Revista Dikamba

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Diálogo e diversidade Volume 1 l Nº1 lAbril 2011 l ISSN 2179-9032

Dikamba : diálogo e diversidade / Centro de Estudos La�no– Americanos sobre Cultura e Comunicação. – V. 1, n. 1 (Fev. 2011). – São Paulo : Centro de Estudos La�no–Americanos sobre Cultura e Comunicação, 2011 Trimestral

ISSN 2179-9032 1. Cultura . I. Centro de Estudos La�no–Americanos sobre Cultura e Comunicação.

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EDITORIAL

A Editor Geral: Dennis de Oliveira Editor da Edição: Silas Nogueira Editor executivo: Joao Roquer. Edição de Artes: Renato Adriano Rosa Colaboradores desta edição: Alessandra Possebon, Amarildo Dias, Ana Maria Amorim, Bernadete Toneto Carlos Augusto Tavares Junior, Daniela Gomes, Fabiana Felix do Amaral, Frederico Daia Firmino , Gerson Oliveira, Kátia Kodama, Juarez Xavier, Maira Carvalho Moraes, Moisés dos Santos, Soledad Galhardo, Valdir Baptista, Wagner Pinheiro, Wilton Garcia. Publicação: CELACC - Centro de Estudos Latinoamericano sobre Cultura e Comunicação. Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 - Prédio 08 - sala 08 Cidade Universitária - São Paulo- SP. CEP: 05508020 Fone: 55-11-30914327 celacc@usp.br “ A divulgação dos artigos publicados é autorizada pelo autores.”

promoção do diálogo intercultural é apontada pela Unesco como um dos principais mecanismos que podem possibilitar a garantia dos direitos humanos no mundo. Isto porque a constatação da existência da diversidade cultural acontece em um contexto de uma intensificação das interações inter-culturais, em função do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação que possibilitaram a criação de um mundo “conectado”; outros fatores, como o aumento do comércio internacional, principalmente em função do maior fluxo de capitais e mercadorias em escala global e a formação de mercados regionais e, finalmente, pelo maior trânsito de pessoas ao redor do mundo, seja em função de deslocamentos forçados por condições precarizadas de vida nos países pobres, seja em função de emigrações voluntárias em busca de melhores oportunidades de trabalho. Diante disto, o fenômeno da globalização recente iniciado no final dos anos 1980 e centrado nos paradigmas do bloco vencedor da Guerra Fria – a democracia liberal, a economia de mercado e o neoliberalismo – não significou, ao contrário de muitos pensadores apocalípticos chegaram a clamar uma unificação cultural e na destruição das diferenças. É fato que esse processo civilizatório de cunho capitalista engendrou – como qualquer processo civilizatório – mecanismos violentos e de opressão. Entretanto, ao contrário de uma uniformização, o que se percebeu foi um aumento da visibilidade e do impacto da diversidade cultural. O trato com tal questão pode ser tanto na perspectiva da intolerância e do desrespeito, que levam a exacerbação dos conflitos e da guerra; da guetificação que pode levar a um aumento da incompreensão, da intolerância e também dos conflitos ou como a busca do diálogo que implica, necessariamente, uma compreensão da diversidade e do estabelecimento de espaços em que as manifestações encontrem equidade suficiente para se expressarem. Somente essa última perspectiva é capaz de promover os direitos humanos, a igualdade, o respeito ao outro e a construção de um mundo mais justo. A revista Dikamba, e o projeto Diálogos Dikamba, são contribuições para que os cidadãos reflitam sobre esse momento importante que a humanidade passa atualmente, em que a cultura tanto pode levar para um mundo de intolerância, como também pode ser um caminho eficaz para a construção de uma sociabilidade mais justa. O jornalismo é uma atividade que surge com as revoluções iluministas, e tinha como pressuposto ampliar a esfera pública e consolidar o pacto social que se construía dentro daquela utopia centrada nos valores da liberdade, igualdade e fraternidade. Hoje, a busca pela realização desses valores não é possível acontecer sem construir um pensamento articulado com a dinâmica do diálogo e da interculturalidade. Por isso, além de tudo, esta publicação insere-se no marco originário do que seja jornalismo. Dennis de Oliveira Editor Geral

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SUMÁRIO

[ Panorama Brasil ]

SEÇÃO PANORAMA BRASIL

CULTURA Direito ou Negócio?

Cultura: Direito ou Negócio? Entrevista com Luiz Carlos Moreira ................................................................... 7 A Cultura Privatizada: Políticas de Financiamento no Brasil Neoliberal .................................................................. 11 . SEÇÃO PANORAMA LATINO AMÉRICA Solanas - Cineastamilitante da américa Latina .................................................14 Para além das onda magnéticas - as possibilidades do Rádio na democratização da Comunicação ............................................... 16

Entrevista com Luiz Carlos Moreira, Coordenador do Engenho Teatral

Emancipação Esquerda e Movimentos Sociais na América Latina. Entrevista com Maria Orlanda Pinassi ............................................................. 23 SEÇÃO GESTÃO DE PROJETOS CULTURAIS A Expressividade da Identidade Cultural e do imáginário ................................ 27 Por: Daniela Gomes SEÇÃO PINTANDO NA PRAÇA Grito Periférico: A Cooperifa, a Arte e a Resistência ........................................ 30 SEÇÃO CULTURA E COMUNICAÇÃO MULTIETNICA Centro cultural ORùnmilá de Ribeirão Preto - Cultura, Política e Conhecimento: As armas da luta pela emancipação ...................... 34 GALERIA DE FOTOS E IMAGENS Passagem, Encontro ........................................................................................ 44 LETRA VIVA A infância Do Mundo ........................................................................................ 46

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Foto: Bárbara Giacomet de Aguiar

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ultura é associada a um conjunto de estruturas e manifestações que caracterizam uma sociedade. No senso comum, porém, a cultura se pauta nas referências das classes hegemônicas. Observase isto, por exemplo, com a valorização das expressões culturais que passam pelo crivo da indústria cultural, as quais ganham visibilidade na grande mídia e recebem, inclusive, apoio das grandes empresas detentoras do poder financeiro.

o qual “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios”. Na contramão, porém, estão os projetos culturais desenvolvidos por e para comunidades periféricas, que se estruturam e se profissionalizam cada dia mais, aproveitando brechas deixadas no sistema e buscando recursos governamentais destinados a este tipo de iniciativa, quebrando, assim, paradigmas e conceitos de cultura que antes eram impostos como valores.

Com um público alvo específico, que na maioria das vezes, também é definido com base Dentre os muitos nomes que atuam de no poder econômico, essas atividades culturais se tornam sala secretas, das quais ficam de fora, modo quase subversivo na defesa pelo respeito programações, grupos de artistas e pessoas que à pluralidade cultural e pela criação de políticas públicas para a cultura está Luiz Carlos Moreira, não se encaixam nos moldes formatados. diretor do projeto Engenho Teatral, que possui um Essa inversão de valores fere o direito teatro móvel e leva espetáculos para a periferia de garantido no primeiro parágrafo do artigo XXVII São Paulo, respeitando as características de cada da Declaração dos Direitos do Homem, segundo realidade e tentando dialogar com o público local. D i k a m b a | Abril 2011|

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Crítico ferrenho das leis de renúncia fiscal, como a Lei Rouanet, Moreira é um dos idealizadores do movimento Arte contra a Barbárie, que desde 1999, o qual agrega grupos de teatro na luta contra as exigências mercadológicas, que impedem que estes grupos tenham acesso a verbas para produção e difusão de espetáculos. Em entrevista exclusiva para Dikamba, Moreira não se intimida e fala sobre cultura, políticas públicas e muito mais.

menos. Isso é a Lei Rouanet ao pé da letra e é o que a gente é contra. O que temos colocado é que, a função da cultura não é gerar valor, não é gerar emprego, ainda que possa ter esses efeitos colaterais, a função da cultura não é essa. Dikamba – Quem perde quando a cultura passa a ser tratada como mercadoria?

Moreira - Quem perde quando isso acontece é a população e só quem ganha é a empresa, pois se você é um banqueiro e você quer investir no Dikamba – Algumas pessoas têm a visão seu marketing dizendo que você é progressista, de que é possível gerir a cultura, leva-la moderno e etc, e você monta um instituto cultural para algum lugar. Você, pelo contrário, tem na Avenida Paulista e para isso você não põe uma visão diferente sobre o tema. Na sua dinheiro do seu bolso, mas usa dinheiro público, até eu quero ser empresário assim. Gerir um concepção, como isso funciona? cinema de artes, com dinheiro público, eu também quero. Então Luiz Carlos Moreira – Eu não é a grande mamata e o grande sou contra a gestão de políticas “Eu sou contra a desvio, que para mim não tem públicas, no que se refere a privatização da outro nome, esse tipo de coisa é servidores públicos cuidando roubo. De um lado você rouba cultura onde se e administrando a questão da o dinheiro público, que foge do cultura, muito pelo contrário, entende a cultura interesse público e passa a ir a isto eu sou favorável. Eu como mercadoria, para o interesse privado. Você sou contra a privatização da a função, porque a função como um produto desvia cultura, onde se entende a do poder público é servir ao cultura como mercadoria, como a ser vendido” interesse público e se você desvia um produto a ser vendido, que a função, não é mais ele que vai tem que gerar valor econômico discutir a política pública, ele vai e tem que ser administrado na apenas transferir recurso, para que o gerente financeiro, gerente de marketing, forma empresarial, esse tipo de reducionismo, de pragmatismo e utilitarismo e até de desvio que não é da empresa pequena, mas da grande do papel da cultura é que eu sou contra. E corporação, utilize. nos últimos 20 ou 25 anos, praticamente o que vingou no Brasil, com o discurso neoliberal, foi Dikamba – Esse uso do poder público para autobenefício, quer dizer, a empresa se isso, a transformação da cultura em mercadoria, promove, não prejudica os pequenos grupos, a discussão da cultura apenas por valores e por por conseguir acesso a essas leis com mais conceitos mercantilistas, como se cultura fosse facilidade? um tênis e o Estado passou a ter um papel apenas, do que ele diz que é para incentivar o Moreira – As grandes empresas não conseguem mercado, mas não incentiva o mercado coisa acesso a essas leis, eles não são os captadores. nenhuma, muito pelo contrário, o Estado passou O Itaú, por exemplo, não produz teatro, ou cinema. a bancar a farra, com dinheiro público, para O que ele faz é usar o dinheiro público e não o tentar manter esse discurso que não funciona, dinheiro dele, para subsidiar ou para comprar da cultura como mercadoria. O que o Estado algum produto que ele vai expor como se fosse passou a fazer com as leis de incentivo fiscal, uma oferta, um patrocínio que ele está fazendo foi transferir recursos públicos para o gerente de para a sociedade, quando ele não está, quem está fazendo é o Estado, com o dinheiro público. marketing usar da maneira que ele quiser para Obviamente ele vai expor no instituto dele, aquilo fazer o que? Marketing, não para fazer cultura, que interessa para ele e não à população. Aliás, porque gerente de marketing não faz cultura. ele já escolheu a Avenida Paulista e não Itaquera, É como se a empresa estivesse patrocinando, por quê? Em quem ele está interessado? Quem mas na realidade a empresa não patrocina nada, é cliente dele? Porque é para o cliente que ele se o dinheiro é nosso, é dinheiro público, que a dirige. Quem é esse cliente, que está no mercado empresa usa de forma privada. Esse foi o papel de consumo do Brasil ou mesmo no mercado de que o Estado se prestou nos últimos 25 anos, pelo produção? Não é nem 20% da população. 8

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Dikamba – O Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), também se encaixa nisso? Ou seria um exemplo mais próximo do que você acredita?

vamos cobrar o discurso, pois se eles prometem, a gente quer que a promessa seja cumprida. Mas não vamos ser inocentes, essa promessa nunca vai ser cumprida nessa sociedade, mas vamos cobrar e pressionar quase o tempo todo. Em alguns momentos, alguma coisa a gente consegue como o Programa de Fomento ao Teatro, em outros não. Nos últimos 25 anos, até dez ou cinco anos atrás, o incentivo era um discurso único, já não é mais. Então depende a cada momento, da situação histórica, do movimento e da força que eles tem para impor ou não.

Moreira – Não, o VAI tem outra mentalidade. É um exemplo mais próximo do que eu acredito, mas ainda assim tem uma série de problemas, uma série de reducionismos. Mas o VAI não é uma lei de incentivo, assim como o Fomento (Programa Municipal de Fomento ao Teatro), também não é uma lei de incentivo. Aliás, foi o programa de fomento em São Paulo, que entrou como uma cunha a oito anos atrás, para rachar o discurso único do incentivo, o fomento entrou, chutou o Dikamba – Falando um pouco sobre o seu pau da barraca e passou a ser paradigma. Por trabalho, como se deu a ideia de criação do que se discute tanto esse programa de São Engenho Teatral? Paulo? Porque ele é exatamente Moreira – O Engenho quanto o oposto de tudo que se dizia e grupo, existe há mais de 30 provou que o discurso, aquilo que se defende, aquilo que ele propõe, “ Esses Estado que a anos, desde 1979. Ainda nos é muito mais avançado e funciona anos 80, a gente tinha claro muito mais. O fomento veio como gente tem é uma for- que queria ter um projeto um tapa na cara, daqueles que ma de organização dessa natureza e em 1993, a pregam essas bobagens todas de do capital. Democra- gente conseguiu materializar mercado. cia é o discurso ide- o projeto, ou seja, o Engenho Dikamba – Na sua visão qual ológico que eles uti- sai da nossa cabeça e do seria uma alternativa para papel e o Engenho Teatral lizam para continuar passa a ser um projeto de isso? com a dominação.” fato. A base do projeto é bem Moreira – É óbvio que não simples, ao contrário do que me cabe dar receitas. Eu para nos ensinam na escola, a ser honesto acho o seguinte, gente não acredita que uma o Estado que a gente tem, de obra de arte se define em si, mas sim que ela democrático não tem nada, a tal democracia se define na relação. Falando de outra maneira, representativa já faliu há muito tempo. E o que eu estou falando, qualquer cara comum na quando nós atuávamos nos espaços tradicionais rua sabe disso, é só você perguntar se eles se de teatro do centro, ou seja, colocávamos uma sentem representados por qualquer um desses peça em cartaz, batalhávamos para publicar partidos ou políticos que estão aí e mais, se eles uma matéria na mídia, sentávamos na bilheteria tem poder efetivamente para administrar alguma do teatro e esperávamos um público de classe coisa ou propor uma política pública. Esse Estado média que lê a programação teatral, aparecer na que a gente tem é uma forma de organização do capital. Democracia é o discurso ideológico que bilheteria, encostar o umbigo no balcão, pagar e eles utilizam para continuar com a dominação, entrar, ao mesmo tempo nós fazíamos algumas então o Estado não é público, não é de todos, isso experiências pontuais na chamada periferia e é falácia, pois o Estado tem dono e os donos são ficava claro que o mesmo espetáculo nesses dois as grandes corporações. Então vamos discutir lugares, com público e relações diferentes, não o que é possível dentro desse Estado. Quando era visto da mesma maneira. O que “funcionava” você me pede para propor alguma coisa, nessas em um lugar, não necessariamente “funcionava”, condições, não vamos sonhar. Para você ter um no outro, por conta da realidade da classe social, Estado realmente democrático e que defenda o das relações que você estabelece. Então quando interesse público, você tem que mudar toda a a gente montou o Engenho Teatral, que é um realidade da sociedade. Dentro desse Estado, o que dá para a gente dizer é o seguinte para teatro móvel, com condições técnicas para que a eles poderem nos explorar e nos dominar, eles gente possa desenvolver um trabalho profissional tem que vir com o discurso de que isso é público que respeite o nosso público, que vamos e a promessa de que cabe ao Estado atender ao genericamente chamar de classe trabalhadora ou interesse da população e não do capital, então menos favorecida, nós criamos uma relação com D i k a m b a | Abril 2011|

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[ Panorama Brasil ]

A CULTURAPRIVATIZADA POLÍTICAS DE FINANCIAMENTO NO BRASIL NEOLIBERAL: o caso da Lei Rouanet Ana Maria Amorim

Luiz Carlos Moreira, diretor do projeto Engenho Teatral

esse público e tentamos entrar em contato com as organizações sociais onde ele se encontra digamos como um todo coletivo e não como uma somatória de indivíduos, por exemplo, movimentos populares, igrejas e escolas e assim tentamos levar esse coletivo para dentro do teatro. E ao tentar organizar um palco, ter um público com um mínimo de identidade na plateia, essa relação já foi mudada. Eu não cobro ingresso, então eu não estou vendendo nada, diretamente para esse público. Isso não significa que eu não esteja vendendo nada, mas sim que a intermediação da venda de um produto não se coloca de forma direta. Quando você muda, seu espaço geográfico, a sua plateia, sua forma de divulgação, você muda seu público, muda a sua maneira de fazer teatro e isso obviamente, na nossa cabeça, implica em mudança no palco. Quer dizer, a nossa função, que é o desenvolvimento de uma linguagem teatral, está não a partir de uma ideia priori, eu tenho uma poética que eu vou levar, isso não existe para nós, nós não estamos nesse discurso de “vamos levar cultura para o povão”, nada disso, é na relação é que a gente vai construindo essas linguagens e o Engenho é que permite estabelecer essas relações. 10

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Dikamba – Como você vê essa questão de quem, faz parte obviamente do poder hegemônico, achar que dá para levar cultura para algum lugar? Moreira – É óbvio que a cultura dominante, se acha dominante e é dominante por quê? Porque, ela universaliza aquilo que é próprio daquela classe e ao universalizar, ela faz com que aquilo apareça como uma coisa que é de todos e não dela, ela naturaliza, você perde a noção de história e passa a ser natural. E isso acontece em todos os níveis, até nas relações afetivas, familiares, quer dizer estes valores estão tão intrínsecos na gente, que isso parece ser natural, é assim que a vida é. Para enxergar de fora é muito difícil. Levar cultura implica em você levar os seus valores e expandir os seus valores. A coisa é tão louca, que o antigo departamento de teatro da Prefeitura de São Paulo, hoje chama departamento de expansão cultural, qualquer coisa parecida com a ocupação desse país e da América Latina em 1500, a Expansão Marítima, não está muito longe, não é?

