O Velho que Roubava Livros

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O Velho que Roubava Livros Athos Ronaldo Miralha da Cunha


Capítulo 1

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uito antes de Markus Zusak lançar o livro A Menina que Roubava Livros, eu já era velho e já roubava livros nas feiras de Santa Maria e em algumas da região. Eu estaria fazendo um plágio escrevendo sobre roubo de livros? Pode ser que sim, afinal, tudo se copia. Mas eu não estou me importando com isso. Admiro a Lei de Lavoisier que diz: ‘‘na natureza nada se cria, nada se perde e tudo se transforma’’. Então, eu não tenho nada a ver com a menina do escritor australiano.

de não carregar lixo para casa e jornal é um antro de traças. A praça é o destino dos velhos... e das pombas. Um refúgio para a solidão, um alento para o convívio. Aqui todos me conhecem. Poucos sabem o meu nome e eu também sei o nome de poucos. Eduardo é um dos que conheço e chamo pelo nome. Uma vez por semana, eu faço uma graxa. Eduardo me põe em dia com os acontecimentos dos frequentadores mais populares do centro. Eu era freguês do Paulinho, sempre comprava um bilhete de loteria dele. Hoje sou freguês de Eduardo. Nesse momento, ouço as duas batidinhas na caixa. É o engraxate pedindo para eu colocar o outro pé para dar seguimento ao lustro.

Eu moro num desses prédios velhos da Avenida Rio Branco. Estou lá desde os tempos em que Santa Maria era um efervescente centro ferroviário. Faz tempo, mas ainda ouço, nas minhas Isso foi o que sobrou para preencher a noites de insônia, os apitos dos trens. vida de um antigo bon vivant da cidade. Recordar... recordar... e contar as E o que faz um velho celibatário nesminhas peripécias na Feira do Livro. sa cidade de estudantes? Todos os dias Adoro livro, adoro a Feira do Livro. venho para a Praça Saldanha Marinho. Então, tudo o que eu contar vai se pasEssa é a minha rotina. Compro o jorsar aqui na praça ou vai envolver livros. nal e leio, sentado em um dos bancos Ah! Eu não me apresentei: meu nome é próximos ao coreto. Vem de longe essa Odracir. vida, dos tempos em que havia tartarugas no chafariz e ainda não havia o ‘‘bu- Agora vou começar a leitura de um liraco do Behr’’. Após a leitura, repasso vro que roubei na feira de Caçapava do para algum amigo da velha guarda, par- Sul no ano passado, A Ninfa Inconstanceiro de ócio na praça. Tenho o hábito te de Guillermo Cabrera Infante.


Capítulo 2

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ara me apresentar, tenho que contar a história de meu pai. O velho Ricardo era um bem-sucedido comerciante de Santa Maria.

mãe. Puxou uma caneta do bolso e escreveu o próprio nome em letras garrafais num papel que estava sobre a mesa de cabeceira. Colocou contra a luz da janela e leu o nome invertido.

Nasceu em 1903, alguns meses antes do tricolor de Porto Alegre. Aos 20 anos, começou um pequeno comércio na Rua do Acampamento e prosperou vertiginosamente. Aos 27, casou-se com Madalena – filha de um fazendeiro – e deste enlace nasceu, em 1935, o único filho. Minha mãe, não sei porque cargas d¿água, queria colocar meu nome de Luiz Carlos. Meu pai, como um atento observador da política, foi contra.

Quando Madalena acordou, Ricardo alcançou o papel com o meu nome. Estranhou o porquê de o marido escrever. Bastava dizer que o filho teria o mesmo nome do pai. Normal naqueles tempos, ela concordaria sem problemas. Então, Ricardo sugeriu que minha mãe virasse o papel e lesse o nome pelo avesso.

– Odracir? Ricardo! Você quer colocar o nome do guri de Odracir? – perguntou com uma cara de espanto e contra– Imagina! Homenagear um comunis- riedade. ta! – foi taxativo. – Claro, Lena. – Meu pai chamava miMinha mãe silenciou. Não iria connha mãe de Lena – O guri vai ser o meu trariar o marido. Naqueles tempos, as avesso. Quero que seja melhor do que mulheres eram submissas, e Madalena eu. Meu pai estava certo em seu progaguardou a decisão do esposo. Consta nóstico. Eu seria o seu avesso. Ele fora que o velho andou pelo quarto do Hos- um trabalhador incansável, eu um “boa pital de Caridade Astrogildo de Azeve- vida” descansado. do e parou em frente à janela observando a rua. Naquele dia, minha mãe estava lendo Os Três Mosqueteiros. Sugeriu os noLá fora, embaixo de um pergolado, al- mes Athos, Aramis, Porthos ou Dartagguns médicos conversavam animadanan. Mas o velho Ricardo foi taxativo: mente. Meu pai, num estalo, virou-se para a cama onde repousava a minha – O guri vai se chamar Odracir.


