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O Caminho do Teatro: Único e Mágico

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ERA EU...

ERA EU...

Quim Marques

Outro dia. sentei-me no banco da Praça Paratodos, para contemplar a vida. como se fazia há muito tempo atrás , quando a televisão ainda não roubara as pessoas de suas cadeiras instaladas nas calçadas de suas cidades, para entender o movimento vivo do mundo.

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Como não podia deixar de ser, o pensamento foi puxando pela memória e esta, como um fio, veio trazendo as lembranças. Fixei o olhar antigo em nosso Teatro Municipal recém-inaugurado e recordei os primeiros chamados que me conduziram a um caminho único e mágico, de onde jamais se pode voltar. O caminho do teatro.

E me vi menino, ansioso, cruzando o limiar das portas iluminadas dos circos que se instalavam na Rua Rangel Pestana, onde hoje funciona o Mercado Municipal. As tabuletas anunciavam grandes dramas e ingênuas comédias : “O céu uniu dois corações”, “O Conde de Monte Cristo”, ‘’Os Irmãos Corsos”, “Maria Caxuxa”, “Cala a boca, Etelvina”. etc...

Após a primeira parte das apresentações que eram as variedades, o mestre-de-cerimônias anunciava o espetáculo da noite, e nós, espectadores, ávidos do encantamento que se prenunciava, nos atropelávamos com nossas cadeiras par, rapidamente, nos instalarmos dentro do picadeiro, buscando o melhor lugar junto ao palco, para assistirmos às encenações. Após as três célebres marteladas sobre a madeira do palco, ficávamos no mais puro silêncio para poder fluir toda a beleza ingênua, popular e brasileira que se apresentava ali. Como sempre, um telão pintado ao fundo, e, completando o cenário, alguns objetos assinalados pelas múltiplas viagens e abençoados pelo pó de todas os caminhos.

Luzes na ribalta e a casinha do ponto, onde uma pessoa soprava aos atores suas falas, para que não perdessem o fio de seus enredos. Tudo tão ingênuo e tão mágico! Corações de papelão enfeitados de flores de papel cre- pom desciam do alto para enlaçar os casais enamorados, pais cruéis, donzelas traídas, lágrimas, heróis, vilões redimidos, sofrimentos superados pela nobreza da alma iam formando o caráter das pessoas e um estilo que marcou época.

Hoje, muitos diretores teatrais fazem uma releitura desse gênero, como por exemplo, Gabriel Vilela e seu grupo “Galpão”. O meu aprendizado foi o de entender a alma viajante desses artistas, sua ternura e generosidade, na entrega ao seu oficio. Mambembes e pobres, buscavam transcender-se pelo brilho da alma. Foi sua poesia e sua garra, seu sonho e sua liberdade que os faziam caminhar sempre. Lição maior de minha vida.

Muitas companhias teatrais, com essa essência passaram por nossa cidade, nas décadas de quarenta e cinqüenta. Lembro-me do Teatro de Alumínio, instalado na Praça do Bosque, onde funcionou o Teatro Espéria, antes do seu incêndio. O Teatro de Alumínio era dirigido e coordenado por Nino Mello, conhecido ator e diretor da época. Suas peças tinham, também, a mesma ótica das representadas nos circos. Quando terminavam os espetáculos, os atores circulavam pela platéia vendendo suas fotos aos espectadores, que as compravam como lembrança e gratidão pelo momento de arte que lhes fora oferecido. Linda cumplicidade! Mais tarde, quando mais moço, cursando o ginásio, comecei a frequentar a casa do Sr.Nelli e de sua esposa, dona Alice, que haviam formado um grupo de teatro amador. Eles traziam o sonho de construir um teatro. E realmente o conseguiram, mais tarde.

O grupo TAENCA, como era chamado, foi formado inicialmente por alunos da Escola Normal. Lembro-me de como ficava fascinado, quando passava pela Rua Amando de Barros e via os pai- néis de anúncio do repertório que apresentavam. Lá estavam expostas as fotos dos atores “botucatuenses mesmo”, em pose, à moda dos grandes astros da época.

Já sonhava estar no palco. Via-me ocupando um espaço daquele painel, me apresentado como um personagem ‘’importante’’ de alguma montagem. Mas, na verdade, era muito mais do que isso. Era entrar para além da porta limiar do circo.

