Nonada - Letras de Literatura

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1ª edição

nonada

letras de literatura 1


EDIÇÃO E DIAGRAMAÇÃO DIANA FREITAS é estudante de publicidade. Inspiração de um certo escritor.

COLABORADORES ALEXANDRE DE PAULA é jornalista e escritor. Acredita na literatura acima de todas as coisas. DÉBORA JARDIM é estudante de secretariado executivo bilíngue. Acredita que imaginação e literatura andam juntos. MATEUS VIDIGAL é estudante de jornalismo. Faz previsões sociológicas.

IMAGENS • Capa: Sam Messer • Ilustração, página 6, João Pinheiro (jottapinheiro.blogspot.com.br) • Ilustração, páginas 7, 8, 9, 12 e 13 -- Art For Adults (artforadults.tumblr.com) • Fotografia, página 10 e 11, WallpapersCraft (wallpaperscraft.com) • Fotografia, página 14, My HD Wallpapers ( myhdwallpapers.net) • Ilustração, página 15, Barbara Jaskiewicz. • Fotografia, página 17, Mateus Vidigal.

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Brincando de literatura! Nonada: do latim non nata, redução de res non nata, ‘coisa não nascida’ porque a literatura não nasce só uma vez (no ato da escrita). O texto permanece como essa “coisa não nascida” para renascer a cada nova leitura, a cada novo olhar. Esta primeira edição contempla a literatura contemporânea brasileira por meio do conto, crônica, poesia e resenha. Guimarães Rosa é a inspiração para essa revista e até recebeu homenagem. Fogo, arrependimento, a busca pelo perdão e um sofá velho é tudo que restou no conto Cinzas e ainda outros textos. Brindemos à literatura! Diana Freitas

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Ă­ndice

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homenagem literária

PELAS VEREDAS DE GUIMARÃES ROSA Alexandre de Paula

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onada. Que o senhor me pergunte o que é a vida é que me espanta. Vida? Eu bem que não respondo, tergiverso, pouco andei, quase nada vi, mas li em livro grande que a vida é isso aí: travessia. Viver é perigoso, rapaz, viver dói no homem, muito sol e pouca sombra. O senhor não vê: olhos de Diadorim que alumiavam em Riobaldo e esse desgosto de só se ver depois da morte. O amor? Já dizia o homem grande que escreveu o livro de que já ao senhor falei: “pássaro que põe ovos de ferro”. Por que tanto falo desse escrito? Essas seiscentas páginas reunidas, quase que de fôlego só? É bem por isso, seu moço, viver é travessia e o amor é pássaro que põe ovos de ferro. Dói atravessar tanta letra, tanta palavra miudinha, antiga, inventada. Mas é tanta boniteza, tanta frase-verso encantada, parece canto de se ouvir sem música. Passarinho que canta em silêncio. Pensa na beleza. E o senhor mire-veja: eu que vim do sertão das Gerais, que sei de ouvir o ritmo desse falar de matuto, que sei que jagunço, roceiro, pedreiro, gari, todos eles pensam,

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sofrem, choram. Ah, moço, como que eu ia de não gostar? O senhor me desculpa e entenda essas lágrimas desobedientes, sei que homem desse tamanho meu já passou foi muito do tempo de chorar, mas só de me alembrar daquele meu livro, daquelas páginas amarelas já meio rasgadas... Ah, o senhor veja: saudade. Nisso a gente sabe, essa minha pele lisinha não mede minha velhice. Tenho mais muitos anos que pareço, de tanta saudade. Disso até que entendo. Lá no Sertão, o sêo João Rosa dizia: “toda saudade é uma espécie de velhice”. E eu que tenho saudade até do que nunca vi? Onde é que eu vou parar, o senhor sabe me responder? Sonho maior era conhecer sêo João, tirar dedo de prosa com ele, perguntar até entender donde é que vem tanto gênio. Vontade de dizer assim: “Compadre meu sêo João Rosa disse viver é etcétera”. Mas veja como são as coisas, às vezes a gente nasce fora de tempo, uns antes, outros passados. Tem gente que nasce verde, tem uns maduros e outros que já caem

