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p e r c e p ç ã o
v e r d a d e i r a
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chögyam trungpa
Título original: True perception: the path of dharma art Publicado por acordo com Shambhala Publications, Inc. Horticultural Hall, 300 Massachusetts Avenue Boston, Massachusetts 02115, Estados Unidos da América, www.shambhala.com © 1994, 1996 by Diana J. Mukpo “Introdução”: © 2008 by Judith L. Lief “A arte como prática espiritual”: © 2008 by Meredith Monk Tradução e edição Carlos A. Inada Revisão técnica Shambhala Brasil — Comissão de Tradução Capa e projeto gráfico Dharma/Arte Produções Diagramação Lucinda Kinch/Light Rae Design
2010 Todos os direitos desta edição reservados a Dharma/Arte Produções contato@dharma.art.br www.dharma.art.br
dharma|arte a percepção verdadeira
Organização Judith L. Lief Introdução à edição brasileira Meredith Monk
chögyam trungpa
Sumário Introdução — Judith L. Lief A arte como prática espiritual — Meredith Monk Dharma/arte — arte genuína A descoberta da elegância Sol do Grande Leste Bondade fundamental Meditação A arte na vida cotidiana Verdade comum Brecha vazia da mente Colorir nosso mundo Nova visão O processo da percepção Ser e projetar Horizontes perdidos Dar
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Humor auto-existente Desmedida Sábio tolo Cinco estilos de expressão criativa Terra de ninguém Magia sem escolha Uma pincelada A atividade da não-agressão Estado da mente Céu, terra e humano Riqueza infinita De volta ao começo Arte começa em casa Reunir o céu e a terra Agradecimentos Informações Biografia
É um prazer escrever a introdução de uma nova edição de Dharma/arte. Este livro reúne uma seleção de ensinamentos sobre dharma/arte — cursos, seminários, palestras públicas e discussões apresentados em várias localidades da América do Norte. As fontes de cada capítulo são indicadas no fim do livro. Nesta nova edição, com o título Dharma/arte: a percepção verdadeira, o manuscrito original foi ampliado, e inclui o ensaio A arte da caligrafia, de Chögyam Trungpa, aqui intitulado “Reunir o Céu e a Terra”. A inclusão desse texto acrescenta uma maior riqueza à instigante discussão da relação entre, de um lado, a criatividade artística, a percepção sensorial e a experiência meditativa; e, de outro, a vida cotidiana. Na expressão dharma/arte,* a palavra dharma vem em primeiro lugar. Dharma significa “norma” ou “verdade”. No contexto de dharma/arte, dharma é, como diz Trungpa Rinpoche, “o estado que antecede o momento em que levamos a mão ao pincel, à argila, à tela — muito fundamental,
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Em inglês, dharma art, forma que coexiste com dharmic art, ambas podendo significar apenas “arte dármica”.
Chögyam Trungpa, no entanto, usa apenas a forma dharma art, e explicita que não se trata de um arte com temática budista (como “arte dármica” poderia sugerir), e sim de um esforço de discutir os processos criativo e perceptivo, a experiência meditativa e a vida cotidiana. (N. do T.)
Introdução pacífico e fresco, livre de neurose”. Arte refere-se a todas as atividades de nossa vida, o que inclui qualquer disciplina artística que pratiquemos. Refere-se não apenas à prática artística formal, mas à arte da vida em si mesma — todo nosso ser. Em dharma/arte, ambas são inseparáveis. APRENDIZADO ARTÍSTICO NO TIBETE Como artista atuante e mestre de meditação, Trungpa Rinpoche (1939-87) trouxe uma perspectiva única à discussão do processo criativo. Ainda jovem, Trungpa Rinpoche — também chamado de Vidyadhara, ou “detentor de conhecimento” — foi reconhecido como o décimo primeiro tulku Trungpa, uma proeminente linhagem de mestres de meditação budista, e dedicou-se a um extenso estudo dos textos filosóficos e das práticas meditativas do budismo tibetano. Ainda no Tibete, o Vidyadhara estudou várias formas artísticas tradicionais, incluindo danças monásticas, poesia, caligrafia e pintura de thangkas. Apreciava as canções do grande mestre e poeta Milarepa, e as aventuras épicas do herói tibetano Gesar de Ling. Foi educado na tradição doha, que celebra as qualidades da mente desperta cantando versos espontâneos de realização espiritual. No Tibete, Trungpa organizou festivais e cerimônias monásticas, e deles participou, e deleitou-se ao iniciar seu treinamento em danças sagradas. Gostava de contar histórias sobre o rigor dos treinamentos de dança, durante os quais tinha de manter os braços para cima por horas, tocando
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um tambor de mão, até seus braços incharem e ele cair exausto. Em seus últimos anos, apesar de sua paralisia parcial, Trungpa fazia demonstrações dos movimentos de dança de sua formação, incluindo ainda danças populares. CHEGADA À INGLATERRA Após deixar o Tibete, primeiro rumo à Índia, depois à Inglaterra, e então à América do Norte, o Vidyadhara encontrou um mundo artístico muito diferente daquele de sua terra natal. Tendo sido exposto a uma abordagem em que a arte era altamente ordenada, de natureza religiosa e ligada às práticas e aos rituais da vida monástica, ele então encontrou a arte expressiva, secular e individualista do Ocidente da década de 1960. Descobriu as formas artísticas japonesas que expressavam a compreensão zen por meio de formas e rituais seculares, como o arranjo de flores, a cerimônia do chá, a caligrafia, a pintura e o arco-e-flecha. Além disso, mais