COMPÊNDIO DE PSIQUIATRIA

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CompĂŞndio de Psiquiatria



Compêndio de Psiquiatria Marco Aurélio Baggio


Compêndio de Psiquiatria, Primeira Edição Copyright © 2011 by Di Livros Editora Ltda. Rua Dr. Satamini, 55 – Tijuca Rio de Janeiro – RJ/Brasil CEP 20270-232 Telefax: (21) 2254-0335 dilivros@dilivros.com.br www.dilivros.com.br

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Projeto gráfico/capa: CLR Balieiro Impresso no Brasil – Printed in Brazil

ISBN 978-85-8053-005-6


AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família paterna, os Baggio – Stacioli e à materna, os Alves Moreira – Ferreira Pinto. A meus filhos Ricardo e Laura, certeza de transcendência. Aos netos Luca e João Gabriel, alegrias avoengas. Às mulheres que se quiseram minhas alegrias e complemento por um tempo. Agradeço aos clientes que me sustentaram e me mantêm e que são a razão de minha dedicação à profissão de médico psiquiatra, psicoterapeuta e humanista. Ao mestre Jorge Paprocki, severo, amigo dileto, que soube manter-se na proa da psiquiatria mineira até amanhã. Aos alunos, colegas e amigos de diferentes épocas e lugares. Entre eles, o professor Sebastião Gusmão. Aos grandes autores seculares e leigos, que me mantêm na senda de buscar uma transcendência sem credo. A Alonso Fernandez, na Psiquiatria. A Camille Paglia, Umberto Eco, Carl Sagan, Harold Bloom, Ernst Mayr, Richard Dawkins, Michel Onfray, Sacha Calmon, expoentes da melhor cultura do Ocidente, que desmantelam as místicas avelhantadas de ignorantes pastores nômades do Oriente. A João Guimarães Rosa, maior mentor intelectual, gênio mineiro criador da sabedoria rosiana, a qual procuro, pálida e mineiramente, seguir.


Agradeço ainda à minha cidade que me sustenta e me seduz, Belo Horizonte. Ao Estado de Minas Gerais, torrão localizador e diretor da brasilidade que me é tão cara. Aos amigos da Academia Mineira de Medicina, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, da Arcádia e da Sobrames, esteios afetivos e intelectuais, exemplos de companheirismo, de dignidade e honradez, a minha gratidão e reverência.


APRESENTAÇÃO

É com justo orgulho que publico o primeiro Compêndio de Psiquiatria de autor brasileiro. Trata-se de obra profissional, pessoal, até mesmo despudoradamente confessional de um psiquiatra atuando na terceira capital do país há 46 anos. Escapei da folgada tentação de ler um só livro e assim virar coroinha de um único autor estrangeiro já falecido. Li e absorvi centenas de livros. Contemplei a passagem de dezenas de modas e vi bandas enfunadas passarem. Hoje empunho a bandeira de minha experimentada opinião. Sei que alguns dotados de mais recursos farão melhor em um item ou em outro. Com esta obra, com este resumo, quero servir de ombro para que os pósteros possam conceituar melhor, ver mais longe e fazer uma psiquiatria mais eficaz. Tenho a psiquiatria por escorreita e imprescindível disciplina médica, essencial para tratar o ser humano que padece de malevolências. O Compêndio de Psiquiatria é o sumo resumo que abarca amplo leque de temas sem possuir a pretensão de abranger todo o espectro da psiquiatria.



INTRODUÇÃO

A psiquiatria abarca um terço da Medicina: clínicas médicas; cirurgias, e psiquiatria. Após os avanços conceituais e o aparecimento dos psicofármacos específicos na segunda metade do século passado, a psiquiatria avançou pouco. Novas patologias psíquicas têm avassalado o campo. Para as quais ainda não se obteve conceituação pertinente nem surgiram práticas ou procedimentos terapêuticos específicos e eficazes. O capitalismo urbano globalizado internético progrediu muito, forçando as pessoas a se exporem a uma enxurrada de estímulos e de informações tóxicas, em sua maioria. O psiquiatra atento constata que vem aumentando o índice de infelicidade e de inquietude na população urbana mundial. O ser humano necessita de tempos largos e calmos para desfrutar de seus afetos, de seus sentimentos e poder manifestar suas emoções. O homem vive consumindo futuro, em prolepse suave e estuante. Se espicaçado, acicatado por um entorno efervescente, a pessoa perde a tranquilidade, tem perturbado seu bem-estar e seu talante. Passa a viver disperso, esparramado, dilacerado. Torna-se ineficaz como sujeito de si mesmo e infeliz como pessoa. A infelicidade crônica é a mãe da tristeza. A tristeza é a fonte de toda psicopatologia. Esta, por sua vez, exaure, depleta os cabedais instintivos e pulsionais da endogeneidade do indivíduo. Este passa a viver aquém


