À sombra dos Mosteiros Tibetanos

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JEAN MARQUÈS-RIVIÈRE

À SOMBRA DOS MOSTEIROS TIBETANOS

(LIVRO CITADO NO VERDADEIRO CAMINHO DA INICIAÇÃO)

Prefácio de Maurice Magre



ÍNDICE Dedicatória ........................................................................... 05 Prefácio ................................................................................. 07 Introdução ............................................................................ 11 Capítulo I - Rumo ao misterioso Tibete ............................... 15 Capítulo II - Na Casa de Oração ............................................ 19 Capítulo III - Diante dos Deuses ........................................... 27 Capítulo IV - A Gruta do Buda que fala ................................ 33 Capítulo V - A encarnação do Deus Vivo ............................. 39 Capítulo VI - Na direção de Lhassa ...................................... 43 Capítulo VII - O Oráculo sagrado de Lhassa ......................... 47 Capítulo VIII - Em Lhassa: a cidade desconhecida .............. 53 Capítulo IX - O Mestre do Trovão ......................................... 57 Capítulo X - Os mistérios da morte ...................................... 63 Capítulo XI - No Santuário do Deus Vivo ............................. 69 Capítulo XII - A decisão do Potala ........................................ 75 Capítulo XIII - Na cidade dos Deuses .................................... 77 Capítulo XIV - Evocação do Dragão ..................................... 81 Capítulo XV - O enviado do Mestre da Terra ....................... 87 Capítulo XVI - Lendas e mistérios do Tibete ....................... 93 Capítulo XVII- A última etapa ............................................. 97 Capítulo XVIII - O Templo secreto do Himalaia .................. 103 Capítulo XIX - As palavras do sábio do Himalaia ................ 107 Capítulo XX - A negra solidão .............................................. 111 Capítulo XXI - A Eterna paz .................................................. 115 Capítulo XXII - O misterioso reino da vida .......................... 119 Capítulo XXIII - A luz que sobe ............................................. 123



“Todos os méritos que tive pela meditação e pela ardente devoção “Eu vos dedico, Ó meu Guru; “Possa esta dedicação ser agradável “E possa eu, enfim, atingir a Beatitude...” MILAREPA, o “Jetsun-Kahbourn”



PREFÁCIO Quando lemos as narrações dos viajantes, vemos que eles encontraram algumas vezes, nos países que passaram, um habitante que não se pareceu a nenhum outro e do qual o caráter e os gostos assemelhavam-se aos Europeus. É um Mouro da África que deseja possuir um leito no meio de uma esteira, um Turco que aspira possuir uma única esposa, um natural das Ilhas Fidji que adota, com alegria, o Cristianismo desde as primeiras palavras de um missionário. Se, igual a esses viajantes, um Lama do Tibete viesse, há alguns anos atrás, ensinar sua religião aos bárbaros do Ocidente, ele ficaria espantado de encontrar, na criança que era então Jean M. Rivière, uma espantosa facilidade para assimilar rapidamente as hierarquias das divindades tibetanas, penetrar o mistério da encarnação dos Bodhisatwas. Pois, existem por toda parte, tipos humanos que são estranhos entre sua própria raça. Assim é Jean M. Rivière. Ele nasceu tibetano a despeito das leis da hereditariedade e de uma sucessão de parentes franceses. Nenhum lama veio instruí-lo em sua infância. Ele encontrou sozinho os habitantes, as crenças, a sabedoria da pátria onde sua alma verdadeira nasceu. Após alguns anos descobrimos a Índia e a China. Novos Marcos Polos desembarcam sem cessar em Marselha e em Londres, sem esquecer a capa cosida com pedras preciosas. Os sonhos dos ideólogos remontaram o Yang-tsé-Kiang (ou Rio Azul, rio da China e um dos maiores do mundo com 4.930km) e foram colocados junto à nascente do Ganges. Estudamos a filosofia do grande e do pequeno veículo e aquela de Shankaracharya (mestre da filosofia Vedanta), mas por mais numerosos que sejam os relatórios das missões, por mais alimentadas que sejam as obras publicadas só muito fracamente 07


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filtra através deles a pura luz do Oriente. O estudo penetra o texto, mas não o espírito. Damos mais importância à língua que ao pensamento. Cada qual se satisfaz em interpretar diferentemente uma filosofia que se dá, pela multiplicidade de suas nuances a interpretações variadas, e cada um leva obstinadamente esta filosofia ao estreito molde do pensamento ocidental. Porquanto, ninguém se atira sobre ela com amor, nem se identifica com ela. O oriente que mostram aos nossos olhos é um Oriente repintado exteriormente com cores ocidentais, travestido interiormente com um pensamento cristão. É um Oriente secretamente odiado. Não ousariam abertamente destruir os monumentos. Não ousariam como fizeram os ingleses em 1860, queimar no Palácio de Verão de Pequim, a maior e a mais antiga biblioteca do Universo, mas traem o pensamento, rebaixam voluntariamente o ideal. O livro de Jean M. Rivière, este estudo visionário dos mosteiros do Tibete, de seus ascetas e de seus deuses, é um livro escrito com amor. Por causa desse amor o autor atinge a verdade profunda do assunto que ele trata. Pela primeira vez entramos, graças à magia da evocação, nos asilos inviolados do Budismo e ali descobrimos o pensamento secreto. Ninguém na França penetrou tão longe como Jean M. Rivière no conhecimento da religião tibetana, na vida das lamaserias silenciosas que estendem seus tetos planos e suas muralhas cinzas às quatro portas voltadas no sentido dos pontos cardiais sobre as encostas do Himalaia ou as planícies do Bod-Youl. Ele aprendeu as línguas tibetanas para se iniciar nessa literatura religiosa, de uma prodigiosa riqueza, e da qual conhecemos apenas alguns pobres fragmentos. Ele descreve os lugares e os homens antes de decifrar os textos e de nos revelar seus segredos. Sua descrição é também evocatória como a de um vidente. Os Mosteiros do Tibete! Como eles estão longe de nós, desconhecidos, misteriosos! No centro da Ásia é uma nação eremita que raros viajantes visitaram e da qual disseram coisas tão maravilhosas que geralmente nos recusamos a crer. Pela porta de Djarjeling, onde através dos montes Kouen-Loun (cadeias de montanhas da Ásia, entre o Tibete e o Turquistão), todos os que atravessaram a terra proibida, quando não foram, assassinados 08


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pelos bandos errantes que a guardam, fizeram a narrativa de sua viagem coberta com um véu de mistério, o mistério do que toca o divino. Todo mundo conhece a descrição feita pelo padre Huc da árvore da lamaseria de Komboum que brota com caracteres perpetuamente renovados sobre sua casca. Ouvimos falar de Nicolas Notovitch encontrando em Ladak a cela do eremita Issa (ou Isa), que teria sido Jesus. É no Tibete que vivem, dizem, os sábios que têm o poder de prolongar a duração da vida humana, que são os guardiões do antigo conhecimento perdido, e que possuem nos seus arquivos a história da Atlântida e da Lemúria e, também, a história da humanidade futura da qual eles têm a visão por clarividência. É no Tibete que está a misteriosa cidade de Shamballah, a cidade dos sábios, é no Tibete que está o Rei do Mundo. “Lendas e invenções de poetas!” dizem os Ocidentais que não crêem senão na evidência imediata e são incapazes de juntar a poesia à sua vida cotidiana. “É lamentável para a leitura desta história, que o espírito de formação ocidental esteja pronto a, declarar absurdo o que não compreende e a imputar como fábula tudo o que não está de acordo com sua própria credulidade”. Esta frase da Introdução à vida de Milarepa, do Sr. Jacques Bacot, poderia ser colocada no cabeçalho deste livro. E, para lê-lo com proveito, é preciso se libertar da sede de verdade exata, de provas materiais, que é próprio de nossa raça e considerar como possível esta comunicação do homem com a essência divina do mundo que o Oriente chegou a conhecer após milenares experiências espirituais. É preciso reencontrar o puro estado d'alma de quem a escreveu, penetrar-se da sabedoria búdica que ensina que tudo é mudança de forma e perpétua ilusão e que a lei essencial do homem consiste em se elevar do plano material que é o erro, em direção aos planos espirituais que são a única realidade. O leitor transporá então com o mesmo recolhimento piedoso de Jean M. Rivière, a colina arborizada nos flancos, na qual está construída a casa de Oração. Ele lerá com a mesma admiração as sutras do Kangyur, seguirá todos os caminhos da meditação que preparam para a iluminação e, após ter se aproximado da presença 09


Prefácio

na gruta sagrada, ser elevado acima das pueris fantasmagorias do bem e do mal, ele descobrirá, enfim, o segredo derradeiro, aquele que, não deve ser revelado, pois, que cada um deve, encontrar sua revelação no fundo de si próprio. Maurice Magre

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INTRODUÇÃO Há algum tempo atrás, um Hindu, de passagem a Paris, me enviou documentos e uma carta. Esta me era endereçada por um de meus amigos que partiu para as Índias há vários anos. Eu o havia perdido de vista há bastante tempo e li, estupefato, suas estranhas aventuras; ele me pedia para publicá-las. Em sua carta me pedia para regularizar alguns negócios particulares, pois não voltaria mais para a Europa. Seu caráter místico e aventureiro sempre me impressionou. Versado desde sua juventude em áridas especulações filosóficas, percorreu tudo o que a metafísica do Ocidente podia lhe oferecer. Não encontrou nenhuma resposta que o satisfizesse e então se voltou para o Oriente e suas tradicionais informações. Certos encontros de Orientais em Paris e uma ativa correspondência em Tibetano com os mosteiros do Nepal e de Sikim, o haviam feito pressentir as regiões aonde o destino um dia o conduziria. Enfim, ele resolveu deixar tudo e partir para as Índias e juntar-se àqueles que já o haviam parcialmente iniciado. Certas passagens de sua carta mostrarão melhor as preocupações intelectuais e espirituais de meu amigo: “... É preciso ter envelhecido na Ásia para compreender e penetrar a alma dessas raças. Há uma tal barreira entre o Oriente e o Ocidente! Que incompreensão, que ignorância, que desconhecimento entre um e outro! Tudo o que aprendi, li, estudei antes de minha partida para a Ásia, antes da grande experiência que persigo, tudo me foi inútil...” “... Os cérebros são da mesma massa cinzenta, mas o mecanismo cerebral é totalmente diferente. Há no Ocidente gestos, associações de idéias, princípios morais, costumes, que são desconhecidos no Oriente; ora, é isto que criou a 11


Introdução

barreira entre as raças do Oeste e do Leste. Da Ásia vocês só conhecem gestos incompreensíveis e os deturpam; vocês escreveram páginas esplêndidas dos templos e mosteiros asiáticos; seus oficiais os etiquetaram segundo suas manias e suas rinhas, vírgula por vírgula. A Arte asiática? Nos seus museus e nos seus livros, tornaram- na parecida a essas plantas dos trópicos, trazidas de explorações e que conservam nas vitrines, em redomas de álcool...” “Parti em peregrinação para o Leste, estranho peregrino, pois não ia visitar nenhum deus, nem adorar nenhuma relíquia. Tinha sede de Certeza e de Verdade. E foi preciso esquecer tudo, voltar a ser criança, a fim de aprender e, sobretudo, de compreender.” “Minha probidade filosófica impedia-me de ser matreiro com as palavras. Inclinei-me então, diante dos fatos; foi preciso comparar minha sabedoria universitária àquela dos Mestres do Oriente foi um fiasco, pois eu não sabia nada, nada, nada... Eu te juro, meu Caro, tua ciência filosófica e, por conseguinte, tua solução do problema da vida, é tudo barbárie. Não me fale dos movimentos modernos de tua filosofia, de suas “novidades” que te parecem profundas, porque eu lerei para você textos antigos de perto de três mil anos e você verá... “Ora, é aí que começa a barreira; você não veria, você não poderia ver, você é cego. A Ciência da Vida não pode ser ensinada a todo mundo, pois o problema sendo formidável e ocultando um tremendo poder, deve ser esotérico. Muito sabiamente, os Mestres do pensamento asiático pediram aos audaciosos inquisidores da Verdade, uma preparação longa, fatigante, monótona; era preciso provar sua paciência, pois os amantes da Deusa devem ser puros e fiéis. Eles colocaram uma chave sobre os livros da Ciência; e você deve antes trabalhar para descobrir a Chave... Então, se você resistiu ao desânimo, ao tédio, à aridez dos textos, aos obstáculos aos seus passos vindo de sua própria natureza, você será iluminado no verdadeiro sentido da palavra...” “Você terá, no documento anexo, uma tentativa de descrição de 12


Introdução

minha experiência mística na Ásia; ela é sensivelmente diferente de muitas descrições de fenômenos parecidos na Europa. Tendo me tornado asiático de corpo e espírito, sei que há coisas impossíveis de transcrever em francês. Seria preciso o caniço e o pergaminho e também esta língua tibetana com seus ritmos, seus cantos, suas preces... Vocês se fixam nas vírgulas e nas hipóteses da origem dos alfabetos asiáticos; como querem me compreender?... “Te digo adeus, meu Caro, pois não poderei tão cedo te escrever; romperei os últimos liames que me ligam ainda à nossa velha Europa para me enterrar nesta ainda mais velha Ásia, geradora de toda sabedoria e Mãe dos apaziguamentos e consolações. Trabalhe e busque, Amigo... Peço aos deuses que te guiem em direção à Luz onde nos veremos um dia, nos braços da santa Deusa ...” Esta foi sua última mensagem. O mistério da Ásia o tomou em sua sombra e ele desapareceu, definitivamente, mesmo para os que o amavam... Estranho destino esse deste homem do Ocidente, da raça dos nobres e dos sábios, que se fechou voluntariamente nos sombrios mosteiros, em meio às neves do Tibete, para atingir a pura Iluminação e a Paz da Alma!

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Capítulo I RUMO AO MISTERIOSO TIBETE Duas horas da manhã, em pleno mar. Acotovelado ao filerete, eu sonho... Os últimos raios de lua serpenteiam as cristas móveis das ondas, como um longo véu bordado e formam uma fina linha branca, vacilante, no meio dos discretos reflexos prateados. Na penumbra ergue-se como um morcego gigante a grande vela de um barco de pesca... Um cargueiro, farol vermelho piscando como um olho desliza sem barulho junto ao navio e subitamente ulula longamente na noite... Dominante, o lamento do mar, monótono, sonolento, como o respirar de um animal em repouso. Não conheço nada mais triste que a noite em pleno mar, nada mais nostálgico e desanimador. Sinto uma grande calma, uma grande paz desce sobre mim agora. Tinha há pouco, no momento da partida, tanta agonia em nossa volta, que eu estava perturbado. Vi nas pobres fisionomias tanto arrependimento, esperança, dilaceração, que tudo isso me comoveu demais. Ninguém me havia acompanhado na partida, pois minha separação já se havia consumado bem antes desse dia. Essa dilaceração não havia acontecido lá, em algumas horas, no momento em que a sirene ulula ao partir, com o sobressalto nervoso da separação imediata; não para mim tudo isso estava longe, mais profundo, mais irremediável também... Ah, minha família!... que louco fui! Que estúpida paixão me impelia a abandonar meus negócios, meu “futuro”, minha vida tranquila no meio de suas afeições tão docemente egoístas. Verdadeiramente, aquilo era incompreensível e se lembrarão deste velho que, no limiar de sua vida partiu para a China, abandonando tudo, e do qual a lembrança era uma vergonha na família... Ouço extinguirem-se os risos secos, cheios de compaixão, 15


Rumo ao misterioso Tibete

estes não são para mim mais do que ruídos, ruídos que desaparecem no ritmo profundo do mar e que já se apagam da minha memória... O espetáculo é magnífico; tão irreal nas suas cores estranhas que me sinto revolvido de uma emoção religiosa; ouço em mim os cantos de prece que se elevam de minha lembrança... e me lembro... revejo meu Mestre, o Gelukpa (ortografia tibetana: dgéslong) kyi-lha-pa, que conheci em Paris, banalmente, em um salão e que me guiou na minha nova estrada. Antes dele, tudo em mim era dúvida, incerteza, desesperança. Tinha tentado nossas filosofias, nossos sistemas, nossas seitas religiosas e, mais e mais sentia a grande ignorância e a total nulidade. Nosso Ocidente não sabe mais; não conhece mais. Acompanhei seus melhores pioneiros científicos; deram-me títulos, diplomas, mas saí de suas escolas tão ignorante da Vida quanto uma criança. Aprendi a dissecar textos, a classificar pergaminhos, mas a alma vivente sob os signos me foi mascarada e ocultada. Penetrei os círculos fechados, os meios esotéricos junto aos pontífices do Ocultismo e apenas ouvi frases ocas e vazias. Às vezes, mesmo muito fraternalmente, eles se batiam entre si. Acreditando encontrar iniciadores encontrei charlatães... Outros, é verdade, se disseram budistas, iogues; eu conhecia muito bem essas coisas para julgar essa gente, e percebia que eles haviam aprendido palavras... Não acredito que a Estrela iniciática ilumine o céu do Ocidente; há muitas nuvens cor de cinza e de sangue... Então, tu me apareceste, Venerável. O ardente apelo de minha alma teria atingido teu coração? Não sei. Mas me acalmei, me transformei, por tua influência. Lentamente, meu doloroso coração se acalmou; pressenti minhas possibilidades e comecei a amar a vida. Sob tua direção os livros do Oriente fizeram brotar uma luz viva que eu, até esses benditos dias, ignorava. Ouvi as estâncias inesquecíveis dos textos sagrados e, diante dos Deuses vitoriosos, rezei, cantei, chorei... Os primeiros perigos da iniciação me foram evitados graças à tua benevolente proteção e ao teu poder mágico. Os pavores dos 16


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monstros da porta de Ouro, que os Deuses guardam zelosamente, foram afastados e eu pude, contigo, passar os círculos da segunda morte e do segundo nascimento. Meu corpo foi purificado no crisol com um fogo de tal magnitude que aprendi a ver todas as coisas em seu verdadeiro lugar, de acordo com a mais verídica tradição. A magia da grande ilusão cessou diante dos meus olhos e, dia após dia, fui me desligando das coisas deste mundo, poeiras entre as poeiras. Um dia, parece, teu papel de guia terminou. Se eu quisesse continuar o trabalho empreendido, era preciso partir. Outros mestres eram-me necessários, em um outro meio... Já não havia mais nada em mim além da sede da Paz e da Libertação. As pessoas e as coisas bem que tentaram me reter com seu charme melancólico e a doçura do longo hábito. Disse adeus a tudo; tornei-me um errante, um pobre, um marginal. Mas possuo em mim uma Chama que me queima, um Fogo que me devora, uma Fé que me sustenta. Sinto a benção mística de Gelukpa que me protege, que me acompanha e que lá, nos Mosteiros do Tibete aonde vou, será retomada segundo o ritual lamaico e amplificada até me cobrir então mais completamente, como uma sombra protetora e benfazeja...

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Capítulo II NA CASA DE ORAÇÃO A casa de Oração está maravilhosamente bem situada... Construída a meia altura, sobre uma colina arborizada, semelhante a todas que nos rodeiam e cujo conjunto chama-se Chumi-jadsa. A floresta estende-se por todos os lados, a perder de vista, de início penetrável depois, bem longe, selvagem e densa: é o matagal com seus inumeráveis macacos, suas feras e serpentes. O mosteiro está construído longe da cidade, quase no final das árvores, que só retomam mais ao longe, se estendendo em massa verde e sombria até aos pés dos maciços do Himalaia. Os picos nos cercam, linhas brancas sobre o horizonte azul, temíveis guardiães das terras proibidas. E minha adaptação à nova vida foi, graças à benignidade do clima, muito fácil e doce. Recordarei-me sempre da acolhida do Umzé (o Superior) do Mosteiro de Chumi-Jadsa e nossa primeira entrevista, na grande sala de recepção, na tarde da minha chegada. Tudo era novo e estranho à minha volta. Sentia-me em um outro meio, entre uma outra raça... As vigas e o assoalho da grande sala estavam inteiramente pintados em amarelo vivo. O teto, defumado e negro, brilhava, entretanto, em lugares na sombra, como se lâminas de ouro estivessem fixadas sobre a madeira. As paredes, também amarelas, sumiam quase que inteiramente sob grandes pinturas, representando cenas da vida de Buda, numa lembrança bem parecida àquela dos Primitivos de nossa Idade Média. Numerosas bandeiras pendiam tendo a prece do Manu bordada sobre a rica seda amarela. 19


Na casa de oração

Em volta da sala as estátuas dos abades já falecidos do mosteiro estavam colocadas sobre pequenas mesas e, diante de cada uma delas, as lamparinas queimavam, homenagem perpétua à santidade do Personagem. No crepúsculo invadindo a peça, os clarões das luzes vacilantes iluminavam as santas faces douradas; cores e sombras fantásticas e móveis, animando com estranha vida as estátuas imóveis. De repente, os dois lamas que me haviam acompanhado abaixaram-se até o chão; diante de nós estava o Umzé da Casa de Oração, o Mestre ao qual o Gelukpa de Paris me havia confiado. Ele é Lharamba (doutor em Teologia) e frequentou os cursos de Ciências Ocultas do mosteiro especial de Morou; por isso foi nomeado Tcholtchonq, doutor em Alta Magia... Raramente encontrei na Europa uma inteligência tão notável. Sua memória é prodigiosa e seu poder de penetração do homem que chega diante dele, é mágico. É um velho grande e magro, o rosto inteiramente raspado. Estava vestido com o tradicional costume do coro, pois havia saído do Ofício da tarde; o longo xale amarelo, caído sobre a roupa amarela e o barrete do coro também amarelo, de um formato tão singular, assemelhando-se aos antigos capacetes gregos. Seus olhos, penetrando profundamente, fixaram-se sobre mim e eu senti como que uma lâmina de aço me penetrar, cavar minha cabeça, meu coração, minha alma; estava absolutamente nu diante daquele olhar que me dissecava, fibra por fibra... Ele já me conhecia por cartas trocadas com o Gelukpa de Paris. Tive a impressão de já tê-lo visto anteriormente, Onde? Quando? Minha memória não me respondia. Mas, na sua presença, senti qualquer coisa misteriosa entre nós, como uma antiga lembrança, um encontro já realizado... Não pude definir a fina fisionomia mística e bronzeada que me olhava, sorrindo docemente... Conversamos longa mente sobre meus projetos, minhas viagens, minha vida na Europa; ele leu atentamente a longa missiva do Gelukpa. Em seguida, retirou-se silenciosamente por detrás de uma 20


Na casa de oração

pintura amarela que pendia ao fundo da sala e sobre a qual a sílaba mística tibetana estava bordada em enorme caractere; pareceume ouvir um gongo ressoar ao longe, atrás das inumeráveis bandeiras do templo sombrio e deserto... E o silêncio recai cortado somente pelo encoscorar das lamparinas e os estalidos das vigas secas, na velha construção de pedra... Estranho destino o meu, no limiar do Tibete e, talvez, da morte, às vésperas de abandonar minha personalidade européia para não ser mais do que um monge errante e solitário... Após meia hora ele voltou mais pálido, sob sua máscara bronzeada. Soube mais tarde que ele tinha ido pedir aos Deuses de sancionar minha entrada no mosteiro e que a resposta havia sido favorável. Então, solenemente, ele refez sobre mim o grande gesto místico segundo os Rituais Tântricos e seus olhos fixaram-me sob suas pálpebras apertadas, como para ver ainda melhor o novo discípulo que os Deuses lhe deram e ler o livro obscuro de minha alma... A iniciação começa: comunhão viva do meu espírito com o do Venerável Mestre. De manhã, ao nascer do sol, após os rituais de adoração e o ofício em honra dos Santos Discípulos, me junto ao Umzé, no seu quarto e ele comenta comigo alguns versículos do livro sagrado. Em seguida ele me dá instruções muito precisas sobre a meditação e as posturas do corpo. Depois, me fala dos Libertados, dos Budas, dos Sábios que ganharam a vitória sobre a ignorância e o aprisionamento das coisas e que triunfam bem aventurados e sempre compadecidos pela humanidade da qual eles são os irmãos mais velhos... E eu medito sob as árvores da floresta próxima. A minha volta está a vida tropical; uma seiva sempre nova brota dos escombros e dos humos das formas desaparecidas; em um magnífico hino, tudo canta, tudo sofre, tudo morre. As correntes da vida parecem animar essas plantas, essas flores, esses cipós gigantes que abraçam as árvores centenárias, essa multidão de ruídos que caracteriza o que chamamos de 21


