Contos e poesias (issuu)

Page 1




Parte legal do livro Oditium reptati sciunt, nus et quunt qui dolupid utentiis aspelestibus Ur assunt, nihitibeat que reperum fugit, simi, oditat quassuntis aces estiis consedi dolorem quia int fugiasin reped et eaquo incid quam, cusae. Et et quidi temque que alia




Sumário Contos Metamorfose .............................................................................13 Compota de limão ..................................................................16 A árvore que se apaixonou por uma nuvem.......................22 A primeira morte....................................................................27 Varais .........................................................................................35 Apreensão .................................................................................39 Es de Esmeralda .......................................................................45 Maria da manta .......................................................................52 O homem atrás da porta ......................................................59 Violeta .......................................................................................64 Não sei como aconteceu ......................................................70

Poesias Acento .......................................................................................77 Ciclo ..........................................................................................79 Oceano preciso ........................................................................81 Imenseiro .................................................................................84 Garça .........................................................................................87 Silêncio que enche a barriga ..................................................89 Sem esperar .............................................................................91 Corpo e culpa ...........................................................................93 Sentenças ..................................................................................96 Habitante retirado ..................................................................98 Casa da memória triste ........................................................100

7


8


Apresentação

Lorrum restio consedit vitat ut et lic tem. Gia verferc hillaborum fugiae aut et est, ute voluptam la dellate lat ommost volupis dic tetur, odit reptae. Tem quasped molumque perro te molumqu asperferrore volessum sam, venduntium iusapic temporro totaecum aliqui officide volore pro ellignam labores cipsam, cus ut oditat. Nem nis veruptatatat velici cum vollect urehenditat etus pror am repudisquam quos et, que eum int que pratius rem undesci psaessum simustibusa de desequidus eosaerrum vit, cust arunt. Ibusdae nonet essum fugit vollam hil ium re, nullectur alignimaio. Ulpariat eum im fugias moluptas estiores audit vendus minci sollabo. Me nos exerrovit re dolent ellit plandio ritasse quunt, quisti to officit aecaborem lab in ratur? Qui rerepud itaepud igendion rectia comnima sus ex eum ut maio. Fere explique voloritae sus suntionseque doloratia consedis quiam, tempere nemped quia consequi cusdae.

9


10


Contos

11


PrĂŞmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

12


Contos

10 LUGAR (Regional)

Metamorfose Aline Gonçalves dos Santos Foz do Iguaçu - PR

Breve Biografia Tenho 25 anos, moro em Foz do Iguaçu há 6, vinda do Rio de Janeiro. Escrevo nas horas vagas, como hobby, sem pretensões maiores de seguir caminho na literatura. Desde sempre tive preferência por poesias, mas os contos e a escrita livre me seduzem fortemente. Sou militar da Aeronáutica e estudante de Psicologia, e sonho em poder um dia aliar a psicologia e o controle de tráfego aéreo numa obra literária especial.

13


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

METAMORFOSE Ela corria na chuva, carregando um pacote enorme embaixo do braço direito. Não sabia ao certo o que era; seu patrão a tinha incumbido de levá-lo até uma estação de metrô, do outro lado da cidade. Recebeu do chefe instruções claras, concisas e tão veementes que qualquer um se sentiria importante por carregar um pacote que recebeu tanta atenção, mas ela não. Sentiu-se explorada e começou a imaginar o que será que tinha ali dentro que ele mesmo não poderia levar. “Aquele mal-amado não consegue fazer nada sozinho”, pensou. “Aposto que sua esposa faz o próprio gozo”. Sacudiu a cabeça e tentou usar a dica de seu psiquiatra e respirar fundo, imaginando uma praia ensolarada. Não funcionou. “Tenho certeza que ele me quer fora da empresa! Sou uma ameaça à sua mente ultrapassada e fraca. Mas ele não vai se ver livre de mim tão cedo... Ah, não vai mesmo.” Ela deveria levá-lo até o metrô e esperar que um contato da filial a encontrasse lá. Não precisaria esperar muito, o chefe disse, o contato já estaria esperando. Colocou o pacote no banco do carona, ligou o carro e saiu da vaga. “acho que dá tempo de assistir a novela”, ela cogitou. Cortou um, dois, três carros; passou por um semáforo na luz amarela e quase não parou numa lombada, não queria nem tirar da quinta marcha. Por isso ela não se deu conta quando o pacote se rasgou na lateral. “Mais quinze minutos e chego lá”, ela supôs, ligando o rádio e colocando o CD do Caetano. Curvou uma esquina à direita, passou por três quadras, curvou à esquerda. Dirigiu por mais cinco minutos, quando de súbito sentiu algo gelado no pescoço. O susto foi grande e quase a fez perder o controle do volante; levou a mão ao pescoço e sentiu nele o que a estava enlaçando. Suou frio. Não conseguia acreditar. O coração bateu depressa, espancou, doeu. Medo. A via onde se encontrava não possuía margem nem acostamento, dava acesso a uma ponte importante que recebia três outras vias. O tráfego aquela hora do dia era intransponível e todos os transportes públicos interestaduais 14


Contos

passavam por ali. Ela precisava parar, sair rápido daquele carro e não olhar mais pra trás. Precisava gritar por socorro, urgente! Tinha uma cobra em seu pescoço e ela não tinha como escapar! Olhou pro pacote ao seu lado e viu o embrulho rasgado e uma gaiola de alumínio já retorcido que anteriormente abrigava a cobra, agora enroscando seu pescoço, sufocando-a. Se debatia o máximo que podia, gritava a plenos pulmões, tentava arrancar a serpente com toda a força que tinha . Nada parecia funcionar. Sua respiração já não era regular, sua visão embaçava. “É, chefe... Não é que você conseguiu mesmo? Maldito seja!”, praguejou alto, num último lampejo de consciência. O volante tremulou em suas mãos, virou a esquerda e, por causa da alta velocidade, a reação do veículo foi ampla. O carro atingiu um ônibus que a acompanhava na faixa lateral, que tombou com o impacto. O estrago foi enorme. A perícia terminou a investigação com apenas duas supostas provas da causa do acidente. Engana-se quem pensou que uma delas era uma cobra. Havia no celular da motorista uma mensagem: “Seu remédio acabou há cinco dias e eu não consigo falar contigo para vir buscar mais. Você precisa dele, pode surtar a qualquer momento. Por favor, me ligue. Pereira, seu psiquiatra.”

15


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

10 LUGAR

Compota de Limão Ana Paula Giannini Rydlewski (Paula Giannini) Itanhaém - SP

Breve Biografia Paula Giannini é dramaturga, roteirista, contista e atriz. Entre suas obras mais conhecidas encontra-se a comédia “Casal TPM” – espetáculo de Teatro que já foi assistido por mais de 500 mil pessoas na cidade de São Paulo. Em 2014 integrou o Núcleo de Dramaturgia David Mendes, na RPCTV (filiada da Rede Globo no Paraná). Como autora possui textos infantis (entre eles “Se Essa Rua Fosse Minha – Espetáculo de Brincar” – merecedor de inúmeros Prêmios como Valores do Brasil e Pontinhos de Cultura), comédias, dramas e textos focados na cultura popular brasileira. Seu original “Pequenas Mortes Cotidianas” foi selecionado entre 400 obras, para o Concurso Tutoria da “Casa das Rosas” e atualmente se prepara para ser lançado pela Editora Oito E Meio (agosto de 2017).

16


Contos

COMPOTA DE LIMÃO Ingredientes 2,5 kg de limões - 2 kg de açúcar Isso aí é para você, olha. Tem carne. É de carne que você gosta, não é? É, eu sei. Quem é que não gosta de comida boa? Minha filha preparou para você. Só não conta para o patrão dela, porque aquele ali vive azedo. Se vê alguém dando a comida que sobra no restaurante, faz o maior escândalo. Ele fala que é perigoso, que pode dar processo. Que a lei diz que se a sobra fizer mal, a pessoa pode colocar ele na justiça. Até parece. Fico até rindo, imaginando um morador de rua com dinheiro para contratar advogado. O ser humano tem cada uma. Cada lei mais sem pé nem cabeça, você não acha? Não, né? Você não acha nada. É cachorro. Não entende nada dessas mesquinharias de gente. Sorte a sua, porque para você, pode. Você não processa ninguém. Não. Você é como a minha filha diz, a ponta final da cadeia alimentar do lixo. Você, os ratos, os urubus. Só que você é mais bonitinho. Minha filha tem cada uma. E adora falar difícil. Ela faz faculdade. Olha, trate de comer tudo, vai, lambe o fim da vasilha que ela precisa terminar o serviço. O ônibus sai à meia noite. E se ela perder, tem que dormir aqui e eu não gosto. Pronto? Agora com a barriga cheia veja se você e seus amigos não vão revirar toda a lixeira. Preparo dos Ingredientes Corte a parte de cima dos limões e rejeite-os. Descasque a fruta e corte a casca em tiras largas, aproveitando apenas a parte verde. Reserve. Retire a parte interna branca e rejeite-a. Retire os caroços e corte a polpa em pedaços. Junte polpa e cascas em uma só panela. Está aí ainda, rapaz? Fazendo o que? Não adianta me olhar com esse olho comprido, que tudo que ela consegue lhe dar é esse resto de comida. 17


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

Você se parece com minha filha, sabia? Não está satisfeita nunca. Ela é assim. Igualzinha a você. Até mergulhar no lixo, ela mergulha. “Mergulhar no lixo”. É assim mesmo que ela diz. Falando assim fica até bonito, não fica? Fica chique. Minha filha estuda. Sociologia. Está no terceiro período, é assim que se diz. Aí, ela pensa que descobriu a pólvora, fazendo coisa que a humanidade já faz desde que o mundo é mundo. O que é que foi? Isso aí? Está cheiroso, não é? É limão. Ela separou daqueles que iam para o lixo. Estão quase bons, quer ver? Tem galego, taiti e o preferido do chef, o siciliano. Aqui no restaurante eles jogam tudo fora. Não pode ter um machucadinho, que é deixado de lado. Está vendo? Lixo. Ninguém pode pegar. Nem funcionário. Mas ela pega. Pegar do latão não é roubar. Então ela apanha e separa aí no cantinho. A menina tem talento, tem cada ideia. Mergulha no lixo. Já falei, não é? Então, ela recolhe e depois lava tudo com cuidado. Dá até gosto de ver. Usa luvas, botas, até máscara, acredita? Eu acho é a maior graça. E depois de bem limpinho, ela faz doce. Compotas. Ela e a amiga colocam até etiqueta. Chamam de Junk Maria – Garbage Compota. É inglês. Quer dizer compota de lixo da Maria. Pode? Cada ideia. Maria sou eu. Maria Hilda. E compota é compota. É de fruta mesmo. Ela faz de mexerica, de mamão, de tudo que é fruta. Tudo do lixo. Já falei isso também, não é? As compotas dela fazem o maior sucesso. No Brasil, e até no exterior. Mas ela não é rica, não. Não. Ela não vende. Vai falar para ela vender... Fica ofendida, faz beicinho. É ativista. É assim que se diz. Recolhe o resto dos ricos para alimentar os que precisam. Eu acho bonito. Justo. É um dom. Mas ela não foi sempre assim, não. Antes ela tinha vergonha. Não deixava nem eu ir buscar na escola. Dizia que eu era a babá dela, pode? Eu achava é graça. Ela tinha vergonha. Era tabu. Tabu. É assim mesmo que se diz. Uma coisa que ninguém podia dizer lá em casa. Um assunto proibido, dava briga. Isso eu aprendi sozinha. Não sou burra. Só não sei escrever direito, mas tenho a minha cultura. Ela andava na minha frente, assim, igualzinho a você, do meu lado, mas sempre um passo à frente. Disfarçava, porque tinha vergonha. Mas não foi a vergonha dela que pagou o cursinho para a faculdade, foi? Não. Foram essas mãos aqui, olha. E catando o que? Lixo. E sem luvas. Eu alimentei todos os meus três filhos só com lixo. Xepa de feira, comida jogada fora de tudo que é restaurante, das casas. E pão. Tinha uma padaria que dava tudo que sobrava no fim do dia. Fazia fila. E no fim das contas, ela aprendeu isso comigo. Mas fala para ela uma coisa dessas... Fica zangada, fica doida. É 18


Contos

muito criança ainda. Depois ela aprende. Já aprendeu tanta coisa. Ela gostava de ir sempre na contramão da minha mão. Mal sabe ela, que faz tudo que aprendeu comigo. E eu, o que aprendi com a minha mãe. Essa compota de que eu falei... De quem você acha que são as receitas de doce desse livro que ela está fazendo? Tudo. Já vi até ela beijar o pão quando precisou dispensar. É difícil. Já falei, não é? Tem personalidade. Ela diz que jogar fora, só o que estiver estragado. Só o que fizer mal para o ser humano. Mal sabe que está é repetindo em palavras o que eu fiz a minha vida toda. Toda. É pecado. Isso de jogar pão no lixo, sabe? Outro dia ela chorou, coitada. Estava cansada. Passaram a máquina em cima de uma plantação inteira de batatas. Não ia dar lucro aos produtores, parece que foi algo assim. Morre uma pessoa de fome no mundo a cada 4 segundos. Você pisca e pronto, já morreu alguém. Triste. Olha aí, já morreu outro, no tempo de você se coçar. Que Deus o tenha em um bom lugar, porque aqui na Terra só conheceu o sofrimento. Uma vida desperdiçada. Igual a lixo. Eu penso assim. A vida é uma só, e disso eu sei muito bem. E eles preferem passar máquina a dar para quem tem boca em casa para alimentar. Está muito errado. Você não acha? Olha aí, o ônibus. Atrasado. Fica aí. Cachorro não pode entrar, rapaz. Amanhã ela volta. Fica. Modo de Preparo Coloque a polpa e as cascas de limão em uma panela cheia com 2 litros de água. Coloque a tampa com espaço para que o vapor saia livremente. Cozinhe em fogo brando durante 1 hora. Rapaz, você dormiu aí? Sentiu minha falta? Sentiu, claro. Minha filha já arranja uma coisa para você roer. Está com fome? Mas que pergunta boba. Claro que está. Quem é que alimenta você na folga dela? Ninguém. Espera, rapaz. Não. Para com isso, sai. Isso aí não é para você. É doce. Faz mal para cachorro. Olha aí quanta sobremesa desperdiçada. O pessoal aqui pede, prova, paga e não come nem a metade. É chique deixar o prato cheio? Eles acham. Não come isso não, menino. É feito de manga com leite. Minha mãe dizia que matava. Vai ver que é por isso que eles deixam tudo no prato. Ninguém quer morrer assim, estufado. Eu tive uma patroa que era igual. Anoréxica. É assim mesmo que se fala de gente que é magra que nem você. Se bem que você 19