de seu desejo e a menor de suas possibilidades. Sofre com a percepção de viver na lama de não ser o que se quis. A pessoa, à medida que vive e envelhece, não se realiza como cambono e capataz de si mesmo. Infeliz, triste, depletado, irrealizado, o indivíduo se torna campo fértil onde medra a psicogênese da psicopatologia. Cabe à psiquiatria e ao psiquiatra diagnosticar e logo fazer estancar esta sangria de pessoalidade, tratando e revertendo o quadro clínico para padrões mais saudáveis de equacionamento psicoafetivo e existencial.


SUMÁRIO

Árvore Diagnóstica em Psiquiatria ........................................... 1 Depressão Devastada .................................................................. 10 Luto ............................................................................................. 16 O Endógeno. Depoimento ......................................................... 23 Subjetividade Humana. Caleidoscópio ..................................... 26 Estados Transicionais Associados a Precipitação ou Exacerbação de Psicopatologia ................................................. 32 Dor Humana ............................................................................... 36 Pequena Casuística ..................................................................... 39 Aspectos Clínicos, Psicanalíticos e Psiquiátricos das Neuroses Obsessivo-Compulsivas ...................................... 47 Esquizofrenia 1 ........................................................................... 54 Esquizofrenia 2 ........................................................................... 60 Psicose de CTI ............................................................................. 64 Vinheta Clínica: Personalidade Borderline ................................ 66 Anorexia, Bulimia e Autoataques ao Corpo ............................. 73 Ataque Epiléptico ....................................................................... 76 Distúrbios Comportamentais: Visão do Psiquiatra ................. 78 Personalidade Psicopática e Vínculo Conjugal ......................... 84 Personalidadessicopát P icas ....................................................... 91


Explicitando as Diferenças Psicopatológicas para o Diagnóstico Preciso ........................................................ 96 Por que o Mal? ............................................................................ 101 Gradiente da Maldade ................................................................ 107 Violência ..................................................................................... 109 A Violência e suas Raízes Psiquiátricas ..................................... 112 Violência na Família ................................................................... 129 Transtorno de Estresse Pós-traumático – TEPT ...................... 148 Suicídio ..................... .................................................................. 152 O Cliente de Hoje ....................................................................... 158 O Consulente Psiquiátrico de Hoje ........................................... 160 Diagnóstico Diferencial ............................................................. 163 Árvore Diagnóstica em Psiquiatria: Manifestações Patognomônicas para o Diagnóstico Psiquiátrico ................... 165 Sombrinha Sero toninérgica....................................................... 175 Psicofarmacoterapia e Psicoterapia: Dois Métodos Integrados para o Tratamento da Doença Mental ...................................... 186 Síndrome de Impregnação e Discinesias Tardias ..................... 198 Eletrochoque ............................................................................... 202 O Tratamento Psiquiátrico ........................................................ 204 Psiquiatria Geral ......................................................................... 206 Caráter......................................................................................... 213 Masculino ................................................................................... 217 Piedade Espúria .......................................................................... 221 Acrasia ou Fraqueza da Vontade................................................ 226 Dezessete Sonhos e Uma Graça ................................................. 234 Autoaconchego ........................................................................... 245 Distúrbios Sexuais: Perspectiva da Abordagem Psicanalítica .. 248 Função-Pai Função-Mãe........................................................ 262 Sujeitos Difíceis.......................................................................... 277 Sade – O Avesso do Bom Cristão .............................................. 296


Psicopatia: Estrutura ou Montagem Vivencial ......................... 303 A Psiquiatria Decifra a Perversão com a Ajuda da Filosofia .... 311 Marca-Eu: A Forjação de Uma Identidade ................................ 317 Conflito nas Relações Humanas e no Ambiente de Trabalho .. 321 Motivação e Resistência à Humanização .................................. 333 Vidas Passadas ............................................................................ 347 Psicoterapia: Técnica, Arte e Clínica ......................................... 352 Psiquiatria Social ........................................................................ 357 A Psiquiatria Avalia os Oito Pilares da Cultura Ocidental ...... 361 A Psiquiatria na Qualidade de Vida .......................................... 369 Homem: Indigitada Criatura ..................................................... 382 Habilidades e Virtudes Humanas .............................................. 389 Viver a Vida ................................................................................. 395 Brilhantes e Adoradores ............................................................. 398 Ode à Vida ................................................................................... 404