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relação do Estado brasileiro com a cultura foi marcada pela instabilidade. As políticas públicas na área cultural não se estruturaram em um projeto sólido de Estado, com planos esparsos que se perderam em gestões e personalismos. O processo de reabertura política do Brasil, marcado pelo final da ditadura militar, fez o país passar por instabilidades, na intenção de fortalecer um processo que culminasse em uma democracia nacional. Dentro das políticas brasileiras começam a se sentir os reflexos de uma nova ordem econômica mundial e da globalização. Esta passagem será refletida também nas propostas e formas de pensar a política cultural no Brasil. José Sarney, primeiro presidente do país, após a ditadura e após a morte de Tancredo Neves, implementa, em 2 de julho de 1986, a primeira lei de incentivo fiscal à produção

cultural no país. A lei nº 7.505, conhecida como Lei Sarney, previa benefícios fiscais para as empresas que investissem em cultura. Na prática, a lei funcionou como uma parceria entre o Estado e as empresas, visto que essas investiam cerca de 40% do valor total do projeto1. Esse formato de leis de incentivo é a semente que originará a Lei Federal de Incentivos Fiscais nº 8.313, criada em dezembro de 1991, e regulamentada em 1995, que se tornou conhecida como Lei Rouanet. A lei é assim batizada visto que foi proposta pelo ensaísta Sérgio Paulo Rouanet, que integrava a Secretaria de Cultura durante o governo Collor. Tal lei instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), pilar central do incentivo fiscal. Dentro do Pronac funcionam o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). A lei, em vigor até hoje (último ano do segundo governo

Lula), foi emblemática do neoliberalismo em consonância com as políticas culturais. A transferência do poder do Estado para o mercado, marca do neoliberalismo, apresentouse na área de políticas culturais por meio de ações do Ministério da Cultura (MinC) do governo FHC, que tinha à frente o cientista político Francisco Weffort. Lançada por essa gestão com o intuito de explicar como funciona e como utilizar a Lei Rouanet, a cartilha intitulada “Cultura é um bom negócio” vira um dos símbolos da perspectiva adotada pelo governo FHC diante da cultura. Cultura foi, assim, a área predileta das empresas em investimentos que valiam por isenções fiscais. Uma pesquisa realizada, em 1997, pela Fundação João Pinheiro, por solicitação do MinC, compara a preferência das empresas em investimentos em diversas áreas: D i k a m b a | Abril 2011|

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enfoque na cultura e associação do nome da empresa a projetos culturais, tornava-se essencial para tal setor pensar o público das manifestações culturais. A implicação desse recorte estava, portanto, na centralização dos recursos aos projetos onde se concentravam esse público, e onde podia circular o marketing projetado da empresa. Assim, Fonte: Fundação João Pinheiro, 1997. uma das críticas apontadas Mas, se a cultura parecia à Lei Rouanet estava no mesmo um bom negócio, como esvaziamento da perspectiva pregava a cartilha, ela o foi de cultura como um projeto necessariamente principalmente pelo fato de a nacional, disponibilizando recursos sem maior parte dos investimentos discriminação de territórios, em nos projetos aprovados pela Lei Rouanet ser de origem estatal. troca de maior visibilidade e, Assim, a maior parcela de consequentemente, de maior investimento ficava por conta do investimento em projetos de Estado, e a política de incentivo Estados do Sudeste brasileiro. dos gastos era tomada como uma forma de A proporção mostrava-se tão desigual que, se fazer marketing utilizando a cultura ou comunicação enquanto São Paulo e Rio de empresarial dos setores Janeiro recebiam cerca de 70% dos investimentos através da privados. Como afirma Simis, Rouanet, o estado que mais “trata-se de uma apropriação obtinha recurso dessa lei no gratuita do capital e da cultura Norte, era o Pará, não chegando pelos interesses privados, e sequer a 1% do total.4 ainda, com a fama creditada Analisando o período entre à iniciativa privada.”2 Rubim, 1996 e 2000, a verba total citando Dória, diz que “um captada por região, conforme exposto por estudo sobre financiamento levantamento da cultura mostrou que o uso Olivieri, mostra a discrepância de recursos sofreu profunda dos investimentos em relação transformação entre 1995, às regiões brasileiras. 66% das empresas e 34% de Usando da defesa da cidadania renúncia fiscal, e 2000, 35% das cultural, Marilena Chauí aponta empresas e 65% de renúncia o direito à cultura como um fiscal”3. Para Rubim, isso dever do Estado, composto do caracteriza que o investimento direito de produzir a cultura, era público, mas com gerência de participar das decisões que privada, o que mostra que as envolvem os debates sobre políticas de incentivo deixavam cultura, a ter acesso aos bens de lado a discussão de uma real culturais, a ser informado sobre política pública de cultura, bem a agenda e os serviços da como a concepção de cultura a cultura, à educação que forme o cidadão artista e que ofereça ser adotada. Já que o interesse possibilidades de interpretações críticas da cultura etc. Como do setor privado para os bem resume Olivieri, “o direito investimentos feitos por meio à cultura abrange o apoio ao das leis de incentivo era baseado fomento, à criação, à produção, num interesse de troca, por sua à distribuição e ao acesso”. vez, baseado no marketing com Qualquer impedimento gerado 12

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neste ciclo geraria, portanto, uma afronta ao direito constitucional do cidadão à cultura. A importância de se pensar a cultura e de aliá-la a um dever de Estado deve corresponder à ideia ampla de cultura, para que não se deturpe sua concepção e a encare apenas como agenda de espetáculos e eventos, o que se transforma em entrave para a manutenção da diversidade cultural, visto que as manifestações culturais extrapolam uma agenda pontual, necessitando aí de políticas de investimento para sua continuidade. Sendo compreendida, portanto, enquanto parte integrante da cidadania, a cultura deve ser tratada como parte intrínseca das agendas e dos planos de ação do Estado, e distante da tradição dos projetos descontínuos. Assim, para se ter uma política de cultura que se alinhe a uma visão de cultura que se relaciona ao direito do cidadão, cabe ao Estado pensar a política para a cultura em conjunto com a sociedade (visto que essa possui o direito a discuti-la) e atuar em seu fomento. A transferência de responsabilidade perante as políticas culturais do Estado para o mercado, como foi feito no Brasil a partir do governo de José Sarney e se mantém até o segundo mandato do presidente Lula, fez com que as decisões sobre os orçamentos para cultura divergissem da concepção de cultura explanada anteriormente. Assim, os quesitos essenciais para o financiamento da cultura no país passaram a ser ditados pelo retorno em publicidade e lucro para as empresas, que decidem o destino da renúncia fiscal. As dificuldades de conseguir o financiamento por meio das

políticas do Estado para a cultura tornaram-se constantes para grupos culturais. Um exemplo disso está nos grupos de teatro de São Paulo que compõem o Movimento 27 de Março. Criados em 2009, no dia 27 de março, considerado o dia Mundial do Teatro, o movimento ocupou a Funarte a fim de protestar contra a política cultural no País. Um dos coletivos que atuam no movimento é a Cia. Estável de Teatro, que tem como intuito aliar a criação do grupo à comunidade, onde está inserida, no caso, o bairro do Brás, em São Paulo. Osvaldo Pinheiro, da Cia. Estável de Teatro, explanou assim os reflexos das políticas culturais sentidos pelo grupo:

direcionamento da verba de isenção fiscal. Assim, por exemplo, foi o caso das apresentações do grupo Cirque du Soleil. A trupe canadense recebeu, em 2006, o incentivo de mais de R$ 9 milhões para a realização dos espetáculos. A Folha de São Paulo denunciou que “a empresa CIE (Companhia Interamericana de Entretenimento, de origem mexicana), que promove a vinda do espetáculo “Saltimbanco” ao Brasil, foi autorizada pelo MinC (Ministério da Cultura) a ficar com R$ 9,4 milhões que o governo receberia em Imposto de Renda.”6 E mesmo com os investimentos do Estado brasileiro, as apresentações tinham ingressos na casa dos três algarismos, com um setor VIP cuja entrada era de “Hoje no Brasil vivemos R$ 370 – valor das entradas amarrados a uma política inteiras. O caso do Cirque du farsesca de editais que nos Soleil é ilustrativo em torno de calam a boca por 6, 10, 12 uma política de incentivo fiscal meses e que nunca vai dar que agradou os produtores de conta da nossa demanda de Paradas Disney, peças teatrais trabalho. Ficamos amarrados com celebridades e shows de por esta política ridícula e no artistas já reconhecidos pela próximo governo os novos grande mídia. representantes podem ou Dado o raio-x feito das não lançar os tais dos editais, políticas culturais no Brasil mas isso se tiverem vontade durante o período neoliberal, política e ou envolvimento com percebe-se que o carro-chefe a categoria, se não, ficaremos de tais ações foram as leis de mais uma vez a ver navios, incentivo fiscal. Esse formato precisamos urgentemente de de lei teve, com o decorrer do Leis específicas que garantam tempo, ampliado o seu potencial o nosso trabalho, assim a de redução dos impostos, próxima gestão tem obrigação fazendo com que as empresas tivessem até mesmo 100% do de publicar os tais editais”5 valor investido na cultura abatido Dentro das leis de incentivo, do seu Imposto de Renda. Ainda encarada pelo mercado como que pensado como favorável uma possibilidade de isenção para a iniciativa privada, visto que passou a ser trabalhada fiscal a partir de um marketing como uma área de comunicação com financiamento estatal, as e marketing, as políticas culturais escolhas dos investimentos baseadas nesse viés encobriram resultaram em discrepâncias o papel real do Estado na com as políticas culturais que manutenção da cultura. Cultura deveriam ser tomadas pelo aqui vista como parte integrante Estado, gerando polêmica em da cidadania, um direito do muitos casos das escolhas do cidadão. O segundo mandato

do governo Lula termina ainda com a aplicação dessa visão de cultura, e muitos dos projetos que poderiam mudar o cenário da cultura estão presos no Congresso e serão herdados na próxima gestão governamental. NOTAS: 1 OLIVIERI, Cristiane. Cultura neoliberal – leis de incentivo como política pública de cultura. Instituto Pensarte, São Paulo, 2004, p. 71. 2 SIMIS, Anita; RUBIM, Albino ; BARBALHO, Alexandre (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Edufba, Salvador, 2007, p. 145. 3 RUBIM, Albino; BARBALHO, Alexandre (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Edufba, Salvador, 2007, p. 27. 4 Dados divulgados pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira, em entrevista coletiva, feita em dezembro de 2009, disponível no artigo “Juca Ferreira fala sobreprojeto que substitui Lei Rouanet”, de Gabriela Augustini, disponível em http://culturadigital.br/blog/ 2009/12/16/juca-ferreira-falasobre-projeto-que-substitui-leirouanet/ , acesso em 4/6/2010. 5 PINHEIRO, Osvaldo. Entrevista cedida à autora, em 2 de julho de 2010. 6 ARANTES, Silvana. MinC libera R$ 9,4 mil paraq Cirque du Soleil no Brasil. Folha de São Paulo. http:// www1.folha.uol.com.br/folha/ ilustrada/ult90u59903.shtml>. Acesso em 4/6/2010.

Ana Maria Amorim

Pós-graduanda em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo, USP. Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal de Viçosa. Endereço eletrônico: amorimanamaria@gmail.com D i k a m b a | Abril 2011|

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[ Panorama Latino América ]

Seu longa seguinte, realizado no exílio em Paris, é La Mirada de los Otros (1980), um trabalho de encomenda solicitado pela Unesco em função do Ano Internacional do Portador de Deficiência. O filme, no entanto, extrapola a questão da descriminação aos portadores de deficiência física, como atestam as palavras do próprio Solanas:

SOLANAS

Cineasta militante da América Latina

O

Por Valdir Baptista

argentino Fernando Solanas é um dos grandes nomes do cinema latinoamericano. Sua trajetória

estético-política reflete a história da esquerda de seu país: seu primeiro longa-metragem, La Hora de los Hornos (1968), co-dirigido com Octavio Getino, tem cerca de 4 horas de duração e está divido em três partes: Neocolonialismo e Violência, Ato para liberação e Violência e Liberação. Filmado clandestinamente e concluído em 1968, depois de excelente repercussão internacional do Festival de Pesaro, Itália, onde foi premiado, o filme faz um retrato militante da situação do povo argentino e latino-americano diante da exploração econômica e dominação política por parte dos países desenvolvidos, e propõe o enfrentamento político. Harmonizando imagens documentais da Argentina, captadas pelos diretores, com imagens de arquivo e uso de palavras de ordem entre as imagens, a obra cria uma estética revolucionária em plena sintonia com as revoltas estudantis de 1968. Retornando da Itália, o filme não pôde ser lançado comercialmente na Argentina por questões políticas, mas foi 14

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exibido clandestinamente em sindicatos, escolas, igrejas, gerando discussões e cumprindo um papel militante contra a ditadura local e, paralelamente, teve uma carreira internacional que consagrou seus autores. Foi elogiado em quase todas as publicações relevantes sobre cinema da época. Como exemplo, dessa acolhida, transcrevo o juízo do insuspeito Vicente Canby, crítico de cinema do New York Times: “La Hora de los Hornos é o mais importante e único filme que explora a fundo a alma de uma nação, uma obra épica e polêmica, um ensaio cinematográfico e político de uma complexidade nunca vista anteriormente”.

“O filme fala da necessidade de amor, respeito e consideração dessas pessoas, como também do racismo diário que isola e limita os que são diferentes. Em suma, a deficiência é o primeiro nível de uma hierarquia que começa com os olhares hostis e pode acabar com a verdadeira segregação. Por isso, algumas entrevistas referem-se ao ‘problema’ racial dos árabes e dos portugueses, que encontram dificuldades para encontrar trabalho na França e, não raro, são impedidos de entrar nos restaurantes dos ‘brancos’”. De volta à Argentina após o final da ditadura militar, Solanas retorna à ficção com Tangos, o Exílio de Gardel (1985) e El Sur (1988), ambos com trilha sonora de Astor Piazzolla, filmes em que refletiu sobre a condição do exílio e do retorno

Mais tarde, Solanas enveredou pela ficção,

do exilado. Realizou ainda dois longas de ficção,

partindo de uma proposta de continuidade do

El Viaje (1992) e El Nube (1998), e, atualmente,

célebre poema Martin Fierro e da atualização

dedica-se ao documentário, retomando a tradição

dos destinos de seus filhos na faixa industrial

do filme-ensaio que iniciou com La Hora de los

de Buenos Aires com Los Hijos de Fierro (1975).

Hornos, tendo dirigido Memoria del Saqueo

Também militante, o filme questiona a situação política argentina e, antes mesmos de finalizado, teve um de seus protagonistas, o ator Julio

(2004),

La Dignidad de los Nadies (2005),

Argentina Latente (2007), Próxima Estación (2008) e Tierra Sublevada (2009).

Troxler, assassinado. Ameaçado de morte pela Triple A (Aliança Anti-comunista Argentina), em um momento em que a eminência de novo golpe de Estado já se anunciava, Solanas é obrigado a sair da Argentina e terminar o filme no exílio.

