a ditadura militar (19641985), a sociedade brasileira conquistou o direito à saúde como dever do Estado. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído na década seguinte com a missão de materializar esse direito. Os movimentos sociais que reivindicavam saúde para todos articularam-se em torno da Reforma Sanitária Brasileira, dando a direção


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política para a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, no contexto da Nova República. Essa Conferência definiu as diretrizes para implantação do SUS como sistema público de saúde, financiado pela arrecadação de impostos e contribuições e articulado como sistema único pelas três esferas governamentais: os governos municipais, estaduais e federal. Portanto, o SUS é a estrutura criada pelo Estado Brasileiro para realizar uma política pública definida constitucionalmente e orientada pelos seguintes princípios doutrinários: a saúde como direito fundamental do ser humano; o acesso universal não seletivo, igualitário e de forma integral aos serviços de saúde, abrangendo as ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação, com abordagem holística dos indivíduos, famílias e sociedade, disponibilizando todos os níveis de densidade tecnológica necessários à solução dos problemas de saúde; a democracia participativa com controle da sociedade sobre a definição e execução da política de saúde; o direito à informação sobre a saúde dos indivíduos e da população e publicidade dos atos governamentais; a autonomia do usuário frente aos profissionais e serviços de saúde; a competência técnica e humana dos profissionais de saúde e a solidariedade entre todos os envolvidos na condução do Sistema: usuários, trabalhadores e gestores. Esses princípios doutrinários orientam as diretrizes operacionais do SUS, que são as seguintes: desenvolvimento de ações de saúde coletiva adequadas às realidades territoriais; oferta regionalizada de serviços em redes de atenção à saúde; hierarquização dos serviços de saúde segundo densidade tecnológica e com capacidade resolutiva segundo seu papel na rede de atenção à saúde; descentralização da gestão com direção única em cada esfera de governo, constituída como autoridade sanitária; realização regular de conferências de saúde abertas à participação de toda a sociedade com implantação e manutenção de conselhos de saúde e fundos de saúde permanentes em cada esfera de governo; construção de pactos intergestores para a coordenação da política de saúde e sua operacionalização através da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e complementaridade do setor privado, submetido aos princípios, diretrizes e normas do SUS. Assim, paralelamente à institucionalização do direito à saúde como dever do Estado, o SUS trouxe como condição para sua implan-


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tação a realização de uma profunda reforma desse Estado, no sentido de aproximá-lo da sociedade civil, tornando-o mais transparente e controlável pela prática da democracia participativa. A maioria desses princípios e diretrizes definidas pela Conferência foi incorporada pela Constituição de 1988, transformada em artigos constitucionais por deputados constituintes comprometidos com a Reforma Sanitária. Assim, a Constituição da República Federativa Brasileira passou a assegurar o direito à saúde para todos os cidadãos (Artigo 196) como direito social (Artigo 6º), sendo parte do tripé que caracteriza a seguridade social, juntamente com a previdência e a assistência social (Artigo 194). Esses direitos visam assegurar a preservação da dignidade humana daqueles que se encontram vulneráveis e fragilizados como, por exemplo, ao adoecerem, ao ficarem desempregados, órfãos ou pelo envelhecimento. Representam a realização da solidariedade como cimento da vida social. A efetivação dos direitos sociais representa ainda um motor do processo civilizatório, como o demonstram as nações que avançaram nesse sentido. A organização social fundada apenas na competição conduz à violência e à barbárie. Apesar dessas conquistas, em Minas Gerais, no período do governo Aécio Neves, os princípios e diretrizes que norteiam o SUS foram relativizados face à ideologia neoliberal. Aqui a Reforma Sanitária institucionalizou-se em uma arena na qual não exibe o vigor e a capacidade de pressão política necessários para assegurar a implantação do SUS em sua plenitude: a nova tecno-burocracia do Estado, isolada da sociedade civil, recolhida à Cidade Administrativa que foi construída como símbolo do “choque de gestão”. Esse choque “aecista” pode ser traduzido como a aplicação parcial pela gestão estadual de tecnologias gerenciais desenvolvidas para a administração de empresas privadas. Sob a aparência de modernidade conservadora foi desenvolvido todo o discurso oficial da transformação do Estado burocrático em Estado gerencial, tendo como dogma a crença na eficiência absoluta do setor privado, tomado como modelo da racionalidade econômica. Porém, sua aplicação foi parcial, porque a suposta racionalidade administrativa mostrou-se incompatível com os interesses políticos sustentados pelo coronelismo, pelo fisiologismo e pelo clientelismo, práticas antigas amplamente utilizadas para realizar o projeto de poder do


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governador. Nesse cenário, sob a hegemonia desse projeto, prevaleceu a concepção de que as políticas sociais devem ser implementadas de forma seletiva, focalizada, emergencial e destinadas aos mais pobres. O receituário neoliberal, adotado pelo governador Aécio Neves, pôs em prática em Minas Gerais a doutrina do choque e do capitalismo do desastre ao não assegurar, por exemplo, os recursos necessários à efetivação de direitos sociais básicos, dentre eles o direito à saúde para todos os mineiros. Os dados e reflexões aqui desenvolvidas buscarão apresentar um panorama geral das ações da Secretaria de Estado da Saúde (SES MG), na condição de gestora estadual do SUS, no período que compreende os dois mandatos de Aécio Neves como governador de Minas Gerais (2003 a 2010). A partir desse panorama, será apresentada uma avaliação dessas ações em relação às atribuições do gestor estadual do SUS, conforme estabelecidas pela Lei Orgânica da Saúde.

O PAPEL DO GESTOR ESTADUAL DO SUS A definição do papel do gestor estadual do SUS está baseada em duas premissas: o conceito de saúde adotado e a organização federativa do Estado Brasileiro. O SUS tem como referência para sua implantação um conceito ampliado de saúde. De acordo com esse conceito, a saúde é identificada com a qualidade de vida dos indivíduos e da população. O direito à saúde, a partir desse conceito, se confunde com o direito à vida, ou seja, o direito de cada ser humano realizar plenamente o seu potencial de vida e de viver com dignidade. Os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país. Esse conceito ampliado, ao definir os elementos determinantes e condicionantes da saúde, incorpora: 1 – Os aspectos relacionados à biologia humana (herança genética; suscetibilidades individuais; etc); 2 – o ambiente socioeconômico e cultural (distribuição de renda; acesso aos serviços de saúde, à educação e à habitação; hábitos de vida, etc.);


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3 – o ambiente natural (qualidade da água e do ar; condições climáticas; etc.). Para realizar sua missão, o SUS está sendo construído pela sociedade brasileira, conforme já relatado, tendo como referência princípios que o inscrevem no campo das lutas por uma sociedade justa e igualitária. Tais princípios estão explicitados na legislação que instituiu o SUS: a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde.2 A organização federativa do Estado Brasileiro está definida pela Constituição Federal, em especial nos Títulos III – Da Organização do Estado, IV – Da Organização dos Poderes e VI – Da Tributação e do Orçamento, consagrando a autonomia político-administrativa dos entes federativos em suas três esferas (municipal, estadual e federal). Os artigos 23 e 24 da Constituição definem como de competência comum a essas três esferas de governo cuidar da saúde e assistência pública, bem como legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde. Já o artigo 30 estabelece que compete ao Município prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população. Essa desconcentração da prestação de serviços de saúde da União e do Estado para o Município consagra uma das propostas da Reforma Sanitária Brasileira, aproximando o sistema de saúde das realidades locais e contribuindo para maior efetividade do controle da sociedade sobre a execução dessa política pública.

2 A Lei Orgânica da Saúde está composta pela Lei nº 8.080, de 19 de Setem-

bro de 1990, que “dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes”, e pela Lei nº 8.142, de 28 de Dezembro de 1990, que “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde”. Para suprir lacunas dessas duas leis, foi decretada pelo Congresso Nacional a Lei Complementar nº 141, de 13 de Janeiro de 2012, que “regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo”.


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• Partindo dessas premissas, a Lei Orgânica da Saúde define as seguintes competências dos gestores estaduais do SUS: • Promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde, bem como acompanhar, controlar e avaliar as redes hierarquizadas do SUS. • Prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde. • Em caráter suplementar, formular, executar, acompanhar e avaliar a política de insumos e equipamentos para a saúde. • Coordenar e, em caráter complementar às ações de competência da União e do Município, executar ações de vigilância epidemiológica; de vigilância sanitária; de alimentação e nutrição; de vigilância ambiental e de saúde do trabalhador. • Formular normas e estabelecer padrões, em caráter suplementar, de procedimentos de controle de qualidade para produtos e substâncias de consumo humano. • Participar da formulação da política e da execução de ações de saneamento básico. • Identificar estabelecimentos hospitalares de referência e gerir sistemas públicos de alta complexidade, de referência estadual e regional. • Coordenar a rede estadual de laboratórios de saúde pública e hemocentros, e gerir as unidades que permaneçam em sua organização administrativa. • Estabelecer normas, em caráter suplementar, para o controle e avaliação das ações e serviços de saúde. • Acompanhar, avaliar e divulgar os indicadores de morbidade e mortalidade no âmbito da unidade federada.


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O artigo 33 dessa Lei estabelece que os recursos financeiros do SUS serão depositados em conta especial, em cada esfera de sua atuação, e movimentados sob fiscalização dos respectivos Conselhos de Saúde. O artigo 52 estabelece que, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, constitui crime de emprego irregular de verbas ou rendas públicas (Código Penal, art. 315) a utilização de recursos financeiros do SUS em finalidades diversas das previstas nesta lei. A Constituição do Estado de Minas Gerais reafirma os princípios e diretrizes do SUS estabelecidos pela Legislação Superior Federal, bem como as competências do gestor estadual. A essas competências acrescentou as seguintes: • Promover a instalação de estabelecimentos de assistência médica de emergência nas cidades-polo. • Adotar rígida política de fiscalização e controle da infecção hospitalar e de endemias. • Participar do controle e da fiscalização da produção, do transporte, da guarda e da utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos. • Participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos. • Implementar, em conjunto com os órgãos federais e municipais, o sistema de informação na área da saúde. • Ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde. • Incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico. • Garantir o atendimento prioritário nos casos legais de interrupção da gravidez. • Gerir o fundo especial de reserva de medicamentos essenciais, na forma da lei.


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• Promover, quando necessária, a transferência do paciente carente de recursos para outro estabelecimento de assistência médica ou ambulatorial, integrante do Sistema Único de Saúde mais próximo de sua residência. • Executar as ações de prevenção, tratamento e reabilitação, nos casos de deficiência física, mental e sensorial. O artigo 158 da Constituição Mineira determina que a lei orçamentária assegure investimentos prioritários em programas de saúde, e que os recursos para os programas de saúde não serão inferiores aos destinados aos investimentos em transporte e sistema viário. Depreende-se dessas normas que o principal papel da Secretaria de Estado da Saúde, gestora do SUS no Estado, é o de coordenar a articulação entre os sistemas municipais de saúde, fortalecendo esses sistemas, fomentando a desconcentração de serviços no território mineiro, oferecendo suporte técnico para a organização das redes de saúde intermunicipais em todas as regiões do Estado e financiando, juntamente com a União e os Municípios, o conjunto dos serviços de saúde.

O FINANCIAMENTO DO SUS NOS GOVERNOS AÉCIO NEVES A Lei Orgânica da Saúde não assegurou percentuais de gastos mínimos por esfera de governo para o SUS. Essa definição ocorreu apenas no ano 2000, com a aprovação da Emenda Constitucional 29 (EC 29): no caso dos Estados, devem ser destinados ao SUS 12% (12 por cento) do produto da arrecadação própria de impostos, deduzidas as parcelas transferidas aos seus Municípios. Até que essa determinação da EC 29 viesse a ser regulamentada, foram pactuados entre as três esferas de governo os parâmetros consensuais sobre sua implementação, considerando as recomendações produzidas por Grupo Técnico formado por representantes do Ministério da Saúde, Ministério Público Federal, Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS),


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Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), Comissão de Seguridade Social da Câmara Federal, Comissão de Assuntos Sociais do Senado e Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (ATRICON). Esse amplo pacto foi formalizado pela Resolução nº 322, de 08 de maio de 2003, do Conselho Nacional de Saúde. Segundo essa Resolução, a receita vinculada ao financiamento do SUS para os Estados, tanto no período 2001-2004, como a partir de 2005, é a seguinte: Quadro 1 Base de cálculo para definição dos recursos mínimos a serem aplicados em saúde pública pelo Estado Receitas Vinculáveis como Gastos com o SUS pelos Estados • Total das receitas de impostos de natureza estadual: ICMS, IPVA, ITCMD • (+) Receitas de transferências da União: Quota-Parte do FPE Cota-Parte do IPI – Exportação Transferências da Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir) • (+) Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) • (+) Outras receitas correntes: Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e Correção Monetária. • (-) Transferências financeiras constitucionais e legais a Municípios: ICMS (25%), IPVA (50%), IPI – Exportação (25%), (=) Base de Cálculo Estadual Fonte: Resolução nº 322, do Conselho Nacional de Saúde.


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Ficou acordado um conceito normativo, segundo o qual os serviços públicos de saúde teriam seus gastos computados, desde que atendessem os princípios da equidade e universalidade de acesso em todos os níveis de atenção à saúde. Partindo desse conceito, estabeleceu-se que os serviços que deveriam ser relacionadas como serviços públicos de saúde beneficiados pela vinculação de receitas seriam os seguintes: serviços constantes nos planos de saúde dos Estados, aprovados pelo Conselho Estadual de Saúde e executados pelo SUS; controle de qualidade, pesquisa científica e tecnológica, e produção de insumos em saúde (medicamentos, imunobiológicos, reagentes, sangue e hemoderivados, equipamentos para a saúde, dentre outros); vigilância sanitária, epidemiológica e farmacoepidemiológica; saúde do trabalhador; assistência terapêutica e farmacêutica; ações de saneamento básico e meio ambiente associados a controle de vetores em nível domiciliar e de pequenas comunidades e ações de alimentação e nutrição para grupos de risco nutricional. Ficou estabelecido ainda o que deve ser excluído do conceito de serviços de saúde: gastos com pessoal inativo; serviços suplementares ao SUS, dedicados, total ou parcialmente, ao atendimento de clientelas fechadas, excluídos em função da incompatibilidade com o critério de universalidade de acesso (por exemplo, os institutos de previdência e assistência à saúde de servidores públicos civis e militares); serviço da dívida (juros e amortização); ações de preservação e correção do meio ambiente, realizadas pelos órgãos de meio ambiente dos entes federativos e por entidades não governamentais; ações de saneamento básico de redes públicas e tratamento de água e esgotos, realizadas por companhias, autarquias e empresas de saneamento com recursos provenientes de taxas e tarifas, ainda que venham a ser vinculadas administrativamente às Secretarias de Saúde e ações de limpeza urbana e remoção de lixo realizadas por órgãos municipais específicos ou empresas terceirizadas. O acompanhamento, avaliação e controle do cumprimento da EC 29, conforme acordado, deveria ser feito com aplicação dos seguintes instrumentos: Plano Estadual de Saúde, Relatório Anual de Gestão (RAG), Relatório Resumido de Execução Orçamentária, Relatório de Gestão Fiscal e Sistema de Informações de Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS).


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Contudo, o Governo Aécio Neves não cumpriu esse acordo e os dados que apresentou nesses instrumentos não são confiáveis. Apresenta-se, a seguir, a Tabela 1 com alguns dos dados publicados pelo SIOPS. Tabela 1 Alguns indicadores estaduais selecionados do SIOPS para Minas Gerais no período de 2003 a 2010 Ano

% Despesa com % Despesa com pessoal/despesa serviços de terceiros/despesa total total

% Despesa de Investimento/ Despesa Total

% Recursos próprios em saúde (EC 29)

2003

17,88

20,64

7,74

10,2

2004

14,19

15,27

10,23

12,16

2005

22,21

20,48

9,52

12,33

2006

21,47

18,97

6,44

13,2

2007

15,71

20,15

9,96

13,3

2008

14,84

22,04

11,93

12,19

2009

14,11

21,91

9,57

14,67

2010

14,23

23,57

10,48

13,3

Média

16,35

20,89

9,72

12,88

Fonte: Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) - Indicadores Estaduais.

Os dados financeiros e orçamentários utilizados para construir esses indicadores foram fornecidos oficialmente pelo Governo do Estado de Minas Gerais ao Departamento de Informática do SUS (DATASUS), do Ministério da Saúde. Contudo, adotados os critérios para gastos governamentais com o SUS pactuados conforme exposto anteriormente, sabe-se que os percentuais apresentados de recursos próprios aplicados em saúde não correspondem à realidade.


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O Ministério Público Estadual apresentou, em dezembro de 2010, petição inicial de ação civil pública ajuizada por ato de improbidade administrativa, que foi acatada pela 5ª Vara de Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. A acusação sustenta que Aécio Neves, nos oitos anos em que governou Minas Gerais, não cumpriu o que determina a EC 29 em relação aos gastos com saúde. O ex-governador está sendo acusado de ter lançado irregularmente R$ 3,5 bilhões que teriam sido destinados à Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA) na sua prestação de contas relacionadas aos investimentos no SUS. Esse valor corresponde à metade do orçamento geral para a saúde no período. Porém, os magistrados concluíram de forma unânime que não houve essa transferência de recursos para a COPASA. A Comissão de Valores Imobiliários (CVM) demonstrou que não havia esse aporte bilionário na empresa. A Advocacia-Geral da União (AGU) também comprovou que esse recurso não chegou à COPASA e, por fim, a própria empresa nega que tenham existido esses R$ 3,5 bilhões em seus balanços. Frente a essa constatação, o ex-governador alegou que o que fez foi utilizar recursos provenientes das tarifas da concessionária para atingir o percentual constitucional de gasto com o SUS. Esse argumento também não foi aceito pelos desembargadores. Sendo assim, Aécio Neves teria praticado uma fraude contábil. Caso seja condenado, as penas podem incluir pagamento de multa e perda dos direitos políticos. O Sindicato dos Trabalhadores da Saúde de Minas Gerais (SindSaúde/MG) sustenta que o desvio pode ser ainda maior: cerca de R$ 1 bilhão teria sido desviado por ano do SUS para cobrir gastos do Instituto de Previdência do Estado de Minas Gerais (IPSEMG) e do Instituto de Previdência dos Servidores Militares de Minas Gerais (IPSM). Por prestarem assistência à saúde de apenas uma parcela da população, tais institutos fazem parte do sistema suplementar e não estão abertos a toda a população como serviços de acesso universal. Portanto, não podem receber recursos do SUS. A par dessa situação, os dados apresentados na Tabela 1 permitem outras análises. Observa-se que o gasto com serviços terceirizados foi maior do que o gasto com a remuneração dos servidores da área da saúde na média do período e em quase todos os anos da série, exceto


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para 2005 e 2006. Um dos apelos publicitários do “choque de gestão” é a maior eficiência da máquina administrativa. Uma das formas de se obter essa eficiência seria pela terceirização da mão de obra, como nas empresas privadas. Portanto, o gasto maior com terceiros está coerente com esse pensamento. Paralelamente, ao verificarmos a remuneração básica dos servidores da Secretaria de Estado da Saúde, constatamos que houve uma desvalorização violenta desses trabalhadores. Servidores mal remunerados e desmotivados completam o quadro que justifica as terceirizações segundo a cartilha neoliberal. O Quadro 2 sintetiza dados do edital de concurso público para provimento de cargos da carreira de Especialista em Políticas e Gestão da Saúde e de Tecnicos de Gestão da Saúde (Edital SES nº 01/2007, de 14 de dezembro de 2007), que exemplificam essa baixa valorização.

Quadro 2 Remuneração dos servidores estaduais da SES MG em 2007 Cargo

Formação Exigida

Carga Horária Semanal

Remuneração Inicial

Equivalência em Salários Mínimos (1 SM = R$ 380,00)

Técnico de Gestão da Saúde

Nível médio

40 horas

R$ 630,00

1,6

Especialista em Políticas e Gestão da Saúde Nível I

Graduação em nível superior

40 horas

R$1.260,00

3,3

Especialista em Políticas e Gestão da Saúde Nível II

Pós-graduação lato senso

40 horas

R$1.875,38

4,9

Fonte: Edital SES nº 01/2007, de 14 de dezembro de 2007.

Submetidos a vencimentos incompatíveis com o nível de formação exigida e com o nível de responsabilidade que cabe à Gestão Estadual


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do SUS, os servidores da SES MG conviveram sob o governo Aécio Neves com assessores externos com qualificação semelhante, mas remuneração muito superior. Evidentemente, aqueles vencimentos não atraíram todos os profissionais para os cargos públicos efetivos que seriam necessários para que o Estado cumprisse seu papel de coordenador e apoiador técnico dos municípios mineiros na condução do SUS. Sabese ainda que a terceirização de pessoal na administração pública tem servido à prática de clientelismo e fisiologismo político. Os postos de trabalho não submetidos a concursos públicos são utilizados como moeda de troca e favores políticos. Por outro lado, a suposta eficiência no gasto com pessoal deveria permitir maior destinação de recursos aos investimentos. Um Estado tão desigual em suas regiões como Minas Gerais precisa de uma ação decisiva do Governo Estadual no sentido de reduzir as iniquidades regionais no acesso aos serviços de saúde. Esse é outro papel insubstituível do Gestor Estadual do SUS. Os dados da Tabela 1 mostram que não pode ser verificado esse impacto positivo na capacidade de investimento da SES MG ao longo dos oito anos do governo Aécio Neves. Aqui cai mais um mito plantado pela propaganda governamental em torno do “choque de gestão”. Finalmente, outro aspecto importante na análise do financiamento do SUS em Minas Gerais com Aécio Neves no governo diz respeito à forma de transferência dos recursos próprios do Estado para os Municípios. Diferentemente do Governo Federal, que vem ampliando as transferências automáticas para os municípios, como o Piso de Atenção Básica (PAB), a forma de repasse de recursos que mais avançou sob o governo Aécio Neves foi aquela realizada através de convênios. Os convênios devem ser negociados entre os entes que o celebram, o que dá lugar ao seu uso como moeda de troca política. Aqui, mais uma vez, as formas tradicionais de gestão dos recursos públicos baseadas no fisiologismo e no clientelismo político atravessaram a pretendida modernidade e eficiência administrativas. Por outro lado, os dados informados pelos municípios mineiros ao SIOPS revelam que durante os oito anos sob Aécio Neves, 571 municípios mineiros, dentre os de menor população e mais pobres, ou seja, aqueles que mais necessitam do apoio estadual, não receberam qualquer transferência de recursos financeiros


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através de convênio com a Secretaria de Estado da Saúde.

Fonte: Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) - Indicadores Municipais.

COORDENAÇÃO E APOIO TÉCNICO DO ESTADO À IMPLANTAÇÃO PELOS MUNICÍPIOS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE Como já citado anteriormente, como regra geral, os serviços de saúde no âmbito do SUS devem ser operacionalizados pelos municípios. Para que executem essa função, os municípios devem receber recursos e apoio técnico da União e do Estado. Portanto, é desejável que os programas das três esferas de governo desenvolvam sinergismos em torno de proposições e objetivos comuns, evitando o paralelismo de ações com o mesmo fim. Esse desenvolvimento de programas de saúde a seis mãos torna metodologicamente muito difícil separar o que resultou da participação de cada ente federado. Durante os dois períodos do governo Aécio Neves, a SES MG aproveitou-se dessa situação e adotou-se a estratégia de reetiquetar programas do Ministério da Saúde com sua própria marca, apresentando como seus os resultados do trabalho desenvolvido pelas outras duas esferas de governo. O Quadro 3 apresenta os principais programas desenvolvidos pelo Estado e seus equivalentes em âmbito federal.


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Quadro 3 Principais programas desenvolvidos pela SES MG e seus equivalentes ao nível Federal Programa Estadual

Programa Federal

Saúde em Casa

Estratégia de Saúde da Família

Viva Vida

Programa de Humanização no Prénatal e Nascimento

Rede de Atenção às Urgências e às Emergências

Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências

Rede Mais Vida

Redes Estaduais de Assistência à Saúde do Idoso / Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa

Rede Hiperdia

Plano de Reorganização da Atenção à Hipertensão arterial e ao Diabetes mellitus

Farmácia de Minas

Política Nacional de Assistência Farmacêutica

Programa de Fortalecimento e Melhoria da Qualidade dos Hospitais do SUS/MG (Pro-Hosp) – a partir de 2003

Programa de Reestruturação e Contratualização dos Hospitais Filantrópicos no Sistema Único de Saúde – a partir de 2006

Fontes: Portal da Saúde <http://portalsaude.saude.gov.br> e “Choque de gestão em Minas Gerais: resultados na saúde”, SES MG, 2010.

No ano de 2009 a SES MG publicou o livro O choque de gestão na saúde em Minas Gerais e no ano seguinte o livro O choque de gestão em Minas Gerais: resultados na saúde. As 684 páginas desses dois livros, de nítido caráter propagandístico, estão recheadas de longos textos com definições técnicas e proposições genéricas, com alguns gráficos e mapas que buscam exibir os supostos êxitos do “choque de gestão” e dos programas citados no quadro acima. Há toda uma teorização sobre as redes assistenciais que culmina com a identificação do papel das unidades de saúde municipais na constituição de redes temáticas, seguindo a antiga


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tradição das ações programáticas focalizadoras na velha saúde pública brasileira, anteriores à institucionalização do SUS com seus princípios de universalidade e integralidade. A definição de tais redes não trouxe impacto significativo na oferta de serviços, uma vez que se limitou a renomear uma rede assistencial que já existia. Uma leitura atenta permite, a partir dos dados apresentados, dimensionar essas ações desenvolvidas pelo Estado sob a gestão de Aécio Neves. O Programa Saúde em Casa promoveu melhorias de infraestrutura para 46% das Equipes de Saúde da Família existentes no Estado. Foram implantados 21 Centros Viva Vida, cobrindo 27,03% da população mineira. O Rede Hiperdia promoveu o reaparelhamento e reformas nos prédios de três unidades de atendimento especializado, renomeando-as Centros Hiperdia (CHD), sendo um na Microrregião de Janaúba/Monte Azul, outro na Microrregião de Brasília de Minas/São Francisco e o terceiro em Itabirito. A Rede Mais Vida limitou-se também a três unidades, sendo uma por Macrorregião (Sudeste, Norte e Centro 1). A Rede de Atenção às Urgências e às Emergências ficou limitada à Macrorregião Norte. O Programa Farmácia de Minas implantou 67 unidades e enfrentou na capital a resistência dos profissionais de saúde e dos usuários, uma vez que propõe retirar a dispensação de medicamentos das Unidades Básicas de Saúde, em vez de apoiar soluções para os problemas aí encontrados, isolando a assistência farmacêutica das demais ações de saúde e impondo à população deslocamentos antes desnecessários para aviar as receitas. Esses programas resultantes do “choque de gestão”, acanhados nas suas dimensões reais, ganharam a dimensão de grandes soluções para os problemas de saúde da população mineira nos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, funcionam como as amostras grátis de medicamentos, que são insuficientes para resolver o problema do paciente e servem apenas para propagandear o produto. Já o Pro-Hosp traduziu a escolha política do então Governador Aécio Neves em investir em hospitais privados, em vez de construir a rede de hospitais regionais estaduais conforme determina a Constituição Mineira. Essa proposta tem resultados no médio prazo conhecidos por todos os que militam na Reforma Sanitária Brasileira desde que o INAMPS fez opção semelhante na década de 1970.


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AS BARREIRAS PARA O EFETIVO CONTROLE SOCIAL DO SUS EM MINAS GERAIS SOB AÉCIO NEVES Sendo um dos pilares na construção do SUS, o controle social ainda depende de uma postura de comprometimento do gestor com a democracia participativa. Um governo conduzido por uma tecno-burocracia autossuficiente, de profissionais terceirizados e estranhos ao serviço público estadual, dispensa a participação da sociedade nas suas decisões. Com o “Choque de Gestão”, o Conselho Estadual de Saúde (CES-MG) ficou reduzido a uma instância burocrática, inexpressivo politicamente e pouco representativo da sociedade mineira. Submetido ao poder do Governo Aécio Neves, o Conselho Estadual de Saúde foi mantido apenas para cumprir as exigências legais.

EVOLUÇÃO DA SITUAÇÃO DE SAÚDE DA POPULAÇÃO MINEIRA NO PERÍODO DOS GOVERNOS AÉCIO NEVES Finalmente, apresentam-se alguns dados sobre a evolução da situação de saúde da população mineira no período citado, focalizando aqueles relacionados aos programas priorizados pela SES-MG para avaliação da sua efetividade, comparando-os com o que ocorreu no mesmo período em outros Estados. A Tabela 2 exibe dados que mostram que a Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) em Minas Gerais, sob o Governo Aécio Neves, apresentou uma das menores quedas quando comparada com os demais estados da Região Sudeste, exceto o Rio de Janeiro, com estados de mesmo porte da Região Nordeste e da Região Sul e com a média brasileira entre os anos de 2003 e 2010. Na Região Sudestes, Minas Gerais apresenta a taxa de mortalidade infantil mais elevada. Em 2003, a TMI mineira era inferior à média brasileira; ao final do Governo Aécio Neves, em 2010, apresentou-se superior à média brasileira. Essa taxa é considerada um dos melhores indicadores da qualidade de vida de uma população.


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190 Tabela 2

Evolução da Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) Unidade da Federação

2003

2010

Queda em % no Período

Brasil

23,9

16,0

33

Minas Gerais

20,0

16,2

19

Bahia

31,6

21,0

33

Pernambuco

36,1

17,0

53

Espírito Santo

16,4

11,9

27

Rio de Janeiro

17,7

14,3

19

Paraná

16,5

12,0

27

Rio Grande do Sul

16,0

11,3

29

São Paulo

15,2

12,0

21

Fonte: Indicadores e Dados Básicos de 2011 – RIPSA/DATASUS.

A Tabela 3 a seguir exibe dados sobre a evolução da taxa de mortalidade específica para três doenças crônico-degenerativas que são foco do Programa Hiperdia da SES MG. Apenas para as doenças cerebrovasculares a taxa permaneceu estável, tendo aumentado para as doenças isquêmicas do coração e para diabete melito.

Tabela 3 Taxa de Mortalidade Específica para três doenças crônico-degenerativas – evolução entre 2003 e 2010 Causa da morte

2003

2010

Doenças cerebrovasculares

52,2

52,2

Doenças isquêmicas coração

40,8

41,9

Diabete melito

18,5

24,8

Fonte: Indicadores e Dados Básicos de 2011 – RIPSA/DATASUS.


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A Tabela 4 apresenta a Taxa de Mortalidade Específica por causas externas por Unidade da Federação e Ano. Minas Gerais esteve no período compreendido pelos dois governos do Aécio Neves entre os estados que apresentaram elevação dessa taxa.

Tabela 4 Taxa de Mortalidade Específica por causas externas por Unidade da Federação e para o período de 2003 a 2010 Unidade da Federação

2003

2010

Pernambuco

91,3

86,9

Bahia

54,7

86,8

Minas Gerais

58,2

66

Espírito Santo

98,2

112,2

Rio de Janeiro

105,1

86,3

São Paulo

81,1

58,5

Paraná

77,3

91,3

Rio Grande do Sul

65,5

67,9

Fonte: Indicadores e Dados Básicos de 2011 – RIPSA/DATASUS.

Outro indicador importante do ponto de vista da saúde da população é a Razão de Mortalidade Materna. A Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA) não pode calcular esse indicador para Minas Gerais, uma vez que o Estado não atingiu o índice final (cobertura e regularidade do Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM) igual ou superior a 80% e cobertura do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) igual ou superior a 90%, o que indica a precariedade dos sistemas de informação em saúde em Minas Gerais, único Estado da Região Sudeste a não dispor desses dados. Essa situação é um reflexo da precariedade dos processos de gestão do SUS no Estado.