Deixar de ser espectador e fazer parte de um elenco, o que dá a permissão de colocar o pé neste caminho. Conheci e convivi com o Sr.Nelli, esse batalhador das artes de Botucatu, e com ele aprendi que é importante acreditar nas propostas que se pretende realizar. Sua vontade e determinação me impressionaram muito. Seus ensaios eram feitos de forma acadêmica, sem as oficinas, laboratórios e aquecimento que se fazem nas montagens atuais. Decorava-se os papéis e íamos direto para as marcações. Mas havia bastante rigor e disciplina, seriedade no trabalho, elementos importantes para o fazer artístico.

Mais tarde, no começo da década de sessenta, mudou-se para Botucatu o Dr. Otávio Moralles Moreno, com uma certa experiência no profissionalismo teatral de São Paulo. Formou um outro grupo, do qual fiz parte, e nos ensinou novas formas de representar, indicando-nos novas linguagens, novas soluções. A Secretaria de Cultura Estadual começou, nessa época, a promover concursos de teatro amador, e no primeiro certame. Luzia Carmello Ferraz, que depois tornou-se atriz profissional, ganhou o prêmio de melhor atriz em 1963.

Pela cidade, começaram a surgir outros grupos, fomentando ainda mais a atividade cultural de teatro em Botucatu. Surgiu um grupo da Faculdade de Filosofia. Ciências e Letras, dirigido pelo professor Cury, do qual participavam a professora Maria Lúcia Dal Farra e sua irmã Maria Silvia, o Dr. Marcos Garita, as irmãs Caminhoto, Marlene e Cida. Formou-se ainda nesta década o grupo do hoje famoso dramaturgo Alcides Nogueira, do qual fez parte também a profa.Marly Bonomi, hoje diretora teatral e mestra em Teatro pela USP.

Em 1964, ano da revolução, decidi-me. Fui para São Paulo.

Queria ser ator. Queria entender esta arte e sobretudo fazê-la. Por lá fiquei 27 anos. Fiz escola, atuei. Tomei-me profissional. Senti todas as alegrias e dificuldades que o palco traz. Em 1975, casei-me e tive filhos. Afastei-me do teatro profissional e passei a dedicar-me ao teatro-educação. Tornei-me professor. Descobri então outras maravilhas. Através de meus alunos, retomei meu lugar de espectador. Mas, com outro olhar. Com eles, foi-me dado observar e perceber como o teatro nasce dentro do homem, e como num determinado momento se toma tão necessário a ponto de ser eleito como profissão de fé em uma vida. Entender a sua gênese ampliou-me mais ainda a visão de seu misterioso universo. Foi-me dado, nesse exercício, o presenciar de momentos milagrosos: como um ator fazendo seu primeiro vôo, abrindo sua primeira porta, descobrindo sua maneira de derramar-se em gestos dadivosos para revelar as verdades humanas no ritual pungente que sempre é uma encenação. Foi-me dado a possibilidade de encontrar os meios e as chaves que auxiliam esses seres-atores a se encontrarem. Foi-me dado ver esse começo para entender o fim, que é a busca tão intensa e intrigante desta arte, que é a de representar.

Até que um dia voltei. Feliz, constatei que em minha terra havia uma efervescência das artes cênicas. Isto em 1991. Soube que os universitários que aqui chegavam, participavam bastante dessas iniciativas, que muitos outros grupos também vinham se exercitando, nestes vinte e sete anos que estive fora e que, ainda neste período, por aqui passaram companhias famosas, vivificando ainda mais a vida cultural da cidade.

Soube ainda que muitos lutaram por espaços, não só os físicos, mas o de serem aceitos e vistos na dignidade de seu trabalho.

Nestes últimos quatro anos, não sei se por força das marés ou sei lá o quê, os grupos foram se dissipando. Foi um momento triste, mas que acontece sempre, nos movimentos da vida.

E agora, sentado aqui, em frente ao Teatro Municipal, revejo o dia da sua inauguração e ele, festivo, recebendo um mar de gente, gente da Praça Paratodos e todas as praças, artistas desta praça e de todas as praças, num espaço que deve pulsar para todos. E, sejam quais forem as marés, que sejam sempre as do sentimento da comunhão, que acompanha a Arte. Sempre. (Acervo Peabiru)

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