Capítulo 3

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omo eu ia dizendo, a praça é o meu habitat. E o período que eu mais gosto e mais me divirto é o mês de aniversário da cidade, quando acontece a Feira do Livro.

Eu caminho pela Avenida Rio Branco para queimar calorias e pratico leitura numa salinha que organizei com esmero no meu apartamento. Durante parte do dia, perambulo pelo Centro.

Farei isso até o dia que não conseguir O mês de maio em Santa Maria é tudo mais manter-me em condições dignas de bom. A feira tem essa capacidade de de uma vida solitária e alguém, caridoaproximar as pessoas. Todas as pessoas samente, me encaminhar para um asitêm uma história para contar e todas lo. Como eu já comentei: nunca fui de acalentam o sonho de escrever um litrabalhar, vivo das rendas acumuladas vro. José Saramago dizia que “todos são pelo meu pai. Tive uma vida de playboy escritores só que alguns não escrevem”. e não tive tempo de construir família, mas pelo menos não dilapidei o patriEu acalentei o sonho de ser escritor mônio dos meus pais. Nesse caso, não quando jovem – tempo eu tinha, não decepcionei o velho Ricardo. tinha perseverança. Nunca fui de pegar no pesado, e escrever requer disciplina Assim, quando eu morrer, já deixei o e pesquisa. E, convenhamos, ter uma testamento. Doarei minha fortuna para vida folgada e sem compromisso era financiar a Feira do Livro. Já que de mais emocionante do que ficar horas a forma ilícita eu financio minhas leitufio diante de uma máquina de escrever. ras, nada mais justo que eu retorne com meus bens o financiamento de futuras O tempo passou, e as ideias deixaram feiras. Mas, por enquanto, eu só tenho de vir e aquele desejo de colocar uma um único desejo: deixar minha bibliohistória no papel se dissipou pelos anos. teca mais volumosa. E para isso estou Hoje, sou um leitor voraz. Sou compul- aqui na praça. Vamos ver o que temos sivo por livros. Muitas vezes, adquiripara hoje. dos de forma não muito republicana, para usar uma palavra da moda. Afinal, Já que falei em morrer, quem sabe eu eu vivo sob a égide do marasmo e pre- garimpo O Cemitério de Praga, de Umciso ter alguma emoção. E roubar livros berto Eco. é empolgante.


Capítulo 4

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u preciso fazer uma pausa nessa narrativa. Essa história não está no tempo real da feira, e eu preciso dar um tempo na minha vocação de ladrão de livros.

dia de enredos. A lógica inversa não me fascina, mas me conforta no ato solitário de manusear os livros.

Sou malandro, um velho que já viveu demais e se diverte roubando livros.

Do meu apartamento, eu não queria imaginar o resultado de tamanha agitação vinda da Rua dos Andradas. Gritos. Sirenes. Buzinas. Tumulto generalizado.

Para um morador da Avenida Rio Branco, a trágica noite do dia 27 de janeiro de 2013 foi de susto e aflição. Da Há uma necessidade fremente de algu- janela de meu quarto, pude ouvir os mas lembranças amargas. Tristes reme- gritos desesperados dos jovens na boate morações porque não podemos ficar Kiss. Aquilo foi uma loucura. Já leram alheios a uma tragédia de incalculáveis Dante? Foi o inferno de Dante, para reproporções. sumir como defino aquele descalabro.

Mas sou emotivo. Hoje é um dia que me desconcerto e me desencontro e não consigo viver na minha normalidade. Minha vontade era de continuar contando minhas peripécias na “arte” de adquirir meus livros. Hoje, não.

