David bohm totalidade e a ordem implicada

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DAVID BOHM A Totalidade e a Ordem Implicada

Tradução MAURO DE CAMPOS SILVA Revisão Técnica NEWTON ROBERVAL EICHENBERG EDITORA CULTRIX São Paulo Título do original: Wholeness and the Implicate Order Copyright - David Bohm 1980 Publicado originalmente por Routledge & Kegan Paul Ltd.

Sumário Agradecimentos Introdução CAPÍTULO 1 - Fragmentação e totalidade Apêndice: Resumo da discussão sobre as formas ocidentais e orientais de percepção da totalidade CAPÍTULO 2 - O reomodo - uma experiência com a linguagem e o pensamento 1. Introdução 2. Uma investigação em nossa linguagem 3. A forma do reomodo 4. A verdade e o fato no reomodo 5. O reomodo e suas implicações na nossa visão global de mundo CAPÍTULO 3 - A realidade e o conhecimento considerados como processos 1. Introdução 2. O pensamento e a inteligência 3. A coisa e o pensamento 4. O pensamento e o não-pensamento 5. O campo do conhecimento, considerado como processo CAPÍTULO 4 - Variáveis ocultas na teoria quântica 1. Os principais aspectos da teoria quântica 2. Limitações impostas ao determinismo pela teoria quântica 3. Sobre a interpretação do indeterminismo na teoria quântica 4. Argumentos a favor da interpretação do indeterminismo mecânico-quântico enquanto estado irredutível de ausência de lei 5. A solução de Bohr para o paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky - a indivisibilidade de todos os processos materiais 6. Interpretação preliminar da teoria quântica em termos de variáveis ocultas 7. Críticas de nossa interpretação preliminar da teoria quântica em termos de variáveis ocultas 8. Avanços em direção a uma teoria mais detalhada das variáveis ocultas 9. Tratamento das flutuações quânticas 10. O princípio da incerteza de Heisenberg 11. A indivisibilidade dos processos quânticos 12. Explicação da quantização da ação 13. Discussão sobre experimentos para sondar o nível subquântico 14. Conclusão CAPÍTULO 5 - A teoria quântica como indicação de uma nova ordem na física Parte A: O desenvolvimento de novas ordens, conforme o revela a história da física 1. Introdução 2. O que é ordem? 3. Medida 4. A estrutura como um desenvolvimento a partir da ordem e da medida 5. Ordem, medida e estrutura na física clássica 6. A teoria da relatividade 7. A teoria quântica CAPÍTULO 6 - A teoria quântica como indicação de uma nova ordem na física Parte B: A ordem implicada e a ordem explicada na lei física 1. Introdução 2. Totalidade indivisa - a lente e o holograma 3. Ordem implicada e ordem explicada 4. O holomovimento e seus 5. A lei no holomovimento


Apêndice: A ordem implicada e a ordem explicada na lei física CAPÍTULO 7 - O proceder do universo e da consciência: o dobramento e o desdobramento 1. Introdução 2. Resumo, contrastando a ordem mecanicista na física com a ordem implicada 3. A ordem implicada e a estrutura geral da matéria 4. A teoria quântica como indicação de uma ordem implicada multidimensional 5. A cosmologia e a ordem implicada 6. A ordem implicada, a vida e a força da necessidade global 7. A consciência e a ordem implicada 8. A matéria, a consciência e seu fundamento comum Notas

Agradecimentos O autor e o editor gostariam de agradecer, pela permissão em reproduzir material protegido por direitos autorais, a The Van Leer Jerusalém Foundation (Capítulos 1 e 2 de Fragmentation and Wholeness, 1976), aos editores de The Academy (Capítulo 3 de The Academy, vol. 19, na 1, fevereiro de 1975), à Academic Press Ltd (Capítulo 4 de Quantum Theory Radiation and High Energy Physics, parte 3, editado por D. R. Bates, 1962), e à Plenum Publishing Corporation (Capítulos 5 e 6 de Foundations of Physics, vol. 1, ns 4, 1971, pp. 359-81 e vol. 3, na 2, 1973, pp.13968).

Introdução Este livro é uma coleção de ensaios (ver "Agradecimentos") que representam a evolução do meu pensamento nos últimos vinte anos. Talvez seja útil uma breve introdução para indicar quais as principais questões que serão discutidas e como estão relacionadas. Eu diria que, em meu trabalho científico e filosófico, minha principal preocupação tem sido a de entender a natureza da realidade, em geral, e a da consciência, em particular, como um todo coerente, o qual nunca é estático ou completo, mas um processo infindável de movimento e desdobramento. Assim, quando olho para trás, vejo que mesmo quando criança, fascinava-me o enigma, na verdade o mistério, da natureza do movimento. Toda vez que se pensa em alguma coisa, essa coisa parece ser apreendida como algo estático, ou então como uma série de imagens estáticas. No entanto, na experiência efetiva do movimento, sente-se um processo de fluxo ininterrupto e indiviso, ao qual se relaciona a série de imagens estáticas no pensamento, como uma sequência de fotografias ("paradas") poderiam estar relacionadas à realidade de um carro em movimento. Esta questão, é claro, já foi, em sua essência, levantada filosoficamente há mais de dois mil anos nos paradoxos de Zenão; mas, até agora, não se pode dizer que teve uma solução satisfatória. Além disso, há a questão do que é a relação entre pensamento e realidade. Como mostra uma cuidadosa observação, o próprio pensamento encontra-se num processo efetivo de movimento. Isto quer dizer que se pode sentir, no "fluxo da consciência", uma sensação de fluência diferente daquela que se reconhece no movimento da matéria em geral. Desse modo, será que o próprio pensamento não faz parte da realidade como um todo? Mas, então, o que poderia significar uma parte da realidade "conhecer" outra, e até que ponto isto seria possível? O conteúdo do pensamento nada mais nos dá que "instantâneos" abstratos e simplificados da realidade, ou pode ir além, apreendendo de algum modo a própria essência do movimento vivo que sentimos na experiência efetiva? Está claro que, ao refletir e ponderar sobre a natureza do movimento, tanto no pensamento quanto no objeto do pensamento, chega-se inevitavelmente à questão da totalidade. A noção de que aquele que pensa (o Ego) está, pelo menos em princípio, completamente separado, e é independente, da realidade sobre a qual ele pensa, acha-se obviamente assentada com muita firmeza em toda a nossa tradição. (evidente que esta noção é quase universalmente aceita no Ocidente, mas no Oriente há uma tendência geral para negá-la verbal e filosoficamente, ao mesmo tempo em que tal abordagem permeia a maior parte da vida e da prática diária, assim como acontece no Ocidente.) Experiências gerais do tipo acima descrito, juntamente com uma grande dose de conhecimento científico moderno sobre a natureza e a função do cérebro como o local em que ocorre o pensamento, sugerem com muita força que uma tal divisão não pode ser mantida de modo consistente. Mas isto nos coloca frente a um desafio muito difícil: Como pensar coerentemente uma única, ininterrupta e fluente existência de fato como um todo, contendo tanto o pensamento (a consciência) como a realidade externa conforme a experimentamos? Evidentemente, isso nos leva a considerar a nossa visão de mundo total, que inclui nossas noções gerais acerca da natureza da realidade, juntamente com aquelas que dizem respeito à ordem global do universo, isto é, a cosmologia. Para enfrentar esse desafio, nossas noções de cosmologia e da natureza geral da realidade devem ter espaço em si para permitir uma avaliação consistente da consciência. Vice-versa, nossas noções de consciência devem ter espaço em si para entender o que significa ser o seu conteúdo a "realidade como um todo". Os dois conjuntos de noções, juntos, devem ser de tal forma a permitir uma compreensão de como a realidade e a consciência se relacionam. Essas questões, é claro, são muito amplas e, de qualquer maneira, talvez nunca sejam resolvidas por completo e definitivamente. Entretanto, sempre me pareceu importante haver uma contínua investigação de propostas que visem a enfrentar o desafio aqui assinalado. Obviamente, a tendência que prevalece na ciência moderna é contra um tal empreendimento. Em vez disso, ela é dirigida principalmente para previsões teóricas relativamente detalhadas e concretas que apresentam pelo menos alguma promessa de eventuais aplicações pragmáticas. Parece que é necessária agora uma explicação do por que de eu querer ir com tanta veemência contra a corrente geral predominante. Ao lado do que sinto ser a importância intrínseca de questões tão fundamentais e profundas, eu chamaria a atenção para o problema geral da fragmentação da consciência humana, que é discutido no Capítulo 1. Aí é proposto que as distinções largamente difundidas e infiltradas entre as pessoas (raça, nação, família, profissão, etc., etc.) e que agora impedem a humanidade de trabalhar em conjunto pelo bem comum, e mesmo pela sobrevivência, têm como um dos fatores-chave de sua origem um tipo de pensamento que trata as coisas como sendo inerentemente divididas, desconectadas e "fracionadas" em partes constituintes ainda menores. Cada parte é considerada como essencialmente independente