ÁRVORE DIAGNÓSTICA EM PSIQUIATRIA

PEQUENO CIRCUITO O cliente queixa-se de mal-estar, logo se revela infeliz, uma vez que possui pretensões excessivas, inalcançáveis. Endivida-se. Desemprega-se. Abre falência. O estilo de vida torna-se chato, rotineiro, esvaziado. Met e-se num emaranhado lodoso de providências comezinhas que não o desatolam da pobreza de sua vida. Carece de projeto, de propensão, de objetivo de vida. Sofre desamor, desengano, decepção. É pobre para efetuar o luto rápido de suas perdas. Mergulha na tristeza, no desânimo e cai em depressão irritada, sente agudamente que já não mais dá conta de lidar com o inferno de solicitações desencontradas que se tornou sua vida. Sente dó de si mesmo, um injustiçado pela má sorte. Luta, corcoveia, debate-se: mal. Debalde. Perdeu o talante, já não mais obtém eficácia. Chora e lamuria. Pergunta-se: “Onde foi que eu me perdi?”Fica perplexo. É aí que ele se torna um candidato a submeter-se aos deliciosos rigores delongados de um tratamento psiquiátrico. Se o diagnóstico em psiquiatria é fácil, a prescrição dos três únicos grupos de psicofármacos – tranquilizantes, antipsicóticos, antidepressivos – não é difícil, o tratamento psiquiátrico cumpre a maldição de ser longo. São necessários meses de intensiva relação psiquiatra-paciente para que este possa suplantar sua psicopatolo1


DEPRESSÃO DEVASTADA

Nestes últimos anos, estamos, a todo momento, nos deparando com um tipo novo de doença depressiva, a qual propomos denominar depressão devastada . O que encontramos é um cliente que tem, rigorosamente, todas as suas esferas somáticas, psíquicas e existenciais violentamente desorganizadas e acometidas. A vida desse sujeito, via de regra, fica centrada num trabalho boçal, que cada vez absorve mais energia, atenção e tempo, enquanto lhe proporciona menos gratificações emocionais, pouca realização pessoal e remuneração pecuniária insuficiente. Compelido a concentrar-se na tarefa cada vez menos realizadora, a pessoa desinveste do lazer reparador, da sexualidade poliversa, das relações interpessoais de sintonia fina e, mesmo, dos interesses pessoais mais criativos e mais gratificantes. Torna-se tosco em matéria de relações afetivas, intolerante no convívio social e empobrecido no que tange a sua cidadania. É como se, para ganhar (ganhar?) um dinheiro minguante, cada vez mais corroído pela desvalorização e pela incerteza, somente sobrasse ao cidadão a pena de um trabalho tão alienado quanto espoliante. Nas honestas depressões clássicas, da nosologia psiquiátrica tradicional, reconhecemos no paciente um brutal acometimento do estado de humor, no sentido de uma hipertimia negativa (depres10


siva), que se acompanha de lentidão psicomotora e inibição do fluxo do pensamento. O indivíduo mantém, de resto, preservadas as demais áreas de sua organização psíquica, tais como as relações familiares, as relações econômicas e, mesmo, a estrutura de suas instâncias intrapsíquicas, que se apresentam como apenas momentaneamente toldadas e obscurecidas pela cortina de fumaça depressiva. Na depressão devastada, ao contrário, encontramos: 1. A vida afetiva empobrecida ou francamente desmoronada, devido a rupturas afetivas dolorosas, escolhas objetais inadequadas, relações amorosas decepcionantes, frustrações repetidas do desejo de amar e de ser amado. 2. Vida erótica e sexual regredida ou ausente, privando o equilíbrio narcísico do sujeito de uma fonte vitalizadora legítima e indispensável, para fazer face às barras da vida. 3. Desorganização geral da vida de relação com amigos, parentes, colegas, cônjuge e filhos. 4. Baixa acentuada de capacidade de cuidar de familiares – cônjuge, filhos, pais, irmãos, avós, etc. – “a partir das necessidades deles”. 5. Capacidade de convivência social marcadamente restringida. 6. Ausência de qualquer projeto de vida viável, inserido no futuro próximo. 7. Vivência de um hoje pesado, espesso, desvinculado de qualquer articulação com o futuro. O passado é vivenciado com nostalgia, frequentemente referido como “eu era feliz e não sabia”. 8. Há uma cerração de perspectiva de futuro, com incapacidade de antecipar eventos futuros. 9. Completa desorganização da vida familiar, cindindo a família ou fragmentando-a, em diáspora – o portador de depressão devastada é frequentemente um genitor abandônico em relação a sua prole. 10. O cotidiano do sujeito é uma sucessão de crises e de incêndios que espoucam a cada momento. A vida torna-se uma luta por 11