Valdir Baptista Jornalista, mestre em Comunicação & Semiótica pela PUCSP e professor da FIAM. D i k a m b a | Abril 2011|

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[ Panorama Latino América ]

PARA ALÉM DAS ONDAS ELETROMAGNÉTICAS

AS POSSIBILIDADES DO RÁDIO NA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO

A

palavra que talvez melhor defina o rádio é resistência. Resistiu ao tempo, às mudanças sociais, culturais e tecnológicas, reformulou-se inúmeras vezes e continua buscando novas linguagens e formatos. O rádio é um dos principais instrumentos de reivindicação das minorias e até hoje seu potencial apaixona e incita a ação dos que acreditam na transformação da sociedade.Com essas características adentra tanto o debate quanto as lutas pela democratização da comunicação no País e suscita práticas e discussões em torno de conceitos como liberdade, comunidade, educação e participação. Um rádio que pudesse receber e emitir mensagens, em que não houvesse separação entre receptor e emissor, uma esfera pública eletromagnética. A concepção, que pode parecer surpreendente hoje, foi sonhada 16 D iDkiakm am b ab|aAbril | Abril2011| 2011|

Por Alessandra Possebon por um dos maiores dramaturgos da história, Bertolt Brecht. Em uma Alemanha em crise política e social, no ano de 1932, Brecht que utilizava o teatro como ferramenta de contestação, escreveu o texto Teoria do Rádio, em que critica o uso do novo meio de comunicação e propõe que a tecnologia deva ser abastecida por informações dos ouvintes e não das fontes consideradas oficiais. Apesar da possibilidade técnica desse meio ser um instrumento de recepção e emissão, como são os rádios amadores utilizados ainda hoje pela Defesa Civil e pelos amantes do radioamadorismo, o sonho de Brecht não se concretizou inteiramente, o rádio se fortaleceu como um meio de emissão de informações. No entanto, os baixos custos de instalação, a possibilidade de interação e a facilidade técnica tornaram o rádio um dos

meios de comunicação mais utilizados pelos movimentos sociais e populares para expressarem suas lutas por espaços democráticos. Na década de 1970, os movimentos de rádios livres e comunitárias insurgiram em boa parte da Europa e também no Brasil, sendo que, durante os anos 80, o movimento se fortaleceu nacionalmente, com a criação de rádios em sindicatos e em espaços comunitários.

Reunião entre interação e criatividade A história do rádio no Brasil demonstra que o veículo foi um meio importante para a difusão de propaganda, tanto das campanhas políticas de Getúlio Vargas, quanto das empresas estrangeiras que se consolidavam na década de 1930 e as agências de notícias norte-americana e européias que trouxeram parte do modelo

jornalístico que é utilizado até hoje. É essencialmente pelo rádio que o governo varguista disseminava os ideais de urbanização e consumo, em um período de grandes transformações econômicas e sociais. As emissoras de rádios passam a ser concessão do governo federal a partir de 1951, e o papel do Estado como centralizador das permissões das emissoras radiofônicas mudou pouco de lá até hoje, exceto nos decretos impostos durante a ditadura militar. Mesmo após a televisão e a internet, o rádio continua a ser um dos meios mais populares do País. Em constante transformação, as emissoras de rádio foram adequando seus horários, segmentando sua programação e se adaptando às novas tecnologias. “O rádio tem um imenso perfil de interação”, afirma o pesquisador em mídia sonora e professor de FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), Alvaro Bufarah. “É um veículo interativo desde os anos 40 e hoje é um dos meios que melhor se aderem aos meios digitais”. Além do caráter interativo, o rádio se revela como um meio que incentiva a criatividade, ao permitir a construção de imagens através dos sons, como maior exemplo as radionovelas, que faziam sucesso em todo o continente latino-americano nas décadas de 1940 e 1950, reuniam pessoas ao redor do aparelho diariamente por cerca de uma hora, para ouvirem as histórias criadas com voz, música e efeitos sonoros.

Sensibilidade ao falar e ouvir A importância da oralidade, especialmente na sociedade brasileira, demonstra a permanência da força do rádio no decorrer dos anos, a oralidade além de principal forma de comunicação é também ferramenta de pesquisa e de valorização da história. A metodologia da história oral, desenvolvida após 1947 com a invenção do gravador, transformou a maneira como a história era contada, permitindo que, além de documentos, os pesquisadores pudessem contar com os relatos dos que viveram em determinados períodos. O pesquisador da Escola de Frankfurt, Walter Benjamin, já na década de 1930, preocupava-se com o fato de que, com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, o homem perdesse a sensibilidade. O autor tratou do tema em grande parte de sua obra, sendo que A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica é um de seus textos mais reconhecido. No ensaio O Narrador (publicado na obra Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Editora Brasiliense, 1994), Benjamin afirma que as histórias cotidianas estão sendo substituídas pela transmissão clara e objetiva de informações, e que essas informações são ricas em explicações que não fazem parte do universo da narração, já que contar histórias é permitir que o ouvinte interprete e crie de maneira livre. Há ainda a relação com

o tempo, enquanto as histórias narradas ultrapassam as barreiras do tempo, a informação está ligada ao imediatismo. As preocupações de Benjamin se revelam ainda mais adequadas na contemporaneidade, com a supervalorização da objetividade e da velocidade, em especial nas técnicas jornalísticas. A concepção do autor de que a narração é troca de vivências, enriquecimento que se concebe no diálogo,aproximase das técnicas da história oral, que podem ser utilizadas no desenvolvimento de reportagens, colaborando na ferramenta de trabalho mais importante dos jornalistas: a entrevista. A história oral desenvolve a perspectiva da entrevista- diálogo, que também foi desenvolvida pelo antropólogo Edgar Morin, ao refletir sobre a entrevista no rádio e na televisão. Tratar a entrevista como diálogo pode parecer redundante, mas o que se presencia na prática jornalística são entrevistadores que, presos a uma pauta de perguntas pré-estabelecidas, sabem antecipadamente as respostas que desejam. Essa concepção da entrevista-diálogo foi estudada pela pesquisadora da USP, (Universidade de São Paulo), Cremilda de Araújo Medina, que em sua obra Entrevista, o diálogo possível (editora Ática, 2000) em que salienta o diálogo como forma de compreensão da própria realidade e da realidade do outro, sendo uma técnica capaz de quebrar isolamentos sociais e culturais. D ii kk aa m mb b aa || Abril Abril 2011| 2011| D

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Inseridos nessa perspectiva de valorização da oralidade, do diálogo e da pluralidade que muitos projetos trabalham pelo desenvolvimento de uma rádio mais democrática no Brasil.

legislativo, Cristiano Aguiar Lopes, revelam que mais de 50% da aprovação de outorgas de radiodifusão comunitária, entre 1999 e 2004, esteve ligada à “padrinhos políticos”, além da duplicidade de outorgas, ou seja, membros de diretorias de O ar tem dono rádios comunitárias que também A concentração da faziam parte de emissoras propriedade e gestão dos comerciais ou educativas. O estudo citado revela mais meios de comunicação, a falta de uma legislação efetiva de um problema, que além da falta comunicação e as dificuldades de leis, as que existem, muitas em conseguir uma concessão vezes, não são cumpridas. de rádio fortaleceram os Compreendendo que os meios movimentos das rádios livres de comunicação são espaços e comunitárias no País. De responsáveis por parte das ideias acordo com artigo publicado no que circulam na sociedade e que portal Observatório do Direito à a diversidade das expressões é Comunicação, em 12 de julho condição imprescindível para de 2010, são 9,1 mil rádios uma sociedade democrática, legais no Brasil, sendo 3,9 mil estamos tratando de um grave comunitárias, porém, calcular o problema que envolve todas as número de rádios clandestinas instâncias da sociedade. “Se há é extremamente difícil, as um desequilíbrio em como cada estimativas das associações grupo pode fazer circular suas ideias, há um desequilíbrio na giram em torno de sete mil. Inúmeros problemas democracia”, afirmou o membro envolvem esse tema. O primeiro do Intervozes (Coletivo Brasil deles está na Constituição de Comunicação Social), João Brasileira de 1988, em que Brant em palestra realizada na não há condições para a UNESP/Franca, (Universidade aplicação do artigo que trata Estadual Paulista), em agosto da Comunicação Social, pois de 2010. As desigualdades expõem não há regulamentação, não há a relevância dos movimentos órgão fiscalizador ou regulatório do cumprimento da lei. A falta sociais e políticos que atuam de regulamentação permite junto às rádios livres e a existência de monopólios e comunitárias, compreendendo oligopólios, bem como o uso esses espaços como legítimos dos meios para difusão de para a ampliação do debate conteúdos preconceituosos público. e consequentemente para a violação dos direitos humanos. Meios de comunicação Na obra Rádios Comunitárias alternativa – Coronelismo Eletrônico de novo tipo (Observatório da O termo alternativo, tão Imprensa, 2007), o pesquisador disseminado ao tratarmos Venício A. de Lima e o consultor desses movimentos, está ligado 18 D iDkiakm am b ab|aAbril | Abril2011| 2011|

à toda forma de comunicação que tem como proposta ser um canal de expressão diferente da grande mídia. Suas propostas são percebidas na direção político- ideológica, na proposta editorial (tanto pelo enfoque dado aos conteúdos, quanto pelos assuntos tratados e pela abordagem crítica), pela organização (de base popular, coletiva, militante) e nas estratégias de produção e ação (vínculo local, participação, liberdade de expressão, uso mobilizador). Existem inúmeras nomenclaturas para as formas de comunicação que se colocam como canais de expressão diferenciados da grande mídia. Dentre esses nomes, os mais utilizados são imprensa alternativa, comunicação subalterna, horizontal e participativa. A pesquisadora da Universidade Metodista de São Paulo, Cicilia Peruzzo, estuda as diferenças entre essas classificações, salientando duas correntes principais: a que nomeia de “Corrente comunicação popular, alternativa e comunitária”, abrangendo as iniciativas que nascem organicamente dos movimentos populares, incluindo os movimentos sociais, ONGs, associações, setores progressistas da igreja católica, entre outros, relacionando-se com públicos diversificados, como é o caso do Jornal Sem Terra, mantido pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). A outra corrente é a “imprensa alternativa” que pode estar vinculada a instituições como os sindicatos ou ser independente e reunir pessoas

com vínculos ideológicos e políticos com grupos já existentes, como exemplo temos o jornal Brasil de Fato, formado por jornalistas que têm algum vínculo com as lutas dos movimentos de esquerda. Essas propostas de divisões são realizadas também por outros pesquisadores da área. Outra perspectiva mais abrangente do tema é proposta pelo autor John Downing que, em sua obra Midia Radical (Editora Senac, 2004) coloca diferentes formas de expressão caminhando dos meios de comunicação convencionais até o grafite, o vestuário e o teatro como formas de comunicação alternativa. Independentemente das nomenclaturas, é importante salientar que os objetivos finais desses meios de comunicação são o de exercitar a liberdade de expressão, oferecer conteúdos diferenciados, servir de instrumento de conscientização e buscar colaborar para a democratização da comunicação, compreendendoa como forma de transformação social.

afirma. Tanto rádios livres quanto comunitárias não têm fins lucrativos e lutam pelo uso do espaço eletromagnético, pela ocupação desse espaço, que é de todos, lutam por conceder voz à diversidade e à pluralidade de culturas. A lei de radiodifusão comunitária foi aprovada em 1998 e também tem limitações que impedem uma real democratização do espaço eletromagnético. A lei prevê a existência de apenas uma rádio comunitária FM por localidade, independente de haver espaço no espectro, e que a rádio funcione com um transmissor de 25 watts e a antena a 30 metros de altura, o que limita o alcance da transmissão em um quilômetro de raio. Outra limitação é a proibição de publicidade, não é permitida captação financeira nem mesmo no comércio local ou através de campanhas publicitárias do governo, somente é permitido apoio cultural, o que muitas vezes inviabiliza a continuidade das rádios. A Conferência Nacional de Comunicação e o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos Democratização da discutiram e propuseram comunicação no Brasil algumas reformulações O jornalista e membro da para o País avançar na AMARC (Associação Mundial democratização, porém, para de Rádios Comunitárias) , Bufarah esses avanços são Arthur William Cardoso, salienta somente teóricos. “Este é um que uma diferença entre as cenário muito complexo, a rádios comunitárias, legalizadas solução passa por discussões ou não, e as rádios livres é o técnicas, econômicas, políticas vínculo com a comunidade. “As e culturais”. Cardoso concorda rádios comunitárias congregam com Bufarah, mas acredita que a diversidade de vozes de uma a Conferência seja um passo comunidade, já a rádio livre pode em busca de uma sociedade não ter esse compromisso”, mais democrática.

Após a convocação do governo federal para a realização da I Conferência Nacional de Comunicação, entidades de todo o País realizaram durante o ano de 2009 conferências em instâncias local e regional, discutindo as principais necessidades de reformas na área. A comissão organizadora do evento nacional contaria com membros do poder público e da sociedade civil, dividida igualitariamente entre representantes de entidades empresarias e não empresariais. No entanto, a grande mídia, na maioria das vezes, recusouse a participar das discussões, em especial da Conferência Nacional de Comunicação, sendo que apenas duas entidades do setor empresarial permaneceram até o final das discussões: Abra (Associação Brasileira de Radiodifusores), ligada à TV Bandeirantes e Rede TV!, e a Telebrasil, representante de empresas da área de telecomunicações. A recusa em discutir tais questões foi fortalecida por diversas colocações caluniosas da grande mídia contra qualquer tipo de regulação da comunicação, o que dificultou ainda mais a possibilidade de concretização de políticas mais democráticas. Algumas das principais propostas da Conferência foram: a criação do Conselho Nacional de Comunicação Social, a determinação de limites para a concentração de concessões dos meios de comunicação, combater o oligopólio da distribuição de mídia impressa, espaço para produção regional D ii kk aa m mb b aa || Abril Abril 2011| 2011| D

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e independente, criação de instrumentos que garantam o respeito aos direitos humanos e criação de redes locais e regionais de rádios públicas, comunitárias e estatais. Apesar da mobilização dos movimentos, que trabalham pela democratização da comunicação, as propostas aprovadas na Conferência ainda estão distantes de serem efetivamente concretizadas.

Essas associações, trabalhando com as comunidades, possibilitam e fortalecem projetos, como foi o caso da Rádio Santa Marta, criada há cinco meses no Rio de Janeiro. A rádio conta com o apoio do Núcleo Piratininga de Comunicação, que promove cursos de locução, internet e comunicação comunitária. “A rádio era o que faltava aqui na comunidade, mas sempre tem esse medo em relação à criminalização”, Experiências na explica o coordenador da rádio América Latina Santa Marta, MC Fiell. Apesar dos receios, Fiell acredita Inúmeras associações no que a rádio é um espaço Brasil buscam a organização importante para colaborar com convivência comunitária. do movimento das rádios a “Estamos o tempo todo lidando livres e comunitárias, entre com o individualismo que não elas a ABRAÇO (Associação tem só aqui na favela não, mas Brasileira de Radiodifusão em toda a sociedade e na rádio Comunitária), Rizoma (Portal de temos a ideia de família mesmo, rádios comunitárias), AMARC de coletivo, até porque todas as (Associação Mundial de Rádios participações são voluntárias”. Comunitárias), UNIRR (União e O vínculo entre Fiell e a rádio Inclusão em Redes de Rádio) e nasceu no ano 2000, quando a Oboré (Projetos Especiais em junto a outros moradores montou Comunicação e Artes). a primeira emissora, chamada

Som da Casa. O falecimento do idealizador da emissora, Luiz Kleber, fez com que os trabalhos ficassem suspensos durante alguns anos. “Mas sempre tinha aquela vontade de voltar para a rádio”, afirma o MC. Fiell que, além de MC e radialista. é também cineasta e coordenador do Coletivo Visão da Favela Brasil, recebeu surpreendentemente uma doação do músico Marcelo Yuka (ex-integrante do grupo O Rappa): equipamentos para montar uma rádio. Reunindo os novos equipamentos com o antigo transmissor nasceu a rádio Santa Marta, que hoje conta com 27 programas e funciona de segunda à sábado das 8h às 00h e aos domingos das 9h às 22h. Além da transmissão para toda a comunidade que ultrapassa os 7.500 moradores, é possível acompanhar a programação ao vivo em vídeo e áudio através do site (http://www.radiosantam arta.com.br). A intensa participação da comunidade revela a

realidade da grande parte das comunidades do Brasil, onde faltam espaços públicos, e a rádio acaba funcionando como um centro comunitário. Cardoso que colaborou na montagem do site e da rádio Santa Marta e, também, atuou em outras rádios como a rádio poste da PUC (Pontifícia Universidade Católica), no Rio de Janeiro, identifica a relevância da própria comunidade manifestar suas vitórias, seus projetos, necessidades e mudanças. “Comunidades fortes, organizadas como a de Santa Marta e tantas outras pelo País só são representadas através de outras mídias, de leituras de outras pessoas sobre aquele lugar, o que tantas vezes mascara a realidade”. Apesar da divulgação na internet, Fiell explica que o objetivo primeiro da rádio é criar canais de diálogo dentro da comunidade. “Falamos com o nosso povo, com a nossa linguagem, o primordial é falar aqui para dentro e quem está de fora que entenda nosso linguajar”.