Não suportei e desci para enfrentar a madrugada. O centro de Santa Maria fervilhava. O que um velho octogenário faz para ajudar? Imaginei que, se não atrapalhasse, estaria ajudando bastanHoje vou me dedicar ao ócio e lamen- te. Então, me postei na esquina junto a tar a existência humana. Essa é a miparede de um banco e fui testemunha nha “condição humana” hoje... nunca li ocular da tragédia da boate Kiss. O reHannah Arendt. sultado daquilo tudo estava a olhos vistos: mortes. Nunca mais tive um sono Tem sido assim em todos os dias 27. Eu tranquilo. Ainda ouço os gritos de soseleciono alguns livros e fico lendo tre- corro. Hoje, são as minhas noites que chos a esmo. As histórias ficam desco- pedem socorro. nexas, mas é essa minha intenção. Não quero uma história real. Desejo uma E agora leio trechos de Assim Começa confusão de personagens e uma balbúr- o Mal, de Javier Marias.


Capítulo 5

E Livro.

duardo é um excelente profissional. Os sapatos ficaram brilhando. Pago, deixo uns trocados a mais e vou para o meu périplo pela Feira do

Eu frequento a feira em sua plenitude, não tenho pressa em folhear os exemplares em cada banca. Os livros que pretendo adquirir não são escolhidos ao acaso, por impulso. Eu faço uma lista muito antes da abertura da feira. Elenco uma média de 15 livros para o período. Evidentemente, seleciono pelos meus autores prediletos. A minha tática — modus operandi — como falou, certa vez, um amigo que pretendia conhecer esse know how para aquisição de livros. Jesus, o nome desse amigo. Mas faltou coragem para exercitar o furto de livros. Ainda acho que seu nome o impediu. Jesus é uma pessoa honesta demais para roubar, para cometer um delito, por menor que seja.

teger a minha calvície. Um senhor de idade vestindo terno é insuspeito diante de um estande de livros. Pelo contrário, tratado com deferência. Como disse, eu não tenho pressa, em algumas bancas já me tornei amigo dos atendentes e eles não fazem a menor ideia do porquê de minha presença, diuturna, durante a Feira do Livro. Para evitar suspeitas, quando tenho êxito no furto, eu adquiro outro exemplar. Junto com o roubo, uma aquisição em cash. Quem duvidaria de um ancião, barba branca e um assíduo comprador de livros? Desconfie de um velho sorridente e gentil. Esse o meu conselho aos livreiros. Hoje, em um estande de importante editora do Estado, eu furtei A Menina que Roubava Livros e comprei Os Ratos, de Dionélio Machado.

Vou para casa mais cedo. Tenho muito Mas a história do Jesus e sua namorada que aprender com essa menina. Se bem eu contarei mais adiante. que eu me identifico mais com os ratos. Durante a feira, eu me visto a caráter. Terno e gravata. Nos dias de chuva ou baixa temperatura, acrescento à indumentária um chapeuzinho para pro-


Capítulo 6

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ra início da tarde. Logo após a abertura da feira eu estava, displicentemente, manuseando um livro do Paulo Coelho – só folheando, sou preconceituoso e não leio esse escritor – quando vejo a Leonardinha do outro lado da banca revirando a caixa de saldos. Uma antiga namorada, filha de uma tradicional família. Por conta de nossas folgadas mesadas, passamos três meses num distante verão em Tramandaí. Ela queria um marido para a vida toda e eu queria viver a vida toda sem relacionamento. Nossos pais faziam gosto do casamento. Quando eu percebi a armadilha em que estava me metendo, pulei fora. Alguns meses após, li nas colunas sociais que ela casara com um médico, e nunca mais nos falamos. Nos encontramos em um ou outro evento social, mas apenas trocamos olhares e discretos cumprimentos. Leonardinha era de origem italiana, cuja família ficou rica vendendo vinho de péssima qualidade e queijos com alto teor de sódio. E sempre fora uma pessoa unha de fome... mão de vaca. Tudo era pelo menor preço. Lógico, na Feira do Livro, ela estaria revirando os

saldos. Éramos um lindo casal – como disse minha mãe: “Um feito para o outro” –, mas eu não era feito para ninguém. E, agora, vejo que o tempo foi cruel com Leonardinha. Tudo bem, eu também sou velho, mas ainda apronto com quem dá mole. Ora, para que servem os comprimidos azuis? Nesse momento, Leonardinha está mais próxima, e manuseia Ulysses, de James Joyce. Não acredito que aquela anta vai comprar o Ulysses. Cá entre nós, ela não deve ter lido O Pequeno Príncipe – livro que não li e que não pretendo ler. – Moça quanto é esse? Aceita cartão de crédito? – a voz de Leonardinha era inconfundível. Nesse momento, na hora de fechar o negócio, como por instinto, peguei o primeiro livro que estava ao meu alcance e enfiei o rosto nele. Larguei e virei às costas para ir em direção o estande ao lado. – Olá, Odracir! Não reconhece uma antiga paixão?