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tentar apagar os focos de incêndio e em debelar as crises. Imersos nessas tarefas desgastantes, parece que ficam mais sujeitos a pequenas desgraças. Sem dúvida, fazem mais acidentes. São pessoas que vivem em uma situação profissional de grande precariedade. O desemprego ronda a estabilidade de sua renda. A condição econômico-financeira desses indivíduos apresenta-se devastada. O humor está corroído por um esforço sustentado por investimento em objetos inadequados, que redundaram em reiteradas decepções, fracassos e frustrações. O indivíduo tem a percepção confusa da perda de sua dignidade como cidadão. Finalmente, o indivíduo revela estar totalmente desacorçoado quanto à capacidade de orientar suas ações e dirigir seu destino.

Acometido de depressão devastada, é frequente o cliente descrever um arquipélago de sintomas vagos, inespecíficos, inarticuláveis segundo a nosologia médica tradicional. São queixas tão incômodas quanto mutáveis, tão dramáticas quanto anárquicas, tão dolorosas e incapacitantes quanto subjetivas. O clínico se esforça numa propedêutica que, ao fim, não configura uma síndrome reconhecível. Encaminhado ao psiquiatra, este, por sua vez, tem dificuldades de enquadrar a variedade sintomatológica do paciente em alguma das várias formas clássicas de depressão larvada ou atípica. Não confere o relato do paciente com o que está descrito nos tratados. É a vez de o psiquiatra ficar atônito. Ainda mais porque esse cliente, sujeito à depressão devastada, não tolera bem os pequenos efeitos secundários mesmo dos mais modernos antidepressivos e teima em perseverar no uso dos lorazepam e dos bromazepam, que já vinha tomando, com os quais sente um imediato alívio de seu inferno sintomático – alívio fugaz, enganoso, antiterapêutico, sabemos, mas barato e confortável. A possibilidade de inserção desse indivíduo num processo psicoterápico qualquer é praticamente nula. Ele não tem sossego para 12


verdadeiramente se cuidar, acossado que está a mil insurgências e acontecimentos absolutamente imperiosos – absorventes. Além disso, não tem mais capacidade de se entregar à confiança dos cuidados do outro, porque ostenta recentes marcas de decepções em suas relações afetivas com os seres humanos. Não é mais capaz de firmar um compromisso de certa duração porque a inquietude passa a ser a tônica de sua existência. Além disso, via de regra, se encontra semifalido financeira, quando não economicamente. Proponho chamar a esse quadro depressão devastada exatamente por isso: há um estado depressivo nítido, evidente, perceptível a um psiquiatra experimentado, mas a depressão está mascarada por sintomas e queixas novas, não habituais. O humor do paciente é antes irritado, amargo e esgotado, mais que triste. A história de vida do sujeito não configura um “quadro depressivo” conhecido. Ao contrário, o sujeito fala de um desastre e dele se desloca para um evento em que foi enxovalhado, daí para um caso triste, depois para o relato de um empreendimento brilhante que não se firmou. Fala, sobretudo de conflitos que se eternizam em impasse, em situações pendentes, em perplexidades.E descreve uma vida arregaçada, esgarçada. Devastada. O indivíduo nos procura solicitando ajuda. Mas não tem “sofrimento” para receber aquilo que podemos lhe oferecer. Quer uma cura rápida, uma providência terapêutica “para ontem”. Um milagre. Sai com uma prescrição de antidepressivo que não irá tomar ou, se o tomar, “passará mal” com o primeiro comprimido. Habitualmente, nossa capacidade profissional é posta à prova nesses casos. E é reprovada. O deprimido devastado segue sua ciranda por médicos, psiquiatras, curandeiros, mágicos, orientalistas, iogues, homeopatas, esotéricos, quiropráticos, consteladores, antroposofistas, radiestesistas, antiginásticos, acupunturistas, lacanistas, espiritistas, e que mais sei eu? É um pobre diabo, fruto desses longos árduos anos em que a esperança no país do futuro foi toldada e contingenciada por um dia a dia duro, pesado, melado.