podres. Ah, moço, Manuelzão já me bastava, já que sêo João foi tão cedo, mas nem isso pude. Não digo que não conheço os dois: conheço assim de banda e escuto a voz deles com meu silêncio apertado. Quando eu tô demais em mim, é do Demo que fujo, do Coisa-Ruim, do Arrenegado, do Sem-Nome, que pacto nenhum eu quero. Deus é o que há. O resto, mentira que não creio, mas tenho medo. O senhor vê esse céu tampado? Chuva que chega, vento vazio, redemunho. Tenho medo. Sêo João escreveu: “o Diabo na rua no meio do redemunho”. Sempre fujo. Explico mais melhor: não creio, mas temo e tem vez que medo é maior que razão. Ah, seu moço, olha essa beleza da água batendo nas pedras, desse tempo tampado, andei tanto pra ver coisa dessas. Esse verdume: os olhos de Diadorim. Eu tenho saudade, rapaz, dessas coisas que eu vivi só de ler. É tanta saudade que dessa espécie velhice eu já tenho é mais de 100 anos. Vou envelhando, o senhor sabe, para ver se um dia, que seja depois da vida, o sêo João Rosa chego a ver.---


micro-contos

DELÍRIOS Mateus Vidigal

VINTE E DOIS

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inte e dois. Vinte e dois anos e a velha-crise-de-sempre. Vinte e dois e eis que nada se fez novo. Vinte e dois e a recorrente incapacidade de mudar. Não há vinte e dois livros lidos. Não há vinte e dois textos escritos. Não houve vinte e dois amores. Não aconteceram vinte e duas transas memoráveis. Não conto vinte e duas conquistas.

Não há vinte e duas metas que consiga lembrar. Há uma frase com vinte e duas palavras que, juntas, por melhor que seja a intenção ao escrever, não significa absolutamente nada. Vinte-e-dois-e-nada. Meia noite e vinte e dois. Não consigo pensar em vinte e dois amigos que valham a pena lembrar agora. Não lembro de vinte e dois desafetos que

valham o pensamento. São só quatro andares. A queda não vai passar de dois segundos e talvez fique ali por uns vinte minutos. Vinte e dois corpos se juntam para ver o meu. A chamada para avisar do ocorrido dura vinte e dois minutos. Minha mãe não fala uma palavra por vinte e dois segundos. Vinte e dois anos em vinte e um períodos. Vinte e dois.

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BRISA

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úlia pegou-me a mão e dançou comigo. Suas pequenas mãos em meu corpo. Beijou-me a boca, sentiu meu íntimo. Fez-me entrar e sair de si. Entrei e sai de mim. Júlia colocou seus seios em minha boca, levantou-me a face e gemeu em meu ouvido. As pernas de Júlia contraídas contra a minha cabeça. As unhas de Júlia no meu peito. O gozo de Júlia na minha boca. Entra e sai, Júlia, sobe e desce. O seu íntimo em mim. O meu suspiro em seu pescoço. O cheiro do nosso sexo no quarto. Levantamo-nos e o fôlego fugiume ao peito. Olhou para mim e, como se me atravessasse, vestiu suas roupas. Ali, soube que nunca a tive. Beijou-me a face esquerda e pensei ter sentido uma lágrima a escorrer o rosto. Não saberia dizer se era minha ou sua. Nunca mais tornaríamos a nos ver. Vez ou outra, o teu gosto retoma-me à boca e a brisa traz seu cheiro vadio, fugaz. Foi embora, sem ir de encontro ao meu desespero. Meu olhar pesou-lhe às costas e só pude assistir a sua partida. Faltou-me ar. Mentiria se dissesse que não procurei encontrá-la, mas nunca soube ao certo onde começar. Não é possível encontrar algo que cá nunca esteve. Acasos passados. Resta-me o Vazio, que dantes encarava-me ao espelho. Cheguei a crer que lho havia perdido. ‘Perdido estavas tu’, sorriu-me o reflexo. Meio fôlego para lembrar-te e o resto dos tempos para esquecer tua ausência.