tarde, por intermédio de sua esposa, Diana Mukpo, experiente na arte da cavalaria, Trungpa Rinpoche seria introduzido à arte do adestramento. Quando Trungpa Rinpoche chegou à Inglaterra, em 1963, mergulhou inteiramente no estudo da arte e da cultura ocidentais. Na Universidade de Oxford, como Spaulding Fellow, Trungpa perseguiu um amplo espectro de interesses artísticos, incluindo arquitetura, fotografia, pintura, literatura, teatro e música. Também se interessou pela arte japonesa da caligrafia e dos arranjos florais, que estudou com Stella Coe, da escola Sogetsu. Nessa época, Trungpa Rinpoche continuou a praticar a poesia, algo que que havia começado no Tibete. Mudra (1972), seu primeiro livro de poesia, baseia-se em seus escritos desse período, assim como em poemas que ele trouxera do Tibete. Na Inglaterra, e depois na América do Norte, Trungpa manteve seu interesse pela exploração artística, trabalhando com uma variedade de meios e de disciplinas artísticas. Fazia questão de encontrar-se com artistas locais sempre que possível, conversando sobre arte com eles e colaborando em empreendimentos criativos. AMÉRICA DO NORTE, INÍCIO DA DÉCADA DE 1970 Quando Trungpa Rinpoche chegou à América do Norte em 1970, encontrou-se com muitos artistas e poetas. Muitos de seus primeiros estudantes eram artistas experientes, como o poeta Allen Ginsberg, a dançarina Barbara Dilley e o músico Jerry Granelli. Também estabeleceu uma relação próxima com Shunryu Suzuki Roshi, Kobun Chino Roshi, Maezumi Roshi e outros mestres zen, prosseguindo em seu interesse pela relação entre o zen e o tantra, e pelas formas artísticas do zen e pelo estilo japonês (ver The teacup and the skullcup, Vajradhatu Publications, 2007). Trouxe
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consigo, da Inglaterra, uma grande apreciação pelo estilo e pelo design ingleses, e admirava a disciplina, a etiqueta, a cerimônia e as formas da corte britânica. O Vidyadhara também se interessou pelo cinema. No início da década de 1970, apresentou o Milarepa Film Workshop para discutir a arte de filmar e iniciou um filme baseado na vida do santo e poeta tibetano Milarepa. Com um pequeno grupo de diretores, viajou até a Suécia para visitar o Museum Ethnographia, onde uma série de magníficas thangkas de Milarepa vinham sendo conservadas havia anos, tendo, no entanto, visto a luz do dia em raras ocasiões. A equipe do museu gentilmente concordou em exibir as thangkas, permitindo que o Vidyadhara e sua equipe filmassem e fotografassem toda a coleção. Infelizmente, ainda que muito se tenha trabalhado nesse filme sobre Milarepa, ele não foi finalizado, devido a problemas técnicos com o filme. Entretanto, a tecnologia atual é capaz de corrigir esses problemas, e esse filme pode vir a ser completado no futuro. O Vidyadhara também gostava de filmes e de teatro. Em 1973, organizou uma conferência sobre teatro em Boulder, no Colorado, que atraiu artistas fundamentais, como Robert Wilson e JeanClaude van Itallie. Depois disso, criou um workshop permanente de teatro chamado de Grupo de Teatro Mudra. Ao trabalhar com o Teatro Mudra, o Vidyadhara desenvolveu uma seqüência de exercícios de conscientização chamada de prática de “mudra: consciência do espaço”. Também escreveu e dirigiu diversas peças, incluindo Prajna [Prajna], Kingdom of Philosophy [Reino da Filosofia], Child of Illusion [Filho da ilusão] e Water Festival [Festival da água]. Ao abordar a arte, o Vidyadhara enfatizava a colaboração, em oposição às realizações individuais. Tinha grande consciência do perigo da idéia de propriedade na arte, e do problema de alimentar o ego através dela. Desencorajava seus estudantes de apegar-se à sua identidade e encorajava-os a ousar pensar de maneira mais inclusiva. Também estimulava o estabelecimento de comunidades de artistas. Duas comunidades artísticas foram formadas no início da década de 1970 sob seus auspícios: Padma Jong, na Califórnia do Norte, e Boulder Craft House, no Colorado, que originou a primeira cooperativa de artistas na região de Boulder. O Vidyadhara também envolveu-se na criação de uma empresa comercial de design em Boulder, chamada Centre Design Studio, cujo conselho de administração era presidido por ele. Participou ativamente de vários projetos sob os auspícios do Centre Design, com destaque para o projeto de uma joalheria local chamada Kensington’s. Quando estudantes começaram a reunir-se em torno do Vidyadhara e este começou a estabelecer uma rede internacional de centros de meditação conhecida como Vajradhatu (hoje chamada de Shambhala International), ele já reservava uma grande atenção aos elementos do design.
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Gina Stick, uma das alunas próxima a Trungpa nessa área, nota: Ao longo de sua vida, o Vidyadhara teve um papel ativo no design. Penso que seu envolvimento pessoal com o design se devia, em parte, à grande alegria que tinha com as artes — ele amava desenhar —, e também à mensagem essencial que as artes trazem. “O caminho é a meta” — não se trata apenas do que fazemos, mas também de como fazemos — a arte da vida, a vida como arte, encanto, prazer. O Vidyadhara dava tanta atenção à sala onde serviria um jantar quanto a como sua organização deveria ser governada. Seu trabalho direto com o design tem origem, também, no significado que ele dava a essa atividade como um ensinamento direto do dharma — uma emanação da mente do guru.
