COMENTÁRIOS DE UMA PROVA MUITO INTERESSANTE: Os concursos da atualidade, tanto os concursos públicos civis quanto os concursos de admissão às escolas (ou cursos de formação) militares, têm, para a satisfação de todos, valorizado a utilização do raciocínio em detrimento da simples memorização. Fica bem longe o tempo em que se valorizavam conhecimentos de fórmulas para resolução das questões daqueles concursos. Isso é muito bom porque faz com que o candidato precise de um conhecimento teórico não necessariamente tão aprofundado, cheio de “notas de rodapé” dos livros, repleto de informações pouco mencionadas, mas isto sim de um conhecimento mediano, acompanhado de um bom domínio sobre a melhor forma de utilizar esse conhecimento. Entender a questão, compreender a situação proposta e trabalhar bem o ferramental matemático (que não é mais o detalhe do detalhe do detalhe) são as prioridades. Nesta época do ano, em que costumava ocorrer a prova do exame de admissão à Escola de Sargentos das Armas (do Exército) – EsSA –, é exatamente a respeito do último exame proposto que vamos conversar. Vejamos algumas de suas questões, dentre as 14 de Matemática propostas na prova, abaixo comentadas. QUESTÃO: Uma certa Federação Estadual de Futebol resolveu fazer uma promoção para levar as famílias aos estádios em dias de jogos do campeonato estadual. Dessa maneira, um adulto sozinho paga R$ 20,00 pelo ingresso individual e um casal paga R$ 30,00 pelo ingresso familiar, com direito a levar uma criança. No jogo entre A e B compareceram 4 700 pessoas e foram vendidos 1 100 ingressos familiares, obtendo-se uma renda de R$ 73 000,00. Neste jogo, alguns casais não levaram crianças e não houve criança que pagou ingresso de adulto. Pode-se afirmar que o total de crianças que assistiram ao jogo é: a) 2 000 b) 500 c) 700 d) 1 100 e) 600 Esta é uma questão interessantíssima: tratando de um tópico simples como números naturais, envolvendo apenas as quatro operações fundamentais, é capaz de fazer o candidato mostrar, ao resolvê-la, que tem conhecimento da técnica (operações com números naturais) e verdadeiramente “sabe ler”, sabe interpretar a questão, extraindo dela as informações necessárias para alcançar a resposta correta. Esse é o candidato que sabe pinçar e pensar. Veja a resolução sucinta no quadro abaixo:
• • • • • •
Arrecadação com a venda dos ingressos familiares = 1 100 × 30 = 33 000; Arrecadação com a venda dos ingressos para adulto sozinho = 73 000 – 33 000 = 40 000; Número de adultos sozinhos = 40 000 : 20 = 2 000; Número de adultos correspondente à venda dos ingressos familiares = 1 100 × 2 = 2 200; Total de adultos = 2 000 (sozinhos) + 2 200 (dos casais) = 4 200; e Número de crianças presentes = 4 700 – 4 200 = 500
Havia, portanto, 500 crianças assistindo ao mencionado jogo. Outra questão bastante interessante, agora na Geometria Plana, foi a questão abaixo mencionada: QUESTÃO: O triângulo ABC, retângulo em Aˆ , é tal que ABˆ C > ACˆ B . A bissetriz interna de Aˆ intersecta o lado BC em D. Seja HD ⊥ BC (H entre A e C). Nestas condições, podemos afirmar que o ângulo HBˆ D mede, em graus: a) 25 b) 65 c) 35 d) 55 e) 45 Esta questão envolve vários conceitos e teoremas da Geometria Plana. Primeiro o teorema do ângulo externo, que diz que, em qualquer triângulo, qualquer ângulo externo é igual à soma dos internos que não lhe sejam adjacentes. Segundo, a condição de inscritibilidade de um quadrilátero, que é o fato de esse quadrilátero ter ângulos opostos suplementares. Terceiro, mas não menos importante, as relações entre arcos e ângulos de uma circunferência. Mais especificamente, o ângulo inscrito em uma circunferência que tem para medida, metade da medida do arco que ele determina sobre essa circunferência. Para finalizar, o conceito de ângulo complementar e o fato de que se dois ângulos são concomitantemente complementos de um terceiro, então esses ângulos são iguais entre si. Veja a resolução sucinta abaixo, acompanhada de uma figura para ajudar no entendimento.