e existente por si mesma. Quando o homem pensa em si próprio dessa maneira, é inevitável que tenda a defender as necessidades de seu próprio "Ego" contra as dos outros; ou, se ele se identificar com um grupo de pessoas do mesmo tipo, defenderá esse grupo de um modo semelhante. Ele não consegue pensar seriamente na humanidade como a realidade básica, cujas reivindicações vêm em primeiro lugar. Mesmo que tente levar em consideração as necessidades da humanidade, sua tendência é vê-la como algo separado da natureza, e assim por diante. O que estou propondo aqui é que o modo geral como o homem pensa a totalidade, isto é, a sua visão geral do mundo, é crucial para a ordem global da própria mente humana. Se ele pensar a totalidade como constituída de fragmentos independentes, então é assim que sua mente tenderá a operar. Mas, se ele consegue incluir tudo, coerente e harmoniosamente, num todo global indiviso, ininterrupto e ilimitado (pois todo limite é uma divisão ou ruptura), então sua mente tenderá a mover-se de modo semelhante, e disto incluirá uma ação ordenada dentro do todo. Evidentemente, como já indiquei, nossa visão geral de mundo não é o único fator importante nesse contexto. De fato, deve-se dar atenção a muitos outros fatores, tais como emoções, atividades físicas, relações humanas, organizações sociais, etc. Mas, talvez, por não termos no presente nenhuma visão de mundo coerente, há uma tendência geral a ignorar quase que por completo a importância psicológica e social de tais questões. Minha sugestão é que uma visão de mundo apropriada, adequada para o seu tempo, geralmente é aquela dos fatores básicos essenciais para a harmonia no indivíduo e na sociedade como um todo. O Capítulo 1 mostra que a própria ciência está exigindo uma visão de mundo nova e não-fragmentária, no sentido de que a atual abordagem que analisa o mundo em partes independentemente existentes não funciona muito bem na física moderna. Mostra também que tanto na teoria da relatividade como na teoria quântica, noções que impliquem a totalidade indivisa do universo proporcionariam um modo muito mais ordenado de considerar a natureza geral da realidade. No Capítulo 2, tratamos do papel da linguagem em efetuar a fragmentação do pensamento. Mostramos que a estrutura sujeito-verbo-objeto das línguas modernas implica que toda a ação surge num sujeito separado, atuando ou sobre um objeto separado, ou então reflexivamente em si próprio. Esta estrutura difundida conduz, no todo da vida, a uma função que divide a totalidade da existência em entidades separadas, que são consideradas essencialmente fixas e estáticas em sua natureza. Indagamos então se é possível experimentar com novas formas de linguagem, onde o papel fundamental será dado ao verbo, antes que ao substantivo. Tais formas terão como conteúdo uma série de ações que fluem e se fundem umas nas outras, sem separações ou rupturas bem definidas. Assim, tanto na forma como no conteúdo, a linguagem estará em harmonia com o movimento fluente e ininterrupto da existência como um todo. O que se propõe aqui não é uma nova linguagem como tal, mas, de preferência, um novo modo de utilizar a linguagem existente - o reomodo (modo fluente). Desenvolvemos um tal modo como uma forma de experimentação com a linguagens que pretende principalmente esclarecer a função fragmentária da linguagem comum, em vez de fornecer um novo modo de falar que possa ser utilizado na comunicação prática. No capítulo 3, as mesmas questões são consideradas num contexto diferente. Ele começa com uma análise sobre como a realidade pode ser considerada, em essência, um conjunto de formas num movimento ou processo universal subjacente, e então pergunta como o nosso conhecimento pode ser apreciado da mesma maneira. Assim, o caminho pode estar aberto para uma visão de mundo em que a consciência e a realidade não estariam separadas uma da outra. Esta questão é discutida extensamente e chegamos à noção de que nossa visão geral de mundo é, ela própria, um movimento global de pensamento, que tem de ser viável no sentido de que a totalidade das atividades que dela fluem estejam geralmente em harmonia, tanto em si mesmas quanto em relação ao todo da existência. Uma tal harmonia é considerada possível somente se a visão de mundo fizer parte de um processo infindável de desenvolvimento, evolução e desdobramento, que se ajusta como parte do processo universal que é o fundamento de toda a existência. Os três próximos capítulos são um tanto mais técnicos e matemáticos. No entanto, grande parte deles deve ser compreensível para o leitor leigo, uma vez que as partes técnicas não são inteiramente necessárias para o entendimento, embora acrescentem um conteúdo significativo para aqueles que podem acompanhá-las. O Capítulo 4 lida com as variáveis ocultas na teoria quântica. No momento, a teoria quântica é o meio mais básico disponível na física para entender as leis fundamentais e universais relacionadas à matéria e seu movimento. Como tal, é evidente que deve ser seriamente considerada em qualquer tentativa de desenvolver uma visão de mundo global. A teoria quântica, conforme atualmente constituída, apresenta-nos um grande desafio, se é que estamos de fato interessados numa tal aventura, pois não há nela qualquer noção consistente do que possa ser a realidade subjacente à constituição e a estrutura universal da matéria. Logo, se tentarmos utilizar visão de mundo predominante, baseada na noção de partículas descobrimos que as "partículas" (tais como os elétrons) podem também manifestar-se como ondas, movimentar-se descontinuamente, que não há lei nenhuma que se aplique detalhadamente aos movimentos efetivos das partículas individuais, e que somente previsões estatísticas podem ser feitas sobre grandes agregados dessas partículas. Se, por outro lado, aplicarmos a visão de mundo em que o universo é considerado como um campo contínuo, descobrimos que este campo também deve ser descontínuo, bem como semelhante a partículas, e que está tão solapado em seu comportamento efetivo quanto é exigido na visão, em termos de partículas, da relação como um todo. Parece claro, então, que nos defrontamos com uma profunda e radical fragmentação, e também com uma confusão consumada, se tentamos pensar o que poderia ser a realidade tratada por nossas leis físicas. Atualmente, os físicos tendem a evitar essa questão adotando a atitude segundo a qual as nossas visões globais concernentes à natureza da realidade são de pouca ou nenhuma importância. Supõe-se que tudo o que conta na teoria física seja o desenvolvimento de equações matemáticas que nos permitam prever e controlar o comportamento de grandes agregados estatísticos de partículas. Essa meta não é considerada meramente por sua utilidade pragmática e técnica; mais do que isso, na maioria dos trabalhos em física moderna há uma pressuposição de que esse tipo de previsão e de controle é tudo do que trata o conhecimento humano. Essa espécie de pressuposição de fato está de acordo com o espírito geral de nossa época. Mas a minha principal proposta neste livro é que não podemos simplesmente prescindir de uma visão de mundo global. Se tentarmos fazer isso, veremos que acabamos ficando com quaisquer visões de mundo (geralmente inadequadas) que calhem de estar mais à mão. De fato, descobre-se que os físicos não são realmente capazes apenas de ocupar-se de cálculos com o objetivo de previsão e controle: eles julgam necessário usar imagens baseadas em algum tipo de noções gerais sobre a natureza da realidade, tais como "as partículas que são os blocos de construção do universo"; mas essas imagens agora são altamente confusas (p. ex., essas partículas movem-se descontinuamente e também são ondas). Em resumo, estamos aqui frente a um exemplo que demonstra a necessidade forte e profunda de algum tipo de noção da realidade em nosso pensamento, mesmo que seja fragmentária e confusa. Minha sugestão é que, a cada estágio, a ordem apropriada de operação da mente requer uma apreensão global do que é geralmente conhecido, não apenas em termos formais, lógicos, matemáticos, mas também como intuição, em imagens, sentimentos, uso poético da linguagem, etc. (Talvez possamos dizer que isso envolve a harmonia entre o "cérebro esquerdo" e o "cérebro direito".) Este modo de pensar global não é somente uma fonte fértil de novas ideias teóricas: é necessário para que a mente humana funcione de forma harmoniosa, o que, por sua vez, pode ajudar a tornar possível uma sociedade ordenada e estável. Conforme indicado nos capítulos iniciais, porém, isto requer um fluxo e