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matagal, conjunto de gritos de animais, de rolamentos de pedras, do fervilhar dos insetos gigantes. Experiências preciosas essas cotidianas comunhões com a floresta, com seus seres e suas coisas... À tarde, após o ofício religioso no santuário dos deuses, presto contas a meu Mestre de meu dia, minhas meditações, e ouço os tradicionais comentários que resumem e sintetizam a antiga sabedoria oculta das idades. Como traduzir a riqueza dessa vida mística, a transformação profunda que sinto, dia após dia! Não sou mais um ocidental; os costumes, os pensamentos de lá me parecem ridículos e incompreensíveis; e me torno impassível diante de todas as coisas, como os asiáticos que me rodeiam... Tomo consciência também de minhas forças ocultas e exploro meu corpo como uma região desconhecida, onde as possibilidades maravilham-me a cada dia. Segundo as instruções dos livros sagrados medito, sentado na postura de “lótus” acocorado sobre minhas pernas dobradas, o busto reto, e respiro segundo um ritmo especial, pronunciando as sílabas sagradas. Sinto, então, o fogo que se revela em mim. A Serpente da Iniciação, Kundalini, desenrola seus tremendos anéis e esta formidável potência desperta, gênese oculta de toda magia e princípio de toda Iniciação. Seu calor invade lentamente todo meu corpo imóvel, e o queima como uma chama interior e purificadora. Outro dia, meditando perto de um pequeno arbusto de flores brancas, soprei uma flor que, por acaso, estava diante de mim... eu a vi encarquilhar-se bruscamente, cinza e ressecada como uma coisa queimada e compreendi os ascetas que, lá no alto, meditam nus, nas tempestades e nas neves do inverno... Com esses exercícios de purificação física, meu Lama me dá textos sagrados para meditar para abrandar e reformar meu mental. São extraídos do Kangyur, o livro santo tibetano. É uma enorme coleção, com 108 volumes de um milhar de páginas cada um. As páginas estão no alto e atingem um metro. 22


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Duas bandejas de madeira esculpida as retêm e formam a cobertura do volume. Em volta da sala de estudos, nas paredes, estão cavados nichos para receber os enormes livros. O estudo desses livros sagrados demanda quase uma vida humana e, sem guia, como é costume no Ocidente para essas coisas do Oriente, é impossível compreendê-los. Muito judiciosamente, meu Mestre escolhe certas passagens correspondentes ao meu estágio no estudo, e eu leio algumas sûtras dessa extraordinária coleção. Nesse trabalho, meu pensamento se transforma. Estou acostumado a analisar, opondo-me sempre ao objeto, criando a dualidade absoluta entre ele e eu: característica, aliás, do espírito ocidental. Esta conquista, esmaga, disseca, destrói e, diante dos pedaços espalhados, diante dos membros palpitantes, procura, então somente, sua razão de ser, seu mecanismo último. O espírito oriental, ele, contempla. Ele sempre sintetiza. Para compreender um objeto, une-se, identifica-se com ele. Há no Oriente um grande respeito às formas, mesmo as mais humildes. Atrás de cada ser animado há alguma coisa. Com sua sensibilidade natural a filosofia oriental vê essa presença e, muito respeitosamente, prefere glorificá-la em vez de ignorá-la. Sinto meu espírito pouco a pouco adquirir esta nova atitude. Teria sorrido, antigamente, de ouvir falar dos monges jainas que vão, com uma pequena vassoura de lã, o chamar, na mão para afastar todo ser vivente diante de seus passos. Compreendo agora a razão profunda dessa bondade humana e inclino-me diante deles quando essas pessoas santas passam por nós em suas marchas errantes. Esses exercícios de meditação habituam-me à vida interior. O tibetano, como o asiático em geral, tem uma profunda indiferença com tudo o que toca a vida material propriamente dita. Todas suas energias tendem em direção aos fins espirituais e, a seu exemplo, aprendi penetrar no silencioso santuário de meu 23


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coração, que ignorava até então. É um lugar onde dificilmente entramos, é necessário passar por muitas provas para acessá-lo. Para mim é muito difícil falar dessas experiências interiores e tão pessoais. Cheguei rápido à seguinte conclusão: a barreira entre o que chamamos de corpo e o espírito desaparece, quando nos submetemos a uma certa disciplina corporal e mental; os orientais têm, a esse respeito, as instruções e os conselhos de uma multidão de Sábios e de Iogues que legaram uma preciosa ciência a esses que os seguem e os querem imitar. Trata-se de experiências renováveis indefinidamente e que todo ser humano pode refazer quando desejar; é preciso, evidentemente, submeter-se às condições exigidas e diante das quais muitos ocidentais recuariam. São necessários longos e penosos exercícios de respiração e de concentração sob a direção de um lama autorizado. Há posturas de corpo, palavras (dzung) que têm uma ação estranhamente possante. Sinto então, literalmente, meu corpo vibrar regularmente como uma corda de violino sob o arco; nesses estados superiores, onde o espírito é extraordinariamente lúcido, o universo se transforma e as noções de tempo e espaço desaparecem em uma maior Unidade que parece reaparecer de uma profundeza oculta. São, então, as experiências místicas dos Sábios do Oriente; é o imenso Lótus do mundo, com dezesseis pétalas, cujo centro é um radiante feixe de fogo, que queima e devora os universos segundo os ritmos eternos da Lei... Esses universos que são grãos de poeira acorrentados a outros grãos de poeira, instantes cristalizados de uma Eternidade e que retomarão amanhã de onde vieram ontem, há alguns milhares de séculos, ao seio do Inefável... E quando volto a descer lentamente em direção ao mosteiro, avisto o horizonte avermelhado pelo sol poente e a riqueza dos tons e das cores surpreendentes avermelhando os maciços nevados do Oeste, na direção do Everest, a montanha proibida... De tempos em tempos, na Casa de Oração, param veneráveis visitantes. 24


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São monges muito velhos e santos que, vindos de suas celas, dirigem-se ao vale. Os lamas do mosteiro os interrogam e eis então as longas récitas místicas da vida do sábio, transpondo vivo, as portas da morte e comandando aos Deuses e aos Demônios, esses demônios que ocupam um lugar muito importante na vida dos monges tibetanos. Seres de ciclos anteriores, eles são os autores de prodígios e maravilhas que acompanham a luta do Sábio no caminho da libertação; fenômenos que os lamas menosprezam, pois, eles são da atribuição de Iogue e da ilusão universal... Aprendo, assim, coisas extraordinárias, em comparação das quais os mais estranhos milagres do Ocidente, em verdade, são bem pálidos. E, além disso, sempre a calma sobre-humana desses seres, a paz profunda que reina em torno deles. Toda sensibilidade de coração, de emoção sentimental cessa para sempre. Assim como a mística ocidental é acompanhada de manifestações de amor, sem nenhuma censura às santas e santos da cristandade, do mesmo modo aqui a razão calma domina todas as manifestações místicas. A piedade oriental é uma piedade metafísica, talvez estranha no seu aspecto aparente, mas muito mais profunda e mais fecunda que a sensibilidade doentia que frequentemente se disfarça, sob esse nome, no Ocidente!... Se de tempos em tempos um canto de amor eleva-se na calma solidão do mosteiro, é para com os Venerados Mestres, estes que nos precederam na vereda e que foram homens como nós, sofreram e choraram, como nós, nos eternos tormentos da roda do mundo; é para com o Iniciador, o Lama, o Perfeito sobre o qual toda afeição do Discípulo se volta. Ele é o Pai Espiritual, Aquele que dá a vida uma segunda vez. Por Ele o discípulo entende a voz do invisível e conversa com os deuses nos assombros dos templos; seu poder mágico é o melhor escudo contra os demônios e a palavra secreta do Lama, aquela que foi transmitida através das idades e se revela de boca a ouvido, é a arma mais formidável do iniciado. 25


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Cria-se uma comunhão íntima, secreta, uma filiação espiritual muito particular onde o Lama e o discípulo são um só, identificando-se, por assim dizer, um com o outro para formar um só ser neste mundo. Há um total abandono do discípulo ao Mestre, uma absoluta e inteira confiança recíproca, um dom mútuo, um misterioso sacrifício de um para com o outro em um plano sutil e todo espiritual... E, verdadeiramente, de que valem as afeições terrestres, todas as paixões, as lágrimas, os desesperos diante dessa divina e tão sublime união de almas, na mesma marcha para a luz, na mesma adoração, na mesma contemplação do Inefável?

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Capítulo III DIANTE DOS DEUSES Om! Namo Sarvah Tathâgata, Om! (Om, adoração a todos os Tathâgatas, Om!) Hoje é dia de festa em homenagem aos Deuses, a todos os Deuses protetores, e uma grande animação reina entre os monges do mosteiro. Os moinhos de prece giram com um surdo rangido de dentes, agitando suas sinetas. Os Solitários descem de seus retiros, da floresta ou da montanha, pois, é necessária a ajuda de todos e, sobretudo, a dos santos e veneráveis Lamas... Eles se colocam no coração do Templo, vestidos com os paramentos de cerimônia e esperam imóveis, olhos fechados, as mãos ritualmente colocadas sobre suas pernas cruzadas, sempre orando... Om! Namo Sarvah Tathâgata, Om! É a festa dos Deuses, de todos os Deuses protetores, aqueles que protegem ferozmente e aqueles que protegem com bondade. Eles são ainda de nosso universo, esses Deuses, ainda que não sendo mais de nosso ciclo; à nossa volta, inumeráveis, invisíveis, sempre, eles habitam, intervindo entre os humanos... Eles também estão no caminho rumo à redenção final , e é uma estranha comunhão de Santos que se opera hoje. Murmura-se algures a grande nova; fala-se com voz muito baixa da Grande Coisa: um Enviado do Tashi-Lama, do Santíssimo, do muito Venerado que está de passagem. Para a festa dos Deuses Protetores Ele dignou-se aceitar a câmara alta, a câmara sagrada; Ele preside, em nome do muito Venerável, e dará a benção pontifical, com o Dordjé, o primeiro instrumento sagrado para o ritual do Tibete. Interroguei para ter mais detalhes, mas fecharam os olhos e 27


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juntaram as mãos com quase terror diante de minha indiscreta pergunta. Perguntei a meu Mestre, Umzé, o sentido de tudo aquilo; ele sacudiu a cabeça sem nada dizer e eu compreendi que não era ainda a hora de saber. É, pois, entre o mistério que os ritos vão se desenrolar, entre o estranho que me cerca e me aperta... Om! Namo Sarvah Tathâgata, Om! No templo da Casa de Oração os monges em mantos amarelos chegam em fila, concentrados e silenciosos. Foram chamados pelo sino e os estrondos da enorme concha marinha. Os Lamas vêm de toda parte, das celas do Mosteiro, das tendas erguidas no pátio, e mesmo da mata próxima que acorda nas brumas da aurora... Eles jejuaram na véspera e os semblantes bronzeados estão mais enrugados que de costume, com algo de esgazeado e vacilante nos olhos. O Umzé colocou-me entre os noviços, um pouco à parte e, como todos eles, fui vestido com uma capa e a grande faixa amarela, a cabeça coberta pelo grande chapéu de cerimônia. Um novo rugido da concha, a dounghâ e, lentamente, o coro dos Lamas começa a cantar; ao longe, avermelhando as neves das longínquas montanhas, o sol se levanta. Essa música, verdadeiramente tibetana, é também de natureza totalmente religiosa. Seus efeitos são calculados; pode parecer semelhante àquela das igrejas cristãs, mas ela difere por uma ação diretamente mística e particularmente possante. Ao fim de alguns instantes desse ritmo obsedante, meu organismo, já afinado pela seguida preparação religiosa desde minha chegada ao mosteiro, sente uma espécie de entorpecimento e rapidamente torno-me lúcido, em meu corpo, de coisas espirituais, visões sobre-humanas e indescritíveis... Om! Namo Sarvah Tathâgata, Om! O ritmo continua, cantado sobre os instrumentos sagrados: as trombetas, os Kanglingh, feitos de tíbias e de fêmures humanos, tendo pertencido a santos Lamas; os tambores, os Damarus, compostos de dois crânios humanos seccionados, cume contra cume, dos quais as duas concavidades são forradas de pele huma28


Diante dos deuses

na. As vozes profundas dos Lamas, harmoniosas e variadas, destacam os versos sagrados. Ao fundo do templo, debaixo de cortinados e bandeiras pendentes, está o enviado do Tashi-Lama, ao lado do Umzé e dos altos dignitários do convento. No estado nervoso em que estou, um nevoeiro dourado irradia ao redor do centro e nos cobre a todos, como a bruma, na manhã, ao nascer do sol. Uma grande beatitude, uma paz mística reina sobre todas as faces voltadas na direção do estrado dos grandes Lamas, enquanto que os corpos seguem, por um balanço regular, a cadência dos cantos religiosos... A cerimônia preparatória termina e, no meio dos versos sagrados, o Pontífice se levanta e recita os Dzong, as fórmulas mágicas, tendo na sua mão direita o supremo instrumento sagrado, o formidável Dordjé. O incenso e o sândalo invadem a nave com suas emanações. Um odor pesado e teimoso, um “odor de China” se espalha, e o coro canta com as entonações que têm a prece e os soluços humanos. As mãos seguem ritualmente o ritmo segundo os mudras (posições dos dedos das mãos segundo regras muito precisas) e os sinetes individuais marcam os versículos dos salmos. Om! Om! O ritmo se precipita agora. Os Deuses certamente estão lá, em volta do circuito, atraídos pelas fórmulas mágicas proferidas pelo Umzé. Por uma estranha coincidência, o vento se levantou e uiva em volta do Templo fazendo oscilar, ao longo das paredes, as altas bandeiras amarelas e brancas. As grandes trombetas diante do Templo, os Rha-doungh, enormes tubos de cobre de mais de dois metros de comprimento, juntam seus formidáveis trovões ao ulular da tempestade. Tudo isso cria uma impressão de pavor e de horroroso mistério invadindo esse templo, suas paredes, suas bandeiras móveis, seus monges imóveis, esses pontífices que falam aos espíritos e invocam os demônios... As palavras definitivas, os vocábulos muito sagrados são 29


Diante dos deuses

pronunciados. A ligação se estabelece entre os Deuses e os homens; os cantos tornam-se mais doces, mais fluidos, mais sobrenaturais por assim dizer. Um grande frio me invade; contra minha vontade, tremo e me cubro com uma aba de minha capa. Deve se passar algo de muito misterioso lá, onde está o Enviado Sagrado, pois um véu amarelo foi estendido, ocultandonos totalmente os altos Lamas; luzes circulam, rapidamente, atrás do véu de seda. Os cantos sagrados continuam, em salmodia menor e muito doce... Sinto-me nervoso. Já dois ou três monges, com um grito rouco, são derrubados, rígidos, no chão. Êxtase divino ou crise nervosa? Não sei. A atmosfera está saturada de incenso, do perfume forte das flores que murcham e da manteiga que se consome nas lamparinas diante das estátuas... Sombras fantásticas parecem freqüentar esta sala onde murmuram agora os ruídos dos cantos e dos cobres tibetanos. Eles evocaram os deuses, os todo-poderosos Lamas e, dóceis, os Seres invisíveis, os bkah-dod, esses que executam, acorreram... Parece-me que os vejo em volta dos grupos de capas amarelas, esses monstros do astral que se comprazem no sangue, na podridão da carne e na agonia dos homens. Diante dos gládios flamejantes dos mágicos, eles tornam-se servidores dóceis e atendem às ordens secretas dos sacerdotes. Sim, vejo que se comprimem em volta do misterioso véu amarelo, onde certamente lhes é oferecido sangue e vida... E eles dançam, pois o ritmo mágico do coro é para eles, só para eles. Cores fantásticas os aureolam, esses Deuses de pesadelo. É a dança hierática (respeitante às coisas sagradas) e lenta dos monstros do Oriente, a mesma que repetem os monges em certas cerimônias ocultas e que foram conservadas pelos bailadeiros (dançarinos indianos) dos templos brâmanes... 30


Diante dos deuses

As pernas e os corpos se levantam lentamente, num tempo infinito como as ondas pesadas e possantes dos Oceanos. É o mesmo ritmo de Brahma criando os mundos, de Shiva dançando em lugares sombrios de incinerações sobre as margens do Ganges, de deusas cruéis pisando o peito do homem que morre e suspira subitamente sob a dança demoníaca. Sim, todos os deuses lá estão ávidos e desumanos. E saímos, nós, os noviços, lentamente, sobre a ponta dos pés e cobrindo a cabeça com o véu amarelo de nossa capa. Ao fundo, as luzes circulam sempre atrás do véu de ouro onde parece que gemidos de bestas se fazem ouvir. Permanecemos o dia todo nas celas, imóveis, vítimas do terror sem nome que paira nos limites sagrados, pois, grandes mistérios cumprem-se na sombra perfumada e proibida da sala de preces...

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Capítulo IV A GRUTA DO BUDA QUE FALA Pela primeira vez após minha chegada, devo deixar o mosteiro de Chumi-Jadsa. Um pequeno grupo de monges dirige-se a um antigo templo perto de Gantok, na direção norte, sobre as margens do Teesta, rio que serpenteia de norte a sul, vindo dos maciços espessos e nevados do Pawhunri e do Kangchen-juga. Há livros de preces para buscar na biblioteca desse templo, guardados por velhos veneráveis lamas. Perto do lugar estava uma gruta muito sagrada; ela ocultava uma antiga estátua do Buda, oferecida, parece, pelo Tashi-Lama, e vinda de Shamballah, o país legendário, das estepes e dos desertos glaciais, onde paira ainda a lembrança do Deus da Guerra, GengisKhan. Esse templo era conhecido pelos milagres que ali aconteciam. Meu Mestre me aconselha a seguir os monges para adorar a Presença que residia nessa gruta. Ele me confiou ao guia da caravana, um Lama que tinha viajado muito e que havia adquirido a reputação de santidade. Ele era muito sábio, o velho Lama. Quando caminhamos nas estreitas veredas que conduzem ao longo do Teesta à gruta sagrada, aprendi muitas coisas do sacerdote, muito pequeno em sua ampla capa amarela... Diante de nós o Kangchen-juga se eleva alto no céu, o cume coroado de branco. A vereda irrompe bruscamente no meio de magníficas florestas de carvalho e de altos fetos, com plantas estranhas, orquídeas caindo de ramos musgosos. Magníficas borboletas, como flores vivas, atravessam o caminho sinuoso, esvoaçando diante de nós. 33


A gruta do Buda que fala

A pique, ao lado do nosso caminho, num vale repleto de névoa, murmurava a torrente rápida e suja; a temperatura era sufocante e nossa marcha difícil. O monge me contava suas viagens, seus encontros, sua vida movimentada no imenso Tibete. Era para mim uma página desconhecida do Lamaísmo que me ajudava a compreender um pouco melhor esse estranho povo, certamente predestinado... - “Agora, diz ele, tristemente nos aproximamos do final. Nosso Venerável Mestre, o Dalai-Lama (O décimo terceiro), é o último da gloriosa sequência dos Budas vivos... A Pedra Negra foi roubada e, desde então, o Budismo se extingue lentamente. Os bárbaros de todos os lados nos rodeiam, nos invadem, apesar dos esforços dos nossos chefes. A espiritualidade de nosso povo, o mais religioso da terra, desaparece diante da crescente onda de costumes pagãos... Sim, em verdade nos aproximamos do fim... Será preciso que os Sábios ocultem-se novamente a fim de preservar a Ciência Santa de qualquer mancha ou de qualquer profanação. Será preciso que as profecias se realizem, todas as profecias; e as mais dolorosas e tristes terão sua vez... Falas daquela do Mestre dos Três Mundos?, perguntei bruscamente; pois esse nome me era conhecido, eu o havia obtido furtivamente em conversações entre Lamas. O velho sacerdote ficou pálido e me olhou: -“Mesmo o que deveria ser ocultado está revelado e isto indica bem que os tempos estão próximos... Você sabe que a Lei nos proíbe de nomear nosso Pai ou nosso Chefe. Como poderei falar Daquele que é o Lama dos Lamas, o Mestre entre os Mestres? Se você deve ver a Luz neste ciclo, conhecerá o que murmuramos baixinho, algum dia... "Saiba, em todo caso, que uma presença divina santificou a gruta aonde vamos. A imagem que ali é adorada é velha, muito velha... O Santo, Avalokitezvara o bem amado, ali reside. Esta estátua é talhada em um material que não é mais desta terra... e grandes coisas foram produzidas, antigamente... no tempo que chamamos agora de lendário e das encarnações divinas...” E assim o velho Lama falou durante nossa marcha à gruta do Buda. Desfilamos pelas magníficas florestas de pinhos torcidos e de 34


A gruta do Buda que fala

carvalhos; as eternas orquídeas de perfume acre erguiam-se bruscamente na penumbra do matagal e suas cores vivas eram como grossas manchas brancas, amarelas ou vermelhas nos cipós emaranhados onde sobrevoavam enormes borboletas... O templo estava situado em um local natural e selvagem que o realçava esplendidamente, como o são todos os templos que visitei, harmonizando-se inteiramente com a paisagem e intensificando assim a atmosfera religiosa do lugar... Era um antiquíssimo edifício, construído com enormes pedras, sem cimento, com um aspecto selvagem e misterioso. A floresta de pinhos que o cercava, a perder de vista, tornava o lugar sombrio e, sob essas árvores, parecidas com grandes serpentes petrificadas, reinava um profundo silêncio. Os rochedos, à flor da terra, eram vermelhos e negros; e aquilo me parecia um sítio primitivo e grandioso. Dirijo-me lentamente para a Gruta Sagrada, com o Lama, pois o sol se põe e é hora de adorações e de preces antes dos terrores da noite. Uma vez mais os cumes vermelhos e cinzas do Templo douram-se aos raios que os tocam num último chamejar, por cima da massa verde das árvores da mata. Caminhamos lentamente em direção à Gruta que prevejo também cinza e negra como o templo, sobre esta terra de uma época jamais esquecida... Uma clareira, uma descida suave sobre um espesso tapete de musgo e, ao lado da montanha, dominando o rio que murmura em baixo, entre as árvores do vale sombrio, a entrada da Gruta. É uma maravilha; lá estão placas de ouro, chumbadas sobre as pedras. Acima do pórtico artificial, uma estela gravada com sinais meio apagados; e isto torna estranha esta pedra meio antiga encaixada nas placas de ouro cobrindo a rocha, rutilando, magnificamente, ao sol poente. O Lama não levantou a cabeça; ele caminha mais lentamente, com um pouco mais de respeito ainda na sua atitude meditativa. Mas como “eu não sei ainda”, olho e admiro essas pedras dessas rochas desertas, recobertas de puro ouro, e que ninguém guarda, senão o respeito e o terror que envolve as moradas dos Budas e dos Deuses. 35


A gruta do Buda que fala

Após o vestíbulo obscuro, estreito, a Gruta se alarga bruscamente em uma fantástica nave clareada por lâmpadas fixadas em preciosos lampadários chumbados nas muralhas; bandeiras de seda amarela e vermelha pendem, à moda tibetana, por todo lado. Ao fundo do santuário natural, sobre um trono de madeira vermelha e drapeada de sedas ricamente bordadas, está a famosa estátua do “Buda que fala”, objeto de veneração de todo o Tibete e da China. O velho Lama se prosterna diante do Ídolo e, na sua perpétua meditação, com essa impassibilidade de expressão comum a todos os asiáticos, ele se parece com a estátua imóvel e misteriosa. A mão diante dos olhos, ele reza... Eu olho também a face santa, grave em sua indiferença. Nesse canto perdido da Ásia, o mistério reina, em soberano Mestre. Conheço muito pouco esses espíritos e esses seres humanos! Há, apesar de tudo, uma hostilidade surda que senti desde minha chegada e que continua me cercando como um fio invisível; é necessário que eu me molde, que eu me forme nessa individualidade amarela, tão longe da minha; eu sei e sinto que as coisas e as pessoas são hostis ao “estrangeiro” vindo do Oeste, do país da Morte e do Fogo, de inumeráveis barbáries que, sobre máquinas diabólicas, vêm subjugar e dominar os povos da Terra Santa. Julgo ler tudo isso na expressão estranha da Estátua. É um Buda, ou antes, um Bodhisatwa, pois ele porta o costume real e jóias magníficas. A mão finamente esculpida está inclinada em direção ao sol num gesto de caridade e de abandono, e assim o Redentor oferece ao mundo a paz suprema da Sabedoria... Ao meu lado, o Lama reza sempre, na sua contemplação interior, as feições coalhadas de uma calma semelhante àquela do semblante do Santo, do Bodhisatwa dourado e inundado de pérolas e de turquesas. Docemente o ancião agora lança punhados de ervas perfumadas num grande defumadouro e descobre um espelho mágico, acima do altar. Os pesados vapores das ervas sobem lentamente e formam uma nuvem diante da grande bandeja brilhante do espelho... A voz grave do sacerdote se eleva na gruta: 36