Trungpa Rinpoche dedicava sua meticulosa atenção pessoal a todos os aspectos do design de seus centros, das marcas corporativas e broches à arquitetura e mobiliário. À medida que suas organizações cresceram e amadureceram, ele delegou muitas atividades a seus estudantes mais antigos, mas raras vezes delegou o trabalho de design. Não via tal trabalho como meramente decorativo, e sim como algo que tinha o poder de direcionar a energia e de dar o tom de todo um empreendimento. Trungpa Rinpoche continuamente exortava seus estudantes a respeitar as formas de sua própria cultura e a não sucumbir ao fascínio por coisas orientais. Durante os preparativos para a visita de um importante dignitário tibetano, Sua Santidade o Gyalwa Karmapa, em 1974, ele encorajou seus alunos, um tanto deselegantes, a observar um adequado decoro ocidental: uma postura adequada, boas maneiras à mesa, cabelos penteados, ternos com gravata para os homens, vestidos para as mulheres. Ao mesmo tempo, ministrou um curso intensivo sobre costumes tibetanos. Queria que seus alunos se sentissem igualmente à vontade com as convenções do chá britânico ou com o estilo do chá de manteiga tibetano. Trugnpa Rinpoche trabalhava os detalhes do ambiente e ao mesmo tempo os detalhes da dignidade e do decoro pessoais. Introduziu uma série de broches de lapela, que com o tempo se tornaram numerosos e elaborados, sendo que cada clube ou organização possuía seu próprio design. Trungpa Rinpoche não via esses broches simplesmente como símbolos de identificação, e mais como sílabas-sementes, as quais, embora pequenas, contêm a essência do poder e da mágica dos ensinamentos. Não enfatizava a forma pela forma, mas tentava mostrar a seus estudantes — muitos deles desiludidos pelo que consideravam como formas vazias e hipócritas da religião de sua infância — o poder que a forma tem de ensinar e transformar. Nesse sentido, o tempo todo ele usava a arte para transmitir a essência das coisas como elas são. Tendo sido educado em uma cultura na qual se pode desarmar a barraca pela manhã, enrolar as
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thangkas e tapetes, viajar até um novo local e, do nada, rapidamente criar um espaço elegante e santificado, Trungpa Rinpoche transportou o sabor dessa cultura nomádica para um contexto ocidental. Desenhou uma série de bandeiras e estandartes com caligrafias, usados em seus centros internacionalmente. Ao planejar as salas de meditação para seus alunos ocidentais, o Vidyadhara foi muito influenciado pelo zen ocidental, e incorporou elementos tanto tibetanos como japoneses. Por exemplo, usava as almofadas de meditação japonesas chamadas zafus, mas elas eram vermelhas e amarelas, e não pretas ou marrons, como no zen. Mais tarde, desenvolveu seu estilo próprio de almofada de meditação, chamada gomden, que é colocada sobre um pequeno colchão tradicional japonês, chamado zabuton. A FUNDAÇÃO DO NAROPA INSTITUTE No verão de 1974, Trungpa Rinpoche fundou o Naropa Institute (atualmente, Naropa University), uma universidade enraizada na tradição budista de educação superior, com forte ênfase em artes. Em Naropa, um treinamento artístico prático é acompanhado por estudo acadêmico e pela prática da consciência, em uma abordagem holística da criatividade, do conhecimento e do crescimento pessoal. Os cursos de verão do Naropa Institute tinham uma atmosfera de festival e atraíam artistas de todo o mundo, e o Vidyadhara aproveitava a oportunidade para estender sua troca com artistas ocidentais. Em seus cursos de verão anuais, Naropa organizava um extraordinário encontro de professores e alunos, e funcionava como um ponto de encontro catalisador para numerosos artistas e intérpretes da avant-garde, incluindo John Cage, Meredith Monk, Jean-Claude van Itallie, Colin Wolcott, William Burroughs, Gregory Corso, Robert Frank, Anne Waldman e Diane DiPrima. O próprio Trungpa Rinpoche ensinou nos cursos de verão de Naropa por muitos anos. Na segunda dessas temporadas, em 1975, deu um curso fundamental intitulado “A iconografia do budismo tibetano”, no qual introduziu princípios essenciais daquilo que mais tarde seria conhecido como “dharma/arte”. As dez palestras que ele proferiu nesse verão foram incorporadas a este livro. Em Naropa, os departamentos de artes desempenham um papel central até hoje. O departamento de escrita criativa, a Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, foi fundado por Allen Ginsberg e Anne Waldman. Barbara Dilley, da companhia de Merce Cunningham, criou o curso de dança do Naropa Institute. O curso de teatro foi iniciado por Lee Worley, e os cursos de Naropa voltados para a world music e para o jazz foram fundados por Jerry Granelli e Bill Douglas. Em 1982, em uma reunião com o corpo docente da área de artes do Naropa Institute, o Vidyadhara referiu-se à prática artística como algo contínuo e difuso, envolvendo todos os aspectos da