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CONCLUSÕES A saúde como direito social encontra-se no rol de direitos doutrinariamente denominados direitos progressivos, ou seja, depende de ações positivas do Estado e da sociedade para a sua plena realização. Uma demonstração objetiva do nível de prioridade dada por um governo a determinada política pública é o volume de recursos orçamentários e financeiros a ela destinados. Sob esse aspecto, pode-se afirmar que o governo Aécio Neves não priorizou a realização do direito à saúde. Ao final do período Aécio Neves no governo de Minas, em 2011, dados publicados pela Secretaria do Tesouro Nacional (Execução Orçamentária dos Estados – despesas por funções empenhadas) mostram que o Estado ocupava a 24ª posição dentre os 27 Estados brasileiros no percentual de recursos próprios destinados à saúde. Reduzido a recurso da retórica oficial repetida milhões de vezes pela mídia subserviente, o chamado “Choque de Gestão” não criou as condições prometidas para o avanço do SUS e a realização do direito à saúde para todos os mineiros, uma vez que manteve as práticas clientelistas e fisiológicas tradicionais na alocação de recursos do Estado nos municípios, profundamente marcados pelas desigualdades regionais. Ao contrário, esvaziou a máquina pública e a capacidade de intervenção da SES MG pela desvalorização salarial dos servidores públicos, cujos quadros não foram recompostos. O resultado foi a evolução tímida ou a piora dos indicadores da situação de saúde da população mineira entre 2003 e 2010, período em que o Estado de Minas Gerais foi governado por Aécio Neves. Efetivamente, a qualidade de vida dos mineiros não apresentou a melhora veiculada pela propaganda oficial. O “choque de gestão” revelou assim sua verdadeira face. Felizmente, as ações das outras esferas de governo, parceiras no SUS, impediram que todo o Sistema entrasse em colapso. Mesmo assim, sob o governo Aécio Neves, o SUS entrou em estado de choque em Minas Gerais. Sua recuperação dependerá das próximas escolhas políticas que serão feitas pelos mineiros.


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Clarice Barreto Linhares Adelson França Jr.

O DIREITO À EDUCAÇÃO NA BERLINDA: MINAS GERAIS E OS DESCAMINHOS NA CONDUÇÃO DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem a tarefa de fazer uma análise da gestão do Estado de Minas Gerais no que se refere à garantia do acesso e da qualidade da educação. O foco das análises concentra-se na gestão do PSDB, que ocupa a função desde o ano de 2003, principalmente nos dois governos do Senador Aécio Neves (2003 a 2006 e 2007 a 2010)2 e parte da gestão de Antônio Augusto Junho Anastasia, à frente do mandato desde 2010. A escolha desse período deve-se à constatação de que o mesmo iniciou um processo de flagrante declínio da educação pública em Minas Gerais, desde a implantação do tão alardeado “Choque de Gestão”, indo na contramão das propagandas que o governo faz de si mesmo para a população do Estado. Esse declínio tem sido observado pela comunidade escolar de Minas Gerais e vem paulatinamente acarretando a perda da qualidade da educação, bem como comprometendo significativamente as condições de trabalho e vida dos trabalhadores em educação da rede estadual, ameaçando, assim, o sentido da educação enquanto um direito constitucionalmente assegurado. Em 2009, através do Especial “Radiografia da Educação Mineira”, publicação resultante de um trabalho minucioso de pesquisas, reportagens e análises sobre a 1 Para a construção deste artigo, agradecemos imensamente a colaboração e as análises de Ana Maria Prestes Rabelo, cujos textos e interpretações da situação da educação no Estado de Minas Gerais serviram de base para a montagem do mesmo. 2 O segundo governo de Aécio Neves não foi completado pelo mesmo, tendo em vista sua renúncia em março de 2010, para concorrer ao Senado da República. Em seu lugar, assumiu seu vice, o Governador Antônio Augusto Junho Anastasia.


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situação da educação em Minas, o Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação de Minas Gerais (SindUTE) expressa claramente seu descontentamento com a gestão no texto do seu editorial: (...) o cenário da educação no Estado nunca foi tão perverso como se encontra hoje. O descaso público do governo Aécio relega o segmento a patamares inimagináveis. De norte a sul, o que se vê são escolas públicas estaduais em situação lastimável, enfrentando dificuldades de toda sorte, em condições degradantes. Por outro lado, aos olhos da mídia, sob vultosas contas publicitárias, o governo alardeia ‘verdades duvidosas’. (...) Violência, falta de infraestrutura e de investimento nos profissionais da educação, inexistência de políticas públicas, desvalorização do serviço público, exclusão, esquecimento e descaso são cenas que o leitor confere ao longo dessa edição. Assim, comprovara que, de fato, Minas não respira liberdade (SindUTE, 2009, contracapa).

Soma-se a esses problemas, a ausência da democracia dos gestores da pasta da Educação no estado, na medida em que os mesmos, como denunciado pelo sindicato, se recusam a dialogar com os representantes da categoria e não criam mecanismos de aproximação e participação de pais e alunos na gestão da educação no estado. Não obstante a árdua tarefa de analisar a política educacional diante da ausência de publicidade e transparência de dados e estatísticas, por parte da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEEMG), bem como um visível descompasso entre a realidade de fato, vivenciada pela comunidade escolar (pais, trabalhadores, alunos e gestores da educação) e àquela que se apresenta nas propagandas veiculadas pelo governo do estado, tentar-se-á uma análise a partir de informações levantadas pelos sindicatos dos trabalhadores em educação, estatísticas divulgadas pela imprensa e órgãos federais, bem como relatos de diversos atores de destaque na área. É importante ressaltar que a maior parte dos dados aqui apresentados foram coletados no âmbito do “Movimento Educação que Queremos”, movimento que conglomerou diversas entidades em defesa da educação no Estado de Minas Gerais, e do qual um dos autores deste


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artigo participou representando o Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais (Sinpro Minas), entidade representativa dos professores do setor privado do estado.3

EDUCAÇÃO: UM DIREITO CONSTITUCIONALMENTE GARANTIDO, UM ACESSO, PORÉM, DEPENDENTE DE PROJETOS DE GOVERNO A Constituição da República (1988), considerada historicamente como “Constituição Cidadã”, pela abrangência e extensão dos direitos nela expressos, bem como pela forma participativa da sua construção, assegura, em seu artigo 6º, a educação enquanto um direito social do cidadão brasileiro. Mais adiante, o Texto Constitucional, no seu artigo 205, delineia as competências da garantia desse direito: “A educação é direito de todos e dever do Estado e da família.” No artigo 206, especifica-se: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) IV gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais” (Brasil, 1988). A Carta Constitucional foi além de assegurar um direito social, inovando em termos da formulação da gratuidade da educação e, “(...) assegurando-a em todos os níveis na rede pública, ampliando-a para o ensino médio, tratado nas Constituições anteriores como exceção e, para o ensino superior, [de forma] nunca contemplada em Cartas anteriores” (Oliveira, 1998, [s.p.]). Um avanço significativo da Constituição no direito à educação é a garantia do acesso ao ensino gratuito e obrigatório, consubstanciado no direito público subjetivo, a gestão de3 O “Movimento Educação que Queremos” surgiu com o objetivo inicial de formar um grupo de estudos para analisar a proposta do Plano Decenal de Educação para o Estado de Minas Gerais, para tecer considerações e críticas e para propor emendas ao mesmo. No decorrer dos encontros desse grupo formado por várias entidades mineiras, este se transformou no “Movimento Educação que Queremos”, que atuou em outras frentes – como na preparação da Conferência Nacional de Educação (CONAE - 2010) – no planejamento do Debate Público e Encontros Regionais, e em eventos preparativos para o Fórum Técnico Plano Decenal de Educação, que se realizou em maio de 2009, em parceria com a Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (Cartilha do Movimento, 2009).


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mocrática do ensino público e a vinculação de impostos à educação, na qual cabe à União aplicar 18% e aos Estados, Municípios e Distrito Federal, 25% das suas arrecadações. Tomando como ponto de partida a esfera do Estado, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996) reparte, ainda, as competências do direito ao acesso à educação pela estrutura do eixo federativo, atribuindo, assim, o que é responsabilidade dos municípios, dos estados e da União. Aos estados caberia a competência prioritária do Ensino Médio, bem como da educação profissional. Porém, o regime de colaboração que se pretende entre os entes federados para a promoção da universalização da educação de qualidade não impede, ao contrário, coloca-se de forma imperiosa a necessidade da suplementação das competências dos níveis de ensino ente os entes federados. Segundo o próprio Plano Decenal de Educação do Estado de Minas Gerais: A educação básica de qualidade depende, substancialmente, da educação superior, responsável primeira pela formação dos profissionais do magistério. (...) a criação de um espaço permanente de diálogo e entendimento para a efetiva e necessária articulação entre este nível de ensino e a educação básica, torna-se imperiosa em Minas (Minas Gerais, 2011).

Contudo, mesmo que o governo do Estado de Minas Gerais se detivesse apenas à sua prioritária competência expressa na LDBEN/96, a mesma ainda estaria deficitária no que se refere à garantia desse direito constitucional do cidadão, na medida em que diagnosticaremos neste artigo as falhas evidenciadas pela opção de um projeto gerencial e mercadológico de gestão das políticas públicas. Dessa forma, as condições estabelecidas em lei acabam por não refletir em acesso universalizado e imediato à educação, historicamente, para os cidadãos, na medida em que outros interesses compõem o Estado Brasileiro e, consequentemente, suas unidades federativas. A perspectiva do avanço capitalista, bem como do projeto desenvolvimentista que se quer para a sociedade influenciam de forma decisiva para a ampliação ou não do acesso à “educação-direito” e a extensão do mesmo. Encontramos na sociedade brasileira expressões de governos, nas três


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esferas federativas, que disputam projetos antagônicos: de um lado, projetos que se cristalizaram na ênfase da ideologia da maximização do capital e da educação-mercadoria, acabando por precarizar a educação pública, e por outro, projetos que focam o desenvolvimento no fortalecimento das políticas sociais e na tentetiva da universalização do acesso à educação. O projeto desenvolvimentista reflete então, em grande medida, as políticas dos governos, ameaçando, em muitos casos, a educação como direito, e, consequentemente, enquanto política de Estado. Acerca do projeto desenvolvimentista histórico dos governos brasileiros, anteriores à redemocratização, Frigotto (2010, p. 242) faz uma constatação: (...) ao não disputar um projeto societário antagônico à modernização e ao capitalismo dependente e, portanto, à expansão do capital em nossa sociedade, centrando-se num projeto desenvolvimentista com foco no consumo e, ao estabelecer políticas e programas para a grande massa de desvalidos, harmonizando-as com os interesses da classe dominante (a minoria prepotente), o governo também não disputou um projeto educacional antagônico, no conteúdo, no método e na forma.

Ainda segundo Frigotto, a década de 1990 consubstanciou firmemente um projeto claro de desenvolvimento e, consequentemente, de educação: No plano das políticas educacionais, da educação básica à pósgraduação, resulta, paradoxalmente, que as concepções e práticas educacionais vigentes na década de 1990 definem dominantemente a primeira década do século XXI, afirmando as parcerias do público e privado, ampliando a dualidade estrutural da educação e penetrando, de forma ampla, mormente nas instituições educativas públicas, mas não só, e na educação básica, abrangendo desde o conteúdo do conhecimento até os métodos de sua produção ou socialização (Frigotto, 2010, p. 246).


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A década de 1990 representou, assim, para a educação nacional, um período em que ficou claramente definido o projeto desenvolvimentista do país à época: a opção pela defesa intransigente do capital, e o ponto de partida da mercantilização da educação brasileira. As consequências dessa opção para a “educação-direito” são óbvias no sucateamento do setor público da educação, lógica que teve seus reflexos também nos estados e municípios. A análise da última década permite-nos, no entanto, em relação às políticas educacionais e à entrada de outras concepções de gestão, segundo Frigotto, perceber projetos antagônicos em disputa: (...) enquanto as primeiras [da década de 1990] resultavam de produções de quadros intelectuais elaboradas pelo alto para serem aplicadas na sociedade, as segundas [a partir do governo Luís Inácio Lula da Silva] buscavam uma construção desde a própria sociedade (Frigotto, 2010, p. 248).

A Conferência Nacional de Educação (CONAE - 2010) foi um exemplo claro de tentativa de construção conjunta do Plano Nacional de Educação. Portanto, ainda que não represente uma ruptura com velhos modelos de gestão educacional arraigados nas estruturas institucionais brasileiras, é de se reconhecer que desde 2003 o Governo Federal mostra-se propenso a um projeto desenvolvimentista que tenta viabilizar o acesso à educação estrapolando a competência da esfera federal e dando ênfase à diversidade, a partir das políticas voltadas para a educação de jovens e adultos e para a educação da população indígena e afrodescendente. Na educação superior a expansão das universidades federais, o REUNI e o PROUni, ampliaram o acesso de segmentos sociais mais vulneráveis à educação superior. No que se refere ao financiamenton da educação: No plano do financiamento, a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), com todos os limites da natureza dos recursos ligados ao Fundo e não constitucionais, incorporou a educação infantil e o ensino médio, antes não con-


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templados. Para cobrir todas as modalidades, na sua função suplementar, está em tramitação final, tem lugar a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Profissional e Tecnológica (Fundep). E outro aspecto diferenciado, ainda que em termos muitíssimos baixos, é a fixação do piso nacional para o magistério da educação básica, uma conquista histórica do magistério nacional (Frigotto, 2010, p. 248).

A opção de um projeto de cunho mais social para a educação, portanto, não se reflete de forma equânime entre os entes federados. A concepção clara de muitos estados e municípios é a de uma gestão que, segundo Saviani (1996), opta pelos resultados – acordo de resultados a partir das avaliações institucionais e consequentemente a focalização para atingir suas metas em detrimento da universalização do direito à educação, de fato. A partir do chamado “Choque de Gestão”, que segue estritamente a linha da visão gerencial e de resultados nas políticas públicas, como vem sendo demonstrado ao longo deste livro, veremos a opção clara do Governo do Estado de Minas Gerais para a política de educação em seus dez últimos anos.

A EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS, A PARTIR DO ANO DE 2003: A OPÇÃO POR UM PROJETO DE MERCADO E A VITRINE DO DESCASO O contexto da educação pública, em Minas Gerais, a partir 2003 – início da gestão do então Governador Aécio Neves (PSDB) –, começa a sofrer um declínio considerável no que tange à sua qualidade e a garantia enquanto direito social. Reflexo claro da opção de projeto do seu governo. A opção de uma gestão pública pautada em princípios empresariais, com a figura do Estado-empresa, gerador de eficiência, eficácia e consecução de resultados a qualquer custo, acabou por afastar o princípio democrático da gestão e a expansão do acesso à educação de qualidade, na medida em que se diminui o papel governamental, prioriza-se as parcerias público-privadas e se mantém distância do diálogo com a sociedade civil.


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Nesse sentido, a política de educação mineira, assim como as demais políticas que visam ao acesso a direitos sociais, vem sofrendo fragmentações, atrelamento ao setor privado, buscando apenas configurar-se bem, de forma quantitativa, nos rankings nacionais e internacionais da Educação. Segundo pudemos averiguar na cartilha “Dez razões para transformar a educação em Minas”, de autoria do presidente do Sinpro Minas, Gilson Reis, os efeitos da priorização estatística, como forma de vitrine de governo, para a educação pública em Minas, vem trazendo conseqüências desastrosas: Na contramão dessa busca por um bom posicionamento nas estatísticas, observa-se uma série de problemas, agravados no curso dos 8 anos de gestão: a) aprofundamento das desigualdades regionais; b) a falta de investimento em infraestrutura; c) o desestímulo dos profissionais da educação – que têm um dos piores salários do país; d) a preocupação com um número reduzido de escolas e o abandono de milhares; e) a falta de democracia na gestão e na garantia dos conselhos; f) a estigmatização da educação do campo e o abandono da educação indígena e quilombola (Reis, 2010, [s.p.]).

O foco na perseguição de metas e controle de resultados – decorrentes dos objetivos da gestão empresarial do Estado – ocupa-se diuturnamente com dados quantitativos da educação pública, deixando de lado a preocupação com a qualidade e o acesso à educação. Nos tópicos a seguir, analisaremos alguns aspectos mais flagrantes do descaso que a educação pública mineira vem sofrendo. Sobre o diagnóstico da educação mineira, na gestão Aécio Neves, segue levantamento do sociólogo Rudá Ricci, elaborado para o documento do Movimento “Educação que Queremos”: Minas Gerais sofreu, nos últimos seis anos, uma queda no ranking nacional (vinculado aos resultados do ENEM e SAEB), de 1º colocado para a 4ª colocação (abaixo do Distrito Federal, Rio Grande do Sul e Paraná). A situação é ainda mais grave porque o


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desempenho dos alunos mineiros vem decaindo nos últimos quatro anos. Em 1997, Minas Gerais atingiu o primeiro lugar no ranking estabelecido pelo SAEB. Em 2001, caiu para o 4º lugar. No PROEB-SIMAVE, apenas 19,7% dos alunos de ensino médio atingiram o nível recomendado. Nos resultados do ENEM 2005, Minas Gerais ficou pouco acima da média nacional. Em relação à Região Sudeste, esteve abaixo de Rio de Janeiro e São Paulo (na prova objetiva) (Movimento Educação que Queremos, 2009).

Tal deficiência ainda se verifica nos dias atuais. No IDEB de 2011 o Estado de Minas Gerais atingiu, em relação à avaliação do Ensino Médio – cuja responsabilidade prioritária é do estado –, a nota de 3.7 mantendo-se em quarto lugar no ranking. A queda verificada desde 2005 demonstra a incapacidade de recuperação nos resultados orientados pela política educacional do estado.4 Além disso, ainda sobre o Ensino Médio, na avaliação do SIMAVE/PROEB, a rede estadual atingiu o pior resultado de proficiência média em Língua Portuguesa desde sua primeira aplicação, em 2008. Ainda apresentou queda significativa na proficiência média em Matemática em relação a 2010.5 No que tange à competência prioritária dos estados, definida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional (1996), a análise que o Movimento Educação que Queremos realizou em 2009 da educação no Ensino Médio em Minas Gerais constatou que, segundo dados oficiais: 1. Do total de 3.905 escolas da rede estadual, apenas 80 se dedicam exclusivamente ao Ensino Médio; 2. Em 26 (2,9% do total, sendo que o índice da região sudeste é de 1,5%) municípios mineiros não existem escolas que ofereçam Ensino Médio;

4 Disponível em: <http://ideb.inep.gov.br>. 5 Disponível em: <http://www.simave.caedufjf.net/proeb/resultadosescala>.


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3. Na última década, o número de matrículas no Ensino Médio da rede de ensino estadual aumentou em 111,5% (o aumento nacional, no período, foi de 57,4%); 4. Menos da metade dos jovens entre 15 e 17 anos de idade chegam ao Ensino Médio mineiro na idade apropriada. 5. A gestão atual, a Secretaria de Estado de Educação (SEE-MG), a partir de fevereiro de 2013, adotou a instalação de placas com a nota do IDEB na porta de cada uma de suas escolas estaduais. Tal atitude reflete o compromisso estrito do governo do PSDB com o “marketing” educacional, em detrimento de verdadeiras melhorias na qualidade, acompanhadas do diálogo com a comunidade escolar. Dessa forma, escolas com notas baixas afixadas em suas portas são ainda mais desvalorizadas pela comunidade, bem como seus profissionais são responsabilizados por tal avaliação. Segundo o sindicato da categoria: Não há diálogo sobre as condições de trabalho, não há política preventiva que modifique o quadro de adoecimento do professor e a Secretaria insiste em ignorar a realidade da escola pública estadual. A ideia de exposição e responsabilização do professor não é nova. Outros países a adotaram e já avaliaram os erros de um sistema que não significou mais qualidade à educação. Só a Secretaria de Educação de Minas Gerais insiste no erro. Educação é o espaço do debate, da reflexão, da construção coletiva: tudo o que não temos (SindUTE, 2013).

Quanto ao currículo, a proposta de estrutura curricular oficial do Estado não consegue nem mesmo acompanhar as sugestões de articulação de áreas de conhecimento sugerido pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio. Passados alguns anos, percebese que a situação não se alterou. O currículo do Ensino Médio não se articula com o do Ensino Fundamental, favorecendo a desconexão do aprendizado e o desestímulo do jovem pelo estudo.


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A POLÍTICA DE FOCALIZAÇÃO E SEUS IMPACTOS NEGATIVOS NA UNIVERSALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO A garantia de eficiência e da eficácia de um governo gerencial compromete-se com políticas universalistas. Ora, como lograr êxitos estatísticos em tão pouco tempo fazendo políticas de longo alcance? Nesse sentido, a opção clara da gestão do Estado de Minas Gerais, desde 2003, tem sido a focalização. Ou seja, ao invés das ações serem tomadas de forma abrangente, vê-se uma seleção de alguns casos para que se tornem modelos, referência de determinada política, deixando à deriva aqueles que não foram selecionados. Opção clara de um governo que se pretende meramente enquanto vitrine eleitoral. A focalização na área da educação, proposta pelo Governo de Minas, subdivide-se em duas frentes: a) Atuação contundente apenas sobre escolas de regiões vulneráveis (risco, violência e dificuldades de aprendizagem). b) Implantação das Escolas-referência (escolas modelo). As prioridades efetivamente adotadas pelo governo, a partir da gestão Aécio Neves, são claras na adoção das políticas das chamadas “escolas-referência”. Esse modelo aprofunda as desigualdades regionais, contrariando a lógica da inversão de prioridades, na medida em que prioriza apenas uma minoria de escolas, criando-se as chamadas “ilhas de excelência” em meio ao abandono de cerca de mais de 3.000 escolas da rede estadual que não são contempladas pelas mesmas ações. Vejamos no Gráfico 1, elaborado pelo Movimento “Educação que Queremos” a partir de dados oficiais, os desníveis claros na implantação desse modelo.


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Gráfico 1 Número de Escolas-referência por município

Fonte: Movimento “Educação que Queremos”, 2009.

O gráfico apresenta a distribuição de Escolas-referência no Estado de Minas Gerias, divulgada no ano de 2009. Nota-se a implantação desses modelos em municípios representativos de todas as regiões do estado. Porém, a desigualdade dessa política é bastante salientada. É de se admirar que a barra em destaque, a qual atinge quase 50% dos casos,


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refere-se à Região Metropolitana de Belo Horizonte. A crítica em si não se refere à implantação das escolas-referência. As melhorias, pelo menos no que tange à infraestrutura e gestão escolar, são bem-vindas. Porém, as medidas têm que ser universalizadas. Todas as escolas devem ser modelos, exemplos de excelência, sob pena de infringir uma garantia constitucional de igualdade dos cidadãos perante a lei e universalização do acesso ao direito à educação. As desigualdades salientadas ainda são mais perceptíveis quando observamos o gráfico da distribuição das Escolas-referência agrupadas por região de planejamento no estado: Gráfico 2 Escolas-referência, por região de planejamento

Fonte: Movimento Educação que queremos, 2009.

A partir desse gráfico, observa-se que as regiões contempladas foram (em ordem de prioridade): região central, região sul, região norte e Triângulo Mineiro. Essa lógica, inclusive, além de ferir princípios de igualdade de acesso, não reflete correspondência lógica com as prioridades de investimento em melhoria de qualidade presentes no documento oficial do Plano Decenal de Educação do Estado, que previu um investimento maior em áreas vulneráveis do estado. Ao contrário, o diagnóstico apresentado no documento oficial do Plano Decenal conflita com as prioridades efetivas adotadas pela Secretaria Estadual de Educação, como fica claro através da implantação das Escolas-referência.


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O que se coloca em questão é que a política de Educação no Estado de Minas Gerais, bem como nas demais áreas sociais, deveria dar ênfase na inclusão social e adoção de parâmetro republicano de oportunidades iguais a todos os cidadãos, objetivando a universalização do acesso a esse direito.

O TRABALHADOR DA EDUCAÇÃO EM MINAS: DESVALORIZAÇÃO E DESESTÍMULO6 A atual administração estadual não considera os trabalhadores em educação como agentes, na construção da educação de qualidade no estado, mas como os primeiros e principais culpados quando não se atingem os níveis esperados de desempenho e aprendizagem. Assim como individualizam o diagnóstico, também individualizam a solução ao adotar a premiação para professores por desempenho de suas turmas. Vejamos em que condições encontram-se estes profissionais, que são cobrados com tanta rigidez. O primeiro desafio é o da formação. Grande parte dos docentes não tem licenciatura. Daqueles que têm licenciatura grande parte não tem habilitação para as áreas em que lecionam. Estranhamente, um programa de êxito na formação em nível superior dos professores – o Veredas – não foi levado à frente. Além disso, não existe um projeto concreto de formação continuada, em serviço para os profissionais da educação em Minas. A qualidade da educação passa, necessariamente, pela valorização do trabalhador em educação: Em primeiro lugar, qualquer que seja a prática de que participemos, a de médico, a de engenheiro, a de torneiro, a de professor, não importa de quê, a de alfaiate, a de eletricista, exige de nós que a exerçamos com responsabilidade. Ser responsável no desenvolvimento de uma prática qualquer implica, de um lado, o cumpri6 Esta seção teve, em grande parte, como fonte texto elaborado pelo historiador e pesquisador Reinaldo de Lima Reis Jr. Também foram utilizadas informações do SindUTE e do SindUEMG.


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mento de deveres, de outro, o exercício de direitos. O direito de ser tratado com dignidade pela organização para o qual trabalhamos, de ser respeitados como gente. O direito a uma remuneração decente. O direito de ter, finalmente, reconhecidos e respeitados todos os direitos que nos são assegurados pela lei e pela convivência humana e social (Freire, 2003, p. 89).

Outro aspecto a se salientar é que a identidade do profissional da educação no nosso Estado está fragmentada. É possível encontrar em uma sala dos professores de qualquer escola em Minas pelo menos quatro tipos de professores: o professor efetivo; o efetivado; aquele que está em estágio probatório e o designado. Sem falar nos quase 30% dos profissionais que não têm a qualificação necessária para o exercício do magistério, sendo as áreas críticas de Química com 43% e Física com 55% dos profissionais sem a habilitação necessária para lecionar nessas áreas. Não existe um projeto de formação continuada, em serviço para esses profissionais em Minas. Este é o quadro atual: a) Professor efetivo: aquele que passou por concurso público e adquiriu a estabilidade, regido como estatutário; b) Professor efetivado: aquele que não passou por concurso público, teve adquirido o direito de ocupar o cargo através da lei complementar nº 100. Não goza da estabilidade e de vários direitos garantidos ao servidor público; é celetista. c) Estágio probatório: aquele que passou por concurso público, mas ainda não concluiu os três anos iniciais de sua carreira; é regido como estatutário. Passa por avaliação específica até poder alçar o status de professor efetivo; d) Designado: aquele que não passou por concurso público; é contratado, regido como celetista; trabalha por contrato com prazo determinado.


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Além disso, Minas não implementa o piso salarial nacional, e o governo ainda apoiou os governadores que entraram com Ação de Inconstitucionalidade da Lei do Piso no STF.7 Os planos de carreira dos servidores das redes estadual e municipais estão defasados. A grande maioria dos profissionais está sob o regime do contrato temporário. No ano de 2010, final da primeira gestão do Governador Anastasia, os trabalhadores da educação em Minas Gerais, organizados pelo seu sindicato, promoveram uma greve de aproximadamente 100 dias, reflexo da precarização de suas condições de trabalho e da recusa do Governo do Estado de Minas Gerais em cumprir a Lei do Piso da Educação nacional. Para continuar com projeto de arrocho salarial os planos de carreira dos servidores das redes estadual, que já era defasado, se tornou ofensivo com introdução do subsídio na carreira e destruição das progressões salariais. Neste ano, 2013, segunda gestão do governador Antônio Anastasia com a professora Ana Lúcia Gazzola à frente da pasta da Educação, a situação de precarização das condições dos trabalhadores ainda não vê uma solução próxima. Segundo a direção do sindicato, o ano letivo já começa caótico. A falta de professores na rede estadual é flagrante, sendo que as 15 mil vagas para professor, divulgadas no último concurso, não foram preenchidas, e os 40 mil professores designados não foram autorizados a trabalhar. Outro aspecto que trouxe desconforto pelo descaso com a qualidade da educação é que as aulas de Educação Física, antes ministradas por professores habilitados, foram compulsoriamente dadas para os antigos professores regentes do Fundamental das séries iniciais, sem habilitação na área. Há, também, a denúncia do sindicato com relação à superlotação das salas, fusão de turmas pela falta de professores, alunos

7 Em abril de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4167, movida pelos governadores dos estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Ceará contra a Lei 11.738/2008, que institui o Piso Salarial Profissional Nacional e destina, no mínimo, 33,3% da jornada de trabalho dos professores em atividades fora da sala de aula, como formação continuada, planejamento, formulação e correção de provas e trabalhos, atualização profissional e outras (APEOESP).


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dispensados antes do término do turno de aula ou ficando na escola sem aula, apenas cumprindo horário. Dentre todos os aspectos levantados, é de se salientar uma parte do Manifesto que criou o Fórum em Defesa dos Serviços e Servidores Públicos de Minas Gerais, que evidencia a situação deficitária dos servidores do Estado de Minas Gerais, atingindo, sobremaneira, o trabalhador da educação: (...) o tão alardeado “choque de gestão” de Minas retirou direitos históricos dos servidores, tais como: fim dos quinquênios para quem ingressou no serviço público a partir de 2003 e redução dos quinquênios para quem ingressou antes dessa data; fim de políticas salariais conquistadas em governos anteriores; fim do apostilamento; quebra da estabilidade do servidor por insuficiência de desempenho, por meio de avaliação com critérios subjetivos e punitivos, conferindo superpoder às chefias, sendo Minas o único ente da Federação onde isso ocorre; redução da presença do Estado em função das privatizações, fechamento de órgãos importantes e terceirização do serviço público (Fórum de Defesa dos Serviços e Servidores Públicos de Minas Gerais, 2013).

GESTÃO DEMOCRÁTICA: UMA REALIDADE DISTANTE A gestão compartilhada e participativa pressupõe discussão coletiva visando à autonomia da escola, bem como o envolvimento da comunidade escolar – principal interessada – no desenvolvimento das políticas educacionais, e é prevista tanto na Constituição da República quanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Seu sentido é ampliado no que tange ao espectro democrático, como bem argumenta a professora Ana Carmem Muniz Mendonza: A fundamentação da gestão participativa está na constituição de um espaço público de direito que promova condições de igualdade, garanta estrutura material para serviços de qualidade e crie um ambiente de trabalho coletivo que vise à superação de um sis-


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tema escolar seletivo e excludente. Para tanto, faz-se necessário colocar em prática uma gestão que estimule a participação dos diferentes segmentos sociais, permitindo o trabalho de valorização da dimensão humana e proporcionando uma ação prática-criadora que explicite as contradições existentes no cotidiano do trabalho. A gestão participativa prevê uma organização em que predominam as decisões coletivas, sempre pensadas à luz de um contexto mais amplo, que extrapolam os muros da escola. A participação dos diferentes segmentos na construção e decisão do projeto político-pedagógico escolar no município não acontece de forma espontânea, mas sim, realiza-se a partir da conscientização e perseverança de todos, bem como na criação de mecanismos de participação que viabilizem as intenções coletivas (Mendonza, 2011, [s.p.]).

Para Saviani (1996) a gestão democratizada da educação é responsável por garantir a qualidade da educação, pois deve ser entendida como um processo de mediação no seio da prática social global, por se constituir em um mecanismo de humanização e de formação dos cidadãos. A gestão da educação necessita ser vista a partir dos contextos social, econômico, político e cultural. O governo de Minas Gerais adota, desde 2003, a concepção de uma gestão centralizadora da política de educação, tanto no que tange à administração escolar quanto na gestão das políticas educacionais. Segundo o sindicato da categoria, não há nenhum mecanismo de diálogo com a comunidade escolar, sendo que a mesma não é ouvida em relação às demandas da escola. O que se observa é que a gestão se encerra nas salas dos tecnocratas do governo e as escolas são submetidas às superintendências, sem autonomia, com inspetores fiscalizando o trabalho dos professores, bem mais preocupados com os diários, as notas e as folhas de ponto do que com a educação em si. A elaboração democrática dos projetos pedagógicos e a melhoria do ensino ficam para último plano.