Capítulo 7

F

oi impossível ignorar o chamado da antiga namorada. Sou um salafrário, mas guardo resquícios de uma boa educação. Eu estava diante de uma dama, e um bon vivant sempre trata as damas com deferência, mesmo que ela tenha sido, outrora, um calo no sapato. Chamou-me atenção o fato de Leonardinha estar com Ulisses, e isso aguçou minha curiosidade. Convidei-a para um cappuccino no Café da Casa de Cultura. O sim da velhota colocou por terra minhas intenções de adquirir – no melhor estilo Odracir de comprar livros – Crime e Castigo, de Dostoievski, naquela tarde com prenúncio de tempestade.Num primeiro momento, seria um castigo aquela companhia – e imaginei um crime para encerrar o expediente. Reviver certos amores não faz o meu estilo.

minutos, repassou toda a sua vida com o falecido médico. Não tiveram filhos. O esposo não era fértil, mas ela levou a culpa pela infertilidade. Coisas de uma sociedade hipócrita. Fazer o quê? Eu fazia de conta que me interessava pelos assuntos da Leonardinha. Em dado momento, após o segundo cappuccino, imaginei o que faria se tivesse um machado à mão. Raskólnikov não teria dúvidas. A tarde que parecia um desastre foi salva por Jesus, um dos amigos de ócio. O salvador chegou em nossa mesa e se abancou. Esse era o estilo do Jesus, pouco importando se estava atrapalhando ou não. Naquele caso, era uma imensa ajuda. Colocou sobre a mesa quatro livros para colorir. Eu estava vendo coisas. Uma velha burguesa com Ulisses e um intelectual sexagenário com livros para colorir. Olhei para Jesus e para céu.

Não sou saudosista, e o melhor sempre está por vir. Mas, enfim, eu estava – Perdoai-vos, Senhor, ele não sabe o numa mesa, tomando cappuccino com que faz! uma ex-namorada de meados do século passado. Pedi licença e levantei. Tinha mais o que fazer. Crime e Castigo era o meu Leonardinha continuava a mesma pes- intento. soa. Falante e detalhista. Nos primeiros


Capítulo 8

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o dia seguinte, o meu encontro com Jesus foi na fila para adquirir a ficha para o cafezinho expresso. No meu caso, um cappuccino expresso com bastante canela. Não teceu um comentário sequer sobre Leonardinha. Apresentou-me, entusiasmado, a namorada Madalena – incrível, o mesmo nome de minha mãe –, uma jovem estudante de pós-graduação de Agronomia da UFSM. E jovem demais para o meu intelectual e sexagenário amigo.

modus operandi.

Nesse dia, eu estava em busca de Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, e o meu felizardo amigo me acompanhou na primeira investida. Tremia e suava como um condenado. O estado emocional de Jesus afetou meu desempenho. Não consegui colocar o primeiro volume da edição na bolsa e fiquei segurando o exemplar, também em estado de pânico. Então, resolvi pagar o atendente. Mas, num último instante, consegui colocar na bolsa, junto com o livro de Balzac, O Estrangeiro, de AlEu tenho 80 anos e Jesus tem 15 a me- bert Camus. O instinto falou mais alto, nos do que eu. Calculei em 40 anos a e Camus caiu na minha bolsa a tiracolo. diferença de idade entre o casal. Jesus e Inclusive, me surpreendi com minha Madalena extravasavam felicidade. Mi- agilidade. nha mente fervilhava em elucubrações. Por alguns momentos, fiquei imaginan- Paguei, saí e fui direto para um bando que já tinha visto ou lido algo sobre co próximo ao coreto. Também suava Jesus e Madalena em O Código da Vin- como um condenado. Jesus não aguenci, na Santa Ceia. tou e havia sumido. Jamais seria um ladrão de livros. Não tem o timing da Em Santa Maria, a realidade imitando ocasião. Nasceu para ser honesto. a ficção. Na fila do cafezinho, eu seguia os passos de Jesus e Madalena. Num Eu vou me acalmar lá na Confeitaria desses momentos, Jesus se volta para Copacabana, com uma água mineral e mim e indaga que desejava ver a minha uma bomba calórica de chocolate com performance no ato de roubar livros. coco. Queria conhecer, finalmente, o meu