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FRIO

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az frio. O texto incompleto e a incapacidade de terminálo. O choro contido. A falta que me faz. A falta que te faço. O choro rasga. Não sinto muito. Meus pulsos. Escorre. Não lembro quando te vi pela última vez. Não consigo lembrar de muito agora. Meu texto. Preciso terminar meu texto. Não faz sentido. Estava tudo bem. Meu texto. O quarto está uma bagunça. Cigarro. Meus pulsos. Não sinto meus pulsos. Preciso terminar meu texto. Faz frio. Não consigo pensar com este frio. Preciso levantar e arrumar o quarto. Escorrego. O chão faz frio. Acho que nunca senti tanto frio antes. Escorre. Acho que nunca vi tanto sangue antes. Meu texto. É uma mentira. Meu texto sobre a mentira. A ideia se perde. Preciso te ver agora. Não consigo enxergar muito agora. Não consigo segurar o choro agora. Sinto sua falta. Me desculpe. Preciso voltar ao meu texto. Acho que vou ter de encerrar por aqui.


MISERICÓRDIA

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NÃO FOI UM DIA TRISTE

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mesma rotina, o mesmo despertador às 10 paras as 8h. Levantou, tomou seu banho, pensou na vida. Não estava com fome. Na verdade, nunca sentiu muita fome pela manhã. Foi para a faculdade, assistiu algumas horas de aula, esboçou qualquer sorriso enquanto lanchava com os amigos. Foi para o estágio. Entregou a matéria para seu editor, recebeu elogios, um tapa nas costas e ouviu sussurrarem algo que lhe pareceu com ‘esse menino tem futuro’. Pegou suas coisas, voltou para casa. Era sexta-feira. Foi comprar uma cerveja no supermercado, escolheu sua favorita. Não era um dia triste, tudo estava a correr bem. Pagou, abriu um leve sorriso e deu boa noite a atendente. Foi atravessar a rua e se jogou a frente do ônibus que passava. Decidiu que era hora de morrer. Sem cartas, sem choro, sem porquês. Morrer, pelo simples prazer de deixar de existir.

á seis meses não o ouvia gritando por essas ruas mal acabadas. Nada mudou. Aquilo que já foi o efeito inebriante do crack virou o ar seco da realidade que esse filho da puta respira. Até a morte se recusa a dar cabo desse infeliz. Deus é um fanfarrão que gosta de assistir o sofrimento humano sentado numa poltrona reclinável das Casas Bahia comendo amendoim num domingo de ceia. “Ei, o Guará é meu!”, grita incontáveis vezes. O Guará é seu sim, desgraçado. Por que você não se mata? Não tem reza, oração ou milagre que salve essa criatura meio-morta-meio-viva que anda por ai. Anda não, rasteja com os pés no chão, na terra, quase que se fundindo com aquele que será o seu destino final. Fodido. A única e mais clichê das certezas, famigerada Morte. Quero ver alguém me convencer que a vida tem sentido e que vale a pena ficar aqui. Se tivesse grana, pagava pra algum pastor digníssimo me explicar. Plano superior é o caralho, meu amigo. Enquanto isso, o álcool é uma das poucas coisas que ainda me é verossímil. Deita e morre, infeliz, não vale a pena ficar aqui. Fuma mais uma, duas, três pedras e dá cabo nessa merda de vida. Enquanto isso eu fico aqui nesse limbo da covardia e talvez escreva sua história amanhã no jornal. Quem sabe na eternidade eu não te dou um gole da minha cerveja e tu não me dá um trago dessa merda. Vai com Deus.