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O CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO: MONOPÓLIO E CENTRALIZAÇÃO A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 204, inciso II, assegura a formulação e o controle das políticas públicas através da participação da população por meio das suas organizações representativas, em todos os níveis da Federação (união, estados e municípios). Baseados nessa diretriz, os conselhos gestores de políticas públicas, instâncias criadas a partir da luta da sociedade civil no processo de redemocratização política brasileira, representam um espaço de partilha da gestão dessas políticas entre governo e setores organizados da sociedade civil. Pressupõem cessão de soberania por parte dos governos, assim como um espaço amplo de democracia e de participação direta da sociedade brasileira. Nesse sentido, os Conselhos Estaduais de Educação representam as instâncias de deliberação de políticas e de controle da educação no âmbito estadual. Para cumprir seu papel democrático, necessária se faz a garantia de representação dos setores da sociedade civil diretamente interessados, como os trabalhadores da educação (setor público e privado), alunos, pais, assim como demais segmentos sociais envolvidos na temática e comprometidos com a qualidade e o acesso à educação. Conforme estudo elaborado pelo Sinpro Minas, baseado na comparação de trajetórias e de instrumentos normativos dos Conselhos Estaduais de Educação no Brasil, o Conselho Estadual de Minas Gerais é um dos menos democráticos do país, contrariando as diretrizes da Constituição Federal de participação direta e ampla da população na formulação de políticas públicas. O regimento interno do órgão não assegura, por exemplo, a participação de representantes de pais, alunos e trabalhadores, diferentemente de outros estados brasileiros, onde os regimentos dos conselhos preveem a garantia de paridade na representação. Outro aspecto a salientar é que a grande maioria dos membros do Conselho em Minas representa interesses do setor privado de educação, demonstrando, assim, o descompromisso do governo mineiro com a democratização e a transparência da instância. Outra irregularidade apontada pelas entidades ligadas à educação é a forma de escolha dos conselheiros. A nomeação para um mandato


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de quatro anos e a recondução ao cargo ficam a critério do governador. Para piorar a situação, a lei delegada 172 de Minas Gerais, de janeiro de 2010, estabelece que os conselheiros não precisam mais passar pela sabatina dos deputados estaduais, como ocorria anteriormente, fragilizando, ainda mais, o controle social do Conselho. Dentre os conselhos analisados no país, é, também, um dos que apresenta o menor percentual de renovação de seus membros, consolidando assim seu caráter pouco democrático e de acesso restrito. Dessa forma, cumpre salientar que se faz urgente e necessária a democratização do Conselho Estadual de Educação, principalmente a partir das seguintes medidas a se tomar: • Transformação do Conselho em uma política de Estado e autônomo da vontade política dos governos ou partidos para o seu pleno funcionamento; • Democratização da sua composição, assegurando uma participação equânime que contemple todos os segmentos sociais envolvidos na temática; • Indicação direta dos segmentos sociais pelas suas entidades representativas e não pelo governador do Estado. • Condições necessárias para assegurar o caráter e a efetividade deliberativa dos Conselhos (incluindo-se os municipais).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: UM ACESSO AINDA MAIS RESTRITO A LDBEN, lei Nº 9394/96,8 preconiza o princípio da colaboração, quanto à organização dos sistemas de ensino, entre os entes federados, e exprime questões importantes sobre a necessidade de adequação dos tempos, espaços, conteúdos e formas escolares quando se tratar da educação indígena, na zona rural e em comunidades quilombolas. 8 Cf. Artigos 26, 26A, 27, 32, 78, 79 da Lei Nº 9.394/96.


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Segundo levantamento realizado pelo Projeto Quilombos Gerais/CEDEFES (2006), 33% das comunidades quilombolas do Estado (49, do total de 147 comunidades) não possuem escolas até 4ª série primária. A estrutura física, na maioria das vezes, é bastante precária. Muitas escolas funcionam ao ar livre, em prédios em péssimas condições ou em igrejas. Geralmente, em decorrência do pequeno número de alunos, as aulas são com turmas seriadas. A mesma situação se dá nas comunidades indígenas. A formação do professor que leciona nas comunidades indígena e quilombola e a proposta pedagógica do ensino estão muito aquém da realidade e da necessidade daqueles cidadãos. O professor, quando não é da comunidade, dificilmente consegue adentrar no mundo etnicamente diferenciado dos alunos. Há algumas exceções, como a escola da comunidade de Barro Preto, no município de Santa Maria de Itabira, onde há até um museu sobre a história do povo quilombola, organizado pelos próprios moradores. A quantidade de escolas até a oitava série diminui em mais de 25%. Os problemas são os mesmos das escolas até a 4ª série, mas a obrigatoriedade da implementação da Lei 10.639, que inclui o ensino da história da África e dos afro-brasileiros, ainda não acontece. Segundo o mesmo levantamento indicado anteriormente, 91,4% das comunidades quilombolas não possuem escolas até 8ª série. Os dados oficiais indicam que Minas Gerais possui um total de 5.899 escolas rurais (1/3 do total de estabelecimentos de ensino), predominantemente situados nas redes municipais. As escolas rurais e pequenas possuem bom desempenho, segundo as avaliações do SIMAVE. Das 500 escolas de mais alto desempenho em Minas, de acordo com o PROALFA (Programa de Avaliação da Alfabetização), 18,2% são escolas rurais pequenas. Contudo, a concepção pedagógica da grande maioria das escolas rurais brasileiras (incluindo as mineiras) desqualifica a cultura rural. Estudo coordenado por Maria José Carneiro, cujo público-alvo foram jovens rurais residentes em Nova Friburgo (RJ) e Nova Pádua (RS), indica a educação regular como elemento estranho às suas vidas, embora compreendida como necessária. O estudo revela, ainda, que após a 4ª série primária o jovem rural que continua seus estudos regulares migra, em sua maioria, para a cidade. Procuram empregos como empregados do-


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mésticos, no pequeno comércio ou na construção civil. Nas pesquisas recentes, a velha tradição de o filho mais novo ficar no meio rural já começa a desaparecer. Fica quem possui menor vocação para o estudo. Esse estudo revela que 83% dos jovens entrevistados informaram que não gostariam de permanecer na atividade agrícola, porque é um trabalho pouco rentável, sem futuro, instável, sem recompensa, duro, pesado e sujo. O currículo e a organização do tempo das escolas rurais regulares é todo urbano, não respeitando a lógica da agricultura, os valores, os tempos (como a época da colheita, que ocorre em maio e junho, sendo este último o mês tradicional das festas rurais, absolutamente desconsiderada no calendário oficial). A única proposta diferente em Minas Gerais é a iniciativa, de responsabilidade da união, das Escolas Famílias Agrícolas, EFA’s. As 12 Escolas Famílias mineiras atendem um total de 1.434 alunos, sendo 474 nas séries finais do Ensino Fundamental e 960 no ensino Médio. Em média, cada escola atende 110 alunos, sendo eles, na sua maioria, filhos de agricultores familiares, meeiros, assalariados agrícolas e assentados rurais. Apenas um pequeno percentual, em torno de 5%, são jovens oriundos de famílias de médios agricultores. Essas escolas envolvem, indiretamente, no seu projeto educativo, uma média de 2.150 famílias de agricultores, em 240 comunidades rurais de 43 municípios. O número de monitores envolvidos nas experiências educativas das Escolas Família Agrícola em nosso Estado encontra-se, atualmente, em torno de 109 profissionais que atuam no Ensino Médio e Fundamental, sendo 55% do sexo masculino e 45% do sexo feminino. A formação profissional desses monitores é bastante diversificada, variando entre as áreas de Ciências Humanas, Ciências Exatas e Ciências Agrárias. A maioria dos monitores apresenta uma formação em nível médio, sendo que apenas 41% possuem nível superior. Em Minas Gerais, decreto do governador do Estado (43.978, de 2005) regulamentou a Lei 14.614, de 2003, que institui o programa de apoio financeiro à escola família agrícola de Minas Gerais, e autorizou a Secretaria de Estado de Educação a conceder bolsa a alunos matriculados em escolas famílias agrícolas do de Minas Gerais. A SEEMG anunciou, em 26 de novembro de 2008, que a bolsa para os alunos das Escolas Família Agrícola (EFA’s) seria reajustada no ano de 2009. O


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novo valor teria como base o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (Fundeb) e deveria aumentar os repasses em mais de 30% para o Ensino Fundamental e em mais de 46% para o Ensino Médio. A Associação Mineira de Escolas Família Agrícola (AMEFA) divulgou que o custo do aluno da EFA é de R$ 3,3 mil por ano e que seriam necessários cerca de R$ 524 mil para a aplicação na infraestrutura das escolas. Entretanto, o reajuste só aconteceu no ano de 2010, através da resolução da SEE 1585/2010, que estabeleceu o valor da bolsa em R$2034,18 para o aluno de tempo integral do Ensino Fundamental.

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: A PRIVATIZAÇÃO DE UM DIREITO PÚBLICO No que tange à educação profissionalizante, o Estado não privilegia uma qualificada formação inicial para o trabalho. Como se sabe, Minas Gerais não possui uma rede estadual própria de ensino técnicoprofissionalizante. O governo optou pela terceirização e a privatização direta dessa modalidade de ensino. O Estado se isenta de elaborar currículos de educação profissional que atendam a necessidade de formar os jovens para o exercício do direito ao trabalho, respeitando as exigências de desenvolvimento nacional e regional e estimulando as vocações produtivas regionais. Para um programa que teve um investimento previsto para a edição 2011 de R$119.937.149,26 e que pretende ultrapassar a marca de 168 mil jovens atendidos com investimentos de R$439 milhões, o governo deveria observar: • A elaboração de currículos próprios de Educação Profissional com formação direta para o exercício da atividade profissional observando a demanda regional; • A criação de uma rede de educação profissional pública no Estado de Minas Gerais, abolindo a terceirização dessa modalidade e o repasse de recursos públicos para as instituições privadas.


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EDUCAÇÃO SUPERIOR: UMA UNIVERSIDADE DE FATO? A Educação Superior em Minas Gerais sofre um grave processo de sucateamento. Sabe-se que a compatibilização almejada no Plano Decenal de Ensino do Estado de Minas Gerais (2011) ocorre a partir do diálogo estreito entre Educação Básica e Educação Superior, já que nos quadros da segunda são formados os professores que atuarão na primeira. Porém, o diálogo entre a Secretaria de Estado de Educação e a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia não está estabelecido. As metas propostas no Plano Decenal parecem não se atentar às possibilidades concretas e à série histórica de ações públicas. Uma ilustração é a sugestão de provimento, até o final da vigência desse Plano, da oferta da Educação Superior para 100% (cem por cento) dos concluintes do Ensino Médio e, pelo menos a 30% (trinta por cento) dos jovens de 18 a 24 anos, garantindo igualdade de oportunidades e equidade. Contudo, o investimento feito nas Universidades Estaduais mineiras ainda é muito pequeno, inviabilizando qualquer possibilidade de se atingir a meta de oferta da Educação Superior em 100%. A União tem investido muito mais do que o Estado na abertura de novas Universidades Federais (inclusive em território de risco como o Vale do Jequitinhonha e Mucuri), enquanto Minas Gerais tem na região a Unimontes, que com mais insumos do governo de Minas poderia cumprir mais alargadamente o seu papel. Enquanto a União cria o PROUNI, o REUNI e outros programas de bolsas e de expansão do Ensino Superior oferecendo possibilidades a milhares de alunos de ingressar nas Universidades, a UEMG, criada há 20 anos pela Constituinte Mineira, aguarda a construção do Campus de Belo Horizonte nos terrenos da Cidade Nova. Sendo universidades públicas, gratuitas e de excelente qualidade, essas Universidades Estaduais poderiam somar suas ofertas às das federais e particulares, expandindo o leque de possibilidades na capital, onde a UFMG não consegue atender toda a demanda por educação pública e no interior, através de campi regionais públicos, de cursos fora de sede, da criação de novos cursos, além de uma grande expansão do ensino a distância.


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Entretanto, em Minas a situação da UEMG é confusa, tendo em sua rede incorporadas instituições privadas em diversas cidades, que, porém, usufruem de equipamentos públicos para o seu funcionamento. Os indicadores de produção em Ciência e Tecnologia da UEMG e da Unimontes não são comparáveis às análogas UERJ e USP, além da defasagem salarial e do Plano Carreira dos docentes da Educação Superior em Minas Gerais. Nota-se um grande número de professores na situação de designados, conforme visto na seção “O trabalhador da educação em Minas: desvalorização e desestímulo”, que compõem em larga escala o quadro de docentes da UEMG. Com relação ao Plano Decenal de Educação do Estado de Minas Gerais, é flagrante que a parte da Educação Superior é mais frágil e menos propositiva, explicitando, portanto, o desinteresse do Governo do Estado por esse nível de ensino. A partir do ano de 2013, percebe-se, frente às pressões dos sindicatos das categorias, uma tentativa de ampliação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e das condições do Ensino Superior com ações conjuntas de discussão entre a Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia – ainda que sem o convite ao sindicato da categoria, SindUEMG, para a democratização do diálogo. As projeções de conclusão do encampamento e estadualização de algumas unidades, a implantação da Universidade Aberta Integrada (UAI Tec), bem como o estabelecimento de um efetivo Plano de Carreira, está previsto para o início do ano de 2014. Porém, nenhuma ação concreta, até a presente data, tem sido observada nesse sentido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação em Minas Gerais apresenta então uma proposta inadequada e que descumpre a universalização do direito social legalmente constituído. Direito este indisponível por parte do cidadão e dever do Estado, que nos últimos 10 anos de gestão do Estado de Minas Gerais, por opção ideológica de seus governantes, não tem garantido o cumprimento deste dever do estado.


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Este artigo apresentou uma análise das políticas de educação de forma a argumentar a respeito do descumprimento do dever de universalização do direito à educação no estado de Minas Gerais. Nesse sentido, é importante observar que em todos os níveis e modalidades de educação, previstas em lei infraconstitucional, há um sucateamento e uma opção de gestão que impossibilita a garantia de um processo de qualidade da educação estadual. Ao adotar um projeto de mercado, o governo de Minas Gerais traz consequências extremamente complicadas para o processo educativo, desvalorizando o profissional da educação, impedindo a democracia e autonomia na gestão das escolas e sucateando a infraestrutura material e pedagógica. Esta escolha leva necessariamente ao descumprimento do direito constitucional da educação de qualidade aos cidadãos mineiros. Partimos de algumas propostas para tentar alcançar a universalização e a democratização da educação em Minas Gerais como um direito constitucionalmente assegurado: • Aumento do investimento em educação no valor de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) de Minas a cada ano, nos próximos 10 anos, sem prejuízo do percentual já previsto em lei; • Extinção imediata da política de focalização – como as Escolasreferência – adotando estratégias universais de qualidade para todo o sistema; • Valorização dos Educadores da Rede Estadual com implantação do piso salarial nacional dos professores; • Realização de concursos públicos periódicos para preenchimento de vagas; • Garantir a formação continuada dos profissionais em educação dentro de sua jornada de trabalho; • Gestão Participativa em todo sistema;


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• Investimentos e políticas públicas para diminuir desigualdades regionais; • Garantir o atendimento da alimentação escolar de qualidade; • Desenvolver, ampliar e implementar programas de formação continuada, em serviço, para todos os profissionais da educação; • Garantia aos profissionais da educação do ingresso, permanência e conclusão gratuitas em curso superior de graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado com liberação remunerada; • Reduzir o número de servidores com contrato temporário na rede pública; • Garantia dos padrões de atendimento do Ensino Médio, abrangendo os aspectos relacionados à infraestrutura física, ao mobiliário e equipamentos, aos recursos didáticos, ao número de alunos por turma, conforme legislação vigente, à gestão escolar e aos recursos humanos indispensáveis à oferta de uma educação de qualidade. • Atendimento de toda a demanda para o Ensino Médio dos alunos concluintes do Ensino Fundamental regular ou de Educação de Jovens, Adultos e Idosos e de todos que desejem retomar os estudos nesse nível de ensino, em todos os Municípios mineiros. • Implantar mais escolas de Ensino Médio no campo e desenvolver um currículo adaptado à realidade da população do campo. • Atualizar, com a participação da comunidade escolar, os projetos político-pedagógicos em todas as instituições de ensino; • Criação de uma rede estadual própria – pública, gratuita e de qualidade – de ensino técnico-profissionalizante, absorvendo a demanda estadual e rompendo com a terceirização da oferta de vagas nessa modalidade de ensino.


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• Democratização da composição do Conselho Estadual de Educação (CEE) com participação equânime de todos os segmentos sociais envolvidos com a educação; • Garantia da efetiva implantação das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo regular do Ensino Médio, em toda a rede estadual e municipal, com professores habilitados e concursados nas respectivas áreas; • Garantia dos padrões de atendimento da educação de jovens, adultos e idosos, abrangendo os aspectos relacionados à infraestrutura física, ao mobiliário e equipamentos, aos recursos didáticos, ao número máximo de 25 alunos por turma, à gestão escolar democrática e ao planejamento pedagógico, ao currículo, à organização do tempo escolar e aos recursos humanos indispensáveis à oferta de uma educação de qualidade. • Exigir que a Secretaria de Estado de Educação e as Secretarias Municipais de Educação elaborem, com a participação das escolas públicas, planos anuais de trabalho, em consonância com o Plano Nacional de Educação, o Plano Decenal de Educação de Minas Gerais e os respectivos Planos Decenais Municipais de Educação, assegurando o cumprimento de suas metas, a divulgação antes do início de cada ano letivo e a criação de fóruns permanentes de discussão e avaliação, com representação de todos os segmentos da educação. • Que as secretarias municipais e a SEE divulguem, trimestralmente, as aplicações dos recursos do Fundeb, salientando as atividades do Conselho perante as instituições da educação e a sociedade civil organizada.


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REIS, Gilson Luiz. Dez razões para transformar a educação em Minas. Cartilha. 2010. SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1996. SILVA, Lourdes Helena da. Educação Rural em Minas Gerais: origens, concepções e trajetória da Pedagogia da Alternância e das Escolas Família Agrícola. Educação em Perspectiva, Viçosa, v. 3, n. 1, p. 105125, jan./jun. 2012. SINDICATO ÚNICO DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO DE MINAS GERAIS. Radiografia da Educação Mineira. Publicação Especial. 2009.


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Virgílio de Mattos

SEGURANÇA PÚBLICA E SISTEMA PRISIONAL: POR QUE PRENDER OS POBRES EM MINAS GERAIS VIROU UM GRANDE NEGÓCIO?

INDISPENSÁVEIS PROLEGÔMENOS Vivemos tempos sombrios. Vivemos tempos muitos sombrios, em que já ultrapassamos o vergonhoso número de meio milhão de presos e presas no Brasil – sem contarmos aí os portadores mentais infratores e nem os adolescentes, tempo no qual o encarceramento total avança sem freios ou limites. Há quem festeje. Há quem ainda ache pouco. Há os que lucram com isso. Mas esta é uma realidade que vem ganhando corpo e força nos últimos 30 anos; para sermos mais exatos, essa política nasce nos EUA e na Grã-Bretanha no início dos anos de 1980, com os governos neoliberais de Reagan e Thatcher. E não pode ser considerada uma terrível coincidência o fato de que a única intervenção estatal que admitem os neoliberais, dos quais os autodenominados sociais democratas, ou tucanos, são os maiores expoentes no país, seja o cárcere. O mais trágico nisso tudo é que a única política pública que cresceu verdadeiramente nesses últimos 30 anos foi o encarceramento total ou o controle total, se vocês preferirem. Sempre da massa miserável dos sem nada, sequer a esperança. O curioso é que o Estado de Direito, ou Estado Democrático de Direito burguês, é quem vai permitir teoricamente a existência de um estado de contenção máximo para as chamadas, desde o século XIX, de classes perigosas. Aliás, melhor seria dizermos estado de polícia, em vez de Estado Democrático de Direito burguês. A grotesca solução para tudo que se passou a enxergar no direito penal a partir daí é deliciosamente explicada por Zaffaroni como a


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lógica do quitandeiro que não apenas é extremamente respeitável como também impecável, e com a qual nós, penalistas, temos muito o que aprender. Se uma pessoa vai a uma quitanda e pede um antibiótico, o quitandeiro lhe dirá para ir à farmácia, porque só vende verduras. Nós, penalistas, devemos dar este tipo de resposta saudável sempre que nos perguntam o que fazer com um conflito que ninguém sabe como resolver e ao qual, como falsa solução é atribuída natureza penal (Zaffaroni, 2007, p. 184-185).

Desse exemplo, podemos até atualizá-lo, pois no Brasil não se pode mais comprar antibióticos sem receita médica, a regulamentação de tudo o que se sabe e o que não se sabe passa necessariamente pelo direito penal e suas teorias mirabolantes das prevenções (geral, especial, negativa, positiva) como se fosse possível imaginar e acreditar que antes de cometer uma conduta que a classe dominante vai definir como sendo crime, o autor consulte a lei penal para ver que tipo de pena é imposto e desista de cometê-lo... Assim, a resposta penal a tudo que não é penal passou a ser admitida, querida e, sobretudo, incensada pela mídia.1 As necessidades básicas de habitação, educação, alimentação, saúde e “manejo” – como se faz com os animais – do proletariado e subproletariado são “atendidas” pelo cárcere. O encarceramento passa a ser também uma oportunidade de negócios, sobretudo no que diz respeito às famigeradas parcerias público-privada ou patifarias entre a privatização do público naquilo que não pode, jamais, ser privatizado e aqueles áulicos que lucram com isso. Aqui é fundamental termos claro em que circunstâncias nascem as penas privativas de liberdade e a que e a quem se destinam. Elas nascem com o capitalismo e são extremamente necessárias e largamente utilizadas para a domesticação dos corpos e das mentes. São revolucionárias a princípio, por mais estapafúrdio que isso possa parecer, pois afastam a punição do corpo (mutilações, torturas bárbaras como espetáculo público que só termina com a morte) e passam a gerir e reger o tempo como castigo e a exclusão como norma. 1 O tristemente célebre trial by media, ou julgamento pela mídia. Antecipadamente ao julgamento legal, sem direito a defesa, quem dirá ampla. Sem direito a recurso. Cuja condenação é sempre certa e inapelável.


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A exclusão como forma de inclusão é algo difícil de entender, mas facílimo de explicar: a velha neutralização do criminoso. O processo penal utilizado como perda da paz. Excluir para incluir é um contrassenso, mas justificou-se isso, durante um largo tempo, com a falácia das políticas à ré: re-educar, re-inserir, re-moldar, re-adaptar, re-generar pelo cárcere. Nada mais popularesco (völkisch, “um discurso que subestima o povo e trata de obter sua simpatia de modo não apenas demagógico, mas também brutalmente grosseiro, mediante a reafirmação, o aprofundamento e o estímulo primitivo dos seus piores preconceitos” (Zaffaroni, 2007, p. 15). É o remédio possível e indicado para toda e qualquer doença, quando as metáforas médicas passam a significar o “científico” nas questões sociais. Conseguimos perceber, sem necessidade de muito esforço intelectivo, que o pan-penalismo vem precedido das campanhas midiáticas de pânico, cujo exemplo mais significativo tem sido o de usuários de crack, sustentado em poucas científicas – para dizermos de modo elegante – noções de “epidemia”, “esfacelamento da família”, “ameaça ao Estado” e outras bobagens que nos atacam cotidianamente como miríades de pernilongos nas noites quentes de verão. Aqui também os que farejam “oportunidades de negócios” em tudo também estão presentes sob a denominação de “comunidades terapêuticas”, normalmente ligadas às seitas neopentecostais. Por trás disso o famigerado direito penal atuarial, que sopesa variáveis como uma companhia seguradora, não importando se Republicanos (EUA), Conservadores (GB) ou tucanos: a resposta penal estará impregnada do discurso das “soluções de mercado”, valores do “setor privado”, cumprimento de “metas”, política de “gestão”, como se estivéssemos sempre às voltas com as mercadorias vendidas ou vendíveis na quitanda do exemplo de Zaffaroni. Acabar com os pobres. É assim que o encarceramento total lê a necessidade de erradicar a pobreza. Enquanto isso se vai lucrando com a gestão da miséria deles, via cárcere ou campos de concentração com religião (comunidades terapêuticas) ou sem ela (hospitais psiquiátricos). O chamado controle atuarial das questões sociais, este sim, parece ter ficado reduzido a um triste e trágico “caso de polícia”.


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Bastaria que se cumprisse a Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/54) para que tivéssemos uma verdadeira revolução de dignidade em todo o sistema.

EXISTEM NÚMEROS CONFIÁVEIS? O QUE DIZEM OS NÚMEROS? Os dados que podemos ter acesso e com eles trabalhar são aqueles que o Ministério da Justiça, através do Departamento Penitenciário (DEPEN) torna públíco anualmente em formato eletrônico. Ainda que amplamente divulgado pela propaganda do Governo do Estado de Minas Gerais o chamado portal da transparência deveria se chamar portal “embaçado”. Não se consegue, ali, sequer determinar os gastos efetuados pela Secretaria de Defesa Social ou mesmo o reles custo de um preso por mês no Estado de Minas Gerais. Apesar de áridos e mudos, os números nos proporcionariam uma reflexão produtiva e eloquente. Há 118 unidades prisionais2 em Minas Gerais, embora para a totalização dos presos haja um inexplicável ballet de números. Se se cotejam os números do Estado de Minas Gerais com aqueles apresentados pelo Ministério da Justiça,3 podemos observar que ao contrário do que diz a propaganda do Governo do Estado, os números de presos em unidades prisionais da polícia civil (delegacias de polícia e cadeias públicas) é praticamente a metade do total geral. Obviamente que temos um subdimensionamento dos números relativos às medidas de segurança,4 que parecem fazer coro à velha má2 Disponível em: <https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=288&Itemid>. Acesso em: 22 mar. 2013. 3 Exemplificativamente aqueles apresentados em página eletrônica atinentes a dezembro de 2011. 4 Conferir nosso Sem rumo e sem razão – mapeamento dos cidadãos submetidos à medida de segurança em Minas Gerais, editado pelo Conselho Regional de Psicologia/Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, Belo Horizonte, em 2011.


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xima do interior da cadeia de que preso só faz falta na hora da contagem. O louco infrator parece não fazer falta sequer na hora da contagem. Se compulsarmos o total por profissão, em que temos claro que a posição de contenção é infinitamente superior (eram 11.316 Agentes Penitenciários no final de 2011) às demais, percebemos, ao contrário do que diz a propaganda, que há um baixíssimo número de profissionais da saúde; observe-se: Enfermeiros, 46; Auxiliar e Técnico de Enfermagem, 309; Psicólogos, 153; Dentistas, 51; Médicos, Clínicos Gerais, 46; Médicos, Ginecologistas, 2; Médicos, Psiquiatras, 22. Ainda de acordo com a mesma fonte, em Minas pode-se desenhar o seguinte perfil, para uma população relatada de pouco mais de 40mil presos: a prevalência em relação à escolaridade (total de 23.305) é o Ensino Fundamental incompleto. As penas até quatro anos também são prevalentes (7.008); e quanto ao tipo penal praticado, a acachapante maioria é de crimes contra o patrimônio (18.571), seguido pelos alcançados pela lei de tóxicos (7.295). O intervalo etário é o de 18 a 24 anos (12.798); e esses jovens são predominantemente pardos (18.452). O país, sempre de acordo com a mesma fonte, apresentava (os dados referem-se a dezembro de 2011) 541.582 presos para uma população de 190.732.694, o que nos dá o apavorante índice de 269,79 por 100mil. Destes, 3.247 está cumprindo medida de segurança de internação, o que é absolutamente inconstitucional.5 O sistema prisional conta com 1.103 psicólogos, o que nos dá uma média de um psicólogo para grupo de 500 presos. São apenas 467 advogados, ou um profissional para cada grupo de 1200 presos aproximadamente. São 221 psiquiatras (esse número não confere se cotejamos o quadro nacional). Convenhamos que já é um grupo relativamente grande para medicalizar a massa carcerária em consultas que, na maior parte das vezes, o médico vê o paciente da porta do consultório. Existem 32 manicômios judiciários, eufemicamente apelidados, desde 1984 (Lei. 7.209), de hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. À luva Foucault para o hospital que gera doenças, para a cadeia que gera crimes. 5 Cf. Os novos direitos dos portadores de sofrimento mental, na página eletrônica do Conselho Federal de Psicologia.


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À MODO DE CONCLUSÃO O Governo do Estado de Minas Gerais, em suas três últimas gestões tucanas, avançou para trás em termos de segurança pública e, principalmente, em termos de sistema prisional. Embora o gasto tenha sido enorme, sobretudo na propaganda. Prendeu mais e de modo pior, concentrando seus esforços em fazer parecer que em Minas vivia-se em uma ilha de tranquilidade, quando, na verdade, as tempestades metafóricas de crimes nem tanto açoitam os corações e as mentes. O aumento do número de crimes violentos é sempre objeto de um contorcionismo midiático, até que se deixe, enfim, de tocar no assunto. O medo invadiu os lares e uma política midiática de “salve-se quem puder, se puder” tomou conta de todos os homens e mulheres de bens, que insistem em ver no outro (geralmente pobre, negro ou pardo e morador de vilas e favelas) o grande satã. Ninguém diz absolutamente nada sobre as elites empreendedoras que ganham, que lucram com o encarceramento massivo dos sem nada. E a política do tudo penal, já parece não admitir discussão e, sequer, argumentação contrária. Brada que a lei penal é branda demais; acabar com essa bobagem de progressividade no cumprimento da pena privativa de liberdade, e outros absurdos de mesma origem: lucro a qualquer preço, se possível a baixo custo. É sempre bom poder mencionar a pesquisa acadêmica, do tipo que suja as mãos e os pés no contato direto, quer seja ele com o preso, quer seja com seus carcereiros, a solução de senso comum, mesmo ela é aqui inafastável, sob pena de que o ideal encarceratório continue avançando: A reinserção não é feita na prisão. É tarde demais. É preciso inserir as pessoas dando trabalho, uma igualdade de oportunidades no início, na escola. É preciso fazer a inserção. Que façam sociologia, tudo bem, mas já é tarde demais (Guarda carcerário da prisão central de Paris) (Wacquant, 2001, p. 120).


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Minas não tem feito senão mais do mesmo e do pior em termos de segurança pública (repressão localizada aos alvos comuns em tempos neoliberais: os sem nada) e sistema prisional; leia-se encarceramento em massa do subproletariado urbano. Exemplificativamente, no Índice Penitenciário - 20096 para o Estado de Minas Gerais, temos nos indicadores quantitativos um número de presos por 100.000 habitantes de 216,67; 8.035 era o efetivo de servidores penitenciários para uma população carcerária absoluta de 41.682. Em todo o país, sempre de acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, com todas as unidades da Federação, relativo ao mês de junho de 2012, apresenta um estarrecedor total de 549.577 presos e um índice de 288,14 por 100.000 habitantes. A política penalocêntrica traz consigo, e isso é pouco mencionado, também a contenção hospitalocêntrica dos denominados Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, apelido pomposo7 do velho manicômio judiciário, para contenção dos mais de 3.000 mil pacientes judiciários em regime de internação.8 Em junho de 2012 havia 71.679 agentes penitenciários e mais de dez mil apoios administrativos, causando espécie o baixo número de advogados (551), inferior até mesmo ao número de funcionários terceirizados exclusivo para tratamento (sic) penal (1.831). O número de policiais civis em atividade nos estabelecimentos penitenciários é baixo (140), sendo prevalente o emprego do policial militar (3.236), muitas vezes encarregado da própria gestão da unidade. 6 Ministério da Justiça - Departamento Penitenciário Nacional, Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen, acesso eletrônico à página no MJ. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBRIE.htm>. Acesso em: 30 abr. 2013. 7 Por força da Lei n. 7.209/84, que reformulou a parte geral do Código Penal brasileiro. 8 São mais de 700 aqueles em tratamento ambulatorial determinado judicialmente.


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Vinte e oito mil e seis presos declararam-se analfabetos e acachapante maioria (228.627) alega ter o Ensino Fundamental incompleto. Uma surpresa é haver mais de 50 mil presos, quase 10% do total, cumprindo até quatro anos, sendo o intervalo prevalente (88.369) o de mais de quatro até oito anos. Quinhentos e noventa e nove estão condenados a mais de 100 anos de pena privativa de liberdade, e de 30 até 50 anos são 25.295 – ambos os intervalos a constituir inconstitucional e intolerável pena de caráter perpétuo. O furto simples (art. 155, CP) ainda dá cadeia e prende muito; 35.769 presos é o número confirmatório. Cento e setenta e um presos por crimes ligados à lei de tortura (Lei. 9.455/97) e mais de 130 mil por comércio de substância ilícita impropriamente denominada de entorpecente. Cento e trinta e oito mil trezentos e sessenta e três presos situamse na faixa de 18 a 24 anos. E quase 300 mil declaram-se pardos (210.171) e negros (81.602). O Governo do Estado de Minas Gerais avança na propaganda e no inconfessável desejo de prender todos os pobres. Ao arremate, oportuno Wacquant: O estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção (...) condições de vida e de higiene abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e alimentação (...) aceleração dramática de difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classes populares (Wacquant, 2001, p. 11).

E você, que não está preso, o que tem feito para acabar de vez com o modelo neoliberal de encarceramento em massa de todos os sem nada, ou quase nada? Será que não poderíamos contar com você? POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS E PRISÕES!