Capítulo 9

N do.

as minhas incursões pela feira, não descobri um exemplar sequer de Crime e Castigo. Meu intento deveria ser adia-

do, imagina rock de péssima qualidade, um atentado aos ouvidos. Mas vamos dar um desconto. Eu sou um velho ranzinza, ex-galanteador e nascido para dançar boleros.

Na praça de autógrafos, um poeta rePermaneci um bom tempo em uma gional ainda enfrentava uma enorme banca com uma gama de clássicos da fila de leitores. Não sou leitor de poeliteratura. Estava manuseando A Trésias e achei inusitada a baita fila para gua, de Mário Benedetti. Sou leitor o poeta. Sempre ouvi dizer que poesia desse uruguaio. Tenho duas edições em não vende. Imaginei que a solidariedaportuguês e uma em espanhol, mas não de dos amigos não desapontou o escritive coragem de roubar. Pela primeira tor. vez, tremi. Algo estranho aconteceu, porque me bateu um pavor. Acho que o No palco, a trilha sonora continuava a olhar desconfiado da atendente atingiu mesma: rock pesado. E o poeta deveria a minha impetuosidade. Eu fiquei para- estar ansioso por uma milonguinha. lisado e não consegui praticar o furto. Desculpem-me os autores contemporâColoquei o livro, novamente, no lugar neos, mas ler os clássicos é fundamende destaque da banca e fui até o Livro tal. Eu só leio os clássicos e literatura Livre ver o que estava acontecendo. atual de qualidade. Então, meu devasso Uma banda de rock pesado estava se tempo já está comprometido. Autor apresentando. Isso, sim, é castigo. Exis- regional não está no meu horizonte de te gosto para tudo e tem quem goste de leitura. Amanhã, vou garimpar Memórock pesado. Mas numa Feira do Livro, rias de Minhas Putas Tristes, de Gabriel onde estamos em estado de contemGarcía Márquez. plação, liberando nossa criação e lapidando palavras e frases, rock pauleira no palco é para jogar no lixo uma reflexão mais introspectiva sobre literatura. Rock pesado de qualidade é um atenta-


Capítulo 10

Q

ual o melhor horário para roubar livros?

Uma dica para principiantes: logo nos primeiros minutos da abertura da feira, os livreiros estão com a atenção voltada para a organização dos estandes e os livros estão em desordem. Assim, fica mais fácil roubar e, se for o caso, dissimular.

João. Sentou-se e mostrou a sua última aquisição (no cartão de credito, salientou ): um exemplar de Travessura da Menina Má, de Mario Vargas Llosa.

Não quis perguntar o motivo daquela aquisição, estava apenas imaginando algo mais bandalho para um velhote que namora uma jovem. Peguei uma cocada de maracujá e saboreei com o meu quinto cappuccino. Afinal, a vida Hoje foi um dia profícuo. Consegui co- é doce e bela. Mas como veremos, não locar três pockets de uma vez só. Algo para o amigo Jesus. inusitado em minhas ações, e foi uma única vez. Minha feira encerrou nos Jesus pediu um café expresso sem açúprimeiros 15 minutos. Eu passei o res- car e bem forte e começou a folhear o to da tarde degustando cappuccinos no exemplar de Vargas Llosa. Estava muito Café Cultura e folheando minhas aqui- triste e quase chorou. Nem as cocadas sições: O Longo Adeus, de Raymond conseguiriam adoçar a vida desse Jesus Chandler, Dom Segundo Sombra, de em minha frente. Estava todo ouvidos. Ricardo Güiraldes, e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de As- Amigos são para essas horas — porque, sis. pelo visto, era Madalena que estava lavando as mãos. Então, Jesus começou Estava distraído numa discreta mesa de a contar o “longo adeus” de Madalena. fundo, satisfeito com minha agilidade Eu, em sua frente, como um “segundo e com minha perspicácia. De certa for- sombra”. ma, feliz com os livros adquiridos. De repente, como por encanto, Jesus se posta a minha frente, com um semblante acabrunhado, triste. Trazia em uma das mãos uma bandeja com cocadas do