Já o movimento de rádios livres tem na rádio Muda, de Campinas, um de seus maiores expoentes. A emissora funciona há mais de quinze anos dentro da caixa d’água do campus da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), durante 24 horas por dia com a colaboração de cerca de duzentos programadores. Apesar de estar dentro da universidade, a rádio não tem vínculo com a reitoria, não é uma rádio universitária e não está em busca da legalização. Para os membros da Muda, a possibilidade de comunicar-se por meio de uma emissora que não tem dono, diretoria ou linha editorial, representa uma forma de contestação ao modelo atual de comunicação, em que cada programador é responsável pelo que diz no ar. No documentário Mixando Liberdade (UNICAMP, 2005), que relata a história da rádio, um dos programadores da rádio, Dj Paulão, afirma que “a rádio livre se difere sobretudo da rádio comunitária pelo seu caráter

experimental, é um direito que a rádio Muda exerce na sua plenitude: ser experimental”. Esse movimento de rádios livres e comunitárias, que é relativamente recente no Brasil, tem uma história consolidada em vários países do mundo. Em sua tese de mestrado intitulada A Possibilidade da ContraInformação na Sociedade Capitalista (UNIMEP, 1993), a pesquisadora Marta Maia afirma que a primeira experiência de gestão popular de radiodifusão aconteceu na Áustria, em 1925. Na América Latina, as experiências contestatórias de uso radiofônico estão vinculadas, muitas vezes, à grupos de trabalhadores, sendo um dos primeiros movimentos o das rádios mineiras da Bolívia, no final da década de 1940, que estavam vinculadas à Revolução Nacional de 9 de abril de 1952, e que incentivou um grande movimento de rádios de trabalhadores naquele país, resistindo ao golpe militar de Hugo Banzer.

AS TRASMISSÕES DA FAVELA “Você está na favela”, esse é o bordão de uma das primeiras rádios comunitárias do País, a rádio Favela, que fica na vila Nossa Senhora de Fátima, na periferia de Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, e funciona desde a década de 1980. Discutir preconceito, realizar campanhas contra a violência e as drogas, falar da falta de infraestrutura, trocar uma geladeira por um fogão, pedir alguém em casamento, rezar, cantar, ler notícias, entrevistas, trocar todo tipo de serviço. Essas são algumas das possibilidades de uma rádio comunitária, onde a maior preocupação é criar canais de diálogo entre os moradores de uma determinada localidade. 20 D iDkiakm am b ab|aAbril | Abril2011| 2011|

A história da rádio Favela é marcada por lutas cotidianas de superação. No início, a rádio contava apenas com equipamentos improvisados: um transmissor à bateria e um toca-discos à pilha, pois ainda não havia energia elétrica na favela. Alvo de perseguições, a rádio mudou de lugar várias vezes, foi fechada pela polícia federal, o dirigente chegou a ser preso e, em 1995, o barraco onde funcionava a rádio foi inundado pelas chuvas. A emissora ficou em situação irregular entre 1981 e 1996, quando adquiriu um alvará de funcionamento da prefeitura, porém, a rádio somente recebeu licença pelo Ministério das Comunicações para funcionar como rádio educativa em 2000.

Contando com o apoio da comunidade, um dos fundadores e atual dirigente da rádio e da Fundação Educativa Cultural e Comunitária de Belo Horizonte, Misael Avelino dos Santos, coordena a programação, mantendo os mesmos objetivos de seu inicio: colaborar nas campanhas antidrogas e violência, apoiando ações educativas e valorizando a cultura local. Com falas críticas, os locutores discutem as questões que envolvem seu cotidiano, como o alto índice de morte de jovens, a falta de investimentos públicos em educação, a violência policial e o preconceito racial e social. A rádio foi reconhecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) por suas

campanhas junto aos jovens, foi capa de inúmeros jornais e tema do filme Uma Onda no Ar, que em um misto de ficção e realidade conta a história da rádio. O filme ajudou a dar visibilidade nacional e internacional para a emissora. Misael é sempre convidado para participar de eventos sobre rádios comunitárias no Brasil e, também, Estados Unidos e Europa, além de ser colaborador da Associação Mundial de Rádios Comunitárias e do Fórum Social Mundial. Hoje, toda a cidade de Belo Horizonte pode ouvir a rádio pela FM 94.5, bem como é possível acompanhar sua programação pelo site: http://www.radiofavelafm.com.br D ii kk aa m mb b aa || Abril Abril 2011| 2011| D

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Outro movimento que marca as rádios livres no continente é rádio Rebelde, concebida em Cuba, em 1958, em que eram distribuídos transmissores por toda a Serra Maestra. Na Nicarágua e em El Salvador, movimentos parecidos aconteceram na década de 1980. Na Itália, as rádios na década de 1970 eram principalmente ligadas à movimentos estudantis e de trabalhadores; já, na França, na mesma década, houve uma enorme diversidade de movimentos, de trotskistas à ecologistas, que, com inúmeras rádios, ocupavam o espectro da capital parisiense. No Brasil, em 1983, de acordo com os autores da obra Rádios Livres - a reforma agrária no ar (Editora Brasiliense, 1986); Arlindo Machado, Caio Magri e Marcelo Masagão, eram mais de quarenta rádios livres em atividade somente em Sorocaba, interior de São Paulo. Na época, foi criado até um Conselho Clandestino para reunir as rádios e organizá-las, o que não teve muito sucesso. Uma das mais influentes rádios do movimento paulistano foi a Xilik, dos estudantes da PUC que uniam influências das rádios italianas, músicas do tropicalismo e bandas de rock tchecas. Inúmeras rádios nasceram durante a década de 1980 em todo o País, diante da força do movimento foi organizado, em 1989, o I Encontro Nacional sobre Rádios Livres em São Paulo, organizado pela UNE (União Nacional dos Estudantes) que incentivou com outros movimentos a realização do Fórum Nacional 22 D iDkiakm am b ab|aAbril | Abril2011| 2011|

pela Democratização da Comunicação, em 1993. O movimento chegou também à internet, nos últimos anos grande parte das emissoras comunitárias são também retransmitidas pela rede, outras funcionam como rádio web e produzem podcasts (arquivos de mídia digital) que podem ser trocados entre as rádios. Apesar dos esforços, o Brasil ainda está bastante atrasado nas ações de democratização da comunicação em relação à boa parte da América Latina. Equador, Uruguai, Argentina, Bolívia e Venezuela conseguiram mudanças efetivas em suas leis de radiodifusão nos últimos anos, sendo que a maioria das conquistas contou com a participação popular. O pesquisador Dênis de Moraes, da Universidade Federal Fluminense, após três anos de pesquisas sobre a comunicação no continente, publicou, em 2009, o livro A Batalha da Mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios (Editora Pão e Rosas, 2009), em que revela possibilidades e avanços nas políticas de comunicação no continente. Dentre os exemplos citados por Moraes, dois se destacam na produção radiofônica: a lei de Radiodifusão Comunitária do Uruguai, que é de 2007 e foi considerada, pela AMARC, como uma das mais avançadas do mundo, ao colocar as emissoras comunitárias como terceiro setor, ou seja, como complementares das rádios comerciais e estatais. Um

terço das frequências tanto AM quanto FM são destinadas às comunidades, os processos de concessão são realizados por meio de audiências públicas e é permitido publicidade, desde que para a manutenção da emissora. Outro exemplo é a criação da Rede de Rádios dos Povos Originários da Bolívia. O projeto financiado pela Venezuela trata-se de uma cadeia de trinta emissoras situadas em zonas rurais que operam em regime de autogestão pelos camponeses descendentes de indígenas, reunindo Estado e sociedade civil. A preocupação dos movimentos brasileiros que trabalham por uma comunicação mais democrática é garantir que, apesar da disputa eleitoral, os pontos debatidos na Conferência Nacional de Comunicação não sejam transferidos para o próximo governo sem nenhum avanço, sendo que a prioridade é a criação do Conselho Nacional de Comunicação do Executivo. A obra de Moraes, além de mostrar caminhos possíveis, mostra que é necessário ter esperança, uma palavra que para o autor é um chamado para a mobilização e para a luta por uma sociedade mais igualitária.

[ Panorama Latino América ]

EMANCIPAÇÃO ESQUERDA & MOVIMENTOS SOCIAIS NA AMÉRICA LATINA: PENSAR PARA ALÉM DO MERCADO Entrevista com Maria Orlanda Pinassi, professora do Departamento de Sociologia da UNESP especialista em teoria marxiana e uma das responsáveis pela edição brasileira recente da obra de István Mészáros.

Por Frederico Daia Firmiano

Alessandra Possebon Jornalista, mestranda em Comunicação pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), professora da FESP/UEMG (Fundação de Ensino Superior de Passos)

M

aria Orlanda Pinassi é professora do Departamento de Sociologia da Unesp, Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara, especialista em teoria marxiana e uma das responsáveis pela edição brasileira recente da obra de István Mészáros, concedeu entrevista à Dikamba, refletindo temas como movimentos sociais populares e os atuais governos latinoamericanos.

DIKAMBA: Você vem atuando na edição brasileira da obra de István Mészáros desde a preparação dos originais do livro Para além do capital. Qual a importância desse autor na América Latina, hoje? E como tem sido a recepção dele no Brasil? Maria Orlanda: Primeiro, quero falar um pouco da importância de István Mészáros na minha vida. Conheci Mészáros no início dos anos 80 por intermédio de um agrupamento político D i k a m b a | Abril 2011|

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do qual eu fazia parte e que estudava [György] M. O : Depois de tanto ler e estudar a obra Lukács. Esse pequeno agrupamento, constituído do Mészáros, entendi que suas teses são em torno do professor de filosofia da velha Escola bombásticas, são polêmicas e, principalmente, de Sociologia e Política de São Paulo - José são ferramentas fundamentais não só para Chasin –, foi o responsável, em primeira mão, pelo compreendermos, mas para intervirmos sobre o estudo e divulgação de suas idéias. Em função rumo das coisas tal como elas se dão hoje, tendo disso, acabei entrando em contato com um dos em vista a transição para o socialismo. Com base mais instigantes textos de Mészáros, chamado nessas suas teses fundamentais, resolvi enfrentar e analisar questões brasileiras e “A consciência de classe necessária e a consciência “Segundo Mészáros, latino-americanas. Uma dessas de classe contingente”, uma o sindicato e o partido questões remete ao que você me pergunta: em que medida as formas crítica a História e consciência político, ao longo dos de luta tradicionais – sindical e de classe, de Lukács. Bom, em séculos XIX e XX, foram político-partidária - se esgotaram 1984, Mészáros vem ao Brasil instrumentos constiou não, diante do quadro que a convite desse agrupamento tuídos para enfrentar a temos hoje. Segundo Mészáros, político que, através da Editora o sindicato e o partido político, Ensaio, passa a publicar luta de classes no inte- ao longo dos séculos XIX e XX, algumas peças importantes da rior do capitalismo, mas foram instrumentos constituídos nunca tiveram a prosua obra por aqui. Acho que para enfrentar a luta de classes foi em 1997 que Mészáros, posta de ir para além do no interior do capitalismo, mas capital”. de volta ao Brasil, dessa vez nunca tiveram a proposta de ir para participar de um colóquio para além do capital. Ou seja, sobre o Lukács na Unicamp, trazia sob o braço foram formas de lutas defensivas e necessárias o que pode ser considerado seu livro mais que ficaram no interior do próprio capital. A luta importante e mais radicalmente crítico, Beyond sindical é uma luta por melhoria das condições de Capital, que tinha acabado de ser lançado na trabalho e a político-partidária fica na esfera do Inglaterra. Sua intenção era publicá-lo em língua parlamento, isso significa que são dimensões de portuguesa. Porque, se há algo que sempre enfrentamento na esfera do próprio capitalismo. mobilizou o Mészáros foi dirigir sua obra para o Mas, a luta não se esgota nem pode se esgotar público marxista e militante da América Latina, aí. Porque há um quadro hoje no mundo e na fundamentalmente. A Ensaio já não existia, então, América Latina extremamente grave, um quadro um grupo foi formado para viabilizar a empreitada. movido pelo desemprego estrutural, para o qual Ricardo Antunes, Ivana Jinkings, Sérgio Lessa, eu nem os sindicatos nem os partidos políticos e muitas outras pessoas de São Paulo e de outros conseguem dar conta. Têm que lutar com os sindicatos combativos e com os partidos políticos Estados topamos participar do projeto [de publicar de esquerda que não se restringem à esfera da o livro Para além do capital]. Saímos vendendo luta parlamentar. cotas do livro para amigos e militantes atuantes no campo da esquerda, muitos dos quais sequer DIKAMBA: E qual é o lugar dos movimentos o conheciam, mas acreditaram na grandeza da sociais, como o dos homossexuais, o tarefa. das mulheres, dos negros, que não têm propriamente dito a questão do trabalho como DIKAMBA: Em seu último livro, Da miséria ponto central? ideológica à crise do capital: uma reconciliação histórica, você afirma que o período de M.O: Eu tendo a vê-los como movimentos com expansão do capitalismo, no qual foram papel importante a cumprir. Porque, na verdade, possíveis algumas conquistas para as classes eles vêm ocupar um espaço que, até marcos de trabalhadoras, esgotou-se. Isso significa 1968, foi desprezado por setores hegemônicos que qualquer luta “sindical” ou econômico- da esquerda, que sempre trabalharam num plano corporativa ou particularista está derrotada a macro da luta, reservando para essas injustiças priori? históricas um honroso segundo plano. Ora, 24

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sabemos muito bem que as relações hierárquicas de dominação, resultantes das mais profundas deformações estabelecidas historicamente pela sociabilidade humana, foram apropriadas e ampliadas pela sociabilidade burguesa, dentre as quais se intensifica a dominação sobre as mulheres, os negros, os indígenas, as crianças e os idosos, sobretudo aqueles pertencentes às classes trabalhadoras. O problema em relação a esses movimentos específicos, que lutam por direitos, é que trocam seis por meia dúzia, pois criticam a luta mais universal desde um plano particular restritivo, esquecendo-se da necessidade de uma luta dialeticamente abrangente entre essas duas esferas de atuação. Eu acho que o Fórum Social Mundial reflete essas limitações.

periferia de São Paulo e outras grandes cidades: ao mesmo tempo em que se vê a ampliação da atuação das ONG’s, a aplicação de políticas de inclusão social para pobres, em geral negros, como cursos de capoeira, de balé, de música, não sei mais o que, as favelas são invadidas por aquelas horrendas “unidades pacificadoras”, cujas ações nada amáveis são absolutamente truculentas. DIKAMBA: Você tem trabalhado também a perspectiva do surgimento de movimentos nacionalistas, de um novo nacionalismo. Eu queria que falasse sobre esse novo nacionalismo, e o que ele se distingue daquele “velho” nacionalismo.

M.O - Tomando por base algumas experiências DIKAMBA: É possível dizer que o governo latino-americanas, vejo que o Movimento dos Lula foi conservador? Isso no sentido de Trabalhadores Sem-Terra no Brasil, por exemplo, que quando se propõe políticas focalizadas, é um movimento que luta pela reforma agrária, até do ponto de vista do mercado, significa uma bandeira que, como o próprio nome diz, manter a informalidade, cujas fronteiras com é reformista. Mas essa palavra tem uma força a ilegalidade são muito tênues. E a repressão histórica no Brasil, em função de que jamais parece fazer parte do cotidiano das classes deixou de ser um país de latifúndios, de profunda subalternizadas, desses sujeitos que são concentração de terras nas mãos de poucos. Hoje, continuam a predominar as grandes propriedades objetos dessas políticas sociais. exploradas por um grupo cada vez mais reduzido M.O: - Não tenho dúvidas. O Lula conseguiu de pessoas; o que mudou é que essas terras, ao implantar importantes contrarreformas, revogando contrário do que as caracterizava até pouco tempo conquistas históricas da atrás, são altamente produtivas. “Hoje, continuam classe trabalhadora e de toda A concentração das terras no a predominar as sociedade brasileira lavradas Brasil é hoje ainda mais intensa pela Constituinte de 1988: grandes propriedades do que foi no passado e, pior, a contrarreforma universitária, exploradas por um concentração está migrando cada contrarreforma previdenciária, vez mais para as mãos de grupos grupo cada vez mais contrarreformas de toda natureza reduzido de pessoas; o estrangeiros, das transnacionais que presidentes anteriores, que mudou é que essas que invadem o Brasil. Isso quer muito menos populares, terras, ao contrário do dizer que a luta pela reforma tentaram e não conseguiram. que as caracterizava até agrária foi se tornando, ao longo Essas contrarreformas são um pouco tempo atrás, são da história, cada vez mais atual, “tiro no pé” dos trabalhadores altamente produtivas”. mais explosiva, mais necessária. Porque, hoje, lutar pela terra no brasileiros, e a arte maior do Brasil é lutar contra o agronegócio, lulismo é fazer isso praticamente contra as transnacionais, é lutar pela preservação sem dor, porque ele é um presidente com um índice de popularidade inquestionável entre a ambiental, é lutar contra a aliança espúria que o população mais pobre. Ao mesmo tempo, existe capital nacional faz com grupos estrangeiros que um plano de crescimento da esfera dos direitos tomam de assalto e instrumentalizam para fins das mulheres, como a Lei Maria da Penha, e dos de mercado todo o patrimônio natural do País. negros, que no plano da realidade perdem toda e Esse também é o caso, por exemplo, da luta de qualquer efetividade. Veja-se, por exemplo, o que alguns grupos indígenas na América Latina, que ocorre nos morros cariocas, em algumas áreas da apesar de carregarem características tradicionais, D i k a m b a | Abril 2011|