um desenvolvimento contínuos de nossas noções gerais de realidade. No Capítulo 4, a preocupação é dar um início ao processo de desenvolvimento de uma visão coerente do tipo de realidade que poderia ser a base das previsões matemáticas corretas efetuadas na teoria quântica. Tais tentativas têm sido geralmente recebidas na comunidade dos físicos de um modo um tanto confuso, pois há um sentimento generalizado de que, se deve haver alguma visão geral de mundo, ela tem de ser entendida como a noção "aceita" e "final" sobre a natureza da realidade. Mas, desde o começo, minha atitude tem sido a de que nossas noções referentes à cosmologia e à natureza geral da realidade estão em contínuo processo de desenvolvimento, e que talvez se tenha de iniciar com ideias que sejam meramente algo como um aperfeiçoamento daquilo que até agora se encontra disponível, e daí avançar para ideias melhores. O Capítulo 4 apresenta os reais e graves problemas que confrontam qualquer tentativa de prover uma noção consistente da "realidade quântica mecânica", e indica uma certa abordagem preliminar para uma solução desses problemas em termos de variáveis ocultas. No Capítulo 5, explora-se uma diferente abordagem dos mesmos problemas. Faz-se uma investigação das nossas noções básicas de ordem. A ordem em sua totalidade é, em última análise, evidentemente indefinível, no sentido de que permeia tudo o que somos e fazemos (linguagem, pensamento, sentimento, sensação, ação física, as artes, atividade prática, etc.). Porém, durante séculos, na física, a ordem básica tem sido aquela da grade retilínea cartesiana (ligeiramente ampliada, na teoria da relatividade, para a grade curvilínea). Durante esse tempo, a física passou por um enorme desenvolvimento, com o aparecimento de muitos aspectos radicalmente novos, mas a ordem básica permaneceu essencialmente inalterada. A ordem cartesiana é adequada para análises do mundo em partes existentes separadamente (por exemplo, partículas ou elementos de campo). Neste capítulo, contudo, examinamos a natureza da ordem com maior generalidade e profundidade, e descobrimos que tanto na relatividade como na teoria quântica a ordem cartesiana leva à sérias contradições e confusões. Isto porque ambas as teorias sugerem que o efetivo estado de coisas é a totalidade ininterrupta do universo, antes que a análise em partes independentes. Não obstante, as duas teorias diferem radicalmente em suas noções detalhadas de ordem. Assim, na relatividade, o movimento é contínuo, causalmente determinado e bem definido, enquanto que na mecânica quântica é descontínuo, não-causalmente determinado e não bem definido. Cada teoria está comprometida com suas próprias noções de modos de existência essencialmente estáticos e fragmentários (a relatividade com a de eventos separados, conectáveis por meio de sinais, e a mecânica quântica com um estado quântico bem definido). Vê-se assim a necessidade de um novo tipo de teoria que abandone esses compromissos básicos e, no máximo, recupere alguns aspectos essenciais das antigas teorias enquanto formas abstratas derivadas de uma realidade mais profunda, onde prevaleça a totalidade ininterrupta. No Capítulo 6 vamos mais além para encetar um desenvolvimento mais concreto de uma nova noção de ordem, que possa adequar-se a um universo de totalidade ininterrupta. Esta é a ordem implicada ou dobrada. Na ordem dobrada, espaço e tempo não são mais os fatores dominantes que determinam as relações de dependência ou independência de diferentes elementos. Em vez disso, é possível uma espécie completamente diferente de conexão básica de elementos, de onde nossas noções ordinárias de espaço e tempo, juntamente com aquelas de partículas materiais existentes separadamente, são abstraídas como formas derivadas da ordem mais profunda. Essas noções ordinárias de fato aparecem naquilo que é chamado de ordem explicada ou desdobrada, que é uma forma especial e distinta contida na totalidade geral de todas as ordens implicadas. No Capítulo 6, a ordem implicada é apresentada de um modo geral, e discutida matematicamente num apêndice. O sétimo e último capítulo, porém, é uma apresentação mais detalhada (embora não-técnica) da ordem implicada, incluindo sua relação com a consciência. Isso leva a uma indicação de algumas linhas ao longo das quais talvez seja possível enfrentar o desafio urgente de se desenvolver uma cosmologia, bem como um conjunto de noções gerais referentes à natureza da realidade que sejam adequadas ao nosso tempo. Finalmente, espera-se que a apresentação do material destes ensaios possa ajudar a transmitir ao leitor como o próprio assunto efetivamente se desdobrou, de maneira que a forma do livro seja, por assim dizer, um exemplo do que pode se entender como o seu conteúdo. CAPÍTULO 1 Fragmentação e totalidade O título deste capítulo é "Fragmentação e totalidade". É de especial importância considerar esta questão nos dias de hoje, pois agora a fragmentação será muito difundida, não apenas por toda a sociedade, mas também em cada indivíduo; e isto leva a uma espécie de confusão geral na mente, criando uma série interminável de problemas e interferindo tão seriamente com a clareza da nossa percepção que nos impede de resolver a maior parte deles. Assim, a arte, a ciência, a tecnologia e o trabalho humano em geral são divididos em especialidades, sendo cada uma delas considerada como essencialmente separada das outras. Não satisfeitos com esse estado de coisas, os homens propuseram assuntos interdisciplinares adicionais, com a intenção de unir essas especialidades. Mas esses novos temas, em última análise, serviram principalmente para acrescentar outros fragmentos separados. Portanto, a sociedade como um todo tem-se desenvolvido de forma tal que se encontra fracionada em nações e em diferentes grupos religiosos, políticos, econômicos, raciais, etc. Em correspondência, o ambiente natural do homem tem sido visto como um agregado de partes existentes separadamente, a serem exploradas por diferentes grupos de pessoas. Da mesma forma, cada ser humano individual foi fragmentado num grande número de compartimentos separados e conflitantes, conforme seus diferentes desejos, metas, ambições, lealdades, características psicológicas, etc., a tal ponto que em geral se admite que certo grau de neurose é inevitável, enquanto que muitos indivíduos, que vão além dos limites "normais" da fragmentação, são classificados como paranoides, esquizoides, psicóticos, etc.É evidente que é ilusória a noção de que todos esses fragmentos existem separadamente, e essa ilusão não faz outra coisa senão levar a um conflito e a uma confusão infindáveis. De fato, a tentativa de viver de acordo com a noção de que os fragmentos estão realmente separados é, em essência, o que tem levado à série crescente de crises extremamente urgentes, com as quais, hoje, nos defrontamos. Assim, como bem se sabe agora, esse modo de vida é o que vem ocasionando a poluição, a destruição do equilíbrio da natureza, a superpopulação, a desordem política e econômica em escala mundial, e a criação de um ambiente global que não é saudável, seja física ou mentalmente, para a maioria das pessoas que nele têm de viver. Individualmente, desenvolveu-se um sentimento muito difundido de impotência e desespero em face do que parece ser uma massa avassaladora de forças sociais desiguais, que está além do controle, e mesmo da compreensão, dos seres humanos por ela envolvidos. De fato, até certo ponto, sempre foi necessário e adequado para o homem, em seu pensamento, dividir e separar as coisas, de modo a reduzir os problemas a proporções controláveis; pois, evidentemente, se em nosso trabalho técnico prático tentássemos lidar com o todo da realidade de uma só vez, ficaríamos atolados. Logo, de certa forma, a criação de matérias especiais de estudo e a divisão do trabalho foram avanços importantes. Mesmo antigamente, a primeira compreensão que o homem teve de que não era idêntico à natureza foi um passo crucial, pois tornou possível uma espécie de autonomia em seu pensamento, que lhe permitiu ir além dos limites imediatos da natureza, a princípio em sua


imaginação e, finalmente, em seu trabalho prático. No entanto, essa habilidade do homem em separar a si próprio do ambiente, bem como em dividir e distribuir as coisas, levou em última instância a um largo espectro de resultados negativos e destrutivos, pois ele perdeu a consciência do que estava fazendo e, deste modo, estendeu o processo de divisão além dos limites dentro dos quais este opera adequadamente. Em essência, o processo de divisão é uma maneira conveniente e útil de pensar sobre as coisas, principalmente no domínio das atividades práticas, técnicas e funcionais (p. ex., dividir um terreno em diferentes campos onde várias safras serão cultivadas).Todavia, quando este modo de pensamento é aplicado de uma forma mais ampla à noção do homem a respeito de si mesmo e a respeito do mundo todo em que vive (isto é, à sua visão de mundo pessoal), então ele deixa de considerar as divisões resultantes como meramente úteis ou convenientes e começa a ver e a experimentar a si próprio, e ao seu mundo, como efetivamente constituídos de fragmentos separadamente existentes. Guiado por uma visão pessoal de mundo fragmentária, o homem então age no sentido de fracionar a si mesmo e ao mundo, de tal sorte que tudo parece corresponder ao seu modo de pensar. Ele assim obtém uma prova aparente de que é correta a sua visão de mundo fragmentária, embora, é claro, negligencie o fato de que é ele próprio, agindo de acordo com o seu modo de pensar, a causa da fragmentação que agora parece ter uma existência autônoma, independente da sua vontade e do seu desejo. Desde tempos imemoriais, os homens têm consciência desse estado de fragmentação aparentemente autônomo e projetam mitos de uma "idade de ouro" ainda mais antiga, antes que a ruptura entre o homem e a natureza e entre o homem e o seu semelhante tivesse ocorrido. De fato, o ser humano sempre buscou a totalidade - mental, física, social, individual. É instrutivo considerar que a palavra health (saúde) em inglês baseia-se na palavra anglo-saxônica hale, que significa "inteiro" [whole, em inglês: isto é, estar com saúde é estar inteiro, o que é mais ou menos o equivalente, penso, da palavra hebraica "shalem". Igualmente, o inglês holy [sagrado, santo baseia-se na mesma raiz que whole. Tudo isso indica que o homem sempre sentiu que a integridade ou totalidade é absolutamente necessária para que a vida valha a pena ser vivida. No entanto, durante eras, ele geralmente viveu em fragmentação. Certamente, a questão de por que isso tudo ocorre exige atenção cuidadosa e séria consideração. Neste capítulo, a atenção será focalizada no papel sutil, mas crucial, de nossas formas gerais de pensamento em sustentar a fragmentação e frustrar os nossos mais profundos anseios com vistas à totalidade ou integridade; com o fim de dar à discussão um conteúdo concreto, falaremos até certo ponto, em termos de pesquisas científicas correntes, que é um campo relativamente familiar para mim (embora, é claro, também se tenha em mente a importância global das questões em exame). O que será enfatizado, em primeiro lugar, na pesquisa científica e depois num contexto mais geral, é que a fragmentação está sendo continuamente produzida pelo hábito quase universal de tomar o conteúdo do nosso pensamento por "uma descrição do mundo como ele é". Ou então, poderíamos dizer que, nesse hábito, considera-se o pensamento como estando em correspondência direta com a realidade objetiva. Uma vez que o nosso pensamento é permeado por diferenças e distinções, segue-se daí que um tal hábito nos leva a enxergá-las como divisões reais, de modo que o mundo então é visto e experimentado como algo efetivamente dividido em fragmentos. A relação entre o pensamento e a realidade à qual ele se refere é, de fato, muito mais complexa do que a de uma mera correspondência. Assim, na pesquisa científica, boa parte do nosso pensamento está assentada em termos de teorias. A palavra "teoria" deriva do grego theoria, que tem, assim como a palavra "teatro" a mesma raiz numa palavra que significa "observar" ou "fazer um espetáculo". Assim, poder-se-ia dizer que uma teoria é, basicamente, uma forma de insight ou introvisão, ou seja, um modo de olhar para o mundo, e não uma forma de conhecimento de como ele é. Nos tempos antigos, por exemplo, os homens tinham a teoria de que a matéria celeste era fundamentalmente diferente da matéria terrena, e que era natural os objetos desta última caírem, assim como era natural que os objetos celestes, como a Lua, permanecessem lá em cima no céu. Com o advento da era moderna, porém, os cientistas começaram a amadurecer o ponto de vista segundo o qual não havia qualquer diferença essencial entre a matéria terrena e a matéria celeste. Isto, é claro, implicava que os objetos do céu, como a Lua, deveriam cair, mas por muito tempo não notaram esta implicação. Num súbito insight, Newton então viu que, assim como a maçã cai, o mesmo acontece com a Lua, e de fato com todos os objetos. Assim, ele foi levado à teoria da gravitação universal, em que todos os objetos eram vistos como caindo em direção a vários centros (p- ex., a Terra, o Sol, os planetas, etc.). Isto constituiu um novo modo de olhar para o céu, modo este em que os movimentos dos planetas não eram mais vistos mediante a antiga noção de uma diferença essencial entre matéria celeste e matéria terrena. Em vez disso, considerava-se esses movimentos em termos de velocidade de queda de toda a matéria, celeste e terrena, em direção a vários centros, e quando se via que alguma coisa não era explicada desse modo, procuravam-se, e frequentemente descobriam-se, planetas novos e até então invisíveis em direção aos quais caíam os objetos celestes (assim demonstrando a relevância dessa maneira de olhar). A forma newtoniana de insight funcionou muito bem por vários séculos, mas finalmente (como os antigos insights gregos que vieram antes) levou a resultados obscuros quando estendida a novos domínios. Desenvolveram-se, nesses novos domínios, novas formas de insight (a teoria da relatividade e a teoria quântica). Estas proporcionaram um quadro do mundo radicalmente diferente daquele de Newton (embora se tenha percebido que este último ainda é válido num domínio limitado). Se supuséssemos que as teorias propiciassem o verdadeiro conhecimento, correspondendo à "realidade como ela é", então teríamos de concluir que a teoria newtoniana era verdadeira até por volta de 1900, após o que, subitamente, tornou-se falsa, enquanto a relatividade e a teoria quântica tornaram-se a verdade. Uma conclusão assim tão absurda não se apresentará, contudo, se dissermos que todas as teorias são insights, que não são nem verdadeiros nem falsos, mas, antes, claros em certos domínios e obscuros quando estendidos além destes. Isto significa, porém, que não igualamos teorias com hipóteses. Como indica a raiz grega da palavra, uma hipótese é uma suposição, isto é, uma tàeia "colocada sob" o nosso raciocínio, como uma base provisória que deve ser testada experimentalmente quanto a sua verdade ou falsidade. No entanto, como se sabe muito bem, não pode haver nenhuma prova experimental conclusiva sobre a verdade ou falsidade de uma hipótese geral que vise a beneficiar o todo da realidade. Em vez disso, percebe-se (p. ex., não só dos epiciclos ptolomaicos ou do fracasso dos conceitos newtonianos pouco antes do advento da relatividade e da teoria quântica), que as teorias mais antigas tornam-se cada vez mais obscuras quando se tenta utilizá-las para obter insight em novos domínios. Uma cuidadosa observação sobre como isso acontece é, geralmente, o principal indício na direção de novas teorias, que virão a constituir posteriormente, novas formas de insight. Assim, em vez de supor que as teorias mais antigas tornam-se falsas num determinado momento, dizemos apenas que o homem está desenvolvendo continuamente novas formas de insight, que são claras até um determinado ponto e depois tendem a ficar obscuras. Não há, evidentemente, nesta atividade nenhuma razão para supor que existe ou existirá uma forma de insight final (correspondente à verdade absoluta), ou mesmo uma série uniforme de aproximações dessa forma final. Em vez disso, na natureza do caso, pode-se esperar o desenvolvimento interminável de novas formas de insight (que, no entanto, assimilarão certos aspectos fundamentais das formas mais antigas como simplificações, à maneira como a teoria da relatividade faz com a teoria newtoniana). Porém, conforme assinalamos antes, isto significa que nossas teorias devem ser consideradas basicamente como modos de olhar para o mundo como um todo (isto é, como visões de mundo), e não