A gruta do Buda que fala

-“Meu Filho, os destinos dos seres humanos são dirigidos pelos Deuses e os Demônios. Mas estes obedecem aos Sábios e aos Santos, que podem deste modo ler o futuro dos povos e das raças... Uma presença augusta santifica este lugar e se os Deuses te são propícios, tu podes ver no Espelho a resposta às tuas angústias... Que o Mestre te proteja!” Olho a superfície sobre a qual a fumaça traça estranhos desenhos móveis... Então uma coisa extraordinária: os desenhos e as sombras parecem obedecer a um impulso, a um movimento ritmado; um turbilhão se forma no centro do espelho mágico e, rápido, nuvens, cores, passam: azul, amarelo, branco, ouro, enfim, dourado rutilante como fogo, deslumbrante e vivo... Depois, no centro desta estranha visão, uma cabeça aparece: um rosto de expressão voluntária e enérgica, inteiramente barbeado como aquele dos lamas tibetanos. O crânio é enorme, proeminente, e os olhos faíscam poderosos, extraordinários, sobre-humanos; são olhos triunfantes, iluminados, radiantes... A atmosfera da caverna subitamente esfria. Um vento invisível agita as bandeiras e as pesadas tapeçarias de seda. A influência oculta dos deuses evocados se faz sentir. Reconheço esta sensação de medo, de angústia, de vertigem: Os Invisíveis acorrem... O espelho torna-se alucinante; numa névoa amarela ouro banhada de fogo, seres passam, sombras se desenham, cenas estranhas e visões do outro mundo se mostram. Parece que o espelho oscila sob a força mágica que o impregna; o crânio da primeira aparição volta e, de novo, os olhos se fixam sobre mim. Um símbolo aparece atrás dele e logo rutila sobre as chamas da visão. É o símbolo das sociedades secretas da Ásia, aquele que une milhões e milhões de Amarelos. Enfim, diante do espelho, em uma auréola de fogo e de claridade, tenho o primeiro contato com um dos Seres mais temidos do esoterismo asiático. O que me foi dito não posso escrever; há um juramento entre mim e Ele e eu não o trairei; aliás, esse tipo de coisas são indizíveis. Este foi meu primeiro contato com a Ciência secreta dos Lamas; entrevi o Sol que ilumina os Iogues, os Sábios e os Budas, Aquele 37


A gruta do Buda que fala

que os Chineses, esse povo sábio, personificou pelo Dragão e os Tibetanos chamaram também Avalokitezvara, o Bem-Amado de Coração Piedoso. E isto se passou numa tarde, na gruta sagrada no grande portal de ouro puro, diante da muito venerada face do “Buda que fala”. Quando saí com o Lama, voltei-me para ver uma vez mais esta morada misteriosa. As placas de ouro tinham um tênue brilho na penumbra da luz branca da lua e eu já não sabia o que parecia mais incompreensível: a entrada sombria que conduzia ao Espelho de cobre ti beta no, ou as estrelas que, no céu do Oriente, cintilam inumeráveis e tão próximas...

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Capítulo V A ENCARNAÇÃO DO DEUS VIVO A tristeza paira sobre o Mosteiro de Ky-rong, nas montanhas brancas do Norte... Os cantos lúgubres se elevam em um ritmo doloroso e lento. O Umzé do Mosteiro, o venerável e todo-poderoso Lama Mé Thôn-Tsampo morreu. O grande taumaturgo e terapeuta, célebre em todo o Tibete Ocidental, um dos Budas Vivos da terra proibida, deixou sua veste física para ir para a gloriosa Luz... A tristeza paira sobre o Mosteiro de Ky-rong, nas montanhas brancas do Norte... Partimos, um grupo de monges e eu, para render a suprema homenagem de adoração antes da incineração. Além do mais um rito misterioso deve ser cumprido e a presença de todos os Lamas é indispensável. O defunto era um Khubilkhan, um Buda encarnado, e o Superior do Mosteiro procurou o ser vivente no qual devia se encamar o espírito de Buda, sempre presente entre seus adoradores. Após os quarenta e nove dias no mundo intermediário, o Bardo Todol, o raio divino que iluminava o Umzé coloca-se novamente sobre o ser que o destino escolheu e que se torna então um Buda Vivo, derramando em torno de si a Luz e as benções místicas. Uma multidão de Lamas, pertencendo quase todos à seita dos barretes vermelhos, acorrem para assistir ao evento. Penetramos no átrio do Templo onde, sob uma imensa abóbada, repousa o corpo do Lama. Segundo os ritos lamaicos, o cadáver foi cuidadosamente embalsamado. Quase nu, o corpo é acocorado na postura de meditação. Em volta dele os Lamas recitam as preces mágicas num 39


A encarnação do Deus vivo

piedoso murmúrio monótono que destacavam bem na pronúncia os estrondos ensurdecedores dos tambores de pele humana. E o Umzé, cercado de seus fiéis discípulos, parece viver ainda e meditar uma verdade metafísica, segundo certos ritos esotéricos, no meio do círculo atento e silencioso dos lamas de seu mosteiro. Os domínios da vida e da morte se confundem rápido sobre esta terra santa e, quase todos os Lamas, transpuseram vivos às portas das trevas do além. Ora, os lamas astrólogos e mágicos procuraram o ser vivo digno da próxima encarnação do raio místico. É uma criança de aproximadamente oito anos, de uma humilde família de camponeses da região e que a sorte e os astros unanimemente designaram. Num canto da imensa corte, um grupo compacto cerca o eleito. Seu semblante reflete um terror não dissimulado do estranho e novo espetáculo que o cerca. Foi para mim um mistério a comparação desse rosto ingênuo e infantil com a majestade suprema, a calma segura e sobrehumana que ele refletiu após a espantosa cerimônia. Já os gongos ressoam, os damarus se agitam, os címbalos soam, os sinos lançam seus apelos agudos, as trombetas de ossos humanos uivam; a criança eleita, em seu canto, chora, se inquieta. Um grupo de lamas o leva... De início, cantos; invocações aos Deuses e aos Idâns da comunidade que guiaram o Umzé e seus inumeráveis discípulos no caminho formidável; preces ao Piedoso para que Ele se digne habitar entre seu povo para guiá-lo, o sustentá-lo, e ajudá-lo. Sua presença misteriosa é uma luz que ilumina Q mundo sombrio dessa idade negra... Grave, o hino continua, interminavelmente. O sândalo e o incenso, em espessas espirais se espalham sobre os grupos inclinados dos barretes vermelhos e formam uma névoa que encobrem as formas imóveis dos lamas meditando. Lentamente, uma procissão avança salmodiando. Sobre uma padiola, o infante é estendido, duro, com uma palidez cadavérica... Estará ele morto também? 40


A encarnação do Deus vivo

Que mistério repousa, pois, sob os traços alterados do pequeno corpo?... Lentamente eles avançam, os sacerdotes em capas escarlates. Os lenços vermelhos parecem filetes de sangue sobre a brancura da seda que envolve a criança que transportam. Piedosamente, eles entreabriram os braços cruzados do Lama que repousa na sua eterna meditação. Colocaram o corpo da criança sobre os joelhos cruzados do cadáver e os braços foram fechados... Um véu branco é colocado sobre esse grupo e bruscamente os instrumentos se calam, todos, em um trágico silêncio. Subitamente um canto se eleva. Da multidão de lamas, dos grupos sombrios, uma voz grave fala e pronuncia palavras ritualísticas. Docemente o coro retoma as estâncias; depois os instrumentos, um a um, lentamente, murmuram surdamente. A alma tibetana, loucamente religiosa e mística até a demência, exala-se em um canto menor, nesta invocação misteriosa da qual ela possui o formidável encanto das palavras e dos ritos. E tudo isto é pungente e triste, triste como um canto de igreja impregnado da desesperança humana, eterna... E, de repente, um grito dilacerante, um uivo interrompe a salmodia. Os lamas se precipitam, levantam o véu branco que recobre as formas imóveis. Eu vejo... eu vejo o cadáver virado, os braços entreabertos, o corpo dobrado em dois sobre o lado, e em pé, os olhos brilhantes, em atitude de absoluta autoridade e de vitorioso poder a criança que, agora, avança em direção dos agitados grupos. -“Sou eu, o Lama Mé Thon Tsompo, filho espiritual do Lama Khur Tchong Repa. Ouçam, ouçam... Do Vihara imenso, da presença do Urgyan, eu descendi; dos céus Tushitas onde reina Cham-pa, o Buda do Amor eu vim e entre vós habito...” Em uma exaltação inacessível, o Deus-criança profetisa. A forma ingênua e juvenil desapareceu. Uma energia espiritual, uma experiência mística amadurecida e segura, um conhecimento profundo da Doutrina se exprime pela boca infantil. Diante da criança, os lamas dispuseram os rosários, as taças 41


A encarnação do Deus vivo

de chá da comunidade, aí misturando intencionalmente os objetos que pertenciam ao Venerável Lama defunto. Vejo a criança, a pedido do Superior do mosteiro, dirigir-se com passo rápido em direção aos instrumentos sagrados e, sem hesitação, escolher quatro ou cinco objetos, levá-los consigo ao trono, ao fundo da nave, dizendo: “isto é meu rosário; esta é minha taça de chá, este é meu dorje...” Há um tom de comando absoluto, e não há lugar para a dúvida. O mistério reina; o mistério absoluto, sombrio e trágico... Sucessivamente, os lamas do mosteiro primeiro, os lamas visitantes em seguida, vêm render homenagem ao jovem e novo Guia Espiritual da Comunidade que, com gestos cheios de unção os abençoa. A vez de meu Lama e a minha chegam. Jamais esquecerei a impressão alucinante desta fisionomia de criança que eu havia percebido tímida e pueril na sua ingenuidade e que via agora, comedido, calmo e resplandecente, e cujo olhar lento na fisionomia impassível parecia impregnado de uma sombra desconhecida e temível...

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Capítulo VI NA DIREÇÃO DE LHASSA A caravana se alonga e serpenteia no estreito caminho, ao lado do abismo borbulhante. Os iaques, enormes e maciços, com cornos altos e arqueados marcham pesadamente; os pelos cinza e sujos que caem de seus flancos formam uma capa que os recobre e que arrasta. As sinetas grossas suspensas nos cornos tilintam a mesma nota, perpetuamente, e é um conjunto melancólico na bruma do sol nascente. Deixei a Casa de Oração de Chumi-Jadsa, pois meu Mestre incitou-me a partir para Lhassa a fim de encontrar os Instrut6res mais poderosos e qualificados. Além disso, parece que minha iniciação suscitou comentários no Potala e as autoridades desejam conhecer de vista este ocidental. Para evitar perguntas indiscretas do governo britânico, e como conhecem minhas ações e meus modos desde minha chegada às Índias, fazem-me viajar em um grupo de monges do mosteiro, vestido como eles, o sol e o vento encarregando- se de transformar a cor da minha pele. O Umzé de Chumi-Jadsa arrisca, aliás, sua vida, pois, se por acaso sou um enviado de uma potência política estrangeira, sua tentativa de me introduzir assim na terra proibida será punida com a morte; conheço muita coisa sobre política e a doutrina do Lamaísmo. Mas a recomendação formal do Umzé venceu as excitações do Colégio Sagrado. Para continuar minha iniciação querem-me próximo a fim de me vigiar e punir mais rapidamente em caso de falta. Há lamas médicos em Lhassa que conhecem muitas coisas e meu Mestre preveniu-me claramente da minha sorte. 43


Na direção de Lhassa

Um jovem Lama que malograr nos seus estudos tem o recurso de tornar-se Lama Feiticeiro em qualquer aldeia chinesa ou tibetana; quanto a mim, sei que meu caso será muito diferente. Na minha marcha para o conhecimento do esoterismo lamaico não posso mais recuar. Conheço o poder de certas plantas, de certas folhas, de certos venenos que os Lamas manuseiam com uma destreza perigosa; há estranhas doenças no Tibete. Transpus as montanhas brancas que protegem a terra dos monges. Foram barrancos, gargantas encaixadas entre muralhas abruptas, caminhos estreitos contornando caos inimagináveis. As altas planícies foram alcançadas e pela estrada mais frequentada de Gyang-tsé e Chushul, em pequenas etapas, chegamos à cidade santa. Não nos aconteceu nenhum incidente notável no decurso da marcha; os monges me fizeram passar facilmente os lugares perigosos. Sobre uma barca rústica e grosseiramente retangular, atravessamos o Brahmaputra e chegamos a Chushul onde, graças à nossa qualidade de Lamas, tivemos o melhor lugar na hotelaria da aldeia. Parecem me ignorar desde minha entrada no Tibete; paramos em mosteiros ao longo de nosso caminho e eu rendi homenagem, com os outros lamas, ao Umzé e aos santos protetores do lugar. Mas sei que me observam atentamente, e que um monge vigilante está atrás de mim, pronto a anotar minhas faltas. Isto me é totalmente indiferente; transformo-me lentamente em asiático; vivo, penso, medito como um monge tibetano; adquiri os hábitos; sinto as emoções religiosas; compartilho da misteriosa febre do desconhecido e do terror sagrado dos deuses que pressinto mais e mais reais à minha volta; gênios das águas, das montanhas, deuses das florestas, eu os conheço e vi os rituais para comandá-los, os acalmar ou os desencadear. Sinto também esse desprezo da atividade estéril das coisas deste mundo e torno-me a esse respeito impassível como esses sábios da Ásia que sabem o valor de todas as coisas e que as classifica definitivamente, o seu justo valor... 44


Na direção de Lhassa

Percorremos o vale sagrado do Rio do Meio, Kyi-Chu. A garganta se fecha sobre a estrada pedregosa depois se alarga até os últimos contrafortes que dominam Lhassa; à esquerda deixamos o Mosteiro de Drepong, o mais populoso da terra, com sua cidade, seu exército e seus quase doze mil monges. Aproximamos-nos da cidade santa e começamos a murmurar preces, pois, tudo aqui é sagrado, o sol, o ar, a água, as pedras. A cidade, invisível ainda, já brilha à nossa volta; ela brilha sobre os baixos relevos esculpidos na rocha e diante dos quais há oferendas e estofos coloridos; ela brilha sobre os imensos Mani gravados em letras gigantescas sobre os rochedos avermelhados; ela brilha, a Cidade Santa, nas altas bandeiras e as longas auriflamas amarelas e vermelhas estalando ao vento violento da tarde, que varre a imensa planície da Ásia Central; tudo canta a presença sagrada dos santos e dos deuses que residem ao longe, atrás das montanhas violetas, na grande cidade da Ásia, Aquela que veneram acima de todas as outras cidades e todos os outros santuários... Depois, repentinamente, no deslumbramento da luz ardente do sol do oriente, um brilho ao longe, em uma massa cinza e ocre: a cúpula dourada do Potala, a residência sacratíssima do Dalai-Lama. Ali reside o representante espiritual da mais alta doutrina e do mais poderoso esoterismo que conheço. Aquele que está entre essas paredes possui poderes dos quais já pressenti as assombrosas possibilidades. E sei também que há outros mistérios, outras coisas ocultas mais formidáveis ainda que são reveladas somente aos velhos Lamas já alcançando o limiar da morte... Lhassa! A cidade dos mosteiros, a cidade da prece, o refúgio dos Deuses da terra, a morada dos Budas encarnados! Aqueles que lá residem são livres, os Arats; eles atingiram tudo o que pode atingir humanamente os homens. Eles têm um conhecimento das leis da Natureza que lhes foi legado pelas raças e continentes desaparecidos, e isto os torna sobre-humanos. Sua ciência lhe foi revelada por Seres que não são deste mundo; eles conservam a esse respeito tremendos mistérios em seus arquivos secretos. Tudo isso eu sinto em uma profunda emoção religiosa; faço 45


Na direção de Lhassa

como meus companheiros de viagem que se inclinam diante desta primeira visão da Cidade Santa num gesto de adoração e de profundo respeito. Para mim o primeiro objetivo de minha viagem foi atingido, pois estou, enfim, na morada dos sábios da terra, Destes que penetraram os mistérios da vida e da morte...

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Capítulo VII O ORÁCULO SAGRADO DE LHASSA Em Lhassa, fico no mosteiro de Ramot'ché, ao norte da cidade, a pouca distância do Potala. Ali estudamos a Ciência Oculta e os Rituais de Magia. Sob a direção de um amigo de meu velho Mestre de Chumi-Jadsa, um graduado na hierarquia lamaica, continuo a trabalhar misteriosos arcanos. É uma outra vida, outras preocupações intelectuais. De início isso me surpreendeu; ainda que em Chumi-Jadsa me foi ensinado o lado místico do Lamaísmo, estudamos aqui o lado mágico e cerimonial da Ciência Sagrada. Não se trata mais da adoração dos Bodhisatwas, de Nirvana e de paz mística. Trata-se agora dos poderes dos elementais da Natureza. Meus novos mestres mostram-me a força natural dos deuses no trabalho nas coisas e nos seres; eles me ensinam os meios de dominá-los, de dirigi-los e os subjugar. Os cultos dos quais participo são cerimônias mágicas, pois as forças da natureza são divinizadas no Oriente; isto permite as classificar e as reconhecer. Aprendo também manusear instrumentos especiais de magia. Parece-me que reúno épocas desaparecidas aos ritos obscuros; os objetos e os símbolos têm significados perdidos, longínquos e o lento acúmulo de seu simbolismo psíquico os tomou poderosos e temíveis. E o Dordjé (ortografia tibetana: rdo-rje), o raio divino, espécie de cilindro terminando por cinco pontos que se curvam formando uma chama. É o Pourbou, o punhal sagrado, triangular, que serve para usos singulares em certas cerimônias de imolação física; é também uma arma de defesa contra as forças inimigas, os demônios e as 47


O oráculo sagrado de Lhassa

larvas humanas. Há também o rosário feito com contas de vértebras de serpente, o Theu Treng (ou Pren-ba - pronunciar Ten-va), insígnia misteriosa de um dos poderes mágicos do ser humano e da qual o uso remonta na noite dos tempos da Tradição Sagrada... O mosteiro é suntuoso, imenso. O Templo é uma maravilha de antiguidade e de escultura. Estranhas cerimônias ali se passam, visto que estou na primeira escola de magia da Ásia. O Ocidental que colocou em dúvida o poder da Magia teria somente que fazer um estágio no mosteiro de Ramot'ché e assistir às evocações e a essas cenas de pesadelos; as forças da Natureza e do homem aí são dissecadas e analisadas com uma tal minúcia, uma tal precisão, que as pesquisas ocidentais em psicologia são muito pouco em face dos resultados que os mágicos tibetanos obtém. Não são as mesas que eu vi girar aqui; são enormes blocos de pedra negra, rocha primitiva e grosseira, que se movem lentamente nos alvéolos engordurados de manteiga sagrada, massas enormes oscilando dos ritmos dos encantos mágicos... Há uma atmosfera de pavor, de alucinação que abala e tumultua os que se aproximam desses detentores dos segredos da Natureza. As forças ocultas de nosso corpo são estudadas e cultivadas excessivamente; é a escola dos faquires e dos fazedores de milagres, que se espalham na Ásia e dominam as populações pelo seu poder e seus prodígios. Vi coisas estranhas no mosteiro de Ramot'ché; vi fenômenos que o mais céptico dos sábios da Europa seria incapaz de explicar... Há cerimônias no Tibete, em certas tardes de espanto, na nave sombria, ao som dos damarus e dos címbalos de pele humana, que me fizeram estremecer de terror. Vi mortos levantarem-se, muito pálidos, nas suas roupas cinzas e, obedecendo aos imperativos dos todo poderosos Lamas, oscilar lentamente sobre os altares entre nuvens de perfumes e os grossos feixes de flores vermelhas e amarelas. Os sacerdotes tibetanos têm o poder de reter as almas dos mortos sobre a terra... E na fantástica sombra da nave, essas formas 48


O oráculo sagrado de Lhassa

sombrias me lembravam os ciprestes que se agitam lentamente ao vento do inverno... Vi chamas saírem das pontas dos Dordjé que os Lamas brandiam e iluminarem os ídolos com uma auréola de fogo e de luz... Vi muitas outras coisas ainda que espantariam os mais audaciosos e tornariam os jovens estudantes da Alta Ciência de Ramot'ché semelhantes a velhos... Fui apresentado ao Grande Oráculo de Lhassa. No Sagrado Colégio do Potala, onde a vigilância invisível que não descansa, assim decidiu. Esse Lama tem o dom da clarividência e da adivinhação; parece que o Dalai-Lama com frequência recorre a ele para decisões importantes. Ele habita o mosteiro de Garma-khia ao leste da Cidade Santa. Assim que chegamos, meu guia e eu fomos atendidos pela santa pessoa no seu quarto particular. Sentado em um trono de laca negra incrustada de madrepérola chinesa finamente trabalhada, o Oráculo estava vestido com seu costume de cerimônia de seda amarela, bordado com grossos pingentes de ouro e de pedras preciosas. Um barrete, de estranha forma, lhe rodeava a cabeça... Tive um exemplo da mais fina cortesia asiática. Ofereceramme chá e a “faixa de felicidade”; indagaram sobre minha saúde, meus estudos, minhas diversas viagens... e vi a fina habilidade desse sacerdote lendo minha alma e adivinhando os movimentos escondidos dos meus atos. Na alta função que exerce em Lhassa, este homem viu tantas coisas e tramou tantas intrigas quanto muitos generais e monarcas todo poderosos da Ásia... Olho curiosamente esse semblante enrugado e sorridente que contém em si mistérios sombrios. A autoridade desse Lama tibetano é incontestável sobre mais de trezentos milhões de almas. Mas, em baixo, as monstruosas trombetas chamaram os lamas e os noviços para a cerimônia que se preparava. Fomos instalados em um canto sombrio do Templo de onde nós víamos perfeitamente o grande trono maciço no meio da nave; 49


O oráculo sagrado de Lhassa

as esculturas e as sedas se iluminavam aos mutáveis clarões das inumeráveis lâmpadas do Santuário. A música e o coro tinham começado suas harmonias e seus ritmos compassados de bruscas batidas de gongo. Depois, na sombra do altar, como uma aparição de Deus, o Oráculo se mostrou. Dando a impressão de ter o pescoço enterrado entre os ombros por pesadas e suntuosas seda, o ancião pareceume ainda mais alquebrado, ainda mais magro que lá em seu quarto. Imensas placas de laca negra onde rutilavam evocações em letras vermelhas foram levantadas ao alto dos braços e movidas em cadência... Os gongos redobram seu grande ruído e o crescente do coro dos monges chega ao apogeu. O Oráculo está imóvel em seu trono... e já estremece. De seus olhos fechados, lágrimas correm sobre a face serosa; movimentos convulsivos o agitam conforme o ritmo acelerado dos cantos ritualísticos. Um lama, com o rosto oculto por um véu de seda negra, murmura em um tom menor possantes dzoung... Depois, de repente os gongos trovejam, as trombetas soltam um rugido que acompanha os clamores dos lamas. Lançado por terra diante do seu trono, o Oráculo se torce, uivando. Dois servos se precipitam e o sustentam durante esta crise onde o Deus toma posse de seu servo. Pouco a pouco retoma a calma; ajudado pelos dois monges, ele se levanta tremendo e se prostra em seu trono. Coisa estranha, e que nenhuma ilusão pode explicar, ele tomou a mesma atitude atormentada, os dedos crispados, o corpo torcido, que a imagem do deus, que não consigo identificar e que se encontra ao fundo do templo, bordado sobre uma imensa bandeira atrás do altar. O rosto do Lama tem o rictus do deus triunfante; mas a mandíbula inferior do sacerdote lentamente se abre e se fecha como se algo tentasse em vão se exteriorizar; lágrimas de sangue orvalham sobre o rosto macilento que, na sombra da nave, parece luzir com uma fosforescência sobrenatural... E o Oráculo fala: a princípio são palavras sem nexo, com esforços no pobre peito ofegante, como se o deus se impacientasse 50