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

até já ganhou um pouquinho de peso, não foi? Ela não. Era magra de doer. Ruim. Jogava tudo fora. Tudo. As sobras do almoço. E olha que nem rica ela era. Era mais que eu, claro, mas não era milionária, não. Mas não comia nada requentado. Pensava que ia morrer, tinha síndrome do pânico, acho. Não sei se era isso. Ela desperdiçava tudo. E se eu falasse, me chamava de ignorante. Baixinho. Igual minha filha fazia. Mas eu escutava. Minha filha imitava ela em tudo. Tudo. Mas não imita mais. Graças a Deus. Por isso que eu digo. Não tenha pressa, tudo na vida tem seu tempo. Igual à compota. Tem que ter calma, esperar para o doce tomar corpo, apurar o sabor... Então, essa patroa, a magra, ela fazia comida para um batalhão e sobrava tudo. Cada coisa boa. Coisa cara. Era metida. Ninguém comia. Ninguém consegue comer tanto. As sobras iam direto para a lixeira. Agora minha filha fala que é cultural. Isso de jogar fora as sobras. Aprendeu na faculdade. Ela diz que esse costume vem da época em que as pessoas não tinham geladeira em casa. Modo de Preparo – Segunda parte Depois de 1 hora de cozimento, retire as cascas do caldo com uma escumadeira e junte o açúcar. Mexa e tampe, deixando espaço para o vapor sair. Cozinhe em fogo médio durante 1 hora e meia ou até a compota engrossar em ponto pérola. Retire do fogo. Rapaz, não faz isso. Como foi que você entrou, bicho folgado? Minha filha deixou. Eu sei. Está uma chuva danada. Mas se o patrão vê isso, ela perde o emprego e aí eu quero ver como é que ela vai pagar o resto da faculdade. Com o livro é que não é. Não está pronto, demora. E livro de receita vende para encher barriga? Não sei, não. Doce enche. Mas ela não vende. Já falei. Fica furiosa. Quase tanto quanto ficava quando chamavam a mãe dela de Dona Hilda do lixo. Eu não ligava. Não. Eu era o que? Olha lá. Olha como ela faz. Igualzinha a mim, olha. Vai passar a colher no caldo. Viu como caiu, em gotas? Ponto pérola. É assim que se fala. Vai provar, repara. Olha a careta que ela faz. Sinal que está gostoso. O azedo se mistura ao doce na medida certa. É nesse ponto que a compota está boa. Doce e azeda, como a vida. Minha mãe que falava isso. E eu repetia para a minha menina. Sabe o que a desaforada me respondia? Que eu era um clichê pronto. Pode? E eu lá sabia o que era isso? 20


Contos

Mas agora eu sei. E quer mais? Sou mesmo. A vida é assim. Desse jeitinho. Doce e azeda até o fim. Até a última gota. Sou um clichê novamente. Se eu fosse um livro, eu estava é lascada. Olha o cheiro. É igual ao gosto. Olha o doce. Vê como ficou bonito. Colorido. Ela que inventou isso, não faz com uma qualidade só de limão, junta tudo. Fica gostoso. Fica lindo de se ver. Quem vai dizer que essa maravilha saiu do lixo? Ninguém. Só quem se der ao trabalho de ler a embalagem. E alguém lê? Armazenamento Atenção para o ponto. A compota de limão, depois de fria, engrossa consideravelmente. Armazene a compota em vidros limpos, secos, esterilizados e vedados. Dura 6 meses. Está chorando. Vai lá vira-lata, lambe o rosto dela. Está triste. Não. Com saudade. Ela é difícil, mas tem o coração melado, igual a esses doces que cozinha. Está chorando por que? Cortou cebola? Ela falava assim para mim, quando eu desaguava depois de brigar com ela. Ela era dura. É até hoje. Focada. Estudiosa. Olha o livro dela. Ensina receita. Ensina a não jogar comida no lixo. Quando era menina, brigava comigo, porque eu não jogava nada. Me chamava de burra. Dizia que ia azedar, fazer mal. Jogava fora escondido. Imitava a magricela. A patroa. Mas com tempo, aprendeu. Foi ou não foi? Está aí você que não me deixa mentir. E já está gordo. Folgado. Ela alimentou você com o que? Não preciso nem dizer, não é? Com sobras. Mas não conta para ninguém, se você falar para os donos de bicho de agora, a polêmica vai ser outra. Outro tabu. O ser humano inventa cada uma. Mas minha menina aprendeu. Não sei. Não sei quando, não sei como...Na faculdade é que não foi. Não mesmo. Acho que foi comigo. Ela mudou...Acho que foi no dia em que eu morri. E quer saber? Não foi de comer lixo. Não.

21


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

2 LUGAR

A arvore que se apaixonou por uma nuvem Beatriz Bianco Barbosa del Picchia São Paulo - SP

Breve Biografia Beatriz Del Picchia é pesquisadora de questões do feminino, mitologia e contos de fadas aplicados à vida cotidiana. É pós-graduada em Psicologia Junguiana, graduada em Arquitetura, formada em Práticas Meditativas, autora de diversas crônicas e contos publicados em livros coletivos e na internet, coautora dos livros O Feminino e o Sagrado - mulheres na jornada do herói (2010) e de Mulheres na jornada do herói – pequeno guia de viagem (2012), ambos publicados pela Ed. Ágora do Grupo Summus, e é coadministradora do site www. femininosagrado.com.br.

22


Contos

A ARVORE QUE SE APAIXONOU POR UMA NUVEM Em um vale distante havia uma arvore de estonteante altura e com a maior copa que se pode imaginar. Reinando sozinha no topo da única colina da região, a grande arvore orgulhava-se de sua elevada posição, tamanho e autossuficiência. Olhava para todos os seres de cima para baixo e achava que, comparadas consigo, as outras arvores pareciam medíocres arbustos. Quando se cansou de olhar para baixo, a grande arvore voltou seu olhar para cima. Achando que as nuvens estavam mais próximas de seu nível, passou a observar cada detalhe delas, pois é claro que que em todo vale ela era o único ser que conseguiria fazer isso. Observando as nuvens, a arvore aprendeu como elas variavam de forma, velocidade, trajeto e cor. Podiam ser arredondadas, ovaladas, alongadas, afofadas, homogêneas, esgarçadas, rápidas, lentas, isoladas, agrupadas, brancas, vermelhas, purpuras, violetas, douradas, prateadas, cinzentas. Também podiam mudar qualquer uma dessas características de repente, sem mais nem menos. Constatou, portanto, que as nuvens eram muito volúveis. Mudavam com a hora do dia, a força do vento, a luz do sol, a estação do ano e sabe-se lá com o que mais. Não eram estáveis e firmes como uma grande arvore, com certeza! Não se poderia confiar nelas, que a cada dia mostravam mais um jeito de mudar. Apesar disso, como eram encantadoras! A grande árvore tornou-se tão conhecedora do assunto que certo dia pode reconhecer o que era a perfeição em matéria de nuvem. Lá longe, no horizonte, viu uma nuvenzinha dourada perfeita. Era fofa, mas sem exagero, nem gorda nem magra, mais reluzente que a luz da lua, mais delicada que a estrela da manhã e mais bela que o mais belo pássaro que já pousara em sua copa. Aqui e ali seu dourado dava lugar 23


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

a riscados e flashes de variadas cores, como se ela carregasse dentro de si um arco íris matreiro que de vez em quando piscava para o céu de verão. Então, apesar de saber que nuvens não são confiáveis, a grande arvore apaixonou-se por essa. E apaixonou-se como se apaixonam os fortes: ficou perdidamente apaixonada. Não enxergou mais nada do vale, dos pássaros, da terra, do céu ou de outras nuvens. Daí em diante não existiu mais nada além daquele diáfano ser. Mas para onde a nuvenzinha se encaminharia? Que trajeto faria no céu? A grande arvore desejou tanto que ela viesse em sua direção! Parecia que o leve vento lhe seria favorável, mas em sua ansiedade temeu que o caminho fosse outro. Felizmente ela vinha vindo, sim, só que lentamente, sem desmanchar nem esgarçar, sem perder o dourado, sem diminuir nadinha de sua perfeição. Vinha, vinha, nunca chegava... Em sua aflição, a grande arvore começou a pensar no que poderia fazer para manter a nuvenzinha consigo para sempre. Tinha que dar um jeito para ela não ir embora como as nuvens fazem! - Já sei, pensou. Tenho que subir ainda mais, elevando-me até chegar à sua altura. E quando ela passar sobre mim vou fechar troncos, galhos e ramos como uma garra de pássaro e agarrar a nuvenzinha entre eles. Isso mesmo! Fez uma força gigantesca para erguer-se pressionando cada centímetro de si e usando tudo que tinha: raízes, tronco, galhos, ramos, folhas. As raízes esgotaram-se puxando energia da terra, os galhos oscilaram subindo e rangendo de modo ameaçador, muitos ramos lascaram-se e os mais frágeis quebraram-se, indo fazer companhia às folhas prematuramente caídas pelo esforço, que cobriram o chão com um acolchoado verde. Assustados passarinhos abandonaram os ninhos subitamente instáveis, borboletas e abelhas fizeram loucos voos tentando escapar da hecatombe que destruía seu mundo. Isso tudo fez com que a copa mudasse de forma, ficando estreita, alongada, tremula e tensa como alguém que se equilibra na ponta do pé e ergue os braços tentando alcançar o teto. Nem por isso, e nem por um minuto sequer, a árvore diminuiu sua força ascensional. Porém, quando a nuvenzinha chegou perto, a grande arvore descobriu 24


Contos

que faltava muito para alcança-la. Muito mesmo! Descobriu que nenhuma arvore conseguiria alcança-la, e que ela não passava de uma arvore como qualquer outra, baixa e presa ao baixo chão. Enfiada na terra, muito aquém da verdadeira grande altura, ela era nada perto do grande céu e de suas doces filhas. Descobriu que sua vida fora uma ilusão e seu desejo impossível. Que a perfeita nuvenzinha iria embora e nunca mais voltaria. Não conseguira sequer chegar perto dela, quanto mais retê-la! A grande arvore cambaleou. Aquilo era insuportável. E foi murchando como murcham as plantas, todas, até as grandes. Tronco, galhos e ramos encolheram-se com altos estalos, as raízes pararam de trabalhar, a seiva estancou o movimento. Não havia mais nenhuma energia na grande arvore, paralisada por dentro e por fora. Mais folhas caíram como lágrimas, forrando o chão que começava a parecer um tumulo. Só que a nuvenzinha estava ciente de tudo. Pois lá de cima - de cima mesmo, já que sua morada é o céu - ela percebeu o amor da arvore e seu desespero em perde-la. Sentindo ressoar em si a beleza daquele vasto sentimento, fez uma coisa que apenas de vez em quando as nuvens podem fazer. Ela parou sobre a grande arvore. Ficou imóvel enquanto suas irmãs passavam. Fez mais: arredondou-se em uns lados e esticou-se em outros para ficar exatamente em cima da copa da grande arvore. Atenta a seu amor, a arvore entendeu sua intenção. Convocando novamente cada centímetro seu, com outro enorme esforço ela fez sua copa afinada voltar a arredondar-se e afofar-se até ficar idêntica à forma da nuvenzinha. Assim as duas, nuvem e arvore, refletiram-se uma na outra, espelhos verde e dourado de dois seres amados e inatingíveis. Quem viu isso nunca mais esqueceu. No vale, até hoje contam como a grande arvore teve por algum tempo duas copas, a sua e outra, igualzinha, em forma de nuvem sobre si. Parece que quase, mas quase mesmo, se tocaram. Tanto que há quem afirme que elas conseguiram, sim, num breve instante... Mas como tudo passa, e essa lei não se pode quebrar, a nuvenzinha também tinha que passar. 25


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

E passou, porém deixando ali um pouco de si mesma: devagar, a nuvem foi chovendo miríades de gotinhas sobre a grande arvore. Cada folhinha, ramo e tronco recebeu um minúsculo ponto de úmida luz, e cada ponto refletia todos os outros, multiplicando ao infinito as coloridas faiscações. A arvore inteira resplandeceu. O vale inteiro resplandeceu com a fulgurante luminosidade vinda de seu ponto mais alto. Daí para frente, a grande arvore não mais orgulhou-se de sua elevada posição, tamanho e autossuficiência. Porém, ninguém sabe como, aqui e ali ela cintilava com brilhos multicoloridos, como se tivesse por dentro um arco-íris matreiro que de vez em quando desse umas piscadas para o distante céu.

26


Contos

3 LUGAR

A primeira morte Washington Roberto Almeida Soares Redenção - PA

Breve Biografia Sou carioca formado em História e professor no Ensinos Médio e no Ensino Superior. Gosto de Literatura, Cinema, Quadrinhos e Arte em geral. Escrevo contos de temática urbano-policial. Já publiquei contos em antologias organizadas por diversas editoras. Morei 8 anos em Foz do Iguaçu.

27


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

A PRIMEIRA MORTE O cadáver do adolescente encontrava-se caído no terreno baldio, perto do colégio estadual no Profilurb I. Fora alvejado três vezes na altura do tórax. As roupas estavam sujas de lama e de sangue. Nos pés, estavam somente as meias; os sapatos desapareceram. A garoa, fina e fria, molhava aos curiosos que assistiam à cena O rabecão aguardava a conclusão da perícia para levar o cadáver. A mãe chorava e se perguntava o porquê da tragédia. O investigador Lucio Morais, afastado do corpo, terminou de fumar o cigarro enquanto examinava a cena. A investigadora Bianca Carbonara conversava com os funcionários da escola. Sentindo dificuldade em manter o corpo quente, Lucio se aproximou do cadáver para examiná-lo. Havia dias em que temia congelar o sangue caso parasse de se mover. Os olhos do rapaz perdiam-se noutro mundo. De onde estava, ouvia a conversa entre Bianca e o diretor da escola. — Era um pequeno traficante. Eu já o denunciei várias vezes. — O senhor sabe quem eram os clientes do rapaz? O diretor fitou-a em silêncio enquanto ela escrevia num pequeno bloco de notas. Como ele não respondeu, Bianca levantou a cabeça. — Não conheço todos que se drogam. Apenas os mais perigosos. — Quero os nomes, as séries e os turnos. Lucio achou graça da situação. Bianca não sabia que nos bairros pobres a memória é seletiva e as ações são calculadas. O objetivo é simples: maximizar as chances de sobrevivência. Crescera em Realengo, no Rio de Janeiro, e compreendia a dinâmica dos subúrbios. Já sabia que a lista não seria de muita serventia. Deteve-se por alguns segundos nos olhos do cadáver e se lembrou da primeira pessoa morta que vira na vida. Era um rapaz como aquele. A pele negra; as roupas extravagantes da moda; o olhar vazio e sem direção específica; os três tiros no peito. As lembranças passaram pela sua mente, como 28


Contos

um velho filme, que aos poucos se desvelava à audiência formada por uma só pessoa. O garoto foi embalado num saco plástico preto. Mais um para estatística. Um perito se aproximou dos investigadores e mostrou um telefone celular. — Só encontramos isso. — Vamos pra DP. Deixa o telefone que a gente adianta o serviço — disse Lucio. Era Bianca quem dirigia a viatura. Lucio tentou ativar o telefone. — Precisa de senha. — Vamos levar pra perícia. — Toca pra Cristiano Weirich, no Centro. Conheço um cara que faz esse serviço. — Lucio! — O dono tá morto, não vai se importar. Mais tarde, na delegacia, conversaram com a mãe do rapaz. Seu nome era Maicon dos Santos, dezessete anos e estava no primeiro ano do Ensino Médio. Era conhecido por ser violento e desinteressado em relação aos estudos. Fora encaminhado várias vezes para o Conselho Tutelar e ajuda psicológica. Era órfão de pai. A mãe trabalhava como laranja no Paraguai. Não tinha avós paternos ou maternos. Na sala de interrogatório, a mãe, Franciele, e outra mulher, uma vizinha, esperavam ansiosas. — Senhora Franciele, precisamos de ajuda pra resolver o caso — disse Bianca. — Vocês têm que pegar quem fez isso. Maicon não era mau, só andava com gente errada. — Quem eram essas pessoas? A vizinha cochichou algo no ouvido de Franciele, e ela se endireitou na cadeira. — Eu não sei quem eles são e nem onde moram. — Estamos aqui informalmente, mas podemos providenciar intimações pra senhora e pros seus vizinhos — disse Lucio olhando para as mulheres — Mas só se não pudermos fazer do jeito fácil. Eu sei que a senhora tem medo de falar. As mulheres conversaram novamente. Lucio e Bianca se olharam. — Eu prefiro que seja dentro da lei — disse Franciele. 29