como o "conhecimento absolutamente verdadeiro de como as coisas são" (ou como uma aproximação progressiva e uniforme desse conhecimento). Quando olhamos para o mundo por intermédio de nossos insights teóricos, o conhecimento fatual que obtemos será, evidentemente, moldado e formado pelas nossas teorias. Nos tempos antigos, por exemplo, o fato sobre os movimentos dos planetas era descrito em termos da ideia ptolomaica de epiciclos (círculos sobrepostos a círculos). No tempo de Newton, este fato foi descrito em termos de órbitas planetárias determinadas com precisão, analisadas mediante velocidades de queda em direção a vários centros. Mais tarde, apresentou-se o fato do ponto de vista da relatividade, de acordo com os conceitos de espaço/ tempo de Einstein. Ainda mais tarde houve uma especificação muito diferente do fato em termos da teoria quântica (que em geral fornece apenas um fato estatístico). Na biologia, o fato agora é descrito em termos da teoria da evolução, mas antigamente era expresso em termos de espécies fixas de seres vivos.Portanto, de um modo mais geral, uma vez dadas a percepção e a ação, nossos insights teóricos prevêem a principal fonte de organização do nosso conhecimento fatual. De fato, nossa experiência global é moldada desta maneira. Como Kant parece ter mostrado pela primeira vez, toda experiência é organizada segundo as categorias do nosso pensamento, isto é, nossos modos de pensar sobre espaço, tempo, matéria, substância, causalidade, contingência, necessidade, universalidade, particularidade, etc. Pode-se dizer que essas categorias são formas gerais de insight ou modos de olhar para todas as coisas, de maneira que, num certo sentido, são uma espécie de teoria (mas, é claro, esse nível de teoria deve ter-se desenvolvido muito cedo na evolução humana). Evidentemente, a clareza de percepção e de pensamento requer que geralmente estejamos conscientes de como a nossa experiência é moldada pelo insight (nítido ou confuso) proporcionado pelas teorias implícitas ou explícitas em nossos modos gerais de pensar. Com esta finalidade, é útil enfatizar que a experiência e o conhecimento são um só processo, em vez de pensar que o nosso conhecimento é sobre algum tipo de experiência separada. Podemos nos referir a esse processo único como experiência-conhecimento (o hífen indicando que são dois aspectos inseparáveis de um movimento total). Ora, se não estivermos conscientes de que nossas teorias são formas de insight sempre em transformação, proporcionando molde e forma à experiência em geral, teremos uma visão limitada. Isso pode ser expresso assim: a experiência com a natureza assemelha-se muito à experiência com seres humanos. Se alguém se aproxima de um outro homem com uma "teoria" fixa a respeito dele, como um "inimigo" contra o qual é preciso se defender, esse homem responderá da mesma maneira e, portanto, a "teoria" será, aparentemente, confirmada pela experiência; de maneira semelhante, a natureza responderá de acordo com a teoria com a qual for abordada. Assim, antigamente os homens pensavam que as epidemias eram inevitáveis, e este pensamento ajudou-os a se comportarem de modo tal a reproduzir as condições responsáveis pela sua disseminação. Com as mesmas formas científicas de insights, o comportamento dohomem é tal que elimina os modos de vida insalubres, responsáveis pela disseminação das epidemias, fazendo com que elas deixem de ser inevitáveis. O que impede os insights teóricos de avançar além das limitações existentes, transformando-se para ir ao encontro de novos fatos, é justamente a crença de que as teorias proporcionam um verdadeiro conhecimento da realidade (o que implica, é claro, que elas nunca precisam mudar). Embora o nosso moderno modo de pensar tenha, evidentemente, mudado muito em relação ao antigo, os dois têm um aspecto fundamental em comum: ambos estão geralmente limitados, como que por "antolhos", pela noção de que as teorias fornecem o verdadeiro conhecimento sobre a "realidade como ela é". Assim, ambos são levados a confundir as formas e moldes induzidos em nossas percepções pelo insight teórico com uma realidade independente do nosso pensamento e do nosso modo de olhar. Essa confusão é de crucial importância, uma vez que nos leva a abordar a natureza, a sociedade e o indivíduo em termos de formas de pensamento mais ou menos fixas e limitadas, continuando assim, aparentemente, a confirmar as limitações dessas formas de pensamento na experiência. Esse tipo de confirmação interminável das limitações em nossos modos de pensar é particularmente significativo no que diz respeito à fragmentação, pois, como foi mostrado anteriormente, toda forma de insight teórico introduz as suas próprias diferenças e distinções essenciais (p. ex., na antiguidade, uma distinção essencial era entre a matéria terrena e a celeste, ao passo que na teoria newtoniana era essencial distinguir os centros em direção aos quais toda a matéria estava caindo). Se considerarmos essas diferenças e distinções como modos de olhar, como guias para a percepção, isto não implica que denotem substâncias ou entidades que existam separadamente. Por outro lado, se considerarmos nossas teorias como "descrições diretas da realidade como ela é", então inevitavelmente trataremos essas diferenças e distinções como divisões, o que implica existência separada dos vários termos elementares que aparecem na teoria. Seremos, assim, levados à ilusão de que o mundo é efetivamente constituído de fragmentos separados e,como já foi indicado, isto fará com que atuemos de maneira tal que, de fato, produziremos a própria fragmentação subentendida em nossa atitude em relação à teoria. É importante dar uma certa ênfase a este ponto. Por exemplo, alguns poderiam dizer: "A fragmentação de cidades, religiões, sistemas políticos, conflitos na forma de guerras, violência geral, fratricídio, etc., são a realidade. A totalidade é apenas um ideal, em direção ao qual talvez devamos nos empenhar." Mas não é isto o que está sendo dito aqui. Antes, o que deve ser dito é que a totalidade é aquilo que é real, e que a fragmentação é a resposta desse todo à ação do homem, guiado pela percepção ilusória, que é moldada pelo pensamento fragmentário. Em outras palavras, justamente porque a realidade é um todo, o homem, com a sua abordagem fragmentária, inevitavelmente será atendido com uma resposta correspondentemente fragmentária. Portanto, é necessário que o ser humano dê atenção ao seu hábito de pensamento fragmentário, que tenha consciência dele, podendo assim eliminá-lo. Então, a abordagem da realidade pelo homem poderá ser total, e a resposta também o será. Entretanto, para que isso aconteça, é crucial que o ser humano esteja consciente da atividade de seu pensamento como tal; isto é, como uma forma de insight, um modo de ver, e não como uma "cópia verdadeira da realidade como ela é". Está claro que podemos ter inúmeros tipos diferentes de insights. O que se requer não é uma integração do pensamento, ou uma espécie de unidade imposta, pois qualquer ponto de vista imposto seria apenas um outro fragmento. Em vez disso, todos os nossos diferentes modos de pensar devem ser considerados como diferentes modos de olhar para a realidade una, cada um acompanhado de um certo domínio onde ele é nítido e adequado. Pode-se de fato comparar uma teoria com uma determinada visão de algum objeto. Cada visão dá apenas uma aparência do objeto em algum aspecto. O objeto todo não é percebido em nenhuma visão mas, em vez disso, é apreendido só unicamente como aquela realidade única que é mostrada em todas essas visões. Quando entendermos plenamente que as nossas teorias também funcionam desse modo, então não cairemos no hábito de ver a realidade e de atuar na direção dela como se ela fosse constituída de fragmentos separadamente existentes, o que corresponde ao modo como ela se apresenta ao nosso pensamento e à nossa imaginação no momento em que tomamos nossas teorias por "descrições diretas da realidade como ela é". Além de uma consciência geral do papel das teorias conforme acima indicado, é necessário dar especial atenção àquelas teorias que contribuem para a expressão de nossas visões de mundo pessoais. Isto porque, em grande parte, é nessas visões de mundo que nossas noções gerais sobre a natureza da realidade e sobre a relação entre o pensamento e a realidade são implícita ou explicitamente formadas. Quanto a isto, as teorias gerais da física desempenham um importante papel, pois considera-se que tratam da natureza universal da matéria da qual tudo é constituído, e do espaço e do tempo em termos dos quais todo movimento material é descrito. Consideremos, por exemplo, a teoria atômica, proposta pela (primeira vez por Demócrito há mais de 2.000 anos. Em essência, (1) essa teoria