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vida. Por exemplo, se alguém é músico, é sempre músico, e não apenas quando está tocando seu intrumento. Ouve música quando os talheres retinem em um restaurante, ao bater a porta do carro, quando alguém espirra. Refinar a habilidade de verdadeiramente escutar é a base da expressão musical, e desenvolver uma consciência e uma apreciação mais sofisticadas do som e do silêncio é uma prática que ocupa 24 horas por dia. O Vidyadhara tinha a expectativa de que um dia Naropa reuniria todo o repertório de belas-artes, e também artes e ofícios aplicados, assim como a Universidade Nalanda da Índia medieval. Sua visão era que, em sua maturidade, Naropa seria uma universidade completa, líder em reunir a aquisição de conhecimento externo com o cultivo da sabedoria interior. Queria que Naropa fosse tanto um centro espiritual como um centro artístico e acadêmico, abrigando as principais práticas contemplativas do repertório das tradições espirituais e psicológicas do mundo todo. Essa visão forneceria a semente para o que mais tarde seria conhecido como “educação contemplativa”. Ao visitar Naropa, o mestre da linhagem Nyingma do budismo tibetano Dilgo Khyentse Rinpoche expressou uma perspectiva semelhante em uma caligrafia que apresentou: “Em qualquer campo de conhecimento, tudo são passos na trilha da onisciência”. Esse tema é evidenciado pelo lema de Naropa, escolhido pelo Vidyadhara: prajna garbha, ou “ventre da sabedoria”. A imagem de dar à luz a sabedoria enfatiza, mais uma vez, a reunião da criatividade com o despertar, central aos ensinamentos de dharma/arte. AMÉRICA DO NORTE, FINAL DA DÉCADA DE 1970 E DÉCADA DE 1980 Ao longo dos dezessete anos em que ensinou na América do Norte, o Vidyadhara perseguiu ativamente as disciplinas artísticas e seguiu seus amplos interesses com imensa curiosidade e deleite. No fim da década de 1970 e no início da década de 1980, participou de vários seminários sobre dharma/arte, tendo como foco diferentes aspectos da relação entre meditação e criatividade artística, como arte e sanidade, dharma visual ou arte na vida cotidiana. Os seminários sobre dharma/arte conduzidos no Naropa Institute e em outros lugares foram um rico conjunto de conferências, discussões, prática de meditação, exposições e demonstrações artísticas e composições espontâneas de caligrafia, poesia e arranjo floral. Para oferecer a seus alunos um exercício intuitivo simples, incorporando os princípios que são a base de dharma/arte, o Vidyadhara introduziu a prática de dispor objetos. Nessa prática, os estudantes trabalhavam com os ensinamentos de dharma/arte por meio da prática de dispor atentamente três pequenos objetos sobre uma folha de papel branco. Nessa prática, o papel branco representa a abertura e a clareza do espaço, e os objetos representam a forma. Quando dispõem os objetos, um de cada vez, sobre a folha de papel, os estudantes exploram a sutil inter-
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conexão de espaço e forma, e os princípios do céu, da terra e do humano. Atentos a como cada objeto é manuseado e disposto nessa prática, os estudantes começam a desenvolver mais graça e dignidade no modo como lidam com seu meio. O interesse do Vidyadhara pelas artes florescia, e ele apresentou uma série de exposições de arranjos florais, instalações ambientais e exposições de arte. Ao reunir materiais para suas instalações, ele trabalhava com o princípio da riqueza inerente, chamado de yün, em tibetano. Ele treinava seus alunos a reconhecer essa qualidade de riqueza e poder, quer estivessem selecionando objetos de arte ou escolhendo uma gravata, e a apreciar a disciplina da atenção aos detalhes. No final da década de 1970, o Vidyadhara também encorajou o desenvolvimento de uma companhia comercial de cinema chamada Centre Productions, em Boulder. Com a Centre Productions, dirigiu e filmou Discovering elegance [A descoberta da elegância], um filme que documenta o Vidyadhara e outros no processo de montagem de uma elaborada instalação ambiental. Em suas primeiras reuniões com a equipe da Centre Productions, o Vidyadhara discutiu os princípios de dharma/arte aplicados à filmagem. Mais tarde, o Vidyadhara trabalhou com a Centre Productions em um filme sobre a vida do Karmapa, chamado The lion’s roar [O rugido do leão]. O Vidyadhara praticava caligrafia regularmente e criou inúmeras caligrafias, inicialmente para seus centros de meditação e como presentes para seus alunos e amigos. Quando faziam o voto de refúgio e, mais tarde, o voto de bodhisattva, cada estudante recebia uma caligrafia original com o seu nome no dharma. Algumas vezes Trungpa Rinpoche doava caligrafias que eram usadas em leilões para levantar fundos, ou usava-as como ilustrações em seus seminários sobre dharma/arte. Convidava seus alunos a vê-lo quando criava as caligrafias, a fim de que pudessem observar o processo tanto como o resultado final. Em suas caligrafias, o Vidyadhara não trabalhava com canetas, e sim com pincéis japoneses, freqüentemente combinando técnicas japonesas com formas da língua tibetana. Essa fusão de formas e métodos de diferentes culturas — principalmente do Tibete, da China, da Índia, da Inglaterra e da América do Norte — era uma característica de seu estilo. A poesia foi um aspecto regular e contínuo no dia-a-dia do Vidyadhara. Era comum que criasse poesia oralmente, de maneira espontânea, em meio a um pequeno grupo informal. Raramente escrevia seus poemas; em vez disso, seus alunos transcreviam sua poesia à medida que ele recitava. Com freqüência convidava seus estudantes para participar, contribuindo com poemas espontâneos completos ou com versos individuais. Nas reuniões com o corpo docente da área de escrita criativa de Naropa, o Vidyadhara introduziu inúmeros exercícios tradicionais tibetanos, baseados em uma lógica tríplice. Encorajava a tradição da recitação espontânea e a experiência de estar naquele exato instante, sem seguir um texto escrito.