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REFERÊNCIAS WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Freitas Bastos/ICC, 2001. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


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Vanderlei Martini QUESTÃO AGRÁRIA, REFORMA AGRÁRIA E VIOLÊNCIA NO CAMPO EM MINAS

QUESTÕES METODOLÓGICAS O presente artigo tem como objetivo central resgatar, ainda que de forma sumária, os aspectos quantitativos e qualitativos da Política Agrária no Estado de Minas Gerais e da Concentração Fundiária no País, no último decênio, relacionando com a permanência da violência no campo. Pretende-se, também, que sirva de subsídio para debates políticos e de memória histórica, sistematizada, para ir compondo um quadro mais aproximativo da realidade agrária mineira. Chamo a atenção do leitor que, numa reflexão prospectiva da Reforma Agrária (vista como um conjunto de medidas que possibilitaria o “bem viver no campo”) dentro dos limites de um artigo como este, há dois equívocos comuns, não excludentes entre si; o primeiro é a “fuga para o futuro”, ou seja, é a ausência de atenção para as realidades atuais. Como diz Netto (1996, p. 88), “saltar para diante é, frequentemente, uma boa saída para escapar as dificuldades presentes”. O segundo é a especulação, “converter a prospecção em operação especulativa”, ou seja, deter-se a análises que correspondem mais a vontade que a própria realidade objetiva. Como militante social, em especial do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), esses erros apontados podem não ser estranhos, pois, razão e sentimentos não estão separados. Em toda análise política devem pressupor a análise teórica, pois análises equivocadas necessariamente levam a derrotas, embora o acerto na análise em si não seja suficiente para garantir a vitória, porque esta requer, como condição subjetiva, povo organizado e em disposição de luta, e as condições objetivas, ou seja, conjuntura favorável. Noutras palavras, não necessariamente um bom diagnóstico econômico determina uma ação política correta, pois percebemos que há vários autores que acertam no diagnóstico e erram na política, outros cometem o erro in-


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verso, erram na análise a certam na política. Por isso, como premissa, um balanço sério da Reforma Agrária deve ser feito em cima de dados concretos, da realidade concreta e de forma crítica, para seguir a boa tradição marxista. É o que nos propomos neste pequeno ensaio.

INTRODUÇÃO A questão agrária surge no Brasil quando os portugueses aqui chegaram e se apropriaram das terras, massacrando as populações aqui existentes. Isso se agrava quando a terra se torna mercadoria, ou seja, a partir da primeira lei de terras de 1850 (lei n° 601), que estabelecia que somente poderiam deter a posse da terra aqueles que comprassem e pagassem por ela. Para recordar, lembramos que a abolição, oficial, da escravidão veio somente 38 anos depois da publicação da referida lei. Isso significa que, em 1850, somente poderiam “compra e pagar” a terra os brancos senhores de engenho, donos de comércio e da incipiente indústria, pois os negros eram escravos (os indígenas também), fato que não os possibilitava dispor de salário ou acúmulo financeiro para “comprar e registrar” a terra em seu nome. Assim, a lei de terras (Lei 601 de 1850) transforma a Terra em propriedade privada de poucos. Desde a invasão portuguesa (1500) até 1850, toda a terra era monopólio da Coroa Portuguesa e não mais dos povos autóctones que aqui habitavam. Se o capitalista português que aqui se estabeleceu quisesse investir em algum produto agrícola, eles teriam a concessão de uso de determinado território com direito hereditário. Os nobres que vieram ao Brasil poderiam substabelecer-se e transferir parte do território para que outros pudessem explorar, desde que se comprometessem a produzir para exportação – 95% eram exportados à metrópole portuguesa. Não havia compra e venda de terra. A terra não era propriedade privada ou mercadoria, e o trabalho utilizado nas fazendas de açúcar, de extração de minério ou de madeira, era o escravo. A lei de terras antecedeu o fim legal do tráfico de escravos, mas não o fim das classes, que ganhavam com o trabalho escravo. Não foi uma burguesia industrial antilatifundiária que aboliu o trabalhado escravo no Brasil, foi a própria classe senhoral, que se beneficiava dele,


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que, por pressão externa – da Inglaterra –, foi obrigada a lançar mãos ao trabalho assalariado, que acabou se tornado mais rentável à nascente burguesia brasileira. A visão dual (ou desenvolvimentista, ou melhor, neodesenvolvimentista e neoliberal) acredita erroneamente que o desenvolvimento do capitalismo resolverá o problema da pobreza e da desigualdade, não percebem que pobreza e desigualdade é resultado do desenvolvimento do capitalismo. Andre Gunder Frank diz (in Stedille: 2005 é no livro B ou 2) que o desenvolvimento econômico produziu o subdesenvolvimento como resultado do capitalismo mercantil (nos períodos colonial e imperial), e que aos poucos concentrou de forma extrema o poder econômico e político, e também o prestigio social, daí surge o monopólio, que em seu sentido moderno refere-se a concentração em todo universalmente interconectado, que continua produzindo desenvolvimento e subdesenvolvimento (Stedile, 2005b, p. 60).

Esse desenvolvimento simultâneo de riqueza e pobreza pode ser visto dentro de um mesmo País como faces de uma mesma moeda. O monopólio cumpre esse papel e cumprira cada vez mais; e é sabido que do monopólio da terra deriva outros vários monopólios. Em 1950, 0,6% dos proprietários detinham 51% da terra e no outro campo 81% dos proprietários tinham apenas 3% das terras agricultáveis. Hoje, segundo o último censo agropecuário, 1% dos proprietários tem 53% das terras agricultáveis, e isso só é possível porque um não existe sem o outro. Karl Kautsky, em seu célebre livro, A questão agrária, apontava para o fato de que o capitalismo, ao penetrar nos campos, provoca o fenômeno da concentração da riqueza, como ocorre na indústria. As grandes propriedades absorvem as pequenas e verifica-se a proletarização do campesinato, que não aguentam o peso dos impostos e das dívidas cobradas pelos capitalistas e latifundiários (Kautsky, 1969, p. 9).


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Atualizando sua assertiva, a mais de um século de distância, diria que os camponeses não aguentam o desdém dos governos em detrimento das prioridades dadas à grande propriedade. A agricultura tende a ir perdendo espaço, caso não haja um programa de Reforma Agrária para o setor industrial e de serviços. A “Reforma Agrária é um conjunto de medidas necessárias, essas mudanças representam a criação de um novo modelo agrário e agrícola que garanta desenvolvimento econômico, político e cultural para toda a população do campo e beneficie a população urbana” (Stedile, 2005c). Nessa perspectiva, é outro conceito que anda junto com a questão agrária, mas somente ganha a dimensão nacional na década de 1950/19601 do século XX, ou seja, 100 anos depois da 1° lei de terras e de já ter ocorrido na Europa, EUA, Japão, etc. processos de Reforma Agrária que ficaram conhecidos como clássicos. Isso porque, no período anterior, em primeiro lugar, não havia movimentos consolidados em âmbito nacional de luta pela terra e pela Reforma Agrária; as lutas eram localizadas; e em segundo lugar, as elites brasileiras conseguiram manter-se no poder fazendo as mudanças “pelo alto”, para usar uma expressão de Florestan Fernandes, pois a partir de 1822 a 1890, deu-se a independência, com a implementação do regime monárquico foi se alterarando radicalmente as estruturas econômicas e sociais, por cima, ou seja, mantendo-se as mesmas elites dominantes. Se examinarmos o Brasil da época colonial (1500-1822), éramos uma sociedade pré-capitalista, articulado com este através do mercado mundial, veremos que não existia sociedade civil forte; vivíamos sob o escravismo colonial. Não tínhamos parlamento nem partidos políticos, nem um sistema de educação que fosse além da catequese, nem o direito de imprimir livros; para Carlos Nelson, a independência (1822) resultou de uma manobra “pelo alto”, de um golpe palaciano, e não da participação da sociedade civil; assim, a independência se fez por uma simples transferência política de poderes da metrópole para o novo governo 1 A primeira lei (lei n° 4.504) de Reforma Agrária no Brasil data de 30 de novembro de 1964. A lei trata do estatuto da terra, sete meses após o golpe. Lembramos também que Goulart havia anunciado no dia 30 de março um programa de reforma agrária que foi abortado pelos militares em 1° de abril.


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brasileiro – se fez à revelia do povo (Coutinho, 2005, p. 22). É nesse período que a classe senhoral brasileira se afirma no poder e, posteriormente, constitui seu próprio aparelho de Estado, o que ficou conhecido como República Velha, que teve início em 1890 e foi até 1930. O termo “reforma agrária” surgiu na Europa, com o advento da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, que possibilitou acelerar a produção de mercadorias e ampliar, abastecer o mercado interno, que logo encontrou um limite no poder aquisitivo da população, pois a terra estava concentrada nas mãos de poucos (fazendeiros/latifundiários), que a usavam como reserva de valor; e a grande maioria da população camponesa encontrava-se na miséria absoluta. Habilmente, a burguesia industrial se apressou em defender uma reforma agrária, ou seja, a democratização do acesso à terra, e uma nova função para a terra que não como reserva de valor. Em outros termos, visando melhorar o poder aquisitivo dos camponeses para que pudessem comprar seus produtos da indústria, a nascente burguesia industrial defendeu a democratização do acesso a terra com intervenção do Estado, e desde então o conceito ficou conhecido e estritamente ligado com a posse e ao uso da terra. Assim, pode-se dizer que reforma agrária é o conjunto de medidas (desapropriação de latifúndios improdutivos, crédito, seguro agrícola, garantia de preço, transporte e armazenagem dos produtos, lazer, saúde, educação, etc.) que possibilitem ao camponês viver bem no meio rural. No Brasil, quando se fala em questão agrária, o latifúndio está colocado, pois, como viemos colocando em tela, este se consolidou em 1850 e teve como marco inicial a 1° lei de terras. Com as lutas dos posseiros em Minas Gerais, das Ligas Camponesas, das ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), do MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra) e a promessa das reformas de base do governo João Goulart (1961-1964), etc., a reforma agrária ganha visibilidade no cenário nacional. Do ponto de vista teórico, as primeiras sistematizações sobre o assunto começam a aparecer, graças ao esforço teórico e ao comprometimento político de militantes ligados aos movimentos sociais e partidos políticos da época, em especial do PCB. Hoje, a realidade é bem diferente que a de 60 anos atrás. Há uma infinidade de dados e estudos sobre a questão agrária e a reforma agrária, tanto do ponto de vista dos governos, dos intelectuais,


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dos movimentos sociais, da imprensa, etc., que nos possibilita aprofundar nas análises. No cenário econômico geral, era o auge do modelo de industrialização que começara nos anos de 1930. As linhas prioritárias desse modelo de “modernização conservadora” eram conduzidas no interesse dos monopólios, ou seja, grandes benesses ao capital estrangeiro e aos grandes grupos nativos. Esse processo também atingiu por completo o campo, dinamizando a ampliação da burguesia rural, reconcentrando a propriedade, arruinando o campesinato tradicional e integrado, sem eliminar o latifúndio. Mostrar a concentração da terra, considerando somente os proprietários e o número de estabelecimento, deixa fora os demais trabalhadores rurais e não revela a trágica realidade da concentração da terra; como foi dito, já na década de 1960, 0,6% dos que viviam no campo possuíam 51% das terras agricultáveis. Isso é concentração monopolista da terra, pois, além disso, concentra o transporte, a distribuição comercial, o financiamento, a qualidade das propriedades, o controle dos órgãos públicos, etc., e permitem a exploração que produz o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. Para André Gunder Frank, “o monopólio é, portanto, ubíquo na agricultura brasileira”; e continua, “para compreender a agricultura subdesenvolvida, devemos pesquisar o desenvolvimento deste subdesenvolvimento” (Stedile, 2005b, p. 72). É somente a partir dos anos de 1930 que o Estado passa a colidir com interesses particulares do capital, mas no geral, atende aos interesses do capital e incorpora parte das reivindicações da classe trabalhadora. Ele reprime os comunistas, mas incorpora parte de suas reivindicações. Isso foi uma constante na história do Brasil, e desde 1930 o Estado e os governos reprimiram as organizações da cidade e do campo, mas concederem, em partes, direitos sociais ou políticos às massas trabalhadoras e camponesas. A função dos camponeses durante o modelo de industrialização ou da “modernização conservadora” era de disponibilizar mão de obra barata para a indústria; pressionar para baixo o salário industrial através do preço baixo dos alimentos e garantir matéria-prima para a indústria. Como o leitor mais atento pode perceber, muita coisa mudou nos últimos anos, do ponto de vista político, econômico e cultural em nosso


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país. No nível social se processa o desaparecimento de antigas classes sociais, como é o caso do campesinato. Hobsbawm (citado em Netto, 1996, p. 93) diz que a mudança social mais importante da segunda metade do século XX, e que nos isola para sempre do passado, é a “morte do campesinato”; e apenas acrescentaria, como força política central. Há também coisas que não mudaram. Nunca passamos por um processo de reforma agrária, embora na Constituição Federal de 1988, nos artigos 184 e 185, conste que toda a terra que não estiver cumprindo com sua função social deve ser destinada para fins de reforma agrária. Consta também que é de responsabilidade do Governo Federal as desapropriações,2 com “justa” indenização ao proprietário e que o INCRA é o órgão responsável para operacionalizar o comprimento da lei. Há anos o Brasil é o segundo país em concentração fundiária do mundo,3 mesmo com os aforismos de que aqui se processa a “maior reforma agrária do mundo”, ou “nunca na história deste país se assentaram tantas famílias”, etc. etc. o fato é que os dados do último censo apontam que o índice de GINI4 é de 0.8, permanecendo inalterado já por um longo tempo, e em alguns estados, até aumentou a concentração fundiária, como, por exemplo, Tocantins, São Paulo e Minas Gerais; e 47% dos estabelecimentos agrícolas ocupam 2,8% das terras, e essa concentração produz a expulsão da população rural, que hoje não ultrapassa os 17.4% que vivem no campo; aumento brutal do preço da terra no Brasil e transferência das terras brasileiras para mãos estrangeiras, etc. 2 A desapropriação é o principal e mais clássico instrumento para o assentamento das famílias Sem Terra. Primeiramente o governo avalia a área, se for improdutiva vem o decreto presidencial e por fim a área é dividida em parcelas iguais para as famílias. Isso claro a partir de análises técnicas do órgão responsável (INCRA) e com amparo institucional. 3 O Uruguai é o campeão de concentração fundiária. É o índice usado para medir a concentração da propriedade da terra; quanto mais próxima de um, maior a concentração. 4 A “Revolução Verde” foi implementada a partir da segunda metade do século XX na agricultura dos ditos países subdesenvolvidos e consistia em combinar variedade de sementes e matrizes de alto rendimento, no uso de adubos e “defensivos agrícola” (agrotóxicos) e na irrigação intensiva nas grandes propriedades.


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Um dos principais objetivos da classe dominante não é o uso da terra, mas impedir que outros a utilizem, para com isso manter baixos os salários no campo e na indústria, manter o exército industrial de reserva e a dominação política de classe. Como que para consolar os camponeses, o INCRA foi fundado em 1964, e os camponeses, já no período de consolidação da ditadura (1964-1969), tiveram parte de seus direitos trabalhistas reconhecidos constitucionalmente.

A RELAÇÃO ENTRE AGRONEGÓCIO E A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL Para tratarmos da relação existente entre o agronegócio e a questão agrária na atualidade, bem como dos seus entraves para a pequena agricultura e os assentamentos rurais, caracterizaremos sinteticamente a denominação ou o conceito de agronegócio. Agronegócio é uma aliança entre o capital industrial e financeiro voltada para o meio rural, com forte sustentação e apoio estatal e governamental. Essa relação recíproca tem por objetivo ampliar os lucros e se apropriar do latifúndio atrasado. Segundo Guilherme Delgado, agronegócio, “na acepção brasileira do termo é uma associação do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária” (Delgado, 2010, p. 93). Ou seja, o agronegócio, no Brasil, é parte da ofensiva geral do capital ao mundo do trabalho. Podemos destacar como características principais do agronegócio (o monocultivo, a produção para exportação, o uso intensivo de agrotóxicos, a alta tecnologia de maquinário e sementes, etc.). Esse modelo de produção agrícola estabelece um conflito direto com a pequena agricultura e os assentamentos rurais. A questão agrária atual apontada pelo Plano Nacional de Reforma Agrária identifica a concentração da propriedade da terra e o modelo de desenvolvimento rural como promotor do duplo desemprego – da força de trabalho rural e das terras controladas pelo agronegócio. Esse modelo, por um lado, descarta milhares de trabalhadores, e por outro, permite a concentração de terras improdutivas. Nessa perspectiva de


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análise temos dois fenômenos que dão conta da magnitude da questão agrária atual, cito: a disponibilidade de terra e a demanda por terra. Para Guilherme Delgado, as condições ligadas às estratégias do agronegócio na agricultura brasileira são, ao mesmo tempo, matriz da moderna questão agrária e representam um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas da agricultura familiar e dos assentamentos da reforma agrária (Delgado, 2010, p. 106). A nova fase de expansão do agronegócio gera, ao mesmo tempo, uma ampliação do setor de subsistência, uma massa de trabalhadores desocupados e camponeses sem excedentes, descartados do novo processo de modernização técnica da agropecuária. Uma proposta de reforma agrária e de desenvolvimento rural que enfrente a questão agrária atual requer o abandono das prioridades que beneficie o agronegócio, pois elas garantem a atual pobreza rural. Assim, os entraves e desafios apresentados aos camponeses vão além de suas fronteiras estaduais e nacionais e da defesa corporativa da terra, pois o problema central no campo é a disputa de modelos que coloca, de um lado, a reforma agrária e o ser camponês, e do outro, a agronegócio.

A POLÍTICA AGRÁRIA E A CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA EM MINAS GERAIS NO PRIMEIRO DECÊNIO DO SÉCULO XXI Há um consenso na maioria dos estudiosos da questão agrária, não sem algumas nuances entre si, que a consolidação da reforma agrária não depende somente do Governo Federal e da mobilização dos camponeses e da sociedade em geral. Os estados e municípios também são atores importantes nesse processo de consolidação dos assentamentos que beneficia diretamente os camponeses e indiretamente a toda a população brasileira que disporia de produtos mais baratos e de melhor qualidade em sua mesa. Desde a colonização brasileira, o Estado de Minas Gerais tem cumprido o papel de exportador de matéria-prima para as metrópoles do mundo. De suas minas saíram grande parte do ouro e do diamante


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que serviu para enfeitar os pescoços e os dedos da nobreza europeia, além de engordar seus cofres e garantir sua opulência. Hoje, o cenário atual não é tão diferente, continuamos engordando outros cofres que não os de nossa população, e as desigualdades permanecem marcantes. Fruto do processo do aprisionamento da terra pelo grande capital, em Minas há 415 mil famílias sem-terra, destas, em mais de 100 acampamentos, debaixo da lona preta, cerca de 12 mil famílias estão acampadas à espera da reforma agrária. Na fazenda Ariadinopolis, localizada no município de Campo do Meio, no Sul de Minas, cerca de 400 famílias esperam pelo assentamento há mais de 14 anos. Os dados mais recentes da Superintendência do INCRA-MG apontam que o estado possui 13.595 famílias assentadas em mais de 290 projetos de assentamento com aproximados 604 mil hectares de terra. Nos últimos, a meta estabelecida pelo Governo Federal para a superintendência do INCRA de Minas Gerais foi a de assentar 15.680 mil famílias, e destas, apenas 3.625 mil famílias foram assentadas, ou seja, 23% da meta foram cumpridas. Esses números consideram assentamentos novos criados sem subterfúgios ou maquiagem dos números. E nenhuma família foi assentada pelo governo do Estado, seja no período dos oito anos de Aécio ou nos dois anos do atual governo Anastásia. A EMATER, órgão que deveria prestar assistência técnica às famílias que vivem no campo, não tem cumprido com sua função; atende aos interesses das grandes empresas do agronegócio através da propaganda e venda de seus “fertilizantes” e não acompanham sistematicamente aqueles que mais necessitam de apoio técnico. Isso faz com que muitas famílias nunca recebessem, por parte do Estado, qualquer orientação técnica para o manejo de sua pequena parcela de terra. Claro que há as honrosas exceções, mas no geral, os técnicos da EMATER, no cumprimento da orientação institucional, defendem e potencializam as atividades do agronegócio em detrimento da pequena e da média agricultura. As empresas (inclusive transnacionais) perceberam o filão do Estado, que ainda tem muito latifúndio e compram cada vez mais terras ou ganham como contrato de concessão uso por 20 ou 30 anos. São 1,5 milhões de hectares plantados de eucalipto – a maior extensão do Brasil. A empresa Vale nasceu em Minas, e aqui segue explorando a mineração, deixando a devastação ambiental.


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E os fazendeiros rearticulam a violência, amparados pela impunidade de crimes com repercussão nacional, como a Chacina de Unaí (28 de janeiro de 2004) e o massacre de Felizburgo, de 20 de novembro do mesmo ano, que completam oito anos em 2013.

O MODELO DO AGRONEGÓCIO CONTRA A REFORMA AGRÁRIA E A PEQUENA AGRICULTURA Atualmente, o latifúndio possui novos contornos; não obstante, com medo da desapropriação de seus imóveis improdutivos que não cumprem a função social, conforme determina a Constituição Federal, se escondem na propaganda do agronegócio vinculadas na grande imprensa. Em Minas, a reorganização do capital, que prioriza o investimento em grandes projetos, como a Copa, o PAC, a transposição do rio são Francisco, a construção de dezenas de hidrelétricas, grandes usinas para etanol, etc., tendo o Estado como principal investidor, vem promovendo a reprimarização da economia e a desindustrialização. O chamado agronegócio surge com a imposição de uma política agrícola que pregava a “modernização” do campo na remota década de 1960 e 1970. O objetivo foi permitir que grandes empresas do capital internacional introduzissem insumos químicos e implementos agrícolas no mercado brasileiro, obtendo grandes lucros e nos tornando dependentes de um “pacote” tecnológico – a chamada “revolução verde”5. A Revolução Verde, em sua base tecnológica, era um conjunto de técnicas, que reunida, devia ser recomendada aos produtores rurais como mecanismo de aumentar a sua produtividade agrícola; simplificadamente, eram sementes melhoradas (híbridas, para estabelecer a dependência dos agricultores em comprar sementes em todas as safras), adubos químicos, mecanização e os venenos de maneira geral (herbicidas, fungicidas, inseticidas, nematicidas, etc). Nesse mesmo período, o Congresso norte-americano e o programa do USDA (Departamento de Agricultura dos EUA) resolvem 5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O IBGE realiza o levantamento de dados a cada 10 anos, o último foi feito em 2006 e publicado em 2009.


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apoiar a criação do sistema EMATER e EMBRAPA para adequação e difusão da tecnologia da “revolução verde”. Assim, especialmente na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, a Jica (Japan International Cooperation Agency), por meio do Programa de Desenvolvimento do Cerrado (PRODECER), promoveu as atividades do complexo agroindustrial, ou seja, o ecossistema do cerrado e a pequena agricultura deram lugar a extensas áreas de monocultivo do café, da cana-de-açúcar, da soja e dos maciços homogêneos do eucalipto e pinos. Esse processo, além de elevar o preço da terra, gerou exclusão social, destruição do meio ambiente e concentração de terra e renda. As extensas plantações de soja, café, cana, eucalipto e pinos contaminam com agrotóxicos e secam as nascentes dos rios e o lençol freático. Segundo os dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em 2009, o Brasil contava com 2.195 marcas de agrotóxicos registradas; e neste mesmo ano, foram consumidos 789.974 litros de veneno; em 2010 atingimos a marca de um bilhão de litros, fazendo com que, nesse período, o Brasil se transformasse no maior consumidor de veneno do mundo, ultrapassando os Estados Unidos. Em Minas, praticamente todas as áreas do agronegócio fazem o uso indiscriminadamente de agrotóxicos, com o apoio do Estado e dos órgãos do governo. O agronegócio é também responsável pelo confinamento dos camponeses (geraizeros, vazanteiros, barranqueiros) nos grotões das encostas do Chapadão, como é o caso no Norte mineiro. A destruição é tamanha que hoje não existe mais nenhuma faixa contínua de Cerrado no estado. As características geofísicas da região, com seus ecossistemas de Cerrado e Caatinga, seu clima semiárido e as precárias condições de vida da maior parte da sua população, assemelham-se às características predominantes no Semiárido brasileiro. Os projetos governamentais implantados, nessa região, a partir da década de 1970, consolidaram um modelo de exploração calcado nos monocultivos e nos grandes projetos de irrigação. Esse modelo de desenvolvimento privilegiou o setor empresarial e as grandes fazendas, acentuando os desequilíbrios regionais e piorando as condições de vida da população. As políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico beneficiam esses setores, enquanto para a população mais em-


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pobrecida são criadas políticas compensatórias e assistencialistas que não mudam o dramático quadro social da região. No último censo agropecuário do IBGE,6 o Estado de Minas Gerais possuía 51,8 %, aproximadamente 1,5 milhões de hectares de área plantada de eucalipto, boa parte em terras devolutas cedidas pelo Estado a empresas particulares com contratos de até 20 anos vencidos ou a vencer, especialmente no Norte de Minas ou em terras devolutas que foram regularizadas em nome das empresas, como é o caso dos municípios do Vale do Aço. Isso faz com que Minas ficasse conhecida como as “minas de ouro” das empresas transnacionais.

DA LUTA PELA TERRA AO ENFRENTAMENTO COM O CAPITAL Minas Gerais está sendo dominada pelas empresas de mineração, de celulose e pelas usinas de álcool. Na região do Triângulo, o que predomina são as grandes usinas de álcool para produzir etanol, para abastecer os carros dos europeus. O centro do Estado, o Leste e o Nordeste estão sendo dominados pela plantação de eucalipto. A Aracruz pretende nos próximos anos comprar na região Leste, em Governador Valadares, 158 mil hectares de terras. A Veracel está comprando todo o Vale do Jequitinhonha, e vão destinar mais de 100 mil hectares de terras para a plantação de eucalipto. A Cenibra – empresa com capital japonês que atua no Leste Estado – tem 400 mil hectares de terras com eucalipto. Se juntarmos somente essas três empresas, são 600 mil hectares de terras disponibilizadas para o eucalipto. Para compararmos, hoje temos 13,5 mil famílias em 600 mil hectares de terras, depois de 25 anos de lutas pela terra, e apenas três empresas têm essa mesma quantidade, sem sacrifício algum e em poucos anos. Assim, vimos uma concentração muito grande das terras mineiras nas mãos de empresas, inclusive com capital internacional. 6 O PNRA foi apresentado ao presidente Lula no dia 23 de novembro de 2003 pela equipe de estudiosos da questão agrária e de reputação conhecida em defesa da reforma agrária, coordenados pelo professor Plínio. O governo não aceitou o plano, preferiu dar continuidade na política de assentamentos de FHC e priorizar o agronegócio.


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Minas Gerais é o estado que mais tem eucalipto plantado da Federação brasileira, e 82% da celulose que é produzida no Estado são para exportação, e 18% é para alimentar os fornos da Vale, para fazer o ferro-gusa; e para exportar, as empresas usam os trens da Vale, para o Porto Tubarão, no Espírito Santo. Assim se consolida a parceria. As empresas fornecem o carvão para a Vale, que oferece o transporte da celulose até o porto. A Vale é a maior empresa em atuação no Estado de Minas Gerais. Nenhuma outra empresa tem o tamanho do capital e da receita da Vale. É uma das empresas que mais tem terra, seja para a plantação de eucalipto, seja para a extração de minério. E também que mais se beneficia das riquezas naturais do estado. Paga pouco royalties, cerca de 4% e se beneficia da lei Kandir para a exportação, de 1996 (feita por FHC), que isenta do pagamento de ICMs todos os produtos brasileiros destinados à exportação. Esse imposto, se fosse arrecadado, deveria ir para os estados, passou a ser creditado como dívida do Governo Federal, mas que até hoje não tem clareza de como proceder diante do fato consumado; e os governos estaduais utilizam ora para disputa política, quando convém, com o Governo Federal, ou para acertos políticos e apoios de campanhas estaduais. A Vale, com o total apoio do Governo Estadual, deixa, por causa da extração do minério, como problemas para os mineiros a poluição das águas, a destruição do solo e as crateras. Por exemplo, a cidade de Itabira, onde nasceu a Companhia Vale do Rio Doce, a 100 km de Belo Horizonte, é uma cidade de 100 mil habitantes e tem o mesmo nível de poluição da cidade de São Paulo, que tem mais 10 milhões de habitantes e a maior frota de carros do Brasil. Isso está demonstrado em um estudo da Universidade de São Paulo (USP), que mostrou que a poluição da cidade é a responsável por graves problemas respiratórios dos seus habitantes. A Vale é a empresa mais territorializada, estando presente em 16 estados. A Syngenta, por exemplo, está em nove estados, a Aracruz, em cinco, a Veracel, em quatro. Outra questão importante, no que se refere à Vale, é que ela era uma empresa brasileira que foi “doada” por R$ 3, 3 bilhões pelos tucanos na era FHC e atualmente seu capital está em US$ 140 bilhões.


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O governo de FHC não foi somente “bonsinho” com o capital estrangeiro, porque nos seus dois mandatos promoveu o desmonte do Estado, ou a redução dos direitos sociais. Tudo o que tínhamos conquistado até 1988 sofreu ataques nessa gestão. Se Collor preparou o terreno, FHC o percorreu. Esse governo, após reprimir duramente os petroleiros e o MST, passou a atuar na perspectiva de gerenciar os conflitos sociais, ou seja, operar o desmonte dos movimentos sociais por dentro, o exemplo da Central Única dos Trabalhadores, é o mais emblemático, igualando-se à Força Sindical. Na divisão internacional do trabalho feita pelo capital, o Brasil e demais países da América Latina têm a função de exportar para os países da Europa, Estados Unidos e China. E a Vale é a empresa que mais exporta atualmente no Brasil: 92% de tudo que a empresa tira do Brasil são para exportação; por isso, em Minas, lutar contra a Vale é lutar pela soberania nacional.

AS LUTAS DOS POVOS MINEIROS DO CAMPO Dos mais de 100 povos indígenas que habitavam o território mineiro hoje estão resumidos a apenas oito povos com uma população estimada de 12.500 pessoas. Pelo menos 92 povos indígenas foram exterminados. Desses oito povos, encontram-se em terras demarcadas e reivindicam revisão de limites, que são os povos Xakriaba, Krenak, Maxacali e Xukuru-kariri. Outros povos, como Aranã e Kaxixó, ainda não possuem terras, e os povos Pankararu e Pataxó detêm a posse da terra, mas não possuem registro, segundo informações do Conselho dos Povos Indigenistas Missionários de Minas Gerais (CIMI). No livro Nas terras do Rio Sem Dono, de Carlos Olavo Pereira, encontramos um relato histórico e uma conceituação bastante aceita de posseiro, grileiro e jagunço. Como posseiro, o autor visualizava um homem corajoso que trabalhava a terra para o sustento de sua família e seu trabalho, apesar de todas as dificuldades, criou e desenvolveu a região Leste do Estado. Já o grileiro era um indivíduo vindo depois do trabalho feito para tomar e se apropriar das terras já agricultáveis das mãos dos posseiros. O grileiro é o parasita do trabalho do posseiro, homem sem escrú-


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pulos que se utilizava da força simbólica e material dos políticos corruptos e dos jagunços, considerados, pelo autor, como “sinistros profissionais de ceifar vidas, (...) são filhos de um sistema fundado na grande propriedade o latifúndio” (Pereira, 1988, p. 38-40). Os jagunços, por sua vez, eram mercenários e assassinos das lutas e dos sonhos construídos com muito suor pelos seus “iguais”, trabalhadores do campo. A população negra também foi massacrada; o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES), até o ano de 2006, tinha identificado preliminarmente 346 comunidades Quilombolas, faltando algumas regiões, sabe-se hoje, através de levantamentos do INCRA que são mais de 400 comunidades. Até o ano 2010, o estado de Minas possuía, frente a essa realidade, a incrível marca de apenas uma área coletiva titulada, área denominada Porto Coris, no município de Leme do Prado, com 25 famílias, datada do ano de 1997. A comunidade Brejo dos Crioulos, localizada entre os municípios Varzelândia e São João da Ponte, no Norte de Minas, luta há l2 anos na defesa de seu território coletivo de 17.302 hectares, e teve o decreto presidencial assinado pela presidente Dilma em 2011. No INCRA, existem ainda 50 processos de titulação coletiva de comunidades quilombolas aguardando deferimento, e a mais avançada, como exposto acima, é a do “brejo dos crioulos”. Com a construção indiscriminada de usinas hidrelétricas, o cercamento dos rios e o enchimento das represas, mais de 200 mil famílias serão desalojadas. Somente no governo de Aécio Neves (2003-2010) foram expulsas de suas terras e locais de moraria mais de 40 mil famílias atingidas pelas barragens, que se tornam sem-terra pela política do próprio governo do estado de Minas, e estão entrando na estatística do INCRA/MG como assentados da Reforma Agrária. Destas, a CEMIG reassentou somente 50%; portanto, faltam ser assentados milhares de outras famílias atingidas por dezenas de barragens. Isso fez com que aumentasse a demanda por terra, em vista da construção das hidrelétricas com grandes barragens, como a de Irapé, onde 864 famílias ficaram sem terra. O Movimento dos Atingidos por Barragem já denunciou que, nesse ritmo, serão expulsos mais gente do campo do que assentar famílias sem-terra, por exemplo, com o programa de Reforma Agrária. As usinas constrangem as famílias a receberem míseros recursos de indenização para abandonarem as áreas e inchar as periferias das cidades.