nos leva a ver o mundo como constituído por átomos que se movem no vazio. As formas e características sempre cambiantes dos objetos de grande escala são vistos agora como resultados de arranjos cambiantes dos átomos em movimento. Evidentemente, essa visão foi, de certa forma, um importante modo de percepção da totalidade, pois possibilitou aos homens entender a enorme variedade de todo o mundo em termos dos movimentos de um único conjunto de componentes básicos, através de um único vazio que permeia toda a existência. No entanto, à medida que a teoria atômica se desenvolveu, e acabou por se tornar um grande apoio para uma abordagem fragmentária da realidade. Pois deixou de ser considerada um insight, uma maneira de olhar, e os homens passaram a ver como uma verdade absoluta a noção de que o todo da realidade não é, efetivamente, constituído de outra coisa a não ser "blocos de construção atômicos", todos trabalhando juntos mais ou menos mecanicamente. Evidentemente, tomar qualquer teoria física como uma verdade absoluta é algo que deve tender a fixar as formas gerais do pensamento em física e, assim, contribuir para a fragmentação. Afora isso, porém, o conteúdo específico da teoria atômica era tal que se mostrou especialmente capaz de conduzir à fragmentação, pois estava implícito nesse conteúdo que todo o mundo da natureza, juntamente com o ser humano, inclusive o seu cérebro, o seu sistema nervoso, a sua mente, etc., em princípio poderia ser entendido completamente em termos de estruturas e funções de agregados de átomos existentes separadamente. A confirmação dessa visão atômica por experimentos feitos pelo homem e por sua experiência em geral foi, é claro, tomada como prova da exatidão e, sem dúvida, da verdade universal dessa noção. Assim, quase que todo o peso da ciência, foi colocado em apoio a uma abordagem fragmentária da realidade. É importante assinalar, no entanto, que (como geralmente acontece nesses casos) a confirmação experimental do ponto de lista atômico é limitada. De fato, nos domínios abarcados pela teoria quântica e pela relatividade, a noção de atomismo leva a questões confusas, que indicam a necessidade de novas formas de insight, tão diferentes do atomismo como este o é de teorias que o precederam. Assim, a teoria quântica mostra que a tentativa de descrever e acompanhar uma partícula atômica com precisão minuciosa tem pouco significado. (Mais detalhes sobre este ponto são dados no Capítulo 5.) A noção de uma trajetória atômica tem apenas um limitado campo de aplicabilidade. Numa descrição mais detalhada vê-se que o átomo, sob muitos aspectos, comporta-se tanto como uma onda quanto como uma partícula, talvez possa ser melhor considerado uma nuvem mal definida, dependendo, em sua forma particular, de todo o ambiente, e inclusive do instrumento de observação. Logo, não se pode mais manter a divisão entre o observador e o observado (que está implícita na visão atomística que vê cada um deles como agregados separados de átomos). Em vez disso, tanto o observador como o observado são aspectos que se fundem e se interpenetram, de uma realidade total, que é indivisível e não-analisável. A relatividade nos leva a um modo de olhar para o mundo semelhante ao acima descrito em certos aspectos fundamentais (ver Capítulo 5 para mais detalhes sobre este ponto). A partir do fato de que, do ponto de vista de Einstein, não é passível nenhum sinal mais rápido que a luz, segue-se o colapso do conceito de corpo rígido. Mas este conceito é crucial na teoria atômica clássica, pois nela os constituintes fundamentais do universo têm de ser pequenos objetos indivisíveis, e isto só possível se cada parte de um tal objeto estiver rigidamente ligada a todas as outras partes. Numa teoria relativística, é necessário abandonar por completo a noção de que o mundo é constituído de objetos ou "blocos de construção" fundamentais. Em vez disso, é preciso ver o mundo em termos de fluxo universal de eventos e processos. Assim, como é indicado por A e B na Figura 1.1, em vez de pensar numa partícula, deve-se pensar num "tubo de universo". Figura 1.1 Esse tubo de universo representa um processo infinitamente complexo de uma estrutura em movimento e em desenvolvimento centrada numa região indicada pelos limites do tubo. Todavia, mesmo fora dele, cada "partícula" possui um campo que se estende através do espaço e se funde com os campos de outras partículas. Uma imagem mais vívida do tipo de coisa que se entende por isso é obtida considerando-se as formas de onda como estruturas em vórtice num curso fluente. Conforme é mostrado na Figura 1.2, dois vórtices correspondem a padrões estáveis de fluxo do fluido, centrados aproximadamente em A e em B. Evidentemente, esses vórtices devem ser considerados como abstrações, elaboradas para se destacarem em nossa percepção por meio do pensamento. Na verdade, é claro, os dois padrões de fluxo abstraídos se fundem e se unem, num único movimento total do curso fluente. Não há nenhuma divisão bem-definida entre eles, nem devem ser considerados como entidades existentes separadamente ou independentemente. Figura 1.2 A teoria da relatividade requer esse tipo de modo de olhar para as partículas atômicas, as quais constituem toda a matéria, incluindo, é claro, os seres humanos com seus cérebros, sistemas nervosos e instrumentos de observação que construíram e que utilizam nos laboratórios. Assim, abordando a questão por diferentes caminhos, a relatividade e a teoria quântica concordam no fato de que ambas implicam a necessidade de olhar para o mundo como um todo indiviso, no qual todas as partes do universo, incluindo o observador e seus instrumentos, se fundem e se unem numa totalidade. Nesta totalidade, a forma atomística de insight é uma simplificação e uma abstração, válidas somente em alguns contextos limitados. A nova forma de insight talvez possa ser melhor chamada de Totalidade Indivisa em Movimento Fluente. Esta visão implica que esse fluxo, em certo sentido, é anterior ao das "coisas" que podem ser vistas formando-se e dissolvendo-se nesse fluxo. Pode-se talvez ilustrar o que se quer dizer com isso considerando-se o "fluxo da consciência". Esta fluidez da consciência não é definível de maneira precisa, sendo, porém, evidentemente anterior às formas definíveis dos pensamentos e das ideias que podem ser vistos formando-se e dissolvendo-se no fluxo, como pequenos encrespamentos ou ondulações, ondas e vórtices num curso fluente. Como acontece com tais padrões de movimento numa torrente, alguns pensamentos reaparecem e persistem de um modo mais ou menos estável, enquanto que outros são evanescentes. A proposta para uma nova forma geral de insight é que toda matéria seja dessa natureza; isto é, há um fluxo universal que não pode ser definido explicitamente, mas que só pode ser conhecido implicitamente, conforme indicado pelas formas e configurações explicitamente definíveis, algumas estáveis e outras instáveis, que podem ser abstraídas do fluxo universal. Neste, mente e matéria não são substâncias separadas e sim aspectos diferentes de um movimento total e ininterrupto. Deste modo estamos aptos a olhar para todos os aspectos da existência como não separados uns dos outros e, desse modo, podemos pôr um fim na fragmentação implícita na atitude usual em relação ao ponto de vista atômico, que nos leva a separar tudo de maneira consumada. No entanto, podemos incluir aquele aspecto do atomismo que ainda proporciona uma forma válida de insight. Apesar da totalidade indivisa no movimento fluente, os vários padrões que dele podem ser abstraídos possuem uma certa autonomia e estabilidade relativas que, de fato, são fornecidas pela lei universal do movimento fluente. Agora, porém, temos em mente, de forma nítida, os limites dessa autonomia e estabilidade. Assim, podemos, em contextos específicos, adotar várias outras formas de insight que nos possibilitem simplificar certas coisas, tratando-as momentaneamente, e para certos propósitos limitados, como se fossem autônomas e estáveis, bem como, talvez, existentes separadamente. Porém, não precisamos cair na armadilha de olharmos para nós mesmos e para o mundo dessa maneira. Portanto, nosso pensamento não precisa mais levar à ilusão de que, efetivamente, a realidade é de natureza fragmentária, e às ações fragmentárias correspondentes que surgem