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CINZAS Alexandre de Paula

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fogo logo se espalhou pela madeira velha. Derreteu o barro das telhas e amoleceu o cimento que havia entre os tijolos que meu pai comprou na olaria em que por muitos anos eu vira seu suor escorrer. Os móveis se tornaram cinzas antes que o novo dia amanhecesse. A cama rústica de estrado fraco e colchão duro, a máquina de costura, o sofá rasgado nas extremidades, a mesa em que jantávamos todas as noites, tudo virou pó. O corpo de minha mãe, também o corpo de minha mãe se misturou à cama, à mesa, ao sofá de flores rasgadas, à máquina de costura, às telhas e aos tijolos queimados. Meu pai e eu fugimos no princípio das chamas. Nenhum de nós pediu ajuda. Vi meu pai olhar renitente para o resto de tudo que construiu. De longe, havia em nós algum alívio, ainda que tudo nosso estivesse ali, destruído, morto. Ainda que o corpo de minha mãe ardesse junto às ripas que cederam. e arrependo toda vez que lembro da vida como era antes. Toda vez que lembro dos dedos castigados de mulher forte da minha mãe passeando pelos meus cabelos de moleque levado, dos lábios dela na minha testa suja, das palmadas, das palmadas que eu e ela levamos, do sangue que escorria discreto pelo seu rosto lindo. Me arrependo também do dia em que papai me levou para conhecer a vida, que

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era como ele dizia, do dia em que papai resolveu que uma mulher me faria homem. Do dia que, como em muitos outros, meu pai tirou de minha mãe coisas que de fato precisávamos em troca de cachaça e os corpos de duas mulheres nuas. Me arrependo do choro que mamãe derramou quando nos viu entrar em casa e soube, de pronto, nosso destino. Aquele choro que eu, mais novo, tantas vezes escutava sem entender. Sem entender os gritos abafados, os roxos na pele clara de minha mãe e, por vezes, os riscos e restos de sangue na pele encardida que meu pai trazia pregada aos ossos envergonhado. Me arrependo muito de ter contado o que vi. cama, o cheiro indecente incrustado no quarto. Senti muita raiva de minha mãe, senti muita raiva dos gemidos esperançosos que ouvi e da imagem que até hoje carrego pregada às minhas retinas. Tive medo também. Medo de que ela nos deixasse para ser feliz em outro canto e eu não poderia aceitar a felicidade dela longe de nós. Meu pai dizia sempre que mulher não tem que ser feliz e que felicidade era coisa besta de quem não tinha com o que se ocupar. Talvez por isso ele tenha passado tempos tão amargos. Talvez por isso, mesmo agora que não há nenhum deles aqui e que não tenho nada com que me preocupar, esta tristeza in-

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sista em invadir cada canto de minhas lembranças. Insista em deixar bem claro que minha felicidade ficou queimada entre a cama, a mesa e o sofá de flores mortas. Meu pai tinha um jeito seco de nos dizer invariavelmente as mesmas coisas, as mesmas coisas falsas para fingir que me explicava a vida, como se a vida não fosse nada mais do que um amontoado de mentiras. Quando eu percebi que minha mãe também fazia parte do mesmo jogo de mentiras, era muito tarde e eu já estava lá.


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ão passei muito tempo com meu pai depois do que aconteceu. Éramos muito diferentes e minha culpa se tornava maior ao lado dele. Poucos anos depois, meu pai foi encontrado morto. Nunca quis saber detalhes da morte dele e disso não me arrependo. Não gostaria de carregar outro peso maior que esse. Não tenho muitas lembranças boas de meu pai, ele me ensinou algumas coisas, mas hoje penso que seria melhor não ter aprendido. Nunca soube se ele também carregou esta culpa que eu trago. Acho

que, no fundo, sentia algum remorso. Torço para que houvesse nele algo mais do que orgulho. Meu pai me deixou pouco, quase nada além do terreno vazio onde um dia existiu a nossa casa. ão sei bem em que besteiras acreditei quando resolvi reconstruir nossa casa à semelhança do que era antes. Sonhei rever alguma felicidade. Mas não há nada em mim além de cinzas. Comprei um sofá velho com flores bordadas e rasguei as extremidades. Comprei uma mesa como a que jantávamos juntos, uma máquina

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de costura que não usei. Só não comprei a cama em que mamãe dormia, a cama que queimou naquele quarto suado. Deixei o quarto vazio e ainda sinto nele sempre o mesmo cheiro indecente do dia em que tive muita raiva de minha mãe. Como tive no outro quarto, no verdadeiro. Deixei o quarto vazio, um pedaço oco na casa nova, um arremedo deste oco imenso que há em mim. Estou sentado no sofá de flores rasgadas e posso sentir o calor das chamas se propagando. Em pouco tempo serei pó, espero que seja perdoado. 11