B x
D
α α
45º 45º A
H
45º + α C
Chamemos med( ADˆ H ) de α. Como AD é bissetriz, divide o ângulo reto em dois ângulos de 45º. Pelo teorema do ângulo externo, no ∆ADH, podemos dizer que med( DHˆ C ) = 45º + α. Veja que ABˆ D e DHˆ C são, ambos, complementos de Cˆ e, portanto, são congruentes, ou seja, med( ABˆ D ) = med( DHˆ C ) = 45º + α. O quadrilátero ABDH, por ter ângulos opostos suplementares, é inscritível em uma circunferência (que está delineada em pontilhados no
croqui). Os ângulos ADˆ H e ABˆ H , ambos inscritos na mesma circunferência e determinando o mesmo arco AH, são congruentes, isto é, med( ABˆ H ) = med( ADˆ H ) = α. Então, podemos dizer que x + α = 45º + α x = 45º. Nas condições da questão, portanto, o ângulo procurado mede 45º. Mais uma questão bastante interessante que, na verdade, não exige muita interpretação por parte do candidato, mas uma habilidade em manipular números, é a abaixo citada: QUESTÃO: Quantos algarismos são necessários para escrever o produto (16)13,25 . (25)25? a) 52 b) 54 c) 53 d) 50 e) 51 Nesta questão, o examinador consegue, em poucas linhas, colocar o candidato em teste com relação a tópicos como números decimais, propriedades dos radicais e propriedades das potências. Tudo isso, obviamente, de forma muito inteligente. Veja os passos da resolução:
Comecemos por 53
1613, 25 = 16 4 = Logo:
53
( 16 ) 4
13,25 =
1325 53 = 100 4 . Então, podemos dizer que
= 2 53 . 25
( )
50
1613, 25.25 25 = 253.2525 = 253. 52 = 253.550 = 250.550.23 = (2.5) .23 . Lembrando que toda potência do tipo 10n, com n natural, é igual ao algarismo 1 seguido de n zeros, vem:
(2.5)50 .23 = 1050.23 = 1000...0 × 8 = 8000...0 50
50
.
Em outras palavras, são necessários 51 algarismos para escrever o produto da questão. Outra questão que veio a se juntar ao grupo foi a questão a seguir, que trata de função quadrática e seu ponto de máximo. QUESTÃO: Uma empresa de transporte estabelece, por viagem, o preço individual da passagem (p) em função da quantidade (q) de passageiros, através da relação p = –0,2q + 100, com 0 < q < 500. Nestas condições, para que a quantia arrecadada pela empresa, em cada viagem, seja máxima, o preço da passagem deve ser, em reais, igual a: a) 45 b) 50 c) 40 d) 55 e) 35 É uma questão em que se explora o tópico função quadrática. A arrecadação (A) é sempre igual ao número de passageiros (q) multiplicado pelo preço individual da passagem (p), o que resulta na função expressa pela lei A(q) = q . p = q(–0,2q + 100) = –0,2q2 + 100q. A condição 0 < q < 500 serve apenas para garantir que a arrecadação seja positiva (construindo a parábola, fica mais fácil perceber que os valores 0 < q < 500 correspondem
exatamente ao trecho do gráfico em que a função A(q) é positiva). Vejamos a resolução: A arrecadação em função da quantidade q de passageiros pode ser encontrada pela função A(q) = –0,2q2 + 100q, que é uma função quadrática que possui valor máximo, uma vez que o coeficiente do termo de 2º grau é negativo. Essa quantidade máxima de passageiros pode ser encontrada por: − 100 qmáx = = 250 − 0,4 . Como a questão quer saber o preço da passagem (p), devemos substituir esse valor de q na igualdade p = –0,2q + 100, encontrando finalmente p = –0,2 . 250 + 100 = 50. Respondendo à questão, o preço da passagem deve ser, em reais, igual a 50. Outra questão muito interessante que figurou nesse exame trata de um assunto bastante comentado de tempos em tempos em concursos. Fala a respeito de misturas. QUESTÃO: Num barril há 12 litros de vinho e 18 litros de água. Num 2º barril há 9 litros de vinho e 3 litros de água. Sabe-se que todas as misturas são homogêneas. As quantidades, em litros, que devemos retirar, respectivamente, dos 1º e 2º barris, para que juntas perfaçam 14 litros, sendo 7 de água e 7 de vinho, são: a) 7 e 7 b) 10 e 4 c) 8 e 6 d) 9 e 5 e) 5 e 9 Essas questões que falam a respeito de misturas são periódicas em concursos. Há diversos métodos de resolução (como em muitas questões em Matemática) e um fácil de compreender talvez seja o que passaremos a comentar.