da percepção nublada por uma tal ilusão. O ponto de vista discutido acima é similar, em certos aspectos fundamentais, àquele sustentado por alguns dos gregos antigos. Esta similaridade pode ser ressaltada ao se considerar a noção de causalidade em Aristóteles. O filósofo distinguia quatro tipos de causas: Material Eficiente Formal Final Um bom exemplo em termos do qual se pode entender essa distinção é obtido quando se considera algo vivo, como uma árvore ou um animal. A causa material é então apenas a matéria, em que operam todas as outras causas, e a partir da qual a coisa é constituída. Assim, no caso de uma planta, a causa material é o solo, o ar, a água e a luz solar, que constituem a substância da planta. A causa eficiente é alguma ação, externa à coisa analisada, que permite o encaminhamento de todo o processo. No caso de uma árvore, por exemplo, o plantio da semente pode ser tomado como a causa eficiente. É de crucial importância, neste contexto, entender qual o significado de causa formal. Infelizmente, em sua conotação moderna, a palavra "formal" tende a se referir a uma forma exterior não muito significativa (p. ex., como em "roupa formal" ou "uma mera formalidade"). Todavia, na antiga filosofia grega, a palavra forma significava, em primeiro lugar, uma atividade formadora interna que é a causa do crescimento das coisas, bem como do desenvolvimento e da diferenciação das suas várias formas essenciais. Por exemplo, no caso de um carvalho, o que se indica pelo termo "causa formal" é o movimento interno total da seiva, do crescimento das células, da articulação dos ramos, folhas, etc., que é característico desse tipo de árvore e diferente do que ocorre nos outros tipos. Numa linguagem mais moderna, isto seria melhor descrito como causa formativa, para enfatizar que o que está envolvido não é uma mera forma imposta de fora, mas, antes, um movimento interno ordenado e estruturado, essencial para aquilo que as coisas são. Evidentemente, qualquer causa formativa deve ter um fim ou produto que ao menos esteja implícito. Assim, não é possível referir-se ao movimento interno da bolota dando origem a um carvalho, sem se referir simultaneamente ao carvalho que vai resultar deste movimento. Portanto, a causa formativa sempre implica causa final. E claro que também conhecemos a causa final como desígnio, mantido em mente por meio do pensamento (noção esta estendida a Deus, que era considerado como tendo criado o universo segundo um grande desígnio). Entretanto, o desígnio apenas um caso especial de causa final. Por exemplo, os homens geralmente almejam determinados fins em seus pensamentos mas o que efetivamente costuma emergir de suas ações é, em geral, algo diferente daquilo que estava em seus desígnios, algo que estava, porém, implícito no que faziam, embora não conscientemente percebido pelos que tomaram parte. Na visão antiga, considerava-se a noção de causa formal como tendo, essencialmente, a mesma natureza tanto para a mente como para a vida e para o cosmo como um todo. De fato, Aristóteles via o universo como um organismo único onde cada parte cresce e se desenvolve em sua relação com o todo e onde ela ocupa seu próprio lugar e sua própria função. Com respeito à mente, podemos entender esse tipo de noção em termos mais modernos voltando nossa atenção para o movimento fluente da consciência. Conforme indicado anteriormente, pode-se, em primeiro lugar, discernir vários padrões de pensamento nesse fluxo. Estes seguem-se um ao outro de modo relativamente mecânico, mediante associações determinadas por hábito e condicionamento. Evidentemente, tais mudanças associativas são externas à estrutura interna dos pensamentos em questão, de modo que essas mudanças atuam como uma série de causas eficientes. Contudo, ver a razão de algo não é uma atividade mecânica dessa natureza: em vez disso, tem-se a consciência de cada aspecto conforme assimilado num único todo, cujas partes estão todas interiormente relacionadas (assim como, por exemplo, os órgãos do corpo). Aqui é preciso enfatizar que o ato da razão é essencialmente um tipo de percepção intermediado pela mente, em certos aspectos semelhante à percepção artística, e não apenas a repetição associativa de razões já conhecidas. Assim pode-se ficar perplexo com um amplo espectro de fatores, coisas que não se ajustam, até que de repente há um lampejo da compreensão e, então, vê-se como todos esses fatores se relacionam como aspectos de uma totalidade (considere, p. ex., o insight de Newton sobre a gravitação universal). Não se pode de maneira adequada, fazer uma análise ou descrição detalhada de tais atos de percepção. Em vez disso, eles devem ser considerados como aspectos da atividade formadora da mente. Uma determinada estrutura de conceitos é então o produto dessa atividade, e esses produtos estão ligados pela série de causas eficientes que operam no pensamento associativo comum - e, como foi assinalado anteriormente, nesta visão a atividade formadora é considerada tão fundamental na natureza como o é na mente, de modo que as formas-produtos na natureza também estão ligadas por causas eficientes. Evidentemente, a noção de causa formativa é relevante para a visão da totalidade indivisa no movimento fluente, o que se constatou estar implicado nos modernos desenvolvimentos da física, notavelmente na teoria da relatividade e na teoria quântica. Logo, como tem sido assinalado, cada estrutura relativamente autônoma e estável (p. ex., uma partícula atômica) deve ser entendida não como algo que existe de modo independente e permanente, mas, antes, como um produto formado no movimento fluente total e que finalmente voltará a dissolver-se nesse movimento. Como ele se forma e mantém a si próprio depende, então, do seu lugar e da sua função no todo. Portanto, vemos que certos desenvolvimentos na física moderna implicam um tipo de insight da natureza que está relacionado às noções de causa formativa e de causa final, essencialmente semelhante àquelas maneiras de olhar comuns na antiguidade. No entanto, na maior parte dos trabalhos que hoje estão sendo feitos em física, as noções de causa formativa e de causa final não são consideradas de importância fundamental. Em vez disso, geralmente ainda se concebe a lei como um sistema autodeterminado de causas eficientes, operando num conjunto final de constituintes materiais do universo (p. ex., as partículas elementares sujeitas às forças de interação entre elas). Não se considera que estes constituintes sejam formados num processo global, e sendo assim eles não são considerados como órgãos adaptados ao seu lugar e à sua função no todo (isto é, aos fins a que serviriam nesse mundo). Antes, tendem a ser concebidos como elementos mecânicos de natureza fixa, existentes separadamente. A tendência predominante na física moderna contrasta fortemente com qualquer espécie de visão que dá primazia à atividade formativa na totalidade indivisa do movimento fluente. De fato, aqueles aspectos da teoria da relatividade e da teoria quântica que sugerem a necessidade de uma tal visão tendem a ser desenfatizados e, na verdade, pouco notados pela maioria dos físicos, pois são vistos em grande parte como aspectos dos cálculos matemáticos, e não como indicações da natureza real das coisas. Quando, na física, se usa a linguagem e o modo de pensar informais, que inspiram a imaginação e provocam o sentimento do que é real e substancial, a maioria dos físicos ainda fala e pensa, com uma total convicção da verdade, em termos da noção atomística tradicional de que o universo é constituído de partículas elementares que são "os blocos de construção básicos", dos quais tudo é feito. Em outras ciências, tais como a biologia, a força dessa convicção é ainda maior, pois entre os que trabalham nessas áreas há pouca consciência do caráter revolucionário do progresso na física moderna. Por exemplo, os modernos biólogos moleculares geralmente acreditam que a totalidade da vida e da mente pode, em última instância, ser entendida em termos mais ou menos mecânicos, por meio de algum tipo de extensão do trabalho que tem sido feito sobre a estrutura e a função das moléculas de ADN. Uma tendência semelhante já começou a dominar na psicologia. Chegamos, desse modo, ao muito estranho resultado de que, no estudo da vida e da mente, que são justamente os campos onde a causa formativa, atuando em movimento fluente indiviso e ininterrupto, é mais evidente à


experiência e à observação, existe agora a mais forte das crenças na abordagem atomística fragmentária da realidade. É claro que a tendência, predominante na ciência, para pensar e perceber em termos de uma visão pessoal de mundo fragmentária faz parte de um movimento maior que se tem desenvolvido ao longo das eras e que hoje permeia quase toda a nossa sociedade; mas, por sua vez, um tal modo de pensar e observar, presente na pesquisa científica, tende, muito acentuadamente, a reforçar a abordagem geral fragmentária, pois dá aos homens um quadro do mundo todo como não sendo constituído de outra coisa senão um agregado de "blocos de construção atômicos" existentes separadamente, e fornece evidências experimentais de onde se tira a conclusão de que esta visão é necessária e inevitável. Desse modo, as pessoas são levadas a sentir que a fragmentação nada mais é que uma expressão da "maneira como tudo realmente é", e que qualquer outra coisa é impossível. Portanto, há muito pouca disposição para buscar evidências em contrário. Na verdade, como já se indicou, mesmo quando surgem tais evidências, a exemplo da física moderna, a tendência geral é no sentido de minimizar sua importância ou mesmo ignorá-la por completo. Poder-se-ia até dizer que, de fato, no atual estado em que se acha a sociedade, e no modo atual de ensinar ciência, que é uma manifestação desse estado da sociedade, uma espécie de preconceito a favor de uma visão pessoal de mundo fragmentária é fomentado e transmitido (até certo ponto explícita e conscientemente, mas principalmente de uma maneira implícita e inconsciente). Porém, como já foi indicado, os homens que são guiados por uma tal visão de mundo fragmentária não podem, a longo prazo, fazer outra coisa a não ser tentar, em suas ações, quebrar a si próprios e ao mundo em pedaços, em correspondência com o seu modo geral de pensar. Uma vez que, em primeiro lugar, a fragmentação é uma tentativa de estender a análise do mundo em partes separadas além do domínio onde fazê-lo é adequado, trata-se, na verdade, de uma tentativa de dividir aquilo que na realidade é indivisível. Na próxima etapa, uma tal tentativa também nos levará a tentar unir o que na realidade não pode ser unido. Isto pode ser reconhecido de maneira particularmente clara em termos de agrupamentos de pessoas na sociedade (grupos políticos, econômicos, religiosos, etc.). O próprio ato de formar um tal grupo tende a criar um sentido de divisão e de separação dos membros em relação ao resto do mundo, mas, uma vez que eles estão, na realidade, ligados com o todo, isto não pode funcionar. Cada membro tem, de fato, uma conexão algo diferente, e mais cedo ou mais tarde esta diferença se revela como uma diferença entre ele e os outros membros do grupo. Toda vez que os homens separam-se do todo da sociedade e tentam unir-se por identificação dentro de um grupo, e claro que este acaba por manifestar disputas internas, o que leva ao colapso de sua unidade. Da mesma maneira, quando os homens, na prática de seu trabalho técnico, tentam separar algum aspecto da natureza, poder-se-á desenvolver um estado semelhante de contradição e desunião. O mesmo tipo de coisa acontecerá ao indivíduo se ele tentar separar-se da sociedade. A verdadeira unidade no indivíduo e entre o homem e a natureza, bem como entre o homem e o homem, só pode surgir numa, forma de ação que não tente fragmentar o todo da realidade. Nosso modo fragmentário de pensar, olhar e agir tem, evidentemente, implicações em cada aspecto da vida humana, isto é, por uma curiosa ironia, a fragmentação parece ser a única coisa universal na nossa vida, que funciona através do todo sem fronteiras ou limites. Isto ocorre porque as raízes da fragmentação são muito profundas e estão muito difundidas. Como já foi assinalado, tentamos dividir o que é uno e indivisível, a isto implica que na próxima etapa tentaremos identificar o que é diferente. Portanto, a fragmentação é, em essência, uma confusão em torno da questão da diferença e da semelhança (ou estado da unidade, one-ness), mas a clara percepção dessas categorias é necessária em cada fase da vida. Estar confuso sobre o que é diferente e o que não é, é estar confuso sobre tudo. Logo, não é acidental o fato de que nossa forma fragmentária de pensamento esteja levando a um espectro tão amplo de crises sociais, políticas, econômicas, ecológicas, psicológicas, etc., no indivíduo e na sociedade como um todo. Um tal modo de pensar implica um interminável desenvolvimento de conflitos caóticos e sem sentido, onde as energias de todos tendem a se perder em movimentos antagônicos ou em desentendimentos. Evidentemente, é importante e, sem dúvida, de máxima urgência desfazer essa confusão profunda e difundida que penetra toda nossa vida. De que adiantam tentativas de ação social, política, econômica ou de qualquer outro tipo, se a mente está presa num movimento confuso em que diferencia o que não é diferente e identifica o que não é idêntico? Uma tal ação será na melhor das hipóteses, ineficaz e, na pior, destrutiva. Nem tampouco será útil tentar impor algum tipo fixo de princípio "holístico" integrador ou unificador sobre a nossa visão pessoal de mundo, pois, como indicamos antes, qualquer tipo de visão pessoal de mundo fixa implica que não estamos mais tratando nossas teorias como insights ou maneiras de olhar, mas, antes, como "conhecimento absolutamente verdadeiro das coisas como elas realmente são". Assim, quer gostemos, quer não, as distinções, que se acham inevitavelmente presentes em qualquer teoria, mesmo "holística", serão falsamente tratadas como divisões, acarretando a existência separada dos termos que são assim distinguidos (de modo que, correspondentemente, o que não for distinguido desta maneira será falsamente tratado como absolutamente idêntico). Temos, pois, de ficar alertas para considerar seriamente e atentar com cuidado para o fato de que nossas teorias não são "descrições da realidade como ela é", mas, sim, formas de insight sempre em transformação, que podem indicar ou apontar uma realidade implícita e não descritível ou especificável em sua totalidade. Esta necessidade em estar assim atento vale até para o que está sendo dito aqui neste capítulo, no sentido de que não deve ser visto como "conhecimento absolutamente verdadeiro da natureza das fragmentações e da totalidade". Em vez disso, é também uma teoria que proporciona um insight sobre essa questão. Cabe ao leitor ver por si mesmo se o insight é claro ou obscuro, e quais são os limites de sua validade. Então, o que pode ser feito para pôr fim ao estado predominante de fragmentação? À primeira vista, esta pode parecer uma questão razoável, mas um exame mais cuidadoso nos leva a perguntar se de fato o é, pois pode-se verificar que essa questão tem pressuposições que não são claras. Falando em termos gerais, se alguém pergunta como resolver um problema técnico, por exemplo, pressupõe-se que, embora comecemos por não saber a resposta, nossas mentes, no entanto, estão suficientemente lúcidas para descobrir uma resposta, ou pelo menos para reconhecer a descoberta de uma resposta por parte de outrem. Mas, se todo o nosso modo de pensar estiver impregnado pela fragmentação, isto implica que não somos capazes de fazê-lo, pois a percepção fragmentária é, em essência, um hábito de confusão, em grande medida inconsciente, em torno da questão do que é diferente e do que não é. Portanto, no próprio ato em que tentamos descobrir o que fazer a respeito da fragmentação, continuaremos este hábito e, assim tenderemos a introduzir ainda outras formas de fragmentação. Isto não significa necessariamente, é claro, que não há nenhuma saída, mas sim que temos de dar uma pausa, de modo a não agirmos de acordo com os nossos habituais modos de pensar fragmentários, enquanto procuramos soluções que estejam ao nosso alcance. A questão da fragmentação e da totalidade é sutil e difícil, mais ainda do que aquelas que levam a descobertas fundamentalmente novas na ciência. Perguntar como acabar com a fragmentação e esperar uma resposta em alguns minutos faz ainda menos sentido do que indagar como desenvolver uma teoria tão nova quanto foi a de Einstein na época em que a elaborava e esperar que sejamos informados quanto ao que fazer em termos de algum programa expresso em fórmulas ou receitas. Um dos pontos mais difíceis e sutis sobre essa questão é justamente o de esclarecer o que se entende pela relação entre o conteúdo do pensamento e o processo do pensar que produziu