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Para seguirmos com o exemplo de Irapé, as famílias foram reassentadas pela CEMIG (concessionária da Usina), em situação precária. No reassentamento faltam infraestrutura, escola e posto de saúde; e parte das terras é pouco fértil; foram três anos sem poder plantar; centenas de crianças perderam escola; e como se não bastasse, e o que é mais patético, é que a energia gerada por essas usinas é, em sua maioria, a preço subsidiado para empresas em detrimento da maioria da população que paga a energia mais cara do Brasil. A pergunta frente a essa realidade é simples, falta terra para a realização da reforma agrária? Não. De forma alguma, apenas para ilustrar, podemos verificar que cerca de 18 milhões de hectares de terra no Estado são hoje denominadas terras presumivelmente devolutas, ou seja, terras sem registro, segundo estudo do professor Ariovaldo Umbelino da USP, que tem como referência o cadastro de Terras do INCRA. Obviamente, essas terras necessitam serem discriminadas, a fim de separar o que é público do que é privado, e por conseguinte, faz-se necessário percorrer toda a tramitação judicial para serem arrecadadas pelo Estado. O Governo do Estado, através do Instituto de Terras (ITER), não tomou as devidas medidas para arrecadar os presumíveis 18 milhões de hectares de terras devolutas existentes em Minas, que continuam nas mãos de empresas eucaliptadoras, mineradoras e latifundiários, que causam depredação ambiental e concentração de riqueza.

A VIOLÊNCIA COMO REGRA Os índices de violência no campo, registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), demonstram que nos últimos 10 anos (2003 a 2012) foram assassinatos 14 trabalhadores em conflitos pela terra em Minas Gerais. Foi no período de 2003 a hodierno que ocorreu a chacina de Unai, o massacre de Felizburgo e o assassinato de lideranças sem-terra no Triangulo Mineiro, para citar apenas alguns dos mais marcantes. A pergunta, inevitável, é: o que os governos que se sucederam têm feito para garantir a justiça, para punir os réus, alguns confessos, e evitar que novas vidas sejam ceifadas violentamente pelo latifúndio e agronegócio? A res-


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posta, após alguns pronunciamentos das autoridades (presidente, governador, ministros e secretários de segurança), dizendo que esse crime não ficará impune, de uma ou outra visita em lócus, infelizmente é a mesma de sempre e óbvia: nada. Isso porque, em Minas, há uma hegemonia política conservadora que detém grande parte do poder do Estado, seja no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário, incluindo o controle da Cidade Administrativa, de prefeituras, cartórios, e delegacias. Poderíamos citar e encher páginas com relatos dos crimes da impunidade no Estado, mas nos limitaremos a dois casos emblemáticos, por terem repercussão nacional e internacional, a chacina de Unai e o massacre de Felisburgo. No primeiro caso, no dia 28 de janeiro de 2004, quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram brutalmente assassinados em uma emboscada no Norte de Minas, no município de Unai, quando realizavam uma fiscalização de denúncia de trabalho análogo a escravo. Foram assassinados os fiscais Erastóstenes de Almeida, Nelson Jose da Silva, João Batista e o motorista Ailton Pereira de Oliveira. A Polícia Federal, seis meses depois, afirmou ter desvendado o crime e indiciou os envolvidos, entre eles os irmãos Norberto e Antério Mânica, grandes latifundiários da região, que chegaram a ser presos, mas hoje, lamentavelmente, respondem ao processo em liberdade. Após as denúncias e prisões dos envolvidos, como se nada pesasse contra, Antério foi eleito em 2004 prefeito de Unai pelo PSDB, e reeleito em 2008, e como não bastasse, em 2010, o então governador Aécio Neves o condecorou com a medalha do Legislativo mineiro, como que o respaldando por sua prática de assassinato e trabalho escravo. Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, todos os recursos dos réus foram julgados e negados; por isso não havia razão para a juíza ter protelado o julgamento, que estava previsto para janeiro de 2013. Com isso, é mais um crime, chacina, que vão ficando impune no Estado governado pelos tucanos. Aliás, essa tem sido a regra nos governos do PSDB; e para citar apenas um caso, basta lembrar-nos o que foi o governo de Yeda Crusios (2006-2010), no Rio Grande do Sul, que após o assassinato pela polícia do Estado, do semterra Elton Brum, foi denunciado na Comissão Internacional dos Direitos Humanos.


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O segundo caso, e um dos mais dramáticos, foi o massacre de Felisburgo, na fazenda Nova Alegria, no município de Felisburgo-MG, onde cinco trabalhadores foram assassinados e 20 pessoas foram feridas, inclusive uma criança de 12 anos de idade. O massacre ocorreu no dia 20 de novembro de 2004, quando pistoleiros armados atacaram o acampamento Terra Prometida; foram assassinados os trabalhadores rurais Iraguiar Ferreira da Silva (23 anos), Joaquim José dos Santos (49 anos), Miguel José dos Santos (56 anos), Juvenal da Silva (65 anos) e Francisco Nascimento Rocha (72 anos). Cerca de 100 famílias haviam ocupado a Fazenda Nova Alegria, com cerca de 2.400 hectares, em 1º de maio de 2002. Apesar de estudos do Instituto de Terras de Minas Gerais indicarem que a área é devoluta, o suposto “proprietário” Adriano Chafik decidiu fazer ilegalmente o despejo das famílias, juntamente com seus jagunços. Além dos ataques a tiros, os pistoleiros atearam fogo em todas as barracas e pertences das famílias, destruindo as sementes guardadas para o plantio, a escola do acampamento, a biblioteca e a secretaria. Entidades locais responsabilizaram o Poder Executivo e Judiciário, pois os conflitos de terra são consequência da morosidade na realização da reforma agrária. A fazenda Nova Alegria, onde ocorreu o massacre, possui 1.702 hectares, sendo uma parte delas terras devolutas, ou seja, terras do Estado que poderiam ser destinadas imediatamente para fins de reforma agrária. No Estado de Minas Gerais há milhões de hectares de terras devolutas, griladas, que poderiam suprir a necessidade de milhares de famílias sem-terra. Ao invés de resgatar essas terras e destiná-las à reforma agrária e ao assentamento das famílias, de acordo com o artigo 184/185 da Constituição Federal, os governos deixam assassinar trabalhadores rurais. Em que pese a lei ser federal, é possível aos governos estaduais realizarem assentamentos; podemos citar, por exemplo, os governos de Olívio Dutra (1999-2002) e de Tarso Genro (2010-2012), no Rio Grande do Sul, que em seus respectivos governos desapropriaram latifúndios e destinaram para fins de reforma agrária. Após oito anos do massacre, as famílias ainda continuam acampadas em precárias condições de vida, apesar de o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva ter decretado a área para fins de reforma agrária em outubro de 2009, por crime ambiental (e não por conflito social, ou im-


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produtividade, que seria o mais correto e legítimo motivo para a desapropriação); o fazendeiro e assassino confesso Adriano Chafik entrou com ação cautelar impedindo o INCRA de Minas Gerais de legitimar as famílias, e suspendeu o decreto presidencial. As famílias não foram indenizadas pela agressão física e psíquica da qual foram submetidas. E o fazendeiro mandante do crime ainda continua impune e sem data prevista para o julgamento, pois o julgamento continua sendo adiado e sem data prevista para acontecer. Denunciamos os governos Federal e Estadual pela morosidade que vêm tratando as pessoas sobreviventes do massacre, pois teriam todas as condições para a implementação de políticas públicas capazes de solucionar os problemas sociais que afetam a vida dos trabalhadores rurais e urbanos deste país e construir de fato um BRASIL, PAÍS DE TODOS! É esse o clamor e a exigência do Fórum Mineiro de Luta e do Comitê em Defesa de Felizburgo. Assim, a sociedade mineira exige: a) A desapropriação imediata da fazenda Nova Alegria!; B) O assentamento imediato das famílias acampadas!; C) A condenação do mandante do massacre, Adriano Chafik; e d) A indenização total das famílias. Infelizmente, temos percebido um aumento da violência e uma rearticulação das milícias armadas no campo, principalmente nos últimos anos, apesar dos discursos contrários dos governos. A impunidade histórica com que esses crimes são tratados estimula novas ações mais violentas da parte dos latifundiários. Pela não realização da Reforma Agrária, os fazendeiros estão se dando ao luxo de rearticular as milícias, já que também não há nenhuma iniciativa do Estado para coibir este afronte ao Estado democrático de direito. Percebemos isso muito claramente em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, em Valadares, Sul de Minas e Jequitinhonha, que já foi palco de massacre.

O PAPEL DOS GOVERNOS E DO ESTADO NA (NÃO) REALIZAÇÃO DA REFORMA AGRÁRIA Na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, em especial na última década, podemos afirmar que, não só o capital não precisa da reforma agrária (transformar a estrutura fundiária do país), como ele é


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antagônico a ela. O paradigma tecnológico desse atual estágio do capitalismo no campo precisa necessariamente da terra concentrada e do apoio financeiro e político dos governos do Estado. O modelo agrícola tem hoje, sem dúvida, sua base no pacote verde da Revolução Industrial, acrescido de outros fatores tecnológicos de última geração. Assim, as sementes são produzidas para serem cultivadas em grande escala e em monocultura, da mesma forma que os herbicidas, os fungicidas, os inseticidas, os adubos químicos e as máquinas agrícolas. A grande indústria desses produtos, na verdade as maiores transnacionais ligadas à agropecuária, existem devido ao monopólio da produção e da venda desses produtos. Qualquer outro modelo agrícola que se diferencie dessa lógica, que pense em escala menor, que trabalhe a diversidade de culturas, que utilize adubação orgânica e inseticidas naturais, etc., não serve ao capitalismo, porque a terra concentrada garante a reprodução desse sistema. O campo está saturado de produtos químicos, graças ao agronegócio, e o mais grave é que os governos continuam investindo indiscriminadamente nesse modelo, e a sociedade raramente se coloca na preocupação com esse modelo. Sob essa estrutura fundiária o capital consegue realizar a superexploração do trabalho, acumulação primitiva do capital e extração da renda da terra. É evidente a ofensiva dos governos e do Estado brasileiro contra a Reforma Agrária e, em beneficio do agronegócio, pois foi no período de 2003-2010 que se consolidou o agronegócio como modelo dominante no meio rural, que liberou os transgênicos, que manteve a medida provisória do governo FHC que impede as ocupações, que manteve os índices de produtividade (que datam de 1975), que favorecem os latifundiários e o agronegócio. Foi nesse governo que não aprovou o Plano Nacional de Reforma Agrária,7 coordenado pelo professor Plínio de Arruda Sampaio,8 mas que em contrapartida aprovou a CPMI contra o MST.

7 Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) e diretor do jornal Correio da Cidadania. 8 Itamar Franco faleceu em 2011.


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Desde 2003, Minas Gerais vem sendo “desgovernado” pelos tucanos com seu “choque de gestão”. Primeiro enfrentamos oito anos de Aécio Neves, período de 2002 a 2010, quando este se elegeu senador. Aécio não poderia, para seus fins eleitoreiros, deixar de fazer seu sucessor (que era seu vice) o atual governador Antonio Anastásia com a famigerada política de choque de gestão e nenhuma medida concreta para fazer avançar a reforma agrária no Estado e consolidar os assentamentos. A situação dos assentamentos é uma tragédia do ponto de vista da infraestrutura. Nos últimos dez anos, foram construídas não mais que 190 casas nos assentamentos; e 60% dos assentamentos não têm energia elétrica, nem estradas para escoar a produção; 80% não têm sistema de água encanada e nem água boa para beber. Quase 20% não têm energia elétrica, e isso faz com que os assentamentos feitos nos últimos dez anos, ao contrário da expectativa das famílias e dos movimentos que fazem a luta pela terra, não garantiram boas condições para as famílias. Estamos chegando ao ponto de famílias desistirem dos assentamentos, já criados legalmente, por falta de condições objetivas. Os órgãos ambientais estaduais, em especial o IEF, só funcionam em favor dos grandes latifundiários e das grandes empresas, em detrimento das demandas dos sem-terra e dos pequenos agricultores ou atingidos por barragens. A burocracia e a falta de vontade política imperam, e constantemente ouvimos o governo falar e prometer que vai liberar os recursos para a agricultura familiar, construir casas, garantir políticas públicas de infraestrutura, etc., mas ninguém está acessando esses recursos, pois a burocracia impera.

OS GOVERNOS DO PSDB EM MINAS E A POLÍTICA AGRÁRIA Em Minas, de 1994-1998, Eduardo Azeredo, do PSDB, seguiu à risca as prioridades e a cartilha do Governo Federal, ou seja, privatizações, desmantelamento das políticas sociais, ataque aos direitos dos trabalhadores, etc., que somente teve uma interrupção com o governo Itamar Franco, de 1999-2002. Itamar Franco era o vice de Collor, e embora no pouco tempo que ficou como presidente (1992-1994), foi o pri-


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meiro presidente a receber o MST para uma negociação de pauta, legitimando a organização. Itamar, que havia rompido com o PSDB e FHC, em 1995, em 2002, apoia Aécio para o governo de Minas e se elege, juntamente com este, em 2010, para o Senado Federal. No ano de 2000, o então governador Itamar criou o ITER (Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais), e como presidente nomeou o geógrafo e amigo do MST, Marcelo Resende. Em que pese seu ecletismo, e talvez justamente por isso, Itamar9 foi o único governador mineiro que construiu alguma política concreta com os sem-terra, cito: Centro de Formação Francisca Veras, em Governador Valadares; intermediação nos conflitos agrários, evitando alguns despejos; além de infraestrutura, como carro para o Movimento desenvolver a assistência técnica nos assentamento. Os governos de Aécio e Anastásia, ao contrário, nunca tiveram uma política para os movimentos sociais e a reforma agrária. Desde 2003, quando realizamos uma audiência com o jovem governador Aécio, o alertamos para a possibilidade de ocorrer um massacro no Estado, em decorrência das ameaças que vínhamos sofrendo em Felizburgo, e o governo nada fez; então, podemos dizer que o governo do Estado tem uma corresponsabilidade no massacre, porque não tomou as medidas, quando as famílias fizeram denúncias das ameaças que vinham sofrendo. No campo, não há nenhuma política do governo do Estado que vise melhorar as condições de vida da população que sobrevive nos interior, pelo contrário, o que há é os despejos violentos, a truculência do latifúndio e do agronegócio, O único programa vinculado ao de reforma agrária foi o de regularização fundiária, que não resolve do ponto de vista estrutural a questão da reforma agrária, mas está regularizou alguns títulos de propriedade de pequenos posseiros, porém não podemos dizer que existiu uma política de reforma agrária. A antiga Secretaria de Reforma Agrária foi extinta e no lugar ficou a Secretaria de Regularização Fundiária, que em nada se parece com a

9 Todas as denúncias que levaram a exoneração do secretario, já foram julgadas e dadas como infundadas ou não procedentes. Hoje não há nada que pese legalmente contra o ex secretario Manoel Costa.


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já precária de outrora quando tinha à frente como secretário o ex-deputado Manoel Costa. O ex-secretário, por ser solidário e por convicção política, destoando do restante do governo, mantinha uma relação de respeito e diálogo com o Movimento. O governador Anastásia, na sua covardia, expressando o governo fraco que é, a partir de denúncias infundadas de alguns promotores do Ministério Público do norte do Estado, acabou com o único programa, que atingia os pobres do campo e que era coordenado pelo então secretário Manoel Costa10 – o Programa de Regularização Fundiária. Mesmo depois de reunião com o MST, em final de 2010, quando, sob a coordenação do então secretário Manoel Costa, reunimos 14 secretarias do Estado, até o presente momento nada na prática se consolidou em beneficio das famílias sem-terra e camponesas. Nenhuma família foi assentada por vontade política do Governo Estadual; todas tiveram que lutar para conquistar sua terra, e muitas, como já foi exposto, pagou um preço alto, com a própria vida. Neste Estado somente os ricos (banqueiros, empresários, latifundiários, mineradas, etc) recebem milhões de reais, milhares de hectares de terras sem custo algum. Recentemente, 7 de janeiro de 2013, foi sancionada pelo governador Anastásia a lei (20607/2013) de autoria do deputado Estadual Rogério Correia, que isenta das taxas cartoriais os agricultores familiares atendidos pelas parcas políticas públicas federais, estaduais e municipais. A lei beneficiara em especial os beneficiários do crédito fundiário, que agora disporão de um recurso a mais para investir na infraestrutura e produção de alimentos, que é um pequeno passo, mas importante para os pobres do campo. Neste momento é importante destacar que, mesmo com a falta de política e de prioridade para a pequena e a média propriedade, as famílias assentadas têm conseguido garantir ou resolver cinco graves problemas que afetam a maioria dos mineiros, cito: 1) Trabalho, todas as famílias nos assentamentos têm trabalho o ano todo; 2) Educação, ne10 Todas as denúncias que levaram a exoneração do secretario, já foram julgadas e dadas como infundadas ou não procedentes. Hoje não há nada que pese legalmente contra o ex secretario Manoel Costa.


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nhuma criança está fora da escola em nossos assentamentos; 3) Alimentação, todos os assentados se alimentam no mínimo três vezes por dia e com produtos agroecológicos; 4) Moradia, todas têm, ainda que simples, onde morar; e 5) Segurança, não há assaltos, assassinatos ou outros crimes graves em nossas áreas de assentamento. Isso demonstra que a reforma agrária é viável e contribui para a solução dos graves problemas da nossa sociedade, em que pese a morosidade e a parcialidade do Poder Público no trato das questões sociais. O MST desenvolveu e acumulou ao longo de sua história uma extensa proposta de realização da reforma agrária, a qual tem como eixos centrais de ação as seguintes características: democratização da terra; mudanças tecnológicas; comercialização; organização da estrutura de produção; agroindustrialização dos assentamentos; organização social e infraestrutura social básica, titulação das áreas de reforma agrária; política agrícola; educação; saúde, cultura, esporte e lazer; gênero, direitos humanos, programa ambiental; programa de desenvolvimento do semiárido; programa especial para a região Amazônica; Previdência Social e legislação trabalhista no meio rural. O papel do Estado na realização dessa reforma agrária fica explícito no Programa de Reforma Agrária defendido pelo MST, que sentencia: “A implementação dessas mudanças implica necessariamente em que o Estado, com tudo o que representa de poder (Executivo, Legislativo, Judiciário, segurança e poder econômico), seja o instrumento fundamental de implementação das propostas” (Stedile, 2005, p. 210). Se observarmos as propostas da reforma agrária durante esse primeiro decênio do século XXI, podemos dizer que ela foi apresentada e defendida por diversos setores (Igreja, movimentos populares, partidos de esquerda, parlamentares e alguns governos) com dois objetivos centrais: 1) desenvolver o capitalismo nacional, a partir da produção de alimentos e matéria-prima para o mercado interno; e 2) diminuir as desigualdades no campo, melhorando a qualidade de vida da população rural.


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QUAIS SÃO AS VANTAGENS DA REFORMA AGRÁRIA PARA A SOCIEDADE EM GERAL? Como não é o objetivo deste texto, apenas elencaremos algumas das principais conquistas que uma verdadeira reforma agrária poderia trazer para o conjunto da população. A) Geração de Emprego: enquanto um latifundiário com 1.000 hectares gera apenas três ou quatro empregos diretos, um assentamento com a mesma área gera mais de 150 mil empregos diretos, um aumento de mais de 5 mil por cento; B) Produção de Alimentos: está provado que os latifundiários e os empresário do agronegócio não produzem alimentos; a agricultura familiar e a reforma agrária são os grandes responsáveis por abastecer o mercado interno e colocar na mesa dos brasileiros os alimentos, a pequena e a média propriedade, se invertidas as prioridades dos governos, iram encher o mercado local e regional de alimentos baratos e de qualidade; C) O desenvolvimento local: o mercado local irá vender mais adubos, sementes, ferramentas, materiais de construção, roupas, implementos agrícolas, eletrodomésticos, etc. com a democratização do latifúndio; e d) Combate à violência; os meios urbanos não suportam mais tanta gente sem trabalho e sem perspectiva de vida. Isso é a causa de tanta violência. Só a reforma agrária será capaz de gerar, de forma barata e rápida, novos empregos no Brasil. Usando os dados do último Censo Agropecuário, realizado em 2006 e publicado em 2009, podemos fazer um retrato, uma fotografia de como está a vida e a produção no campo brasileiro e mineiro, e também possibilitar fazer algumas comparações importantes sobre as diferenças entres os grandes e pequenos agricultores, entre o agronegócio a reforma agrária e a agricultura camponesa. Os dados possibilita-nos fazer uma projeção de como poderia ser o Brasil se fosse feita a reforma agrária, tomando como base somente os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares, que somam apenas 46.911 estabelecimentos e ocupam uma área de 146.553.218 hectares, isto é, mais de 146 milhões de hectares com uma média de 3.125 hectares por propriedade. Vejamos como ficaria se fosse distribuída essa terra que está nas mãos de apenas 47 mil grandes proprietários em lotes com tamanho médio de 50 hectares por família; seriam criados 2 milhões e 920 mil


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novos estabelecimentos agrícolas, ou seja, quase 3 milhões de novas famílias camponeses disporia de terra para morar e tirar o seus sustento. Contando que a agricultura camponesa ocupa 15 pessoas a cada 100 hectares, esta reforma agrária criaria trabalho para 21 milhões de pessoas, ao contrário de 2 milhões e 400 mil criados hoje através do agronegócio. Podemos ainda acrescentar que a luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil é uma luta não só contra o latifúndio, a exploração e a concentração da propriedade da terra, mas é também, como nos disse Carlos Olavo, em uma conversa em sua residência, “uma luta contra o atraso cultural do nosso país”. É só comparar e veremos que o latifúndio e o agronegócio são atrasados tanto socialmente como economicamente. Portanto, como se pode perceber, fazer a reforma agrária não é apenas dar um pedaço de terra, é democratizar o acesso à terra de modo a mexer na perversa estrutura fundiária brasileira, criando efetivas oportunidades de trabalho e renda para que os próprios trabalhadores possam construir seus projetos de vida. Para isso são necessários infraestrutura e créditos. É preciso política agrícola que priorize a agricultura familiar e a produção de alimentos para o consumo interno, o que não é e nunca foi prioridade nos governos do PSDB em Minas. Em Minas, diante da crise estrutural do capital, ao invés de investir na pequena agricultura, o governo tem utilizado o dinheiro público para socorrer os donos dos bancos e das grandes empresas mineradoras e reflorestadoras. Parece até que os banqueiros e os grandes empresários são pessoas miseráveis e que se não receberem esses bilhões dos governos vão morrer de fome ou pedir esmolas nas ruas. Os valores do crédito não estão no Censo Agropecuário, mas no Plano Safra de 2009/2010, e demonstram que foram destinados R$ 93 bilhões para o agronegócio e R$ 15 bilhões para a agricultura camponesa. Em Minas, não se registra nenhum centavo da parte do governo do Estado para a reforma agrária e a agricultura camponesa. Isto mostra que os camponeses, mesmo sendo a ampla maioria, utilizam apenas 14% do crédito agrícola.


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O QUE SE PRETENDE PARA O FUTURO Os movimentos sociais, e principalmente os sindicatos estão retomando, ainda que lentamente, as greves, passeatas, e atos públicos em devesa dos interesses da classe trabalhadora. Sem ser maniqueísta esta é a parte boa. A ruim é que as lutas são isoladas, fragmentadas e de cunho corporativo, visando apenas melhorias para a categoria. Sabe-se que, mesmo avançando pontualmente, o que é importante, não se altera a correlação de força mais geral na luta entre o capital e o trabalho. E uma possível vitoria assim em um curto período de tempo é fácil de retroceder. No campo mineiro temos a Via Campesina como um espaço de articulação e mobilização de movimentos sociais camponeses e entidades de apoio à luta dos trabalhadores e trabalhadoras que vivem no campo. É um espaço de articulação internacional, latino-americano, nacional e regional. Assume perfis diferenciados, conforme o espaço de atuação e a diversidade das realidades locais dos movimentos que a compõem. Em Minas a Via Campesina congrega os seguintes movimentos: MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores); MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens); MMC (Movimento de Mulheres Camponesas); PJR (Pastoral da Juventude Rural); CPT (Comissão Pastoral da Terra); CARITAS; FEAB (Federação dos Estudantes de Agronomia); STRs (Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Leste de MG); e CIMI (Conselho Indigenista Missionário). No contexto de construção da Via Campesina foram assumidas algumas diretrizes orientadoras para a atuação nas diversas realidades camponesas: respeito à biodiversidade do nosso planeta, que inclui os bens naturais, os ecossistemas, as culturas e os conhecimentos tradicionais dos seus povos; a democratização do acesso e uso da terra, na construção de uma genuína reforma agrária; a soberania alimentar como direito dos povos e países a definirem a sua própria política agrícola; o direito dos camponeses produzirem as suas próprias sementes com a melhor forma de preservar a biodiversidade; promoção efetiva de igualdade de gênero, combatendo os preconceitos cultural e sexual; e a promoção da justiça e dos direitos humanos, em todos os contextos.


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No campo político partidário a Via Campesina atua mantendo sua independência, não participando de blocos de alianças para a condução política do Estado. Mantém-se fiel ao papel histórico do movimento social camponês de ser um instrumento de proposição de demandas imprescindíveis para o combate à pobreza e à miséria que assolam o campo, bem como de denúncias de todas as formas de injustiças e de negação de direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais aos povos tradicionais. É importante destacar que a Via Campesina como instrumento de articulação protagoniza espaços de diálogo na esfera pública, não se comprometendo efetivamente com programas de governo, mas apresentando demandas e pressionando práticas que promovam a construção de políticas públicas que possibilitem a inclusão social, o fim da violência, a partilha de riquezas e a preservação do espaço natural de reprodução das comunidades tradicionais.

À GUISA DE CONCLUSÃO Esse contexto histórico e social que discorremos influenciou os movimentos sociais e a esquerda como um todo a buscarem novas formas de legitimar-se perante a sociedade, buscando novas formas de desenvolver as lutas. O MST foi para as cidades articular-se com outros setores da sociedade e se pautou por reivindicações que vão além da luta pela terra, e isso o mantém ativo na sociedade. Constatamos que o povo pobre sempre lutou, em todas as épocas históricas, seja no campo ou na cidade, com maior ou menor grau de radicalidade ou de organização. Assim, as classes subalternas no Brasil lutaram no campo, por liberdade com os escravos, por terra com os lavradores e por reforma agrária com trabalhadores rurais e camponeses. A cada etapa do desenvolvimento das forças produtivas e do modo de produção de uma sociedade são criadas contradições nas quais os trabalhadores em maior ou menor grau de organização se colocam em luta. Como desafios, temos, de um lado, o desafio que se apresenta na estruturação produtiva dos assentamentos e reassentamentos das populações atingidas pelos grandes projetos, com estratégias de segurança


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alimentar, e hídrica, prezando pela a autonomia dos agroecossistemas frente a um mercado instável e sem garantias para o futuro. Por outro lado, podemos apontar a recolocação da pauta da reforma agrária na sociedade, pois é a sociedade que se beneficia com ela. Devemos contribuir para criar novas organizações autônomas e de luta. Fazer formação política e participar das lutas da classe trabalhadora. E não menos importantes, embora possa parecer paradoxal, após as duras críticas feitas ao Estado e aos governos, devemos continuar cobrando, exigindo dos governos a consolidação das políticas sociais, reivindicando as políticas públicas que são um direito dos trabalhadores. Para terminar e citar mais uma vez o autor de Nas terras do Rio Sem Dono, Carlos Olavo de Cunha: “aqui chega ao fim o nosso testemunho. Fica e continua o do povo. E a memória do povo é do tamanho do mundo.”

REFERÊNCIAS COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora DP&A., 2005. DELGADO, Guilherme. Costa. A questão agrária e o agronegócio no Brasil. In: CARTER, Miguel (Org.) Combatendo a desigualdade social. O MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010. MORISSAWA, Mitsue. A história da luta pela terra e do MST. São Paulo. Expressão Popular, 2001. NAZARENO Godeiro, Efraim Moura (Org.). Vale do Rio Doce. Nem tudo que reluz é ouro. Da privatização a luta pela reestatização. São Paulo. Sundermann, 2007. NETTO, José Paulo. Transformações societárias e serviço social. Serviço social e sociedade. São Paulo: Cortez, 1996. (n. 50, ano XVII, abr. 1996.)


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KAUTSKY, Karl. A questão agrária. Rio de Janeiro: Leammert, 1968. PEREIRA, Carlos Olavo de Cunha. Nas terras do Rio Sem Dono. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora CODECRI/PASQUIM, 1988. STEDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil. O debate tradicional: 1500-1960. São Paulo. Expressão Popular, 2005a. STEDILE, João Pedro. (Org.). A questão agrária no Brasil. Debate na década de 70: São Paulo. Expressão Popular, 2005b. STEDILE, João Pedro. (Org.). Programas de Reforma Agrária: 19642003. São Paulo. Expressão Popular, 2005c.


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José Tanajura Carvalho OS TRIBUNAIS DE CONTAS, MAIS ALÉM DE HESITAÇÕES E COMPLACÊNCIAS NO EXERCÍCIO DO CONTROLE EXTERNO DO ESTADO

INTRODUÇÃO Os Tribunais de Contas têm como atribuição precípua o controle externo do Estado, conforme disposição constitucional, e, de tal maneira, assumem a personalidade de instituição independente e livre de sujeição aos poderes constituídos. O presente artigo, utilizando uma síntese do ensaio A economia-política dos Tribunais de Contas no exercício do controle externo do Estado,1 procura desvelar até onde vão as manifestações destas instituições no exercício do controle externo do Estado, com referencial nos Tribunal de Contas da União (TCU) e do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG). Procura, então, verificar se estas manifestações são hesitantes e complacentes em razão do posicionamento idiossincrático de seus ministros ou conselheiros, avaliação formada a partir da idealização popular do mito da boa autoridade e/ou da burocracia como um mal absoluto (Reis, 1990, p. 167), ou se correspondem à cessão mesmo da sua base de legitimação, para se realizar como aparelho do Estado. A argumentação empírica do artigo se sustenta em acontecimentos envolvendo o TCEMG e o governo de Minas Gerais, no período de 2003 a 2012, embora as conclusões, como se verá, possam ser extrapoladas para o universo dos TC. O artigo espera, assim, contribuir para se conhecer a perspectiva na qual os TC se finalizam, ao discernir entre o rearranjo tópico de práticas usuais daquela de abrangência estrutural, na agenda de um eventual debate sobre estas instituições. 1 José Tanajura Carvalho. A economia-política dos Tribunais de Contas no exercício do controle externo do Estado. No prelo.


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Na sua condução, o artigo toma os TC em “dispositivos especiais quanto a suas institucionalização, estrutura, funcionamento e autonomia hierárquica (...)” (Pardini, 1997, p. 3; CRFB, Art. 72 a 74). Quer dizer, independentemente da esfera institucional (União, Estado e Município) e a despeito de variações celebradas em normas e instruções internas, os TC se apresentam em considerável homogeneidade que os tornam assentes à exploração com referências em exemplos e experiências específicas. O presente artigo se desenvolve em quatro seções, inclusive esta Introdução. Na segunda seção, discorre concisamente sobre a medida de desconcerto nos atributos dos TC, que resultam em manifestações aquém da expectativa da sociedade. A terceira seção é dedicada a perquirir o atributo político dos TC, ao destacar o posicionamento do TCEMG diante da resistência pelo governo mineiro, no período de 2003 a 2012, ao cumprimento da Lei Complementar nº 29 (Emenda 29). Ao final, o artigo traz a Conclusão no cotejamento das avaliações apontadas, e em seguida relaciona a bibliografia consultada.