No 1º barril, há 30 litros de mistura, dos quais 12 litros são vinho, 12 2 = isto é, 30 5 da mistura. No 2º barril, há 12 litros de mistura, dos quais 9 litros são vinho, isto 9 3 = é, 12 4 da mistura. Vamos retirar x litros do 1º barril e (14 – x) litros do 2º barril, para 2 3 x + (14 − x ) = 7 4 compor 7 litros de vinho (e de água), então: 5 . Resolvendo essa equação, encontramos x = 10, isto é, serão retirados 10 litros do 1º barril e 4 litros do 2º barril. Mais uma malícia da prova na apresentação das opções de resposta: é comum ver-se, em questões de concurso nas quais vigore a expressão
“respectivamente”, a presença de respostas casadas, isto é, em que apenas se trocam de posição os números desejados. De uma maneira geral, isso acaba criando nos candidatos um “senso” de que, em havendo respostas casadas dentre as opções de uma questão (ocorre, nesta questão, com as opções “d” e “e”), uma delas pode ser a correta. Obviamente que não há nenhum fundamento nisto. Tanto não há que a resposta correta encontra-se na opção “b”. Nosso examinador simplesmente “pegou carona” no “senso” dos candidatos para induzi-los a marcarem uma resposta errada, caso não utilizassem outro tipo de artifício que não fossem os cálculos. Há uma questão de cálculo de área (de triângulo) que, para o candidato que gosta de memorizar fórmulas, talvez tenha ficado complicado resolver. Aqueles que pensaram em fórmula de Herão possivelmente tiveram muitas dificuldades. E ainda: os distraídos podem ter perdido a questão por não prestar a devida atenção ao ler o enunciado. Veja a questão, seguida de uma resolução. QUESTÃO: Os lados de um triângulos medem, em centímetros, 2 2 , 6 e 14 . Podemos afirmar que a área desse triângulo, em cm2, é igual a metade de:
a) 2 7
b) 4 2 c) 4 3 d) 2 3 e) 7 É uma questão bastante sui generis por diversos aspectos. Um deles, já comentado, é o fato de que resolver através da fórmula de Herão . p − b )( . p − c ) ), utilizando semiperímetro p, certamente não ( A = p.( p − a )( é uma boa atitude, porque os radicais não são semelhantes. A melhor alternativa passa por Síntese de Clairaut, que classifica um triângulo em retângulo, acutângulo ou obtusângulo, conforme o quadrado da medida do maior lado seja respectivamente igual a, menor do que ou maior do que a soma dos quadrados das medidas dos outros dois lados. Classificado como triângulo retângulo, a área é facilmente encontrada calculando-se o semiproduto das medidas dos catetos. Mesmo assim, ainda não acabaram os perigos, pois o examinador, maquiavelicamente, escreveu, no enunciado da questão, “... é igual a metade de:”. Isso tem uma importância sumária,
porque a área encontrada é igual a 2 3 e um candidato mais apressado, se não perceber a presença da “metade” no enunciado, põe tudo a perder no finalzinho, marcando a opção “d” como correta, quando na verdade é a opção “c”. Vejamos a resolução.