PEQUENA MORTE V

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ocê pode começar me pedindo mais. Ou só pra eu ir embora. Tanto faz. Você vai ver o amargo das tuas palavras ruminando na minha língua e eu vou tentar devolvê-las todas pra você. Eu vou tentar devolvê-las todas e você vai me pedir pra parar antes do fim, antes do “ó meu deus”, do “tô chegando lá”. Eu vou devolvê-las todas porque gosto de dizer que vou devolvê-las todas e porque quero ver teu rosto me implorando não. Teu rosto imaculado, bochecas rosadas e lábios pequenos. Teu rosto santo. Teu rosto santo e manchado, completamente manchado de mim, teu rosto lindo nesse espelho sujo. Vou mastigar tua

Alexandre de Paula

alma e engolir todas as palavras pobres que você guardou. Vou engoli-las assim escandidas, todas as palavras divididas em pequenos pedaços teus, pequenos pedaços recortados da tua alma limpa e do teu sangue meu. Vou te machucar com a palavra-alma mais pontiaguda que encontrar. Você pode simplesmente ficar calada. Ou danar a me dizer impropérios há muito já guardados. Tanto faz. Eu vou rimar teu sangue com aquilo que manchou teu rosto. E eu vou gozar nossa pequena morte com o teu grito mais imbecil. Você pode gritar, eu deixo. E gosto. Gosto do teu olho orbitando pelo quarto todo e do teu cheiro nada-nada

em mim. Você vai ver esses dizeres malditos e vai se encantar com a rispidez da palavra não lapidada e vai chorar o corte da palavra-faca no teu ventre. Eu vou arrancar a vida do teu ventre. E a vida do teu ventre é minha, porque desse modo eu fiz e desse modo eu quis. Eu quis te ver sangrando porque simplesmente achei que fosse bom me deleitar com a tua voz dizendo preces inauditas. Teu grito mais fugaz. Você vai me pedir pra ir embora. Ou só pra eu te ver morrer. Tanto faz. Você vai ver a noite clara e gargalhar da lua. E eu vou esconjurar tua impostura. Ora, ora, não se morre assim, não se morre assim jamais.


DOIS POEMAS HILDA HILST CANTARES DO SEM-NOME E DE PARTIDAS I

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Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua do estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o meu Senhor habita o rutilante escuro De um suposto de heras em alto muro.

E só me veja No não merecimento das conquistas. De pé. Nas plataformas, nas escadas Ou através de umas janelas baças: Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias. E só me veja no não merecimento e interdita: Papéis, valises, tomos, sobretudos

Que este amor só me faça descontente E farta de fadigas. E de fragilidades tantas Eu me faça pequena. E diminuta e tenra Como só soem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida.

Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar de púrpura e desgosto, vendo através de mim navios e dorsos). Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes. Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenis Machucadas de gozo. E que jamais perceba o rocio da chama: Este molhado fulgor sobre o meu rosto.

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OS MELHORES(?) ANTOLOGIAS LITERÁRIAS, COMO A GRANTA, GERAM A QUESTÃO: ESSAS ESCOLHAS REPRESENTAM DE FATO O QUE HÁ DE MELHOR NA PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA? Alexandre de Paula

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ualquer antologia é parcial, toda seleção será sempre um recorte que busca compreender e qualificar o todo. Esse enfoque será, via de regra, subjetivo e somente deverá ser interpretado assim. Na literatura, como em quase tudo, não há verdades incontestáveis; certas qualidades são óbvias, certos recursos técnicos impressionam mais que outros, no entanto é impossível fazer dela – e da arte, em geral - uma disputa totalmente objetiva, em que autores se enfileirem em rankings, tal como se faz em alguns esportes. A prestigiosa revista Granta lançou em 2012 uma antologia que reúne os 20 melhores jovens escritores brasileiros (de até 40 anos) segundo seis jurados convidados. Foram avaliados 247 textos. Nem bem a edição chegou às livrarias e a polêmica já estava instaurada nos meios literários brasileiros. Questionouse, principalmente, o motivo de alguns escritores não entrarem, assim como a inclusão de