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O Vidyadhara tinha grande entusiasmo pela música ocidental, e apreciava, especialmente, Mozart e Bethoven. Seus interesses musicais, no entanto, eram amplos e incluíam a música da China, do Japão, da Índia e também da Indonésia. Ele escreveu algumas canções e, no final de seus cursos, muitas vezes se reunia a seus alunos para cantar. Trabalhou junto com um de seus estudantes, Robert Murchison, desenhando e construindo um grande tambor tradicional tibetano. O próprio Vidyadhara cuidava com atenção meticulosa de cada detalhe de suas instalações ambientais. Ia ao mercado de flores antes do amanhecer a fim de escolher as flores mais frescas para os arranjos. Também tinha a fantástica habilidade de magnetizar as pessoas para que emprestassem suas inestimáveis peças de herança para as instalações. Certa vez chegou com uma estátua de 2,5 metros do antigo soberano chinês Yung-lo, que ele queria usar na exposição. A estátua era extremamente valiosa, e inicialmente o proprietário se mostrou relutante em desfazer-se dela. No entanto, após ouvir a respeito da profunda ligação do Vidyadhara com a linhagem chinesa de Yung-lo, concordou em emprestá-la sem nada cobrar. A fim de ajudá-lo em seu trabalho artístico, o Vidyadhara fundou um grupo chamado Explorers of the Richness of the Phenomenal World [Exploradores da riqueza do mundo fenomênico], que o assistiu em suas exposições e instalações, particularmente, reunindo materiais para grandes arranjos florais. Também fundou uma escola de arranjo floral chamada Kalapa Ikebana. O Vidyadhara prosseguiu ainda em sua exploração da fotografia, e encorajou o desenvolvimento de uma sociedade fotográfica, chamada Miksang, por seu regente vajra, Ösel Tendzin. Em 1980, teve início a associação e amizade do Vidyadhara com Kanjuro Shibata Sensei, da vigésima geração de fabricantes de arcos (onyumishi) do imperador do Japão. Com Shibata Sensei, o Vidyadhara introduziu seus estudantes ao kyudo, ou arco-e-flecha japonês, e também, por intermédio da sr.a Kiyoko Shibata, à arte japonesa da cerimônia do chá. Com Shibata Sensei, o Vidyadhara formou o grupo Ryuko Kyudojo (inicialmente, Jvalasara). No começo da década de 1980, o Vidyadhara formou ainda a Kalapa Cha, uma sociedade para o estudo e a prática do caminho do chá. Outra expressão da ligação do Vidyadhara com as artes foi o desenvolvimento de uma série de datas comemorativas e festivais entre seus alunos, a comunidade de Shambhala. Com efeito, seu trabalho com os estudantes visava à criação dos componentes de toda uma cultura baseada em dharma/arte, integrando artes, negócios, governo, militares, educação, religião e vida familiar. Em particular, ao criar o festival do dia do solstício de verão, tentou comunicar parte do esplendor do ritual dos festivais populares tibetanos tradicionais, com desfiles, estandartes, dança, teatro, música e esportes.
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O Vidyadhara trouxe a arte para casa, uma idéia muito enfatizada nos ensinamentos de dharma/ arte. Estava interessado em todos os detalhes domésticos, incluindo o design arquitetônico e de interiores, o arranjo dos móveis, a culinária, a limpeza, as formas de etiqueta, o vestuário e os serviços. UNIR O CÉU E A TERRA O ensaio que foi acrescentado a esta edição — “Reunir o céu e a terra” — baseia-se em um seminário sobre o dharma visual organizado pelo Vidyadhara em Boulder, entre os dias 13 e 19 de julho de 1979. Em suas palestras desse seminário altamente interativo, Trungpa Rinpoche executou uma série de caligrafias espontâneas e ilustrações sobre transparências, que eram exibidas por um retroprojetor durante o processo de criação. Nas caligrafias, o Vidyadhara demonstrava visualmente os princípios do céu, da terra e do humano que ele discutia. De acordo com Trungpa, céu significa “não-pensamento ou visão”; é o espaço fundamental, como uma tela vazia, convidativa mas um tanto assustadora. Terra significa “primeiro pensamento”, a inspiração inicial. Humano significa o ato de expressar de fato algo. O princípio tríplice do céu, da terra e do humano é encontrado em muitas culturas asiáticas. Aplica-se ao ponto de vista tanto do artista como do público. Na verdade, o mesmo paradigma é útil em muitos outros aspectos da vida, das atividades mais simples, como preparar uma refeição, a administrar uma organização ou planejar uma cidade. Além das caligrafias criadas pelo Vidyadhara durante o seminário, ele também fez uma série de ilustrações sobre as lâminas de vidro do retroprojetor. Muitas delas foram criadas em uma série de camadas, resultando em esquemas simples ou em diagramas de maior complexidade, à medida que ele avançava. Em uma série de vinte diagramas, o Vidyadhara expressou simbolicamente a inter-relação entre os princípios do céu, da terra e do humano e o conceito vajrayana dos “quatro karmas”, ou quatro atividades iluminadas: pacificar, enriquecer, magnetizar e destruir. À medida que prosseguia, comentava cada passo do processo. A partir de 1976, e até o período desse seminário, o foco de Trungpa Rinpoche concentrou-se cada vez mais nos ensinamentos de Shambhala, uma tradição que historicamente se alinha com o budismo, mas com uma ênfase no secular e no social. Entretanto, para os estudantes imbuídos de seus primeiros ensinamentos acerca da visão e da prática do budismo vajrayana, a relação entre Shambhala e o vajrayana nem sempre era clara, ainda que ambas as correntes de ensinamento estivessem profundamente enraizadas na prática da atenção plena. Nesse seminário, o Vidyadhara mostrou o íntimo entrelaçamento dessas duas correntes. Nas discussões que seguiam cada palestra, membros da platéia eram chamados para compor uma poesia oral espontânea, a criar naquele instante poemas de três versos, com base nos princípios