Capítulo 11

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esus estava desenxabido. Era o — Como assim, trouxa? — perguntei. retrato da tristeza no Café Cultura. As cocadas do João não foram — Tu não tá ouvindo o que estou dicapazes de lhe adocicar o ânimo. zendo. Tá surdo? Eu paguei as passagens de Madalena para o Canadá e ainQuando o meu amigo contou que a da dei uma verba extra. namorada — a jovem e angelical Madalena — iria para um intercâmbio no — Trouxa! Tu é muito trouxa. Ingênuo Canadá, eu também fiquei triste, em e simplório. Palhaço! solidariedade a Jesus. Naquele final de tarde, ele contava suas peripécias com Jesus não gostou da minha sinceridade. a amada e o desfecho do seu primeiro Um mês de namoro e ele banca a namês de namoro. morada num intercâmbio no Canadá. Sou capaz de apostar que bancou tamConfesso: eu não me abalo com as de- bém a passagem do namorado da josavenças entre namorados e mal conse- vem e angelical Madalena. gui prestar atenção ao seu choroso solilóquio. Eu estava em outra dimensão. Eu não estava muito disposto a ouvir os lamentos descornados de Jesus, e fui Como por encanto, veio em minha salvo pela chegada surpresa de Leonarmente Lolita, de Vladimir Nabokov. dinha. Vejam como são as coisas: outro dia, Jesus me salva de Leonardinha, Não estava em minha lista inicial, mas agora Leonardinha me salva de Jesus. era um bom investimento. Enquanto Paguei a conta e deixei uma cortesia imaginava algo sobre a vida de Napara cada um dos meus velhos amigos: bokov, seus livros e sua vida cotidiana, um cappuccino com bastante canela e ouço uma frase que me trouxe de volta chantili. Jesus merecia uma tarde mais a realidade. doce com a “ex-doce” Leonardinha. — Odracir! Aquela guria me fez de trouxa.

Eu iria em busca de Lolita ou Dom Quixote, o primeiro que se atravessasse em minha frente.


Capítulo 12

M

ais um dia para renovar a graxa dos sapatos e incrementar minha biblioteca. Ainda estou pensando nas obras que não adquiri ontem.

Aliás, adquirir um bem com o esforço do trabalho nunca me comoveu. A filosofia da miséria não me diz respeito. Uma contradição pseudo-dialética. Dobrei a gorjeta de Eduardo e me senti melhor.

Ontem, na minha atenta volta pela feira, nem Lolita e nem Dom Quixote. Saldo zero no meu retorno.

Mas haveria mais surpresas. No viaduto Evandro Behr – ou buraco do Behr – encontro Jesus e Leonardinha de mãos dadas. Alguns minutos de espanto. O Ouço as duas batidinhas na caixa, era que dizer numa hora dessas? O que fao Eduardo me pedindo para seguir o zer numa hora dessas? Comprar um lustro do outro sapato. Quando reviro livro do Paulo Coelho na primeira banminha carteira para pagar pelo serviço, ca. Eduardo me mostra o livro que adquirira. Um livro do Paulo Coelho, Onze Altos loves por entre as estandes da feiMinutos. Dizer o quê? Não li e não ra. Não acreditava no que estava vendo. gostei? Era a minha intenção imediaHá dois dias, Jesus era um guri faceiro ta, mas a louvável atitude do engraxate com uma namorada que podia ser sua não permitiu o sincero comentário. Ele bisneta. Agora, abraçado a uma senhocomprou o livro com suas economias ra octogenária. Mais uma vez, era o Jee eu adquiria de forma ilícita, mesmo sus operando um milagre, só que nesse sendo folgado financeiramente. Um caso era o Jesus (o verdadeiro) operantapa-de-luva em minhas pretensões. do em favor de Leonardinha. Com aquela revelação, eu fiquei incomodado. Quase me deprimi, mas logo me refiz. Não me abalo por pouca coisa e essas contradições fazem parte da vida. Cada um de acordo com as suas necessidades, a minha era roubar livros.

E o que resta para um ladrão de livros? Juro, depois dessa, eu vou roubar O Pequeno Príncipe. E vou me isolar por algumas semanas.


Autor Athos Ronaldo Miralha da Cunha Ilustração Elias Monteiro Diagramação Rafael Sanches Guerra

Maio 2016


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