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sofreram todo um processo de exploração pelo capital. Ora, por sua autenticidade e potencial explosivo muito grande, essas duas dimensões históricas dos movimentos sociais de massas da América Latina vêm repor velhas dívidas históricas, a formação de um nacionalismo absolutamente contrário àquela apologia do nacionalismo constituído pelas regras do grande mercado mundial. Trata-se de um nacionalismo que faz explodir profundas e insolventes contradições internas, históricas, uma noção de nacional não por exclusão, mas por afinidade história. Penso, enfim, que um nacionalismo que surge para cobrar injustiças antigas e contemporâneas - um nacionalismo que resulte da afinidade histórica da classe trabalhadora da América Latina - é que pode constituir um internacionalismo autêntico e revolucionário. DIKAMBA: É possível pensar, então, uma integração dos povos, para além da constituição de mercados? Pois, até agora, tem-se pensado, dominantemente, a integração latino-americana a partir de mercados, como o MERCOSUL, a ALBA. M.O - Absolutamente sim. E penso que isso tem sido frequentemente buscado. São vários os encontros de movimentos sociais pela América Latina. Por exemplo, encontros que aconteceram na Bolívia, no Paraguai, na Venezuela, encontros que não costumam aparecer nos telejornais nem na grande imprensa escrita, mas que reúnem uma quantidade imensa de integrantes de movimentos sociais de todo o continente. Penso, então, que se há algum internacionalismo autêntico e anticapitalista em formação ele tem que ser constituído para além do mercado. E mais: esse internacionalismo tem que extrapolar o mundo latino-americano, tem que encontrar afinidades históricas, os movimentos que se manifestam na África, na Ásia, no Oriente Médio. DIKAMBA: Até onde você acredita que Hugo Chávez, por exemplo, é expressão de uma vontade nacional-popular venezuelana, e até onde a Revolução Bolivariana consegue chegar sem a figura de Hugo Chávez? M.O : É preciso desatrelar a necessidade da ação revolucionária da liderança que atua acima das massas. Um verdadeiro projeto socialista não 26

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pode depender dos humores de uma grande figura. Tendo a crer que essas lideranças são necessárias, desde que atuem com a massa. Até que se prove ao contrário, parece-me que seja essa a tendência de Hugo Chávez e de Evo Morales, que têm aberto a máquina do Estado para o desenvolvimento das organizações populares na Venezuela e a Bolívia. DIKAMBA: Você é do Conselho de Coordenação da Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes que, entre outros objetivos, promove campanhas para a manutenção da Escola. Eu gostaria que a senhora falasse sobre a associação e sobre a importância da ENFF num processo de integração dos povos e movimentos latinoamericanos. M.O: Essa Associação foi criada exatamente com o objetivo de manter o funcionamento da Escola Nacional, que este ano completa seis anos de funcionamento. É uma Escola que vem cumprindo papel de formação fundamental, não somente dos militantes do Movimento Sem Terra. Ao longo desses anos, a ENFF realiza um chamado Curso Latino, que integra de ointenta a noventa militantes de movimentos sociais de toda a América Latina que ficam na Escola durante três, quatro meses, tendo atividades em tempo integral. A Escola vem dando cursos de toda natureza, inclusive cursos superiores, dentre os quais, Geografia e Pedagogia da Terra. Por isso, a AAENFF convoca os verdadeiros apoiadores da Escola a contribuírem com alguma quantia mensal; além disso, promove eventos, cursos e visitas periódicas à Escola, que se destinam a mantê-la viva. Aproveito a oportunidade para divulgar o nosso endereço eletrônico as que tiverem interesse em engrossar esse crescente grupo de apoiadores da ENFF: associação@amigosenff.org.br

Frederico Daia Firmiano Mestre em sociologia, professor da Fesp/Uemg

[ Gestão de Projetos Culturais]

A EXPRESSIVIDADE DA IDENTIDADE CULTURAL E DO IMAGINÁRIO Por Soledad Galhardo

A

identidade cultural e o imaginário são valores que sustentam a expressividade das manifestações e das práticas culturais das comunidades, bem como seus processos comunicacionais. Razões históricas, filosóficas, sociais e comunicacionais se imbricam na formação da identidade e do imaginário de um povo. A identidade é um pressuposto, imperativo e essencial, para o homem situar-se no tempo, no espaço e no movimento do uUniverso. Esstes três componentes, articulados, estão subjacentes na construção da identidade.

O homem deve conhecer e influenciar o seu espaço, condição fundamental para garantir a sua sobrevivência. Situando-se, por tanto, num determinado espaço, ele inicia a construção de seu espaço individual, que se alarga-se em espaço nacional. A consciência do tempo, ligada à ideéia de movimento, determina a noção de tempo histórico, no qual o homem construiu, por meio da ação, a sua história e a sua memória, depositária de conhecimentos que, em grupo, os homens acumulam, recolhendo-os da vida cotidiana, responsável pela organização de seu presente, do seu passado e do seu futuro, o seu porvir.

Aidéia de movimento implica uma construção mais complexa, ritmo de desenvolvimento e outras facetas bem definidas, diferentemente do nascimento, desenvolvimento e morte inerentes ao ciclo de vida das pessoas. O movimento das sociedades ou dos povos não tem morte biológica, resultando daí a “necessidade vital da memória, da história passada, dessa acumulação de experiências a que se dá o nome de cultura”, como entende Ferreira. Mas lembra a autora que antes de se discutir a identidade de um povo, de uma cultura, é necessário conhecer a construção da identidade nacional. D i k a m b a | Abril 2011|

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O Estado, isto é, a sociedade política como um conjunto de mecanismos através do qual uma classe detém o monopólio legal da repressão e da violência (forças armadas, policiais, aplicação de leis) constrói a ideéia de identidade nacional, representada pelo patrimônio cultural, registros dos monumentos da arquitetura, da arte erudita e dos heróis oficiais, ícones selecionados segundo a ótica da elite ou dos elitistas da cultura. Tratase de um patrimônio que não representa toda a sociedade, mas que dá contornos somente às manifestações culturais das classes dominantes. As diversidades culturais permanecem de fora da representação da identidade nacional, podendo-se concluir que a noção de patrimônio cultural constitui-se numa deformidade do real, porque não representa as demais expressões culturais dos diversos segmentos da sociedade, do povo nação. É importante lembrar que a identidade nacional não pode ser construída apenas por meio das manifestações das culturas populares e das subalternas. No entanto, para muitos pesquisadores, existe uma relação entre a cultura popular e a questão nacional. Nela reside a possibilidade de transformação da sociedade, a grande força da sua expressividade . Porém, dadas as condições atuais do poder vertical unificador das mídias, e por ser 28

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construída de “cima”, isto é, pelo Estado autoritário, a identidade cultural (nacional), fraturada e violentada e sem condições próprias para resistir a essta fragmentação, necessita, segundo para a autora Ferreira, do suporte de uma nova configuração cultural para poder se construir-se como expressão da sociedade, nação ou povo que representa. É uma nova configuração de patrimônio cultural, que busca valorizar as memórias coletivas, os modos e as práticas da vida, as sensibilidades, o pensamento, a comunicação, diferente daquela noção de patrimônio cultural, estruturado a partir do Estado e da visão elitista da cultura. A nova representação cultural, como diz Ferreira : “refere-se a uma situação real, vivenciada pelas sociedades dependentes cujas populações estão expostas à ação intermitente dos media como expressão cultural e como educadores”. Como consequüência, tem provocado a perda do referencial destas sociedades e o temor pela ameaça do desaparecimento dos seus símbolos culturais e dos seus traços ainda vivos que comprovam o seu passado. Já o imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura, uma essência ideológica mantida pela comunidade. É uma produção coletiva e o depositário da

memória que a família e os grupos acumulam recolhidos do cotidiano. Nessa instância, são identificadas as diversas percepções dos atores em relação a si mesmo e em relação aos outros, ou seja, como eles se percebem como parte de uma mesma coletividade. Por meio do imaginário se atinge os desejos, os receios, os medos de um povo são atingidos, e é nele, no imaginário, que as sociedades desenham suas identidades e seus objetivos, bem como identificam os seus inimigos e organizam o seu passado, presente e futuro, como afirma Dênis de Moraes. O imaginário é um dos modos pelos quais a sociedade apreende a vida e a elabora, refazendo percurso, numa busca incessante porelas utopias, construindo uma ordem simbólica, incorporando os sinais do que já existe, como fator de identidade entre os atores. É o símbolo que permite ao sentido engendrar limites, e diferenças, tornando possível a mediação social, consagrando-o como ordem irredutível, e como indica Moraes, tornando o real determinado pelo imaginário. Nissto consiste a transcendência das ideologias: elas expressam as relações vividas pelo homem. Para Ferreira , “ (...) na construção da identidade (nacional) se cristaliza a capacidade de um povo de determinar o seu próprio destino, seu porvir individual, de classe e como nação. Nissto consiste a identidade”. É nesse cenário que as

identidades são atingidas pelas mídias. Na sociedade atual, tempo da indústria da comunicação e do marketing, a afetividade, o desejo, o culto ao corpo, o sexo, tornam-se as grandes chaves para a formação do homem contemporâneo. Produções de linguagem super elaboradas, narrativas verbais e não-verbais, persuasão como estratégia e sedução, centram forças à procura de um alvo: o ego fragilizado que se acredita fortalecido, e que dá ao sujeito a sensação de que ele é integrado e reconhecido socialmente como sujeito de sua existência, de seus desejos e das suas atitudes e jamais refém das estratégias dissimuladas dos administradores do consumo. Assim, a publicidade torna o indivíduo a sua própria mídia: ele é a marca do sucesso, a margarina que une o lar, o perfume que você merece, o carro que é uma potência, a loira que é uma cerveja, ou a cerveja que é a mulher. E o indivíduo torna-se a marca de sucesso e de êxito daquilo que ele almeja ser, tornando-se refém de um espelho ideológico, no qual a sua identidade é fragmentada e estilhaçada pelas manobras do consumismo. Desste jogo decorrem o esvaziamento da subjetividade humana e a “sujeição” do indivíduo ao processo de desenvolvimento da sociedade capitalista, industrial e pósindustrial globalizada. Orientada pela lógica

capitalista, a sociedade incorpora e se submete-se ao fetiche, empreende criações destrutivas, inventa desejos, elabora e tira proveito de novas capacidades, modifica o uso e a representação do tempo e do espaço, alterando os modos de vida. Em meio à rapidez com que as mudanças se processam, o indivíduo não mais reconhece seu ambiente, não sabe da sua própria identidade, tornandose difícil manter o sentido de continuidade histórica, que serve de referência à formação da identidade, diante da fluidez de efemeridades da acumulação flexível. Um eu que se mostra indecifrável, anônimo, como diz Alain Touraine, uma subjetividade alienada seus poderes criativos , ocupando uma posição na sociedade, sem rosto e indefinida, comprometida com a incorporação de valores culturais identificados com os interesses ideológicos vigentes, cuja finalidade é manter essa subjetividade danificada e falida, regredida na compreensão de si mesma, alimentando atitudes conformistas, fetichistas ou violentas. Esse comportamento pode decorrer do esvaziamento do sentido da sua existência, pela manipulação do imaginário. O imaginário de um povo revela-se por meio de seus instrumentos de comunicação que são utilizados para a sua expressão. A cultura brasileira,

fortemente marcada pelos valores nordestinos, manifestase no seu cancioneiro, no barro da cerâmica, nas lendas e mitos, na literatura de cordel, nos rituais de seus folguedos. É materializada por uma pessoa ou por um grupo de pessoas que revelam uma parte do ethos coletivo. O imaginário brasileiro vai se modificando-se em suas formas e seu conteúdo, mesclando o que recebeu do imaginário universal – da cultura moura, das múltiplas culturas africanas, das culturas aborígines que estão caldeadas na sua formação. Os modos de apropriação pela indústria cultural são danosoas para as expressões das identidades culturais e do imaginário popular, naà medida em que são “espetacularizados” para o consumo das grandes massas, esvaziando o seu caráter mágico, mítico e religioso, roubando das pessoas o seu maior bem: o direito à sua cultura e às suas raízes, que fortalecem o sentido dea sua existência, valorizam o passado ressignificado no presente e desejante do futuro.

Soledad Galhardo Graduada em Letras Vernáculas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1974) , mestrado em educação e comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi (1998) e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2003). D i k a m b a | Abril 2011|

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[ Pintando na Praça ]

GRITO PERIFÉRICO

A COOPERIFA, A ARTE E A RESISTÊNCIA Por: Daniela Gomes Foto: Bárbara Giacomet de Aguiar 30

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U

m bar incrustado no alto de um morro, na periferia de São Paulo. Contrariando visões distorcidas e preconceitos que associam periferia à violência, na Rua Bartolomeu dos Santos, no Jardim Guarujá, onde está situado o Bar do Zé Batidão, uma grande aglomeração de pessoas se forma para construir, somar, partilhar. É quarta-feira, dia de Sarau da Cooperifa. É duro o caminho para chegar a Cooperifa, muitos podem se perder, em mais de um sentido, já que a Estrada do M’ Boi Mirim, principal avenida na região, está separada do bar, onde acontece o sarau, por quase dez minutos de caminhada, que envolve uma ladeira íngreme. É um desafio. Os becos, vielas, barracos, casas de alvenaria, botecos, igrejas e tantas outras imagens conhecidas da periferia, ficam pelo caminho, pois a chegada ano sarau traz uma nova atmosfera. O bar está lotado e aqueles que desejam recitar uma poesia, uma letra de rap, ou até mesmo uma música popular, devem apenas dar seu nome, e encontrar um lugar para se sentar, e aguardandor em silêncio a sua vez, pois um dos principais mandamentos da Cooperifa é o de que o silêncio é uma prece, fundamental. Todos são anunciados e participam como querem, com liberdade para expressarem qualquer sentimento que desejoar, seja referente a uma denúncia, a uma reivindicação, ou a uma declaração de amor. Nas noites de quarta-feira, durante pouco mais de duas horas, não importa a cor, a idade, a religião,

a condição social, nem mesmo a nacionalidade, todos são bemvindos nesse espaço que se tornou um dos maiores gritos de resistência da periferia. CRIADOR E CRIATURA Apesar de seus nove anos de existência, o Sarau da Cooperifa, ou Cooperativa Cultural da Periferia, tem uma história que ultrapassa a própria data de criação, já que não é possível desassociar a imagem da Cooperifa de seu idealizador, o escritor Sérgio Vaz. Auto intitulado um “vira-lata da literatura”, Sérgio Vaz, tinha tudo para ser apenas mais um jovem filho de migrante, que cresceu na periferia de São Paulo, com o sonho de ser jogador de futebol, se não fosse um diferencial: seu amor pelos livros. Influenciado pelo pai, que era amante da literatura, desde muito novo o escritor fez dos livros seus melhores amigos, em uma escalada que saiu dos clássicos infanto-juvenis, passando por Agatha Christie e chegando a clássicos como Pablo Neruda e Gabriel Garcia Márquez, o que fazia com que, segundo o próprio poeta, ele se visse como um garoto esquisito. “Eu era um cara sempre muito tímido, introvertido, e nos livros eu descobri que outras pessoas sofriam também, ali eu encontrei novos amigos, os livros me traziam conforto, por isso, eu achava que eu era um cara esquisito”, declara Sérgio. Ao chegar a juventude, Sérgio se interessou pela música e começou a escrever suas próprias letras. Foi isso, que, segundo ele, fez com que passasse a se sentir um poeta. Nascia, assim, o Sérgio Vaz escritor.