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do céu, da terra e do humano que ele havia introduzido. Em intercâmbios extensos, Trungpa estimulava seus alunos mais tímidos, gentilmente persuadindo-os a dizer seus versos com confiança e clareza — embora não hesitasse em interromper aqueles que falassem sem sinceridade ou que não se mostrassem dispostos a permanecer com a mais genuína crueza do momento presente da experiência. Quando algum estudante-poeta perdia a qualidade da espontaneidade e começava a cair na atitude convencional de ter algo inteligente a dizer, o Vidyadhara pedia que fosse mais rápido. Encorajava-os a soltar sua hesitação e a falar com simplicidade e diretamente. Trungpa referia-se a essa qualidade de expressão espontânea como “primeiro pensamento, melhor pensamento”. Entre os participantes do seminário de 1979 estava o poeta Allen Ginsberg, que disse este poema: Heart beating in my chest Banner shining in electric light Everybody listening. [O coração bate em meu peito O estandarte brilha na luz elétrica Todos ouvem.] A oferenda de David Rome, secretário pessoal de Trungpa, foi: Seeing comes before looking In spite of the words And the end is the beginning. [Ver antecede o olhar Apesar das palavras E o fim é o começo.] Outra importante faceta do seminário de 1979 sobre a reunião de céu e terra é que, nele, o processo da percepção foi novamente explorado, mas de uma perspectiva um pouco diferente daquela que Chögyam Trungpa havia apresentado no seminário sobre dharma visual do Naropa Institute, em 1978. Nesse ano, o Vidyadhara havia descrito a percepção como um processo em que primeiro se vê, então se olha — e então novamente se vê. Ele descrevia ver como criar “um tipo de base aberta”, e olhar como começar a “examinar um pouco mais o mundo fenomênico”. Em 1979, o Vidyadhara inverteu essa ordem, dizendo que primeiro se olha, então se vê. Aqui, ele relaciona o olhar com a curiosidade e com a prajna, ou intelecto; e o ver com jnana, ou sabedoria. Como se algumas vezes
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a percepção operasse partindo de um lampejo de abertura para um interesse pelos detalhes; outras vezes, um interesse pelos detalhes conduz à abertura. A discussão sobre criatividade, meditação, percepção e as intrigantes relações entre dharma/arte e os ensinamentos do budismo vajrayana e de Shambhala é uma discussão aberta e em andamento. Os ensinamentos de dharma/arte são sutis, com novas visões sobre seu significado e sua aplicação. No entanto, trabalhar esse material não é apenas uma preocupação teórica e filosófica, e sim algo que toca o coração de como percebemos o mundo e como escolhemos nele viver. A cada momento temos uma escolha: podemos agir com descuido, rigidez e agressão, ou com gentileza, humor e abertura. Em vez de ver a arte como mera forma de entretenimento, ou como uma bela quinquilharia, o Vidyadhara enxergou o potencial da criação artística para apontar diretamente o que é verdadeiro e trazer tanto o artista como o observador para a riqueza e o potencial ilimitado do momento presente da experiência, o agora. Nessa experiência, a agressão é superada, e a transformação é possível. Podemos dizer que em suas inúmeras atividades e ensinamentos, Trungpa Rinpoche sempre foi, de coração, um artista. Para muitos de seus estudantes, a essência do que aprenderam foi transmitida por gestos, pelo meio, pela criatividade artística. A curiosidade do Vidyadhara e seu amor por uma grande variedade de expressões artísticas, e seu respeito pelo poder da arte para despertar e liberar, não tinham limites. Por essa razão, ele enfatizava a importância dos ensinamentos de dharma/arte para todos seus alunos — tanto artistas como não-artistas. Que essa importante corrente de ensinamentos desperte nossa apreciação pela riqueza deste mundo de cores e desafios, e que, por sua vez, isso desperte nossa compaixão para despertar nos outros tal apreciação.
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Conheci Chögyam Trungpa em Nova York, em 1974, durante uma de suas primeiras palestras na cidade. Devo dizer que o encontro foi um tanto engraçado, porque apenas apertamos as mãos – nada passou pela minha cabeça, nada. Pouco depois, estive um tempo na abadia de Gampo, na Nova Escócia, Canadá. Quando contei a Ane Migme, uma das monjas da abadia, que durante aquele encontro nada havia passado por minha cabeça, ela disse: “Oh, então foi um encontro muito bom: ele lhe mostrou a brecha, e isso é muito auspicioso”. Os assistentes de Trungpa haviam feito uma longa explicação sobre meu trabalho: que se tratava de música como meditação, teatro budista etc., mas no exato momento em que olhamos um para o outro, todas as minhas “realizações” pareceram sem importância. Meu pensamento ficou paralisado; sabia que não havia nada que pudesse dizer com exatidão. Isso foi muito instintivo, porque até então não estudara nada do budismo, não realizara nenhuma prática formal, mas tive a sensação de que meu palavreado conceitual era irrelevante. Literalmente, fiquei sem palavras. Assim foi meu primeiro encontro com Trungpa. Mais tarde, ensinei no Naropa Institute durante os verões de 1975, 1976 e 1978. Nós nos encontrávamos, mas nunca passei muito tempo com ele. Fui a todas as suas palestas nas semanas em que estive lá. Naquela época, sentia-me parte da comunidade artística, e era cética quanto a religiões organizadas. Andava sempre nas margens. No entanto, o que
A arte como prática espiritual era surpreendente em Trungpa Rinpoche era o fato de ter encontrado uma enorme variedade de formas para atingir a mente ocidental, e a arte era definitivamente uma delas. Outra forma que ele criou foram os Kasung, para os que estavam mais interessados em um tipo de disciplina militar que servisse de foco para sua energia e, ao mesmo tempo, os suavizasse interiormente de uma maneira precisa, que os envolvesse. Trungpa experimentou muitas maneiras diferentes de transmitir o dharma. Naquela época, somente a arte era capaz de impressionar-me. Passara toda a vida absorvida em criar arte, era essa a minha prática, minha vida. Por isso, em Naropa, imediatamente me identifiquei com a maneira como as artes se integravam com os estudos budistas e se inspiravam nas aspirações da comunidade. Quando lá me apresentei pela primeira vez, em 1975, tinha consciência de como os espectadores percebiam, e que isso abria um amplo espaço; o que eu apresentava podia ser o que era, não havia a pressão para entreter ou fazer algo diferente daquilo que estava fazendo. Não havia pressa. Além da eloqüência de Trungpa, a maneira como ele lidava com as perguntas das pessoas e o modo como trabalhava as situações eram também inspiradores. Lembro-me de Gregory Corso, um dos poetas da Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, em Naropa, gritando espontaneamente seus comentários e perguntas. Trungpa sempre tratou as explosões de energia