O oráculo sagrado de Lhassa

com a imperfeição da forma que ele tinha se revestido: há ordens a exprimir e não há nenhum retardo e nenhuma negligência na sua execução. Os lamas se aproximam e esperam ansiosos as palavras divinas... As palavras são mais distintas agora: é antigo tibetano misturado ao mongólico. Após fragmentos de frases e em um estilo conciso o Oráculo fala; sua voz é surda, ofegante. Estou impressionado por essa força misteriosa que, nesse corpo fraco, tenta exteriorizar-se em meio a infinitos sofrimentos. A grande assembléia dos Lamas está muda e todos escutam a voz do Deus encarnado: “... Vejo... vejo... povos, povos armados e que cospem fogo na terra, no mar e nos ares... e há sangue, ondas, torrentes de sangue... e esse mar vermelho apodrece... vejo as infecções engendradas dessa podridão: a doença, a fome, a morte... e os grandes demônios do sétimo inferno estão soltos... eles se precipitam em direção aos lugares de podridão e estes são a maior fome e as maiores misérias... os povos gritam justiça e morrem... e depois, novamente sangue e nações desaparecem... a terra treme e os oceanos se deslocam... o reino de Gehg, do Grande Inimigo, chega à noite e os incendeia. A terra está recoberta de fantasmas de mortos que não esgotaram sua vida e que rondam ainda, perseguidos pelos Sindja, nos ciclos lunares... “E tu, que vens tu fazer entre nós, homem de oração, amante da Eterna Sabedoria? Tu vens da terra do sangue e da morte do que tu estás ainda impregnado... já recebeste a Iniciação Menor no país do Sul; avança, tu podes trabalhar sem temor porque teu coração é puro e a Compaixão está sobre ti... espere ainda um pouco e verás a Luz da Terra, espera ainda... uma, duas, três luas... tu serás chamado... Não te esqueça da Face que tu viste, o grande segredo da terra...” E o Oráculo, novamente, profetisa através do tempo e do espaço, as horas importantes do Destino de nossa Humanidade. Os Lamas escribas apressam-se em transcrever as visões do Vidente, pois, desde tempos muito antigos... conservam em Lhassa, em uma biblioteca secreta, as palavras dos Oráculos que guiaram o povo santo desde suas longínquas origens. 51


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Capítulo VIII EM LHASSA, A CIDADE DESCONHECIDA Minha chegada a Lhassa suscitou comentários no Potala... Apesar da minha boa vontade, dos oráculos, da sorte favorável, uma suspeita persiste a meu respeito; sinto-me, apesar de tudo, um estrangeiro e posso parecer para esses Tibetanos um curioso, talvez um espião inglês; querem, pois, me sondar inteiramente, saber quem sou, o que penso, o que desejo. Figuras sombrias observam-me noite e dia, silenciosamente, discretamente; a polícia dos Lamas me parece ser a primeira do mundo. Moro sempre no Mosteiro de Magia, onde me explicam os segredos da terrificante ciência lamaica. Solicitei, segundo as regras da Tradição e deram-me, as Iniciações Menores, essas que estão de acordo com todo asiático, mesmo leigo, que de fato a solicita. Mas há outra coisa aqui: não sou nem surdo nem cego; agora conheço perfeitamente o tibetano e me prendo às observações, aos sinais, às conversações estranhas. Sei que a constituição política do Tibete está inteiramente ligada à constituição religiosa e que certos segredos metafísicos e políticos têm uma certa relação oculta. Para se pouparem de me desvendar um, fazem-me ignorar o outro. Solicitei Iniciações Maiores, pois, estou pronto; responderam-me que as provas chegariam logo e que era preciso esperar com paciência... Espera! Conheço esta palavra desde minha morada na Ásia! E tenho paciência porque tudo passa, sobre esta terra, mesmo a curiosidade das autoridades tibetanas. Moro, pois, em Lhassa e as poucas horas que os exercícios me deixam livre, eu as emprego em penetrar um pouco mais a intimi53


Em Lhassa, a cidade desconhecida

dade desse povo que amo profundamente. Conheci, na Cidade Santa, alguns notáveis que meu duplo título de lama e de estrangeiro atraiu. Quando sabem que me dirijo aos bazares do centro da cidade, convidam-me solenemente com um estilo excelente e refinado. O primogênito me traz, com grande cerimônia, a faixa de felicidade, o Katags, de fina seda branca, que acompanha toda cortesia, todo convite no Tibete. Porquanto não é que “me engano em minhas meditações e meus trabalhos religiosos e minha presença é evidentemente solicitada em qualquer parte entre os muito indignos que ousam me pedir para passar uma noite com eles e bendizer seu teto e seu rebanho...” Sei bem que é a educação asiática, mas como recusar tal convite? Antes do cair da tarde, me encaminho lentamente em direção à cidade seguindo o caminho bordado de flores e costeando os grandes parques silenciosos, desertos, que o sol poente torna mais tristes e mais abandonados ainda... Logo passo os bairros vizinhos e as pessoas se aproximam do Lama do Mosteiro de Ramot'ché, o mais temido da região por seu poder oculto. Mulheres, mendigos, me imploram por um remédio, por um amuleto qualquer. Eu lhes distribuo pequenos pedaços de estofo que temos no mosteiro para esse fim e que tocaram alguma relíquia. E logo, à minha volta uma multidão de pessoas mostram a língua e colocam a mão atrás das orelhas, o mais profundo sinal de polidez tibetana. Chego aos bazares e, cada um na sua vez, os mercadores perguntam se o piedoso e venerável Lama do Mosteiro de Ramot'ché deseja alguma coisa. São Chineses que têm em geral o comércio aqui e suas cortesias solícitas lembram-me invariavelmente o Ocidente. É um curioso encadeamento de pensamentos, talvez. Mas seus gritos, seus clamores, seus negócios, suas disputas, são uma imagem fiel da velha Europa... De repente, em um desvio da rua,. o filho da família de meus 54


Em Lhassa, a cidade desconhecida

amigos vem ao meu encontro; beijando a borda da manga de meu manto amarelo, ele me deseja boas-vindas e se informa com um tom de agonia de minha santidade. E isto numa linguagem figurada, um pouco velha e arcaica, com fórmulas que não acabam mais, mas que me agradam pela sua doçura e refinamento. A casa, pintada em vermelho tijolo, forma o canto da rua. Minha chegada logo é anunciada: vejo meus amigos que, com grandes línguas, me saúdam de longe, no limiar da porta branca onde pendem numerosas auriflamas multicores... Eu os vejo todos, em fila, que me aguardam: o Pai, velho mongol de rosto enrugado onde os olhos somem nas múltiplas dobras da pálpebra reprimida; a filha e o genro, ambos vestidos de longas roupas e cujas silhuetas ao longe se confundem; o filho mais velho que cursou a Universidade em uma escola de mandarinato na China e que é muito fiel; um outro filho, Lama em um mosteiro do Leste e que, silenciosamente, ora e medita o tempo todo, os olhos perdidos em um eterno sonho... Fazem-me entrar na grande sala de recepção, semelhante àquelas de nossos castelos medievais. Em um canto, almofadas e tapetes bordados formam o lugar de honra que me é reservado. Trazem as lâmpadas de metal a óleo e, solenemente, após as cerimônias aos deuses protetores, começa a refeição. Sendo religioso, não devo comer nenhuma carne do que quer que seja que tenha tido vida. Em atenção a mim, a refeição é estritamente segundo a regra. Tsampa torrado e diluído no chá, arroz fervido, temperado com manteiga e açúcar, são os pratos de base. Às vezes, em circunstâncias solenes, e conforme à chegada de caravanas chinesas servem iguarias que vêm da longínqua China e que custam muito caro. Esses banquetes produzem numerosas lengalengas. Velhos Lamas, religiosos, curiosos vêm, cada um a seu turno tomar parte de nossas conversas teológicas. O povo tibetano é essencialmente religioso; tudo para eles é dominado pelo espiritual: costumes, hábitos, linguagem. Os deuses tibetanos são conhecidos e temidos; eles partici55


Em Lhassa, a cidade desconhecida

pam da atividade social sob todas as suas formas. A vida pastoral (pois o comércio é quase essencialmente chinês) desenvolveu nos tibetanos o sonho e o misticismo. É um povo de monges, ascetas, de poetas líricos e prolixos que cantam incansavelmente os deuses e o “héro Gezar...” Como são doces ainda à minha lembrança as tardes de Lhassa junto aos meus amigos tibetanos, quando um dentre eles cantava alguns hinos religiosos ou algumas poesias melancólicas onde o assunto é sempre o mesmo: a beleza da vida ascética e religiosa, a grande desesperança dos seres ignorantes que penam no inferno dos renascimentos e nos tormentos da vida terrestre cheia de amargura e de angústia...

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Capítulo IX O MESTRE DO TROVÃO Meu Guru incitou-me a visitar um Lama de seus amigos que habitam em uma pequena aldeia nos arredores do mosteiro de Sera. Ele conhecia as fórmulas que dominam os elementos e eu deveria fazer um estágio junto dele para aprendê-las. De acordo com o costume imutável entre Lamas, meu Pai Espiritual me deu alguns objetos de valor para oferecer ao Lama “guardião da doutrina” (bstan-srun-pa). E um costume ancestral que consiste em presentear com estofos ou pedras preciosas ao Lama que deve ensinar uma doutrina ao discípulo. Providenciei uma peça de fino tecido de Lhassa, cidade especialista na sua fabricação; juntei a isso alguns lingotes de ouro, jóias e rosários de 108 vértebras, com textos que meu Pai Espiritual enviou, por meu intermédio, ao Lama e que deveriam dar-me crédito junto a ele. Estávamos na primavera e a natureza oferecia um charme incomparável. As montanhas que se erguem ao Norte de Lhassa impedem o vento glacial das estepes de soprar diretamente, assim, uma pequena mata colorida de flores contorna a grande cidade espiritual da Ásia. Camponeses cantando lentamente, de um modo mineiro, trabalhavam a terra vermelha, enquanto que os enormes iaques caminhavam sob as pesadas cargas dos feixes de ervas e dos sacos de grãos. Na mesma estrada, monges, peregrinos, em quantidade inumerável e comprimidos em fila, acorriam em direção à Cidade Santa, o rosto radiante e murmurando preces às divindades tutelares dos lugares e das montanhas que eles atravessavam. 57


O Mestre do trovão

De tempos em tempos, uma pequena tropa de soldados, trajando roupas caqui, cercando um funcionário qualquer galopava rapidamente rumo a alguns postos avançados a fiscalizar ou alguns mosteiros a inspecionar. De tudo isso emanava essa “atmosfera” tibetana, tão particular, onde o charme sempre tocou profundamente os que dela se aproximaram. Aqui os comerciantes contavam minuciosamente as moedas, enfileiradas sobre um grosso cordão, como um colar rústico; mais ao longe, um fanático vindo de qualquer canto perdido da Mongólia ou das altas planícies do Leste cumpria sua peregrinação segundo um voto bárbaro e cruel; ele deitava-se sobre a rua empoeirada, murmurava um dzong, levantava-se, avançava na medida do comprimento de seu corpo estendido e recomeçava perpetuamente seu penoso exercício. Bando de peregrinos levam, assim, anos para atravessar a Ásia... Esses homens são irreconhecíveis: recobertos inteiramente de uma poeira amarelada, sangue colado no rosto, os olhos inchados e vermelhos pelo frio, pelas privações, o sol, a areia dos desertos, as mãos intumescidas, são verdadeiros supliciados que cumprem, assim, sua santa peregrinação. Mas uma vida interior extraordinária transfigura seu semblante. Impulsionados em direção a um objetivo desejado após vários anos, eles vão, atravessando a Ásia, seus desertos, suas febres, seus perigos, em direção ao centro místico que os chama e aonde eles chegam muitas vezes para morrer de alegria e esgotamento... Mistérios da alma do Oriente, que sigo de perto assim, mas que sinto infinitamente longe e incompreensível... O digno Lama “guardião da doutrina” habita em uma alta colina, nos primeiros contrafortes da imensa cadeia nevada que barra, ao Norte, a planície tibetana. A fama desse sacerdote mágico é grande e sua influência formidável. É um velho Lama do mosteiro de Ramot'ché que certamente foi reprovado nos exames dos graus maiores e que se contentou em 58


O Mestre do trovão

exercer a magia para o bem ou para o mal dos que lhe estão próximos. É também costume no Tibete solicitar a um Lama de fazer cair a chuva ou o granizo como na Europa se solicita uma informação a qualquer serviço meteorológico. E, segundo o que sei e o que já vi, estou absolutamente persuadido que os erros de resultados não são da parte dos lamas. Esquecemos no Ocidente, que uma crença, qualquer que seja, pede um mínimo de realidade sob pena de desaparecer rapidamente; se o tibetano é um místico, ele é também um realista absoluto. Ele paga seu lama para obter chuva ou destruir pelo raio o gado de seu vizinho; se isto não acontece, o poder do mágico é imediatamente contestado e este deve desaparecer da região. Ora, esta crença na eficácia de certas fórmulas e de ritos sobre o tempo é absolutamente geral no Tibete e os lamas mais elevados na hierarquia lamaica me confirmaram a realidade dos fatos. Eu ia, aliás, ver junto desse mágico, fenômenos bastante perturbadores para ter uma idéia do poder real desses homens. Em uma casa de terra, no alto da colina, o Lama me recebeu. Ofereci-lhe os presentes, as cartas de apresentação e lhe solicitei o favor de conhecer as invocações para dominar os elementos e conhecer as forças ocultas da natureza... - “Meu irmão de Lhassa me ajudou; somos unidos um ao outro e não vejo razão para recusar de te instruir nas poderosas fórmulas. Os selos que tu me trazes são verídicos. vá arranjar uma morada na pequena gruta “Luz da Lua” que está à direita deste caminho e me espere. Estarei lá num instante”. - Vou à gruta “Luz da Lua”, sobre a outra encosta da colina; ela domina o vale onde tropas passam sob a vigilância de um jovem tibetano. Identifico nessa gruta o leito 'de pele de carneiro e as grossas cobertas, os bolos e as taças para o alimento bem como os compartimentos para os livros, encravados diretamente na parede de pedra. Em seguida veio o Lama; ele me levou à sua casa de terra e almoçamos tsampa servido por sua mulher que compartilha da 59


O Mestre do trovão

ciência de seu marido e o auxilia em seus trabalhos mágicos. Aprendo as fórmulas evocatórias. É preciso tratar segundo regras precisas os círculos mágicos (as mandalas tântricas hindus) que circundam os comparsas das terras a inundar, a destruir ou a preservar. É preciso invocar os Deuses protetores que obedecem aos apelos formulados segundo um cerimonial preciso e rigoroso. Diante dos círculos de oferendas, é preciso ordenar os deuses escravos e lhes indicar os trabalhos que eles devem cumprir. O poder mágico de quem evoca é, evidentemente, todo poderoso nesses casos. Segundo sua força e seu conhecimento, ele subjugará mais ou menos os deuses e poderá cumprir mais ou menos prodígios... Ora, eu vi. Afirmo aqui minhas visões e os resultados extraordinários da preparação oculta que segui hora a hora com uma crescente agonia. Vi à tarde, diante dos círculos mágicos com desenhos multicores e complexos, ao apelo imperioso do Lama, sombras tomarem forma, definirem-se; vi os eternos deuses aparecerem, fazendo caretas, larvas se movendo segundo as sombras caprichosas das pesadas volutas saindo dos invisíveis incensários, diante das oferendas. Ouvi as ordens dadas. Vi essa conversação espantosa entre o homem e os deuses obedientes. E conforme as instruções precisas do Lama “guardião da doutrina”, relâmpagos amarelados rasgavam as sombras do quarto entre os turbilhões móveis das formas. Ora, nesse mesmo momento, uma tempestade assustadora devia se desencadear: é isto que me afirmou o Lama. É uma punição que ele infringiu a alguns sacerdotes dos vales vizinhos que caçoavam dele. Saí para me assegurar da material idade do fato e constatar o trabalho dos deuses protetores. Na noite pesada, clarões iluminavam o céu; um vento rápido fez tremer o solo e os vales ressoavam de forma estranha. Ouvi o trovão murmurar surdamente e me pareceu que um 60


O Mestre do trovão

clarão sobrenatural envolveu a casa do mágico, e se estendeu ao longe, em direção aos sombrios vales das montanhas... E todos os deuses protetores, sob o domínio do Mágico do qual ouvi as maldições no silêncio da noite, me parecera tomar as formas rápidas das sombrias nuvens que a luz crua da lua alumiava. A visão era fantástica... O vento se elevou em tempestade e eu entrei. Em volta do círculo de oferendas foram depositadas espigas de cevada e pontas de ramos de ervas frescas. Um turbilhão de fumaça negra encheu a sala e ouviam-se singulares estalidos nas paredes de terra e nos móveis de madeira. Imóvel, a cabeça recoberta com um véu vermelho e preto, o Lama rezava. Sua mulher, olhos fixos, jogava maquinalmente pós perfumados nos braseiros sagrados. Um frio glacial reinava no aposento e, na minha pele, sentia o crepitar que me lembravam as sessões sombrias de evocação do templo nos pavores de Ramot’ché... Vi em seguida outros fenômenos desse tipo e, para mim não havia dúvidas. Sobre esta terra de mistério, vi lamas desencadear os elementais, comandar deuses do raio e do granizo; os camponeses, tremendo, vinham implorar aos poderosos lamas de poupar suas terras e suas colheitas e faziam preces e oferendas para que os demônios desencadeados, servidores cegos dos Mágicos, passassem sem prejudicar sua morada e seus rebanhos...

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Capítulo X OS MISTÉRIOS DA MORTE Enquanto isso, em Ramot'ché, nos é revelado um dos arcanos mais grandiosos e mais espantosos: os mistérios dos mortos e a procura de lokas (lugares) para a reencarnação. Em certas épocas, pois o ensinamento lamaico segue leis da astrologia muito precisas, retomamos ao templo dos terrores... Em meio ao mofo acre das ervas sagradas que foram queimadas na véspera, entre os instrumentos mágicos que servem às cerimônias terrificantes de chamada dos mortos, nos agrupamos em silêncio, em volta de nosso Mestre, a cabeça recoberta por uma ponta do nosso amplo manto. E nas trevas da sombria capela de evocações, nosso, Lama nos explica a marcha da lenta e inexorável dissolução dos seres humanos. A chave do esoterismo dos mistérios post-mortem é espantosa e só é revelada a um pequeno número de laicos. Entretanto, todos os Lamas conhecem esses mistérios, pois é uma de suas principais atribuições ajudar os moribundos e presidir as cerimônias funerárias. No Tibete, é comum ver operar o Lama phoôh, aquele que preside as cerimônias fúnebres. No silêncio da casa mortuária, ele se coloca na cabeceira do moribundo e, quem quer que este seja, lama ou laico, rico ou pobre; ele lhe comunica as palavras secretas das passagens post-mortem. O moribundo leva, então, esse viático na longa viagem... Nosso Lama nos fala dos “sinais da morte” que já revelam aos homens do outro estado. Estudamos os ritos, as extinções sucessivas e regulares dos ouvidos, da vista, do olfato, premissas da rápida desintegração do ser humano. O respirar do moribundo, conforme seu arquejar, indica 63


Os mistérios da morte

visões interiores que já se refletem, vislumbres da nova aurora, no mental que se desagrega... No atento silêncio do seu grupo de discípulos, nosso Mestre nos fala, enfim, do Mistério dos Mistérios: os estados intermediários (em tibetano: Bardo Thodol), temíveis passagens da morte à nova vida. Você que lê essas linhas, lembre-se... Essas palavras foram transcritas por um Chela sob a direção de seu Lama. Se você rejeita essa narração como indigna de sua razão, lembre-se, ao menos, o nome dos deuses à hora de sua morte, no momento dos terrores do fim, das palavras que vos serão comunicadas no seu ouvido, à voz baixa. No silêncio, cortado somente pelos soluços sufocados e longínquos de seus pais e de seus filhos, lembre-se... “Uma sensação de gelo, de sufoco, de vertigem te oprime e isto é o primeiro sintoma. Teu corpo te parecerá jogado em uma água gelada e mortal; externamente nada acusa, senão certas rugas de tua face que só um lama poderá revelar. Lentamente teus sentido se fecham; você não enxerga mais, apesar dos olhos abertos; você não houve mais os choros e as preces à sua volta. Pouco a pouco um calor insuportável, um fogo interno queima no teu peito. Então o Fogo predominará e tua respiração oprimida mostrará as chamas que te devoram, ainda que teu corpo já seja de gelo. Sob esse fogo devorador, parecerá que os átomos de toda tua carne se dissolverão no ar e tua respiração desaparecerá; tua consciência então; se “centrará”, por assim dizer, no teu coração e então será para você o grande momento”. “Você cairá num desmaio, num sono profundo, sem consciência. Mas lembre-se que naquele momento, teu último pensamento será o farol que deverá mais tarde te guiar. Este derradeiro pensamento será a síntese de toda a tua vida, o panorama de teu carma, isto é, as impressões boas ou más de tua existência. 64


Os mistérios da morte

Possa você, naquele momento, não ter sido morno e medíocre em tudo: no bem ou no mal, no ódio ou no amor. Os fortes permanecerão, pois a idéia os terá impulsionado e eles sobreviverão por esta mesma idéia, devam eles merecer as lokas de inefável brandura ou os abismos tenebrosos...” “Ó, as almas ávidas e desesperadas que rodam no cone sombrio da terra! Espantadas pelas visões horríveis de suas próprias vidas e das tendências secretas que se revelam então, ativas, elas vão e vêm, procurando com desespero a massa de carne em formação onde elas poderão submergir-se e fugir, assim, do insuportável vislumbre dos abismos do além. Para os que não procuraram a paz da alma e as puras luzes da beatitude, os mistérios da morte são dolorosos, ai!...” “Perdidos nos vórtices sem número, nos abismos vertiginosos, sem apoio, sem amigos, sem luz, sem repouso, elas vão, levadas pelas ondas deste mar monstruoso, onde se afundam sempre e onde uma embaçada luz ilumina esse mundo de agonia e as correntes da terra e as das influências lunares atravessam como gigantescos tufões as massas viventes de seres que erram sem esperança e sem propósito”. “Ó tu, que lês isto, lembra-te das palavras dos Lamas: os pavores da morte são repletos de assombros... Possas tu então ter desejado uma vez em tua existência terrestre o Único, procurado o Inefável: isto será para ti um grande consolo e uma preciosa ajuda...” “Ouça a marcha dos processos da morte: as Divindades se mostrarão a ti; nas agonias do além, de teu coração brotarão as formas divinas de apaziguamento e de calma. Possas tu as escutar; bendito, bendito sejas tu de segui-las e de te inclinar humildemente... Mas, se enlouquecido pelos teus desejos e as lembranças inebriantes de teu corpo que apodrece, tu repeles e desdenhas as doces Deusas da Morte, então as fúrias virão...”