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Proponho a armação de uma sistemática terapêutica para dar sustentação ao portador de depressão devastada . 1. Primeiro, é necessário fazer cessar as perdas em algum ponto. 2. Mostrar-lhe logo a gênese do seu quadro clínico. 3. Emprestar-lhe nossa cabeça – capacidade de antecipação dos eventos favoráveis futuros – transitoriamente, como um motor de arranque para arrancá-lo da paralisia e do estancamento depressivo. 4. Prescrever, de imediato, antidepressivo que incentive a psicomotricidade e a iniciativa, tipo imipramina (Tofranil) ou bupropiona (Bup) e, mais recentemente, escitalopran (Lexapro). 5. Acionar psicoterapia ativa, objetivada, já na primeira entrevista, visando a provocar os brios do cliente, indicando caminhos possíveis e fornecendo-lhe certeza de apoio profissional de qualidade. 6. Instilar esperança no futuro, a partir de avaliações mais otimistas com base em dados macroeconômicos e políticos. 7. Favorecer condições viáveis para um tratamento de início, intensivo, com duas consultas semanais por duas a seis semanas. 8. Utilizar toda a sorte a favor do cliente. Todo evento favorável deve ser instilado na circunstância de vida do cliente, visando a reforçá-lo narcisicamente. 9. Duas recomendações de prudência podem ajudar: Techne alupias – use todas as formas de evitar os desgostos, e Carpe diem – aproveite o dia. Faça o que é preciso. Isso ajuda o cliente a fazer o luto de suas decepções liberandose para o enfrentamento das coisas de sua vida. Assim, temos conseguido obter notáveis resultados terapêuticos com essa classe especial, moderna, urbana, de pacientes deprimidos.

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Bibliografia BAGGIO, Marco Aurélio.Erotika – conjecturas psicanalíticas . Belo Horizonte: Coopmed, 1992. . O psiquismo humano . São Paulo: Escuta, 1995. . Conversando . Belo Horizonte: Mazza, 1998. . Causação em psiquiatria: o endógeno. Belo Horizonte: Foglio, 2000. . Ajuda-te pelo conhecimento . Contagem: Santa Clara, 2009.

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gia, para depois crescer rumo às possibilidades inerentes de sua pessoa. É nesse ponto que a psiquiatria encontra sua dificuldade intrínseca. OS ESTADOS AFETIVOS DE HUMOR E DE ÂNIMO O diagnóstico em psiquiatria é muito fácil. Ele é realizado já na primeira consulta. É feito pelo psiquiatra treinado em psicopatologia, clínica e nosologia psiquiátrica. A vivência e o treinamento em psicoterapia psicanalítica de derivação freudiana são ainda absolutos. Conhecimentos e vivências humanísticas e literárias são altamente desejáveis como bagagem pessoal para o psiquiatra desempenhar bem suas funções. Um psiquiatra bem formado faz o diagnóstico de 95% de seus primeiros consulentes nos primeiros 50 minutos de consulta. Como se vê, o diagnóstico em psiquiatria é eminentemente clínico. Quase nunca é necessário apelar para exames complementares. Essa é uma enorme vantagem que os psiquiatras têm sobre todos os demais médicos. A principal queixa dos clientes é estar sofrendo de um mal-estar vago, incômodo, persistente. Melhor elucidado, esse mal-estar pode ser caracterizado como vivência de tensão emocional excessiva. Esta, por sua vez, decorre de ocorrências de vida em processo de evolução lenta, agarradora. É quando, então, o cliente dispara a relatar uma sucessão de impasses, de irresoluções, de situações inconclusas e insatisfatórias em sua vida. Ou, então, a tensão emocional excessiva provém de dentro da pessoa, deriva de alguma coisa que brota de dentro, de seu âmago, de suas entranhas. Denominamos tais frequentes ocorrências de “modo endógenodo adoecer psíquico”. Na maioria dos casos, há uma mistura dessas duas fontes de tensão emocional persistente: o endógeno e a reativa-relacional. 2