O primeiro livro, publicado em conjunto com outra autora , só teve sua edição paga após a venda dos primeiros volumes, e, mostrou ao autor, que era possível fazer acontecer. A vida de escritor continuou e foi nessa trajetória que, de acordo com o poeta, após ser convidado para uma reunião de escritores, se sentiu-se como se estivesse entre os “cavaleiros da távola redonda”. Nessa reunião, cada pessoa contava o que fazia, o quanto era importante a sua literatura para si e o quanto esta era importante para a humanidade inteira. Certa vez, ao questionar quando as pessoas iriam ouvir a poesia, recebeu a resposta de que aquilo não era para as pessoas, mas apenas para os autores. Isso o vez fez perceber que esse não era o tipo de literatura que queria fazer. “Eu percebi que tudo o que eu queria era ser o que eles não eram, eu queria escrever literatura para as pessoas comerem com a mão, lerem com os pés descalços”, conta o poeta. A partir daí, segundo Sérgio, surgiu a ideéia de criar um evento em um galpão em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, que funcionasse, como uma espécie de semana de arte moderna da periferia, onde haveria expressões artísticas, que iriam dose saraus de poesia, a apresentações de samba, de rap e rock. Após deixarem o galpão da fábrica, Sérgio e alguns amigos, passaram a se reunir em um bar, onde aproveitavam para recitar poemassia. O encontro foi denominado “Quinta- Maldita”. Dessas reuniões realizadas sempre na quinta-feira de quinta-feira, Sérgio e os amigos, D i k a m b a | Abril 2011|

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passaram a se reunir por sugestão de um dos participantes, em um bar na região, onde o único dia livre para a realização dos encontros, era a quartafeira. A princípio reuniam-se ali cerca de 17 pessoas, até que ele começou a intimar os amigos a comparecerem àsas reuniões:. “Eu ameaçava meus amigos dizendo que se eles não viessem a amizade iria acabar”, lembra o poeta de modo descontraído. Assim, as reuniões mensais, se tornaram, quinzenais e, depois, semanais,, e já com o nome de Sarau da Cooperifa. Com isso, a notícia de que um novo quilombo nascia na periferia foi se espalhando e, incentivados pela fala de seus iguais, outros rostos começaram a aparecer. Dessa maneira, o grupo foi se projetando e ganhando espaço tanto na cena periférica, quanto na mídia convencional. Com o fechamento do bar, a possibilidade de continuar com o evento foi encontrada justamente no passado de Sérgio, pois o bar, localizado na região da Piraporinha, que havia sido de seu pai, agora pertencia a José Cláudio Rosa, o Zé Batidão, que autorizou que o Sarau passasse a acontecerser ali. Segundo Sérgio, a mudança para a Piraporinha, foi fundamental não apenas para o crescimento da Cooperifa, já que, por ser conhecido na região, os vizinhos se interessaram em ver o que acontecia ali, mas também para sua vida pessoal, pois até então não tinha uma boa relação com o lugarocal, por ter passado a infância trabalhando atrás do balcão. “O lugar que era a minha senzala, hoje é o que me liberta”, declara. 32

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AGENTES DA PRÓPRIA HISTÓRIA Alguns anos se passaram e muita coisa mudou na Cooperifa, desde a chegada ao Bar do Zé Batidão. O número de participantes aumentou, o sarau se tornou conhecido e gerou frutos. Segundo Sérgio Vaz, existem hoje mais de 40 saraus periféricos só em São Paulo e, com o interesse de parte da mídia, a cada dia a Cooperifa recebe gente de diferentes partes do mundo. Em nove anos, o espaço se tornou um caldeirão cultural, que permite a cada um que chega se tornar parte dessa grande família, ao mesmo tempo em que se torna agente da própria história. Das noites da Quinta- Maldita, o Sarau da Cooperifa herdou, dentre outros participantes, a sua musa Rose Dória. O título, segundo Rose, foi dado ainda no início, quando ela recepcionava aqueles que chegavam ao Sarau. Rose conta que em mais de dez anos só se afastou por um curto período em que decidiu se dedicar aos estudos. Hoje, a musa leva inclusive a filha de cinco meses para participar dos encontros que, segundo ela, são uma parte fundamental de sua vida. “A Cooperifa é um dos movimentos mais importantes da periferia, porque ele é coletivo, é a literatura pela literatura, não importa quem, o que, ou de onde você é”, declara. Dentre os que se achegaram, está a professora Lu Sousa, que há seis anos foi trabalhar em uma escola da região e conheceu o sarau por indicação dos amigos e de matérias publicadas no jornal do bairro, e se tornando-seou mais uma

das faces da Cooperifa. Para Lu, a Cooperifa representa uma mudança no olhar que se tem da periferia. Ela conta que repassa toda a “munição” que acarreta no sarau para a sala de aula. “Como os alunos não podem vir até o bar, nós levamos o Sarau da Cooperifa para a escola, e percebemos as mudanças que acontecem”, afirma. A poesia tradicional não é a única valorizada. Dando sentido ao significado das palavras que formam a sigla Rap (em inglês a palavra rap é a abreviação de rhythm and poetry, ou ritmo e poesia), as rimas das ruas também ganham destaque nas noites de sarau. A Cooperifa se tornou palco para jovens MC’s de diferentes regiões de São Paulo, como é o caso de Fino. De acordo com o jovem, o fato de o Sarau da Cooperifa ser algo que nasceu da iniciativa da própria periferia representa uma possibilidade do povo escrever sua própria história. “Os grandes movimentos da história, não tiveram a participação do povo, vieram da classe média. Hoje em dia está acontecendo uma grande mudança que é esse movimento de saraus, onde é o povo que está trabalhando”, declara. Há oito anos, um convite de um conhecido do mundo do rap, levou Cocão, integrante do grupo Versão Popular, ao sarau. Morador da região, o jovem afirma que após começar a fazer parte dessa movimentação, percebeu alterações na sua postura e no trabalho que realiza. “Essa é uma mudança real, porque estamos aqui com quem é igual a nós, quem vive os mesmos sonhos, e, a partir do dia que você vem aqui, convive com as pes-

soas e chega em casa e muda um pensamento, muda uma atitude, esste já passa a ser um local de transformação”. Além dos encontros àsde quartas-feiras que já viraram tradição, a Cooperifa realiza outros eventos que atraem cada vez mais pessoas. Dentre esstes, estão a Mostra Cultural, com eventos espalhados em diversos pontos da periferia e a Chuva de Livros, onde são distribuídos livros com temáticas variadas, exemplificando, assim, um dos slogans motivacionais da Cooperifa: “Quem lê, enxerga melhor”. Deficiente visual, Dona Edite, como é carinhosamente chamada por todos, memoriza as poesias com a ajuda de uma sobrinha e de um fone de ouvido. Conta, que chegou ao sarau por indicação de líderes comunitários em uma época em que não se achava mais capaz de realizações por conta das limitações causadas pela deficiência. “Eu sempre fui uma pessoa que gosta de se comunicar, e com a deficiência visual eu perdi isso, eu fui recebida muito bem e eu recuperei o que parecia que eu havia perdido. Eu sou feliz aqui na Cooperifa”.

S o b r e as mudanças que a Cooperifa proporciona, Dona Edite afirma que essas são notáveis, não apenas em sua própria história, mas nas conversas que trava com os demais participantes. “A Cooperifa me deu uma nova visão, eu não enxergo com “as vistas”, mas vejo um horizonte muito lindo, porque as pessoas me valorizam como eu sou”, declara. Para observar as transformações que um evento como esste proporciona, não é preciso nem mesmo deixar o local, basta apenas uma conversa com o proprietário do bar, o Zé Batidão. “Com a vinda do Sarau da Cooperifa para cá, o meu bar se tornou mais conhecido e minha freguesia aumentou mais de vinte20 vezes, hoje todo mundo sabe onde é o Bar do Zé Batidão”, afirma. Tantos olhares voltados para a Cooperifa, geram algumas preocupações. Segundo Sérgio Vaz, o desejo de ampliar a atuação, através dos meios de comunicação, por exemplo, existe, mas a necessidade de independência, bem como e a cautela para que nenhuma ajuda se torne um malefício, fazem com que o ritmo se torne muito lento, pois nem todos têm um interesse sincero. “A Cooperifa não aceita ajuda de qualquer um, porque é um movimento cultural, de várias pessoas, e a gente não

tem o direito de negociar isso”, afirma. Além disso, outra preocupação é a de continuar sendo o dono dessa voz para continuar sendo um grito periférico. Sérgio Vaz afirma que, o método utilizado pelo grupo para não deixar que isso se perca é deixar claro que quem comanda ali é um grupo forte, pronto para brigar e que não aceita interferência de qualquer um. “A pessoa para dar uma ideia, primeiro tem que frequentar várias semanas. A maioria das coisas somos nós que pautamos. Para chegar lá, tem que nos avisar, saber o que é, com quem fala e o que vai falar”. A fala de Sérgio é corroborada pela de Cocão, que complementa afirmando que só quem é verdadeiro se encaixa na Cooperifa. “Aqui é só quem é de verdade, tem que vir sem máscaras, pois mascarado não entra”. Sérgio Vaz declara ainda que o fato de o sarau ter se tornado um evento cult não estava entre os desejos daqueles que fazem parte da Cooperifa, e que, apesar de muitos dos que citam o sarau nunca terem estado lá, todos são bem-vindos. “A Cooperifa é da periferia e para a periferia, não foi feito nem pelo governo, nem por ninguém em particular, é feito pelo povo”, declara Sérgio, que resume o que aconteceu por ali, parafraseando um trecho de uma letra do grupo Racionais MC’s, que diz: para ter fé, porque até no lixão nasce flor. “Aqui era o lugar onde não nascia flor e agora nasce, é com o suor que a gente côa o nosso café”, declama o poeta .

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[ Cultura e Comunicação Multietnica]

CENTRO CULTURAL ORÙNMILÁ DE RIBEIRÃO PRETO

CULTURA, POLÍTICA E CONHECIMENTO: AS ARMAS DA LUTA PELA EMANCIPAÇÃO

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Entrevistas de Dennis de Oliveira, Frederico D. Firmiano e Silas Nogueira. Textos de Silas Nogueira

undado em 1984, o Centro Cultural Orùnmilá irradia, a partir de sua sede, no meio da periferia, ações, idéias, práticas, cursos, aulas e asé (axé, força vital). Ativo militante do Movimento Negro no Brasil, difere de outras denominações e facções pelo seu profundo vínculo com a cultura africana, particularmente a cultura Yorubá, na qual reside sua fundamentação político-teórica, suas posturas ideológicas e sua filosofia de vida e ação. Nascido de uma Comunidade de Orixá,transformou-se em importante intelectual coletivo

na luta contra o racismo e a desigualdade. Pautou e conquistou avanços em políticas públicas, na legislação local, e não se furta ao embate político nas instâncias municipais, regionais ou mesmo pelo país afora.

O que é um Afoxé

livre tradução, “o verbo que Faz”, a “palavra mágica que anda”, “o verbo atuante”, ou seja, é a comunicação, a denúncia, a ação em busca da alegria e da justiça.

O Afoxé é uma manifestação tradicional do povo negro, uma das primeiras manifestações de rua dos negros no Brasil. No Brasil, atualmente, os afoxés mais conhecidos são os “Filhos de Gandhi”, o Ylê Ayê e Malê Debalê, todos de Salvador, Bahia, onde há centenas de outros. Mas, também, há afoxés no Rio de Janeiro, na cidade de São Paulo e em outras localidades de forte concentração da população negra. Ao contrário do que a imprensa costuma afirmar, Afoxé não é um “bloco de Carnaval”, mas sim um Afoxé, termo de origem yorubana que significa, em 34

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Egbé Ahô Asé Yyá Mesan Orun Bairro Tanquinho, Ribeirão Preto, 1984. Ruas sem asfalto, mato alto, algumas chácaras habitadas, outras usadas

Dentro de tradição filosóficoreligiosa africana de matriz Yorubá, conhecida no Brasil como Candomblé, nada se faz sem Exu, tudo se inicia com ele. Exu é o senhor das contradições, da diversidade e, como não poderia ser diferente, senhor das soluções, ainda que após essa chegar, nova contradição se iniciará, pois, como a vida, estará em movimento. É a leitura dialética Yorubá da vida e da história.

apenas para recreio. Os bairros que o circundam estão na Zona Norte do município, primeira e maior área da chamada periferia da cidade. Um homem negro caminha entre a poeira, e observa os terrenos baldios, alguns colocados à venda. Pára diante de um deles, olha para a mulher que o acompanha e diz: “É esse!” Vai ao centro do terreno, olha e revolve a terra com as mãos. Nasce nesse ato o Egbé Ahô Asé Yá Mesan Orun (Comunidade de Culto ao Axé Mãe dos Nove Mundos). No Brasil, desde a diáspora, Yá Mesan Orun passou por uma redução fonética e se tornou O Afoxé é dedicado a Exu e, mesmo que não o fosse, inicia-se com culto e louvação a essa entidade mágica e exuberante. Em seus significados ampliados, Afoxé, como “o verbo que faz”, “a palavra que anda”, é poderoso instrumento de comunicação, se, de acordo com Juana E. Santos (SANTOS, J. A. Os Nagô e a morte, Petrópolis: Vozes, 1984) considerarmos a palavra como “instrumento condutor de àse”, isto é, um elemento condutor de poder de realização. Em seu desfile, sempre na abertura dos festejos carnavalescos, o Afoxé traz, necessariamente, o canto, música e letra e ritmo; a coreografia,

“Yansã”. Os protagonistas do ato acima, fundadores do Egbé Ahô Asé Yá Mesan Orun, são Paulo C. Pereira de Oliveira, pai Paulo para os devotos, e Neide Ribeiro, Mãe Neide.

Cultural foram cursos, oficinas e aulas sobre o universo cultural yorubano.

Adultos, jovens e crianças, em maioria, moradores da periferia, participam das Dez anos depois. Os atividades gerando um tambores do Egbé Ahô local processo pedagógico muito continuam batendo, ensinando peculiar. Nesse processo, ritos, preceitos, conceitos o conhecimento milenar de filosóficos da tradição cultural origem africana é mesclado com Yorubá. Cresce no sentimento discussões de textos de autores e na análise dos fundadores do ocidentais, com informações Egbé Ahô a necessidade de criar um mecanismo que possibilitasse históricas sobre a luta do povo a interferência política e negro, sobre o racismo e a contribuísse para a organização desigualdade. Um curso de das lutas e do próprio movimento língua Yorubá, ministrado por um da comunidade. Nasce professor africano, foi seguido daqueles toques ancestrais, dos de oficinas de confecção de ensinamentos, da resistência tambor, de dança e cânticos o Centro Cultural Orùnmilá de sagrados do Candomblé. Dois anos depois, em 1996, nasce Ribeirão Preto. o Afosé Omó Orùnmilá (Afoxé Filhos de Orùnmilá), o primeiro e hoje o único do interior Afosé Omó Orùnmilá paulista. Em 2006, lei municipal é aprovada determinando que o Afoxé Omó Orùmilá abrirá os A estrada de terra onde desfiles do carnaval da cidade. nasceu o Centro Cultural e Entre integrantes e devotos o Egbé Ahô Asé Yá Mesan o Afoxé Orùmilá é chamado, Orun, hoje, asfaltada, leva o metaforicamente, de “o braço nome de Rua Orùnmilá. As armado” do Centro Cultural. primeiras atividades do Centro (ver box)

Cultura e Ensino nas Vozes do Orùnmilá Cultura, educação não formal, manifestação artística somam-se, em 2002, a uma atividade próxima da educação formal: o Centro Cultural Orùnmmilá funda o Curso Vida/ Pré-Vestibular “Paulo Dantas da Silva”. O nome veio como homenagem a um professor negro assassinado um ano antes. O Centro Cultural Orùnmilá antecipava, na prática, a Lei 10639/03, que determina o ensino da história da África e da Cultura Negra nas escolas e que só viria a ser aprovada no ano seguinte e cuja aplicação real até hoje enfrenta problemas. Para enfrentar tal situação o Centro Cultural Orùnmilá criou, em 2007, o “Projeto Baobá”, uma iniciativa que visava a preparação de professores para a aplicação da Lei 10639/03. Implantado em março de 2007 e coordenado pela professora Silvany Euclênio, esse projeto foi praticamente abandonado pela atual administração.

a vestimenta, as cores e, o mais importante, o universo subjetivo de cada Orixá da mitologia Yorubá. Por seu caráter que mistura o rito e a festa, com autenticidade filosófica e religiosa, o Afoxé não é um simples espetáculo, é um ritual. Isso o diferencia de outros espetáculos, e lhe confere um nível de autenticidade que não pode ser encontrado em outras manifestações. Essa capacidade, inerente ao Afoxé, torna-o singular e mítico e, por isso, nunca será um simulacro ou, muito menos, uma simples mercadoria. (S.N).

Afoxé Omo Orùnmilá na abertura de desfile de Carnaval D i k a m b a | Abril 2011|

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novamente no prelo, as oficinas de ritmos, dança e capoeira estão em desenvolvimento, como sempre estiveram.

A discussão política, isto é, o posicionamento militante contra a opressão não permeava e não permeia ainda o Candomblé no seu conjunto. Hoje, de forma incipiente, está se ampliando, mas de forma muito lenta e com riscos claros de usos partidários.

O elemosò Paulo C. Pereira de Oliveira

Rádio “Periferia Norte” (hoje, radio Orùnmilá), jornal impresso Soro Dudu e um sítio eletrônico fazem parte das vozes do Centro Cultural Orùnmilá. A “Periferia Norte”, nascida em parceria com o Movimento Hip Hop, funcionou na sede do Centro e foi fechada mais de uma vez pelas polícias federal e militar. Atualemente, com o nome mudado para “Rádio Oùnmilá”, funciona na internet e está em avançado processo de legalização. Em toda a sua trajetória, até o início do ano de 2010, o Orùnmilá nunca contou com verbas nem com subsídios oficiais ou privados. Apenas com o esforço de seus membros e simpatizantes. Além das atividades voltadas para a formação/educação, cursos, aulas, oficinas, palestras, o Centro Cultural exerce uma militância que é, de forma figurativa, chamada por seus membros de “a força que anda, que está em todos os lugares ao mesmo tempo”. Nos seus anos de existência, o Centro 36

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Cultural Orùnmilá interferiu, apoiou, modificou e atuou junto a diferentes grupos de manifestação da cultura negra, a capoeira, o Hip Hop, o samba, o carnaval. No âmbito da ação política tradicional, as ações e interferências se deram nos Conselhos Municipais (de Cultura, do Meio Ambiente, da Moradia); na Câmara Municipal, interferindo para aprovar ou rejeitar leis, decretos e indicações; no poder executivo local, exigindo a criação de políticas públicas e de mecanismos para implantálas como a Coordenadoria de Assuntos Étnicos e Raciais e a Assessoria Para Promoção da Igualdade Racial na Secretaria Municipal de Educação, para citar duas que são realidade, em Ribeirão Preto. Em outros diferentes espaços públicos ou privados, o Orùnmilá, ou algum de seus membros, participaram de inúmeros debates, palestras e manifestações contra o racismo ou sobre o potencial político da cultura.