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

As duas mulheres se levantaram e saíram. Os policiais foram falar com o delegado Aldo Furlani e relatar a situação. Eram cinco horas da tarde quando retornaram para buscar o telefone desbloqueado. — Sete ligações de um número fixo ontem à noite. Vou ligar. — E se for um criminoso? — Eu dou meu jeito. Lucio pôs seu telefone no modo viva-voz. — Esse número me ligou, e eu quero saber quem é. — É o número de um orelhão — disse uma mulher. O endereço era a rua da escola. Bianca se pôs a caminho. Lucio encontrou um vídeo de uma garota, aparentemente drogada, sendo penetrada por trás num banheiro sujo. Ouviam-se risos masculinos ao fundo. O fim da gravação, o sujeito vira a câmera para si e mostra a língua. Era Maicon. Pararam a viatura em frente ao portão, bem no horário de saída do turno da tarde. Mostrou o vídeo à investigadora, e a sua fisionomia se transformou em algo frio. O colégio, por dentro e por fora, era depredado e com várias pichações nas paredes. Os adolescentes e os seus responsáveis encaravam os investigadores como se fossem estrangeiros perdidos num território hostil. Lucio, que estudara numa escola pública, conhecia o sentimento. Foram para a sala do diretor. — Precisamos da informação com urgência. Quem é a menina do vídeo? — disse Bianca. — O que vou dizer não saiu daqui. Bianca encarou-o em silêncio. Lucio concordou com a cabeça. — Ouvi dizer que Maicon e os amigos drogavam algumas alunas e depois as filmavam. Essa menina, eu não reconheço. Esse vídeo já não é o suficiente para provar que ele era um criminoso? O rosto de Bianca, que tinha a pele muito branca, perdeu todo o sangue. Parecia uma estátua de mármore. — Ele tá morto. Queremos quem o matou e os outros responsáveis pelos estupros. — Não sei. Eu não quero me envolver com mais problemas... — Você sabia dos estupros e não fez nada?! — disse Bianca e bateu com força na mesa. — Eu não vi nenhum vídeo, só ouvi boatos. Os pais das meninas não me 30


Contos

procuraram e, até onde sei, também não foram à polícia. Não pense em nós como covardes. Um professor novato, ano passado, foi assassinado na porta de casa. Por separar uma briga! A polícia sabe da situação. Não pense você que não há policiais que abusam de meninas drogadas ou menores de idade. Bianca ficou sem resposta. Os dois saíram da escola e combinaram os detalhes sobre a campana. Na escola, aparentemente, nada aconteceu. O movimento de alunos não diferiu da rotina. O diretor da escola saiu por volta das onze horas e seguiu para casa. Bianca passou diante da casa de Franciele, que morava numa rua pequena, num quarto nos fundos de um terreno. Sem opções, voltou contrariada para casa. No dia seguinte, o delegado Furlani ligou cedo para Lucio e Bianca. O diretor do colégio fora assassinado quando chegou para trabalhar. Na escola, a eletricidade no ar e o olhar hostil dos estudantes se mantinham. — Temos que falar com eles — disse Bianca olhando para os alunos. — É perda de tempo. Eles nos odeiam e não vão falar nada. O veículo estava com a porta aberta e o corpo caído para fora, com o rosto enfiado no chão de terra úmida. O vice-diretor chamou o inspetor. — Eu tava abrindo as salas quando ouvi os tiros e corri pra cá. Cheguei aqui, ele já tava assim. Lucio olhou para as câmeras. O vice-diretor disse: — Foram instaladas há três anos, assim como os computadores e os ares-condicionados, mas não estão ligadas. A instalação elétrica não suporta tantos equipamentos. — Cadê a secretária do turno da noite? — disse Bianca. O vice-diretor pediu que uma senhora se aproximasse. — Ontem o diretor Vicente recebeu alguma visita? — Sim. Veio o senhor Alcindo Bortoloto, pai da Adriana. Ele e o diretor conversaram por um bom tempo. — Quem é essa menina? — Ela estuda de noite. Mas não vem ao colégio faz tempo. — Precisamos do endereço deles. A mulher enxugou as lágrimas e olhou para o vice-diretor. Ele assentiu positivamente com a cabeça. A residência, que ficava perto do colégio, tinha o aspecto da maioria das casas de subúrbio. Muro com a tinta desbotando e um portão de ferro sim31


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

ples protegendo uma construção pequena e sem pintura. A calçada era de terra vermelha, batida pelo uso e pelo tempo. — Toca pra frente — disse Lucio olhando para o outro lado da rua, onde havia um carro parado com dois homens. A viatura era descaracterizada. Pararam no estacionamento de um mercado local. Bianca ligou para a delegacia e pediu para identificarem a placa do carro. — É roubado. O que faremos? — Esperaremos. Eles tão atrás desse cara por algum motivo. Lucio desceu do carro e pediu para que Bianca saísse do local. Sugeriu que revezassem na campana para que não chamassem a atenção. A noite caiu, assim como a temperatura. A escuridão, o frio e a névoa ocuparam a rua. Outro veículo parou diante da casa e dois homens saíram. Os dois do outro lado da rua se juntaram a eles. Os criminosos sacaram as suas armas e tentaram arrombar o portão de ferro. Antes que os investigadores pudessem chamar reforços, começou o tiroteio. Posicionaram-se atrás do carro dos criminosos. Um homem caiu na calçada, os outros recuaram de costas para a rua. — Polícia, parados! — gritou Lucio. Os homens se viraram e atiraram. Lucio alvejou um deles, e Bianca, o outro. O terceiro pôs as mãos atrás da cabeça e se ajoelhou. De dentro da casa saiu um senhor saiu mancando. Ele atirou na cabeça do homem ajoelhado e uma vez em cada um dos que estavam no chão. Em seguida jogou a sua arma na direção dos investigadores e colocou as mãos na cabeça. Quando os policiais se aproximaram, disse: — Fui eu que matei o Maicon também. Os investigadores se olharam. — Qual é o nome do senhor? — disse Lucio. — Alcindo Bortoloto. — Senhor, precisamos levá-lo pra delegacia — disse Bianca e depois o algemou. Ele gemeu. Seus olhos verdes eram um misto de tristeza e alívio. A pele, branca e enrugada, estava queimada pelo frio. As roupas eram simples e surradas. O corpo dava sinais de cansaço e dor. Respirava devagar e profundamente. Lucio sabia que estava diante de um sujeito humilde, mas não de um criminoso. 32


Contos

— Por que matou o Maicon? Ele não respondeu. A rua estava vazia, e Lucio sabia que permaneceria assim pelo resto da noite. O vento frio e a neblina ganhavam força. — Vamos ligar pra delegacia — disse Bianca guiando-o pelo braço. — Ele mereceu — disse Alcindo de cabeça baixa. — Calma. Ele não é um assassino. Tô certo ou errado? — disse Lucio se aproximando do homem. Alcindo levantou a cabeça e começou a chorar. De raiva, não de medo. — Eles drogavam as gurias. E depois abusavam delas. E a polícia não fazia nada! Lucio olhou para Bianca e depois para Alcindo. — Como o senhor matou aquele garoto? — disse Lucio enquanto o ajudava a se sentar no veículo. Permaneceu em pé diante do sujeito. — Eu e a minha esposa descobrimos que ele drogou e abusou da nossa guria. E depois filmou e passou pro bairro todo. Fiquei nervoso e consegui um revólver. Anteontem à noite encontrei com ele e matei o desgraçado. — Onde tá a sua família? — disse Lucio. — Fugiram. Fiquei pra adiantar o meu salário. Só não saí antes por medo. Quando eles tentaram invadir a casa eu me defendi. — Por que foi falar com o diretor da escola? — disse Bianca. — Ele tava me ajudando a conseguir provas pra mandar pra televisão. Lucio olhou para Bianca, que estava visivelmente surpresa. Ambos eram da mesma turma, porém era mais nova em idade. Espantava-se diante das várias nuances de um crime de morte. Ela era honesta e idealista, porém muito rígida quando o assunto era lei. Ele, ao contrário, descobriu jovem que entre o preto e o branco existe um arco-íris inteiro e que nada neste mundo é simples. Parado diante de Alcindo, o investigador removeu as suas algemas e disse: — O senhor tá livre. Pode ir embora. — Tá doido? Podemos ser presos! — Só se alguém contar o que aconteceu. Você pretende contar? — Não... — E o senhor? O homem ficou confuso. — Não... 33


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

Lucio abriu a carteira e disse: — Toma esse dinheiro e vai pra junto da sua família. Alcindo negou com a cabeça. — Obrigado. — Recusou olhando para os policiais. — Vá em paz, senhor Alcindo — disse Lucio. Bianca assistia perplexa à cena, enquanto Alcindo mancava para longe, até virar a esquina e desaparecer. — Ele é inocente. Pra que nós vamos enfiá-lo numa cadeia lotada de assassinos e ladrões? — Mas... — Porra, a filha dele foi drogada e estuprada. Ele agiu por impulso, mas não é um criminoso. Bianca concordou com a cabeça. — Vamos sair daqui; não dá pra criar uma versão do que aconteceu. Alcindo mancava, apoiando-se nos muros de tijolo sem reboco, até que parou e dobrou os joelhos. Com o peso, seu corpo tombou para a frente, e ele pôs uma das mãos no chão para não bater o rosto na calçada de terra e coberta com grama alta. Lembrou-se das risadas da filha e da esposa. Sorriu e se deixou cair. Sangrou até morrer, tendo apenas o frio e a névoa como companhia.

34


Contos

4 LUGAR

Varais Thais da Cunha Marcondes Jundiaí - SP

Breve Biografia Thaty Marcondes (Thais da Cunha Marcondes), é natural de Jundiaí/SP, residiu em Ponta Grossa/PR entre 2001 e 2012, onde atuou como Conselheira de Cultura, voltando, posteriormente, à cidade natal. Premiada e selecionada através de concursos para participar de antologias e oficinas literárias, desde 1983. Primeiro lugar no Concurso Nacional de Crônicas da ALCG (Academia de Letras dos Campos Gerais), em 2008. Prêmio Anita Philipowski (2009), ofertado pela Prefeitura Municipal de Ponta Grossa. Em 2010, teve um poema incluído no vestibular da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa). Na imprensa de Ponta Grossa foi colaboradora do Jornal da Manhã (2005/2007); a partir de 2011 tornou-se colunista da REVISTA D’PONTAPONTA, afastando-se por motivo de mudança, sendo, atualmente, colaboradora eventual no mesmo veículo impresso. Em 2012 lançou o livro AZUL DA PRÚSSIA (Estúdio Texto – Contos), habilitado em 2013 para os Prêmios Brasil Telecom e Jabuti. 35


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

Em 2013 foi premiada em segundo lugar no I CAMPOESIA. No mesmo ano foi homenageada no “Concurso Nacional de Contos Thaty Marcondes” realizado pela Prefeitura Municipal de Ponta Grossa/PR. Selecionada em 2015 para a antologia colaborativa em homenagem à Edgard Allan Poe “O CORVO” – Editora Empíreo.

36


Contos

VARAIS Há varais por toda a vizinhança, mas os de Adélia são sempre os mais bonitos, com suas roupas coloridas, brancos alvejados, pregadores de plástico em cores gritantes. Toda manhã a roupa a quarar sobre a grama cuidada - chega a doer nos olhos aquela brancura. À tarde é a vez de misturar as cores: há dias em que ela faz um degradé em tons que vão do amarelo ao vermelho, às vezes chegam aos tons de marrom escuro. Outras vezes ela faz uma mistura colorida, uma peça de cada cor, misturas gritantes ou delicadas - nunca se sabe, ao certo, o que Adélia fará. Talvez dependa do humor, talvez dependa do horário - variável, com exceção dos alvejados. Quando chove a vizinhança fica triste: falta-lhes a alegria dos varais de Adélia! Mas ao primeiro sinal de sol lá estão as roupas de Adélia! E a cantoria? Adélia aparenta estar na casa dos 30 anos. Moça bonita, se fosse mais cuidada, talvez chegasse à descrição de linda. Cabelos castanhos, anelados e longos, que ela mantém presos com um prendedor de roupas - cada dia uma cor! Talvez também dependa do seu humor. A cantoria também varia, mas nota-se que ela prefere o samba canção talvez gosto herdado de mãe ou de pai. Ou de algum amor. As canções também variam - quem sabe também dependa do seu humor? A janela do quarto de Gustavo, no segundo andar do sobrado, dava para a parte de trás das casas da pequena vila, bem onde se viam os varais da vizinhança. Era doce acordar com aquela voz suave, delicada, abrir as cortinas e 37


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

deparar-se com o branco doído da roupa alva que Adélia estava a quarar! Ele passava momentos intermináveis olhando a moça, tentando entender o processo de escolha dos prendedores, da música, das roupas estendidas e alinhadas seguindo algum critério misterioso - e ele tentava desvendar todos os segredos contidos naquele ritual sem motivo lógico, sem seqüência definida, sem dureza de hábitos - eram desconexas as séries, não possuíam padrão. Aos sábados e domingos Gustavo ficava triste, sem aparente explicação. Assim como nas épocas de chuva. Um dia Gustavo chamou dona Arlinda, sua vizinha e auxiliar de total confiança, e pediu-lhe que lhe falasse de Adélia. Então Gustavo chorou, após dona Arlinda contar-lhe a triste sina de Adélia. A vida continuou. Gustavo agora passava suas manhãs admirando aquela mulher cantante e aparentemente tão feliz e animada. Ficava pensando em como ela conseguia passar tanta alegria, tendo uma vida tão triste e desafortunada? Novamente ele chorava e ficava pensando se haveria alguma forma de atenuar-lhe o sofrimento, de ajudá-la. Gustavo se apaixonara. Criava situações de alívio para o sofrimento de Adélia, em sua cabeça. Perdia momentos intermináveis em sonhos inusitados. Começou a planejar um modo de poder ajudá-la, de livrá-la de tanto sofrimento. E um dia ele conseguiu: atenuou o seu sofrimento e o de Adélia. Dona Arlinda guarda até hoje aquela manchete do jornal local, onde se lê o relato de uma cena de crime. Ela olha pela janela e sente saudades dos varais coloridos e cheios das roupas que nunca mais serão alvejadas como antigamente. Sente falta das canções de Adélia. Uma nostalgia quando chega o sol refletindo o vazio dos varais da vizinhança agora triste e calada. A janela de Gustavo fechada para sempre.

38


Contos

5 LUGAR

Apreensão Rodrigo Borges de Oliveira Sorocaba - SP

Breve Biografia Nascido em Uberaba–MG, morador de Sorocaba–SP, atualmente com 30 anos. Formado em Gestão Ambiental; trabalho como servidor público. Escrevo desde 2006 e fui publicado em 2016, com cinco contos pelo selo Contos do Dragão da editora Draco, um conto pela revista Trasgo (edição n.º 10), e com meu romance de estreia, O Arquivo dos Sonhos Perdidos, autopublicado em dezembro. Sou revisor e co–editor dos contos publicados no site Leitor Cabuloso.