Vivendo por semanas ou meses em tensão constante, o cliente passa a relatar a vivência de um estado de apreensão, de ansiedade , ou mesmo de aflição. Diz que está vivendo com a respiração curta, rápida, como se estivesse aguardando para logo, no futuro imediato, um acontecimento decisivo em sua vida. Vive expectante de um evento agradável, favorável, facilitador de sua vida. Ou, no mais das vezes, teme que algo desairoso, deletério, prejudicial o irá, breve, atingir. Os sintomas da ansiedade são adstritos aos cardiorrespiratórios: boca seca, pupilas dilatadas, taquipneia, taquicardia. A postura existencial da pessoa é a de quem quer devorar o futuro, fazer acontecer logo o desejado ou o temido. Daí a ânsia. Vivenciando meses em ansiedade, esta azeda, deteriora, envinagra, torna-se angústia. Angústia é um estado de amofinamento da pessoa, que se sente oprimida pelo peso da vida. Angor é aperto, constrição, destituição das livres disponibilidades da pessoa. Esta se sente cerceada em sua liberdade. Relata que se sente apremiada, como se a vida e o mundo lhe pesassem sobre as costas e sobre os ombros. A angústia é corporal, vivencial, encarnada em toda a corporeidade da pessoa. O angustiado sente que já está vivendo aquém, a menor, do que vivia antes. Sabe-se prejudicado no âmbito de suas relações humanas todas. Sua fácies, seu aspecto, já é de alguém que está sofrendo passivamente. Sofrimento derivado da quantidade de situações existenciais e relacionais mal transadas e irresolvidas, que vêm se amontoando nos últimos meses ou anos. Passaram a pesar sobre sua carcaça e a inibir sua já pequena capacidade de dar solução à imensidão de contenciosos que se acumularam, contendo e perturbando o livre fluir das coisas gostosas da vida. Dada a cronicidade da angústia, ela, ao mesmo tempo, deriva e provém das mutações endogenotimicocinéticas da dimensão encarnada, endógena, da pessoa, como logo depois, uma vez instalada, o estado angustioso, propicia a que a dimensão endógena do adoecer psíquico seja reforçada por efeito secundário de rebote.

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O que quero afirmar é que os estados angustiosos tendem a persistir e a se realimentar em circuito psicopatológico persistente. A angústia funciona como nuvem que ensombrece o sol da vida da pessoa. Facilita tropeços, atos falhos, erros, enganos e maiores desenganos. Cão danado, todos a eles. A pessoa angustiada tornase soturna, pesada, de contato desagradável. Apresenta-se aos demais como alguém que suporta o peso da vida e do mundo como se ele tivesse se derramado sobre o seu corpo. Indiretamente, nos acusa disso. A angústia, invadindo a existência e a corporeidade da pessoa, ao cabo de poucos meses se transforma em depressão . Estado depressivo. Uma vivência de perda irremissível, real, concreta, de fato. Ou imaginária, ilusória, fantasiosa, se instala, forte, no psiquismo da pessoa. Perda dispara inexorável sentimento de tristeza. Tristeza acarreta que a pessoa perca a fluência, a leveza e a estuância de existir, decaindo de uma vida em perfeição maior para um estágio de vida em perfeição menor. A tristeza é sempre má conselheira. Tende a persistir, uma vez que a tristeza torna-se refratária à vivência do bom, do bem e da alegria. Se a alegria é a melhor coisa que existe, sumo excelso da vida, ela, a alegria, tende a consumir-se a si mesma. Já a tristeza possui a propriedade de alimentar-se a si mesma. Daí sua malignidade psicopatológica. Angústia sustentada atrai desacerto e desgraça. Surge a perda que induz a vivência de tristeza. Angústia azar depressão.

perda

tristeza luto não realizado

Está pronto, montado, o circuito psicopatológico da depressão. Esta logo se acompanha de desânimo e de depleção da capacidade operativa, caindo o desempenho pessoal e funcional do sujeito. Logo o quadro se completa com a pessoa imersa no pessimismo que passa a pontificar em todos os atos e momentos de sua vida. Inibição e desinteresse pela vida sexual escoltam o quadro depressivo. 4