Ponto de Cultura “Ilé Edé Dudu”

No início de 2010, o Centro Cultural Orùnmilá se transformou oficialmente, a partir do projeto Cultura Viva do Ministério da Cultura, em Ponto de Cultura. Da boca dos integrantes e de quem acompanha o trabalho desenvolvido nesses anos todos, as palavras que definiram a conquista foram: “sempre foi um ponto de cultura, agora veio o reconhecimento oficial”. Para receber, trocar conhecimentos, valorizar, dar suporte técnico e ideológico aos que o procuram o Ilê Edé Dudu, o ponto de cultura do Orùnmilá, de início, já inaugurou um estúdio de áudio, apto a gravar, com qualidade, a vasta produção do povo da capoeira, do Hip Hop, do samba, do carnaval. A rádio Orùnmilá, que sempre funcionou no universo “tradicional” e na internet, já está com protocolo do Ministério da Comunicação, o jornal Soró Dudu também já está

ocidental, que se traduz tanto na Modernidade e no capitalismo quanto, ideologicamente, no cristianismo e aquela oriunda da cultura ancestral africana, particularmente a de origem Yorubá e seu universo filosófico, político, cultural.

limitações e valorizar o potencial político inerente à atividade ancestral. Ou seja, o Orùnmilá sai daquela postura tradicional do Candomblé, aquela postura Na raiz da construção de de manutenção do sagrado, de tudo o que hoje é, representa manutenção da cosmovisão, e significa o Centro Cultural etc., e usa esse arsenal para Orùnmilá estão dois sacerdotes ir para a arena de disputa de tradicionalistas do candomblé, A luta é imensa, o resgate, espaço, de defesa do negro e dos cultos africanos de origem a divulgação dos valores, da própria cultura e da religião, yorubana: a yalorixá Neide conceitos, concepções colocam de combate ao racismo. Essa é Ribeiro, a Mãe Neide, e o o Centro Cultural Orùnmilá em a diferença entre o Orùnmilá e èlemoso Paulo C. Pereira de um patamar singular de luta as comunidades religiosas em Oliveira, Pai Paulo. contra a hegemonia, não apenas geral. Mas, a rigor, todas fazem a hegemonia das concepções política de resistência, todas Somam-se a eles, Mãe capitalistas mas a hegemonia do contribuem para a preservação Neide e Pai Paulo, as filhas do pensamento ocidental moderno, da filosofia e alimentam o casal, Daniele, Paula e Renata. seja qual for a sua coloração movimento, à sua maneira. As três, desde a infância não só ideológica. acompanharam como também DIKAMBA: No âmbito do DIKAMBA: Essa postura do participaram ativamente, tanto universo teórico místico, o dos cultos do Egbé Ahô quanto Centro Cultural Orùnmilá de Candomblé possui valores, do Centro Cultural, e, agora, fazer o embate político contra conceitos, muitos traduzidos do Ponto de Cultura. Integram o racismo, a intolerância em divindades, em Orixás, religiosa e, ainda, pela ainda a diretoria ou participam que são expressões emancipação do povo negro como simpatizantes, militantes no Brasil é comum nas revolucionárias, guerreiras ou curiosos um número Comunidades de Axé, nos como Ogum, Xangô, Yansã, ligados à libertação, à guerra, significativo de professores, terreiros, no povo do Axé? à justiça. O próprio Exu, que mestres de capoeira, rappers, estudantes, artistas profissionais Paulo: Eu não encontrei isso. é o próprio movimento... Essa e pesquisadores. Pelo contrário, a discussão valorização do movimento, política, isto é, o posicionamento uma leitura dialética das militante contra a opressão não contradições, é muito temida permeava e não permeia ainda pelos conservadores de todos Cultura, filosofia, Política o Candomblé no seu conjunto. os matizes ideológicos... Hoje, de forma incipiente, Paulo: e Diversidade Engraçado...há está se ampliando, mas de representações mais agressivas forma muito lenta e com riscos no universo místico, teológico, claros de usos partidários. As e mítico africano, como Dan, Paulo C. P. de Oliveira, razões do não posicionamento a cobra, que não foram babalorixá, nasceu em Ribeirão firme são diversas, desde a demonizados, mas Exu foi. Preto. Ainda adolescente, após necessidade da sobrevivência, Acho que conseguiram perceber passar por outros cultos com passando pela repressão e o sua importância para além do a presença da cultura africana, entendimento comum de que símbolo, o falo. Perceberam como a Umbanda, foi iniciado política é algo ligado a governos, que, em Exu está a síntese, no Candomblé por Julio Pinto partidos e só. A própria formação ele traz em si a transformação, Duarte, Pai Julio de Oxum, na recebida e transmitida nas a resistência, a comunicação, cidade de São Paulo, em 1968. comunidades religiosas não a fertilidade, ou seja, Exu contempla a leitura política. “O congrega vários elementos que Na entrevista concedida à que você tem que aprender tem tinham que ser destruídos. É revista Dikamba, o sacerdote que aprender aqui dentro, na nesse sentido que se torna difícil Paulo explicita, de forma singular, própria casa religiosa”, diziam falar em “encontro” de culturas, o confronto entre dois mundos, os antigos sacerdotes. Aqui no desde o primeiro encontro já foi entre duas concepções de Centro Cultural é que fizemos um confronto entre duas matrizes vida e de história, a concepção um esforço para romper essas culturais distintas em que uma D i k a m b a | Abril 2011|

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quis escravizar a outra, vem daí a necessidade do opressor de demonizar, de negar a outra. Não dá para falar em encontro se não for em igualdade de condições. Enquanto tiver essa hierarquização promovida pelo racismo, onde a nossa cultura é subalternizada, tratada como exótica, como folclore, o que existe é confronto. E Exu simboliza isso, ele é o próprio confronto. E traz em si todos os elementos da transformação, do movimento, da ação, é esse aspecto que o faz mais temido e não apenas o fato de possuir como um de seus símbolos o falo. Se fosse pelo símbolo, os cristãos demonizariam Oxumaré, cujo símbolo é a cobra, algo terrível para o mundo cultural dos cristãos.

perdeu-se o ofó...Explicando (risos): você pega uma “folha da costa” e usa em um ritual... mas se você pegar Odundum, que é o nome dela em Yorubá, o próprio nome já diz o que ela é: “Dum doce... odundum babáteró”, “a folha doce é aquela que acalma”. Entendendo isso, você vai encontrar o sentido de se usar aquela folha no ritual. E assim é com tudo. Você passa a entender Exu com profundidade, você vai entender Ogum e a própria história Yorubá com profundidade, você vai ter o entendimento de outro universo para além da prática ritual. É isso que permite confrontar esse universo negro, africano, com o outro universo, hegemônico, que é colocado para a população negra brasileira, você vai encontrar outros referenciais teóricos, filosóficos, referenciais de organização de sociedade.

você pega um Itan como esse, você dá um curso de respeito à diversidade. A concepção de diferente está na origem da concepção de ser humano. DIKAMBA: Sobre a concepção de ser humano...

Paulo: Para explicar a origem do ser humano dentro da concepção Yorubá eu teria que, primeiro, explicar a relação Orun/Ayê, o universo e a terra, mundo espiritual/mundo material, a vinda do ser humano à Terra, o Ori Inu e o Oriodê. Ori Inu é a cabeça interior, chamado, grosso modo, de destino, que fica mais fácil de entendimento, mas a concepção é muito maior, é a centelha divina que Olodumarè dá a cada ser humano, um pedaço de Deus. Já Oriodê é onde tudo DIKAMBA: Além disso, está, externamente ao indivíduo, dificuldades em traduções, que me permite reconhecê-lo, o repressão de diferentes formas acarretam perdas na transmissão DIKAMBA: O desconhecimento seu rosto, por exemplo. (Paulo, nesse momento, passa a narrar no aprendizado dos valores, da língua é decisivo nisso? Itan Ifás que explicam tanto a sentidos e significados... Paulo: Sim, mas não é só origem como o significado de Paulo: A grande perda da isso. Você pega, por exemplo, ser humano, destino e Ori, são tradição religiosa no Brasil se o caso da famosa revolta dos extensos e a publicação exigiria dá num processo histórico e não Malês, na Bahia. Pega os um espaço muito maior). dá para culpar absolutamente dados, 90% dos negros presos ninguém. Mas ficou o rito e são yorubanos, tratados como DIKAMBA: E a transmissão desse conhecimento, como é perdeu-se o mito. Qualquer Nagôs. Você pega o significado possível sua efetivação? comunidade religiosa sabe, da palavra Malê e já desvenda conhece os ritos, banhos, a realidade histórica da origem Paulo: Tem toda uma forma de boris, etc., o que se perdeu desses negros: Malê, o que não regramento, de valorização de foi a cosmovisão. E isso você é da casa, ou seja, o que se fez comportamento, de organização só vai encontrar em Orùnmilá. religiosamente em outra casa, da sociedade própria da cultura Somente essa divindade explica em outro ylê, mas que é da Yorubá, embutida nos Itans e conceitua essa tradição. Tem religião do povo yorubano. No Ifás, que não está na lei, mas um Itan Ifá (versos sagrados entanto, Malê, no Brasil, passou na vivência, na repetição da sabedoria Yorubá) que diz a significar “muçulmano” (risos). desses conceitos. Por exemplo, que Deus (Olodumare), quando E assim vão distorcendo tudo, respeito aos mais velhos, quis criar o mundo, consultou o samba veio da umbigada, o paciência, desprendimentos Orùnmilá para saber quem ele Afoxé é bloco de carnaval, e material e econômico. E isso deveria enviar à Terra. Veja assim por diante... E entendo que você vai encontrar em muitos um exemplo: um sacerdote, é difícil...é difícil usar palavras provérbios de Orùnmmilá em em geral, sabe que precisa de ocidentais para a explicação que a sabedoria é transmitida, determinada folha para fazer um de um universo diferente, para reafirmada, inserida no determinado encantamento. Usa explicar um conceito africano. cotidiano, nos cânticos, nas a folha, mas perdeu o porquê, o Por exemplo, você diz “cultura”, louvações. É isso que diferencia motivo pelo qual se usa aquela em yorubá você vai dizer “axá”, a concepção de mito do ocidente, folha naquele encantamento, que significa “tradição”. Se que geralmente é associada 38

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à mentira, da concepção em Yorubá, que é a verdade a ser seguida, vivenciada, no dia a dia. Nesse conjunto de conhecimentos estão regras, comportamentos, um modo de ser e viver. Daí Ogum ser chamado de civilizador, por ser o criador de Odjalás, cânticos, versos, saudações com esses conhecimentos, ensinando o pensar e o agir mediante o sagrado. Então, relações de todos os níveis, sociais, políticos, passam obrigatoriamente por esse referencial. DIKAMBA: São essas concepções que orientam o Centro Cultural Orúnmilá? ] não é o ocidental, conseguimos olhar de fora, de outro patamar, e fazemos a crítica de forma mais profunda. DIKAMBA: Como lutar, então, pela ascensão do povo negro? Paulo: Essa ascensão passa obrigatoriamente por uma proposta política coletiva, uma alternativa do pensamento negro para este País. Enquanto isso não for construído e os negros estiverem guetizados em partidos, almejando espaços próprios e fazendo a discussão dentro do campo do inimigo, não vamos longe. Por mais que se estude, que se fortaleça intelectualmente, etc., estaremos dentro do campo do inimigo, dentro daquilo que eles inventaram, foram eles que inventaram esse pensamento. Podemos avançar aqui e ali, criar políticas públicas... e avançamos, mas fazer um movimento de massas, criar uma mobilização de massas que não tenha elementos culturais, filosóficos negros não adianta, se não tiver esses elementos, não vejo possibilidades de grandes transformações para o negro.

DIKAMBA: Mas existe essa possibilidade, de uma possível aglutinação em torno das raízes de um outro pensamento, e que construa uma prática política transformadora? Paulo: Sim. Ou que pelo menos deixe uma semente... ainda que eu não a veja, mas que no futuro apareça e cresça. O que nós temos que entender é que a dificuldade de aglutinação, de engajamento coletivo, passa pela dicotomização promovida pela cultura ocidental quanto à política, àcultura, àreligião, e contribui para a não aglutinação do negro em torno de ideais comuns. Já avançamos com nossa prática e nossos conhecimentos. É a questão da paciência. Nós temos que continuar a construção, tentar irradiar isso, viver, criar estratégias, mudá-las, temos que lutar. DIKAMBA: E o Afoxé Omó Orùnmilá surgiu como? Paulo: Dentro da racionalidade comum é difícil explicar o surgimento do Afoxé Omó Orùnmilá. Não foi algo assim “agora vou fazer um afoxé”. Foi uma consequência do embate e da preservação da cultura, uma necessidade de ampliar o embate e o debate com a sociedade, de mostrar e dizer: “eu faço movimento negro pela minha necessidade de existir plenamente, integralmente e sair em defesa dessa integralidade, enquanto negro, sacerdote de Orixá.”

“Exu é o primeiro ser. Exu é o princípio” DIKAMBA: A relação Afoxé/ Exu é intensa...

Paulo: Exu é o princípio, Yangi, a laterita, a pedra vermelha, que é o símbolo máximo de Exu. É o primeiro ser criado por Olodumare. Ao contrário do diabo cristão, a quem perversamente os cristãos associam a Exu, Exu não está em oposição a Olodumare (Deus). Ele é o próprio detentor do Axé, ele faz acontecer a vontade de Olodumare. A cor de Exu é a cor do barro, da laterita, de Yangi de onde surge a massa da qual Olundumare dá vida ao primeiro ser. Exu é o princípio, por isso ele é chamado de Asiwajú, aquele que vai à frente de todas as coisas. Por isso, nenhum marco está legitimado se não passar por Exu, que é aquele que sacramenta a ação, tanto dos homens quanto dos orixás. E pode restabelecer o equilíbrio na terra, na vida, mediante o movimento, restabelecer o movimento interrompido. É, portanto, um universo de significados, símbolos e representações na cultura Yorubá, um universo muito complexo. Tentamos com o Afoxé mostrar a parte visível desse universo, mas tem a parte que é religiosa, que é interna, impossível mostrar tudo isso. DIKAMBA: Orùnmilá.

Fale

sobre

Paulo: É aquele que vem logo após Olodumare (Deus), é o mesmo Eleeripin (testemunha do destino), aquele que assiste ao nascimento de todas as coisas, é a inteligência viva de Deus; os orikis (cânticos sagrados) de Orùnmilá, dizem “pobres de nós mortais que nunca vamos conseguir compreendêlo completamente”. É um oráculo, mas em um sentido que ultrapassa o mais comumente usado no ocidente. Ele não lida com a categoria sorte, e sim com o conhecimento e a inteligência D i k a m b a | Abril 2011|

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Cada mulher brasileira tem um pouquinho de Oyá, de Yansã

Mãe Neide, a Oyá, no C. C. Orùnmilá

somados à iniciação, que é um pré-requisito para o acesso ao conhecimento de Orùnmilá. É um conceito muito diferente do que é difundido nas práticas de consulta relacionadas a ler a sorte ou mesmo àquelas que dependem de um suposto dom ou qualidade de quem joga. (Ver box) DIKAMBA: Para tentar encerrar... Paulo:”Enquanto os leões não tiverem os seus contadores de histórias, as histórias das caçadas glorificarão os caçadores”, provérbio Yorubano.

Mãe Neide, a Oyá

búzios para seus filhos de santo, seus inúmeros amigos, devotos do candomblé ou simples consulentes em busca de orientação ou ajuda. Nasceu na cidade de São Paulo, foi iniciada, também na década de 1960, por Acir Rodrigues de Queiroz, o pai Sissi, filho de santo de Adálio D’Ogunjá, de Cachoeira, Bahia. Comanda inúmeras atividades da Comunidade de Axé, do Centro Cultural, do Ponto de Cultura, e é a voz que, nos desfiles do Afoxé, conduz os cânticos do sagrado e da festa no carnaval. DIKAMBA: Mãe Neide, sobre sua formação religiosa, quando foi, como começou?