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Os mistérios da morte

“Num terrível fracasso, onde talvez teus ossos gelados estremecerão, elas chegam. Oh! Oh! Ouça as lágrimas e os gemidos do abismo; veja as carnes que uivam sob o aperto abrasador ou glacial e veja o milagre assombroso: o perpétuo renascimento da forma que serramos, talhamos, aplainamos e torturamos...” “Mestre, Mestre, ó Lama todo poderoso, pare! Estas são imagens criadas para fazer reinar o bem entre os homens pela crença do além? Veja Mestre, teus discípulos estão pálidos de terror e eles tremem ouvindo a descrição dos abismos...” “Ouça, ouça, Chela, tome o Dordjé sagrado, estenda-te sobre a pele de pantera e pronuncie os Mantrans. As estâncias místicas te guiarão para os abismos subterrâneos e tu descerás nas austeras moradas de Yama. Lá no alto, nós, os poderosos Lamas, velaremos os corpos imóveis de nossos discípulos no templo sombrio, entre os clarões vermelhos dos bastonetes de incenso e as veneradas aurifllamas...” “Veja este clarão, ouça esses gemidos que ritmam os invisíveis sopros das sombrias Deusas de Vama, das Deusas com cabeças de animais. Aproxime; tu és protegido pelo poderoso Dordjé e os deuses te escoltam. Veja: olhe os fogos dos desejos que murmuram vitoriosos e insaciáveis e que envolvem os seres como uma chama eterna. Olhe os orgulhosos, os concupiscentes; olhe aquele que despreza os deuses, olhe aquele que peca pelo espírito, olha os mágicos negros, aqueles da mão esquerda, dos quais as lágrimas de sangue caem gota a gota sobre sua roupa de couro sombrio que avermelha; seus instrumentos mágicos os trespassam e eles sofrem a cada instante mil mortes, todas aquelas que eles ocasionaram pela sua ciência criminosa...” “Veja os ciclos negros dos demônios que os cercam, em uma ronda infernal. E sempre essa luz baça, fria, implacável que alumia acolá todas as coisas... 66


Os mistérios da morte

Como nos dias sombrios de tormentas, as densas nuvens cor de ferro, ardendo, entre os corpos espalhados, refletindo o sangue e o fogo dos infernos...” Chela remonte lentamente dos abismos. Teus cabelos branquearam no contato com o além. Ouça meu filho, no silêncio da noite fresca e doce, as palavras esotéricas: Saiba que os horrores de Hung (o inferno) são tua própria criação. A ilusão está por todos os lados, no Universo inteiro, junto aos deuses e junto aos homens. Tu criaste, por tua atividade, desejos sem número; visíveis nos estados intermediários da morte, eles te oprimem agora com uma força igual à tua ignorância... Se tu redimes esta suprema ilusão de teu mental, tu serás liberado. As formas horríveis desaparecerão como na manhã luminosa se escondem as sombras dos pesadelos. Tu atingirás o Nirvana, o inefável êxtase no Único, sem forma. Toda diferenciação desaparecerá como desaparecem ao Sol as larvas e os espíritos. O UNO se realizará em ti e tu terás atingido o porto, o mundo dos Budas, mundo superior mesmo a esse dos deuses, na doce, radiante e santa luz da Liberação...”

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Capítulo XI NO SANTUÁRIO DO DEUS VIVO Vários meses são passados; fiz rápidos progressos no mosteiro da Magia. Meus instrutores parecem satisfeitos. Aprendi muitas coisas e vi estranhas fórmulas para uso dos mágicos e feiticeiros: os que aprendem a evocar os deuses infernais; curar e matar os seres viventes; sugestionar as multidões e comunicar-se à distância. Não falo da predição de eventos futuros de acordo com as estrelas ou os desenhos que se formam sobre as carcaças de carneiros queimados, pois, todos os lamas conhecem estas coisas e as praticam... A vigilância do Potala não se relaxou um instante; isto também eu sei. E estou simplesmente admirado. de saber que me foi dada ordem de me apresentar ao Palácio Vermelho diante do Sagrado Colégio, o Conselho Supremo do Dalai-Lama, os doze Nom-Kan. A ordem foi trazida por um servidor do Palácio; só tive tempo para vestir a roupa de cerimônia, o Lagoî, e seguir o silencioso servidor do Todo Poderoso. Tomamos uma das duas alas arborizadas que conduzem ao Palácio Pontifical; no meio dos parques que cercam a montanha sagrada com um silencioso e repousante jardim, caminhamos rapidamente sob o sol escaldante. O curto verão tibetano reina sobre todas as coisas e torna empedernida a imensa planície da Ásia Central... A rarefação do ar murcha e o sol queima as plantas mirradas que formam rapidamente uma fina poeira sobre o solo vermelho. O vento que sopra todos os dias ao cair da noite leva rapidamente esses fragmentos e assim o solo torna-se limpo, rochoso, desolado como certos matagais que vi na Bretanha ou na Alemanha...

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No santuário do Deus vivo

Passamos, à esquerda, a escola, de Medicina e logo abordamos as duas rampas da imensa escada que conduz à gigantesca fortaleza que brilha em ouro e vermelho lá no alto, sob o sol rutilante. O palácio pontifical, construído pelo quinto Buda Vivo, NgavanLob'sank (ortografia tibetana: naq-dban-blo-bsan-rqya-rnto'o) é, à primeira vista, formidável. Ele tem templo, caserna e mosteiro. O silêncio reina aqui, o grande silêncio, tão próprio dos Mosteiros da Ásia... Nenhum ruído, senão aquele dos enormes moinhos de preces que gemem sob o vento e que, perpetuamente, fazem irradiar, por seu movimento, a benéfica influência dos textos sagrados que eles contêm. Foram colocados perto da escada de honra do Potala e monges os velam, rezando. A terra, as pedras, o ar, tudo é sagrado nesse lugar; os peregrinos juntam as pequenas pedras que as intempéries gravaram e lapidaram e as levam relíquias preciosas da santa montanha. Monges vão e vêm, com passo sempre igual. Comedidos em seu porte e os olhos baixados, eles desfiam o negro rosário que rodeia seu punho esquerdo, meditando sobre as leis esotéricas do Buda. Entramos por uma porta pequena e baixa localizada um pouco longe do edifício central. O interior do Potala, à primeira vista, é o de uma caserna: sala de guarda, escadas estreitas e abruptas, incrustadas na parede; depois aparece a suntuosidade: as salas de recepções, com lambril de ouro, de prata, de madrepérola. Eis uma peça que atravessamos lentamente e da qual, os tecidos que enfeitam as paredes, vêm do norte da China, laqueados maravilhosamente delicados e finos; corredores, salas de uma só cor, em cinza, em ouro, em azul claro. Esta última é de uma tal maravilha que pedi ao criado que me acompanha de parar um instante para admirar; um enorme cavalo, que reconheço ser o animal místico, o “Lungta”, está bordado sobre uma tapeçaria cinza, com uma tal nuance fina e imaterial que me deixa maravilhado; toda a peça é pintada em azul, desse azul chinês que lembra logo as águas calmas dos lagos sagrados como o céu vivo do Oriente; é uma cor inexplicável, quente, colorida, viva...

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No santuário do Deus vivo

Outras salas ainda; hexagonais, redondas com o teto estranhamente inclinado e um ídolo, no meio da peça, vermelho e ouro; pequenas capelas, onde queimam as lamparinas de manteiga diante do túmulo de um Lama venerado, numa sombra perfumada; corredores que penetram em inquietantes trevas de onde chegam murmúrios de preces e as batidas de gongo que reconheço bem. E aqui há somente uma atmosfera de piedade e de adoração, plena de quietude e de mistério. Agora, o mundo; soldados tibetanos, imóveis, em costume caqui, equipados à inglesa; monges que falam em voz baixa; criados que passam ocupados e silenciosos. Atravessamos os grupos que me olham com um pouco de curiosidade, porém, sempre muito discretamente, como devem fazer as pessoas refinadas e de boa educação chinesa. Um lama desaparece e ficamos aguardando na antecâmara da Sala do Conselho dos Doze. O lama retoma e se afasta para me deixar passar. Ele me murmura na passagem para não esquecer os ritos da etiqueta tibetana. Preparo a faixa de felicidade e os presentes que levei. Eis que agora estou diante do “aeropagem” sagrado, começando os ritos de prosternação segundo a grande etiqueta da corte do Potala. Devendo inclinar-me, fechar os olhos e pronunciar palavras de paz e de homenagem, a princípio nada distingo. O ar me parece singularmente fresco, e a sala ressoa estranhamente às minhas palavras. Fico, enfim, imóvel no meio da peça, e vejo. É uma nave redonda e sem janela. Lâmpadas coloridas clareiam as paredes inteiramente douradas. O teto é um imenso mosaico chinês, representando as dez regiões do espaço segundo a astrologia tibetana. Quanto ao solo, figuras mágicas ali estão desenhadas, de formas muito complicadas e algumas me são ainda absolutamente desconhecidas. Em roda da sala corre um divã baixo, repleto de almofadas. Os doze chefes dos “Templos sem Portas”, os “Nom Kan”, estão sentados, agachados segundo a moda única da Ásia e, imóveis, me olham.

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No santuário do Deus vivo

Cada um deles porta uma insígnia e uma roupa particular. Diante deles, pequenas mesas chinesas estão abarrotadas de documentos, de rolos, de escritos. O chefe está no meio do arco do círculo que eles formam e é ele então que me interroga. “... Conhecemos meu filho, o caminho que vos trouxe até aqui. Mas antes de vos introduzir no círculo de nossos mistérios, é necessário que o vejamos, que o conheçamos, que o ouçamos...” Observei as doze fisionomias: elas assemelhavam-se àquela do Umzé de Chumi-Jadsa, meu Venerado Mestre. A mesma figura barbeada e delgada, com o nariz reto e fino da raça ariana; o mesmo porte eclesiástico e sempre essa imobilidade que observei na casa dos velhos lamas adquirida, sem dúvida, pelas posturas de meditação. Isto os torna parecidos aos Budas de pedra dos templos... Enfim, um ar de alta nobreza, de dignidade e calma voluntária; são homens que comandam milhões de homens e que conversam com os deuses, a sós, nos santuários... “... Conhecemos um pouco vossas doutrinas do Ocidente. Estamos surpresos que tenhais vindo à nossa casa, que tanto desprezais, procurar a Paz e a Luz... Parece-nos oportuno interrogar-vos sobre vossos conhecimentos adquiridos antes de deixar-vos ir mais longe...” Para minha grande estupefação, sem tirar os olhos de cima de mim, o Mestre dos doze chefes do Tibete contou minha vida passada, minhas pesquisas, meus estudos. Ele me atormentou como talvez eu jamais ousasse fazer comigo mesmo e isto foi terrificante, esse requisitório imparcial e severo que dissecou meu coração e minha alma. Esse homem tinha um conhecimento de meu pensamento que era realmente sobrenatural; meus desejos secretos, minhas volições e minhas inclinações secretas, que eu não havia talvez jamais confessado a mim mesmo, estavam expostos nesse pretório; não senti nenhuma tortura; esses homens imóveis que escutavam o

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No santuário do Deus vivo

Chefe, esses Juízes, não pareciam ter uma curiosidade doentia. À medida que se desenrolava essa estranha confissão, onde os papéis estavam trocados, eu me sentia mais forte, mais livre. Minha vida passada desaparecia em um turbilhão confuso, em um esquecimento que eu sentia definitivo... Agora o Chefe falava de meus estudos ocidentais; citava os autores e os filósofos que eu havia conhecido e escutado e dos quais as idéias me haviam influenciado. Ouvir nessa estranha sala, em Lhassa, no coração da Ásia, ressoar os nomes de Kant, de Bergson, de Freud parecia-me ridículo e incompreensível. Sentia o abismo entre o pensamento humano e o pensamento místico, entre os homens e os deuses. Entre nossas disputas de escolas e a síntese magnífica do Oriente, eu media a absoluta diferença e a impossível união. Aquilo que o jovem Ocidente pode afirmar, o velho Oriente medita há séculos sob diferentes fórmulas. Nossas mais recentes teorias, nossas descobertas mais venturosas estão consignadas lá nos manuscritos dos mosteiros. Isso eu compreendi e me inclinei diante da inelutável conclusão... O Chefe do Conselho terminou a exposição de minha vida. Fui moralmente dissecado durante duas horas por este homem cujos olhos brilhantes no rosto bronzeado não desviaram um segundo dos meus. Faz-se um silêncio que nenhum ruído interrompe; os doze “Nom Kan” fecharam os olhos e, de repente, experimento um embaraço diante desses homens imóveis que, sinto, se comunicam com alguma coisa... Parece-me ver, acima deles, como numa nuvem, a mesma face severa da Gruta do Buda, mas, talvez seja apenas uma alucinação dos meus sentidos enervados. Uma intensa atmosfera de mistério reina nesta estranha sala, diante desses chefes de longínquas regiões onde reina o Lamaísmo... E os minutos passam intermináveis, neste silêncio que, para mim, logo torna- se intolerável. Agora clarões parecem atravessar a sala e, assim como notei nas grandes cerimônias lamaicas dos templos tibetanos, o ar se carrega de uma espécie de eletricidade que passa sobre a pele como 73


No santuário do Deus vivo

eflúvios crepitantes, faíscas; e isto me irrita dolorosamente os nervos. Um clarão parece obscurecer o ar entre mim e os doze lamas, os quais só percebo através de uma espécie de sombra indecisa e cinza... Mas afinal que desejam estes tibetanos, estes Lamas imóveis, olhos transtornados sob as pálpebras semi cerradas? Não pronunciei uma só palavra após minhas saudações ritualísticas e, no entanto, eles me conhecem mais que eu mesmo! Eles estão num mundo onde não os posso acompanhar... um mundo onde as almas dos homens lêem nas almas dos outros homens, seus irmãos, como num livro aberto... Agora ouço um sino tilintar na bruma cinza e dourada que me envolve; é obsedante este sino; não vejo mais nada à minha volta; há tanta névoa na sala! Meus pensamentos se desordenam; meu cérebro vai certamente estourar, pois, tudo isso é, enfim, terrificante. E o medo me toma, aquele que faz gritar, na noite, diante da sombra mais frágil que de costume, onde “alguma coisa” está lá. Lembro-me de meus antigos medos; aqueles que tive, por exemplo, na China, no tempo da Revolução, quando fui lançado num poço nos arredores de Pao-Ning, com outros chineses massacrados e onde permaneci por quatro dias, imobilizado por ferimentos; ouvia então as carnes e os músculos dos cadáveres que rangiam na sombra do jazigo... Quero fugir, pois não sou mais senhor de mim mesmo. Uma força terrível, implacável, está aqui, à minha volta. Tenho a sensação de ser arrastado para o enorme eixo de uma imensa roda que gira vertiginosamente... Estou esmagado, aniquilado... O sino soa sem interrupção, lentamente, em um ritmo que parece ser aquele dos batimentos do meu coração, de minha vida inteira. O eixo gira inexoravelmente, sempre, no mesmo ritmo vivo do sino. Que suplício horrível! ... Depois, enfim, a queda num buraco negro, no vazio, como uma massa...

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Capítulo XII A DECISÃO DO POTALA Levantei-me, pela manhã, muito tarde, a cabeça pesada. Estava num pequeno quarto onde, por uma janela estreita, o sol penetrava indiretamente. Não tinha nenhuma lembrança da sequência de meu interrogatório diante do Grande Conselho tibetano e, aliás, me foi impossível conhecer o fim da estranha entrevista da véspera; é um segredo que nunca me foi revelado, pois, o silêncio sobre as deliberações dos doze é bem guardado. Soube que estava enfim aceito para continuar minha Iniciação, mas com a condição de prestar o solene juramento de não mais sair do Tibete. Foi o que me anunciou um Lama, curvado pela idade, do qual o semblante imutável era marcado pela nobreza e dignidade. - “Bem entendido, acrescenta ele, vós sois ainda livre para retomar à vossa nação; vós podeis deixar a terra sagrada. Pois só vos ensinaram o sentido alegórico e mágico de nossas doutrinas e de nossos escritos sagrados, que são as primeiras e as mais inferiores das interpretações possíveis. Nossos mais poderosos segredos e nossas sublimes luzes, vós ignorais ainda. Mas os Nom Kan’ (benditos sejam!) só podem vos permitir o acesso a esses altos graus se vos tornardes um de nós, para sempre... Deram-me a missão de vos guiar para nossos mistérios superiores, para a Paz inefável dos Budas. Desta forma, serei o intermediário entre o Conselho do DalaiLama e vós... Para o momento reflitais sobre tudo isso e dê-me vossa resposta neste fim de dia, ao cair da noite...” E o velho Lama se retirou, docemente, sorrindo, na sombra 75


A decisão do Potala

discreta do palácio monástico. Já esperava isso há muito tempo. Os ocidentais suscitaram desconfiança demais para não suspeitarem de todos os que vão ao Oriente. Quantas vezes encontrei nas minhas marchas rumo aos templos escondidos nas neves, esta suspeita, esta crença! Considero-me, entretanto, privilegiado dos deuses, por ter podido percorrer tal caminho desde minha chegada ao Tibete... Sabia que após ter me engajado, deveria permanecer aqui para sempre, pois, as ordens do Potala são expressamente ouvidas e executadas. Aprendi mais tarde o enorme poder político e social deste último Centro de Iluminação pura que reina sobre toda a Ásia, até os confins das ilhas da Malásia e, certamente, ainda mais além. Portanto, porque abandonar esta vida totalmente interior e de pura busca espiritual? Retornar às cidades de fumaça, de céu cinzento, de nevoeiro, retomar à confusão das multidões e das raças, a pisotear na lama?... Rever o ódio e a miséria? Assistir, impotente, às injustiças e aos crimes, ao lento desenrolar do Destino trágico desses tempos de sombra e de miséria, necessário talvez, pois é a própria natureza das coisas, mas envenenando toda energia espiritual e todo esforço no sentido da paz da Alma... Sofrer? Lutar? No momento em que os últimos raios amarelos e violetas, sempre magníficos na esplêndida claridade do céu, vieram iluminar as cúpulas de ouro do palácio da cidade de Deus e que a porta deixou entrar o mesmo velho Lama, que sai sem dúvida do Templo e vindo procurar minha resposta, não fiz mais que tomar a postura sagrada do "Buda renunciando ao mundo”, e o velho Lama compreendeu. Sem nenhuma palavra, ele inclinou sua cabeça e permaneceu em silêncio ao meu lado... E a sombra invadiu a sala, pois o sol desaparecera definitivamente atrás dos picos imaculados do oeste, quando de todos os mosteiros da Ásia se eleva a mesma nota melancólica do apelo à prece, na sombra da noite...

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Capítulo XIII NA CIDADE DOS DEUSES O ensinamento lamaico é expresso por uma tradição oral apoiada nos textos sagrados. Este ensinamento é feito nos mosteiros, “os templos sem porta”, como são chamados na China Ocidental. Sobre os flancos do Potala, encontram-se numerosos mosteiros tendo um Lama como chefe de escola filosófica e um grupo mais ou menos importante de noviços. Segui o ensinamento do velho Lama que foi nomeado para me guiar. Este ensinamento é totalmente diferente daquele que costumamos ver no Ocidente. Conforme a qualidade dos ouvintes, o ensino do Lama é mais ou menos completo, aumentando ou omitindo a reflexão crítica dos textos e certas doutrinas e certas fórmulas de meditações são dadas somente de boca a ouvido, em lugares desertos. Assim, para mim, o lento trabalho de transformação mental continuou. Juntei-me ao grupo dos discípulos do meu Lama, grupo que era chamado “o coração do Buda compadecido”, pois, este era um dos temas favoritos de nosso Mestre. Aqui não era mais questão de magia, nem de ioga: exercícios espirituais, meditações sobre figuras e textos escolhidos e que purificam cada vez mais o mental dos discípulos: eis nossos exercícios diários. Eis, por exemplo, uma de nossas lições, comentário de um livro sagrado, de um Upanishad traduzido em tibetano. O texto dizia mais ou menos isto: “Aquele que diz: “Eu sou Brahma”, ele torna-se Brahma. E a este homem, os próprios Deuses obedecem e não podem fazer 77


Na cidade dos deuses

este homem desaparecer, pois, ele é sua própria substância, sua alma... Mas aquele que adora uma Divindade e declara: esta divindade está no alto, e eu estou em baixo, este verdadeiramente não sabe. Ele é como uma besta alimentada pelos Deuses e engordada para este uso. Cada pessoa, cada adorador alimenta seu deus. Também um animal arrebatado da tropa não é agradável aos Deuses; e se todos são roubados? é por isso que os Deuses não gostam que os homens saibam isso...” E magistralmente o Lama nos interpretava o texto. Mostrava-nos os deuses da natureza, seus trabalhos, seus poderes; esses deuses que são os gênios dos vulcões, dos terremotos, das estações do ano, dos astros, dos rios, dos cataclismos naturais de toda sorte. São eles que trazem o raio e executam seus efeitos bizarros; são os demônios do fogo central da terra. Esses deuses escravizam os homens pelo terror e estes últimos, na sua ignorância, os chamam de “o destino cego das leis naturais”. Depois, ele falou dos deuses privados, dos deuses individuais, desses que atormentam alguns, que animam os profetas e criam as correntes místicas da humanidade. São os deuses de rapina, seres que vivem do sangue da alma dos que os adoram e dos quais é necessário libertar-se. Os panteões asiáticos estão repletos desses deuses que são os ídolos das multidões. Estas lhes trazem alimento tanto pela adoração como pelas oferendas. E isto é ainda necessário, porque essas forças assim canalizadas são armas poderosas nas mãos dos que os dirigem convenientemente. Aprendi assim a dominar os deuses, todos os deuses, esses que escravizam a alma dos povos e que escondem, debaixo de uniões impossíveis e místicos ardores, um vampirismo horrível. Os deuses, todos os deuses vivem de nossa força física e o iogue, o Liberto, deve começar a se livrar desse abraço titânico... E as palavras graves continuavam, revelando horríveis 78


Na cidade dos deuses

mistérios... Foi-me dito que ascetas, iogues, não sabem o segredo da existência dos deuses, porque é um mistério que os Mestres tibetanos comunicam somente ao pequeno círculo escolhido de seus discípulos. Às vezes, após uma jornada de estudos, meu Mestre me levava consigo para uma conversa solitária. Descíamos a colina do Potala e vagávamos um pouco ao acaso, entre os arvoredos dos imensos parques que circundam a cidade e os mosteiros. Então, mais intimamente, o sábio Lama me ensinava a Ciência eterna. Como um pai ensina a vida dos antepassados de sua família, ele sempre me contava a vida e a lenda dos antigos Lamas, dos Mestres venerados. Era Lao-Tseu, deixando a China, no fim de sua vida, e enviando ao oficial de fronteira sua última mensagem, antes de encerrar-se num dos mosteiros solitários do alto Tibete oriental, pátria espiritual dos que transpuseram a montanha da sagrada Ciência. Eram também antepassados desconhecidos que podemos confundir com os missionários Nestorianos dos tempos primitivos, e que vieram sem dúvida trazer algumas de suas doutrinas ao Tibete; esses missionários são os Sábios de nariz reto e pele branca dos quais alguns templos conservaram as estátuas e, parece, os escritos. Eram, enfim, os enviados da Índia, os budistas malfeitores, Padma Sambhava , Thonmi Sambhota, Shanta Rakchita e, enfim, o divino Tsong-kapa, o reformador, o inspirado do Céu. Pelo exemplo desses Sábios, meu Lama me indica a voz a seguir, o caminho da renúncia e da divina Paz. Porque agora é o período da realização de tudo o que aprendi desde minha chegada ao Tibete. Há um fenômeno que me foi confirmado depois: ao contato com um Ser espiritual que chegou à iluminação, todos os que dele se aproximam, mesmo os mais grosseiros, os mais indiferentes, os menos evoluídos no caminho do Espírito, sentem a força divina, a potente irradiação do Lama e tornam-se melhores, por um tempo talvez, e 79


Na cidade dos deuses

sem porvir algumas vezes... Mas no fogo irradiante do Iniciado, ao contato com o poder de sua espiritual idade, o espírito mais grosseiro irradia por sua vez, temporariamente, como um frio metal ao contato de uma fornalha. E assim os discípulos do Lama benfazejo meditam, compreendem e avançam na estreita vereda. Há, através do mundo, uma secreta correspondência de símbolos e de ensinamentos esotéricos; lembro-me dos centros iniciáticos árabes; chineses e, em particular, taoístas; são as mesmas maneiras de meditar o Caminho do Ser no Invariável Meio. É a mesma tradição primitiva que ainda irradia na Ásia e da qual a Luz é cuidadosamente conservada nos centros espirituais da China, do Tibete e da Índia.