O pior sucede quando a pessoa, imersa em um dos cinquenta tipos psicopatológicos de depressão já mapeados, bem descritos na literatura da clínica psiquiátrica, é acometida de duas pragas existenciais. A acrasia ou a perda da capacidade de fazer vigorar a própria vontade. A anedonia, que é a incapacidade da pessoa de voltar a sentir o prazer e a alegria legítimos, provenientes do contato, do trabalho bem realizado e do convívio humano de boa e natural qualidade. Esgotado em sua vontade, o deprimido já não mais se faz valer. Cai em progressivo desvalor pessoal. Carenciado por não usufruir de prazeres e de satisfações legítimos, por desgosto, o indivíduo se enlanguece e descai... Impossibilitado de reabastecer suas energias internas e restaurar suas reservas de endogeneidade salutar mediante o desfrute da alegria e do prazer, o deprimido torna-se um ser em descaimento, mergulhando em parafuso no vórtice de um círculo vicioso. Tal qual parafuso que, quanto mais voltas dá, mais afunda na madeira. Nós, psiquiatras, nos tornamos hábeis em logo perceber, ao primeiro contato, a fácies deprimida e o aspecto embatumado, mocorongo, do corpo da pessoa deprimida. Mas algo de apreensão mais sutil está sempre presente em todo e qualquer estado depressivo. Trata-se de hipertimia negativa, ou seja, baixa de humor. O humor brota, tal qual água do lençol freático, proveniente da dimensão endógena que emana de nossa corporeidade, de nossa biologia. O humor se traduz por estado de ânimo, de disposição para arrostar o nascer do dia. Se o acaso é responsável por muita coisa que nos acontece, o humor é o tempero que dá sabor e vivacidade à nossa vida. Alegria, bom humor, sorte, bons encontros e trabalho bem realizado, a tempo e a hora, são os dispositivos existenciais que nos permitem viver com satisfação e plenitude. Esses componentes, quando comparecem imbricados e em boa quantidade, são os principais fatores contradepressores que nos imunizam das ofensas e das humilhações que a vida teima em nos acicatar. 5


A psicopatologia do campo depressivo é vasta, sombria, gótica e variada. Há angústia? Perda? Tristeza? Desânimo? Baixa de humor? Acrasia? Anedonia? Pessimismo? Desinteresse pelas coisas mundanas e pelo sexo? Bem, logo entrará em jogo um décimo terrível operador: a falta de dinheiro. O deprimido tende a perder cabedais. Logo, terá incapacidade crescente de ganhar dinheiro. A falta de dinheiro, em nosso tempo, é a praga urbana capitalista mais devastadora dos estoques endógenos de monoaminas neurotransmissoras (serotonina, dopamina e noradrenalina, sobretudo), responsáveis pelo delicado balanço de nosso humor. De dez componentes sintomáticos, a presença de apenas três ou quatro é o bastante para se fazer o diagnóstico de depressão. Vejam como é fácil. Em psiquiatria, a clínica é soberana. E não dá erro. Há vários tipos de patologia do humor. Existe o humor ansioso, aflito, afobado. O humor irritado, nervoso, briguento, querelante. O humor levemente rebaixado, levemente pessimista, algo irritado, crônico ou até inato, ao qual chamamos de distimia. Existe humor furioso, imperativo, impulsivo que pode atingir as raias da delinquência ou da criminalidade. Existe o humor evidentemente rebaixado, de intensidade moderada, que acomete a maioria absoluta dos estados depressivos. Existe o humor de derivação de fatores endógeno e reativo, que vitima grande parte da população urbana mundial. Por fim, há o humor melancólico, fortemente rebaixado, crônico, quase sempre decorrente de psicopatologia endógena acometida constitucionalmente. O bom humor é o tempero da vida. A depressão condiciona um destino funesto para a pessoa. O deprimido tende a fazer más escolhas em parceria amorosa, em amizades, em negócios, em companhias. Sobretudo, a pessoa deprimida possui forte propensão em escolher e meter-se em vícios autodestrutivos.

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Cabeça de galinha machucada, todo o galinheiro vai lá nela bicar... A depressão escancara as portas para a entrada da infelicidade. Paradoxalmente, o que o deprimido mais quer é ver a própria caveira. Mas infelicidade consola a pessoa deprimida de que ela foi, injusta e trapaceiramente, prejudicada pela vida, pelo mundo, ou pelas pessoas de suas relações. Boazinha, vinha vivendo incautamente sua vidinha – sem prudência, sem argúcia e sem sabedoria –, quando, súbito, foi assomada pela avalanche depressiva. Essa percepção vivenciada provém de uma deformação catatímica. Mais destituições e desgraças a justificam perante o tribunal da consciência do deprimido a baixa estima que o acomete. A depressão arromba as portas para a entrada de acidentes, de feridas e de atos falhos autodestrutivos. O deprimido convoca as energias negativas do azar. Sabe-se que uma em cada sete pessoas irá morrer vitimada por um dos 200 tipos de câncer. Está constatado que certos cânceres aparecem seis meses após a pessoa mergulhar num estado depressivo, decorrente de uma perda afetiva substancial. Depressão abre as portas para a vespa do autodesprezo. A autoestima é o leme que nos aponta para adiante, o logo a seguir, o porvir. O homem é um ser posto em prolepse: tem por obrigação aproar o barco de sua existência rumo além, ao objetivo colimado. Ser humano consome futuro. O deprimido tem o leme de sua autoestima lesado, desmastriado. Flutua como uma casca de noz no oceano da vida, qual embarcação perdida sem ter um remador. A baixa autoestima erode o narcisismo da pessoa. Ela passa a se detestar por estar fracassando existencialmente, cada vez mais, a cada dia. Logo se odeia. Depois, entra em maquinação suicida para se vingar e para exterminar esse detestável indivíduo que se tornou. Em quase todo suicida encontram-se antecedentes bem conformados de um estado depressivo grave, subjacente ao ato de autoquiria. 7