39


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

APREENSÃO Apreensão — substantivo feminino 1. Assimilação do que é cognoscível; percepção. 2. Grande inquietação; preocupação; receio; temor. 3. Tomada com base legal; confisco. 4. p. ext. (da acp. 1) psic. Ação pela qual a memória capta e retém uma série de lembranças. Se lhe tivessem perguntado, Thomas teria dito que aquele seria um bom dia; acordou acreditando nisso. Pegou o ônibus acreditando nisso e bateu o ponto acreditando nisso. Contudo, como ninguém perguntou, ele não teve tempo de manifestar seus achismos. — Os guardas estão esperando, no centro — disse o seu chefe, assim que ele chegou à seção onde trabalhava. — Bom dia para o senhor também — sorriu ele. Parou quando percebeu que não era brincadeira do chefe. — Eles já estão lá, ou… quer dizer que eles estarão lá daqui a pouco? — Já estão lá, Thomas. Vai ter operação. — Operação. No centro — suspirou. — Quem vai? Além de mim, digo. — Vai a Ana. Ela precisa ver como é. — Ninguém mais, para ajudar a carregar as…? — Tem bastante guarda lá. Vai. — Sim, senhor — disse Thomas, e pegou as chaves da caminhonete. — Vamos, Ana — acrescentou, à novata. * — Por que precisamos pegar as coisas deles? — perguntou Ana, enquanto Thomas dirigia até o centro. — Por que não podemos só notificar, ou multar, 40


Contos

como fizemos nas outras vezes? — Esse pessoal do centro… Eles são… complicados. Já notificamos, já multamos, já corremos com eles… Não tem mais jeito. — O que eles vendem? — Com certeza é o pessoal das frutas. Frutas variadas, em carrinhos de mão. Carrinhos de pedreiro. Viraram numa esquina e adentraram o perímetro do centro. “Tudo tranquilo, até então”, pensou Thomas. E esse era o problema. Naquelas primeiras esquinas já deveria haver vendedores ambulantes, e eles não estavam lá — o que certamente significava que o problema era com… aqueles. Thomas sentiu o coração acelerar. — O que eu tenho que fazer? Como vai ser a operação? Qual o procedimento com… — Relaxa, Ana — disse Thomas. Já que ninguém o tranquilizaria, ele poderia pelo menos fazer isso por ela. — Nós não estamos mais fazendo as apreensões; os guardas é que estão. Eles provavelmente vão abordar os ambulantes com as motos e… inferno! — exclamou, freando quando um pedestre atravessou a rua sem se importar com a viatura. Thomas bufou. — Eles vão abordar e nós… eu vou jogar a mercadoria dentro da caminhonete, enquanto você preenche o termo. — Ah. — É, vamos lá — disse Thomas, virando na rua proibida ao trânsito, que dava na praça central, em que as viaturas oficiais estacionavam. Já estavam lá as motos e uma viatura da GCM, assim como a base móvel da PM. “Por que não podem fazer tudo por eles mesmos?”, pensou Thomas, estacionando. “Não se importam conosco. Sabem que isso é arriscado, e não…” — O guarda está falando com você — disse Ana, apontando um sorridente soldado de fora do vidro fechado. “Inferno”, pensou. — Bom dia, inspetor Nogueira. — “Um bom dia para ter ficado em casa.” — Bom dia, Thomas! Bom dia, mocinha. Animados? Hoje vamos pegá– los! Eles estão lá. — Vamos, né — disse Thomas, saindo da viatura. — Não fique desanimado! — disse o inspetor nogueira, dando um tapa um tanto animado demais do ombro do fiscal. — Hoje vamos pegá–los, estou 41


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

dizendo. Já estou por aqui com aquele marginal. Vamos fazer como sempre — disse, agora abrangendo na conversa os outros dois guardas motociclistas que o acompanhavam —; nós descemos a boulevard, o carro vem por baixo e a caminhonete fecha por cima, pode ser? — concluiu, acrescentando agora para Thomas e Ana. — Quando vocês chegarem, já teremos feito a apreensão; não se preocupem — sorriu. Thomas pegou um reflexo de ironia ali. — Vocês só têm que jogar as frutas pra cima. — Vai dar merda — resmungou Thomas, entrando na caminhonete, ligando–a, vendo Ana prender o cinto e os guardas manobrarem suas motos. — Não sei se eu gosto disso — disse Ana, preocupada. — Eu sei que não gosto disso — disse Thomas, começando a seguir a viatura da Guarda. * É claro que ia dar merda. O histórico com aqueles ambulantes já era antigo. Quando os fiscais que ensinaram Thomas ainda estavam na ativa eles já davam trabalho. Talvez até quando esses fiscais foram ensinados esse pessoal já desse trabalho; gerações de embates entre fiscalização e ambulantes. Parado ao lado da viatura, Thomas não acreditava no que via. Não acreditava que os seus olhos lhe diziam que aquelas duas mulheres haviam arrancado o carrinho da mão dos guardas. Da mão do inspetor. Sete guardas ao redor (na confusão, mais uma viatura encostara), e nenhum deles fazia nada. Nada. Elas arrancaram o carrinho já apreendido da mão do inspetor e viraram tudo no chão. Elas gritavam e ameaçavam os guardas, a população ao redor deles, xingando a fiscalização, xingando a Guarda, xingando o prefeito, xingando a presidente da República. Ana tentando preencher o termo, perdida, acuada entre os guardas e as ambulantes enfurecidas. O marginal não estava entre elas. Esperto. — Bando de filhos da puta, deixem elas trabalhar… — Vão levar para casa, certeza… — Hoje a mesa vai ser farta, né não?, fiscal… — Com essa crise… — Elas só querem sustentar a família. “Elas só querem sustentar a família.” Curioso Thomas ter ido parar na42


Contos

quele emprego. Justo ele, que fora criado com o dinheiro da venda ambulante. Lembrou–se, enquanto as barraqueiras recolhiam as frutas do chão e as enfiavam em sacos de lixo, de sua avó, que fazia salgados para o seu tio vender em frente aos hospitais e em pontos de ônibus. Engraçado isso vir à tona agora, quando ele deveria fazer alguma coisa… Deveria? Quando nem os guardas faziam nada? Thomas lembrava–se perfeitamente de um dia em que seu tio chegou, com a cesta de vime cheia ainda, e da expressão resignada de sua avó. Naquele dia comeram os pães de queijo e pastéis, porque não poderiam vendê–los no dia seguinte e não teriam dinheiro para comer à noite, sem ter vendido nada. Provavelmente ela tinha pedido dinheiro emprestado para comprar a carne moída para os pastéis do dia seguinte. Nessa e em muitas outras vezes. — Me dê o saco com as frutas — disse o inspetor à ambulante, com uma mão estendida e a outra no cinturão. — Vai querendo! — gritou ela, ofegante, o cabelo desgrenhado, as mãos sujas do sumo das frutas esmagadas. Desviou bruscamente do inspetor e de outro guarda atrás dele e jogou o saco dentro do carrinho de mão. Um terceiro, em que Thomas não reparara, empurrou o carrinho para longe do tumulto. — Que palhaçada — resmungou Thomas, fechando a lona da caçamba da caminhonete. “Tantos guardas pra merda nenhuma. Nem que quiséssemos faríamos sozinhos esse serviço.” — Vamos embora, Ana. — Ela não quis assinar o… — O termo?! Termo de quê?! — gritou Thomas. — Olha aqui, seu merda — disse então uma voz atrás dele. Era um magricela tatuado, com camisa larga, de boné e cheio de correntes no pescoço. O marginal. — Isso agora é pessoal, filho da puta. Vou te pegar. Onde eu te ver, vou te pegar. Pode entender isso como uma ameaça, pode entender como quiser. Eu vou te pegar. — Só parou de falar quando uma das ambulantes o arrastou para longe dali. Thomas soltou o ar e entrou na caminhonete. Os populares ainda xingavam a eles e aos guardas. — Isso não está certo — disse Ana. Thomas viu seus olhos molhados. — Está errado desde o princípio. É errado tomar as coisas dos outros. Sabia que a Primavera Árabe começou por causa de um vendedor ambulante? 43


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

Thomas sabia. Não respondeu, enquanto ligava a caminhonete e descia a rua, em meio aos xingamentos, mas sabia. Sabia que um vendedor ambulante, ao ter suas mercadorias apreendidas, tinha colocado fogo no próprio corpo; preferia morrer a viver na injustiça. A história ganhou o país que, indignado, derrubou o governo totalitarista, e foi seguido pelas nações vizinhas. Besteira aquela história de que sozinho não se pode nada. Pode–se ser o gatilho de algo muito maior. Passando pela base móvel da PM, ainda no mesmo lugar, a dois quarteirões da confusão, Thomas ignorou o aceno do policial. Devolveu a viatura na seção enquanto Ana relatava o fato à chefia. Aguentou as piadinhas dos outros fiscais, o olhar feio do chefe, o olhar condescendente de Ana. Naquele dia, pegou um ônibus diferente do que costumava pegar.

44


Contos

66 LUGAR (geral)

Es de Esmeralda Evandro Luiz Gaffuri Cascavel - PR

Breve Biografia Evandro Luiz Gaffuri, conhecido apenas como Xoxim, é graduado em Administração pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, e possuí Mestrado, também em Administração, pela Universidade Estadual de Maringá. A maioria dos textos publicados são artigos científicos, todavia, Xoxim almeja entrar no campo da literatura para publicação de seus romances e contos. Até a presente data possui 3º Lugar com Menção Honrosa em Criatividade no Prêmio AFEMIL – Universidade Livre 2016, e também um 3º Lugar no Concurso de Contos da Academia de Letras e Artes de São João de Meriti 2016. Mora atualmente em Cascavel, no Paraná. É um nerd que gosta muito de temas que envolvam a fantasia ou ficção científica. Sempre se diverte e dá risada sozinho quando fala de si mesmo na terceira pessoa.

45


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

ES DE ESMERALDA Fazia tempo e seu corpo ainda se mantinha inerte. Parado como uma estátua, ele encarava fixamente o mesmo ponto. Diferente de grandes obras, admiradoras do horizonte, fitava uma mulher. Uma garota. Uma mocinha. Dois ou três clientes recém chegados desviaram do torpe obstáculo e se encaminharam para o balcão dos pedidos. A maioria comprou pão fresco, daqueles quentinhos que valem a caminhada na manhã fria. Tomavam o rumo do caixa e a consequência para Genésio era a visão bloqueada e um pouco de consciência para se recuperar de seu transe. Nunca em toda a sua vida havia tido sensação igual àquela. Algo brotou em seu peito frio, na terra de geadas, dureza e erosão. Um sentimento único conseguiu romper todos os outros e enfim ele sentiu o calor do amor lhe aquecer. Foi até o balcão dos pedidos e pediu pão e mais alguma coisa. Não fez conferência nenhuma do pacote e articulou quase nada com a atendente. Seu olhar não desviou da moça que era a mocinha do caixa. Aproximou-se e escutou um sonoro “Bom dia” invadindo seus ouvidos. Além de tantas qualidades apenas miradas na visão, também possuía boa educação. Um achado e tanto. -Bom dia, moça! Como é o seu nome? Ela saiu de seus movimentos mecanizados e precisou de um segundo ou dois para pensar na resposta. -Pode me chamar de Es, senhor – deu um sorriso comedido. -E quantos anos tem, pequena Es? Vejo que parece demasiadamente nova para ocupar um local de trabalho como este. -Tenho 15. Nem mais e nem menos. Completo-os hoje, senhor. E convenhamos, se celebro a data de debutante posso celebrar a graça de ajudar meu pai por aqui. É a época da prosperidade. Viva os anos 70 – soltou-se um pouco mais do que deveria, mas estava feliz em mencionar a data e principalmente aniquilar sua rotina de ter que lidar com mais matemática dos trocos do que com a literatura das conversas. 46


Contos

-Ora, meus parabéns, Es. É um dia especial para qualquer moça. Sua mãe e seu pai devem estar deveras felizes. -Papai, graças às suas raízes lusitanas, ainda tem as preocupações de arranjar um bom dote para mim. Minha mãe, se estivesse conosco, teria por certo uma felicidade incansável. -Desculpe. Sinto muito. Não quis lhe trazer saudades à tona. -Não há problema. Ela passou para outro lado antes que eu fosse uma menina. -Há 15 anos, então? -Sim. O homem pegou seu pão e seu algo mais e partiu para fora do estabelecimento. A fila já tinha se acumulado e, quando consciente, não gostava de ser um estorvo. Já tinha rendido insatisfação suficiente quando ficara estagnado na entrada. -Tenha um bom dia, senhorita Es. Uma vez mais, congratulações pelo aniversário. Durante o caminho para casa pensou nas possiblidades. Quanta graça em apenas duas letras: E – S. Magia divina numa moça, que hoje era mais moça do que ontem, capaz de aquecer a alma de um velho esquecido. Mas qual o total dela? Qual as letras restantes de seu nome? Estela? Esther? Estelia? Estefany? Esmeralda? Esmeralda! Tamanho nome condizente com a beleza daqueles olhos verdes e saudáveis. Sim. Deve-se ter por nome Esmeralda, a mais linda das pedras, a mais linda das moças. Genésio foi para casa tão quentinho quanto o pão que carregava. Daquele dia em diante começou a frequentar a padaria como uma grávida que vai ao banheiro. Passava pelo menos duas vezes num único dia, sempre para comprar pão e algo mais. De quando entrava até quando saía admirava somente o brilho esverdeado de olhos lindos ou o delicadeza desgostosa de uma moça que trabalhava para o pai. O tal sujeito pai vivia nos fundos. Era o padeiro chefe, comandava tudo o que era possível na parte de trás e, depois de demitir uma ligeira mulher sem honra que gostava de dar troco errado ou esconder um pouco de dinheiro na bolsa, deu o lugar de caixa para a filha. Como todo bom homem de sua época e todo o bom padeiro, era Português de nome mais típico possível: Manuel. Tinha seu bigode alinhado e procurava por bons preten47


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

dentes para a filha, entretanto até uma boa proposta surgir fazia e faria bom uso dos serviços da moçoila. Es, por outro lado, não tinha tanto interesse em seu trabalho. Por mais interessante que fossem os momentos descontraídos – tal como a presença e delicadeza de Genésio – a verdade é que a maior parte do tempo ocupava-se de um tédio desumano. Havia muitos clientes na manhã e no final da tarde, mas o entardecer era triste ouvindo nada senão conversas de padeiros e os berros do pai dizendo o quanto Portugal era melhor frente a nação brasileira. Os tempos eram outros. Era necessário aturar o pai, pois o que faria Es sem ele? Sobraria viver na empregabilidade de seu próprio corpo para conseguir a comida e o teto de todo o dia. O desgosto a acompanhava em sua rotina, e só depois de muitos dias da troca de olhares e pequenas conversas entre ela e Genésio é que seu coração começou a também se acalentar numa sensação até então desconhecida. Havia um certo prazer satisfatório em acordar cedo e fazer suas matemáticas de trocos e inflações desde que, claro, pudesse trocar algumas palavras com o homem. Não era absurdo algum uma moça se encantar com a longevidade e experiência de um homem mais velho. Idem para os papeis trocados. Genésio carregava seus 50 anos nos ombros e alguns fios brancos na cabeça, mas nem por isso era capaz de fugir do acalento e suspiros do amor. Não havia julgamento da sociedade, desde que os dotes fossem benéficos e concisos para ambos. Como disse, os tempos eram outros. Algo então tornou os dias menos agradáveis. O pai, graças a uma denúncia, talvez um aviso, acometida pela funcionária do atendimento, também portuguesa, soube do tal Genésio e suas demoras no caixa. Dessa forma, o pai revezava entre o forno e o olhar atento na vigília de sua filha. Deus o livrasse de alguém que desflorasse sua menina antes de um bom acordo. Quem gostaria de uma moça sem honra? Assistiu o tal Genésio e sua filha conversarem todos os dias. Os olhares ficaram desconfiados e uma raiva latente lhe subia pelo estômago quando os via juntos. Havia algo de errado e português não sabia o porquê, mas de fato, algo havia. Não permitiria que a erva daninha do amor germinasse naquela terra, coração de Es. A rebeldia deveria morrer pela raiz e, mesmo que o tal sujeito fosse um dos bons clientes diários, comprador de pães e mais 48