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Capítulo XIV EVOCAÇÃO DO DRAGÃO No ensinamento que recebo agora, não se trata mais de deuses nem de magia, os quais deixamos aos Lamas feiticeiros. Há certas verdades de ordem natural e física que os Lamas têm, entretanto, que provar a seus discípulos. Não tenho o direito de dizer muito sobre isso; a vida do Universo é toda de complexidade e de encadeamentos obscuros. Veio um tempo em que meu Lama nos falou do Dragão, imagem da Vida, do Verbo subindo e descendo as espiras das múltiplas manifestações do Cosmos, como o dragão chinês sobe dos pântanos lodosos para desaparecer nas nuvens. Nessa ocasião, lembro-me de um verso de um livro chinês que ele nos citou e do qual a profundidade me tocou: “... No teu lado esquerdo, o Dragão te morderá e por esta ferida Deus penetrará em ti; a voz, sem a emissão dos sons; a compreensão, sem o objeto; a visão, sem os olhos, eis aí as gotas de sangue da mordedura. Deste modo teu pensamento será Seu pensamento e teu sangue o Seu e vos sereis unidos no Céu...” Palavras profundas! E nosso Mestre nos comentou o grandioso simbolismo do Dragão sagrado, originário da longínqua China... Mas, nessa época, havia as festas do Dragão e havia grandes divertimentos em Lhassa durante as festas religiosas. Nosso Lama nos disse que nessas ocasiões os Superiores de diversos mosteiros da região se reuniam na cidade santa e procediam à evocação do Dragão Celeste. Ele mesmo deveria ir ao templo do Potala durante alguns dias e nos deu alguns exercícios para nos ocuparmos durante sua ausência. 81


Evocação do dragão

De passagem a Lhassa e indo ter com mercadores chineses no Tibete Ocidental, chegou um grande amigo de nosso Lama, um religioso taoísta, um Phutuy. Eles haviam se encontrado em algum lugar do imenso continente asiático. Esse religioso permaneceu durante as festas e meu Mestre sabendo do meu conhecimento do chinês, apresentou-me ao taoísta. Vivi, assim, alguns dias com o Phutuy e, graças à minha situação especial de discípulo de um Lama venerado de Lhassa, aprendi muitas coisas sobre o esoterismo e as sociedades secretas chinesas; mais talvez que nenhum outro europeu jamais conheceu. Era um velho enrugado e pequeno, de ar severo e distante. De uma polidez de boa casta, que já não se encontra mais neste mundo, mesmo na jovem China; as longas meditações e os trabalhos austeros o haviam afinado, adelgado; sua cabeça estava inteiramente raspada. Os discípulos que o acompanhavam tinham para com ele um cuidado todo especial, e se ocupavam de sua pessoa como os filhos de um pai amado. Sempre ricamente vestido, com a cabeça coberta com um barrete de seda negra, ornado com magníficos diamantes, o religioso chinês lançava sobre as coisas e as pessoas um olhar ausente e como que velado por um sonho sem fim. Os Phutuy estão acima dos Tsongsang, aqueles que ensinam e iniciam os jovens discípulos. Os Phutuy são os ascetas, os solitários espirituais nos mosteiros fechados onde não se ensina mais e onde se medita sempre. A ciência suprema é adquirida então, por eles próprios, na solidão absoluta. O Phutuy me disse que permaneceu por doze anos em um mosteiro do norte da China, sem falar nem ler uma única obra. Tendo então atingido a iluminação, e satisfeito enfim com o resultado obtido, ele entrou na vida política. Mistério da vida religiosa asiática, sempre incompreensível aos nossos raciocínios ocidentais!... Os discípulos que o cuidavam e o acompanhavam passo a passo não recebiam nenhum ensinamento; mas eles viviam na 82


Evocação do dragão

atmosfera espiritual do Asceta e isto lhes era suficiente, segundo as influências ocultas das quais já falei anteriormente. Falei a ele da festa do Dragão e lhe fiz algumas perguntas a esse respeito. Ele me confirmou a existência do Dragão terrestre, imagem invertida do Dragão celeste e que reside no meio dos espíritos infernais, no centro da terra. Parece que na China uma das provas que é dada ao discípulo consiste em ir combater sozinho o dragão infernal. Enfim, no decurso de nossas conversações, o Phutuy me afirmou que ele tinha o poder de se transportar junto a esse Dragão e de transportar também aqueles que o desejassem fazê-lo. Ele julgava, no entanto, que era magia e isto não o interessava. Desejando ter uma significativa experiência do poder dos Iniciados chineses, pedi a um Lama de meus amigos de solicitá-lo ao Religioso, não ousando, tendo em vista meu grau inferior, fazer eu mesmo. Houve algumas reticências; enfim, após uma decisiva conversação, o Phutuy nos prometeu formalmente, ao Lama e a mim, de se esforçar, conforme os ritos da alta Magia chinesa, para nos fazer “descer” na morada do Dragão... A experiência seria numa pequena capela do Potala, que o Phutuy conhecia particularmente. Ela era toda vermelha e ouro e as eternas lamparinas à manteiga clareavam somente as paredes da pequena peça, sem janelas. Um enorme biombo chinês estava dobrado em um canto e eu me dei conta que esta capela parecia mais particularmente destinada a uma divindade de origem chinesa. Os ideogramas bordados sobre as três ou quatro bandeiras eram chineses. Sobre o altar estava o jovem Deus Thap'kieph, o Buda infante, saindo do Loto do Mundo, este representado por quatro figuras ajoelhadas, os Thieu. Em volta, as estátuas de Han-Kha-Dieph, dos Pho-huc, imagens da Sabedoria, das “Omthé”, imagens dos libertos e, enfim, os quatro “guardiões do umbral”, da ciência esotérica chinesa; estes 83


Evocação do dragão

últimos nos quatro cantos do mundo velam imóveis e carrancudos, para afastar o imprudente que ouse se aventurar sem guia e sem proteção no caminho sagrado. E tudo isso dava uma impressão de permanente mistério e de sombria magia chinesa conveniente na pequena capela do Potala de Lhassa. Logo o Phutuy chega, com o mesmo costume da véspera, com seus instrumentos litúrgicos. Ele deu uma batida de gongo e começou as preces e as adorações às santas personagens. Exprimindo-se em chinês antigo, com entonações especiais, foi-me quase impossível de segui-lo. Só notei os gestos ritualísticos. Ele ofereceu grãos de arroz e de flores, depois, após alguns instantes de silêncio, ele me pediu, em tibetano, que eu me acocorasse com o Lama que nos acompanhava sobre Uf11a almofada que ele havia trazido. A cena era fantástica: o jovem Deus de ouro sorria nas luzes incertas das lâmpadas e um odor pesado impregnou a atmosfera da capela sagrada. O Phutuy traçou com uma espécie de gládio afiado, rapidamente, um círculo à nossa volta e jogou um punhado de perfumes em um enorme incensário. O pó crepitou no silêncio do aposento. Então se passou algo inconcebível. Imediatamente e sem nenhuma transição, as paredes e o altar desapareceram aos meus olhos; pareceu-me mergulhar a uma velocidade vertiginosa dentro do solo e senti nitidamente minha respiração cortada pela translação vertical de meu corpo. Caí realmente num abismo... senti minha garganta se contrair e procurei me pendurar em alguma coisa, mas, diante dos meus olhos uma sombra espessa agitou- se, com uma impressão de frescor úmido, fétido, mofo. Procurei meu companheiro, o Lama, e o vi ao meu lado, o corpo contraído de pavor, a cabeça escondida num lado de sua roupa amarela... Diante de nós, direito, luminoso numa auréola de fogo, o Mágico chinês, os olhos fechados, parecia dirigir nossa queda 84


Evocação do dragão

comum... Quanto tempo durou esta descida no abismo? Eu não sei. Mas os minutos foram longos, nesta corrida espantosa ao seio do abismo. O fedor e a umidade aumentaram; penso ver clarões, formas fosforescentes, coisas esbranquiçadas moverem-se lentamente na sombra cheia d'água. Um frio glacial caiu sobre meus ombros e eu tremi... De repente, subiu um clarão e um espetáculo terrível se ofereceu aos nossos olhos. Diante de nós, em uma imensa caverna, toda gotejando água e gelo, cloaca de lama, um enorme monstro estava alongado, besta de pesadelo e de apocalipse. Era horrível e terrificante. Ao meu lado o Lama estava curvado em dois, sobre si mesmo, as mãos crispadas em uma derradeira convulsão, a face serosa. Num sonho, me pareceu que o monstro, à nossa aproximação, agitou-se pesada mente. O mágico chinês o ameaçou com seu gládio e um estrondo surdo ressoou no horrível covil. A carne do Dragão me pareceu agitada por tremores convulsivos. O que era esse monstro? Era ele um sonho, um pesadelo, um símbolo? Jamais o soube. Minha carne estava gelada, meus nervos ao extremo e perdi a consciência... Recobrei os sentidos na sombria capela. O Lama estava desacordado ao meu lado... Na sombra, o Phutuy continuava impassível a salmodiar as invocações chinesas ao jovem Deus de ouro, ao Thap'kieph, o Buda infante, saindo do Loto do Mundo, representado pelas quatro figuras ajoelhadas, os Thieu sagrados da China misteriosa...

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Capítulo XV O ENVIADO DO MESTRE DA TERRA “... Mas logo... espera ainda... uma, duas, três luas... saberás; verás a bela Luz da terra...” As palavras do Oráculo do Deus encarnado voltam à minha lembrança. Desde esse dia, contra minha vontade, conto os meses lunares, os Devas que os tibetanos designam também pelos nomes dos animais cíclicos: o rato, o boi, o tigre, a lebre, o dragão... Logo passaram quatro luas e no asilo silencioso e calmo onde moro, nenhum acontecimento, nenhuma distração vem romper a meditação dos Sábios. As únicas novidades são a chegada de uma embaixada de algum mosteiro afastado, uma peregrinação de piedosos Mongóis, vestidos com pele de cordeiro e cobertos de pelica. Felizes por chegar bem, sem obstáculos, eles contam suas viagens aos Lamas que os vieram acolher. Deste modo soube das cenas de atrocidade da Mongólia do Norte sob a invasão das armadas vermelhas; os mosteiros pilhados e queimados, as estátuas de madeiras preciosas, os antigos ídolos, destruídos e despedaçados. Parece também que o Bogdo-Khan de Urga anda fugindo por causa das batalhas e invasões chinesas e moscovitas. Essas conversações são ouvidas e anotadas, pois, Lhassa tem em mãos alguns filhos, possui algumas orelhas, tanto ao Sul como no Norte, que poderiam talvez um dia espantar Moscou ou o Bureau Internacional. Entendo agora as razões de ser de certas peregrinações, de certas embaixadas, de certos mosteiros; mas não direi mais nada sobre isto, pois, não quero trair meus amigos e meus Mestres. Haverá surpresas um dia, no Oriente, e nas nações européias ocupando talvez, atualmente, o papel de vítimas e de simples 87


O enviado do Mestre na Terra

instrumentos entre os dedos de longas unhas fortes de certos Lamas. O amarelo conhece o branco e, rápido, aprende a apreciá-la a fim de um dia se servir disso. Assim, as longas récitas singelas dos peregrinos rompem a monotonia dos austeros trabalhos do mosteiro. A quarta lua termina. Meu Mestre inicia-me na Metafísica lamaica conforme as regras imutáveis da Tradição. São as fórmulas sagradas, as chaves abrindo os textos dos escritos sagrados, aliás, sem isso, quase incompreensíveis. Essas fórmulas podem se transformar em figuras geométricas servindo então para certos exercícios de meditação; isso é da competência da mística tântrica, que eu havia já estudado anteriormente. Meu Mestre nos diz uma tarde, que logo um acontecimento importante iria se passar. Uma vez por ano, em épocas calculadas conforme certas leis ocultas, os mosteiros do Tibete fecham suas portas aos curiosos e aos peregrinos para dar lugar a misteriosas cerimônias. Isso eu sabia por minhas anteriores viagens à China. Mas minha situação era diferente naquele momento. O anúncio foi feito, a toque de trombetas e de conchas, de não de aproximar do mosteiro a menos de uma determinada distância; logo as portas das celas dos Lamas foram cerradas, cada monge rezando e meditando em sua própria cela. Junto do meu Iniciador, aprendo os laços secretos entre a doutrina filosófica e a constituição política do Tibete. Os três aspectos da Universal Ciência: a Ciência Teúrgica, a Ciência Espiritual e a Ciência Física e Material são representadas pelos três centros de forças que dominam o Tibete com seu esmagador esplendor e com seu formidável poder; o Trashi-Lama, que comanda os Deuses e os Demônios; que acende as chamas de ouro diante das estátuas dos ancestrais somente com seu poder mágico; o DalaiLama que reflete a pura espiritualidade, a metafísica calma e luminosa da Ásia; o Bogdo-khan, o príncipe da Mongólia do Norte, possante influência guerreira e vigiando as sociedades militares e secretas de toda a Ásia. Compreendo então as razões dos meus estágios nas minhas 88


O enviado do Mestre na Terra

diversas passagens no Tibete e a Unidade oculta desta marcha ascendente; passei por três mosteiros que eram, na sua maneira de ser, os reflexos dos três poderes da Organização mágica do Tibete; aprendi, assim, as três ciências do Saber Universal nos lugares onde elas eram especialmente ensinadas. -“E agora, meu Filho”, continuou o velho Lama, no silêncio de todas as coisas à nossa volta, “há um mistério bem mais profundo do que tudo quanto já vos revelei. Esta organização religiosa que te descrevi é o próprio reflexo material, de uma organização mais perfeita, por sua alta espiritualidade, a qual permanece ainda em nossa Terra. Eis aí está o grande mistério. Sabei que reina sobre toda a Terra e muito acima do Lama dos Lamas, Aquele diante do qual o próprio TrashiLama é o primeiro a curvar a cabeça, Aquele que chamamos de Senhor dos três Mundos (MAITRI). Seu reino terrestre se acha oculto e nós da “Terra das Neves” somos Seu Povo. Seu reino é para nós a terra prometida, Napamaka, e por isso, trazemos no nosso coração a nostalgia dessa terra de Paz e de Luz. Será ali que um dia acabaremos, todos nós, diante dos invasores bárbaros e em tempos próximos, pois, os Oráculos assim expressam. Os mais Santos dentre nós já partiram para Napamaka, nos Mosteiros de Sabedoria do Senhor dos Três Mundos. Mas um dia, para salvar a Eterna Tradição da possível profanação, fugiremos diante dos invasores do Norte e do Sul e esconderemos de novo nossos escritos e nossa Doutrina. Que importa tudo isso ao Venerável, à “Poderosa Jóia do Celestial!” Para Ele um dia é como um ciclo para nós. Imutável, Ele reina sobre o coração e a alma de todas as criaturas. Ele conhece nossos pensamentos mais secretos e ajuda os defensores da Paz e da Justiça. Ele não esteve sempre em Napamaka. A Tradição nos diz que antes da gloriosa dinastia de Lhassa, antes do sábio Passepa, antes de Tsongkhapa, o Senhor Onipotente reinava no Ocidente, sobre uma Montanha cercada de grandes florestas, no País que habitam hoje os Pilineu-ghen (as pessoas de fora, os estrangeiros em geral). Por seus Filhos espirituais, Ele reinou sobre as quatro direções do 89


O enviado do Mestre na Terra

Mundo. Naquele tempo existia a Flor sobre a Svástika (ou cruz Jaina)... Porém os ciclos negros afastaram o Senh40r do Oeste e Ele veio ao Oriente, habitar entre nosso povo. Ele então suprimiu a Flor, e só a Svástika permaneceu, como símbolo do poder central da “Jóia do Céu”. Sua Onipotência nos protege, mas, as leis inexoráveis das coisas nos dominam e, diante dos ciclos sombrios, é preciso ocultar-se e esperar... Uma vez por ano, Ele dá suas instruções ao seu povo e aos povos da Ásia por um delegado de seu Reinado que vem de Lhassa; durante este período, toda a Ásia permanece em prece, pois o Senhor dos Três Mundos comunica-se com seu povo. Este momento é chegado. Estando em Lhassa, serás admitido na presença de seu Enviado e participarás da solene benção do mestre dos deuses e dos sábios...” E uma tarde, com efeito, as conchas sagradas, lugubremente, ao cair da noite, nos chamaram ao Templo principal do Potala, aquele que é encimado de uma cúpula de ouro maciço e onde as numerosas estátuas são repletas de jóias inestimáveis. Todos os monges dos mosteiros da Colina Santa estavam presentes. Para lá me dirigi com meu Mestre, não tendo o direito de estar só nos limites sagrados. A imensa sala fervilhava com os murmúrios de prece. Toda uma população de monges se encontrava reunida nesse lugar. À música sagrada, começavam os cantos graves que escondiam pesadamente os golpes de damarus. Perto dos imensos Budhas, no fundo da nave, sob um altar, diante de uma mesa sobrecarregada de documentos estava uma forma, inteiramente velada, e que dois serviçais pareciam proteger com grandes painéis laqueados, contra as influências invisíveis. Ao seu lado e em pé, com uma magnífica roupa amarela, rodeada com um cinto azul, a cabeça adornada com o grande toucado de cerimônia, estava um homem do qual o aspecto me tocou imediatamente. 90


O enviado do Mestre na Terra

Seus traços pareciam jovens e, no entanto, as têmporas estavam brancas. A tez era clara e pude facilmente distinguir um tipo caucasiano puro, sobressaindo no conjunto de semblantes bronzeados e enrugados que o rodeavam. Ele tinha uma postura de soberana nobreza; na majestade e calma de seus gestos ritualísticos, pois ele presidia a cerimônia, havia algo de nobre. Meu Mestre disse-me que a forma velada era o Dalai-Lama e o homem de costume amarelo era o enviado misterioso do Senhor da Terra. A cerimônia, de forma toda especial, e da qual me é proibido aqui contar, termina. Segundo os ritos tântricos, cada Monge acompanhado de seu Pai espiritual deve desfilar diante do trono pontifical para receber a benção. Observo o fervor dos Lamas aproximando-se do misterioso missionário. É quase com terror que eles se inclinam diante do poderoso Lama; tudo isto ocorre silenciosamente; os monges são recobertos sucessivamente por uma aba do manto amarelo e retomam para seus quartos para continuar sua meditação e suas preces. Aproximo-me lentamente do grupo dos poderosos Tulkus e dos Kampohs (aqueles que dirigem os outros monges em sua vida espiritual). Meu Lama me acompanha, pois segundo os ritos, sendo meu Iniciador, ele deve me apresentar; eu ainda não sou digno de pronunciar qualquer palavra em uma cerimônia desta importância... O olhar do Enviado misterioso do reino desconhecido se fixa sobre mim e eu sinto a intensa força que emana de seus olhos me atravessarem e procurar no mais profundo de mim mesmo. Ouço a voz grave perguntar ao meu Lama quem eu sou, eu homem Pilineu-Gheu, dos traços da raça que vive no Ocidente... Meu Mestre explica minha viagem e meus votos iniciáticos. Mas a forma velada, por sua vez, se agita sobre o trono de ouro maciço e questiona. Um servo inclina-se e fala docemente ao ouvido do Dalai91


O enviado do Mestre na Terra

Lama. Observo um fato estranho que me impressionou depois quando me lembrei desta cena: a voz estranhamente feminina que sai debaixo do véu... Não pedi explicações a ninguém sobre isso e sem dúvida jamais pedirei, pois isto seria a morte por minha pergunta indiscreta e profanadora... Lembro-me, como num sonho, das palavras do Lama com a grande roupa brilhante... “- Vá, Meu Filho, a benção do Mestre está sobre ti. Trabalhe e medite, pois tu foste chamado e tu serás, talvez, eleito... Vá, daqui a alguns meses, no Mosteiro do Lapché, nas Montanhas do Sul... nós te seguiremos e te guiaremos discípulo do sombrio Ocidente...”

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Capítulo XVI LENDAS E MISTÉRIOS DO TIBETE A decisão do Enviado foi logo conhecida e comentada no Potala e me parece que estou mais livre e menos vigiado. Permitem-me, no Templo, sentar entre os Gechés, aqueles que passaram o estado de simples thra-pas, (estudantes). Os noviços começam a se inclinar diante de mim como diante dos Lamas que ensinam... Meu Mestre conta, às vezes, as santas lendas que iluminam a vida religiosa desses países onde a história, tal como nós a concebemos, não existe; os orientais só retêm dos fatos passados o que pode ser de uma utilidade espiritual qualquer e colocam esses fatos em seu verdadeiro lugar nas leis humanas. Os grupos de raça ou de sistemas religiosos são individualizados em uma pessoa que representa esses grupos; assim, Indes, Manu, Rama... No Tibete a administração é unicamente a dos monges; as cidades são mosteiros no flanco de montanha, onde são feitas construções sólidas, com torreão e muralhas impenetráveis. Os tibetanos são piedosos e vivem uma vida impregnada da presença dos deuses; nada é mais comovente, de manhã, do que ver os lavradores, os pastores irem nos imensos campos que circundam suas moradas murmurando preces aos deuses e aos espíritos que os protegem. Com frequência encontrei mulheres dirigindo-se às torrentes nas montanhas e cantando juntas hinos religiosos de uma infinita tristeza... Vida estranha essa desse povo onde tudo fala do divino, as pedras as montanhas nevadas os rios torrenciais e as árvores perfumadas... E são as lendas que me conta o Lama à noite, à luz das lâmpadas de manteiga. 93


Lendas e mistérios do Tibete

Nesta hora, geralmente, o vento se levantou e sopra em tempestade. É um contínuo clamor que penetra por toda a parte e faz tudo vibrar; os muros de madeira ou de pedra, os tetos, as grandes bandeiras ouro e vermelho que estão no interior dos templos e que revestem as paredes das salas de orações. Uma vida fantástica parece animar as velhas moradas asiáticas e tudo canta, grita, chora, range até as impassíveis estátuas que as oscilações das paredes fazem, às vezes, agitar no seu equilíbrio instável, o que lhes dá movimentos de bruscos avanços e repentinos recuos... É a lenda do mosteiro da “Meditação Esotérica”, situado em Samadhing, onde se encontra o célebre templo da famosa deusa tibetana: Dordjé-Pamo, sobre uma das extremidades do lago sagrado Yamdro. A Deusa está encarnada no corpo da Superiora do convento (pois é sempre uma mulher que dirige esse convento misto) e, em consideração à qualidade desse Poder oculto, um grande cerimonial reina no Convento. A Deusa viva tem um terrível dever: ela não pode nunca deitar-se numa cama para repousar. De dia, sentada sobre o trono pontifical, ela pode cochilar e à noite, na longa noite gelada que envolve o mosteiro, ela deve orar, sempre, orar e meditar no templo, com duas religiosas que a sustentam e a acompanham em sua estranha devoção... Destino incompreensível desta mulher divinizada vivendo uma tal existência... Além disso, milagres acompanham essa poderosa Deusa encarnada. Dordjé-Pamo sendo uma deusa com cabeça de porca (por razões ocultas e simbólicas) possui o misterioso poder de se transformar, em certas circunstâncias, diante das religiosas e dos monges aterrorizados; gradualmente, diante de seus olhos, o rosto macilento da Abadessa resplandece; numa luz brilhante, a máscara atormentada da Deusa aparece como aquela dos seres com cabeça de animais do antigo Egito que eram eles também, símbolos ocultos da mesma Tradição sagrada, cuidadosamente conservada através dos tempos... Essas são as narrativas do Lama sobre o poderoso Teshu Lama 94