Os estados depressivos são hoje responsáveis por 50% de todas as consultas nos ambulatórios do mundo urbano. Há quatro tipos principais de síndromes depressivas, o que facilita o diagnóstico. Síndrome depressiva com ansiedade e inquietação. Síndrome depressiva com ansiedade e inibição. Síndrome depressiva com inibição e apatia. Síndrome depressiva com queixas psicossomáticas variadas ou hipocondria. Depressões inserem-se desde o polo somático das doenças somáticas clássicas da clínica médica, passam pela dimensão endógena do adoecer psíquico, evoluem para os tipos endógenos-reativos, e desembocam no polo psicógeno, aquele decorrente das vicissitudes da vida de relação interpessoal. A imensa coorte das afecções psicossomáticas possui um fundo depressivo nítido, subjacente. Assim, dores crônicas, esquisitas; sintomas que não estão no gibi; cefaleias; LER, ou DORT; fibromialgias; doenças autoimunes; distúrbios alimentares, seja anorexia, seja bulimia, seja obesidade; distúrbios sexuais; distúrbios de controle de impulsos; drogadicções; tensão pré-menstrual, afecções reumáticas, possuem fortes correlações com a patologia depressiva. A vida é árdua, desgastante e dura. E o pior são os primeiros cinquenta anos. A civilização mói, desgasta e entristece seus filhos. O cidadão, hoje, tem que dar conta de operacionalizar muito bem, a tempo e a hora, a multiplicidade de solicitações que deve cumprir. Além disso, é assomado pelas exigências imperativas e muitas vezes incongruentes das quais tem que dar conta, sem pirar e sem fracassar. É dessa maneira que os estoques bioquímicos de monoaminas neurotransmissoras, que constituem a dotação em estoque estrito da dimensão endógena da pessoa, estão sempre solicitados, tal qual tanque de gasolina cujo combustível não convém se deixar esvaziar. Viver deprime, pois a vida dispende nossos estoques endógenos em desgaste longe do equilíbrio. Viver nos gasta e desgasta. 8


Por isso, viver é buscar sempre reabastecer-se com alegrias, realizações, satisfações e glórias cidadãs. Caluda! Prest’atenção. Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para a tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom. Seja? Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. 19 a ed. p. 202

Assim, temos uma gradação: Tensão ansiedade angústia perda tristeza luto mal elaborado depressão destituição da pessoa manifestações psicossomáticasdoenças crônicas suicídio. Em qual etapa está localizado o cliente postado em queixas à sua frente? Qual é a mais notável, a mais saliente? Ideias de suicídio; tentativas de suicídio; maquinações heteroagressivas, são as manifestações mais perigosas. Devem ser coibidas e tratadas com todo rigor, pois podem ser mortíferas. Uma vez diagnosticado em que etapa desse circuito está seu cliente, uma vez acolhido e devidamente tratado, está-se fazendo Medicina Preventiva, prevenindo para que seu cliente não evolua para as outras etapas mais destrutivas. Se existem cinquenta formas manifestas de depressão, tais como: Depressões larvadas. Depressões atípicas: delirante, de ruína, anestésica. Depressões “quase mudas” (quase assintomáticas). Depressões hipocondríacas. Depressões anancásticas, obsessivo-compulsivas. Depressões superagudas, de natureza confusional ou estuporosa. Existe também toda uma coorte de equivalentes depressivos: maus hábitos que mascaram o quadro depressivo de fundo, vícios, infecções crônicas renitentes, tricotilomanias, pruridos, abortamentos sucessivos, acidentes em rápida sucessão e outros. 9



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