Contos

alguma coisa, era tempo de dar cabo daqueles sorrisos diários. Na manhã agitada do dia seguinte, após a despedida entre sua filha e Genésio, o português embicou seus sapatos para fora do estabelecimento. Saiu numa disparada abandonando o forno e a vigília. Era momento da primeira batalha e ela definiria o futuro: há de haver guerra ou há de haver paz? Abordou Genésio de forma indiscreta e pouco cordial. Estendeu o dedo e estufou o peito para dizer tudo o que queria e precisava. Os farrapos de Genésio, o jeito de andar e as marcas em seu semblante eram todos reflexos de uma única coisa: um pobretão. Manuel já sustentava a filha e não faria o mesmo com alguém de quase a mesma idade que ele. Onde já se viu um homem que não consegue nem manter a si mesmo querer manter uma esposa? Manuel disse poucas e boas. Mandou Genésio se afastar da padaria e do bairro. Sentia que não era boa gente. Um ladrão, um farrapo, ou só um vagabundo. Prometeu à Nossa Senhora que daria cabo dele se voltasse a vê-lo com o sorriso bobo para sua filha. Genésio se sentiu surpreso, curioso e até certo ponto um pouco aliviado de Manuel não reconhece-lo. Achava que o português bigodudo queria manter Es protegida, mas estava longe de conhecer os verdadeiros sentimentos que possuía. Explicá-los poderia causar ainda mais confusão e, com certeza, mais fúria e um problema que lhe escaparia das mãos. Pensou em dizer sobre o amor verdadeiro que sentia. Falaria com o coração aos prantos e com o rosto inalterado o quanto amava Es, que daria tudo para atingir a felicidade da moça. Daria a própria vida se assim fosse necessário. Todavia, os olhos esbugalhados e as promessas de um final trágico do português fizeram Genésio recuar tais impulsos. Disse por fim. -Não se preocupe. Vou apenas mais o resto dessa semana em sua padaria. Tenho trabalho longe daqui e ficarei meses fora. Não verei Es novamente por um bom tempo. Dito e feito. O pai ainda teve sua desconfiança afiada e manteve guarda de sua filha. “Imagine se fogem para viver um amor de romances” pensava consigo. No final das contas, a semana passou e enfim restava só um fantasma de Genésio. O velho de roupas velhas, odor não tão agradável e sorriso sincero tinha desaparecido tal como o pouco da felicidade de Es nos dias rotineiros. 49


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

Sumiu por um longo tempo, mas um dia retornou. Sem vigília depois de meses, conseguiu entrar sem qualquer problema e sem trombar com o português bigodudo. Não havia mais o brilho verde de olhos apaixonantes. No caixa uma outra moça assumira a posição. Não era nem tão bela e nem tão importante para Genésio quanto Es. Comprou o pão e algo mais e se dirigiu até o caixa, cabisbaixo com a quantidade ainda maior de fios brancos em sua cabeça. Envelheceu anos em meses e sua fonte de juventude e amor parecia ter secado. -Onde está a mocinha, Es? – perguntou ciente do perigo que se colocava por conta da atendente dos pães ser a mesma do passado. -A filha do senhor Manuel? Não está por aqui hoje. Prepara-se para casar em breve – a nova moça continuou a falar sobre detalhes da festa, do pretendente e até da felicidade que contagiava todos da padaria. Genésio não escutou nada daquilo. Continuou sendo o cliente fiel que sempre fora desde que surgiu para apreciar os pães quentes da famosa padaria de Manuel. Os tempos eram outros. Agora, Genésio tinha substituído os trajes em farrapos e a mesmice do vestuário em peças muito mais variadas e elegantes. Caminhava com uma bengala lustrosa e com um chapéu de dar inveja. Misturava-se branco e preto nos pelos da cabeça e bigode e sempre comprava mais do que outrora. Sempre pão e algo mais. Na vinda rotineira até a padaria, deu de encontro com Es sentada num dos bancos esperando o pai para uma conversa. Sua pele se tornou rubra como o rubi em seu anel. Genésio pensou que o homem que enfim casou-se com a moça tinha bom dote, mas péssima atenção aos detalhes. O vermelho combinava com a vergonha de suas bochechas e, não com o brilho de seus olhos. Conseguiram trocar meias palavras sobre o olhar atento da atendente que servia os pães. A pobre Es sentiu um desejo de voltar ao passado e tomar atitude de esperar um amor verdadeiro e não o amor de rubi. Mas os tempos eram outros e a ausência do velho nos últimos meses tinha sido a decisiva garantia de que os sentimentos nem sempre floresciam na primavera. Na despedida rápida, Genésio entregou uma carta para a moça recém casada e desapareceu. Deixou só as palavras grifadas no exterior do pa50


Contos

pel: “Abra quando seu coração estiver pronto”. Ela obedeceu a ordem até o quanto pôde. Passaram-se anos em que o papel contendo um amor proibido ficou oculto em um baú esdruxulamente bonito. A pessoa quem resgatou a carta não foi Es e sim, seu marido. Uma fúria súbita tomou conta do jovem que quase rasgou o papel e amaldiçoou sua infiel esposa e o sujeito desonrado com colhões para aquilo. Quando o marido foi confrontar Es, já tinha lido a carta e não havia nenhuma fúria em seu rosto e muito menos suspeita de infidelidade da moça. A grafia de Genésio dizia em sua primeira frase: “Sou eu, seu pai verdadeiro.”. Explicou todas as aventuras de seu passado. Nasceu pobre e tomou a carreira de assaltante, um crápula imundo capaz de roubar até mesmo o coração de uma linda moça de olhos verdes de um sujeito português chamado Manuel. Falou do dia em que foi parar na prisão e o tempo que passou lá. Saiu depois de cumprir quase dezesseis anos na esperança de encontrar com um amor do passado e deu as caras com um novo sentimento, maior, mais forte e incomparável frente a qualquer outro. Estava condenado à vida de crimes, pois era sua única chance de emprego. Queria ter pago o casamento, mas chegou tarde demais para dar qualquer coisa. Despediu-se dizendo o quanto a amava e que provavelmente nunca mais se veriam. Estava certo. Genésio sofreu problemas com a lei onde, depois de um assalto mal sucedido em outra cidade acabou morrendo na prisão. De fato, Manuel não cometeu equívoco. O tal velho era um crápula desonesto. Es passou dias chorando e se lamentando toda a nova verdade diante de si. Seu marido a consolava em palavras pobres, e que pouco a ajudavam: -Não chore, Espúria. Não chore.

51


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

7 LUGAR

Maria da Manta Rândyna Paula Coêlho da Cunha de Faria Taguatinga - DF

Breve Biografia Nasceu em Brasília, 1983. É empregada pública, professora e conteudista EaD. Licenciada em Letras (port./inglês) e Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Tem contos publicados em revistas literárias brasileiras, como Philos, Avessa e Subversa. Foi selecionada no IX Concurso Literário de Presidente Prudente. Participou da antologia Folclore Nacional: Contos Regionalistas da Editora Illuminare e das coletâneas literárias Tratado Oculto do Horror e Vendetta – sendo indicada ao Prêmio STRIX 2016 pelo conto publicado nesta – da Andross Editora.

52


Contos

MARIA DA MANTA Uma chama uniforme e sinuosa crepitava num canto do quintal. Dentro da fogueira, um bolão negro de cinzas liberava uma fumaça também negra e um odor de carne podre torrada. De pé, próxima a ponto de sentir o lambido quente das chamas, estava postada uma mulher. Os olhos da mulher centelhavam o vazio e repetiam o vazio. Nada, jamais, poderia ser encontrado dentro daqueles olhos outra vez. Um vento gelado levou algumas cinzas para bailar e esparramou o cheiro acre de corpo queimado. Era um cheiro vivo, tão vivo, que arranhou as narinas dela e lembrou o quanto tudo aconteceu rápido. Era uma tarde de domingo, daquelas cheias de tédio e mocidade presos dentro do espírito. O filho insistia para irem até o riacho que ficava no fundo da propriedade. Ela não queria, pois sabia que ele encucaria de nadar. Relutou durante toda a manhã, deu desculpas, tentou distrair o menino, mas o abençoado era diligente e nada iria dissuadi-lo. Ela fez o filho jurar que não insistiria em nadar, fez ele jurar afirmando que Maria da Manta pega menino que invade as águas onde ela gosta de se banhar. O menino arregalou os olhos e ficou tecendo fios no pensamento, tentando enxergar uma Maria da Manta. Quando chegaram ao riacho era fim de tarde, de tanto enrolarem, a tarde enrolou-se neles e enrolou o dia. O garoto corria solto cortando os matinhos, se enganchando nas pontas de arame soltas e tropeçando nas pedras. Corria e olhava para o riacho, desejando a água gostosa de se banhar, cristalina e macia. A mãe, que era uma sabichona fingindo desinteresse, via pelo canto dos olhos a ânsia do menino em precipitar-se nas águas com roupa e tudo. Não seria a primeira vez que ele faria isso. – Henrique! – chamou a mãe severamente. – Que é, mãe? – o menino atendeu contrariado batendo os pés no chão. – É que não é assim que se responde a mãe! Já te ensinei. Como é? – ela disse, enquanto procurava no chão uma vara para ameaçar um corretivo. – Desculpa, mãe! Desculpa! – com voz de arrependimento fingido – Sim, 53


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

senhora? Ela jogou no chão a vara fina que tinha encontrado, balançou a cabeça, sabendo que vida de mãe era aquilo mesmo. – Vem! – disse com um aceno – Sai da beira. Eu te disse que Maria da Manta pega menino que teima e entra no rio dela. Ela adora esse lugar aí. – Mas, mãe… Eu já banhei aqui muitas vezes. Eu lembro! – ele insistia à fim de convencer a vontade da mãe. – Sim, meu filho, mas era outra época. Vamos caminhar por ali. Está cheio de jabuticabas. Está vendo o negrume no tronco das árvores? – apontando para um local distante de onde estavam. Um arrepio frio lhe percorreu todo o caminho da espinha, fechou o casaquinho, apertando-o entre os seios, olhou em volta e não viu sinal de vento, as folhas das copas das árvores sequer se moviam. – Vem, Henrique!!! – chamou já sem paciência – Está esfriando. Vai escurecer logo! Dentro dela, aquele tal instinto secreto feminino dizia: “Saia… Saia… Apenas, saia, sem olhar para trás”. E ela exprimia seu medo gesticulando apressadamente para o filho vir mais para perto. Comando que ele fingia não compreender. De modo repentino e com um olhar malicioso, Henrique regurgitou uma pergunta: – Por que, mãe? Por causa do papai? – Sim. Sim, é por causa do seu pai! – disse a mulher caminhando em direção ao filho. – Mas eu não sou ele mãe. – o menino choramingava, parado como se estivesse amarrado, mas sabendo que deveria correr. Este momento fez Aprígia compreender que o filho não era mais aquele menininho bobo e sugestionável, a personalidade do filho era como a do pai: destemida. E este era o maior de todos os perigos. Quando o menino ficou ao alcance da mão, ela lhe pegou forte pelo ombro e apertou, puxando-o para si e machucando a carne do filho. – Eu te disse que nós vamos pegar as jabuticabas e ir embora, antes que escureça. – ela se abaixou e olhou bem dentro dos olhos dele, com um olhar que fez o silêncio e o conformismo entrarem no menino – Foi Maria da Manta quem levou seu pai e ela me disse que quer te levar também! Você não entra nessa água mais! Já te falei! Vem! 54


Contos

Ela ia a passos rápidos, puxando Henrique. Olhou para onde o sol se punha, sussurrou algo sobre pegarem apenas algumas jabuticabas e seguiu obstinada. Algo realmente estava incomodando a mãe, ele sabia. A mãe não parava de buscar o sol no horizonte, enquanto movia as mãos freneticamente em busca das jabuticabas. O pai morrera há quase um ano, afogado naquele riacho, levado por uma tromba d’água diante dos olhares atormentados da esposa, do filho e de alguns amigos. O corpo jamais fora encontrado e Aprígia tornou-se estranha depois disso. Vivia cheia de comprimidos nas mãos e semblante perdido. Ele não entendia aquele olhar que viu nos olhos da mãe. Não entendia. Foi deitar com aquele sentimento de estranheza dentro do coração. O sono agitado, o suor escorrendo pelos lençóis, o vento rufando em volta da casa. Um cachorro uivou penetrando em sua dormência, como uma faca pontiaguda adentrado a carne viva. Um feixe de luz entrava pela porta entreaberta. Olhou para o despertador na mesinha de estudos: 3h01min. O cachorro não uivava mais. Estava quente dentro do quarto, mas o vento rodopiando ao redor da casa indicava que era noite de ventania. Que luz seria aquela? A mãe estaria acordada a esta hora? Fazendo o quê? Abriu a porta devagar, tentando espiar alguma coisa. Colocou apenas metade do corpo para fora e viu a mãe parada, como se olhasse para uma foto, murmurando algo que ele não compreendia. Os olhos dela estavam fechados: sonâmbula. Quando o pai estava vivo, cuidava dela nestes momentos, mas agora era o papel dele. Henrique chegou à mãe, tirando gentilmente a foto do pai das mãos dela e a conduziu até a cama, em silêncio, como o pai fazia. Ela cochichava e, entre as palavras, o menino entendeu: “Maria da Manta”, repetidas vezes. A mãe agora não tirava essa ideia da cabeça e ele nem mesmo sabia o que era. Assim que deitou a cabeça loura no travesseiro, Aprígia abriu os olhos, despertando calmamente de seu sono acordado. – O que você está fazendo aqui, filho? – ela perguntou afavelmente, ainda sonolenta e atordoada. – A senhora estava em pé, de novo. Dormindo. – Está acontecendo com muita frequência… – refletindo sobre a fragilidade da sua condição. – Mãe… – com a entonação de quem vai fazer uma grande pergunta – Quem é Maria da Manta? 55


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

do.