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alguns outros na seleção final. Quase nenhuma seleção tem apenas acertos e com esta Granta não é diferente. Segundo a revista, os critérios para a escolha foram apenas a qualidade dos 247 textos enviados, de modo que, supostamente, qualquer outra questão – como a carreira e o currículo do escritor, por exemplo – não foi avaliada. No geral, não é que se pode perceber lendo os contos e trechos de romance selecionados. Há textos que, claramente, são inferiores ao nome e à obra do escritor e que só podem estar ali pelo que eles haviam escrito antes. Nota-se que a maioria dos escritores já está de alguma maneira relacionada - e boa parte até estabilizada - ao mercado editorial brasileiro. A atitude da revista não é de todo condenável, pois é certo que - considerando interesses de mercado, de divulgação - a presença de autores que já tenham prestígio pode colaborar para o sucesso da empreitada. O próprio título tem um viés visi-

velmente mercadológico. Dizer quem são os melhores jovens escritores brasileiros no calor da produção desses autores, sem distanciamento histórico de sua obra, seria muito pretensioso, não fosse ‘melhores jovens escritores’ meramente uma alcunha que visa ampliar o alcance das vendas e da repercussão. De todo modo, a antologia confirma bons nomes dentro do painel contemporâneo da literatura brasileira. Se há erros – e certamente os há -, são pecados impossíveis de se evitar quando se pretende fazer uma seleção desse tipo. No todo, há mais acertos, a maior parte dos textos apresenta boa qualidade. Se dois ou três destoam do contexto de maneira negativa, há também, quase na mesma escala, aqueles que se mostram superiores e parecem de fato ser o que de melhor tem sido produzido por jovens no Brasil. Esta edição da Granta é um recorte. Se, de fato, é certeiro só o futuro poderá dizer.


crônica

PARA LÁ E DE VOLTA À REALIDADE Débora Jardim

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er estimula a imaginação, ajuda a desenvolver o intelecto e aprimora o aprendizado, mas até minha quarta série, atual quinto ano, eu não sabia disso. Com 11 anos de idade não tinha muito interesse em leitura, não gostava mesmo de ler, sempre que pegava um livro procurava figuras para ver e até mesmo nos gibis eu só via os desenhos. Minha professora na época tinha diversas maneiras de fazer com que nos interessássemos por literatura, mas não funcionava comigo, eu só gostava das figuras mesmo. Um dia minha professora nos falou sobre um livro que ela havia lido, um livro de aventura, com heróis, monstros e a busca por um tesouro, isso chamou minha atenção, colocou minha cabeça para funcionar e fez minha mente viajar. Me interessei por esse livro, eu queria lê-lo, queria “ver” como eram as coisas que ela estava descrevendo, então pedi o livro de presente de aniversário. Ler cada capitulo e me sentir dentro da historia fez com que eu me apaixonasse por literatura, um livro só não bastava para aquietar minha imaginação, não terminei de ler aquele livro até ter 16 anos, não o terminei porque o pegaram emprestado e nunca devolveram. E durante toda a minha adolescência fui profundamente apaixonada por aquele livro, mas me apaixonei por outros livros também, perdia horas de sono lendo até de madrugada, sonhava com as historias que havia lido e cheguei a ler 13 livros no período de 3 meses. Eu inventava histórias, contava para os meus amigos e minhas historias eram as mais fantásticas que eu podia imaginar, eram cheias de magia e monstros, heróis e aventuras, as pessoas me diziam que eu ficaria rica se um dia virasse escritora. Não era isso que eu queria, gosta-