MEREDITH MONK
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de Gregory como um grande diálogo, verdadeiro e divertido. Admirava como Trungpa sempre trabalhava com o que quer que as pessoas lhe apresentassem. Gregory urrava uma pergunta, e Trungpa urrava uma resposta. Era como uma partida de tênis. Lembro-me também de uma questão com a qual me identifiquei fortemente, morando em Nova York. Um homem disse: “Vivo em Nova York e é muito barulhento. Como devo fazer minha prática de meditação?”. Trungpa respondeu: “Apenas pense que os táxis são macacos”. E acrescentou: “A paisagem de Nova York é feita dos rostos das pessoas”. Quando olho de verdade para o rosto das pessoas, esses rostos são nossas montanhas, nossas árvores e nosso céu em Nova York. Trungpa criou um forte sentido de comunidade artística na Naropa de meados da década de 1970. Não que o trabalho de todos fosse igual, o que não seria nada bom. Não havia uma sensibilidade única, à qual a arte supostamente devesse se adequar. Havia apenas um compromisso com o processo em si mesmo e com a coragem de nada pressupor. Foi uma época de alegria em Naropa. Todos sentiam que era o começo de um rico florescer de energia. A aspiração era abrir mão de expectativas, ser autêntico e honesto com a experiência. As pessoas tentavam lidar conscientemente com sua surpresa e sua confusão. Havia um sentido compartilhado de excitação e de aventura. Naropa também era um lugar maravilhoso para criar. Estive lá por duas semanas no verão de 1976. Pela manhã, depois de ensinar por três horas, ia até um lindo espaço que antes havia sido uma capela e trabalhava em novas obras. O resultado daquele processo tornou-se “Plateau #1”, que apresentei ao final daquela estada. Ter conhecido Naropa certamente fez-me pensar com cuidado em como trabalhava com outras pessoas. Depois, em meados da década de 1980, comecei um treino de meditação chamado Aprendizado Shambhala, e isso realmente mudou-me como ser humano. Percebi cada vez mais claramente que não havia separação entre os princípios do fazer artístico e a prática. Sempre tive algum tipo de confiança instintiva em minha visão como artista, mas nos ensinamentos de Trungpa encontrei um lugar onde nutri essa confiança como pessoa. Os ensinamentos de Shambhala fizeram com que eu desacelerasse mais em meu dia-a-dia. No meu processo de trabalho, sempre fui capaz de começar do vazio, da vacuidade, mas ao sentar-me no metrô, andar pela rua, experimentar os aspectos básicos do dia-a-dia, passei a enxergar de uma maneira diferente, a apreciar os tipos mais comuns de acontecimentos. Quando comecei a trabalhar com esses ensinamentos e práticas, tive consciência de que, encobrindo aquilo que Trungpa chama de nossa “bondade fundamental”, está o sentido de terror do qual ele fala, e muito do que fazemos é uma reação a ele. Nossa agressão tem a ver com o medo. Foi uma revelação descobrir isso em mim mesma. Como artistas, estamos sempre lidando com esse medo, sempre que começamos uma nova
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A arte como prática espiritual
obra, porque então estamos nos permitindo nos expor ao desconhecido. Basicamente, é uma tela em branco, começamos do nada, nada sabemos. Cada vez que criamos uma obra, o medo está sempre lá, sempre o estamos trabalhando, brincando com ele, permitindo que o interesse e a curiosidade pelo que fazemos se torne mais forte que a ansiedade. Então de fato ultrapassamos o medo, e surge um sentido de descoberta. Por volta da mesma época em que iniciei a prática de Shambhala, em meados da década de 1980, compus uma obra que é uma das maneiras mais diretas de trabalhar essa noção, chamada “Scared song”, basicamente uma música sobre o medo. Era uma obra pouco usual para mim, porque havia fragmentos de texto dentro dela e eu estava lidando com um estado emocional humano muito específico. Essa prática ajuda-nos a confiar no desconhecido ou na incerteza de nossas paixões e sensações. Penso que é isso que, como artistas, fazemos intuitivamente. Àqueles que não são artistas, ela realmente ajuda a compreender o que é o processo artístico e como isso corresponde ao processo de viver plenamente. Na verdade, pode-se dizer que cada pessoa é um artista no modo como vive sua vida.
Em Dharma/arte, Trungpa escreveu: “O problema fundamental em qualquer empreendimento artístico é a tendência a separar o artista de seu público e, então, tentar enviar uma mensagem de um a outro. Quando isso acontece, a arte se torna exibicionismo”. Essa é uma afirmação muito complexa, com muitos sentidos. Vemos arte na qual o que há é, acima de tudo, uma exibição do ego. Em certo sentido, a tradição ocidental enfatizou o artista individual como alguém isolado da sociedade, e também uma separação entre arte e vida. Muitas vezes, artistas que criaram obras brilhantes tiveram uma vida sofrida, e daí surgiu um mal-entendido fundamental: que a boa arte, a arte verdadeira, é um produto da neurose. Essa noção floresceu no século XIX e prosseguiu no século XX. Van Gogh e Pollock são dois exemplos que vêm à mente, cada um com uma vida pessoal bastante difícil e, ao mesmo tempo, com obras que refletem e incorporam princípios luminosos do universo. Trungpa provém da cultura tibetana, na qual se enfatizavam técnicas objetivas passadas de geração a geração, e a arte era vista como prática espiritual. Imagino que seu primeiro contato com a abordagem ocidental da “expressividade individual” tenha sido curioso. Pessoalmente, espero estar oferecendo em minhas obras uma experiência que não seja de nenhum modo manipulativa. É claro que cada pessoa verá, perceberá e ouvirá algo diferente, e nesse sentido se trata, potencialmente, de uma situação aberta para cada um. Obviamente, o material é filtrado por minha própria sensibilidade, que se torna cada vez mais refinada à medida que os anos passam. Em meu trabalho, sempre tento começar do zero, sem pressuposições ou