O maior lado é o de medida 14 , cujo quadrado é igual a 14. A soma dos quadrados das medidas dos outros dois lados é igual a 2
2
(2 2 ) + ( 6 )
= 8 + 6 = 14 . Como os resultados encontrados são iguais, pela Síntese de Clairaut, sabemos que o triângulo da questão é retângulo, de catetos 2 2 e
6 . A área de um triângulo retângulo pode ser encontrada
por meio do semiproduto dos catetos, então:
A=
2/ 2 × 6 = 12 = 2 3 2/ .
Este resultado é igual a metade de 4 3 e, portanto, a resposta correta à questão é a que se encontra na opção c. Finalmente, a última questão que eu gostaria de comentar dessa prova brinca com um teorema que trata de restos de divisões. Esse teorema é típico de questões de outras escolas militares e a EsSA, nesse mais recente concurso, também decidiu abordá-lo em seu exame. QUESTÃO: Dividindo-se o número “x” por 5, obtém-se resto 2. Dividindo-se o número “y” por 5, obtém-se resto 4. O menor número inteiro, não negativo, que se deve somar a x5 . y5 para se obter um múltiplo de 5 é: a) 2 b) 0 c) 1 d) 4 e) 3 Nesta questão, conhecer o teorema que está por trás ajuda bastante, mas, mesmo aquele candidato “perdido” pode, com um pouco de criatividade, encontrar a resposta certa (deixe-se bem claro aqui que encontrar a resposta certa não corresponde necessariamente a resolver a questão). Passemos então à resolução.
Comecemos com o teorema: O resto da divisão de um produto por um certo número é o mesmo que o da divisão do produto dos restos que se obtêm quando se divide cada fator por esse número. Utilizando esse teorema na resolução dessa questão (que trata de potências de expoentes naturais, que são, na verdade, um produto de fatores iguais), lembrando que os restos das divisões de x e y por 5 são
x.x.x.x.x. y. y. y. y. y 5
2 45 respectivamente 2 e 4, ficamos com: , isto é, o resto 5 5 procurado pela questão é igual ao resto da divisão de 2 . 4 = 32 × 1 024 = 32 788 por 5. Esse resto é igual a 3. Somando 2 (ficamos com 32 788 + 2 = 32790), encontramos um número divisível por 5.
Deve-se, portanto, somar 2 ao produto. É claro que eu sei que você quer saber que tipo de criatividade o candidato “perdido” poderia ter utilizado para resolver essa questão, caso não conhecesse o teorema. O teorema fala em “resto da divisão de um produto por um certo número é o mesmo...”, mas, obviamente, não fixa quem é o produto (porque cada questão tratará do “seu” produto em particular) muito menos quem é o certo número. O candidato perdido, mas espertinho, “elege” dois números quaisquer cujos restos das divisões por cinco sejam iguais a 2 e 4 respectivamente. Isto funciona porque, se o teorema é verdadeiro para restos quaisquer, obviamente, é verdadeiro também para restos particulares. Os melhores conhecidos são eles próprios (2 e 4). A partir daí, calcula o valor da potência mencionada na questão, divide por 5 e observa o resto. Somando 2 ao resto (para isso, basta que se some 2 ao número), nosso candidato espertinho obtém um número conforme a questão deseja.
São exames como este que nos mostram que, para fazer uma prova elegante de Matemática, não é necessário que se trate de assuntos de maior sofisticação; é possível fazê-lo com assuntos do ensino fundamental. Também mostram que é preciso ter discernimento para perceber a diferença entre correto e útil (como no caso da questão do radical de Herão). Por último, são truques conforme o que nosso fictício candidato espertinho utilizaria na última questão comentada que nos mostram que técnica colabora (e muito), mas compreensão e utilização inteligente do conhecimento matemático que se possui ainda não estão deixados para segundo plano. CÉSAR RIBEIRO