– Ah, filho… É uma velha história. Deixa isso pra lá… – Mãe, reponde. – ele pediu firmemente. Aprígia se sentou na cama, enrolou os cabelos num coque e respirou fun-

– Não vai desistir? – Não, mãe. Não vou. Quem é Maria da Manta? – Sua avó morou aqui neste sítio, a vida toda. Quando eu vinha passar as férias, ela me dizia para não entrar no riacho, porque lá era onde Maria da Manta gostava de banhar e brincar. A vovó dizia que era uma mulher de cabelos negros e sujos, desgrenhados. Os dentes dela eram podres, todos bem grandes, amarelos e pontiagudos, como se precisassem furar a pedra mais dura. Ela tinha muitos dentes na boca, tantos que seria impossível contar. As gengivas eram podres e quando ela ria, um cheiro de carniça de beira de estrada exalava e entrava dentro do espírito de quem estivesse perto. As unhas de Maria eram como estiletes afiados, prontos a rasgar a carne de qualquer um. Na testa ela tinha dois chifres enormes e negros, como os de um bode. Na ponta dos chifres o sangue de um pobre coitado qualquer manchava o negrume de vermelho carmim. Olhar para os olhos de Maria da Manta era encontrar a morte. A pele dela era preta como carvão e brilhava como madeira polida, os olhos cor de labaredas e a boca vermelha de sangue se destacavam naquele rosto de cor tão uniforme. Ela considerava o riacho como propriedade dela e nós não deveríamos entrar lá, porque quando alguém entrava lá, ela fincava as unhas no rosto da pessoa e a retalhava de cima embaixo. Se a pessoa entrasse lá acompanhada, Maria da Manta se escondia, esperava até a noite e ia caçando um a um, pelo cheiro. Às 3h da manhã ela estava na beira da cama, olhando com um sorriso diabólico no rosto, as unhas fincadas no colchão, saliva descendo pelo canto do lábio. Era o momento da refeição. Aquele que ela comesse jamais encontraria o caminho da luz, ficaria para sempre vagando na escuridão da garganta dela. E por ter muitos dentro da garganta dela, ela não fala, apenas ri e grunhe. – Mas, por que você fica repetindo essa história horrível, mãe? – Sempre foi história de avó, mas quando viemos morar aqui, seu pai se apaixonou por aquele riacho. No dia em que ele morreu, eu achei que tinham sido meus olhos me enganado, mas hoje eu sei, foi a Maria da Manta que puxou ele pelos pés. Eu vi a mancha negra por baixo dele, enquanto ele se 56


Contos

debatia. Eu senti o cheiro dela. Ele foi puxado e arrastado pelos pés. E, como na história da vovó, ela não devolveu ele, comeu cada pedacinho, até mesmo as roupas. Lembra-se de que o corpo do seu pai nunca apareceu? Henrique estava calado. Tentando ver todas as imagens que a mãe descreveu. Ela falou tudo sem hesitar, ela acreditava naquilo. Foi se deitar sabendo que a mãe não estava em seus melhores dias, depois da morte do pai ela tomava muitos comprimidos antes de dormir e, muitas vezes, bebia cachaça depois dos remédios. Gotas de felicidade, ela dizia. Ele teve que se cobrir inteiro com o lençol, até a cabeça, a mãe lhe meteu medo. Aprígia já não sabia onde começava e terminava cada versão. Estava deitada no escuro, tentando esquecer aquelas memórias e visões. No meio do completo breu, uma presença parecia estar vagueando pelo quarto. Os pés estavam descobertos, o melhor seria cobri-los, mas a coberta era muito curta e ela não queria olhar para as sombras. Deveria estar apenas assustada com a história que contou a Henrique, fecharia os olhos, respiraria fundo e o sono chegaria. Sim, faria isso. O pobre do filho era bem mais corajoso que ela. Estranhamente a sensação da presença ia se tornando cada vez mais real. Era o medo se personificando. Só poderia ser isso. Num fragmento de segundo, que ela não conseguiu distinguir quando, uma respiração ofegante e forte fungou em seus pés descobertos, o hálito quente era também fétido. Ela ouviu um gemido sufocado e alguma coisa sorvendo saliva. O sangue agora havia congelado, a coisa tocava na cama e ela tinha a sensação de que era com longas unhas pontiagudas. Pensou no filho, sentiu medo. Era melhor ver logo de uma vez a coisa. Movimentou-se lentamente em direção ao interruptor do pequeno abajur ao lado da cama. Sentiu a coisa se mexer: as mãos, talvez garras, mudaram de posição. A mudança na posição da pressão no colchão demonstrava isso. Acionou o interruptor e olhou em direção à coisa. Na ponta lateral direita da cama, estava ela. Com o queixo negro reluzente encostado no colchão, a baba misturada a sangue escorrendo e molhando o lençol branco de algodão. Rindo com tantos dentes à mostra que ninguém jamais poderia contar. Olhando fixamente para Aprígia, com olhos de labaredas. Era Maria da Manta, espreitando à beira de sua cama. Rindo e lambendo os lábios. Num piscar de olhos, viu quando a criatura correu pela porta em direção ao quarto de Henrique. Aprígia pulou da cama, correu o mais rápido que 57


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

pôde para lutar pela vida do filho. Quando chegou ao quarto, viu em cima da cama, apenas um bolão embaixo dos lençóis. Correu à dispensa e trouxe cordas. Amarrou o bolão, que gritava e se remexia. Foi arrastando-o para um canto do quintal, perto de onde guardava a querosene para o gerador. Era ela. Maria da Manta tinha comido seu filho. Não ficou nada, nem mesmo a roupa. A coisa pulava, gemia como se fosse uma criança, numa tentativa mais que óbvia de enganá-la, de gerar a esperança que o menino estivesse vivo. Criatura maldita! Levou o marido e agora o filho. A maldita voltou para lhe tirar o resto que faltava. Deixou a coisa retorcendo-se dentro dos lençóis, enquanto buscava galões de querosene. Pareceu ouvir uma voz abafada pedindo socorro. A avó dizia que a coisa fingia ser gente e demonstrava sofrer, quando era capturada. Não podia parar. Tinha que destruir a coisa. Derramou todo o querosene que encontrou sobre a criatura e, sem pensar mais que um segundo, ateou fogo nos lençóis em que seu filho dormia, antes da coisa comê-lo. Maria da Manta se contorceu e urrou o quanto pôde, mas Aprígia não tinha dó. Tinha apenas dois olhos vazios, carregando o nada para dentro de si, enquanto uma pequena mãozinha enegrecida saltava de dentro do bolão.

58


Contos

8 LUGAR

O Homem Atrás da Porta Bruna Meneguetti Figueiredo São Paulo - SP

Breve Biografia Bruna Meneguetti é jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo. Autora do romance histórico “O Céu de Clarice”, disponível na Amazon e Wattpad, escreve no site www.brunameneguetti.com. É também coautora do livro “Corações de Asfalto - Histórias de Trabalhadores das Ruas de São Paulo” e está presente nas antologias literárias “Curva de Rio”, organizada pela Casa das Rosas, e do “Desafio Scribe de Contos”, organizada pela plataforma Scribe.

59


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

O HOMEM ATRÁS DA PORTA Não sei muito bem como aconteceu. Tudo era perfeito até que um dia acordei e meu dedinho da mão havia sumido. Era como se não estivesse mais lá. Eu podia pegar coisas e mexer nele, porém não mais o senti novamente. Em fato, não achei muito problema nisso, pouco me atrapalharia a falta de um dedo mísero. Dizia a mim que eu era um homem forte por saber lidar bem com algo do tipo, um dedinho sumido. A esta altura de minha vida já tinha a minha própria casa e não havia a quem ligar correndo para contar aquele estranho caso. Sempre fui muito orgulhoso da minha vida e de como trabalhei para chegar ali. Fui um professor excepcional. Na sala de aula, todos sabiam o quanto eu era fenomenal. Lógico que às vezes exagerava, bebia e fumava demais. Pensei que a falta do dedinho poderia ser algum colapso causado por esses pequenos estresses. No fim, apesar do dedo, fiquei quieto e esperei passar. Era um homem estudado e não poderia aparentar insanidade. Comecei a usar uma luva para ir ao trabalho. Dizia aos meus estudantes que descobri ter alergia à giz. Estava incomodado. Costumava ser o homem que ficava na frente de todos para me certificar de que eu era supremo ali. No dia do dedo, uma aluna me olhou parecendo não estar muito convencida e riu sem motivo aparente. Era a segunda vez naquela semana. Na primeira, quando eu ainda tinha o dedinho, ela sorriu ao perceber a minha mania de não conseguir dar aula de porta aberta. Fiquei incomodado com aqueles risos. Nessa época tinha muitas mulheres, mas nunca liguei para as alunas. Do contrário, conversava com diversas pessoas e era muito popular. Obviamente não iria reclamar de ter uma companheira ou algum bom amigo para ligar a qualquer hora e tomar uma cerveja quando estivesse triste. Mas eu sempre 60


Contos

estava bem. Magnífico. Prazer, fui o homem imbatível… No dia seguinte, acordei e olhei se estava tudo certo. Apenas o pequeno dedo não aparecia. Meu pijama era de mangas compridas, pois fazia muito frio naquela semana. Ainda com sono eu o tirei para tomar banho e, enquanto a água corria sobre mim, notei que não sentia ela escorrer em meu braço. Mais uma parte havia sumido. Desesperei-me. Não porque fosse exatamente um problema, pois era possível ocultá-lo pela roupa, mas porque cada vez menos parecia uma alucinação. E o mais estranho era ver a mão, visível, sem o dedinho e com braço invisível também. Todos os dias, eu entrava em casa desesperado porque sabia que o amanhã iria chegar e imaginava qual parte do corpo haveria de sumir. Às vezes eram partes próximas, como a mão e o dedo. Às vezes partes distantes, como o pé e a orelha. A outra mão não envolveu grandes questões, foi só dizer que ela também tinha sido ocupada pela alergia. Apesar do sumiço e de não ser capaz mais de sentir, eu ainda tinha coordenação e podia movimentar os objetos como antes. Tal fato, não atrapalhava minha eficácia e brilhantismo, eu dizia a mim. No entanto, a orelha me tirou o cargo de professor mais respeitado, colocando-me no de palhaço quando apareci dando aula com um gorro gigante. Então pensei em um emprego em que teria de trabalhar com roupas mais quentes. Sempre quis ser um pintor, um artista, mas disseram-me que era coisa de gente louca, fracassada. No fim, fui parar em um frigorífico, sem contar a ninguém sobre o ocorrido. Todos os dias um novo membro sumia ou apenas uma parte dele ia embora. Logo, eu estava usando também um cachecol. As pessoas me viam na rua e achavam que eu era um louco naquele calor de 30 graus. Nunca haviam me achado louco. Eu era um homem sério. Porém, fora isso, nada era sufocante ao extremo, afinal eu não sentia temperatura, muito menos o toque das pessoas. Meu corpo já estava quase que completamente invisível.

61


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

Um dia, uma vizinha veio até o meu apartamento. Fazia mais de um mês que eu não convidava ninguém e ela chegou de supetão. Sabia que Luana teria de ir embora, pois me restava apenas a face. Porém, imaginei que poderia deixá-la beber um vinho em troca de alguns beijos. Talvez isso ainda me desse o prazer que a bebida já não dava, porque as toxinas não mais ficavam em meu corpo. Beijei-a muito naquela noite. Procurei imensamente pelo calor daquele contato. Não foi bom e nem ruim. Foi uma mistura de um tanto faz com um quase pouco, e mais uma pitada de algo com um quê de agradável, para não dizer insuportável. Mandei-a embora quando ela avançou para outras áreas. Ela saiu batendo a porta e fazendo muito barulho. Nunca havia lhe recusado. Quanto mais eu fazia, mais o buraco era maior e mais eu desaparecia. O que aconteceria quando eu sumisse por inteiro? Naquela noite, dormi abraçado no travesseiro apesar de só poder senti-lo em meu rosto. No dia seguinte, a minha boca havia sumido. Pensei em ligar para o frigorífico e dizer que não poderia ir mais, que estava me demitindo. Mas não podia falar. Pelo menos pensei que não precisaria de dinheiro já que não havia mais como comer. “Vou morrer”, eu disse a mim mesmo enquanto me olhava no espelho. O cachecol, luvas, sapatos, meias; tudo cobrindo o corpo e aquele pedaço do nariz para baixo. Pensei que as narinas seriam as próximas, ou os olhos. Será que precisaria respirar? Havia mais de quatro dias que não comia e não tinha sentido mudança alguma. Não dormia mais. Apenas fechava os olhos e ficava assim até o dia raiar para parecer que eu ainda era um ser humano normal. Sempre quis ser alguém dentro dos padrões, que se adaptasse bem ao mundo. Quando o dia surgiu e vi a luz, olhei de maneira vesga para o nada embaixo dos meus olhos. Era isso; o fim. O nariz não estava mais lá. Não sentia o ar entrar ou sair. Porém, nada aconteceu e eu ainda vivia. Corri ao espelho. Era uma imagem macabra de um homem todo coberto. Tinha apenas os olhos no rosto. Notei que uma pessoa tão bizarra assim não 62


Contos

teria mais porque se esconder sobre uma pele falsa de roupas de marcas. Cuidadosa e dolorosamente, comecei a despir-me. Chorei pela primeira e última vez naquele dia. Conforme eu tirava os sapatos, as meias, a calça, a blusa, o cachecol e o gorro, pensava o quanto me desejava por inteiro. Não que fosse novidade. Na minha vida toda eu me queria inteiro, mas pela primeira vez eu não conseguiria fazer nada que suprisse momentaneamente essa vontade. Quando olhei no espelho, era uma face com olhos e apenas isso. O cabelo também já havia ido embora. Nada mais existia do queixo para baixo. Em uma última tentativa de felicidade, procurei as belas fotos que tirei nas viagens a trabalho. Porém, o tempo foi curto. Antes mesmo de notar que aquilo não era o desejado a ser visto, percebi que meus olhos começavam a sumir. Em seguida, fiquei cego. Tudo era um grande espaço preto, mas eu ainda existia nele. E, o pior, eu sabia que ainda existia, mas não poderia sentir isso. Deitei, sabe-se lá onde, e implorei que passasse logo. Então, uma figura apareceu e na mesma hora percebi que era a morte. Por um motivo que não sei explicar, a gente sabe reconhecer a morte quando a vê, muito mais do que sabemos reconhecer a vida. — Olá, Carlos — a morte disse sombria. — Veio me buscar? — Não. Estive olhando o seu currículo, um belo currículo, e o senhor me parece a pessoa ideal para seguir com o meu posto. Morreu faz tempo, pessoas assim se sentem mais confortáveis no cargo. — Está falando que eu sou bom para ocupar o cargo de morte? — Senti o sangue na minha veia gelar. — Sim. Encare como a promoção que nunca teve no trabalho. Tenho aqui em meus históricos que você nunca se importou com nada que… O senhor sabe. — Está dizendo que não tenho sentimentos? — Está aqui que nunca os procurou de verdade — a morte respondeu. — Claro que os procurei, o tempo todos eu os queria. 63


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

9 LUGAR

Violeta Adnelson Borges de Campos Foz do Iguaçu - PR

Breve Biografia ADNELSON CAMPOS, casado com Denise, pai de Lucas, Vinícius e Helena, administrador, gerente de manutenção na industrialização do xisto, São Mateus do Sul, PR. Possui diversos contos publicados em antologias impressas e digitais. É autor de Histórias que as estrelas contam – um pouco de astronomia para adolescentes. www.adnelsoncampos.com.br

64


Contos

VIOLETA No Salão Dourado, eu a observava sentada no sofá em estilo francês. Não olhando diretamente, mas por meio de um dos belos espelhos do salão. O reflexo dos lustres, do ouro impregnado nas paredes e na estrutura do banco, emolduravam a beleza dela. O Marido, o General Vidal trocava ideias com políticos locais, quem sabe falassem do interesse do país, que se declarava neutro em relação a Grande Guerra, na relação com os regimes fascistas da Europa. Ele a esqueceu no meio das senhoras mais velhas, preocupadas em desfilar os vestidos e chapéus, da última moda em Paris. Faltava pouco tempo para a abertura da cortina de acesso ao palco principal. Mais uma vez o Teatro Cólon receberia a Ópera Aida de Verdi e foi justamente logo abaixo do busto de Verdi que eu me posicionei estrategicamente para vê-la passar pelo Salão de Bustos. Segui seus passos até a entrada do Salão Branco. Deste ponto não pude passar, restando-me a alternativa reservada para o meu nível social, se houvesse como defini-lo. Ela se instalou no balcão destinado às autoridades, ao lado do marido. Eu posicionei-me por detrás das baignoires. Ela conservava a mesma beleza dos seus dezoito anos. Lembro muito bem do brilho em seus olhos quando dançamos aquele tango no Café Beloni. Eu, já mais maduro, fazia minhas apresentações ao público e como parte do show, dançávamos com pessoas da plateia, ensinando um pouco do que sabíamos. O número de pessoas com que fiz par é incontável, mas ela foi especial. O sorriso disfarçava um pouco de sua timidez. Aceitou dançar depois da insistência da irmã mais velha e da permissão do pai, um velho soldado a serviço do Governo. Toquei sua cintura e parecia que o local havia sido feito para as minhas mãos. Eu morreria ali. Aproximei-me de seu rosto e o perfume em seu pescoço era inebriante. Pude perceber o arrepio em seu corpo quando joguei seu 65