Lendas e mistérios do Tibete

no célebre mosteiro de Tashilhûmpa. São as narrativas do prodígio e do poder mágico que dominam as lendas desse povo. Confidenciaram-me certas histórias referentes às dinastias de Rama, o Divino, e os templos místicos e ocultos na Ásia onde seu culto ainda é seguido. Revelam-me o segredo dos vinte e dois templos do Himalaia e os mistérios que eles encerram. Templos ignorados dos viajantes, pois, não são mais que alguns edifícios na imensa Ásia, mas, templos venerados e temidos por mais de quatrocentos milhões de homens; os chefes espirituais da Ásia lá estão poderosos e ocultos. A lei da polaridade universal, a misteriosa lei dos princípios masculino e feminino comanda esses vinte e dois mosteiros; portanto, há somente onze superiores que se reúnem em, determinada época em Lhassa e que formam, com o chefe do Templo do Potala os doze Nom’Kan, diante dos quais eu tinha comparecido há alguns meses... Tenho, assim, a impressão de uma organização completa, racional, metódica que cobre todo o Oriente e o unifica espiritualmente e, com certeza, também politicamente, apesar das divergências secundárias de raça, credo e religião. Por trás dos símbolos, dos pagodes, dos bonzos ou dos lamas, existem os Mestres, os Gurus, os Nahldjorpas que dominam a Ásia, Deuses vivos encarnados, detentores de extraordinários segredos e de uma Sabedoria humana que já não existe... Já tinha tido esta impressão, antigamente, em minhas viagens à África do Norte (principalmente no Marrocos) e na Arábia do Sul, no Hedjaz e no Hasyr, diante do poder espiritual do Islã. Apesar das raças, das nacionalidades, das situações políticas, o fiel discípulo de Maomé é, antes de tudo, maometano, depois em seguida, francês, egípcio, turco... Existem sociedades secretas que reúnem entre si, pela autoridade de chefes em geral desconhecidos, a multidão dos que vivem sob o Crescente. Uma palavra, um sinal e talvez a velha Europa, estupefata, veria uma estranha armada levantar-se em todo o Oriente próximo... Conforme os encontros que eu tivera, e com as narrativas 95


Lendas e mistérios do Tibete

que, às vezes eu surpreendera, acredito que os chefes ocultos do Islã e da Ásia se conhecem entre si. O que salvou até aqui as civilizações ocidentais das desordens, é o fato de que a atividade desses chefes ocultos é orientada espiritualmente e que certas contingências que teriam logo agitado o Ocidente tenham sido apreciadas pelo seu real valor no Oriente, onde tudo o que é material é justamente considerado como transitório, efêmero e ilusório... O objetivo dos dois pensamentos, do Oriente e do Ocidente, sendo opostos, espiritual para um e material para o outro, foi o que permitiu essa estranha usurpação de um e essa não menos estranha abnegação e passividade do outro. É bem possível que, certas partes do Oriente, tendo provado mais completamente o “peixe” ocidental e tendo adquirido assim os mesmos apetites de conquistas individualistas, tenha tido um violento sobressalto do Oriental “materializado”. Talvez o Japão possa servir de ilustração à minha afirmação... Falo de tudo isso com os Lamas de Lhassa e constato que se os Tibetanos não são ignorantes a respeito do Ocidente, os condutores desse povo da Ásia estão bem ao corrente da política e da economia ocidentais. Vistas das calmas planícies do Tibete, muitas questões se resolvem facilmente e emaranhadas complicações se reduzem a pouca coisa na paz e no desapego que reinam nos mosteiros budistas. Porquanto, segundo os ensinamentos de nosso Lama, existem as correntes misteriosas da humanidade, as “Influências errantes” da meta física Amarela; os povos que não têm mais condutores esclarecidos, Sábios para guiá-los, são submetidos cegamente a essas correntes, a essas tempestades invisíveis e os deuses de rapina, aqueles que vivem da carne e do sangue dos povos, os deuses que impulsionam à guerra, ao domínio, à escravidão, os inimigos misteriosos da humanidade se apressam em preparar seus festins demoníacos... E eu aprendo muitas coisas a esse respeito na pequena cela do palácio de Lhassa, junto de nosso venerável Lama. Conheci e meditei, em verdade, espantosos mistérios sobre a vida dos povos e das incríveis encarnações dos deuses da guerra, dos Gegs, e sobre tudo do negro Dha-lha, quando os astros e os ciclos lhe permitem agir. 96


Capítulo XVII A ÚLTIMA ETAPA Novamente a lenta caravana dos iaques e dos cavalos. Novamente as monótonas etapas, as discussões e as intermináveis lengalengas nas pousadas, à noite, após o longo dia de caminhada. São as intermináveis marchas, hoje no deserto e nas planícies de areia e de pequenas lagunas de água estagnada, amanhã nos vales e planícies cultivados onde uma luxuriante vegetação alimenta os homens e os animais; às vezes atravessamos florestas misteriosas de zimbro e de pinhos, onde os enormes ramos de rosas e de anêmonas fazem manchas vivas. Sinto novamente esta impressão que dão as longas viagens através da Ásia, esta impressão de isolamento e de solidão... Terminei meu ciclo de estudos em Lhassa. Deixei meu Mestre; ele me deu sua benção e colocou no meu dedo os dois anéis ligados, símbolo da minha iniciação. Seu semblante impassível não traiu sequer um instante a emoção que talvez ele sentiu. Mas, quando da nossa partida, meu amado Lama pareceu-me tão miúdo, tão curvado pelas macerações e a velhice, tão abobadado na sua ampla capa amarela que senti nossa separação deveria ser longa. Nada transparecia no delicado semblante, de meu Pai espiritual, ao pé do qual permaneci longo tempo, na véspera da minha partida, e onde recebi preciosas instruções iniciáticas... Ao raiar do dia avistei o reflexo das cúpulas do palácio vermelho e ouro do Potala. A Cidade Santa despertava na bruma azulada da aurora e eu vi, assim, pela última vez, a cidade dos mistérios e do Buda vivo... A estrada segue em direção a Lapsché, rumo ao sul, em uma parte dos maciços da Santa Montanha, a Mãe, a Sacratíssima, a 97


A última etapa

Imaculada, o Chomolungo (nome tibetano do Himalaia). Uma embaixada religiosa de Lhassa e uma caravana chinesa do Yunnam se dirigem para o Tibete ocidental. Aproveitei-me disso para ir a Lapsché, minha última etapa, aquela que me destinou o misterioso enviado de Lhassa. Na longa caravana, há chineses e tibetanos, uns viajando para o comércio, outros em peregrinação. Os chineses encabeçam a longa fila e tagarelam ruidosamente. Falam de uma série interminável de aventuras comerciais onde quem fala é, evidentemente, quem fez um bom papel e que essa gente conta umas às outras para realçar seu prestígio. Após os longos silêncios dos mosteiros, tudo isso é fatigante. Eles me lembram a civilização da Europa e os negócios dos homens. Eles falam de Xangai, de Hong-Kong, de Kanton e dos estrangeiros que eles temem cada vez menos e que tentam roubar cada vez mais. Eclodiram greves na costa da China do sul, e as associações secretas da China, das quais todos os viajantes da caravana fazem mais ou menos parte, preparam as revoluções e as revoltas. Para mim é de novo o mau fermento, o odor insípido do Ocidente que volta com suas vãs agitações; essas pessoas que chegam de Xangai trazem consigo o veneno; é um sonho, um mau sonho que passa e que perturba a calma quietude de minha alma. Fujo dessas pessoas que falam e me misturo aos lamas que vêm de todo o lado: da região desértica das altas planícies do norte e das florestas do sul da China. Eles pertencem a diversas seitas tântricas e conversam de filosofia e de misteriosas experiências tântricas, ainda desconhecidas no Ocidente, que margeiam os domínios da loucura e da morte... Deixamos as grandes planícies cinzentas e os sombreados vales do Brahma-putra. Atravessamos imensas florestas e a atmosfera torna-se sufocante. Sucessivamente, gelado pelas correntes vindas dos picos nevados do sul, ou quente e úmido, o ar é irrespirável. 98


A última etapa

Nos aproximamos dos altos maciços que agora se desenham entre as nuvens. O vento da noite sopra e turbilhões de areia nos cegam. A marcha da caravana torna-se penosa; as dunas artificiais desabam sob os passos lentos dos iaques e nos distanciamos, formando uma longa serpente que se infiltra nas dunas e nas árvores, minúscula no meio das coisas gigantescas que nos dominam... Aproximamos-nos das margens do Bhongh-Chu; a região se povoa, pois o clima é mais clemente. Atravessamos imensos jardins de rosas e de arbustos com flores brancas e azuis; as borboletas, tão grandes como pequenos pássaros, atravessam a pista e formam coroas móveis e multicolores. Grous, patos, calhandras todos próximos não dão nenhuma atenção à nossa passagem. O Dalai-Lama proibiu formalmente a caça em todo o Tibete. Conforme o costume, paramos em todos os mosteiros para adorar os deuses protetores que aí residem e os Lamas, alguns mais outros menos venerados, que ali habitam. É, para mim, a ocasião de penetrar um pouco mais nos costumes religiosos desse país do mistério e que nenhum explorador pode ainda observar. Promovia, assim, o encontro de extraordinários personagens, verdadeiros mágicos de lendas, dos quais as narrativas e os milagres me espantavam, apesar de meu conhecimento do poder lamaico. Via Budas encarnados, dedicados às práticas tântricas, dos quais a existência era uma vida de mistérios e de magias... Ó Venerado Lama de Chekhar-Dzong, temido Gompt-Chen, vós que me haveis mostrado a Ciência dos Mandras do norte e deume a suprema honra de me oferecer, após libações aos temidos Deuses e Deusas, para beber o “Chang” sagrado na taça de crânio humano, a taça mística dos iniciados tântricos. Lembre-se... Vós me vestistes com a faixa negra e me fizestes imolar as poderosas Deusas; vós me comunicastes as palavras secretas da Imagem; no limiar da suprema Iniciação, vos peço que me abençoe do fundo do vosso mosteiro sombrio e temível; vós 99


A última etapa

haveis esgotado as possibilidades humanas e me mostrastes, a mim vivente, as trevas da morte... naquele momento que a noite derramou-se e que a deusa sagrada da noite iluminou o céu ... Lembre-se, Ó Lama temível, lembre-se... Seguimos o estreito vale do Gya Chu. A passagem se encaixa entre as muralhas de altura vertiginosa, em um cenário fantástico. Temos que subir, subir sempre no estreito caminho onde a neve forma placas brancas. Felizmente os chineses nos deixaram em Tengri Lzong, pois eles se dirigiam a Burtra. Agora são apenas monges e peregrinos sagrados da Montanha Santa... O vento glacial e o ar rarefeito prejudicam consideravelmente a marcha de nossa caravana, pouco habituada às grandes altitudes. Entramos nos majestosos maciços das mais gigantescas montanhas do mundo, em um reino tenebroso e selvagem, de um aspecto grandioso e inesquecível. A neve cai mais fortemente e caminhamos na penumbra. Nas gargantas que margeiam o estreito caminho que seguimos, as tumultuosas torrentes desabam com estrondo; lugares selvagens onde a harmonia austera é dominada pelo queixume do vento que uiva entre os pinhais. Nas neves que tudo sufoca, os homens e os animais caminham, pontos negros perdidos nos abismos que os encerram. E eu me sinto impregnado desta crença religiosa da Montanha Santa, que é preciso abordar assim, em caravana de peregrinos e no desencadeamento dos elementos, para sentir a sublime beleza e a profunda grandeza... Transpomos as sinuosas geleiras cujos animais trêmulos acompanham os fragmentos de rochas que se amontoam à sua volta; os abutres, no alto, nos acompanham descrevendo largos e inquietantes círculos. A neve desaparece na densa névoa que se eleva do fundo dos córregos e dos vales que acabamos de passar. Como uma imensa caldeira, a Montanha está envolvida por nevoeiro e o sol no ocaso faísca estranhos reflexos nas nuvens 100


A última etapa

negras. Os picos imaculados, lá em cima, cintilam purpúreos... Devemos chegar ao fim da viagem. Pequenas auriflamas, trapos de seda, que o frio tornou duras como madeira, estalam ao vento. Montículos de pedras, cobertos de neve, atestam a proximidade da terra santa. O tapsche-Kanq está próximo e nossos guias apressam o passo dos animais. A noite se aproxima e os precipícios que contornamos são muito perigosos para arriscar uma marcha na obscuridade e na neblina. Dois iaques já escorregaram no barranco soltando gemidos de aflição. Os outros animais resfolegam as ventas na neve, extenuados por uma penosa jornada. Os homens estão inteiramente cobertos por seus mantos e rezam perdidos em um sonho interior que nada pode interromper. Os guias atiram de tempos em tempos, pedras de oferenda sobre os “chorthen” para acalmar a cólera do deus da Montanha Santa e descartar os demônios malfeitores que vão em breve frequentar os barrancos sombrios, pois, tomba a noite e é hora das aparições dos maus, espíritos da Montanha... Os peregrinos cantam invocações aos deuses protetores... Num tom menor, o lamento se eleva, com uma tristeza pungente; é um hino de morte endereçado a uma das Ka-gro-Mha, as deusas com cabeça de leão, divinamente belas e que dançam nuas sobre os cadáveres dos homens e dos animais... Ao longe, no nevoeiro, aparece um mosteiro na encosta da montanha. Mas não distingo mais nada, pois a neblina sobe rapidamente. As paredes de pedra que nos cercam se ocultam no cinza sem fim que cobre tudo. E é então que advém a coisa que mais me tocou desde minha chegada ao Tibete. Já tinha ouvido falar dos ascetas que viviam nus nas montanhas e tinha sempre desejado me aproximar desses super-homens; pela primeira vez eu os vi... 101


A última etapa

Na muralha luzes brilhavam. Intrigado por essas fogueiras estranhas, em plena montanha, deixei a caravana e acossei meu cavalo em direção ao pé da Montanha. Visão fantástica! Nas encostas da muralha inacessível, ao limiar de grutas naturais, diante das quais queimavam fogueiras de zimbro, cujas chamas clareavam curiosamente os rochedos, homens inteiramente nus, acocorados, meditavam... Nesse panorama espantoso e selvagem, aquilo me parecia de tal forma prodigioso, que acreditava assistir a uma visão terrificante e sobrenatural, criada por um Lama mágico e poderoso do mosteiro de Ciências Ocultas de Depung... Depois tudo me pareceu um sonho: o gelo que estalava sinistramente sob os pesados passos dos iaques e dos cavalos, o vento que uivava nos barrancos e abismos, a caravana que serpenteava lentamente rumo ao impossível objetivo e esses Santos, esses Sábios que, na noite glacial, impassíveis diante das tempestades e dos elementos desencadeados, continuavam a meditar os mistérios da Morte...

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Capítulo XVIII O TEMPLO SECRETO DO HIMALAIA É uma pérola em seu escrínio, esse templo de Lapshi-Kang. Foi assim que me pareceu no dia seguinte à nossa chegada. As laterais dos vales estreitos estão cobertas de flores amarelas e brancas; um eterno nevoeiro encobre os altos cumes. Uma grande umidade reina nessa, região; plantas oleosas, imensos cipós e espessos fetos cobrem o solo. A cidade de Lapsché se avista de baixo para cima da montanha. Ela compreende duas dezenas de casas. Estamos no verão e os habitantes, que deixam o país no inverno para irem ao vizinho Nepal, ocupam-se das criações e de pequenos trabalhos. Mas o que nos une a todos num mesmo arrebatamento é o pequeno templo quadrado com teto escurecido, paredes brancas, centro de veneração de metade da Ásia. É lá que vivia o famoso Santo tibetano Mila Shad Pa Dordje ou Milarepa, da família espiritual do muito venerado Marpa, discípulo de Telopa. A sombra desses grandes ascetas pairou por séculos sobre o Tibete. A primeira compilação sobre a qual meu Mestre me fez exercer as práticas de meditações tântricas foi o famoso tratado dos “dez mil hinos”, o gar-boum. Milarepa é a imagem perfeita do metafísico tibetano; ele aceitou os ensinamentos do Buda mas completados por dados tradicionais do esoterismo lamaico. Eram desta família espiritual, os Khagyud-pa, os que me guiaram e me iniciaram nos diversos mosteiros que frequentei desde minha chegada na Terra proibida. 103


O templo secreto do Himalaia

Foi sob a proteção espiritual desse grande Santo que trabalhei e realizei os esplendores da Ciência lamaica... Ora, o superior do mosteiro do Phu-ta-Gumpa veio me acolher, no dia seguinte da minha chegada. Ele foi prevenido de nossa partida, não sei como, pois, seu mosteiro está perdido nas neves... Esse superior, aliás, é interessante de observar. Ele possui o tipo característico do mongol, sua linguagem é áspera e ele parece procurar frequentemente suas expressões e palavras. Mostrei-lhe os selos, os anéis e os rosários místicos que meus Mestres me deram e lhe falei do objetivo supremo que procuro. O corpo inclinado como o de um pássaro de proa, em sua capa vermelha, pois, ele pertence à seita dos barretes vermelhos, ele me ouvia atentamente. Depois, para minha grande surpresa, ele me fez algumas perguntas, provando que meu “dossiê” havia chegado até ele. À minha observação ele sorria, mas nada respondia... O Superior me leva agora a visitar o Templo, através dos cipós e das exuberantes plantas. À nossa volta as borboletas, de cores tão vivas que parecem artificiais, voam no meio das monstruosas flores que esse clima úmido desenvolve prodigiosamente. Diante de nós, sobre a “preciosa colina” rutila o azinhavre da cúpula acobreada do Templo. A neve brilha sobre os picos nevados do horizonte próximo... Entramos agora no velho templo esotérico. Rodas de preces, enormes e muito antigas, estão na entrada. Os ornamentos são ricos; o interior é suntuoso. Ao fundo, atrás do altar, a imensa figura do Santo Milarepa domina os Budas do altar o que, para mim, é um símbolo: a Tradição de Sabedoria dominando as religiões passadas, presentes e futuras que não são mais que traduções, às vezes efêmeras, sempre incorretas da pura luz que emana do Reino da Vida. O Superior, precisando reunir seu mosteiro, decidiu me confiar a um de seus monges que reside na região; é um ermitão, um “naldjorpas”, que, na montanha, medita no meio das rochas na solidão. 104


O templo secreto do Himalaia

Não posso atualmente imitar esses Sábios e viver como eles chegaram a viver com alguns miúdos grãos de milho por semana. Ficarei perto do Templo e ouvirei as instruções do Solitário, na Montanha, de onde seguiremos, o Lama e eu, o estreito caminho no crescente calor do dia... Felizmente os caminhos naturais permitem avançar sem muita fadiga o declive íngreme. Atravessamos florestas sombrias e planícies nevadas. Animais vivem nessas alturas e nenhum se inquieta com a passagem dos homens, pois junto desses Sábios, todo ser vivente habita em paz. Mas o caminho gira em volta dos maciços e subimos de forma considerável desde nossa partida. As brumas do vale estão abaixo de nós. O espetáculo é grandioso; o sol resplandece e ilumina os picos próximos que cintilam gloriosamente na sua alvura imaculada; o silêncio, esse silêncio assustador das neves eternas, reina como mestre. Nenhum ruído, nenhuma vegetação, nenhuma vida. A neve está por todo lado, domina tudo, cegando sob o sol tropical que brilha no céu. O ancião acolhe seu Superior com deferência. Ele nos oferece Tsampa e, na mesma postura de meditação em que o encontramos, ouve as instruções que lhe dá o Umzé. E a imobilidade deste homem, que não tem mais nada de humano na magreza esquelética de seu corpo, se junta ao Silêncio e me impressiona de uma forma inesquecível... O asceta tem diante de si, plantado na terra, o tridente tântrico. Fica entendido que subirei de tempos em tempos para seguir minhas meditações junto dele e esperarei, como sempre, as ordens do Regente Invisível e o lento desenrolar de meu destino... As palavras dos Sábios têm um profundo significado diante do emocionante espetáculo das Montanhas e são inesquecíveis as horas passadas ao pé do Solitário Himalaia, quando ele comenta os mistérios da Ciência dos Tantras... Descemos lentamente o caminho de volta, o Superior e eu. Ele me fala da vida do grande santo Mila, mágico e ermitão; de suas provas e de suas penitências corporais terríveis... 105


O templo secreto do Himalaia

E o Umzé canta agora o glorioso hino aos Lamas, aos Ydams e aos Deuses: No Oceano da transmigração dos três mundos, O corpo ilusório se engana sempre; Se tu procuras o alimento e o conforto material Não poderás ser um Liberto. Renuncia, pois, ao mundo e ora, O Loto de tua Alma se abrirá sob a santa benção Dos raios abrasadores caídos do Céu... Honra a todos os Lamas, Ydams e Deuses Reunidos na mesma contemplação suprema E na grande igualdade da Vida... As santas palavras saem graves, no silêncio do céu. E elas se harmonizam com as imensas planícies de neve que nos cercam e que parecem nos isolar e proteger; como esta Terra proibida está longe do mundo! E quanto sinto próximo do céu cintilante, este asilo da Sabedoria e do Mistério...

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Capítulo XIX AS PALAVRAS DO SÁBIO DO HIMALAIA ... “Escute meu Filho: os ensinamentos que recebeste cessam agora. Examinaste; meditaste. É preciso realizar. Em Chumi-Jadsa, meditaste sobre os Kasynas (são superfícies geométricas - círculos coloridos - que o estudante deve fixar até que a imagem mental seja forte o bastante para que não exista nenhuma diferença na visão do objeto, os olhos estando abertos ou fechados) e teu mental foi acalmado e apaziguado. Teus Mestres sucessivos, por diferentes caminhos, prepararam tuas vestes corporais para o grande mistério da Iluminação. Aprendeste a tornar-se o objeto contemplado e a te identificar absolutamente com ele. O objeto e o sujeito perderam seu sentido oposto e tornaramse complementares e identificáveis. Em Lhassa, aprendeste a deslocar tua consciência e fixá-la onde desejas. Aprendeste a animar com tua própria vida, com teu prana, as misteriosas estátuas do Potala e adoraste a ti mesmo, glorioso e impassível entre os incensos e os bastonetes de meditações, os Kom tching... Em Ramot’ché, conheceste os Kôrlos, os centros de forças do corpo humano e vistes em ação os poderes psíquicos formidáveis de cada ser vivente... Mas tu aprendeste tudo isso de uma forma intelectual e as meditações que te aconselharam os Lamas sobre isso não era senão preparações elementares para tua futura realização. Sozinho, diante de ti mesmo, aqui, tu deves realizar plenamente o ensinamento que recebeste. Escute meu Filho, as palavras secretas do Guru ao Cheia de 107


As palavras do Sábio do Himalais

provação...” Aprendo, pois, a realizar os ensinamentos que anotei até aqui. Completo meus conhecimentos, ou melhor, dizendo, interpreto tudo o que sei com uma nova chave, um mundo desconhecido se revela em mim. O ensinamento tibetano esotérico é essencialmente tântrico. Mas bem poucos: homens poderiam se submeter às terríveis provas exigidas. Eu mesmo recuo diante da maior parte delas e aprendo, assim, que será preciso muito tempo para atingir a libertação. Descreverei logo uma das mais alucinantes: a criação de um ser vivente na negra solidão. Mas meu Guru continua o ensinamento lamaico antes de me dar as fórmulas de meditações que deverei realizar em seguida... ... “Ouça, meu Filho, as palavras de vida: os deuses e o universo inteiro não passam de uma ilusão. Tudo isso existe no teu espírito, surge dele e desaparece nele. Se desejas um ensinamento supremo, veja o que aprendeste. Teu próprio corpo é um santuário e pela ilusão da luz terrestre tu podes criar todas as coisas. Toda vida é uma fantasmagoria; tudo passa tudo desmorona. Medita nos lugares desertos, sobre a Montanha Santa onde estamos e que é a morada e o palácio do Ydam Sambara. Existem dois reinos: o reino do efêmero e o reino do Único. Oculta o segundo no primeiro; rejeita a grande ilusão que te atordoa e te obseda e que corre após tu, como a sombra após o corpo. Não volte a cabeça aos múltiplos ruídos da vida; escuta, contempla. Se tu voltas os olhos para o outro lado e eleva o olhar para o alto, entrarás em trevas ainda maiores. Medita, medita meu filho. Aprendestes as fórmulas em Ramot’ché. Tu conheces as invocações. Os Deuses protetores devem te obedecer. Mas teu Ydam, invisível, tu o ignoras. Em breve tu vais criá-lo e vêlo... Concentre teu mental e aquiete inteiramente as vagas desordenadas de teu espírito. Não adormeça: medite, medite... 108


As palavras do Sábio do Himalais

O caminho dos desejos e das alegrias, tu o conheces. Medite meu Filho. Dirija a intuição em ti, libere teu mental das formas que o modelam, penetre o mundo sem forma e veja as cores místicas da vida e dos seres. Então, na sombra da terra, olhe com atenção o triângulo do teu coração e veja o mistério, o AUM, que ali reside; no meio do calmo lago, há uma Montanha Santa. No cume está teu Guru, que, com a cabeça voltada para o Nascente, o rosário entre os dedos, contempla a Luz do Inefável. Meu Filho ouça as palavras do supremo Guru que em ti reside. Todo composto é perecível. Mas teu coração é um mosteiro puro e resplandecente que encerra a maravilha das maravilhas. Medita meu Filho, medita as fórmulas benfazejas e secretas. Deixate penetrar de seus sentidos múltiplos e misteriosos. Arranca de ti o desejo. Destrua o desejo de viver, mate as razões do desejo. Deixe toda ação inútil. Não seja indiferente; não seja agitado. Fique acima dos sentimentos da alma e das ondas do mental. Senta-te quatro vezes por dia e medite. Considere os pecados dos homens e veja sua profunda miséria na eterna roda da vida. Eles perseguem a felicidade e não a conquistam jamais, pois, eles se apegam às ondas e se fixam na poeira. De início pela meditação e o desprendimento e, por fim, pelo não desprendimento, tu sairás da corrente. Ouça meu Filho: os deuses nos invejam... Abandone as cerimônias e os cultos; a piedade esconde a diferença entre ti e os outros e, a noção de vazio, engendra essa piedade. Meu Filho, aí está o grande mistério dos Budas: o Vazio... medite sobre o Vazio... Na forma tu não realizarás isto jamais; é impossível, pois, teu mental empina-se como um cavalo na borda do abismo. Abandone, pois, esse manto, pela meditação profunda e penetrarás no Vazio como um peixe penetra na água... Tudo é ilusão, tudo; os deuses, os homens e o Universo. Tudo é uma criação do teu mental e a ilusão traz a roda diabólica numa ronda infernal. Há o UM imutável. Tu és esse um... Medita meu Filho, e veja...” 109


As palavras do Sábio do Himalais

E, conforme as instruções do meu Mestre medito o gomthag (a corda da meditação) passado atrás dos rins para sustentar meu corpo. Os dias e as noites passam sem que meu espírito muito aplicado em uma extraordinária abstração se aperceba do tempo. Uma luz, pouco a pouco, brilha dentro de mim e um véu se levanta, lentamente... Os deuses protetores me aparecem, saindo de minha fronte e colocando-se em posturas determinadas e simbólicas. E as expressões, os Kilhkôr, têm para mim um sentido profundo, vivo, inesquecível. Realizo também o que só os Iniciados puderam criar gestos e posturas das estátuas da Ásia. Eles viram os deuses brotarem da Luz e reproduziram fielmente as expressões simbólicas: é por isso que é de uma grande ajuda, segundo as regras da mística asiática, poder orar diante dessas estátuas de bronze ou de madeira, que servem de suporte de meditação para encontrar os deuses impassíveis e todo poderosos...