esse conteúdo. Uma das principais fontes de fragmentação é, sem dúvida, a pressuposição geralmente aceita de que o processo do pensamento é suficientemente separado e independente de seu conteúdo para nos permitir, em geral, a execução de um pensar claro, ordenado e racional, que pode julgar adequadamente este conteúdo como correto ou incorreto, racional ou irracional, fragmentário ou total, etc. Com efeito, como se tem visto, a fragmentação envolvida numa visão pessoal de mundo não esta apenas no conteúdo do pensamento, mas na atividade geral da pessoa que "faz o pensamento", encontrando-se, assim, tanto no processo do ato de pensar como no conteúdo. De fato, conteúdo e processo não são duas coisas que existem separadamente, mas, antes, constituem dois aspectos da visão de um movimento total. Logo, conteúdo fragmentário e processo fragmentário têm de desaparecer juntos. Precisamos tratar aqui da unidade [One-ness, no original. (N. do T.)] do processo do pensamento e do seu conteúdo, semelhante, em aspectos fundamentais, à unidade do observador e do observado: este fato tem sido discutido em relação à teoria da relatividade e à teoria quântica. Questões desta natureza não podem ser convenientemente respondidas enquanto estivermos presos, consciente ou inconscientemente a um modo de pensar que tenta analisar a si próprio em termos de uma suposta separação entre o processo do pensamento e o conteúdo deste, que é seu produto. Ao aceitarmos uma tal presunção, somos levados, na próxima etapa, a buscar alguma fantasia de ação por intermédio de causas eficientes que poriam fim à fragmentação no conteúdo, enquanto que no processo efetivo do pensamento ela permaneceria intacta. É necessário, porém, apreender de alguma maneira a causa formativa global da fragmentação, onde conteúdo e processo efetivo são vistos juntos, em sua totalidade. Poder-se-ia considerar aqui a imagem de uma multidão turbulenta de vórtices numa torrente. A estrutura e distribuição dos vórtices, que constituem uma espécie de conteúdo da descrição do movimento, não estão separadas da atividade formativa do fluxo da torrente, que cria, mantém e finalmente dissolve a totalidade das estruturas em vórtice. Portanto, tentar eliminar os vórtices sem mudar a atividade formativa da torrente seria, evidentemente, um absurdo. Assim que a nossa percepção é guiada, pelo insight adequado, para a significação do movimento total, é claro que não estaremos dispostos a tentar uma abordagem tão fútil. Em vez disso, observaremos a situação como um todo e ficaremos atentos e alertas para nos instruirmos sobre ela, e portanto para descobrirmos qual seria realmente um tipo de ação adequado, aplicável a esse todo, pondo, dessa maneira, fim à turbulenta estrutura de vórtices. Analogamente, quando de fato apreendermos a verdade da unidade (one-ness) do processo de pensamento que estivermos efetivamente realizando e do conteúdo desse pensamento que é o produto desse processo, então um tal insight nos possibilitará observar, olhar e aprender a respeito do movimento total do pensamento e, assim, descobrir uma ação que seja relevante em face desse todo, que porá fim à "turbulência" do movimento que é a essência da fragmentação em cada fase da vida. É claro que esse aprendizado e essa descoberta exigirão uma cuidadosa atenção e um árduo trabalho. Estamos preparados para dedicar uma tal atenção e um tal trabalho num amplo espectro de domínios: científico, econômico, social, político, etc. Até agora, porém, poucos ou nenhum deles têm-se dedicado à criação de insights no processo do pensamento, de cuja clareza depende o valor de tudo o mais. Fundamentalmente, é necessário uma compreensão cada vez maior do extremo perigo de se continuar com um processo fragmentário de pensamento. Tal compreensão nos daria a possibilidade de averiguar como o pensamento de fato opera aquele sentido de urgência e de energia exigido para se ir ao encontro da verdadeira magnitude das dificuldades com as quais a fragmentação nos põe hoje em confronto. Apêndice: Resumo da discussão sobre as formas ocidentais e orientais de percepção da totalidade Nas primeiras fases do desenvolvimento da civilização, as concepções do homem eram essencialmente de totalidade em vez de fragmentação. No Oriente (especialmente na Índia) essas concepções ainda sobrevivem, no sentido de que a filosofia e a religião enfatizam a totalidade e sugerem a futilidade da análise do mundo em partes. Por que, então, não abandonamos nossa abordagem ocidental fragmentária e adotamos essas noções orientais, que incluem não apenas uma visão pessoal de mundo que nega a divisão e a fragmentação, mas também técnicas de meditação que levam não-verbalmente todo o processo de operação mental àquele estado tranquilo de fluxo sereno e ordenado necessário para por um fim à fragmentação, tanto no processo efetivo do pensamento quanto em seu conteúdo? Para responder a essa pergunta, é útil começar familiarizando-nos com a diferença entre as noções ocidental e oriental de medida. Ora, no Ocidente, a noção de medida desempenha, desde a antiguidade, um papel fundamental na determinação da visão geral pessoal de mundo, bem como na do modo de vida implícito nessa visão. Assim, entre os gregos antigos, de quem derivamos uma grande parte de nossas noções fundamentais (por intermédio dos romanos), manter tudo em sua justa medida era considerado um dos elementos essenciais para uma boa vida (as tragédias gregas, por exemplo, geralmente retratavam o sofrimento do homem como consequência de ele ir além da medida apropriada das coisas). Com relação a isto, a medida não era considerada em seu sentido moderno, como sendo, basicamente, algum tipo de comparação de um objeto com um padrão ou unidade exterior. Ao contrário, este último procedimento era visto como uma espécie de exposição ou aparecimento ou manifestação exterior de uma "medida interna" mais profunda, que desempenhava um papel essencial em todas as coisas. Quando uma coisa ia além da medida que lhe era própria, isto não significava meramente uma nãoconformidade a um padrão exterior do que era certo; muito mais do que isto, significava uma desarmonia interior, de tal sorte que essa coisa estava fadada a perder sua integridade e partir-se em fragmentos. Pode-se obter algum insight nesse modo de pensar se levarmos em consideração os antigos significados de certas palavras. Assim, a palavra latina mederi, que significa "curar" (a raiz da moderna palavra "medicina") deriva de uma raiz que significa "medir". Isto reflete a visão de que a saúde física deve ser vista como o resultado de um estado de justa medida interna em todas as partes e processos do corpo. De modo semelhante, a palavra "moderação", que descreve uma das primeiras noções antigas de virtude, baseia-se na mesma raiz, e isso mostra que tal virtude era considerada como o resultado de uma correta medida interna subjacente às ações e comportamentos sociais do homem. Por outro lado, a palavra "meditação", derivada da mesma raiz, envolve uma espécie de pesagem, ponderação, ou medição de todo o processo do pensamento, que pode levar as atividades internas da mente a um estado de medida harmoniosa. Portanto, física, social e mentalmente, a consciência da medida interna das coisas era vista como a chave essencial para uma vida saudável, feliz e harmoniosa. E claro que a medida deve ser expressa mais detalhadamente por meio da proporção ou razão. Ratio é a palavra latina da qual deriva nossa moderna palavra "razão". Na concepção antiga, a razão é vista como insight numa totalidade de ratio ou de proporções, considerada interiormente pertinente à própria natureza das coisas (e não só exteriormente como uma forma de comparação com um padrão ou unidade). Evidentemente, essa ratio não é, necessariamente, uma mera proporção numérica (embora, é claro, inclua tal proporção). Mais precisamente, é em geral um tipo qualitativo de proporção ou relação universal. Quando Newton teve o insight da gravitação universal, o que ele viu pode ser expresso deste modo: "Assim como a maçã cai, o mesmo acontece com a Lua e, de fato, com todas as coisas. Para mostrar a forma da ratio ainda mais explicitamente, pode-se escrever: A : B :: C : D :: E : F onde A e B representam sucessivas posições da maçã em sucessivos momentos do tempo, C e D, as posições da Lua, e E e F as de qualquer outro objeto. Toda vez que encontramos um motivo teórico para alguma coisa, estamos exemplificando essa noção de ratio, no sentido de sugerir que, assim como os vários aspectos estão relacionados em nossa ideia, também o estão na coisa sobre a qual versa a ideia. A razão essencial ou ratio de uma coisa é então a totalidade das proporções internas em sua estrutura e no processo em que ela se forma, mantém a si própria e finalmente