Neide: Bom, quando criança, nós, minha família, minha mãe, A yalorixá Neide Ribeiro, éramos católicos apostólicos e a gente a Mãe Neide, fundadora, ao praticantes, frequentava a Igreja, minha mãe lado de Paulo P. de Oliveira, na missa das senhoras, eu na do Egbé Ahô Asé Yá Mesan, do Centro Cultural Orùnmilá missa das crianças aprendendo ensinamento do e do Afoxé Omo Orùnmilá, é, aquele catolicismo, aquela coisa toda. religiosamente, filha de Yansã (Oyá, na África). Sempre com Com o passar do tempo, me um sorriso, Mãe Neide acolhe, sentia muito mal na missa. orienta, ensina, educa, joga os Não sei exatamente, mas eu 40

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me sentia mal. Eu dormia na missa. [risos]. E aí com o tempo eu passei, nos meus seis, sete anos de idade, a desmaiar. E ninguém sabia explicar o que eu tinha, principalmente na medicina. Então, minha mãe começou a procurar explicações. Procurou o kardecismo e o povo de lá dizia: “o problema dela realmente é espiritual, mas não é da minha alçada”. E assim por diante. Procurou a Umbanda, e eles sempre falaram aquele tipo de coisa. Mas só que a Igreja dizia, naquela época, que era coisa do diabo. Qualquer coisa que não fosse católico... que fosse espiritismo...era do diabo (risos). Então, como criança, aquilo para mim era muito difícil, associar isso ao diabo, era ruim... Eu preferia ser doente do que ter o demônio (risos). DIKAMBA: Foi tempo isso?

por

muito

Neide: Isso demorou, e eu sofri muito. Certa vez, minha mãe me levou a um lugar e quando chegamos lá era uma festa de um Candomblé de Angola, em São Paulo, mas eu nem sabia onde estava. E aquilo que me

dava a qualquer hora e em qualquer momento me deu lá. E eles me recolheram para um quarto de santo... e, de repente, depois de algumas horas ali, eu acordei. E não entendi onde eu estava: muitas flores brancas, não via a luz, tudo muito fechado, um monte de comida branca; eu falei: “Morri e estou no céu”. [risos]. Aí a Mãe de Santo chegou... levantei, sentei na esteira, não sabia o que fazer da minha vida, não sabia se eu corria, se eu saía, eu tremia muito, não sabia nem onde estava. A Mãe de Santo, uma pessoa maravilhosa, uma sensibilidade muito grande, muito axé, e aí ela conversou comigo: “olha minha filha, você está numa Casa de Angola, isto aqui é tradicional, é uma roça de santo; você teve uns problemas, e pra você ficar curada você vai ter que ficar sete dias aqui. E eu fiquei, e foi ai que começou.

realmente, acho que é aqui que eu tenho que ficar”. Mas foi muito bom pra mim, por que ali que eu descobri que realmente existia algo além daquilo que eu tinha aprendido na Igreja Católica. E daí pra frente eu tinha virado com Oyá, que no Brasil é Yansã. Eu já virava com ela desde os seis anos de idade e não sabia o que era isso. Foi aí que eu comecei a ter consciência mais ou menos do que existia e aquilo que existia comigo. Foi assim que eu conheci o Candomblé.

era mais adulta. Meu começo mesmo foi ali; onde tomei conhecimento mesmo da religião, da importância, comecei a entender... DIKAMBA: Já desejava ser uma “mãe de santo”?

Neide: Mas eu só queria ser filha. Não queria ser mãe, não. [risos]. Mas eles diziam que eu ia ter que ser Mãe de Santo um dia, e eu dizia: “não quero, não. Fala com Iansã, conversa com ela, não quero, não. Estou muito feliz, gostei de fazer parte, DIKAMBA: Quando e como se pronto”. Então Yansã quis casa, Oyá quis casa, e eu disse: “Não deu o sacerdócio? Onde foi? estou no momento ainda”. Meu Neide: Isso foi mais ou menos pai ensinou que realmente a na década de 1960. Na Casa gente tinha que ter o lugar, de Angola e eu não fui iniciada. que é o axé, a terra, na época Tempos depois, conheci o eu não tinha mais nada. Então pessoal de Cachoeira de São falei: “Não, não vou alugar. O dia Felix, da Bahia, pelo meu avô, que ela quiser, ela (Yansã) me que jogou búzios e falou pra cobra. Eu sou solteira, eu não minha mãe que eu teria que tenho condições. Tenho alguns me iniciar realmente, que eu conhecimentos, acho que não DIKAMBA: A mãe de santo já estava dentro do caminho, mas estou preparada. Só quando falou em iniciação? que eu tiver com uma pessoa, que aquele ainda não era o que realmente seja da religião, Neide: Ainda não. Depois de meu caminho. Fui então para o que entenda, que eu possa ser uma semana que eu fiquei, eu Rio de Janeiro. Aí eu fui pra lá respeitada e que as pessoas acordei, fiz os preceitos que e fiquei lá uns sessenta dias, e possam me olhar com respeito, ela pediu e eu me senti bem, foi onde eu me iniciei. E ali eu também assim como eu respeito porque eu não tive mais aquele tomei consciência realmente, e seja respeitada”, e assim é até problema. Então falei: “nossa, já era mais adolescente, já hoje.

Orúnmilá e os Búzios

Ao explicar aquilo que ficou conhecido como “jogo de búzios”, Paulo demonstra toda a imensidão de significados envolveendo o “sistema oracular de Ifá”, uma complexa organização de signos, sentidos filosóficos, cálculos matemáticos e combinações. Essa complexidade permite qualificar a prática como algo impossível de ser conhecido, e mais ainda praticado, sem um estudo profundo e uma vivência religiosa, que tanto mitifica quanto explica a lógica Yorubá do oráculo e do destino. Segundo Paulo, a consulta na cultura Yorubá “envolve todo o sistema de Ifá que compreende várias formas e práticas oraculares, e entre elas está o jogo de búzios. O jogo completo inclui tanto a prática de lançar os búzios, em um sistema de multiplicação específico, quanto todo o conhecimento e saber contidos nos Itan Ifás, os versos sagrados que versam sobre todos os aspectos da vida. E o patrono desse sistema é Orùnmilá, que cria o oráculo de Ifá, por isso que são confundidos”.

Paulo explica ainda que esse conhecimento é transmitido fundamentalmente nos processos de iniciação e que há pouco material escrito sobre, e o que existe não atinge a profundidade do sistema. “Há inclusive acadêmicos que escrevem a respeito do jogo de búzios, mas não têm sequer o compromisso nem seriedade com aquilo de que estão tratando, alguns são até iniciados nos cultos, mas estão mais interessados em vender livros que desvendar a imensidão do universo, o que é muito difícil e trabalhoso.” Reconhece ainda que houve perdas nas transmissões do conhecimento específico aos cultos a Orùnmilá. “Vieram poucos sacerdotes justamente porque nem na África havia tantos e os poucos que vieram tiveram dificuldade de deixar discípulos qualificados, pois a repressão e o próprio capitalismo não permitiram; cultuar Orùmilá exige que os seguidores sigam o sacerdote, são os neófitos, e isso é impossível, em termos de sobrevivência, no capitalismo”. D i k a m b a | Abril 2011|

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DIKAMBA: O papel das mulheres no Candomblé. Como a senhora interpreta isso? O poder feminino... Neide: Muito importante. A importância da yalorixá no Candomblé é muito grande. Primeiro, porque é com ela que tudo acontece. É ela que tem a sensibilidade de falar, do contato, de tudo que acontece. É ela, independentemente de tudo... Fala-se na sociedade, em geral, que é o homem, no Candomblé não existe isso. É a mulher que está na frente em todos os sentidos, todos, desde a educação até a manutenção. [risos]. A presença da Ialorixá, a Mãe... Na manutenção, na manutenção das tradições... aquela facilidade que ela tem

“Eu sou a dança, depois advogada”

Renata Ribeiro de Oliveira, jovem dirigente do Centro Cultural Orùnmilá trabalha entre duas categorias aparentemente distintas e conflitantes para a concepção ocidental de vida e mundo: a dança e a justiça. Grande bailarina, conhecedora de todo o universo cultural do Candomblé, comanda as oficinas de dança do Centro e coreografia mítica do Afoxé na avenida durante os desfiles de Carnaval. Como advogada militante, enfrenta as demandas jurídicas que integram a luta da entidade, particularmente denúncias 42

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de aprendizado do dia-a-dia, da convivência, da vivência, de passar a tradição. Acredito que, como a mulher trabalha com a sensibilidade, ela consegue trabalhar melhor toda essa dimensão energética africana. E como o homem é muito racional, muito objetivo, ele tem muita dificuldade, então, até mesmo para receber um santo o homem tem muita dificuldade, não quer... O transe é algo mais próximo da mulher, sabe?! Acho que ela nasceu pra isso. E a continuidade disso está na Yalorixá também. DIKAMBA: No dia-a-dia do Candomblé, com qual atividade a senhora se identifica mais, tem uma maior identidade? e processos que envolvem a questão do racismo e da discriminação. Para Renata não existe contradição entre a arte, a dança (no seu caso) e a justiça. No Candomblé, ela é filha de Xangô, o orixá que é, ao mesmo tempo, grande guerreiro, símbolo e expressão da justiça e, como toda divindade africana, exímio dançarino. “Sou de Xangô, e primeiro sou a sua dança, mas ele é o rei da Justiça e, então, sou também advogada, procuro a justiça; isso é muito natural em mim, na minha personalidade, na minha essência”.

Neide: Com o contato. Eu tenho uma facilidade em olhar na pessoa e a pessoa transmitir para mim o que ela pensa. É essa a importância de você trazer a pessoa pra si, você passar pra ela a mensagem que ela está esperando de você, não omitir e conseguir passar. Isso é muito difícil. Eu gosto de fazer isso. O contato com as pessoas... É o olhar. Eu olho, eu sinto, aí depois eu vou conversar com as pessoas. E graças a Orùnmilá e a Yansã eu tenho essa paciência. Gosto também de conversar, de entender mais as pessoas, o que procuram... Eu fico imaginando que elas, muitas vezes, estão no fundo do poço, e às vezes não falam, mas você consegue falar, ouvir, é puro embate, é pura luta, mas nem por isso deixamos de dançar, de fazer festa e cultivar a alegria de viver desde que seja com dignidade, com busca de justiça e com muito axé”

com sua forma, você consegue fazer dela mesma o que ela é, redescobrir a energia, o axé e, naquele momento, refletir um pouquinho na parte positiva. E tem isso de acolher o outro...

com outras coisas. Daqui uns anos, se continuar assim, o que teremos? DIKAMBA: O seu orixá, Yansã, fale sobre Oyá, Yansã...

DIKAMBA: Sobre as folhas. A Neide: Ai... meu Deus! [risos]. É aquele Orixá que é dono do importância das folhas... vento, ele é dono do mundo, é Neide: Se o povo soubesse uma energia muito grande. É como a folha é importante, o um Orixá muito forte. É o único mundo seria melhor.... A folha é Orixá feminino que enfrentou tudo, né?! Sem a folha não existe Xangô, enfrentou as guerras... Orixá. Mas independente disso, que não tem medo de nada. Ela se dependesse só do Candomblé mostra a personalidade dela, a não haveria destruição daquilo forma dele ser, por isso que ela que nós temos...a folha é muito usa uma espada, entendeu?! E do que se faz, que acontece não tem medo. Ela é ela. Ela dentro da religião. E o povo não se esconde por trás da está tão preocupado com tantas mulher. Ela sempre se assumiu outras coisas que não enxerga como tal. Não tem medo de isso. Se houvesse esse respeito nada. Ela é pura. E tem, assim, pela natureza, o mundo estaria domínio. É muito forte. A única melhor. Isso é a energia. Isso mulher que lutou de espada, é axé. E o povo nunca pensou como Orixá masculino. Vejo nisso. Está preocupado hoje muito disso na mulher brasileira,

não é nem Eva, nem virgem Maria. Ela é filha de Oyá, ela é guerreira.[Risos]. É guerreira, em cada uma delas tem um pedacinho de Oyá... DIKAMBA: Axé... Neide: Axé para todos nós...

Dennis de Oliveira: Doutor em Ciências da Comunicação e professor da ECA/USP, Frederico D. Firmiano: Mestre em Sociologia, professor da Fesp/ UEMG Silas Nogueira: Doutor em Ciências da Comunicação, professor da Fesp/ UEMG

Sobre as dificuldades encontradas na justiça brasileira sobre a questão do racismo, Renata prefere falar em “despreparo” do judiciário e das polícias. Como militante antirracista já fez denúncias e presenciou inúmeros casos nos quais o que fica claro é a herança escravocrata em todas as instâncias e camadas da sociedade Filha mais nova de Mãe Neide e Pai brasileira. “Acontece que ainda há Paulo, Renata assumiu, oficialmente, dificuldades legais, brechas nas leis e nos ritos jurídicos que permitem a há quatro anos, a presidência na impunidade e aumentam as chances de diretoria do Centro Cultural Orùnmilá desqualificação do crime de racismo. A para enfrentar, de forma mais dividida, grande desigualdade existente na os muitos encargos que as atividades sociedade, particularmente no que se do Centro criaram, principalmente a refere ao negro, contribui para dificultar partir da regionalização da atuação e o acesso à justiça”. Essa constatação da transformação em Ponto de Cultura. leva Renata a ressaltar o trabalho “É muita responsabilidade, não se da entidade que dirige e suas ações trata apenas de administrar uma ONG, envolvendo a cultura, a conscientização, nossa responsabilidade é com a própria as práticas pedagógicas, as formas de cultura e com a luta histórica de um enfrentar o racismo e “o despreparo” da povo. Enfrentamos dificuldades de toda sociedade. ordem. Como entidade do povo negro, de combate ao racismo, nosso trabalho S.N. D i k a m b a | Abril 2011|

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[Galeria de Fotos]

PASSAGEM ENCONTRO

Fotos por Edward Zvingila e Tatiana Fecchio

Tomando o espaço do metro como índice do urbano, do subterrâneo e daquilo que ocorre sob a cidade (ou a realidade); este conjunto de imagens é uma foto-narrativa sobre encontros, possibilidades, impossibilidade e trânsito. Neste sentido os dois fotógrafos assumem um papel de cidadãos que portadores de suas câmaras se buscam num espaço regulado pela assertividade das linhas estabelecidas, mas ao mesmo tempo pela incerteza da perspectiva de reencontrar. Assim, as imagens que revelam a objetividade da busca, ao mesmo tempo apresentam a fugacidade dos encontros nos espaços urbanos, povoado de sujeitos em diversos percursos e diferentes repertórios e histórias. A passagem, configurada como o espaço e deslocamento dentro de um sistema de transporte que ao mesmo tempo em que faz coincidir percursos, afasta e impõe distantes proximidades. A passagem como possibilidade de encontro é assim a metonímia da terceira margem do rio, dos espaços de loucura, dos períodos finitos entre nascimento e morte, entre amanhecer e anoitecer... passagem entre dois lugares, de início e fim pro-clamados; denso de significados.

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[ Letra Viva]

IV

D

izem que a Pedra do Urubu foi a primeira pedra do mundo. Ela está lá desde antes de Deus. Dizem, ainda, que ela se formou a partir de um feixe de luz. Os anos se passaram e aí então, ela ostentava o privilégio das primeiras coisas. O motivo da alcunha Pedra do Urubu foi que aconteceu sem que se soubessem as causas. Coincidentemente, e isso acontecera numa época antiga também (está escrito nas páginas sagradas da memória popular), a tal pedra tornou-se um observatório para os limpadores de carniça a partir da chegada dos homens muitobrancos pela capoeira do sertão à dentro. Por isso, dizia o velho Casimiro, que nunca vira um desses brancos e nem estava no dia da grande criação, mas que conta que assim se deu, e a

pedra mais velha do mundo ficou conhecida por que era lugar de importância. Por conta disso tudo e mais um pouco, contava o Lisboa ( homem novo na Ribeira), que a pedra era mau-assombrada. Num dia que passava no aceiro da estrada, e beirando a Velha Pedra, ele mesmo confiou à sorte a escapadela de uma visagem. Apareceu em sua frente tal coisa de outro mundo e por Deus não se estourou todo de tanto mato, cipó verde e embira que quebrou no peito. Não era, contudo, fato desconhecido o apego do Lisboa a uma meióta bem no capricho. E a gargalhada tomava o ar oco e quente que por ali passava e Ledim emendava a diversidade dos assuntos ali no alpendre com certo elogio à nova aquisição. Dissera que tomou de empréstimo cinco sacas de adubo e três litros de

veneno ao órgão do governo. E bem nessa hora que a conversa tomava vários sentidos e outros tantos assuntos, o touro landrês do vô fungou contra os mosquitos e todas as prozas dos homens ficaram suspensas e incompletas. Mais alguém soltou outra conta de aquisições ao Governo, mas o assunto acordado entre a maioria já era os relâmpagos que vinham do nascente desde anteontem. Outro acontecimento que se conta é a chegada da SUDENE, apelidada de modernidade; com as dinamites pra cavar buracos de poste e com os tratores que cavaram a estrada nova. Nessa época a Pedra do Urubu desapareceu, embora ainda estivesse lá. É mistério. Assim a primeira pedra do mundo virou apenas um problema à construção da BR.

ROQUER, Joao.

ilustração: Renato Adriano Rosa

In Infância do Mundo - Joao Roquer é musico e compositor. Suas cantigas podem ser conferidas no site: www. joaoroquer.blogspot.com . Esta “estoriazinha” faz parte dos folhetins “Infância do Mundo”. 46

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