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Capítulo XX A NEGRA SOLIDÃO Na montanha, ao longo dos abismos intransponíveis, nas cavernas naturais das quais a entrada é murada artificialmente, homens meditam. São esses que praticam severas regras de Ioga ao ar livre; desenvolvem principalmente o thumô, o calor interno que coloca o asceta a salvo das intempéries. São esses solitários que eu vi, quando de nossa passagem pelo desfiladeiro em direção a Lapsché. Mas outros, fugindo da vida, do sol, do ar livre, da companhia dos homens, fecham-se nas grutas sombrias e nas cavernas impraticáveis. Lamas vêm lhes trazer, por um minúsculo postigo, alguns grãos de milho e um punhado de farinha que formam seu alimento. É um estágio necessário no desenvolvimento das faculdades latentes do homem. Alguns Chelas ali permanecem alguns dias; outros alguns meses; outros ainda, sua vida toda. Isto se chama o Ta-Sham. O Chela ali se fecha com as fórmulas de meditações dadas pelo Guru e as estuda, as realiza, as vê conforme as instruções precisas do Guru. Eu passei pela prova da Negra Solidão. Quanto tempo, não sei; naquelas alturas a neve é eterna... e quando saí dali, o sol se refletia tão magnificamente sobre os cumes brancos do Himalaia. É impossível descrever as múltiplas sensações e sentimentos experimentados nessa solidão absoluta; ela está, no entanto, muito longe de ser monótona. A vida espiritual do ser humano que a ela se submete enriquece singularmente pela análise metódica da personalidade e 111


A negra solidão

lenta edificação dos poderes sobrenaturais... Ó, meu Guru! Fui religado aos deuses protetores da família espiritual do Grande Lama Milarepa. Em cerimônias secretas e temíveis, sob tua suprema direção, o vínculo foi criado. Diante do círculo místico, nas figuras entrelaçadas, velho pergaminho que a tradição faz remontar ao grande Lama Padma Sambhava, o sopro invisível dos deuses me tocou na fronte e no coração. A chama de seu poder me queimou o corpo. Tu me conduzistes, vestido com o costume especial dos Sham-Pa, para a cela mística. Com grande cerimônia, o pergaminho foi depositado e, solenemente evocaste para mim o Deus protetor: Aquele que porta um tridente e que medita, o Ydam da montanha... Estou só, na obscuridade misteriosa da caverna. Gerações de Cheias e de Lamas aqui meditaram. A atmosfera está impregnada de certos poderes psíquicos que à simples pronúncia das sílabas santas faz passar como um eflúvio elétrico no meu corpo e como que clarões aparecem sobre as paredes de pedra. Os longos silêncios e as profundas meditações acostumaramme ao isolamento e é um rude prazer sentir-me só, absolutamente só, nesse canto perdido da Ásia... Invocando a proteção do meu Guru, de acordo com as regras clássicas de ioga, respiro profundamente num ritmo peculiar. Minha coluna vertebral se aquece; uma força terrível e formidável, a Deusa, sobe de meu ventre, através da medula espinal e sob seu impulso triunfante, os Chacras, os centros humanos cintilam. Como turbilhões, sinto o do meu peito, de meu coração, de minha garganta resplandecer e se movimentar. A Deusa sobe assim, através do meu corpo, em direção ao alto de minha cabeça, à coroa, ao loto de mil pétalas dos Iogues. Ó, formidável poder! Tu que crias os santos e os ascetas, tu cujo poder andrógino e misterioso abrange o cosmos, faz cantar os astros e resplandecer 112


A negra solidão

os sóis... Tu animas os universos e o resumo dos universos: o Homem. Consciente ou inconscientemente, és tu que os místicos adoram, que os Sábios invocam, que os poderes do mal temem. Luz viva de Deus, essência de Brahma, tu és presente; sinto tua ação poderosa que levanta meu corpo de terra e faz resplandecer, diante dos novos sentidos de meu ser, as figuras misteriosas do pentaclo simbólico. Mas, diante de mim, uma forma luminosa se eleva do Círculo. A princípio imprecisa, depois mais nítida, a figura de uma divindade aparece; uma auréola brilhante a envolve; fulgurantes letras tibetanas cintilam, e eu leio... Ah! É o deus protetor e temido, o príncipe da Montanha, o Ydam invocado pelo meu Guru. O Ser evocado se materializa, por assim dizer; uma presença enche minha cela sombria e eu converso com o deus resplandecente e soberano, enquanto que os bastonetes de incenso se consomem lentamente nos vasos sagrados... Aqui eu paro. Não posso mais continuar. As palavras que se trocam entre o vivente e o deus são secretas e muito dificilmente poderão ser transcritas. São experiências espirituais muito pouco acessíveis aos Ocidentais. É preciso saber suportar abalos psíquicos e provas iniciáticas terríveis... E o tempo passa no negro silêncio. Meu Guru veio me ajudar e me trazer fórmulas de meditações. Do círculo, a intervalos fixos, eleva-se a sombra do deus, do Ydam, que eu sei ser originário de mim mesmo, mas que é a expressão concreta de minhas possibilidades desconhecidas e de meu inconsciente. Até o dia onde uma nova luz, um novo plano, me foram, de alguma forma, revelados, a presença do Ydam glorioso me acompanhou, invisível para os outros, salvo pelos que desenvolveram a visão das coisas espirituais e que sabem conversar com os poderes da terra e as forças planetárias.

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Capítulo XXI A ETERNA PAZ Um dia meu Guru informou que devia morrer logo. Não disse nem a data nem a hora, mas, subindo à gruta, pouco tempo depois, encontrei meu Mestre na mesma postura de meditação, a boca bem aberta e os olhos fixos. Recolhi por perto objetos que ele havia colocado lá antes de desaparecer e uma carta que me dava certas instruções para operações mágicas que iriam facilitar sua passagem nos mundos superiores. Não fiquei comovido, pois, para mim, meu Mestre amado não desapareceu; aliás, de que serviriam essas emoções humanas! Uma das experiências da Ciência consiste justamente nesse desapego completo das coisas e dos seres a fim de se unir mais intimamente a eles nos planos espirituais... E foi um grande dia de festa na região. As conchas retumbaram nos barrancos e nas Montanhas repercutindo longa mente o eco. A multidão dos monges e dos Solitários chegou de toda parte. Sim, foi um grande dia de festa na Montanha. Um dos maiores ermitões de Lapsché juntou-se aos deuses e é preciso comemorar esse grande evento; o corpo será depositado em uma das grutas perdidas da Montanha, defronte à brancura eterna... O que podem lastimar esses homens que envelheceram solitários, em seu mosteiro ou sua gruta inacessível! Eles vivem uma vida interior e contemplativa intensa e, a morte, é a liberdade, a união definitiva e absoluta com os Poderes Superiores que o Solitário pressentiu em suas profundas meditações... Ah!... escapar do Samsâra, do oceano de dores e penas! Quantas vezes ouvi os Lamas me dizerem suas esperanças e 115


A eterna paz

desejos! Ser libertado desta Lei inelutável e soberanamente justa do efeito segundo a causa, da miséria sucedendo a miséria, das dores da eterna ilusão da Vida, miragem sedutora que engana os homens e os deuses... Viver - morrer, Ser - sofrer, balanço regular dos mundos. Só o conhecimento permite escapar disto, pois toda ilusão desaparece diante da Verdade. ... Visão dantesca dos homens e dos deuses arrebatada no Maelstrom (abismo do Oceano Glacial) da existência que, por um movimento engendrado em sua própria essência, esmaga, despedaça e transforma esta matéria viva e palpitante que a compõe. Tudo vive, tudo sofre, tudo espera, tudo aguarda; tudo aspira, tudo se tumultua. O Sábio deve parar de sofrer, de esperar, de aguardar e ele escapa, assim, dos turbilhões do Monstro. Pois ele atinge o Centro, que é imóvel, estável e eternamente fixo... E estes foram os últimos ensinamentos que me recordo, as últimas palavras do ermitão que foi meu Mestre. Segundo o costume do país, dobraram-no sobre si mesmo acocorado na postura do Buda, na postura de meditação perfeita. Os olhos não foram inteiramente fechados e o olhar parece ainda mais interior e velado pela profunda meditação. E revejo, assim, pela última vez, o corpo do meu Lama bem amado, na mesma imobilidade, na mesma postura de antes, quando ele me ensinava as tradições dos Tantras. Agora as conchas gritam e os tambores ressoam. Os Solitários formaram uma grande procissão que acompanha o corpo do Bem-aventurado. Os abutres nos seguem e volteiam no ar, pois eles também sabem que poderão logo se aproximar... Os Lamas colocaram o corpo no fundo de uma gruta do imenso rochedo que pende no vale. Eles descem lentamente, deixando o morto que os animais começam a devorar, lá no alto... Não é a Lei da Natureza e não serão eles transportados um dia numa gruta semelhante para serem devorados também pelos 116


A eterna paz

grandes abutres do Himalaia? Seu corpo não apodrecerá na ofuscação do sol, sobre a neve imaculada? Porque temer, porque se queixar, porque recuar? Esses sábios e esses Monges são lógicos e possuem a suprema jóia: o desapego de todas as coisas...

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Capítulo XXII O MISTERIOSO REINO DA VIDA Após o desaparecimento de meu Mestre, medito só, segundo suas últimas instruções. De tudo isso nada posso dizer; à medida que mergulho nos arca nos da Ciência Sagrada, sei e sinto que qualquer divulgação seria impossível... Com frequência, Solitários errantes, Iniciados nas antigas tradições segundo as mesmas escolas que a minha, passam pelas paragens de Lapsché e me visitam... E nós conversamos dos segredos dos templos e dos Lamas invisíveis. Na gruta de meu Mestre, criei o hábito de vir meditar. Uma tarde, à beira do caminho que passa diante de minha gruta e que serpenteia ao longo do abismo, subindo do fundo do vale, e continuando em direção às geleiras de um dos picos da Montanha, vi um homem. O que desejaria este viajante? Fiz os sinais de reconhecimento das diversas seitas tântricas que conhecia; mas o homem não respondeu. Sua vestimenta era muito diferente das da região. Ele vestia uma grande roupa branca, como certos padres das Índias e um grosso casaco cinza por cima. Seus longos cabelos brancos tremulavam ao vento. Não obtendo nenhuma resposta através de sinais, decidi dirigir-lhe a palavra: -“De onde vens, meu velho irmão, e que desejas?” Seu gesto indicou o alto das geleiras. Quem seria ele? Seria um dos solitários das altas grutas, daquelas perdidas nas nuvens, e das quais os ermitões não descem nunca nos vales? Seria ele um enviado de um dos Umzé dos mosteiros vizinhos? 119


O misterioso reino da vida

Um grande esplendor irradiava desse homem e eu me senti diante de um eminente Chefe espiritual. -“Mestre, eu meditava quando aparecestes. Sou ainda uma criança no alto caminho do glorioso conhecimento esotérico e todo conselho é bem- vindo, pois, os trapahs (estudantes) devem ouvir os Thul-kuh. O sol poente iluminava agora o rosto emaciado do Desconhecido... -“Meu Filho, tua hora se aproxima e eu venho te preparar.” Ah! Trata-se da morte! Uma ordem do Potala e, diante de mim, está um dos médicos do Palácio pontifical, versados, tanto na arte de curar como na de matar... -“Mestre, há muito tempo estou pronto para morrer; tinha, entretanto, desejado realizar os sublimes ensinamentos de meus Mestres... Mas se os deuses mandaram de outra forma, que seja feita a vontade deles.” O Desconhecido me olhou, então, docemente: - “Ainda não é, para ti, questão de morrer; lembra-te da palavra de nossos livros: quando o discípulo está pronto. Igualmente o é para o Iniciador. O Mestre soberano te concede a entrada dos reinos secretos; eu venho te procurar e te preparar para teu novo sacerdócio...” -“Mas, quem sois vós, Venerável, para me falar assim? De qual mosteiro, de qual país vós viestes?... Vosso hábito me é desconhecido e, portanto, conheceis o que ninguém sabe, salvo os Mestres; e o segredo iniciático nos une: o segredo absoluto até além da morte.” -“Eu sou, meu Filho, um enviado do Reino da vida, nosso mosteiro é o imenso Universo de sete portas de ouro; nossa Nação está em cima e em baixo da terra; nosso Reino está nos Três Mundos desse ciclo...” Conversamos por longo tempo, e aprendi muitas coisas; não me é permitido contar nossa conversa. Entretanto, à uma pergunta sobre o silêncio e o mistério do qual se cerca o Reino da Vida e as dificuldades de alcançar esse soberano Centro, ele me respondeu isto: -“Tu te inquietas, meu Filho, da dificuldade que experimentais, vós homens, em encontrar esta Verdade metafísica que vos escapa e escorrega diante de vosso espírito inquieto. Porque nos imputar do mistério? 120


O misterioso reino da vida

São vós, homens, que fecham os olhos... A ciência? A Paz? O puro esplendor da glória metafísica? Mas elas vos cercam, vos penetram. Recusais inconscientemente o que desejais do fundo de vossa alma e de vosso coração. Cegos e crianças sois vós! Solicitais a Verdade? Sim, aquela que não ferirá vossos hábitos, vosso amor-próprio, vossas hipocrisias... Desejais a Paz? E implorais a ruína de vosso inimigo social ou religioso... procurais a Ciência? Algumas leis naturais que colheis ao acaso, ao grande acaso de vossas pesquisas, vos as utilizais logo em vossas obras de ódio e de morte. Meu Filho é preciso ter o coração puro e o temor dos deuses para sentir o sopro da Paz. É um murmúrio que pede, para ser compreendido, o apaziguamento do coração... É preciso agir, então, no seu corpo, como muitos não ousariam sequer agir em espírito. A Verdade está acima de tudo, e é preciso destruir tudo para atingir o limiar de Seu templo... Ouça, meu Filho, tu me perguntastes a razão de nosso silêncio e disto que tu chamas os mistérios da Ásia; tu compreenderás isto mais tarde, mas retenhas e medites as seguintes palavras: Antigamente, o centro do Senhor dos três Mundos não estava onde ele está agora. Houve épocas, neste ciclo, onde a Tradição de vida era conhecida e adorada quase abertamente; o centro espiritual do mundo e r a no vale de um grande rio; depois Ele mudou, diante das ondas crescentes dos bárbaros, em direção ao Oriente, onde Ele reside agora, misterioso e oculto aos olhos dos homens... Quanto essas épocas passadas foram gloriosas e belas! Pois o Mestre é também o Senhor da Justiça e da Paz. Mas sempre os ciclos negros vêm após os ciclos brancos, segundo as regras imutáveis do Destino... Nesses tempos onde o sangue cobre a superfície da terra revoltada, somente os Sábios conhecem a existência da terra bendita... O que Nós somos, tu verás, meu Filho. Creia e espere... aprenda a 121


O misterioso reino da vida

reencontrar o Senhor dos Três Mundos e a venerar o Santo, o Venerável, o Grande Lama Vivo, do qual os Budas encarnados não passam de servidores, com freqüência inconscientes, sobre esta terra... E assim me falou o Sábio do Reino da Vida. A sombra invadiu tudo; mas eu só via a cabeça branca que brilhava na bruma e só ouvia as palavras de mistério que saiam dos lábios do Enviado... Retornei, na manhã, rumo ao vale tomado pelas brumas da aurora, pois a noite havia se findado durante nossa conversa secreta. E eu cantava o hino sagrado que se salmodia na morte dos Lamas ou dos Iogues: Om, Om, Mani Padme Hum, Rhaî! Ele atingiu o porto, o Santo Lama. Ele refugiou-se. Om. A luz o queimou e ele tornou-se a tocha Viva e flamejante da Vida. Om. Paz a todos os Seres e possa O Santo nos abençoar, no esplendor do Nirvana... Om, Om, Mani Padme Hum, Rhaî!

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Capítulo XXIII A LUZ QUE SOBE... As horas passam lentamente. O silêncio da Montanha pesa sobre todas as coisas e meu espírito se adapta, pouco a pouco, a esse terrificante e solene aspecto das neves eternas. O Enviado do misterioso País partiu; ele me deu algumas instruções precisas, mas ordenou-me o mais absoluto segredo e eu me calo como os mortos se calam em suas tumbas. Ele partiu em direção ao alto da Montanha, em direção às geleiras dos cumes, em direção a um mundo ignorado... Vivo um sonho inaudito, pois, é a lenta preparação a algo tão desconhecido que os mistérios da morte não são nada perto dele. De onde vem esse mensageiro do Reino da Vida? De qual caverna, de qual abismo saiu ele? Todas as marchas que me recordo ter feito antes nos caminhos que serpenteiam à frente de meu retiro conduziram-me diante das cintilantes geleiras que descem dos picos inacessíveis, e não encontrei nunca traços humanos nessas alturas desoladas e invioladas... As horas passam lentamente... O silêncio religioso da Montanha me penetra até a medula dos ossos, como dizem os textos dos livros lamaicos. Não desci mais no vale, na direção do pequeno templo de teto escuro e me preparo para a solene e triunfante iniciação na solidão absoluta. Nenhum barulho à minha volta; os abutres voam abaixo, nas sombras do vale onde florescem as rosas de perfume acre e as orquídeas que perfumam pesadamente as florestas silenciosas. Ao longe, às vezes, surdos estrondos: uma tormenta que estoura em um vale transversal ou uma avalancha que se desprega das cristas nevadas em direção aos abismos... Eu medito. Parece-me que o contato com o Mensageiro 123


O A luz que sobe...

colocou-me numa atmosfera oculta que me cerca e protege noite e dia. Parece-me que raios luminosos saem de minha cabeça e que uma chama ardente brota da parte inferior do meu corpo; de fato não sei mais o que é frio. Trago sobre a pele bronzeada e emagrecida uma espécie de capa branca; tenho a cabeça, os braços e as pernas nus. E, no entanto, permaneço em meditação por toda a noite, na tempestade glacial que varre os cumes e as neves. Ora, medito e me recordo. Não me é mais possível gozar a vida. Aprendi tantas coisas, tive acesso a tantos mistérios, experimentei tantos pavores. Aprendi a meditar e ouvir no silêncio sons desumanos, a ver na noite as formas e as luzes do além. Vi um dia meu Mestre de Lhassa desencadear um furacão e meu Lama de Ramot'ché ressuscitar um morto. Ídolos me falaram, a cabeça aureolada de estranhas luzes, ao som das trombetas e das conchas e o solo tremeu longa mente pois “seus espíritos comunicaram...” Então, em verdade, que pode me ensinar ainda a Vida?... Uma última vez o Sábio me permitiu de lançar um olhar para trás; tomei o Dordjé sagrado e temível e pronunciei as palavras poderosas aprendidas em Ramont'ché. O horizonte se iluminou e eu vi... Vi minhas misérias e meus erros passados; vi os sofrimentos dos que lutam, dos ignorantes; compreendi o imenso clamor da fome, do sangue e da injustiça; senti os egoísmos e percebi os pecados do corpo e do espírito no ciclo maldito. Era um estrondo semelhante ao perpétuo bramido do mar, tão inútil e tão terrivelmente monótono. Neste momento não senti nenhuma cólera nenhuma raiva; a Ásia ensinou-me a justa medida e a clara apreciação de todas as coisas; não fiquei revoltado e não chorei; eu vi; é tudo... Vi as sombras dos deuses que, como monstros gigantescos, como o dragão de pesadelo que o mágico chinês me mostrou no Potala, interceptavam as luzes do sol, obscurecendo esse oceano imenso. 124


O A luz que sobe...

E uma grande piedade me invadiu, pois, eu pensava no “gado humano que engorda os Deuses” segundo as pesadas palavras do Santo Upanishad... Vi os terrores dos ciclos negros tornarem agitado o mar humano; nenhuma esperança, nenhum socorro não lhes vem e o sol de Justiça está escondido inteiramente pelas espessas nuvens; relâmpagos sangrentos e clarões sinistros e frios como a pálida luz lunar atravessam a profunda obscuridade... Entretanto, grandes coisas se preparam; parece-me que percebo um magnífico clarão no horizonte. Ele se levanta e ilumina essa maré viva. Uma forma resplandecente se desenha, lutando contra as sombras e as nuvens opacas; reconheço o Sinal dessa presença; é Aquele do Detentor dos Sete Selos Lamaicos, que estão no tesouro secreto de Lhassa, Aquele do Buda Vivo que reina sobre o mundo. Raios saem da boca do Bem-aventurado e iluminam os Três Mundos; os infernos, a terra e a morada dos deuses... Visão obscura? Simbolismo futuro? Não sei. O poder do Dordjé me permite ver e traduzo minha última visão; porquanto, não sei se o poderei fazer, dentro em pouco... Transcrevi nestas páginas, que serão remetidas a um homem do Ocidente, a formidável experiência dos meus últimos anos, no país do mistério e das lendas. Amanhã será o Desconhecido, sem retorno possível... Que importa o sacrifício de meu corpo, que, talvez me pedirão? Aquela valeu bem isto... As horas passam lentamente... Lentamente o sol da Ásia desaparece atrás dos picos inacessíveis dos maciços nevados; em uma última ardente claridade a Montanha reluz e a neve eterna torna-se de ouro e de púrpura... Sempre à minha volta esta impressão de desapego definitivo, de absoluta solidão, de morte lenta. O silêncio, o grande silêncio eterno das estrelas apazigua o horror da sombra noturna que sobe da terra... Parece-me ouvir ao longe os sons das trombetas sagradas, 125


O A luz que sobe...

nas portas dos templos de Lhassa, melodia sombria cantando sobre as coisas que adormecem... E os Damarus de prata, esticados com pele humana, começam, no interior dos Santuårios, os ritmos ritualistas que logo repetirão, gravemente, os coros dos Lamas, para conjurar os terrores da noite...

FIM

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