va de inventá-las, de baseá-las nas que eu já havia lido e dividí-las com as pessoas proximas a mim. Hoje em dia ainda gosto de ler essas histórias, de “vivê-las”, de imaginar cada cena, cada personagem, gosto de fazer parte da cada história que leio. Claro que hoje já leio um pouco daquilo que parece a realidade, mas nunca vou deixar minha paixão por aventuras mágicas. Naquela época uma única historia me chamou a atenção para o fantástico mundo da literatura, hoje muitas ainda aumentam meu interesse. Já consegui terminar de ler aquele livro e ele se mostrou muito mais extraordinário do que na descrição da minha professora e na minha imaginação, não era um livro infanto-juvenil, nem nada adulto, é algo que está entre essas duas classificações literárias, uma historia que encantou e ainda encanta milhares de pessoas ao redor do mundo, adultos e crianças, hoje já é filme, mas meu fascínio pelas letras nas páginas desse livro é bem maior que muito efeito cinematográfico. Nada se compara ao fato de usar a imaginação para viver o que está escrito e a criatividade para ajudar a compor suas próprias aventuras. Devo muito aquela pessoa que me ajudou a conhecer a leitura, mas devo muito mais ao pequeno senhor que saiu de sua casa para a primeira aventura que iria viver, indo em busca de um tesouro a muito perdido para um dragão, a amizade que ele conquistou, os lugares que ele visitou e os perigos que ele enfrentou. Devo também a um nobre professor de Oxford, que em um fatídico dia corrigindo provas teve a brilhante ideia de escrever essa historia que tanto me fascina até hoje, devo muito a J. R. R. Tolkien por ter escrito O Hobbit e ter me feito amar literatura tão intensamente.

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memórias

LEMBRANÇA FUGAZ Mateus Vidigal

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ão entendo muito de literatura, tampouco consigo me desvencilhar de ser o narrador e personagem do meu texto. Até agora, só consegui escrever sobre coisas que senti e que vivi. Minha bagagem de livros é pequena e não entendo nada de foco narrativo. Me limito a dizer que sei reconhecer um bom texto, mesmo que não saiba exatamente desvendar seus meandros e veredas. Aos poucos, vou tentando escrever coisas que prestam. Dedico esse texto ao meu avô, que completaria 76 anos hoje. Não achei pontos onde poderiam começar ou terminar parágrafos. Vai na lata mesmo. É, vô, chegou a hora. De alguma forma, dava pra saber que tu seria o primeiro que eu iria perder. A Morte passou na porta da frente de casa, passou na família de amigos e da ex-namorada, passou na vida de colegas de faculdade. Escrevi sobre Ela, escutei falar de quem já A havia testemunhado. Uma hora isso haveria de acontecer. Alzheimer. Que desgraça de doença. Foram arrancando de ti cada gota de vida que tinha. Tu era forte, parrudo, tinha uma puta barriga redonda, olhos pequenos, um pouco escondidos. Cara de vô. Cara de ex-militar. Paraquedista de inúmeros saltos. Torcedor do Bangu e do Botafogo. Teu time tá bem esse ano, sabia? Tirando uns tropeços tipicamente botafoguenses, dá gosto de ver. Pena que não tá aqui pra vê-lo jogar.

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Do Bangu, não tenho notícias. Lembro de como me recebia em casa, sempre perguntando “E o Vascão?”. Eu era novo demais para saber a posição na tabela e qual tinha sido o resultado do último jogo. Então sentávamos à mesa e tu percorria a tabela e o resultado dos jogos com a unha do dedo mindinho. Pedia então preu preencher os resultados do domingo no jornal do dia ante-

Engraçado como sanidade é relativa. Às vezes, penso que minha cabeça não serve de nada. Duas ou três placas de cimento sendo arrastadas e uns caras te fechando dentro de um buraco.” rior. “E as namoradas?”, perguntava. Eu era novo demais para saber responder isso, e o senhor sempre perguntava só para me ver envergonhado. Sempre quis que eu e meu irmão seguíssemos a carreira militar. Nunca gostei da ideia. Mas gostava de ganhar as camisas do exército que me dava. Aliás, o senhor financiou um dos maiores desgostos da minha mãe. Me deu um coturno na minha fase de rockeiro. Eu tinha uns 12 anos e um puta