AS HESITAÇÕES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS A historicidade brasileira não registra contribuições relevantes dos TC, visto que o acatamento as suas manifestações é modesto no debate sobre o devenir do país e mesmo nas circunstâncias dos estados e municípios. As razões para essa constatação decorrem de diversos atributos destas instituições, que as levam a divergir de sua distinção constitucional. No âmbito institucional, há controvérsias2 que voltam de quando em vez ao debate entre constitucionalistas, a partir da polarização entre a aceitação ou não da presença do contencioso administrativo nos fundamentos constitucionais. Uma corrente se afirma na convicção de que, por não existir o contencioso administrativo na Constituição brasileira, os Tribunais de Contas não julgam, mas somente controlam, apreciam e fiscalizam (Gaulazzi, 1992, p. 184). O julgamento caberá ao Legislativo (Câmara Federal, Assembleias e Câmaras Municipais), diante do qual o responsável pelos bens, valores e dinheiros públicos responderá poli2 Ver especialmente: Fernandes, 1998; Ferraz, 1999; Pardini, 1997; Gualazzi, 1972.


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ticamente pelos seus atos. Contudo, não lhe elidindo a culpabilidade civil e criminal pelo dano ao erário, mesmo em caso de aprovação das suas contas nesta instância de poder (CRFB, Art. 70; Ferraz, 1999, p. 155). Enfim, as afirmações contingenciam a ação dos Tribunais de Contas à incapacidade de os procedimentos precípuos do controle externo garantir temporalidade para o seu fim, com o julgamento e punição, se for o caso, do responsável pelos bens, valores e dinheiros públicos. Na afirmação de Speck (2000, p. 208), um dos motivos da suposta ineficiência dos Tribunais de Contas é a imprecisão de sua natureza jurídica. Nessa linha de pensamento, Costa – então Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais – chegou a propor a transformação das atribuições dos Tribunais de Contas em competência dos Tribunais de Justiça, e, hilário, justifica: “Tribunal é órgão de segunda instância e o nosso [referindo-se ao Tribunal de Contas em geral] é de instância única. Começa e acaba em si mesmo, e, isto, não faz coisa julgada, e, assim, seus feitos não transitam em julgado, não têm fim, e o que não tem fim não acaba nunca (...)” (Costa, 2000). A outra corrente da polêmica é de os Tribunais de Contas terem, sim, a atribuição de julgamento: “... a situação jurídica de que desfruta o Tribunal de Contas da União – mesmo quando a propósito não seja expressa a nossa Constituição – coloca-o na posição de um órgão judicial, ainda que de natureza peculiar, sui generis” (Cotrim Neto, 1982). A controvérsia, no entanto, não consegue avançar para uma solução dos inibidores da atuação institucional dos Tribunais de Contas. O confinamento do debate na competência jurisdicional é um dos seus embaraços, visto que o debate, monolítico nas formulações do direito, não alcança a luta social e política originária na divisão do trabalho, afinal, processo dialético definidor da matriz do poder estatal, que se reproduz, então, na legitimação de interesses deformadores do efetivamente real. Nesse estirão, o Estado assume formas simuladas de descaracterização dos propósitos constitucionais e sub-repticiamente esconde, ou procura esconder, a sua realidade própria. A questão institucional dos TC não é e não poderá permanecer, portanto, restrita à faculdade jurisdicional, a ser, pois, empreendimento para o entrelaçamento de muitos outros conhecimentos, e, sobretudo, no aprofundamento do debate com a participação efetiva da sociedade.


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De maneira especial, há desacertos nas essencialidades dos TC que contribuem para suas manifestações se tornarem contingentes em conformidade com os estabelecimentos constitucionais. Um desses desacertos é o encaminhamento do Parecer Prévio, apreciação das contas públicas pelo Tribunal Pleno – constituído pela totalidade dos ministros e conselheiros dos respectivos TC – ao Poder Legislativo (respectivamente, nas esferas municipal, estadual e federal), que o aprova ou não. Não sendo difícil se concluir que, na maioria das vezes, a aprovação fica subordinada a casuísmos políticos e privados e não a preceitos técnicoformais, porquanto encerra dois paradoxos. Primeiramente, a atribuição constante na CRFB dá ao Legislativo, função judicante, em clara sobreposição a atribuições do Poder Judiciário, e confronto direto com as clássicas doutrinas (poderes independentes e harmônicos) do Estado (Montesquieu, 1993, p. 90 e 530; CRFB, Art. 2º). Em segundo lugar, o preceito constitucional permite a possibilidade paradoxal de um parlamentar (deputado ou vereador) participar ou influenciar, com maior articulação presencial junto aos seus pares do parlamento, no julgamento das suas próprias contas, caso tiver exercido funções executivas. Essas situações, potencializadas com injunções e negociações de interesses político-partidários e privados, tornam possível o Legislativo aprovar ou rejeitar a prestação de contas do Executivo contrariamente às recomendações dos TC. Os Tribunais de Contas3 brasileiros também não acolhem a preocupação com o arcabouço organizacional e operacional capaz de promover o controle externo do Estado voltado para razoável proveito da sociedade. Isto é, os TC, no exercício de sua atribuição precípua, o controle externo, não o fazem no encaminhamento das avaliações na totalidade (econômica, social e política) do Estado. Com a informação-pública a ser daí extraída e processada com a objetividade e a linguagem cognitivas pelo indivíduo, enquanto parte da sociedade,

3 Os Tribunais de Contas Estaduais tratam dos entes estaduais, enquanto os Tribunais de Contas dos Municípios dedicam-se aos entes municipais. Os Tribunais de Contas de Municípios controlam as contas de um município específico, como é o caso de São Paulo. Em Minas Gerais, o TCE realiza o controle externo, tanto em entidades estaduais como municipais.


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que, desse modo, terá a percepção do ato público como pertencente a sua própria vida (Rochet, 2002). Entre os fatores de contingenciamentos dos TC destacam-se aqueles relacionados com a indicação de seus ministros e conselheiros, respectivamente pelo Presidente da República e pelos governadores dos estados. Porquanto, em trabalhos de Speck (2000) e de Carvalho (2001), a partir de pesquisas e metodologias diferentes, constata-se que os indicados para esses cargos antes de assumirem o cargo não possuíam experiências suficientemente relevantes para denotar notoriedade técnica ao exercício desses cargos se se ativessem aos princípios constitucionais como critérios de indicação, tendo em vista que a maioria de cargos e funções que anteriormente ocuparam e exerceram não apresenta conformidade com o controle externo. Há ainda desacertos na compreensão de estabelecimentos constitucionais, principalmente quanto aos princípios de legitimidade e economicidade (CRFB, art. 70), recorrendo-se, muitas vezes, a entendimentos sem fundamentação léxica e reflexão teórica, para contornar o suposto vazio conceitual. Com o inconveniente de que, no rigor da formalidade constitucional, a valoração de ações dos entes jurisdicionados realizarse-ia considerando isonomicamente princípios constitucionalmente estabelecidos agregados a outros de definição limitada na informalidade empírico-conceitual. Os constrangimentos provocados por diversos atributos dos TC, no cumprimento da missão constitucional, trazem-lhes desestima diante da sociedade, quando, insistentes vezes, questiona a sua legitimidade. Um exemplo desses constrangimentos é a frustração do Tribunal de Conta da União na execução da cobrança de multas imputadas aos entes jurisdicionados e efetivamente recebidas. No período de 1991 a 1999, o TCU recolheu o correspondente a 1,52% do valor total de multas imputadas. Entre 2008 a 2012, o percentual recolhido ficou entorno de 5,5% do total. Segundo Mazzon e Nogueira (2002), as multas imputadas pelos TC municipais e estaduais, em todo país, no exercício de 2001, chegaram a um recolhimento real de apenas 4,81%. No TCEMG, o percentual de recolhimento de multas imputadas foi de 10,96%, em 2010, 57,39%, em 2011, e, em 2012, chegou a 25,57%. Como se observa, houve melhoria no recebimento de multas imputadas, porém, a desproporção continua


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significativamente elevada, não representando alterações na estrutura de imputação e recebimento de multas. No caso do TCEMG, os percentuais são um pouco maiores. Entretanto, vale observar que não há imputação de multas com relação às contas do governador4 no período de 2003 a 2010, recaindo todas, possivelmente, sobre os entes jurisdicionados municipais, com os quais o TCEMG, e de uma maneira geral também nos demais tribunais estaduais e municipais, tem sido incisivo em fazer cumprir a legislação pertinente à gestão das contas públicas (CRFB, LRF, Lei 4320 e legislação subsidiária; Ouvidoria no cumprimento à Lei de Acesso à Informação do TCU e do TCEMG). Com frequência, o posicionamento de hesitação e complacência dos TC se corrobora em atitudes frente a momentos críticos sobre os quais a sociedade aguardara posicionamentos esclarecedores e decisivos, e que, no entanto, o epílogo remonta em frustração de expectativa. Um fato recente, por exemplo, trouxe perplexidade a todos, quando o TCU suspendeu a sua decisão anterior, a de considerar como regulares contratos comerciais arrolados como peça no processo, no Supremo Tribunal Federal, da Ação Penal nº 470, com a implicação tácita de a ação penal se tornar sem o reconhecimento de efetivação do direito. Não obstante o cenário político do país, o recuo no posicionamento não se seguiu de explicações condizentes à importância estratégica do papel destinado ao TCU naquele momento. Outro exemplo é a questão relacionada à insistência do não cumprimento da Lei Complementar nº 29 (Emenda 29) pelo governo mineiro entre 2003 a 2012, e a respectiva atuação do TCEMG nesse affaire, ao desobrigar, através da Instrução Normativa nº 11 de 2003, esses jurisdicionados de cumprirem tal lei complementar. Consequentemente, o TCEMG aprovou as contas do governador, ainda que constassem recomendações contrárias e explicitas nos Relatórios Técnicos, elaborados pelos servidores do Tribunal, com fundamentos na emenda constitucional e nos entendimentos constantes na Resolução CNS 322/03 do Conselho Nacional de Saúde. Recidivo, em 2012, o TCEMG firmou o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) com o go4 Assim denominada pelos TC, visto que quem presta contas é o ocupante do cargo de governador, e não o governo.


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verno mineiro, que representa, na prática, posicionamento semelhante, ou seja, desobrigação de cumprimento da Emenda 29. Com a aparente repercussão local, entretanto, a questão da saúde e de resto a produção e distribuição de bens públicos no país remete ao governo de Fernando Henrique Cardoso, com o seu significado neoliberal sustentado no Estado mínimo e na valorização do mercado. Assim revelada, a obstinação dos governantes de Minas Gerais em não cumprir a Emenda 29, no período de 2003 a 2012, permeia o viés ideológico, e se enraíza por todo o aparato estatal e segmentos empresarial e da elite burocrática mineira, inclusive pelo TCEMG, como se verá na próxima seção.

O TCEMG E A RESISTÊNCIA DO GOVERNO DE MINAS À EMENDA 29 A Emenda 29 de 13 de setembro de 2000, como se sabe, dispõe sobre a vinculação de receitas às ações e serviços públicos de saúde – ASPS; no entanto, seus dispositivos não foram obedecidos pelos executivos em alguns casos, sob a alegação de faltar regulamentação à emenda constitucional. Contudo, a questão, ao ser examinada com maior acuidade, desvela que não se tratou de vazio formal. Na realidade, por trás dessa alegação, estão interesses do capital, que, aliados ao oportunismo das pequenas políticas locais, buscaram transformar a saúde pública brasileira, sob o seu total domínio, em novo nicho de mercado (sic). A estratégia se inicia na tentativa de transformar o conceito e o objeto de saúde pública, como havia sido adotado no país após a Constituição de 1988 e, principalmente com a criação e implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), fruto da luta social brasileira expressa na Assembleia Nacional Constituinte e mobilizações posteriores. A saúde, que na acepção social e como direito do indivíduo nunca teve historicamente o acolhimento nas prioridades dos poderes até então constituídos, recebe outra dimensão na configuração do neoliberalismo, porquanto deixa de ter o caráter de bem público para se constituir em mercadoria a ser provida pelo mercado. Em outras palavras, o projeto é ter a saúde pesada, vendida e comprada nas conveniências da reprodução do capital.


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Decorre dessa estratégia que as conquistas sociais representadas pela vinculação de receitas às ASPS, dispostas na Emenda 29, deveriam ser suprimidas do contexto das políticas públicas de saúde com destinação social, dando-lhes novo direcionamento. Isto porque, ao vincular percentual das receitas públicas para os gastos e investimentos das ASPS, se cumprida integralmente na conformidade de seu texto e aliada à concepção original do Sistema Único de Saúde, a Emenda 29 traria a possibilidade de solução para financiamento da saúde pública no Brasil, uma das questões cruciais postas à sociedade. O que seria notavelmente realizado sob a perspectiva exclusivamente pública, gratuita e universal, isto é, sem a intromissão do setor privado, dominado por grupos/fundos financeiros nacionais e internacionais, cooperativas de profissionais de saúde com suas elites de diretores e assessores altamente remuneradas, e as sociedades empresariais de grandes hospitais. O Governo FHC já havia experimentado a tentativa de privatizar a saúde pública brasileira no contexto do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, com empenho e dedicação do então Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, economista Luiz Carlos Bresser-Pereira. A reforma do Estado, proposta nesse governo, fez parte da ação governamental como componente da estratégia neoliberal, compreendida por três ações básicas: a) substituição ao que se chamou de administração pública burocrática e clientelista por uma administração gerencial ou nova administração pública; b) modificação do sistema previdenciário, transformando-o em fundos de investimento (BresserPereira, 1999, p. 38); c) privatização de empresas e serviços públicos passíveis de reverterem seus objetivos sociais para a busca do lucro (Berquó, 1999). O princípio básico da proposta sintetizava-se na administração gerencial, estabelecida nas relações de mercado, inclusive naquelas atividades consideradas como bens e serviços públicos em geral, notadamente a saúde e a educação. A instalação dessa política assumiu procedimentos açodados do governo, quando até mesmo aspectos formais não foram de todo resolvidos, como está claro no Plano Diretor, Item 7 – “Estratégia de Transição”, no qual o então ministro Bresser-Pereira defendeu, à época, a necessidade de se “... obter avanços significativos, ainda que os constrangimentos legais não sejam totalmente removidos”. Segundo Costa Filho: “...o processo [referindo-se


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ao Plano Diretor] se afasta de qualquer padrão democrático na medida em que se constrói sobre o informalismo e o lobby, de natureza intrinsecamente excludente” (Costa Filho, 1997, p. 188). A implantação do Plano Diretor, como se viu, apresentou-se excludente, autoritário e, exemplarmente, como uma atitude de afirmação do caráter intransitivo do Estado brasileiro quanto à acessibilidade da informação-pública. Todavia, a reforma do aparelho estatal, empreendida por FHC/Bresser-Pereira, ficou inconclusa, diante de incoerências da policy advocacy, com destaque: na perspectiva distorcida da realidade socioeconômica e geopolítica do país, inconsistente aspecto operacional, e da sua rejeição tácita pelos segmentos populares da sociedade. Porém, observa-se que a sua essência resistiu e se consolidou. As agências autônomas, por exemplo, foram fortalecidas pelos interesses de grandes grupos econômicos e financeiros e da elite burocrática, e se mantiveram insuladas no posicionamento de total independência da máquina estatal e, como sói acontecer, da sociedade,5 bem como as proposições neoliberais passaram a ser cultivadas por governos dos estados, com maior empenho pelo governo de Minas Gerais, a partir de 2003. O entendimento, assim, é de que a reforma do Estado FHC/Bresser avançou até onde foi possível momentânea e politicamente satisfatória ao capital. Visto que, à época de promulgação da Emenda 29, os segmentos capitalistas ligados à saúde não puderam contar com o timing político favorável à reversão em benéficos próprios das perspectivas de mobilização dos recursos públicos financeiros em montantes colossais que a nova emenda constitucional projetava. A impressão mesmo que se tem é de a Emenda 29 ter sido parte de estratégia de o capital se apropriar dos recursos previstos, com o simulacro de se tratar de proposta com alcance popular. No entanto, houve a necessidade política de dar tempo ao tempo para se refazer do esforço despendido no decurso de venda das empresas estatais a preços aviltantes. Fatos que não deixaram de melindrar a opinião pública, mesmo tendo sido um processo realizado com a escamoteação de informações sobre o processo de desestatização e o deliberado cerceamento de participação 5 A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é um exemplo, cuja atuação merece ser avaliada criticamente em estudo específico.


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da sociedade civil. A alternativa prudencial parece ter sido a de aguardar momentos propícios para, então, voltar-se à privatização de atividades de notório interesse social e sujeitas à mobilização política de segmentos populares, como, por exemplo, a saúde pública, previdência social, grandes extensões do território nacional destinado à agricultura em larga escala, e, no plano dos negócios, as vendas do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e o que ainda havia de público na Petrobras. Todavia, a alteração do mando político no cenário nacional, em 2003, alterou substancialmente essas pretensões, embora nos dias atuais já se avizinhem proposições assemelhadas com roupagem em outros matizes. A partir de 2003, os setores privados voltaram à carga com o objetivo de mercantilizar a saúde no Brasil, com apoio sustentado na parceria com o Banco Mundial, instituição que, segundo Rizzotto (2000), age nos “... interesses político/ideológicos e econômicos que tem permeado determinados processos, aparentemente favoráveis à consolidação do SUS, mas que em realidade modificam substancialmente a configuração original deste Sistema”. Como parte da sua estratégia, essa instituição financeira internacional publicou, em 2008, o livro Desempenho hospitalar no Brasil: em busca da excelência, de autoria dos doutores Gerard La Forgia e Bernard Conttolenc, representantes da Interhealth Soluções em Saúde e da Universidade de São Paulo. Em síntese, os autores procuram apontar a incapacidade de o sistema hospitalar brasileiro se apresentar em níveis de eficiência exigidos para atender a demanda crescente, e, implícita e explicitamente, indicam como solução a privatização da saúde, portanto, com a exclusão dos princípios da equidade, universalidade e gratuidade do formato original do SUS, sustentado na CRFB, Art. 196, e Leis nº 8080/1990 e 8142/1990. A eficiência do aparelho estatal, alinhada no discurso neoliberal desses autores, é estabelecida na lógica recursos/custos/oferta/demanda/lucro em saúde, e deverá se propagar, continuamente, na fundamentação da aliança entre o Estado e o mercado da saúde. Não é difícil compreender que o estratagema era permitir o processo de cessão paulatina, pelo Estado, dos aparelhos de saúde, concomitante com o repasse de recursos públicos a grandes grupos privados constituídos segundo as regras do terceiro setor, seguradoras e grandes empresas de hospitais.


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No tempo em que se enalteceriam os direitos individuais e não mais da sociedade, a partir da sedução com instrumentos de marketing político, como pedagogia-subliminar de controlar e transformar as necessidades de saúde em demandas de serviço. A proposta dessas políticas de saúde não se efetiva a partir das causas de aumento das necessidades de saúde (promoção e proteção de saúde; prevenção, tratamento e reabilitação de doenças), mas nas formas de encontrar condições (infraestrutura hospitalar, tecnologias de última geração, geralmente importadas, centralização de atendimentos em grandes hospitais em cidades polos, com o objetivo de ganhos de escala, transportes de pacientes, etc.) para dar conta do aumento da demanda (sic). Em outras palavras, a qualidade da saúde dá lugar à quantidade de atendimento. A saúde deixa, então, de ser um bem público como direito social. Num contexto no qual as definições sobre saúde pública se dão segundo planilhas de custo e, portanto, atentas ao alerta dos riscos financeiros, e sucedendo o seu sentido, por conseguinte, na busca do máximo lucro, expressão objetiva da gestão por resultados. O bem viver da sociedade brasileira passaria a ser gerido, então, não no enfrentamento às causas das necessidades de saúde vinculadas aos seus limites e fragilidades, mas a partir de adequações aos recursos determinados pela imagem-objetivo do lucro. A necessidade de saúde transforma-se, enfim, em demandas de saúde. A proposição se completa na mensuração do resultado das ações de saúde através de metodologias externas de controle de qualidade ou autorregulação. Uma prática ilusória, pois o atributo saúde implica uma dimensão qualitativa e subjetiva que transcende qualquer método externo. Ademais, o corporativismo na autorregulação é decisivo diante da avidez do capital representado por grandes organizações privadas de saúde, as agências reguladoras e o próprio BIRD. A estratégia é, assim, desmontar a estrutura brasileira de saúde fazendo romper os ganhos sociais representados pelo SUS, com o sucateamento do aparelho estatal de saúde, a partir da restrição do investimento público, pelo menos até quando o sistema permanecer nas mãos do Estado e a saúde como direito social estiver viva na consciência da sociedade civil, para, então, doar ou subordiná-lo à iniciativa privada, organizações do terceiro setor, cooperativas de saúde e seguradoras em geral.


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Entretanto, a Emenda 29 veio com extraordinária aceitação popular e sua repercussão assumiu uma dinâmica sobre a qual os defensores (políticos, técnicos e burocratas do governo e de cooperativas de saúde, agências internacionais e capitalistas) do neoliberalismo não contavam que ocorresse, levando-os, na ânsia de ampliação do poder político e econômico, a atitudes cruciais por cima do regulamento constitucional. No caso dos governos mineiros entre 2003 e 2012, o não cumprimento da Emenda 29 é notório e contou com o apoio da Assembleia Legislativa e a aceitação do TCEMG. A Emenda 29, como se sabe, no seu Art. 7º, dá nova redação ao Art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CRFB, ao disciplinar os percentuais de aplicações mínimas nas ASPS pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Para os estados, a emenda define o percentual mínimo de 12% da Receita Vinculável, com base de cálculo no produto da arrecadação dos impostos e dos recursos transferidos e deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos municípios. O Conselho Nacional de Saúde, no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas formalmente (com fundamentos nas leis: Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990; Lei n° 8.142, de 28 de dezembro de 1990; artigo 77, § 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT), e provocado por segmentos da sociedade, resolveu homologar a Resolução CNS Nº 322, 08 de maio de 2003, com considerações entre as quais se destacam: a. Os dispositivos da Emenda Constitucional nº 29 são autoaplicáveis; b. Há necessidade de esclarecimento conceitual e operacional do texto constitucional, de modo a lhe garantir eficácia e viabilizar sua perfeita aplicação pelos agentes públicos até a aprovação da Lei Complementar a que se refere o § 3º do artigo 198 da Constituição Federal. Com a finalidade de dirimir eventuais dúvidas na aplicação da emenda, o CNS apontou, no texto da resolução, as diretrizes cabíveis na aplicação da Emenda 29 (Quinta e Sexta Diretrizes), e, em confor-


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midade com o disposto na Lei 8.080/90, tornou explicitas (Sétima Diretriz) as despesas que não são consideradas como ações e serviços públicos de saúde. As receitas do Estado de Minas Gerais para o exercício de 2009, segundo dados da Secretaria de Estado da Fazenda, apresentaram o valor orçado no montante de R$ 23,156 bilhões, enquanto ao final do exercício a receita efetivada (valor realizado) correspondeu a R$ 21,809 bilhões. As despesas com saúde foram orçadas em R$ 3,460 bilhões, e a aplicação chegou a R$ 3,367 bilhões. No entanto, as despesas orçadas com saúde, se atendidas as diretrizes da Resolução CNS 322/03, atingiriam R$ 2,113 bilhões, e as realizadas se reduziriam a R$ 1,781 bilhão, com uma diferença em relação à previsão de R$ 331 milhões. A defasagem, entre o orçado pelo estado e a Resolução CNS 322/03, chegou a R$ 1,347 bilhão. No caso dos valores realizados (realmente aplicados), a diferença foi de R$ 1,585 bilhão. Isto se deve ao fato de o estado computar rubricas não definidas na Quinta e Sexta Diretrizes do CNS como passíveis de consideração entre as despesas de ASPS. Assim, as dotações orçadas, mas passíveis de serem glosadas segundo a Resolução CNS 322/03, montaram R$ 1,348 bilhão, e as realizadas, R$ 1,600 bilhão. As despesas consideradas pelo estado incluíam valores referentes à Polícia Militar, à saúde dos Servidores e dos Militares, orçadas no IPSEMG e IPSM, despesas previdenciárias em passível exigível do IPSEMG e do setor de saúde do Estado; e investimentos da COPASA. Somente nesta última, foram considerados, como gastos orçados e realizados com a ASPS, R$ 825 milhões e R$ 1,017 bilhão, respectivamente. Ao computar despesas com previdência de servidores, em 2009, e investimentos da COPASA, além de não atender à Resolução CNS 322/03, o governo do Estado acrescentou, às despesas com ações de saúde, as quais não correspondiam a ações presentes, incorporando um passivo com natureza previdenciária, e outras que não eram propriamente políticas sanitárias. É de se notar que na apreciação das contas de 2007 e 2008 o Relatório Técnico do TCEMG já havia glosado essas despesas das contas estaduais, reduzindo o percentual oficial de aplicação, fato desconsiderado nos demonstrativos oficiais do Executivo (TCEMG: Relatório Técnico - 2007, 2008 e 2009). No caso das despesas com serviços de saúde destinados aos servidores civis e aos mili-


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tares, a inclusão de despesas contrariou o princípio de universalidade, uma das bases constitucionais do SUS, visto que, ao destinar recursos públicos a sistemas de saúde restritos a clientelas fechadas, o Estado retira das ASPS o caráter redistributivo estabelecido na Constituição. Os procedimentos de prestação de contas do governador, relacionados com a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), configuram-se com igual ou maior gravidade. O Decreto 44.884, de 1º de novembro de 1988, proíbe essa empresa de prestar serviços gratuitamente, significando que, ao investir nas suas atividades, deverá cobrar tarifas dos seus usuários. Assim, os valores investidos não poderiam ter sido considerados como gastos da saúde, conforme a Sétima Diretriz da Resolução CNS 322/03, uma vez que seriam ressarcidos àquela empresa pelos usuários de seus serviços. Nesse procedimento, o princípio de gratuidade dos serviços de saúde, inscrito na Constituição do Estado e na legislação do SUS, fica afetado. Em resumo, o governo do Estado orçou, para 2009, a aplicação de receitas vinculadas pelo Estado nas ASPS, no percentual de 14,94%, correspondendo a 2,94% acima do percentual mínimo definido pela Emenda 29, e, nas respectivas contas do exercício, registrou 15,44% no cômputo dos valores realizados, portanto, 3,44% acima do mínimo legal. Entretanto, expurgados os valores em desconformidade à Resolução CNS 322/03, o percentual orçado cai para 9,13%, e o realizado, para 8,17%, com uma defasagem real de 2,87% e 3,83%, respectivamente. Em valores isto significa, respectivamente, R$ 665,515 milhões e R$ 835,252 milhões, somente para o exercício de 2009. No Relatório Técnico do TCEMG sobre as contas do Estado de 2008, os percentuais eram, naquele exercício, da ordem de 14,06% para os recursos vinculados em orçamento. No entanto, continua o Relatório Técnico, ao se excluírem as despesas com Polícia Militar, Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (IPSEMG), Instituto de Previdência dos Servidores Militares (IPSM) e COPASA, o percentual de valores realizados se reduz para 6,66%. Para o exercício de 2010, com base na Lei Orçamentária, a estimativa do percentual de aplicação da Receita Vinculada chega a 15,05%, entretanto, aplicadas as diretrizes da Resolução CNS 322/03, esse percentual cai para 9,30%. Em valores correntes, o resultado apontado


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na prestação de contas do governador é de R$ 730,236 milhões positivos, que, se aplicada à resolução do CNS, passariam para R$ 646,105 milhões negativos. Com base nos dados dos Relatórios Técnicos do TCEMG, a não aplicação média anual do Estado, entre os anos de 2003 a 2008, pode ser estimada em torno de R$ 700 milhões/ano. Isto representa, em termos estimativos, que os recursos não aplicados na saúde do Estado no período de 2003 a 2010 poderão chegar à casa de R$ 5,600 bilhões, o que se constitui em perda de capacidade de implantação de políticas públicas dirigidas à melhoria na qualidade de vida no Estado. De mais a mais, cabe observar que, mesmo os recursos realmente aplicados pelo Estado, ainda se perdem na multiplicidade de programas e projetos, gerenciados pela Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (SES), que mais confundem a sociedade do que atendem as suas necessidades em saúde, conforme se infere da publicação do compêndio O Choque de Gestão, na saúde em Minas Gerais, publicado por essa secretaria em 2008. Pelo exposto, observa-se que a atuação do governo de Minas Gerais, no período de 2003 a 2012, teve como legado o ideal neoliberal do governo FHC na precarização da estrutura de saúde do Estado, como estratégia de propiciar condições à afirmação de empresas privadas e cooperativas profissionais na gestão efetiva da política de saúde estadual, com a consequente discriminação e exclusão de segmentos sociais ao acesso desse bem público. Entrementes, o governo utilizou-se das prestações de contas encaminhadas ao TCEMG, com registros de uma contabilidade frívola, para propagar a ideia de ser uma gestão pautada no princípio da eficiência, portanto, em atendimento à Emenda Constitucional nº 19/1998, através de extensa campanha publicitária na mídia estadual e nacional, com usos dos tropológicos Déficit Zero e Choque de Gestão. Ao publicar a Instrução Normativa nº 11 de 2003, desobrigando o governo do Estado de cumprir a Emenda 29, o posicionamento TCEMG contribuiu para preservar o desacerto formal e operacional das contas públicas do estado, e, mais grave ainda, prejudicar toda a concepção de política pública na saúde estabelecida na Constituição de 1988 (Art. 35, 70 e 196) e legislação auxiliar. A decisão do TCMG possibilitou


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a aprovação, subsequente, das contas do governador nos Pareceres Prévios, referentes a diversos exercícios, porquanto houvesse posicionamentos contrários e explícitos nos Relatórios Técnicos daquela instituição. Posteriormente, a Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, regulamentou a Emenda Constitucional nº 29, de 2000, com a manutenção dos entendimentos gerais da Resolução CNS 322/03 do Conselho Nacional de Saúde. Entrementes, o governo de Minas Gerais, com permissão formal da Assembleia Legislativa, firmou o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) com o Tribunal de Contas do Estado que, na prática, desobrigava-o, mais uma vez, de cumprir a disciplina constitucional, ou seja, de investir o mínimo constitucional de 12% das suas receitas vinculadas na saúde6. No seu entendimento, o TCEMG divulgou, à época, que o acordo estava regular e permitia ajustar ações, nos casos em que não houvesse má-fé (intenção dolosa), sem que fosse necessariamente com inflição de pena. Entretanto, o Tribunal de Justiça, atendendo solicitação do Ministério Público Estadual, definiu, posteriormente, pela obrigatoriedade de o governo cumprir o preceito constitucional, inclusive estipulando multa pelo não cumprimento da Emenda 29. O desfecho do conflito na lide do Tribunal de Justiça torna difícil se dimensionar a ressonância institucional que o episódio terá em relação ao TCEMG, considerando tratar-se de um tribunal com jurisdição própria e privativa, inclusive contando com o Ministério Público especial para lidar com causas restritas ao seu instituto. No plano do atributo político, a manifestação do TCEMG, favorável à obstinação do governo do Estado de não cumprir a Emenda 29, revela a atitude contrária aos anseios da sociedade. Visto que a Emenda 29, a Resolução CNS 322/03 do Conselho Nacional de Saúde, e a Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, são claras ao estabelecer os critérios e objetivos de investimentos na saúde para atender ao bem-estar de toda a sociedade, mas com atenção especial àqueles de mais baixos salários. Todavia, na eventualidade de surgirem questionamentos postos pelo governo mineiro, a expectativa era de o juízo do 6 O TAG desobriga também o governo do estado de Minas Gerais do investimento mínimo de 15% na Educação, percentual estabelecido na LRF.


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TCEMG ter sido formalizado no critério da razoabilidade estrita ao bem da maioria, o que, como se viu, não aconteceu, pelo contrário, houve o enredamento entre dois atores cujo pressuposto constitucional é a autonomia e competência diversa. Os acontecimentos, de qualquer forma, evidenciam maior ceticismo da sociedade quanto ao desempenho dos TC no exercício do controle externo do Estado, visto que não se trata de um comportamento hesitante e complacente de temporalidade momentânea ou circunstancial, mas, costumeiro, revela-se no aparelhamento do Estado.