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

corpo para trás e com a mesma intensidade o trouxe de volta ao encontro do meu. Ela suspirou suavemente e tentou manter-se indiferente. O bandoneón marcava o ritmo e os violinos acentuavam a melodia do tango de Gardel: Por una cabeza. Meu desejo era de que aquele momento fosse eterno, porém a triste melodia chegou ao fim e, desde então, começou um duro, porém doce período da minha vida. Ainda me lembro daqueles olhos negros me observando, numa leve torção da cabeça olhando para trás no momento em que ela saia do Café com a família. Alguns anos mais tarde um novo governo assumiu o poder, depois do golpe militar de 4 de junho, e o pai de Violeta tornou-se uma das figuras mais poderosas e respeitadas de nosso país. Eu, juntei-me aos revoltosos que abominavam o regime ditatorial imposto à população. Isto aprofundou ainda mais o abismo que existia entre mim e a bela moça. Certo dia quando eu subia a Cerrito, encontrei-me com ela que caminhava com outras duas jovens. Entreguei para as três jovens algumas das rosas que eu vendia para juntar alguns trocados. Para ela escolhi uma rosa vermelha. Antes de entregar, sorvi um pouco do perfume da flor. Ela sorriu e perguntou-me: - Além de dançarino também é florista? Realmente sabe como encantar as mulheres! - Nessa vida, me interessa encantar apenas uma mulher. Eu aceitaria qualquer desafio para conquistá-la. Enfrentaria mesmo um exército com tal objetivo – respondi, contente por ela ter me reconhecido. - Um exército inteiro? Que tal começar pelo noivo dela, o sujeito a nos observar da equina? – Observou uma das amigas. Cumprimentei o sujeito a distância, com um gesto de meu chapéu. Pelo uniforme, percebi tratar-se de um coronel. Um sujeito bem mais velho que a garota. Ela sorriu e seguiu seu caminho na companhia das amigas até encontrar-se com o seu noivo. No dia seguinte, no mesmo horário, voltei para o mesmo local do dia anterior com meu cesto de flores, na esperança de encontrá-la. Esperei por um longo tempo, até que vi ao longe uma jovem que caminhava com o rosto encoberto pela sombrinha, que a protegia do sol daquela bela e agradável tarde de primavera. Os plátanos já haviam se coberto de novas folhas e embelezavam a avenida para o desfile daquela bela mulher. 66


Contos

Ela se aproximou e cumprimentou-me. Escolhi uma nova flor e entreguei a ela. Sutilmente ela colocou em minhas mãos, no momento de apanhar a flor, um papelzinho muito bem dobrado. Não sorriu, disfarçou o olhar e seguiu em frente. Acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na esquina. Antes disso, ela virou-se e fez um leve aceno, balançando a luva que segurava em sua mão. No bilhete pedia que eu me encontrasse com ela na Basílica de Nossa Senhora do Pilar, no dia seguinte. Não dormi naquela noite e cheguei ao local com uma hora de antecedência. Ela chegou no horário marcado, acompanhada de uma das jovens com quem caminhava no nosso primeiro encontro na Cerrito. A outra moça permaneceu nos fundos da igreja, enquanto Violeta sentou-se ao meu lado num dos bancos, próximo do altar. Rezou por alguns instantes, depois sussurrou um convite para que fossemos até o Cemitério da Recoleta. Pediu que eu fosse na frente. Caminhamos por alguns minutos entre os jazigos e túmulos de figuras importantes na história da Capital. Trocamos algumas informações sobre nossas vidas. Enquanto caminhávamos lado a lado, minhas mãos roçaram nas dela e ela segurou na minha. Aproximei sua mão de meus lábios e a beijei. Ela aparentemente torceu o pé e caiu em minha direção. Nossos rostos ficaram próximos e eu toquei seus lábios suavemente. Ela abraçou-me por alguns instantes para logo em seguida afastar-me suavemente. Pediu que retornássemos e permaneceu calada até nossa despedida já na praça em frente à Basílica. Não houve um só minuto em que eu tenha deixado de pensar nela, nos dias que se seguiram. Ela não voltou mais ao meu ponto de vendas. Nas apresentações de tango eu tentava enxergar em cada parceira de dança a bela Violeta. Depois do trabalho durante toda uma madrugada, eu perambulava pela Posadas quando o jornaleiro começava a distribuir o El Mundo. Comprei um exemplar. A primeira página era estampada pela fotografia de Violeta ao lado do Coronel Vidal. O casamento, anunciado para o mês seguinte. Senti ainda mais raiva daquele governo e, em especial daquele sujeito de feições rudes e ar arrogante. Dediquei-me ainda mais ao movimento oposicionista e por várias vezes 67


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

estive muito próximo da morte. Perdi muitos companheiros de luta. Consegui manter-me protegido por detrás das minhas ocupações, fingindo simpatia a classe dominante. Com isso abastecia de informações meus companheiros. Vidal teve uma carreira militar meteórica e em pouco tempo tornou-se general, guiado pelo pai de Violeta, que já estava a mais tempo no maior posto do exército. Vidal ganhou expressão política e era um dos fortes candidatos à sucessão presidencial. Eu, tornei-me um dos líderes do movimento, planejando nossas ações. Naquela noite, enquanto o público, a elite do país, assistisse a ópera de Verdi, a carreira de Vidal chegaria ao fim. Eu havia depositado a minha arma em um local remoto em uma das salas do imenso subsolo do Teatro Colón. Ele morreria diante de todos e eu desapareceria através de uma passagem secreta. Todos já haviam tomado os seus lugares. Me posicionei também. Por detrás das grades de bronze da baignoire, analisei todos os ângulos. Eu teria uma única chance. Ele sorridente, estava muito próximo de Violeta. Sentavam na primeira fila do balcão do segundo pavimento, espaço reservado para as autoridades. Eu teria que ter muito cuidado para não a atingir. Eu confiava no treinamento dos últimos meses, porém era preciso esperar pelo momento certo. Já se haviam encerrados três dos quatro atos da ópera e eu ainda não havia encontrado a oportunidade. Meu corpo estava todo suado e a boca amarga. A ansiedade me desgastava. Ela parece irritada e ele levanta a voz. Os dois saem do balcão. Por um momento pensei ter perdido a oportunidade de livrar o país daquele sujeito. Violeta também ficaria livre. Vidal voltou sozinho, com ar contrariado. Perfeito! Era o que eu precisava. Preparei a mira, concentrei-me. No palco Radamés se despede da vida e de sua amada. Aida surge para morrer em seus braços, enquanto Amneris reza por Radamés no templo de Vulcano. Neste momento, da cúpula do teatro, por detrás da grande aranha central, o coro entoa os cânticos dos sacerdotes e a acústica do teatro espalha o som com perfeição. Para mim mais parecia um coro de anjos que anunciava a vontade do Senhor e que eu estava fazendo a coisa certa: vingaria a morte e tortura de muitos de meus amigos. Talvez isto aliviasse o meu pecado. “Paz!”, 68


Contos

pedia a ópera! O quarto ato e o espetáculo chegavam ao fim. Seria agora. Preparei o dedo no gatilho. Por um breve instante tremi. Interrompi o movimento quando percebi um corpo cair da caixa do palco do Paraíso e em seguida ouvi o baque surdo do seu impacto contra o piso do teatro. Violeta dava fim a sua vida. Um sentimento de culpa, misturado ao de insignificância tomou conta de mim. Talvez eu não tenha me esforçado para conseguir representar algo na vida de Violeta ou quem sabe fui muito menos do que imaginei. Não fui um motivo para que ela desejasse continuar vivendo, nem rápido o suficiente para livra-la de Vidal. Depois de um instante de silêncio, a perfeita acústica do teatro distribuía o som do burburinho que se formou. Lembrei do nosso tango, dançado naquela noite em que ela desabrochava para a vida em sociedade e em minha mente se repetia a frase final da canção: “Si ella me olvida, qué importa perderme mil veces la vida. Para qué vivir”.

69


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

10 LUGAR

Não sei como aconteceu Mauro Gonçalves Cesar Rio de Janeiro - RJ

Breve Biografia Tenho 61 anos, sou aposentado, divorciado, dois filhos, formado em Direito e Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, fui bancário desde jovem e depois passei em um concurso público para um cargo técnico/jurídico e, simplesmente, adoro ler e escrever.

70


Contos

NÃO SEI COMO QUE ACONTECEU Era um casamento simples, sem filhos, de uma vida simples, de gente simples ou, talvez depois desses trinta longos anos, nem casamento, nem vida, nem simplicidade, nem gente. Apenas uma névoa densa reinava sobre tudo, sobre cada um. Sem cólera, sem discussão. De fato, somente dois seres ambulantes que se revezavam entre os espaços vazios, de modo a se evitarem no pequeno apartamento. Apenas o mesmo ódio surdo, o mesmo desprezo cego, a mesma ofensa muda. Sem barulho ou discussões. Assim a vida foi assumindo seus tons e odores de água parada. Ambos em fim de carreira. Ela funcionária pública, ele um advogado, sem nome, sem renome. Ela de tão conformada com sua rotina da casa para o trabalho, do trabalho para casa que depois dos anos nesse trato, já não distinguia ou não se importava em distinguir ao certo qual era qual. Ele, por sua vez, passado o delírio inicial da profissão, restaram as pedras, os bicos, o sustento. Restou o único terno surrado, a encobrir a camisa empapada de suor, pilhas de papel embaixo do braço, o andar sempre apressado pelas ruas do Rio de Janeiro. Mais acostumado à aspereza da alma humana, ideias não lhe faltavam a reafirmar a sorte do que o coração pedia. Algo que mudasse sua vida, ainda que trocando aquele vazio por outro. Após tantos anos ruminando ideias, naquele momento a estranha e prazerosa experiência de um horror potável – nada parecia mais sedutor que a ideia de mata-la. Sim, não haveria recuo. Era preciso pensar bem, não para voltar atrás, mas para minimizar os efeitos de seu ato. Afinal, era advogado e conhecia os formalismos dos teatros dos tribunais. Para começar, que motivo alegar? Qual o porquê? Qual a versão capaz de 71


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

transformar o chocante em razoável, a transgressão vil em ação irresistível? Talvez legítima defesa, quem sabe? Ah claro, imagina só explicar para um júri, o perigo que correu ao ser ameaçado por uma quase sexagenária portando uma perigosa colher de pau. Não lhe passava pela cabeça uma simulação torpe qualquer - um ladrão forçou a porta, eu havia saído e quando cheguei já a encontrei morta. Ou ainda, o nefasto subterfúgio – foi um acidente, eu cansei de avisar a ela...De forma alguma. Era uma questão de honra, precisava assumir a autoria de sua obra. Esse era enfim o grande desafio – ser responsável, sem ser responsabilizado e sair livre como um pássaro. Uma espécie de única, mas definitiva, consagração profissional. A sua cabeça maquinava cada uma das suas boas razões para o ato e a todas degustava com mais prazer. Bem, pensou ele, em pleno ofício e empenho de um total desvario, o motivo afinal poderia não importar. Quem sabe do que um homem é capaz? Como avaliar o quanto cabe num simples e drástico momento da alma humana? Na verdade, o que há de mais íntimo e humano que a loucura? O que pode o senso moral médio e toda a ética da humanidade civilizada diante de tão poderosa força transgressora? Depois de tanto tempo daquele pensamento plantado em sua mente, enfim a sensibilidade da indiferença definitivamente lhe fincava fundas raízes de razão, erguia um sólido tronco de lógica e tudo sob a mais ampla e espessa folhagem de impunidade. Mas ainda restava o “como”, detalhe fundamental. Um erro na execução e poria tudo a perder, ainda que ao final das contas, mesmo condenado, de fato, estaria apenas mudando uma pena por outra. Na verdade estaria apenas trocando labirintos. Entre pobres e funestos, apenas mais um labirinto entre labirintos, mas sem ter que conviver com o Minotauro. Com certeza, o mais espantoso do amanhã ainda lhe seria muito mais doce que o medonho nada de hoje, como se a dor da punição e seus fantasmas pudessem enfim revelar para si que ainda estava vivo, inteiro, aliviado, 72


Contos

em paz. Capaz de sentimentos além de ódio e desprezo. Quase uma eutanásia às avessas - morto de vida e vivo de morte. Assim, pensou, num acesso descontrolado voaria sobre sua garganta e apertaria o mais forte que pudesse até senti-la parar de se debater. Depois, um tempo para garantir, iria afrouxando aos poucos, tentando sentir se ainda havia qualquer influxo de alma, de vontade, de vida. Enquanto antegozava o que seria seu momento de glória, sua libertação, ali estava ela, parada em sua frente, um sorriso humildemente amistoso, o braço esticado oferecendo-lhe uma xícara de chá. Ficou extremamente surpreso com aquele gesto, afinal, depois de tanto tempo vivendo aquela solidão a dois, aquilo era, no mínimo, estranho. Teria ela a mais vaga intuição de seus intentos e agora se lhe aparecia como a suplicar por sua vida? Ele pegou o chá, enquanto ela se retirava em silêncio. Como uma última concessão humanitária sorvia cada gole daquele chá, imaginando-se exausto, arfando depois de executar o seu propósito. A explicação patética de seu ato - não sei o que aconteceu...ela era tudo pra mim... Estaria livre dela, livre de si mesmo, livre daquela espera de vida por viver. Era como um êxtase. Seu coração parecia disparar, o suor escorria-lhe pela testa, sua cabeça girava. Seria a emoção do momento? A xícara caiu de sua mão. Seu corpo tombou para frente com um som abafado. O corpo caído, encolhido, o rosto direto sobre o chão, os olhos perdidos como em desvario, no último instante da vida que se desfazia - não sei o que aconteceu... ela era tudo para mim... Encoberta pelo portal, ela observava com olhar atento. Nem triste e nem alegre, apenas aguardava o desfecho, enquanto ouvia seus últimos murmúrios e repetia para si mesma – não sei o que aconteceu...ele era tudo para mim.

73


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

— Você estava se procurando ou usando os outros para achar o que desejava em alguém? — Providenciava já que não encontrava — revidei. — Não, Carlos. Na verdade, você desistiu de si há muito tempo. Perdeu tudo. — Não quero ser a nova cara da morte. Certamente ainda me resta algo… Ainda vivo, certo? — Por que você acha que vive? — A morte questionou, provocando arrepios. — Pode um homem morto morrer? — Indaguei triste. — Certamente. — Então pode um homem morto voltar a viver. Dê-me uma chance de ser este homem. A morte encarou-me. Sabia que ela estava pensando e, talvez, até se divertindo. Sua sentença foi simples, direta, como um aviso: — Então pare de ficar atrás da porta e entre, homem invisível. A vida deve ser plenamente vivida por quem você é e não por aquilo que representa. Só morre aquele que vive.

74


Poesias

75


PrĂŞmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

76


Poesias

10 LUGAR (Regional)

Acento Cylmara Rolan Wandscheer Foz do Iguaçu - PR

Breve Biografia Cylmara Rolan Wandscheer é nascida em Urai, norte do Paraná, filha de Wilson e Rosalia Rolan. É engenheira agrônoma e professora em ensino profissionalizante rural na Terra das Cataratas. Mora em Foz do Iguaçu há mais de 40 anos e tem nos escritos e leituras com a família a companhia do bem viver.

77


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

ACENTO Eu sei bem a data quando virei Rosália. A data em que deixei de ser Rosalia. O cancro negro veio e mudou meu nome, Virei Rosália no prontuário da enfermaria. Rosalia de Uraí comida pelo caranguejo Arrancou meus cabelos durante as rezas. Podou minhas mamas na quimioterapia E colocou um acento onde não devia. Na fila do ritual de morte, Rosália ou Rosalia Um cachorro e um gato como aliados cinco filhos e um marido desesperados. Rosalia vive em cada feliz lembrança Rosália vive na solidária agonia Pois um acento muda tudo no nosso dia a dia.

78


Poesias

10 LUGAR

Ciclo Oly Cesar Wolf Campo Largo - PR

Breve Biografia Nasci em Campo Largo, onde vivo até hoje. Tenho 42 anos, estudo história e letras português/inglês e sou músico. Escrevo desde criança.