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expectativas. É claro que, quanto mais velha me torno, maior é o peso de minha própria história. Mas tento de todas as maneiras colocar a mim mesma em situação de risco, a fim de conservar o frescor do processo. E em cada obra tento oferecer uma experiência expansiva, de múltiplas camadas, que abra espaço para que cada pessoa se relacione com ela à sua própria maneira. Após mergulhar nessa experiência, é possível que alguém perceba aspectos de seu dia-a-dia de uma maneira nova e surpreendente. Trabalho com pessoas bastante desenvolvidas como artistas vocais, de modo que alguns desses princípios bastante básicos já estão lá. Quando nos apresentamos, estamos muito sensíveis uns aos outros e ao espaço. É algo realmente conjunto, em um sentido profundo. Em nosso trabalho, não se tem, necessariamente, o tipo de gratificação do ego que alguns tipos de espetáculo oferecem, por exemplo, um espetáculo da Broadway, em que nos ensinam a “vender” nosso produto. Você e o produto são separados. Você é muito habilidoso e tem muita personalidade, e em troca recebe um amor instantâneo. No meu trabalho, não há separação entre produto e artista; nós somos a música, o movimento ou o que quer que façamos. A beleza da situação de uma apresentação ao vivo está na possibilidade do desastre completo, a cada momento. Ao fazer um filme ou gravar um disco, em certo momento podemos cortar tudo aquilo de que não gostamos. E eles se tornam uma forma fixa. Na apresentação ao vivo, no entanto, tudo é real, tempo presente, e vemos as pessoas de cima de uma corda bamba, é essa a nossa experiência. A vulnerabilidade é um aspecto maravilhoso da apresentação ao vivo. O artista existe e todos na platéia existem; estamos todos no mesmo espaço e no mesmo momento. Compartilhamos esse tempo e esse espaço. Em suma, a experiência torna-se como a figura do número 8, um signo do infinito, que apenas vai e vem, vai e vem, dá voltas e retorna. Trungpa apontava algo que devemos ter em mente quando criamos: “A obra que estamos fazendo terá algum benefício?”. Os ensinamentos de dharma/arte são muito instigantes; apontam para uma consciência do processo em si mesmo e da relação entre o fazer artístico e a prática. Os artistas desenvolvem um sentido pessoal de disciplina no processo de criar suas obras, assim, em certo sentido, os ensinamentos de dharma/arte verbalizam e delineiam algo que é descoberto instintivamente. Mas os ensinamentos são valiosos para que todos tenham consciência dos elementos que existem em cada momento de percepção. Sempre penso em mim mesma, particularmente quando canto, como sendo um condutor dessas energias fundamentais. Como artista, esses ensinamentos foram um rico lembrete da razão pela qual me tornei artista.
dharma|arte a percepção verdadeira
Carta escrita por ocasião do primeiro curso de verão do Naropa Institute, julho de 1974.
O termo dharma/arte não se refere à arte que retrata símbolos ou idéias budistas, como a roda-da-vida ou a história do Buda Gautama. Em vez disso, dharma/arte refere-se à arte que emerge de certo estado da mente do artista que poderia ser chamado de estado meditativo. É uma atitude direta e espontânea no trabalho criativo. O problema fundamental em qualquer empreendimento artístico é a tendência a separar o artista de seu público e, então, tentar enviar uma mensagem de um a outro. Quando isso acontece, a arte se torna exibicionismo. Uma pessoa pode ter um tremendo lampejo de inspiração e correr para “colocá-lo no papel” para impressionar ou excitar os outros, e um artista mais calculista pode ter uma estratégia para cada passo de seu trabalho, a fim de produzir certos efeitos em sua audiência. No entanto, independentemente das boas intenções ou da realização técnica dessas abordagens, elas inevitavelmente se tornam canhestras e agressivas em relação aos outros e a si mesmas. Na arte meditativa, o artista incorpora o espectador também como criador de suas obras. A visão não é separada da operação, e não existe o medo de ser canhestro ou de falhar ao cumprir sua aspiração. Ele simplesmente faz uma pintura, um poema, uma obra musical, qualquer coisa. Nesse sentido, um completo iniciante poderia tomar o pincel e, com o estado mental correto,
Dharma/arte — arte genuína produzir uma obra-prima. Isso é possível, mas seria uma abordagem muito arriscada. Na arte, como na vida em geral, temos de estudar nosso ofício, desenvolver nossas habilidades e absorver o conhecimento e a intuição que a tradição nos legou. No entanto, quer tenhamos a atitude de um estudante que pode se tornar mais proficiente ao lidar com seu material, ou a atitude de um mestre realizado, quando de fato estamos criando uma obra de arte, existe um sentido de confiança total. Nossa mensagem é apenas a de apreciar a natureza das coisas como elas são, expressando-a sem nenhuma luta de pensamentos e medos. Abrimos mão da agressão, tanto em relação a nós mesmos, que precisamos fazer um esforço especial para impressionar as pessoas, como em relação aos outros, que podemos impor algo a eles. Arte genuína — dharma/arte — é simplesmente a atividade da não-agressão.
Letreiro Texaco, slide 35mm de Chögyam Trungpa Rinpoche, 1972-75. Coleção Shambhala Archives.
Galhos: “Poderíamos ver as árvores como fendas no céu, como fendas no vidro. Poderíamos adotar essa mudança de perspectiva. O espaço que existe ao seu redor poderia ser sólido– e você poderia ser apenas uma cavidade no meio desse espaço sólido.” Slide 35mm de Chögyam Trungpa Rinpoche, 1974. Coleção Shambhala Archives.
Colar para Lady Diana Mukpo, criado por Chögyam Trungpa Rinpoche, em colaboração com Gina Stick. Fotógrafo desconhecido, início da década de 1970. Foto cedida por Gina Stick. Coleção Shambhala Archives.
Caligrafia espontânea, seminårio Dharma/Arte, Boulder, Colorado. Foto: Robert Del Tredici, 1980.
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