CONCLUSÕES O artigo, ao propor avaliar os TC, faz duas considerações essenciais. Primeiramente, destaca a sua singularidade constitucional como lócus para o exercício do controle externo do Estado, que os distingue como dispositivos especiais no arcabouço estatal, por conseguinte, livre de sujeição a qualquer poder constituído na sua atribuição precípua. A segunda consideração trata do desconcerto dos seus atributos, que terminam por contingenciar suas disposições constitucionais e os leva ao desestímulo junto à sociedade. De maneira detalhada, o artigo avalia o atributo político dos TC a partir das manifestações do TCEMG em relação à resistência do governo de Minas Gerais em cumprir a Emenda 29, no período de 2003 a 2012. Com este detalhamento é possível visualizar que, assim como enfatizara o governo FHC, através do seu Ministro Bresser-Pereira, no propósito de implantar o programa de modernização da máquina estatal federal, mesmo contrariando as formalidades legais, o TAG representa a estratégia do governo de Minas em preservar seus objetivos neoliberais, utilizando-se de artifícios para afastar as restrições das normas ou se transparecer ajustado aos princípios constitucionais. Nos termos exposto pelo artigo, conclui-se, primeiramente, que a atuação do governo de Minas Gerais, no período de 2003 a 2012, em relação à saúde, foi contrária aos propósitos definidos na Emenda 29 e adversa à expectativa da sociedade. Todavia, atento a possíveis reproduções desfavoráveis a sua atuação, tanto na política como na disciplina


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das normas, procurou manter-se nas aparências da formalização com a sustentação do próprio Tribunal de Contas do Estado. Em segundo lugar, pelo exposto no decurso do artigo, este comportamento vezeiro do TCEMG, mutatis mutandis também dos demais TC, extrapola a perspectivas de suas manifestações idiossincráticas em relação ao exercício do controle externo do Estado, a princípio vistas como atitudes hesitantes e complacentes, para se compor como seu aparelho ideologicamente comprometido.

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Érica Anita Baptista

AÉCIO NEVES E OS ENQUADRAMENTOS MIDIÁTICOS DE SUA PRESIDENCIABILIDADE

INTRODUÇÃO O cenário político em 2010 foi marcado por disputas eleitorais, sobretudo pela Presidência do Brasil. O Partido dos Trabalhadores (PT) esteve à frente do governo por oito anos e seria uma oportunidade para que a oposição, representada especialmente pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), voltasse ao poder. O momento era importante para a legenda, que tinha a difícil tarefa de indicar um candidato capaz de disputar as eleições presidenciais com o candidato que seria indicado pelo então presidente Lula. A importância do momento inaugurou uma série de disputas internas no partido tucano, em busca daquele que melhor representaria a legenda. A disputa polarizou-se entre o paulista José Serra e o mineiro Aécio Neves e se realizou tanto internamente, no âmbito do partido, quanto externamente, na mídia, ambiente em que as imagens dos atores políticos foram construídas, administradas e confrontadas em busca do melhor candidato. As pesquisas de intenção de voto permearam todo o processo de disputa, sendo contratadas tanto pelo partido quanto pela mídia, na tentativa de compreender as preferências dos eleitores. Consideram-se os primeiros meses de 2010 como o auge das disputas internas do PSDB. Na mídia ou no interior da legenda, os candidatáveis procuraram comprovar suas competências administrativas e as habilidades que os capacitariam a representar o partido. Aécio, por sua vez, recorreu à mídia para construir, ou melhor, dar continuidade à construção de sua imagem como presidenciável. A partir desse cenário, a proposta foi investigar se e como o jornal Estado de Minas (EM) construiu imagem de Aécio Neves como presi-


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denciável. Para tanto, alguns acontecimentos foram analisados, a partir do que se pode chamar de modos operatórios da mídia, no jornal mineiro e também na Folha de S.Paulo (FSP), para fins metodológicos de comparação. Os acontecimentos selecionados foram: o instituto DataFolha apontou queda de José Serra nas pesquisas de intenção de voto e crescimento de Dilma Rousseff; centenário de Tancredo Neves; e inauguração da Cidade Administrativa de Minas Gerais. Como recorte temporal considerou-se os dias entre 27 de fevereiro e 5 de março, quando houve uma sobreposição dos acontecimentos mencionados. Considera-se, ainda, um suposto alinhamento entre a imprensa mineira e Aécio Neves, o que é um assunto em alguns trabalhos acadêmicos (Oliveira, Fernandes, 2008), bem como na mídia de modo geral.1 Importante mencionar que o presente trabalho é parte de uma dissertação e, portanto, nesta oportunidade, serão apresentados alguns resultados da pesquisa.

O CAMPO MIDIÁTICO A sociedade é formada por um conjunto de campos sociais, relativamente independentes, e o capital que gere o interior dos campos é o simbólico (Bourdieu, 1998). No âmbito desta pesquisa, faz-se necessário compreender a existência do campo midiático e do campo político, com suas especificidades e diferenças, mas que dialogam e se relacionam. Por sua relação íntima com a genealogia do espaço público, o campo da mídia apresenta processos rituais de visibilidade disseminados “pelo conjunto do tecido social moderno”, abrangendo assim o conjunto da experiência do mundo (Rodrigues, 1990). É necessário ressaltar a noção de centralidade da mídia nas sociedades contemporâneas, por estar presente em diversas esferas da atividade humana, em especial na vida política (Rodrigues, 1990). Também se destaca a relação entre o campo midiático e o político. Uma vez que 1 Cita-se como exemplo o artigo “A imprensa nos trilhos”, do ombudsman da Folha de S.Paulo, de Marcelo Beraba, no qual há relevantes críticas sobre o posicionamento submisso da mídia em geral.


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são campos de naturezas distintas, é uma relação, por vezes, conflituosa. No entanto, um campo não se sobrepõe ao outro, eles interagem. O campo político seria a esfera da argumentação, da racionalidade, revelando seu caráter imprevisível, a partir das negociações políticas. A mídia traz a previsibilidade e a noção de planejamento, para garantir visibilidade aos seus produtos culturais. A respeito da centralidade da mídia, Lima (2006) comenta que ela tem o poder de definir o que é público e, mais ainda, ela pode operar na constituição do “evento público”. Os partidos políticos, antes, participavam da construção da agenda pública e fiscalizavam o governo; são papéis que, hoje, a mídia também exerce. Tendo em vista o estudo aqui proposto, também é válido destacar a ideia de agenda-setting,2 que propõe a atuação da mídia enquanto construtora de uma representação da realidade, na medida em que ela destaca determinados assuntos. Alguns pesquisadores avançaram nessa discussão, e na tentativa de refinar os conceitos, recorreram à hipótese de “enquadramento”. Estes seriam um segundo nível de efeitos, e mais do que analisar como a mídia afeta no “sobre o que” as pessoas pensam – primeiro nível de agendamento –, viu-se a importância em perceber “como” o público pensa acerca desses temas – segundo nível de enquadramento. Para a presente investigação foram considerados os enquadramentos propostos por Mauro Porto (2001; 2004). O autor diferencia os dois principais enquadramentos midiáticos: noticiosos e interpretativos. O primeiro relaciona-se com seleção e a ênfase dada pelo jornalista na organização das informações, além de se referir, também, aos padrões de apresentação dessas informações. Pode-se dizer, portanto, que seria o ângulo ou a direção da notícia. A esse enquadramento acrescenta-se quatro subtipos, relacionados à cobertura de eleições: “temático”, que trata das propostas de campa2 A hipótese do agenda-setting tratou, inicialmente, da capacidade da mídia em influenciar o comportamento do indivíduo. McCombs e Shaw, em 1972, avançaram no sentido de entender a influência de agendamento da mídia. São muitas as críticas à hipótese da agenda-setting, porém destaca-se o posicionamento de Porto (2003), que critica a primeira versão desses estudos, quando se “desconsiderou como as diversas formas de apresentação da informação afetam o processo de formação da opinião pública” (Porto, 2003, p. 5, grifos nossos).


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nha dos candidatos; “corrida de cavalos”, que dá conta do desempenho dos candidatos nas sondagens de intenção de voto; “centrado na personalidade”, relacionado à preferência da mídia por atores individuais; e “episódico”, que diz respeito ao relato dos últimos acontecimentos sem enfoques, como nos demais tipos de enquadramento. Destaca-se, aqui, os enquadramentos “corrida de cavalos” e “centrado na personalidade”. O primeiro pelo fato de a indecisão do PSDB com relação a qual seria seu candidato – Serra ou Aécio – ter-se pautada muito pela divulgação, antecipada, das sondagens eleitorais. Nesse enquadramento, os candidatos são apresentados como competidores entre si, de modo que as propostas políticas não são consideradas na disputa. O segundo enquadramento, “centrado na personalidade”, trata da preferência dada pela mídia aos atores individuais e, também, “de focalizar eventos a partir de dramas humanos, relegando considerações políticas e institucionais” (Porto, 2001, p. 13). Os acontecimentos selecionados para a análise foram centrados na imagem de Aécio Neves, além da carga emotiva de alguns deles. Quanto ao “enquadramento interpretativo”, ele possui certa independência quanto às ações dos jornalistas, na medida em que permite avaliações particulares de temas ou eventos políticos por atores sociais diversos (Porto, 2004). A independência não é total, uma vez que os enquadramentos interpretativos dos jornalistas ao produzirem a notícia também interferem. O autor ressalta que a fonte seria uma importante diferença entre os dois enquadramentos – noticioso e interpretativo. O espaço dado à fonte ou às fontes, bem como a hierarquia delas (importância/poder da fonte), interfere no enquadramento. Importante também trazer à discussão acerca dos valores/notícia, que seriam componentes dos critérios de noticiabilidade. Wolf (2001) define a noticiabilidade como “o conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que seleccionar (sic) as notícias” (Wolf, 2001, p. 195). Os valores/notícia derivam de considerações relativas: às características substantivas das notícias, referentes à importância e interesse da notícia; à disponibilidade de material, ou seja, quanto à acessibilidade e ao tratamento informações; ao tempo ou espaço disponível à notícia; à


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imagem do público para os jornalistas; e à concorrência, que desperta a corrida pela informação exclusiva (Wolf, 2001). No âmbito desta pesquisa, é importante destacar que o contexto da análise é referente às prévias do PSDB; pode-se dizer que elas eram de interesse da mídia, uma vez que suas características cumprem os critérios de relevância jornalística, como proposto por Wolf (2001). Na conceituação de Rodrigues (1993), os fatos são selecionados pelos jornalistas por possuírem um valor/notícia e tornam-se acontecimentos jornalísticos, ou meta-acontecimentos, que o autor chama de “acontecimentos segundos”. Assim, o fato torna-se notícia quanto mais for imprevisível. Fontcuberta (1993) aponta características do acontecimento, como a de ser aquilo que sucede no tempo e ser singular, ou improvável. Ressalta-se, ainda, o “não acontecimento” jornalístico, que seria a “construção, produção e difusão de notícias a partir de fatos não sucedidos ou que supõem explicitamente uma não informação ‘no sentido jornalístico’” (Fontcuberta, 1993, p. 26, tradução nossa). O não acontecimento quebra as bases do discurso jornalístico tradicional: realidade, veracidade e atualidade. Assim, informa-se sobre algo que não aconteceu ou que não está previsto. Salienta-se que o conceito de não acontecimento é importante para a compreensão do contexto da pesquisa aqui apresentada – as prévias do PSDB.

CAMPO POLÍTICO: AÉCIO NEVES E AS PRÉVIAS Aécio Neves da Cunha3 se mudou com a família para o Rio de Janeiro, e aos 21 anos, retornou a Belo Horizonte, a convite de seu avô, Tancredo Neves, para trabalhar como seu assessor na campanha pelo 3 Aécio Neves da Cunha nasceu em Belo Horizonte, em 10 de março de 1960. Graduou-se em Economia na PUC Minas. Aécio seguiu a carreira política e foi eleito deputado federal constituinte pelo PMDB em 1986. Em 1989, Aécio filiou-se ao PSDB, seu atual partido. Em 1990 e 1994 foi reeleito deputado federal. Em 1998, Aécio foi o deputado federal do partido mais votado em todo o país. Em 2002, Aécio foi eleito governador de Minas, em primeiro turno. Em 2006, foi reeleito em primeiro turno. Atualmente, é Senador.


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Governo de Minas. Desde então, Aécio iniciou sua carreira política. Ao longo de sua trajetória, nota-se que sua imagem pública política está em permanente processo de construção. Importante, nesse sentido, retomar a eleição municipal de Belo Horizonte, em 2008, quando Aécio (PSDB) e o ex-prefeito da capital mineira, Fernando Pimentel (PT), apoiaram o então candidato e atual prefeito Márcio Lacerda (PSB) em uma aliança informal. O acordo foi amplamente noticiado na mídia local e nacional, e ressalta-se que o grande beneficiado em termos de imagem foi Aécio, que aproveitou a visibilidade da aliança para garantir a sua. O final de 2009 e início de 2010 marcam o período das escolhas no PSDB sobre quem seria o candidato à Presidência pela legenda. Os nomes mais cotados, Aécio e Serra, aproveitaram as aparições na mídia para dar visibilidade à sua imagem pública política e ressaltarem suas qualidades que os capacitariam a representarem o partido nas eleições de 2010. Quanto à realização das prévias, vale citar o Estatuto do PSDB: Art. 151 - Os Diretórios Nacional, Estaduais e Municipais poderão aprovar, por proposta da respectiva Comissão Executiva, a realização de eleições prévias para a escolha de candidatos a cargos eletivos majoritários sempre que houver mais de um candidato disputando a indicação do Partido (grifos nossos).

O trecho mencionado demonstra a não obrigatoriedade execução das prévias, ou primárias no PSDB. E vale comentar que, para a de eleição de 2010, tomando os quatro principais candidatos, as primárias ocorreram apenas no PSOL, que escolheu Plínio de Arruda Sampaio como candidato. Entretanto, vale lembrar que o PSDB deu sinais de que pretendia fazer as primárias quando consultou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em janeiro de 2009, a respeito de qual seria a data que o órgão havia estipulado para a realização dessa eleição intrapartidária. Em resposta, o TSE informou que a data final era 30 de junho. Aécio defendia a realização de prévias, como mostra a reportagem de Flávio Freire, intitulada “Aécio defende prévia no PSDB para 2010”, veiculada no jornal O Globo em 24 de janeiro de 2009. Na oportunidade, Aécio rebateu as supostas declarações do ex-presidente


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Fernando Henrique Cardoso (FHC) defendendo a não realização de prévias e demonstrando preferência pela candidatura de Serra. Em 1º de julho de 2009, o PSDB aprovou as prévias, mas não divulgou uma data para sua realização. As pesquisas de intenção de voto para presidente começaram a ser divulgadas ainda em 2008, no mesmo período em que as especulações sobre quem seria o candidato do PSDB também começaram a pautar as discussões na mídia. O PSDB por vezes as utilizou para “testar” quem seria o melhor candidato. Champagne (1998) afirma que é ingênuo acreditar que a mídia produz os acontecimentos sozinha e de forma manipuladora. Ele lembra que as sondagens de opinião participam dessa “construção de acontecimentos”. Após meses de indecisão e de disputas informais, o PSDB optou por lançar Serra como candidato à Presidência em 2010, sem a realização das primárias. Ressalta-se que todo o impasse sobre quem seria o candidato do PSDB à Presidência em 2010 resgatou a disputa entre Minas Gerais, na figura de Aécio, e São Paulo, com Serra.

OS ENQUADRAMENTOS MIDIÁTICOS E A IMAGEM DE AÉCIO PRESIDENCIÁVEL As edições do Estado de Minas4 e da Folha de S.Paulo foram analisadas entre os dias 27 de fevereiro a 5 de março de 2010. Vale ressaltar que o jornal mineiro foi escolhido por sua relevância no Estado de Minas Gerais e por seu suposto alinhamento com Aécio Neves. O jornal paulista foi selecionado enquanto um dispositivo de comparação e sua grande circulação nacional5 foi um critério para sua seleção. 4 O jornal Estado de Minas (EM)5 foi criado em 1928 e, de acordo com França (1998), sua história não é marcada por grandes acontecimentos ou crises. Vários jornais surgiram no estado mineiro, porém, a maioria não permaneceu ativa; o EM destaca-se por manter uma regularidade desde a sua formação. 5 Pesquisa do Instituto Verificador de Circulação (IVC), divulgada em janeiro de 2013, o jornal Folha de S.Paulo é um dos mais vendidos no país, além de ser o diário brasileiro com maior alcance geográfico. Vale ressaltar que em Minas Gerais são vendidos, diariamente, uma média de 23,2 mil exemplares do jornal paulista.


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27 de fevereiro: Tancredo Neves Na edição do EM do dia 27 de fevereiro, o caderno Pensar é dedicado exclusivamente a Tancredo Neves. Habitualmente, ele possui seis páginas, porém nessa edição ele foi publicado com 12 páginas. Na oportunidade, o caderno especial destacou as qualidades que são atribuídas à figura política de Tancredo Neves. É interessante notar que, no texto da capa, Tancredo é a figura que não se curvou ao poder, e na montagem da capa, ele se curva a Minas. Ele é uma das imagens às quais a figura de Aécio é recorrentemente associada. O enquadramento ob-

Figura 1 - “Estadista da liberdade” Fonte: Jornal Estado de Minas, edição de 27 de fevereiro de 2010.


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servado é o “centrado na personalidade”, com ênfase na “habilidade política” de Tancredo. No mesmo dia, as páginas 5 e 6, do caderno de política do EM, trataram da indefinição existente no PSDB sobre quem seria o candidato da legenda à Presidência da República. Destaca-se que o enquadramento das duas reportagens foi o “corrida de cavalos”, prevalecendo o enfoque: “Aécio melhor candidato”. A Folha de S.Paulo divulgou a reportagem com o título “Serra vai a Belo Horizonte cortejar Aécio”, de Catia Seabra, que mostra como as fontes ouvidas/consultadas defendem a chapa Serra/Aécio. O título destaca como Aécio foi pressionado pelo próprio Serra para aceitar ser vice: “Serra vai a Belo Horizonte cortejar Aécio.” Não foram encontradas reportagens com referências a Tancredo Neves na FSP.

28 de fevereiro: mineiridade A edição do Estado de Minas, do dia 28 de fevereiro, o texto de Baptista Almeida, “Presente ou futuro, eis uma solução”, trata das futuras visitas de Serra a Belo Horizonte – por ocasião da inauguração da Cidade Administrativa e pelo aniversário de Aécio Neves em 10 de março – como a abertura da “temporada de caça ao vice”. Destaca-se como enquadramento “corrida de cavalos”. A imagem que se observa, nesse caso, é a de que Aécio é diferente de Serra. O mineiro também é apresentado como um político mais conciliador e que consegue manter boas relações com outros políticos e partidos, mesmo os opositores. Percebe-se o chamado “mito da mineiridade”. Arruda (1999) buscou entender a mineiridade fazendo conexões entre mito e identidade. O mito fornece material para a construção das identidades culturais. Tendo como objeto de estudos as reflexões acerca da identidade cultural dos mineiros e o processo de formação do mito da mineiridade, a autora buscou localizar nas formas de agir, tanto local quanto nacional, dos mineiros, baseando-se em obras literárias e outros relatos como os de viajantes, dentre outros. O contexto foi a transição da sociedade mineira, que passou do rural para o urbano, condicionando a “tessitura do mito da mineiridade.” No caso de Aécio Neves, esse mito da mineiridade foi associado à imagem herdada de seu avô; também


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percebe-se que é uma estratégia para evitar críticas a uma possível descaracterização de sua mineiridade em função de sua estadia no Rio.

01 de março: pesquisa de intenção de voto O jornal Folha de S.Paulo repercutiu a pesquisa do DataFolha – dois artigos, uma matéria e uma coluna – mostrando a “surpresa” dos tucanos com a queda de José Serra e como isso serviria como mais um instrumento para forçar Aécio a aceitar concorrer como vice. O texto de Fernando de Barros e Silva, intitulado “Águas de março”, apresenta sua opinião sobre o cenário político com base no resultado da pesquisa aponta que Dilma surpreendeu ao conseguir se aproximar de Serra. Hoje, no entanto, o mais provável é que aceite enfrentar o desafio da disputa sem a certeza prévia de que contará com o mineiro em sua chapa. Não há dúvida de que Aécio agora será muito pressionado pelos tucanos. Mas quem precisa dizer a que veio antes que as águas de março fechem o verão é o governador de São Paulo (Silva, 2010c, grifos nossos).

A pesquisa também é comentada por Valdo Cruz, “Riscos da soberba”, que trata da possibilidade de Michel Temer (PMDB) ser vice de Dilma. O nome de Aécio é citado como uma segunda opção e é visto como um candidato de peso frente ao PT. Na coluna “Toda Mídia”, de Nelson de Sá, Serra aponta três fatores que justificam a importância do apoio de Aécio. De José Serra, para Tales Faria, do IG: “Aécio Neves tem um papel fundamental, nas eleições, por três razões igualmente importantes: é uma das grandes lideranças do país; faz um governo muito competente; Minas Gerais é estado-chave não só por ter o segundo colégio eleitoral, mas porque é um ponto de equilíbrio na federação” (Sá, 2010, grifos nossos).


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Dos três fatores, importa-nos ressaltar o último, que mostra Minas Gerais como um estado “ponto de equilíbrio na federação”, o que justifica, ainda mais, a associação feita pelo jornal EM entre a imagem de Aécio Neves e de seu avô, que é conhecido como um político conciliador (mineiridade) e por transferir essa qualidade ao Estado mineiro.

02 de março: jogo político e segundo clichê A reportagem “Tucanos em busca de uma definição”, de Patrícia Aranha, trata do lançamento do selo comemorativo do centenário de nascimento de Tancredo Neves – “enquadramento centrado na personalidade”, com ênfase na “habilidade política” de Aécio. É significativo observar como o evento serviu apenas como pano de fundo para uma discussão maior: às especulações sobre quem seria o candidato do PSDB. A reportagem trata da queda de Serra na pesquisa de intenção de voto e, também, da possibilidade de Aécio ser uma segunda opção do PSDB. Aécio afirmou não querer ser um “plano B” dos tucanos e também não queria ser responsabilizado caso Serra perdesse a eleição. Ao final da reportagem destaca-se em trecho bem ilustrativo, que mostra não apenas a tentativa do EM em sustentar a candidatura de Aécio, mas, sobretudo, a presença da astúcia como parte do jogo político próprio aos mineiros: Na intimidade, o governador mineiro começou a admitir a possibilidade de compor a chapa puro sangue. Conhecedores do estilo mineiro de fazer política acreditam que possa ser o sinal de que as declarações não passam de cortina de fumaça para encobrir a intenção de encabeçar a chapa. A presença do deputado federal Ciro Gomes (PSB-CE) na quinta-feira em Belo Horizonte seria mais um sinal de que Aécio poderá assumir a candidatura, tendo Ciro como candidato a vice-presidente (Aranha, 2010b, p. 3, grifos nossos).

Salienta-se que essa página está sob o selo “Eleições” e é interessante notar que a reportagem principal trata da solenidade que lançou o


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selo comemorativo do centenário de nascimento de Tancredo Neves. Percebem-se os dois enquadramentos: “corrida de cavalos” – “Aécio melhor candidato”; e “centrado na personalidade” – “habilidade política”.

Figura 2 - “Tucanos em busca de uma definição” Fonte: Jornal Estado de Minas, edição de 02 de março de 2010.


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No mesmo dia, a reportagem “Convite a adversários causa malestar entre Serra e Aécio”, de Cátia Seabra e Valdo Cruz, na FSP, trata da cerimônia que seria realizada em Minas Gerais em homenagem ao centenário de Tancredo Neves. Para o evento, Aécio teria convidado diversos políticos, entre eles Ciro Gomes e Dilma Rousseff. Segundo a reportagem, Serra teria se “irritado” com a postura do tucano mineiro, uma vez que o paulista já é apresentado como o candidato do PSDB à Presidência. Nota-se, ainda, a imagem de “político conciliador” que Aécio procura mostrar. Cabe destacar, conforme compreendido por Pires (2002), que há o “tempo da política” e o “tempo da mídia”, na medida em que o tempo midiático é acelerado e menos dado à “costura de acordos”, mais demoradas. “(...) há que se considerar que no jornalismo não se trabalha com essa lógica da política. Intenções não são notícias” (Pires, 2002, p. 107), o que explica as cobranças da mídia por definições de Aécio.

03 de março: “Minas a reboque, não!” Champagne (1998) chama a atenção para a importância da capa como lugar estratégico e, portanto, de disputa por aqueles que buscam visibilidade. No dia 3 de março, o jornal EM publicou um editorial de capa, intitulado “Minas a reboque, não!”, defendendo a candidatura de Aécio à Presidência e repudiando o convite feito a ele para ser vice na chapa com Serra. Nota-se, aí, a presença tanto do “enquadramento corrida de cavalos” – “Aécio melhor candidato” – quanto do “enquadramento centrado na personalidade” – “político de alta linhagem de Minas”. O EM se diz representante dos mineiros – importante resgatar seu slogan: “O grande jornal dos mineiros”; e isso fica evidente no editorial. Ainda que seja um posicionamento do jornal em apoiar a candidatura de Aécio, o texto foi construído de forma a ser a opinião dos mineiros. Sobre isso destacam-se as passagens: “(...) É com esse sentimento que os mineiros repelem a arrogância de lideranças políticas (...) Também incomoda os mineiros (...) os mineiros estão, porém, seguros (...).”


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Aécio Neves é apresentado como um líder reconhecido nacionalmente e como o “mais bem avaliado entre os governadores da última safra de gestores públicos”, além de ser chamado, no editorial, de “político de alta linhagem de Minas”. Essas características, segundo o editorial, não permitiriam que Aécio aceitasse o papel de vice de José Serra.

Figura 3 - “Minas a reboque, não!” Fonte: Jornal Estado de Minas, edição de 03 de março de 2010.


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O editorial foi veiculado na capa das duas edições do dia. É importante dizer que, ao longo da pesquisa, foram identificadas mudanças da primeira para a segunda edição, o que no jornalismo é entendido como mudança de clichê. De acordo com Rabaça e Barbosa (1987, p. 528), deve-se entender por segundo clichê a edição extraordinária de um jornal, impressa logo após a primeira, com modificações para inclusão de informações importante sobre fatos ocorridos de última hora. Alguns jornais (como o caso do EM) imprimem, no cabeçalho das páginas modificadas, a expressão “2º clichê” ou “2ª edição”. Importante destacar que nos casos aqui observados, notou-se que não se tratava de inclusão de outra notícia ou alguma informação adicional; as mudanças acarretaram na produção de novos sentidos. O artigo de Elio Gaspari, na FSP, intitulado “Serra joga parado, mas quer preferência”, critica a forma como Serra e o PSDB estavam lidando com a candidatura do paulista à Presidência. Serra não se apresentou enquanto candidato antecipadamente, como ocorreu com Dilma, e, por outro lado, não impedia que outro tucano demonstrasse interesse, como o caso de Aécio.

04 de março: Aécio Serra No dia 4 de março se comemora o nascimento de Tancredo Neves e, também, marcou a inauguração da Cidade Administrativa que, por iniciativa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, foi batizada com o nome de Tancredo Neves. A editoria de política do Estado de Minas, que habitualmente tem seis páginas, ocupou, nesse dia, 11 páginas. Os textos foram organizados sob três selos: Eleições, Tancredo Neves e Governo. Nessa oportunidade, os dois enquadramentos foram encontrados a partir da ênfase nas ideias: “Aécio melhor presidente”, “eficiência administrativa” e “habilidade política”. Destaca-se a página 2, do EM, o artigo de Baptista Almeida, “As diferenças dos candidatos”, que trata de duas importantes imagens: associação de imagem de Aécio à de Tancredo Neves; e Aécio diferente Serra.


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Ainda no EM, a segunda edição sofreu significativas alterações. A reportagem principal da página 4, que antes era sobre os preparativos da inauguração da Cidade Administrativa, na segunda edição é a repercussão do editorial. A reportagem “Festa para 6 mil convidados” foi transferida para a página 11. Vale mencionar, também, a mudança de selo que na primeira edição era “Governo” e na segunda, “Eleições”. Assim, a matéria de repercussão do editorial ganhou mais destaque na 2ª edição e foi associada ao tema “Eleições”, confirmando que se tratava de uma questão eleitoral, ou seja, da candidatura de Aécio Neves.

Figura 4 - Primeiro clichê: Página 4 do EM Fonte: Jornal Estado de Minas, 1ª edição


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Figura 5 - Segundo clichê: Página 4 do EM Fonte: Jornal Estado de Minas, 2ª edição de 04 de março de 2010.

Aqui, se fará um salto para o dia 5 de março, apenas para mostrar outra repercussão sobre o editorial do EM, que foi divulgado na coluna Painel, de Renata Lo Prete, na FSP: Primeira-irmã. É quase consenso no PSDB que Aécio Neves não soube de antemão do editorial do Estado de Minas desancando a candidatura presidencial de Serra e a hipótese de o mineiro aceitar a vice. Nove entre dez tucanos, porém, completam o diagnóstico com uma ressalva: “Mas a Andréa Neves soube” (Lo Prete, 2010, grifos nossos).


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No mesmo dia, o jornal FSP procurou mostrar que não havia dúvidas de que Serra seria candidato à Presidência e que Aécio não aceitaria ser vice, e, menos ainda, que pretendia se lançar como candidato no lugar de Serra.

05 de março: “Aécio presidente” No dia seguinte à inauguração da Cidade Administrativa, o jornal mineiro apresentou como manchete de primeira página “O recado de Minas”. Destaca-se a página 3, da primeira edição, a reportagem de Lucas Figueiredo (2010a): “O jeito mineiro de ser” (Figura 6). Mais uma vez, a segunda edição traz significativas alterações. A reportagem (Figura 7), também de Lucas Figueiredo (2010b), ganhou outro título, “A voz das Gerais”. O primeiro título sugere-nos uma alusão a Aécio e ao seu “jeito mineiro de ser”. Ao passo que o segundo, mais incisivo, apresenta “a voz das gerais”: “Aécio presidente”.

Figura 6 – Primeiro clichê: “O jeito mineiro de ser” Fonte: Jornal Estado de Minas, 1ª edição de 5 de março de 2010.


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Figura 7 – Segundo clichê: “A voz das Gerais” Fonte: Jornal Estado de Minas, 2ª edição de 5 de março de 2010.

A FSP também noticiou a inauguração da Cidade Administrativa. Na capa da edição São Paulo e, também, na edição nacional, a chamada sobre o evento traz o seguinte título: “PSDB trata Serra como candidato, mas coro pede Aécio presidente”. Logo abaixo, uma chamada para o artigo de Fernando de Barros e Silva: “Governador de SP teve que pagar seu primeiro pedágio na visita a Minas.” No caderno Opinião, o artigo de Fernando de Barros e Silva, “Ó, Minas Gerais”, relata dos gritos da plateia – “Aécio presidente!” – e como Serra ficou constrangido com a situação. Nota-se que o enquadramento aqui é “corrida de cavalos”: “Aécio melhor candidato.” Por fim, o editorial da Folha de S.Paulo, “Serra ou não Serra”, critica a cena política brasileira, em que o “nível” dos candidatos, em es6

O jornal Folha de S.Paulo veicula, diariamente, duas edições: uma nacional e outra local, esta direcionada a São Paulo.


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pecial do PSDB, é posto em xeque: “Qualquer que seja o desfecho desse aborrecido drama de bastidores, a cada dia se reduz a estatura dos personagens que o compõem.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa teve como ponto de partida o processo de escolha de quem seria o candidato do PSDB à Presidência da República em 2010. A questão inicial foi verificar se e como o jornal Estado de Minas construiu a imagem pública política de Aécio Neves como presidenciável em 2010. A partir da análise de determinados acontecimentos, verificou-se que o jornal mineiro trabalhou na construção da imagem pública política de Aécio Neves como presidenciável em 2010. Identificou-se que essa construção foi feita, principalmente, a partir dos enquadramentos “interpretativo” e “noticioso” (Porto, 2001; 2004). Sobre o enquadramento noticioso, destaca-se a presença recorrente dos enquadramentos “corrida de cavalos”, e “centrado na personalidade”. A partir dos enquadramentos foi possível identificar imagens às quais Aécio foi associado e que traduzem a intencionalidade de interpretação dos enquadramentos: a) eficiência administrativa, a partir da Cidade Administrativa e retomando a figura de Juscelino Kubitscheck; b) Aécio Serra, sendo Aécio melhor candidato;

c) habilidade política, quando associado a Tancredo Neves e à mineiridade. Explicita-se, também, que o EM construiu a imagem de Aécio como presidenciável recorrendo ao discurso da mineiridade. Ele é tido como um político conciliador, que busca a união nacional, que tem habilidade de diálogo e que propõe ações inovadoras, por exemplo. A figura emblemática de Tancredo Neves, como personificação do mito da mineiridade, foi recorrente no período analisado.