cabelo grande. Devia ser uma merda ver teu neto cabeludo daquele jeito, de rabo-de-cavalo. Mas passou. Gostava de quando íamos ao clube, fazer churrasco com meus tios. Chegava a hora de ir a piscina. O senhor chamava eu e meu irmão, que, com alguma relutância, caía na piscina. Então tirava o relógio e nos colocava para competir. Lançava-o a água e via quem era capaz de buscá-lo mais rápido. Sempre queria ter o melhor tempo, ganhar teu elogio. Não tenho muitas lembranças. Por mais que me esforce, não consigo pensar em muitos momentos. Foram anos fazendo coisas de vô e de neto. Cada vez mais velho, eu negava a vida militar às tuas perguntas e frustrava qualquer tipo de conversa. Acho que é disso que lembro. Engraçado como sanidade é relativa. Às vezes, penso que minha cabeça não serve de nada. Duas ou três placas de cimento sendo arrastadas e uns caras te fechando dentro de um buraco. Te botaram num caixão e falaram que tava morto. Se eu tivesse um pouco mais de força, acho que acabaria com meus dentes forçando uns contra os outros ali mesmo. Tu ficou um mês na UTI, sendo entubado, sedado, respirando com aparelho. Mijando pela sonda, comendo pela sonda, vivendo pela sonda. Perdia um tanto de vida a cada dia que se passava depois que decretaram Alzheimer. Não era tu naquela cama. Suas mãos es-


tavam retorcidas para fora, sobre os peitos. Não tinha controle de nada. Absolutamente nada. Talvez nem soubesse onde estava e quem eram aquelas pessoas do teu lado. Odeio hospital. Odeio o cheiro de hospital e o nome das salas. “Sala de parada”. Que coisa bizarra. Meu peito dói toda vez que visito este texto. Que merda, vô. Que desgraça de doença. Alzheimer é a prova de que esse deus dá as costas pra gente. deus pisca, fecha os olhos, dorme. Nunca acreditei nesse tal de “Plano Superior”, ou então em “Deus está no comando de tudo”. O álibi mais perfeito que alguém já inventou é essa tal mensagem de “existem coisas que Deus faz que nós não entendemos. Mas é assim mesmo, tem coisas que nem devemos tentar compreender”, ou alguma merda nesse sentido. Bobagem. Passei 19 anos dentro da igreja, experimentando tudo

o que me ofertavam. Batismo no espirito santo, batismo nas águas, renascer para cristo, tentei falar em línguas, inúmeras vezes entrei em pranto durante um culto, arrependido com a vida que levara. Me ensinaram que prazer carnal era coisa do diabo. Música do mundo era coisa do diabo. Ver filme pornô era coisa do diabo. Falar palavrão e dar dedo era coisa do diabo. Grandes merda. Uma das poucas certezas que tenho hoje em dia é de que não acredito em nada disso. Tenho meus próprios problemas, vou cuidar deles. Deixo esse papo de deus pros outros. Só sei de uma coisa. Uma das piores sensações que alguém pode sentir nessa vida é carregar um caixão com um ente querido. Odeio essa expressão ‘ente querido’. Parece jargão de funerária. Teve um dia desses que o senhor trombou em mim quando andava pela casa. Tenho

certeza que não sabia mais quem eu era. Tava passando um jogo do Botafogo na tevê. No móvel, uma foto tua de farda. Caralho, quanta coisa mudou. Deu vontade de chorar, sabe. De vez em quando dá mesmo. Mas foi melhor assim. Sem querer entrar nessas merdas de mensagens positivas, acredito que foi melhor morrer mesmo. Na hora de perder alguém, só pensamos na nossa fatia do bolo. “Ah, o que vai ser de mim? Como vou seguir em frente?”. Foda-se. Finalmente o senhor tá livre, vô. Chega desse sofrimento todo. Acho que teríamos mais conversas hoje em dia. Sou um protótipo de jornalista, tô escrevendo umas coisas bacanas e acompanho mais futebol do que antes. Até demais. Mas se perguntasse das namoradas, eu iria abaixar a cabeça, envergonhado, como sempre. Saudades, meu velho. Até qualquer dia.

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