79


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

CICLO Eu, ao mesmo tempo, boi e pasto, Num ciclo perfeito, me basto. Autófago, necrófago, me sustento Ao matar-me para me dar-me De alimento. O eu de dentro, por fora, Trazendo o de fora pra dentro. Sou comido pelas beiradas Pelo eu que habita o meu centro. Só eu me conheço bem, Eu alheio de mim, Conheço-me como ninguém, Oroboros do início ao fim.

80


Poesias

2 LUGAR

Oceano preciso Rafaella Pileggi Rímoli Ribeirão Preto - SP

Breve Biografia Rafaella Rímoli é escritora. Ama poesia e contar histórias. Aprende, a cada dia, que escrever é uma lente de alta definição que revela comunhão. Formou-se em Letras pela UNAERP e já trabalhou com mediação de leitura para crianças, contação de história em projeto com crianças de risco social, redação de texto publicitário, canto, aulas particulares de interpretação de texto, curso de poesia e ação educativa em museu de arte contemporânea. Publicou o livro de poesias ‘O haver flor’, pela Editora Coruja, em 2013 e atualmente trabalha com desenhos afetivos na ‘Loja de Ilustrações’ e com a página ‘Contínuo Instante’ no Facebook e Instagram, espaço autoral onde publica poemas sobre sensações, emoções e sentimentos na plástica sensível do tempo, ampliando a consciência para o momento presente. Premiações e publicações: • Prêmio Literário Paulo Freire, com o texto ‘Estreito’, categoria crônica, da 12ª Feira do Livro de Ribeirão Preto. Com publicação em coletânea. • Vencedora do concurso ‘Escritores in Progress’ realizado pelo SESC São Paulo em Parceria com a Bienal do Livro de São Paulo. 81


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

Participação da mesa de debate sobre o livro autoral de poemas ‘O Haver Flor’, com mediação do escritor Fabrício Carpinejar. Publicação de mesmo livro pela Editora Coruja. • Prêmio Literário Darcy Ribeiro, com o texto ‘À flor da pele’, categoria ensaio, da 14ª Feira do Livro de Ribeirão Preto. • Publicação do texto ‘Jabuticabeira’ na revista eletrônica Philos. • Publicação do poema ‘Oceano preciso’ na Antologia de Poesia Brasileira Contemporânea ‘Além da Terra Além do Céu’ da Chiado Editora.

82


Poesias

OCEANO PRECISO Embutem-nos estes olhos para nos fazer chorar. O que nenhum cientista sabe é que atrás da pupila tem um oceano. A íris é um recipiente preciso, não expande nem diminui, o oceano é que às vezes se excita. Nenhum recipiente aguenta, transbordam águas salgadas. Embutem-nos estes recipientes pequenos para não acumular muito mar. Pois dizem que onda é preciso. Embutem-nos este oceano imenso para ensinar outras medidas. para aprendermos a nadar com os olhos. para aprendermos a mergulhar só de ver.

83


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

3 LUGAR

Imenseiro Thassio Gonçalves Ferreira Rio de Janeiro - RJ

Breve Biografia Criado em Niterói e radicado no Rio de Janeiro há dez anos, sou um cidadão da Baía de Guanabara. Lancei em 2016 o livro de poemas (DES)NU(DO), pela Editora Ibis Libris, com o qual tenho participado de diversos eventos literários, como o Sarau de Poesia da Primavera Literária 2016 – RJ, o Salão Carioca do Livro – LER, e edições do Corujão da Poesia no Rio de Janeiro e em Niterói. Também tenho participado de antologias de contos, como o Prêmio VIP de Literatura 2016, da A.R. Publisher, e a Antologia “Entre Amigos”, da Editora Sinna. Recentemente obtive o 3º lugar na categoria Poesias do Prêmio VIP de Literatura 2017.

84


Poesias

IMENSEIRO Era um imenseiro tão largo parecia não tinha lados e era como se o espaço descompressado, dilatado não ocupasse todo o espaço tonteando, estabanado em voo sem direção pelos vácuos do mudo arco da amplidão. o horizonte sorriu um sol. o horizonte pariu um sol e a ardência dessa parturição – como ardem todas as nascenças – reverberou na pele do que se via – em sol maior na minha – e tudo que existia naquele instante azulado fez-se ventre do dia. tudo se molhou de sol. a luz sossegou os instantes que de passarinhos saltitantes agitados passaram a bois mansos de calmos movimentos lentos... a manhã que nascera 85


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

com a mesma violência – necessária e exata – da fêmea louva-deus a devorar seu amante uma vez fecundada essa manhã, devorado o breu derretia suas garras dissolvia suas facas de luz em mornidão e tudo silenciava. não se via vento não se ouvia um cheiro nenhum sentimento fora do eixo se movia. não havia nada fora de lugar nenhuma farpa no imenseiro. tudo calma e comunhão. ali, por um triz – o tempo parado – fui feliz.

86


Poesias

4 LUGAR

Garça Vivian Aurora de Moraes Bragagnolo Araraquara - SP

Breve Biografia Autora dos livros “Sonetos Sombrios”, “Poemas e Canções” e “haicais/ vivian/ de moraes” e “As sete cores do carneiro”, lançados de forma independente, publicou, ainda, “Desconstrução”, lançado pela Editora Patuá em de 2015. Participou em 2016 como organizadora uma antologia com seis autores chamada “Veneno!” pela Penalux. Seu livro de contos “Satan me tirou para dançar” (Penalux, 2016), é o mais recente. Tem um blog de escritora: viviandemoraes.blogspot.com. A autora já foi publicada por revistas como Cult, Zunái, Samizdat, Mallarmargens, Homo literatus, Jornalirismo, Gente de Palavra etc. e é colunista do portal LiteraturaBr. Vivian nasceu em Atibaia/ SP e vive há 17 anos em Araraquara/ SP.

87


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

GARÇA Parecia uma ave pernalta Naquele pântano Mas no limbo, no musgo, na água turva Não havia vida De que se deslumbrar. Minhas vísceras combinam Com meu sangue Minhas vísceras são a única flor do mangue.

88


Poesias

5 LUGAR

Silêncio que enche barriga Sara Regina Albuquerque França Porto Alegre - RS

Breve Biografia Sara Albuquerque: natural de Maceió/AL, 1990. É artista. Mestranda em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Trabalha na Editora da Universidade Federal de Alagoas. Autora dos livros “O Segredo do Rio Mundaú”; “Ei, você viu Luizinho?”; e “O embrulho misterioso de Nina”; todos frutos de concursos culturais e publicados pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos (IOGRAM). Blog: www.albuquerque-sara.blogspot.com.

89


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

SILÊNCIO QUE ENCHE A BARRIGA Vó Lindaura só via neto magro, cheio de vento O bucho da gente inchado, a boca ainda salivada Ela, cês não comem é nada Tinha uma leveza no olho Desse povo que pisa macio no mundo Dizia que eu ia endoidar de tanto estudo Cabeça não guenta monte de informação Por isso que cê vive doente, minha fia Módi esses livros desanuviando o juízo Me ria uns gatos pingados Batendo as panelas em protesto. Sol e chuva em festa de viúva Chego em casa como quem se alivia Os pés despidos pra não molhar o piso Pego vó matutando meus cadernos Voz de pássaro, mastigando sílabas Lia em miúdo as frases se lambendo Eu, voo escondido, na prosa dela A vida crepúsculo por dentro. Dei por esquecer uns livros pela casa Na varanda, na mesa, no criado-mudo Páginas grifadas com amarelo sol Pra se iluminar na sua visão miopia Grão em grão, ela seguindo as migalhas Me fazendo sopa, café e bolo E a gente nunca se contando nada Fingindo que não sabia das coisas Vó Lindaura tinha fome de letra. 90


Poesias

6 LUGAR

Sem esperar Rafael Alvarenga Gomes Itatiaia - RJ

Breve Biografia Rafael Alvarenga Gomes é escritor e professor de filosofia. Já lançou os livros Dia e noite no jardim (2012) - infantil -, e Bala de hortelã - contos -(2017). Possui colunas fixas no Jornal BEIRA-RIO, Resende (RJ), no Blog PRENSADEBABEL, Búzios (RJ), e na Revista Náutica CONVÉS, Cabo Frio (RJ).

91


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

SEM ESPERAR Não esperava pela ventania mas a ventania chegou e levou do varal uma camisa cor de abacate que ele tanto usava. Não esperava pelo sol mas o sol chegou e queimou os lírios tão pacíficos que sequer reclamaram Dele ter deixado de molhá-los por três dias. Não esperava pela lua cheia mas aquela noite prateada chegou e seu amor ficou sensível brigou por um pedaço de pão de queijo foi embora e nem beijo. Não esperava ficar sozinho o peito nu o vaso só na terra o sofá inteiro. Não esperava mas continuou sem esperar. 92


Poesias

7 LUGAR

Corpo e culpa Joana Dória São Paulo - SP

Breve Biografia Sou atriz, performer e diretora. Nasci e insisto na cidade de São Paulo. Além do país de origem, desenvolvi trabalhos na Itália e na Alemanha. Os processos de criação com os quais me envolvo, em grande parte, habitam um terreno de fronteiras borradas entre linguagens artísticas. Aventuro-me desde pequena na escrita e, mais recentemente, minha produção textual tem buscado o mundo fora da gaveta por meio das peças teatrais, performances e outros suportes.

93


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

CORPO E CULPA Do tamanho da saia Do decote na blusa Do batom na boca A culpa é de quem? É claro que é sua. Do cabelo ao vento Da bebida gelada Do sorriso no rosto A culpa é de quem? É claro que é sua. Da noite escura Do tardar da hora Do vazio da rua A culpa é de quem? É claro que é sua. Do vulto estranho Do passo apressado Do cheiro de medo A culpa é de quem? É claro que é sua. Da mão na coxa Do encoxo na bunda Das palavras sujas

94


Poesias

A culpa é de quem? É claro que é sua. Do vestido rasgado Do grito impedido Do corpo violado e do choro contido A culpa é de quem? Ela é sua, é claro que é sua. Não voltou mais cedo Não ficou em casa Não trancou a porta Não fechou a janela Não aumentou o muro Não escondeu as pernas Não apagou o olhar Não morreu por dentro A culpa é de quem? É claro que é sua. Sozinha, à noite, teu corpo é da cidade. - Não. A culpa não. É a cidade que é minha. É o corpo que é meu. Meu corpocidade. Cada dobra, cada curva, cada esquina. De concreto e pele. O desejo congestionado ou em fluxo contínuo. O sim e o não. Pulsamos juntas, Meu sangue correndo nas veias, não no chão.

95


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

8 LUGAR

Sentenças Celso Takashi Yokomiso São Paulo - SP

Breve Biografia Celso Takashi Yokomiso nasceu em São Paulo, aos 09/06/1974. Graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Mestre e Doutor em Psicologia Social pelo IP-USP. Docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Escreveu LIMITES (prêmio Festival Universitário Nacional Xerox do Brasil publicado pela Ed. Cone Sul,1998) e HIATOS (prêmio Nascente – USP e Editora Abril, 1999).

96


Poesias

SENTENÇAS Naquele nada ainda coube uma tristeza Naquela queda ainda Coube uma rasteira Naquele incêndio ainda Coube uma centelha Naquela dor ainda coube uma doença Coube ainda aquela perda naquela ausência Naquele erro ainda coube uma sentença

97


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

9 LUGAR

Habitante Retirado Camila Fernandes Taubaté - SP

Breve Biografia Paulista, 25 anos, noiva, professora de Inglês, letrista em projetos musicais e escritora há mais de 10 anos, porém só comecei a mostrar e publicar este ano. Fui publicada em 3 antologias, todas da editora Illuminare, “Escritos de um Verão”, “Nós, Enfim Sós” e “Vida & Poesia”. Escrevo também no blog Avesso, no wordpress (avessosite.wordpress.com).

98


Poesias

HABITANTE RETIRADO Se estabeleceu sobre o caos Com a convicção de quem poria fim à guerra. Retirou o pó da mobília e reanimou as cores; A sala de estar estava viva de novo. Varreu, aos poucos, velhos montes de ressentimentos; Fez um lar. Realinhou as órbitas dos planetas, como na canção E realizou o que ninguém poderia. Adentrou a ilha de um único habitante retirado, Convenceu e o venceu. Foi o porto de onde o barco jamais partiria, Estava posto e posto ficaria. Se estabeleceu sobre o caos Com a convicção de quem traria paz E o fez como ninguém faz.

99


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

10 LUGAR

Casa da memória triste Marcio Davie Claudino da Cruz Curitiba - PR

Breve Biografia Poeta e dublê de escritor (ghost writer). Premiado e selecionado em diversas antologias, as mais recentes em 2011, “Moradas de Orfeu”, organizada por Marco Vásquez, 20 poetas de cada estado do sul e, em 2014, “101 poetas paranaenses”, organizada por Hamilton Faria. Em 2007 lançou o livro de poemas “O sátiro se retirou para um canto escuro e chorou”, Imprensa Oficial do estado do Paraná e SEEC/PR. Formou-se em Letras pela UFPR onde frequentou o Mestrado em Estudos Literários com estudo sobre a novíssima poesia curitibana. Já trabalhou com literatura, no entanto não vive disso, apesar de que gostaria.

100


Poesias

CASA DA MEMÓRIA TRISTE Para ela, a menina crisântemo

1 Hoje a lua está mais leve prenhe de presságios. A sua cisma está mais leve mas ela ainda pensa que enlouqueceu. Recorda sempre o tempo em que andou por casas de saúde mas nem uma palavra sobre os abismos meus. 2 Ela desliza num mar platinado de antigos sonhos e quartos escondida da síndrome do pânico bebe nossas memórias nos garrafões do vento. 3 Lolita de Egon Schiele reinaugurou virgens uivos e reabilitou velhos lobos. Agora arrepende-se por quase tudo e desmonta-se num choro incomensurável. 101


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

4 Hoje vim buscar seus fiapos sentir o fogo do seu coração colher o orvalho de sua testa ouvir seu pranto (sua lógica infiel) pelo engano de todos esses anos. 5 Hoje fui chamado à sua casa onde enterrei um baú de ossos e versos lamentáveis. Muito depois desse tempo meus braços criaram carnes, minha boca teve fomes, meu sangue latejou de desejos, minha alma nutriu-se de outros sonhos. 6 Vim aqui servir-lhe o café da manhã na bandeja da ilusão. A mesma que um dia também me serviu. Volto para trocar as camisas (de quem é a da derrota?) ao final do jogo em que deu tudo errado. 102


Poesias

7 Mas sobra ainda nos retratos a ponta de um sorriso triste. E após uma entrega das mais felizes atuamos em outros campos com camisas desprezadas (Torcendo um pelo outro? Não, que a paixão é egoísta). 8 Hoje superado o desastre da perda (somos solidários no câncer e no desamor) amparo, ainda assim, outras flores mortas ejaculadas e dos desertos teus áridos solos de amor. 9 Nossos dedos não trocaram alianças nem fomos mais felizes do que ainda podemos ser. Somos apenas peixe e anzol, lua e sol num horizonte tardio que se entreolham num breve sorriso meio triste 103


Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2017

cheio de suposições que podem dizer muitas coisas e nada ou qualquer clichê, como esse de um poema que troca sua camisa desprezada. 10 Hoje o sol está mais leve prenhe de augúrios. Reverencio a casa de outra amada.

104



EDIÇÃO Fulano de Tal Mengano de Tal REVISÃO E TRADUÇÃO Sultano de Tal REVISÃO Fulano de Tal DIAGRAMAÇÃO Sultano de Tal PRODUÇÃO GRÁFICA Mengano de Tal Este livro foi impresso em Foz do Iguaçu, em agosto de 2017, pela XXXX Gráfica e Editora. A fonte usada no miolo é Sabon, corpo 11,5/15. O papel do miolo é XXXX 70g/m2, e o da capa é cartão 250g/m2.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.