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Também é válido destacar que as mudanças de clichê ou edição foram responsáveis, no período analisado, por mudanças de sentido no Estado de Minas. As mudanças de clichê permitiram ao jornal aperfeiçoar seu discurso político em favor de Aécio. Questionou-se, logo de início, o possível alinhamento entre o jornal EM e Aécio Neves, como já apontado em diversos trabalhos acadêmicos. Ao menos, no caso aqui analisado, isso foi confirmado a partir das estratégias utilizadas pelo jornal mineiro em prol da construção de uma imagem positiva de Aécio. Do ponto de vista metodológico, destaca-se importância da análise comparativa dois jornais, na medida em que ela revela as estratégias enunciativas a partir do contraste. Notou-se que o jornal Estado de Minas posicionou-se enquanto “porta-voz” dos mineiros e como ator político. O jornal falava em nome de Minas e, mais ainda, em muitas oportunidades, os textos pareceram ser direcionados ao PSDB, evidenciando, também, seu posicionamento enquanto ator político; principalmente quando se observa que ele deixa de apenas cumprir sua função primeira de noticiar e acaba influenciando no jogo político. Ressalta-se que o campo político tem seus limites e, aqui, ficou claro que um deles é a visibilidade. Dessa forma, Aécio criou suas próprias estratégias. Ou seja, os acontecimentos, como as homenagens ao centenário de Tancredo Neves e a inauguração da Cidade Administrativa, foram arquitetados muito antes do período analisado, de modo que confluíssem nas páginas dos jornais (aproveitando-se, ainda, de seu alinhamento com o EM) no mesmo período, conferindo ganhos em termos de visibilidade. O PSDB, por sua vez, também tem suas estratégias, especialmente quando usou a mídia como “balão de ensaio” para “testar” seus pré-candidatos e realizar, nesse espaço, as prévias sem envolver diretamente, ou comprometer o partido. Os testes foram realizados na medida em que os próprios pré-candidatos se envolveram em uma disputa pela imposição da imagem e a mídia repercutiu essa disputa. Salienta-se, portanto, que as prévias foram midiáticas, ou seja, não ocorreram, de fato, no interior do PSDB – não acontecimento (Fontcuberta, 1993). A investigação comprovou, portanto, o entrelaçamento entre os


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campos político e midiático. Ainda que sejam campos distintos, percebe-se sua clara aproximação, especialmente quando o jornal se torna ator político, e os acontecimentos mostraram-se criados pelo campo político para ganharem visibilidade na mídia.

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Fabrício Maciel

O QUE SIGNIFICA A NOVA CLASSE MÉDIA? O RETORNO DA CLASSE NO DEBATE BRASILEIRO Um dos principais debates no Brasil e no mundo contemporâneo, seja na esfera pública, na grande mídia ou na academia, é sobre a ascensão dos “emergentes”, ou seja, de uma “nova classe média” nas sociedades contemporâneas. Mangabeira Unger (2008) foi um dos primeiros a ressaltar sua importância teórica e política no Brasil. Definida por ele como “segunda classe média”, “vinda de baixo”, morena, originada da “ralé”, esta nova classe seria o principal motor do desenvolvimento das sociedades emergentes, tanto como novos agentes produtores quanto como novo e crescente público-alvo de consumo. O advento desta nova classe pode ser visto tanto na mídia quanto em literatura especializada, em países como Indonésia, Turquia e, principalmente, China, Índia e Brasil, estes três últimos já considerados na mídia mundial como uma espécie de “calcanhar de Aquiles” na dominação histórica do Atlântico Norte. Duas definições dominantes, pelo menos no Brasil, sobre a nova classe, são os conceitos de “classe C” e de “nova classe média”. O primeiro domina pesquisas empíricas que definem os emergentes principalmente pelo critério da renda, mas também pelo critério do consumo. Pesquisas como as realizadas pela FGV ou pelo Ipea comprovam essa afirmação. Basta ver os últimos livros organizados por Marcio Pochmann (2012), do Ipea, de um lado, e por Marcelo Néri (2012) da FGV, de outro. O conceito de nova classe média procura ir além da função da renda e do consumo. Procura considerar também o estilo de vida e o gosto dos emergentes, vistos principalmente em seu consumo, comportamento político e atitude no espaço público. Uma das principais pesquisas nesta direção foi organizada pelos cientistas políticos Bolivar Lamounier e Amaury Souza, cujo resultado é o livro A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade (2009). A pesquisa dos au-


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tores, por se pautar mais a partir de um continuum, segundo Castel (2011), entre a “nova” e a “velha” classe média, analisando a primeira do ponto de vista da última, acabou sendo preconceituosa e não percebendo a especificidade da nova classe (Souza, 2010). Segundo Castel (2011), qualquer comparação deveria ser muito mais pela diferença do que pela semelhança, considerando que todo fenômeno social possui sua especificidade histórica, estrutural e conjuntural. Em contrapartida, a pesquisa sobre a suposta nova classe média, organizada logo em seguida por Jessé Souza, apontou para outra direção. A partir da ideia de que o Brasil presencia hoje a ascensão imprevisível e contingente de uma nova classe de “batalhadores”, termo este originado no senso comum brasileiro, Souza e o grupo de pesquisa por ele coordenado, o CEPEDES (Centro de pesquisa sobre desigualdade/UFJF), procurou enfrentar, com referências teóricas e políticas alternativas, bem como um método de pesquisa alternativo, os conceitos dominantes sobre o novo fenômeno. Resumirei aqui as dificuldades dos dois conceitos dominantes a partir deles mesmos. 1 – Por que é complicado falar em Classe C? A pesquisa nacional sobre a suposta nova classe media, cujo resultado é o livro Os batalhadores brasileiros: nova classe media ou nova classe trabalhadora? (Souza, 2010), mostrou que a renda é um dos critérios menos importantes na definição de uma classe social, e isto porque não recupera sua gênese e sua dinâmica. A principal referência teórica, para tanto, foi a articulação do conceito de habitus, de Pierre Bourdieu (2007), ao de disposições, de seu crítico Bernard Lahire (2006). O conceito de habitus procura tematizar as possibilidades de ação, incorporadas pelos indivíduos desde a infância e situadas em sua educação formal e informal, escolar e familiar. O conceito de disposições aperfeiçoa o anterior, exatamente por criticá-lo. Em Bourdieu, habitus muitas vezes parece sugerir mais uma estática do que uma dinâmica social e individual, ainda que ele o defina como um “conjunto de disposições incorporadas” (Bourdieu, 2007). 2 – Por que é complicado falar em nova classe “média”? Esse ponto é ainda mais importante do que o primeiro. O principal critério referente à classe média tradicional, para definir a nova classe também


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como média, é a capacidade de consumo. Isso cai “como uma luva” em um discurso político conservador, originado do Atlântico Norte, que considera países desenvolvidos apenas aqueles que possuem uma robusta classe média (Souza, 2010). Ao pesquisar com método de observação participante e entrevistas de profundidade a realidade cotidiana desses perfis, público-alvo tanto do Estado quanto do mercado, pudemos ver que sua dinâmica e condição histórica inédita exigia outros referenciais políticos e teóricos. Dado fundamental: os batalhadores trabalham em média 14 horas por dia, geralmente são autônomos sem vínculo formal que, por esforço próprio, sobrevivem na “zona de vulnerabilidade” das sociedades contemporâneas. Sem qualificação formal, ou com muito pouca, apresentam estilo de vida simples e sobrevivem através de um saber popular, alternativo ao “Conhecimento” com C maiúsculo, conferido e reconhecido pela chancela oficial dos certificados e diplomas do sistema escolar e universitário reconhecido por Estado e mercado. Por esses motivos, percebemos uma diferença fundamental: os novos perfis são uma nova classe trabalhadora, ao mesmo tempo entendida como efeito e como atores dos novos critérios de reprodução social de uma sociedade de classes modificada. A diferença empírica entre a nova classe trabalhadora e a classe média tradicional nos permite entender melhor os conceitos dominantes para a compreensão da grande transição histórica de nosso tempo, que Castel chegou a considerar como a “segunda grande transformação” do capitalismo. Esta segunda transformação é ainda mais profunda e complexa do que a primeira, analisada pelo clássico trabalho de Karl Polanyi, quando percebeu o domínio do mercado autorregulado como marco definidor do início das ditas sociedades industriais (Polanyi apud Castel, 2011). A novidade é que, na prática, durante todo o século XX, sendo este interpretado como sociedade industrial ou salarial, o mercado nunca foi de fato autorregulado, mas teve sempre os Estados nacionais como seus agentes. Agora, de acordo com Castel (2011), Beck (2007), Souza (2010) e outros, o mercado autorregulado de fato existe quase sem restrições. Para Castel e Beck, seu efeito é a “institucionalização da precariedade e do individualismo” (Castel, 2011; Beck, 1997; 2007). Para


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Souza (2010), com a pesquisa dos batalhadores, isto significa a dominação do capital financeiro, pensando em seus efeitos no Brasil. Ulrich Beck considera tais efeitos oriundos do processo de globalização, no qual as forças e os agentes financeiros transnacionais sucumbem os Estados e radicalizam desigualdades de toda espécie (Beck, 2007). Todos os europeus aqui analisados concordam que a gênese da precariedade é o fim do Estado de bem-estar. No Brasil, Souza (2003) mostrou que a precariedade é nossa velha marca estrutural, produto da sociedade do trabalho mundial. A diferença entre os batalhadores e a classe média nos permite analisar, como eu dizia, com exemplos empíricos, os conceitos dominantes da nova sociedade do trabalho e, aqui, precisamos “precisar”, ou seja, evitar pequenas confusões teóricas que poderiam gerar grandes problemas políticos, contribuindo assim para uma nova articulação entre os conceitos de classe e trabalho na realidade atual. Por exemplo: Flexibilidade. Conceito pensado por Richard Sennett (2006) nos EUA, e por Ulrich Beck (1986; 1997), dentre outros, olhando para a decadência relativa de frações de classe média. Flexibilidade também é uma das palavras-chave da ideologia empresarial dominante. Significa fornecer todo o tempo pessoal em adaptação às exigências da carreira. Isso pode se referir a realidades de classe média tanto no centro quanto na periferia. Para o batalhador, flexibilidade significa outra coisa. Significa improviso, adaptabilidade, mas em condições realmente inseguras, na zona de vulnerabilidade. Como imperativo moral e ideologia, a flexibilidade afeta a todos. Como realidade empírica de trabalho, a diferença é grande. Flexibilidade para a ralé é sinônimo de fazer qualquer coisa, quando não se tem qualificação formal alguma. Para a classe média, flexibilidade é sinônimo de adaptação do tempo e disposição para mudar de cidade. Para o batalhador, flexibilidade é sinônimo de muito trabalho e de mudar de negócio, quando as coisas vão mal. Para a ralé, flexibilidade é sinônimo de flutuação entre desemprego e pequenos “bicos”, como dizemos no senso comum brasileiro. Para a classe média, flexibilidade não é sinônimo de informalidade ou precariedade. A terceirização que afeta a classe média muitas vezes significa abrir uma firma, formal, com CNPJ, de prestação de ser-


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viços ou de consultoria, para os mais qualificados. Para os batalhadores e a ralé, que podemos aqui chamar de classes populares, flexibilidade é quase sempre sinônimo de informalidade e de precariedade, este último principalmente para ralé. Informalidade. Realidade predominante entre as classes populares. Esta análise não se refere apenas à periferia. Nos EUA é maior do que no “lado A” da Europa, ou seja, em seus países mais ricos, e talvez no mesmo nível da Europa “lado B”, cabe lembrar. Para a classe média, pode existir informalidade, mas trata-se de uma experiência quase sempre ligada a uma rede de capital social que não significa precariedade. Para as classes populares, informalidade é quase sempre sinônimo de precariedade, mas não necessariamente. Existe o trabalho formal precário, por exemplo, como o telemarketing.1 Logo, a tradicional dicotomia formal-informal, predominante na sociologia do trabalho, não é precisa para definir boas ou más condições de trabalho.2 Precariedade. O mais vago dos três conceitos. Gorz, Beck e Castel o utilizam o tempo todo. Obviamente, trata de condições ruins de trabalho. Mas, já virou ideologia de classe média, transformando-se em falso sinônimo de flexibilidade. Trabalho precário significa insegurança material e moral, instabilidade, flutuação entre trabalhar e não trabalhar, ou seja, tanto no centro quanto na periferia, refere-se à condição social daqueles que flutuam dentro da zona de vulnerabilidade do mercado, seja formal ou informal. Trata-se da realidade das classes populares, que não possuem patrimônio ou herança para sobreviverem em tempos de desemprego ou de mau funcionamento de seus pequenos negócios.

1 Ver capítulo de Ricardo Visser, A formalidade precária, no já citado livro dos batalhadores (2010), por exemplo. 2 Ver minha dissertação de mestrado “trabalho e reconhecimento na modernidade periférica”, na qual sugeri a dicotomia “socialmente qualificado-socialmente desqualificado”, o que tematiza melhor boas ou más inserções no mercado de trabalho (UENF, 2007).


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Qualificação. Podemos pensar em dois tipos de qualificação: a formal e a informal. A primeira é aquela conferida por certificados e diplomas reconhecidos institucionalmente pelo Estado. Ela é predominante na classe média e quase sinônimo de estabilidade social. Entretanto, ela é hoje perseguida também pelos batalhadores, cujos filhos da maioria atualmente cursam alguma faculdade ou algum curso profissionalizante. A qualificação é palavra de ordem do dia da nova sociedade do trabalho, e sua presença constante na mídia oficial reforça a meia-verdade da teoria da sociedade do conhecimento. A qualificação informal é típica dos batalhadores: trata-se do saber popular, praticado nos pequenos comércios familiares da economia popular e familiar, adquirido geralmente com os pais, ou sozinho, muitas vezes como aprendiz que inicialmente adquire habilidades como pedreiro ou mecânico, sem remuneração. Existe também a qualificação social, ou moral, praticada intersubjetivamente a partir das posições sociais entre os formalmente qualificados e desqualificados. Dentro de uma grande empresa, por exemplo, os mais qualificados formalmente podem lançar estigmas contra os menos desqualificados. Isso é uma prática social e moral que pode desanimar aqueles com certificados menos valorizados e, além dessa hierarquia, muitas vezes sobrecarregá-los com trabalho na empresa e atrapalhar seu tempo e disposição física para adquirir qualificações mais altas. Muitas vezes isto significa uma luta de classes ou frações de classes dentro das empresas.

A NOVA SOCIEDADE DE CLASSES A ideia de que vivemos o fim das sociedades de classe é um dos principais paradigmas dominantes hoje nas Ciências Sociais. Ela é o outro lado da moeda da teoria do fim da sociedade do trabalho. Na verdade, compõem um mesmo pensamento, originado do imaginário pósWelfare europeu, que considerava sociedades do trabalho e sociedades de classe como sinônimo de sociedade industrial. Com o advento do domínio de conceitos como globalização, nova ordem mundial e nova ordem multipolar, que no fundo querem dizer a mesma coisa, a impor-


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tância teórica e política dos conceitos de trabalho e de classe se tornaram residuais e periféricos na ciência social do mundo inteiro. Apenas um marxismo desatualizado, que teima em compreender o mundo contemporâneo com a teoria do valor desatualizada de Marx, ainda aposta na centralidade da classe e do trabalho, porém sem atualizar estes conceitos na nova realidade global, marcada pelo domínio da tecnologia e pela informalização sem precedentes do capitalismo global. Diante do atestado de óbito teórico e político da classe e do trabalho, vindo principalmente da Europa, novas perspectivas se apresentam como candidatos a novos paradigmas dominantes. No caso do trabalho, vimos que teorias como a da sociedade do conhecimento ou da informação se apresentam como substitutas, ainda que cheias de falhas. No caso da classe, e aqui tratamos de literatura diferente, fragmentada nos campos de poder da academia, como percebia Bourdieu (2007), também temos os assassinos explícitos e implícitos da ideia de uma sociedade de classes. Mais uma vez, a obra de Ulrich Beck é pioneira, em vários aspectos, na tentativa de definição do novo mundo pós-bipolar, globalizado, pós-industrial. Seu clássico livro, Risikogesellschaft, data de 1986, e já lançara várias teses sobre o trabalho e a classe que depois, nos anos de 1990, ficaram conhecidas com autores como Imanuel Castells, Richard Sennett e muitos outros. André Gorz (2004) também é um dos profetas do fim da classe, porém indiretamente, pois a pedra de toque de toda sua obra é o advento do conhecimento como força produtiva maior do que o trabalho. Curiosamente, Ulrich Beck não abandona a ideia de trabalho e tenta resgatá-la, mas abandona a ideia de uma sociedade de classes. Um dos capítulos mais famosos de seu livro Sociedade de risco chama-se “Jenseits von Klasse und Schicht” (“Para além de classe e status”), no qual ele lança uma de suas teses mais famosas, substituindo o peso teórico e político da classe pelo individualismo, através de uma análise de como as mudanças sociais do trabalho fragmentam a família. A tese é ambígua, o que explica seu forte poder de influência. A fragmentação do trabalho e o advento crescente das mulheres no mercado fragmentam casamentos e geram o que Sennett mais tarde definiu como “corrosão do caráter” (Sennett, 2006).


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Tematizar o individualismo não é necessariamente ruim. Castel também relaciona um individualismo negativo com a fragmentação das condições de trabalho. Porém, Ulrich Beck propõe o individualismo como novo paradigma em substituição ao paradigma da classe (Beck, 1986; 2008). Para ele, a desigualdade social da sociedade do risco, ou da segunda modernidade, como ele nomeia, se opera muito mais entre indivíduos do que entre classes, ideia que ele continua desenvolvendo e aperfeiçoando até hoje. A tese é ambígua, e por isso deve ser enfrentada. Por um lado, ela não nega a hierarquia social e sugere uma radicalização da meritocracia, com o que concorda Castel (2011). Lado positivo da tese do individualismo: vivemos sim em um mundo de competição mais acirrada, sim, entre indivíduos, conformados pelos novos critérios morais e normativos do trabalho. Trata-se aqui de uma atualização do individualismo, tese esta já presente na obra de Max Weber, quando percebeu que o desencantamento do mundo significa o fim dos laços de comunidade e de solidariedade, tendo cada indivíduo a própria responsabilidade sobre seu destino, o que no mundo moderno significa a obrigação moral e intersubjetiva de ser dono da própria trajetória. Traduzindo para a linguagem de uma sociedade meritocrática: cada pessoa é responsável por sua própria carreira, sendo o fracasso imperdoável. Jessé Souza (2003) recuperou em Florestan Fernandes que o individualismo, nesse aspecto, é desde sempre a realidade da ralé, cuja marca principal é exatamente a da família desestruturada pelo desemprego. De longe, então, Beck e Castel percebem a relação entre não filiação social e individualismo, que significa nesse sentido isolamento, autoindulgência, sofrimento pessoal e admissão da própria culpa pessoal pela derrota, quando é o caso na sociedade do trabalho e da classe. Lado negativo da tese do individualismo: ela não pode ser transformada em substituta do paradigma da classe e do trabalho. Podemos pensar no caso dos batalhadores: são trajetórias individuais que encontramos quando vemos a ascensão de milhões de brasileiros, em grande parte oriundos da ralé, filiando-se ao mercado através de um saber popular e de uma economia popular, informais em sua maioria e não necessariamente precários. Mas isso não significa o fim das classes sociais. Pelo contrário, quando os indivíduos batalhadores, por exemplo,


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mudam de condição social, eles se transformam em uma nova classe, pois apresentam trajetórias individuais semelhantes. Castel não entra no debate da classe, apenas tem uma tese sobre o individualismo negativo e sobre as mudanças sociais do trabalho que o condicionam. É uma lacuna em seu lado historiador, preocupado exaustivamente com a mudança da questão social desde a sociedade présalarial até a sociedade pós-salarial. Já Ulrich Beck é um inimigo declarado da classe. Um inimigo distinto, pois não a nega, apenas a admite como residual e categoria analítica descritiva, um conceito “zumbi”, diante da força maior do conceito de individualismo. Desde seu clássico “Risikogesellschaft” (1986) ele já dizia que o mundo hoje produz mais riscos do que necessidades. A produção de necessidades teria sido traço central da sociedade industrial. Bourdieu é o principal autor para a recuperação de uma teoria de classes, para sua renovação a partir dos imperativos da nova sociedade mundial do trabalho. Sua obra foi a principal influência dessa tarefa, no Brasil, realizada por Souza e seu grupo de pesquisa, o CEPEDES/UFJF. O conceito de habitus e a teoria dos capitais, de Bourdieu, são a pedra de toque nessa direção. Com a ideia de habitus Bourdieu identificou traços comuns que assemelham as pessoas simbolicamente e as aproximam na prática, definindo padrões e barreiras de classe, em seu livro Distinção (2007). Com ele pesquisamos a ralé brasileira, em sua condição de estática social, totalmente não filiada ao mercado produtivo e não portadora da condição de consumidor, o outro lado da moeda do indivíduo considerado digno em uma sociedade meritocrática. A teoria dos capitais de Bourdieu talvez nos ajude a enxergar a classe muito mais no caso das classes médias e dominantes do que no caso das classes populares, definidas mais pela ausência do que pela posse de capitais. Para ele, as classes dominantes, os ricos, são portadores principalmente do capital econômico, o que significa patrimônio acumulado por famílias e herança, bem como investimentos. As classes médias possuem principalmente capital cultural, estabelecidas principalmente nas profissões liberais. Para Souza (2010), o capital familiar seria outra característica fundamental para os privilégios da classe média tradicional.


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Três outras perspectivas teóricas contemporâneas também nos ajudam a enxergar que existem classes sociais na nova sociedade mundial do trabalho. Elas fazem parte do pensamento dominante no Atlântico Norte que, direta ou indiretamente, não conseguem esconder a existência de classes sociais na nova realidade mundial de radicalização e institucionalização da precariedade, do individualismo e da meritocracia. Aqui, usaremos o pensamento dominante contra ele mesmo, como fez Jessé Souza (2000) com o “pensamento social brasileiro”. 1 – O advento de uma nova elite global. Vários autores influentes no Atlântico Norte já perceberam a existência de uma elite transnacional, pequena, portadora da maioria das ações do capital financeiro internacional, que se resumem a um número relativamente pequeno de famílias e empresas. Isso é uma classe social. Uma classe dominante transnacional. Nos EUA, Peter Berger e Samuel Huntington (2004, em português [2002] no original) organizaram uma pesquisa mundial de grande porte e financiamento, cujo resultado é o livro Muitas globalizações. Diversidade cultural no mundo contemporâneo (2004). O próprio título já sugere o teor relativista do tema, que não percebe uma sociedade mundial do trabalho, mas sim casos culturais da globalização. O ponto importante é que, nesse livro, um dos traços gerais foi exatamente perceber a elite global. 2 – A teoria das redes transnacionais. Manuel Castells (2010) é conhecido por sua teoria da sociedade da informação e da sociedade de redes. Ele também percebe a elite global, e com um acréscimo importante aqui: as redes transnacionais são redes impessoais que interligam os ricos e o estamento científico transnacional. Mas também podem ser redes pessoais, ou seja, trata-se do capital pessoal dos ricos que é fundamental para o compartilhamento de informações raras em tempo real, ou seja, por exemplo, onde investir e como agir na bolsa de valores. Trata-se de uma rede social internacional que mantém boa parte do dinheiro do mundo circulando em suas próprias mãos, na lógica do reinvestimento de capitais e da terceirização da mão de obra altamente qualificada, ou seja, das consultorias, como uma nova arma da velha classe média brasileira.


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3 – A teoria dos milieus sociais. De autoria principalmente de Michael Vester (1993), influente bourdiesiano alemão. Partindo do esquema vertical de classes de Bourdieu, que definiu em seu tempo, na França, as classes como dominantes, médias e populares, Vester procura, com a ideia de milieus (ambientes ou meios sociais), renovar uma teoria de classes diante das mudanças vividas na Alemanha dos anos de 1970 e 1980. O autor identifica em espaços do “mundo da vida”, de identificação a partir de gostos culturais como música, o que pode ser considerado frações de classe, e assim mostra que as classes sociais são internamente heterogêneas, não sendo apenas definidas pelo status econômico e a posição em camadas sociais. O que está em jogo nesse pensamento pós-welfare, explícito ou implícito, é a tentativa de substituição da tradição da sociologia do trabalho, que dominou a era definida como sociedade industrial: trata-se da tradição marxista, em Frankfurt e em muitos outros, mesmo na sociologia estatística das classes norte-americana. Aqui as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar. Faz todo sentido, se pensamos no espírito da época, ditado pela ciência social dominante do Atlântico Norte, e no caso do trabalho principalmente pela academia francesa e alemã. André Gorz (2004) é a melhor tentativa de renovação da teoria do valor, mas infelizmente termina em uma ontologia do imaterial, em lugar da ontologia do capital, herança marxista que não pode ser perdida. No Brasil, a sociologia do trabalho e da classe, como em seu maior exemplo, Ricardo Antunes, se resume a adaptar as velhas teses de Marx à nova realidade, sobre a qual ironicamente aprendemos mais com os conservadores do que com os supostos donos da crítica.

REFERÊNCIAS BECK, Ulrich. Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. BECK, Ulrich. Was ist Globalisierung? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997.


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BECK, Ulrich. Schöne neue Arbeitswelt. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007. BECK, Ulrich. Die Neuvermessung der Ungleichheit unter den Menschen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008. BERGER, Peter; HUNTINGTON, Samuel. Muitas globalizações. Diversidade cultural no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Record, 2004. BOURDIEU, Pierre. A distinção. Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. CASTEL, Robert. From manual workers to wage laborers: transformation of the social question. New Brunswick: New Jersey: Transaction Publishers, 2003. CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. The information age: economy, society and culture. Oxford: Blackwell Publishers, 2010. v. 1. CASTEL, Robert. Die Krise der Arbeit. Neue Unsicherheiten und die Zukunft des Individuums. Hamburg: Hamburger Edition HIS Verlagsges mbH, 2011. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978. GORZ, André. Misérias do presente, riqueza do possível. São Paulo: Annablume, 2004. LAHIRE, Bernard. Acultura dos indivíduos. Porto Alegre; Artmed, 2006. NÉRI, Marcelo. A nova classe média. O lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2012. OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1994. POCHMANN, Marcio. Nova classe média? O trabalho na pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.


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SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2006. SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de janeiro; Iuperj, 2003. SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros. Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. UNGER, Roberto Mangabeira. O que a esquerda deve propor? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. VESTER, Michael. Soziale Milieus in gesellschaftlichen Strukturwandel. Köln: Bund-Verlag GmbH, 1993.


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Sobre os autores_Layout 1 9/18/13 7:36 PM Page 327

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SOBRE OS AUTORES

GILSON REIS (ORG.) - Professor de Biologia, Pós-graduado em Economia Brasileira e Mercado de Trabalho pela UNICAMP, Dirigente da CTBNacional, Presidente do Sinpro Minas e Vereador de Belo Horizonte.

PEDRO OTONI (ORG.) - Mestre em Ciência Política pela UFMG, especialista em Economia Política, diretor do Centro de Estudos Aplicados ao Desenvolvimento Brasileiro (Cedebras).

ADELSON FRANÇA JR. - Pedagogo, Especialista em Filosofia pela UFMG e professor na Prefeitura de Belo Horizonte.

CLARICE BARRETO LINHARES - Socióloga, Mestre em Ciência Política pela UFMG e diretora do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais (SinproMinas).

CLÁUDIO CONTIJO - Conselheiro efetivo e Presidente do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais, Doutor em Ciências Econômicas pela New School for Social Research dos Estados Unidos, Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Mestre em Economia pela UNICAMP, Graduado em Ciências Econômicas na UFMG, Escritor e articulista de Economia. ÉRICA ANITA BAPTISTA - Jornalista e Mestre em Comunicação Social pela PUC Minas. Doutoranda em Ciência Política na UFMG. Pesquisadora dos grupos “Opinião Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral”, sediado na UFMG, e “Discurso político midiatizado”, sediado na PUC-Minas.

FABRICIO MACIEL - Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com sanduíche na PH Freiburg, Alemanha. Professor adjunto do Mestrado em Planejamento Regional e Gestão de Cidades da Universidade Cândido Mendes, Campos dos Goytacazes/RJ.


Sobre os autores_Layout 1 9/18/13 7:36 PM Page 328

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GILBERTO ANTÔNIO REIS - Médico Sanitarista, Doutor em Ciência da Informação e professor da PUC-Minas.

JOSÉ LUIZ QUADROS DE MAGALHÃES - Professor da UFMG, FDSM e PUC-Minas, Mestre e Doutor em Direito pela UFMG.

JOSÉ TANAJURA CARVALHO - Economista, ex-professor da UFMG, PUCMinas, Fundação Dom Cabral, ex-Diretor de Informática do TCEMG.

MARIA EULÁLIA ALVARENGA – Economista, Coordenadora do Núcleo Mineiro da Auditoria Cidadã da Dívida.

MARIA LUCIA FATTORELLI - Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida

RODRIGO ÁVILA - Economista da Auditoria Cidadã da Dívida. RONALD ROCHA - Sociólogo e sócio do Instituto 25 de Março de Sérgio Miranda – Isem.

VANDERLEI MARTINI - natural do Rio Grande do Sul e militante do MST/MG desde 1999. Graduando em Serviço Social pela ESS/UFRJ.

VIRGÍLIO DE MATTOS - Professor universitário sindicalizado. Graduado, especialista em Ciências Penais e Mestre em Direito pela UFMG. Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Lecce (IT). Autor de Crime e psiquiatria – uma saída, dentre outros. Da Comissão de Fomento à Participação e Controle Social na Execução Penal do Ministério da Justiça. Advogado criminalista.


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Gilson Reis (Org.)

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Professor de Biologia, Pós-graduado em Economia Brasileira e Mercado de Trabalho pela UNICAMP, Dirigente da CTB-Nacional, Presidente do Sinpro Minas e Vereador de Belo Horizonte.

REALIZAÇÃO:

Cedebras

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Fundação Mauricio Grabóis

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ISEM - Instituto 25 de Março de Sérgio Miranda

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Sinpro Minas - Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais

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Pedro Otoni (Org.)

Mestre em Ciência Política pela UFMG, especialista em Economia Política, diretor do Centro de Estudos Aplicados ao Desenvolvimento Brasileiro (Cedebras).

ORGANIZADORES:

Gilson Reis e Pedro Otoni COLABORADORES: Adelson França Jr, Clarice Barreto Linhares, Cláudio Contijo, Érica Anita Baptista, Fabricio Maciel, Gilberto Antônio Reis, José Luiz Quadros de Magalhães, José Tanajura Carvalho, Maria Eulália Alvarenga, Maria Lucia Fattorelli, Rodrigo Ávila, Ronald Rocha, Vanderlei Martini e Virgílio de Mattos

O livro Desvendando Minas – descaminhos do projeto neoliberal, organizado pelos professores Gilson Reis e Pedro Otoni, promete instigar a reflexão sobre os limites do bloco dominante mineiro, em especial seu principal representante no momento, o senador Aécio Neves. No entanto, os artigos que compõe a obra vão além e promovem uma investigação ampla sobre os diferentes aspectos da condição estrutural e conjuntural de Minas Gerais. A abordagem permite revelar os verdadeiros contornos do projeto em andamento no Estado, vendido como “moderno” e “eficiente”, mas que objetivamente reproduz o mesmo padrão histórico regional, pautado pela condição periférica e primário-exportadora. Os artigos que compõem a coletânea fazem uma leitura crítica de cada ação dos governos do PSDB e demonstram, com farta quantidade de dados, os estragos causados por suas gestões – e de seus fiéis aliados – ao importante estado de Minas Gerais. Entre outros mitos desmascarados está o do “choque de gestão”, praticado pelos governadores tucanos no Governo Estadual. O autor Ronald Rocha comprova esta orientação, tão badalada pela imprensa nacional, que serve apenas aos interesses do empresariado e agravou as desigualdades sociais no estado. No mesmo rumo, o autor Cláudio Gontijo aponta que o “choque de gestão” enriqueceu ainda mais os rentistas e travou o desenvolvimento da economia. Em outros terrenos, o desastre neoliberal também é esmiuçado. Na obra há estudos sobre a regressão da política agrária, sobre o “estado de choque” da saúde em Minas Gerais, sobre os descaminhos na política de educação, entre outros. O livro apresenta um rico apanhado do modo tucano de governar, o que o torna uma obra indispensável para o debate de ideias na sociedade brasileira, com vista a promover a reflexão e superação deste campo político definitivamente identificado com os interesses do mercado. Ele ajuda a desmistificar a trajetória do PSDB Mineiro e desmascara a mídia conservadora, que tanto fez e faz para blindar o seu cambaleante projeto político. Altamiro Borges Presidente nacional do Barão de Itararé


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