se dissolve. Nessa visão, entender tal ratio é entender o "ser mais íntimo" dessa coisa. Infere-se, portanto, que a medida é uma forma de insight na essência de todas as coisas, e que a percepção do homem, seguindo os caminhos indicados por tal insight, será clara, realizando assim, geralmente, uma ação ordenada e uma vida harmoniosa. Com relação a isto, é útil lembrar as noções dos gregos antigos sobre medida na música e nas artes visuais. Essas noções enfatizavam que o conhecimento das medidas era uma chave para o entendimento da harmonia na música (p. ex., a medida como ritmo, como justa proporção na intensidade do som, como justa proporção na tonalidade, etc.). Da mesma maneira, nas artes visuais, a justa medida era vista como essencial à harmonia e à beleza totais (p. ex., considere a "Proporção Áurea", ou seja, a média e extrema razão). Tudo isso indica o quanto a noção de medida foi além da noção de comparação com um padrão externo, apontando para um tipo universal de ratio ou proporção interna, percebida tanto pelos sentidos como pela mente. Naturalmente, à medida que o tempo passava, essa noção de medida aos poucos começou a mudar, a perder sua sutileza e tornar-se relativamente grosseira e mecânica. É provável que isso tenha ocorrido porque a noção humana tornou-se cada vez mais rotineira e habitual, tanto com relação à sua exibição externa e medidas tomadas por comparação com uma unidade externa como com relação ao seu significado interno, enquanto ratio universal aplicável à saúde física, à ordem social e à harmonia mental. Os homens começaram a aprender essas noções de medida de maneira mecânica, conformando-se aos ensinamentos de seus antepassados ou de seus mestres, e não de modo criativo, por meio de um sentimento e uma compreensão íntimos do significado mais profundo da ratio ou proporção sobre a qual estavam aprendendo. Dessa maneira, gradualmente, a medida passou a ser ensinada como uma espécie de regra que devia ser imposta a partir de fora sobre o ser humano, que, por sua vez, impunha a medida correspondente, nos níveis físico, social e mental, em cada contexto em que estivesse trabalhando. Como resultado, as noções predominantes de medida não foram mais vistas como formas de insight. Em vez disso, afiguravam-se como "verdades absolutas sobre a realidade como ela é", que parecia aos homens uma coisa que eles sempre conheceram, e cuja origem era, com frequência, mitologicamente explicada como injunções obrigatórias dos Deuses. Haveria perigo e haveria maldade em questioná-las. O pensamento sobre a medida tendia assim a cair principalmente no domínio do hábito inconsciente e, como resultado, as formas induzidas na percepção por esse pensamento passaram então a ser vistas como realidades objetivas diretamente observadas, que eram essencialmente independentes de como foram pensadas. Mesmo na época dos gregos antigos, este processo tinha percorrido um longo caminho e, conforme iam percebendo isso, os homens começaram a questionar a noção de medida. Assim, Protágoras disse: "O homem é a medida de todas as coisas", enfatizando desse modo que a medida não é uma realidade exterior aos homens, existindo independentemente dele. Porém, muitos dos que tinham o hábito de olhar para tudo externamente também aplicaram esse modo de observação àquilo que Protágoras dissera. Logo, concluíram que a medida era uma coisa arbitrária, e sujeita à escolha ou ao gosto caprichoso de cada indivíduo. É claro que desse modo passaram por cima do fato de que a medida é uma forma de insight que tem de se ajustar à realidade global em que o homem vive, como é demonstrado pela clareza de percepção e harmonia de ação às quais ele leva. Um tal insight pode surgir adequadamente apenas quando um homem trabalha com seriedade e honestidade, colocando em primeiro lugar a verdade e a fatualidade, em vez de seus próprios caprichos e desejos. A rigidificação e a objetivação gerais da noção de medida continuaram a desenvolver-se até que, nos tempos modernos, a própria palavra "medida" veio a denotar principalmente um processo de comparação de algo com um padrão externo. Embora o significado original ainda sobreviva em alguns contextos (p. ex., na arte e na matemática), ele é geralmente considerado como tendo apenas uma espécie de importância secundária. Ora, no Oriente a noção de medida não desempenhou um papel tão fundamental. Em vez disso, na filosofia aí predominante, o imensurável (isto é, aquilo que não pode ser nomeado, descrito ou entendido por meio de qualquer forma de razão) é considerado como a realidade fundamental. Assim, no sânscrito (que tem uma origem comum ao grupo linguístico indo-europeu) há uma palavra, matra, que significa "medida", no sentido musical, e que, evidentemente, está próxima do grego "metron". Mas há uma outra palavra, maya, obtida da mesma raiz, que quer dizer "ilusão". Este é um ponto extraordinariamente significativo. Enquanto que para a sociedade ocidental, que deriva dos gregos, a medida, com tudo o que esta palavra implica, é a própria essência da realidade, ou pelo menos a chave para esta essência, no Oriente ela veio a ser usualmente considerada como sendo, num certo sentido, falsa e enganosa. Nesta visão, toda a estrutura e a ordem das formas, proporções e ratios que se apresentam à percepção e à razão [A palavra razão, em português, pode significar, entre outras coisas, tanto "a capacidade de raciocinar, julgar, compreender," como "a relação entre duas grandezas da mesma espécie'. No inglês, há duas palavras distintas para esses dois significados. A primeira é reason e a segunda, ratio. (N. do T.)] convencionais são consideradas uma espécie de véu que cobre a verdadeira realidade. Esta não pode ser percebida pelos sentidos, e sobre ela nada se pode dizer ou pensar. Está claro que os diferentes caminhos desenvolvidos pelas duas sociedades ajustam-se às suas diferentes atitudes em relação à medida. Assim, no Ocidente, a sociedade enfatizou principalmente o desenvolvimento da ciência e da tecnologia (dependentes da medida), ao passo que no Oriente a ênfase recaiu na religião e na filosofia (que estão dirigidas fundamentalmente para o imensurável). Se essa questão for considerada cuidadosamente, constatar-se-á que, num certo sentido, o Oriente tinha razão em ver o imensurável como a realidade fundamental. Pois, como já foi indicado, a medida é um insight criado pelo homem. Uma realidade que esteja além dele e que o antecede não pode depender de um tal insight. De fato, a tentativa de supor que a medida existe antes do homem e independe dele leva, como já foi visto, à "objetivação" do insight, de modo que este se torna rígido e incapaz de mudar, ocasionando eventualmente fragmentação e confusão geral, conforme é descrito neste capítulo. Pode-se especular que, talvez, na antiguidade, os homens que eram suficientemente sábios para entender que o imensurável é a realidade fundamental, também o fossem para ver que a medida é insight num aspecto secundário e dependente, mas não obstante necessário, da realidade. Portanto, eles podem ter concordado com os gregos que o insight em relação à medida é capaz de ajudar e trazer ordem e harmonia para as nossas vidas, ao mesmo tempo em que, enxergando talvez mais profundamente, reconhecerem que ele não pode ser o que há de mais fundamental a esse respeito. O que eles podem ter dito além disso é que quando a medida é identificada com a própria essência da realidade, isto é ilusão. Mas, então quando os homens aprenderam isso conformando-se com os ensinamentos da tradição, seu significado tornou-se em grande parte habitual e mecânico. Assim, tanto no Oriente como no Ocidente, o verdadeiro insight pode ter-se transformado em algo falso e enganoso devido ao procedimento de se aprender mecanicamente por conformidade aos ensinamentos existentes, em vez de fazê-lo por meio de uma apreensão criativa e original dos insights implícitos em tais ensinamentos. Naturalmente, é impossível voltar a um estado de totalidade que pode ter imperado antes que se desenvolvesse a ruptura entre Oriente e Ocidente (pois sabemos pouco, se é que sabemos alguma coisa, sobre esse estado). É preciso, isto sim, aprender de novo, observar e descobrir por nós mesmos o significado da totalidade. Evidentemente, precisamos estar cientes desses ensinamentos do passado, tanto ocidentais como orientais, mas imitá-los ou tentar conformar-nos a eles seria de pouca valia. Pois, como tem sido apontado neste capítulo, desenvolver um novo insight sobre a fragmentação e a totalidade requer um trabalho criativo mais difícil do que aquele necessário para fazer novas descobertas fundamentais na ciência, ou obras de arte grandes e originais. Nesse contexto, poder-se-ia dizer que alguém semelhante a Einstein em criatividade não é aquele que imita as ideias de Einstein, nem mesmo aquele que aplica essas ideias seguindo novos caminhos,


mas sim é aquele que aprende com Einstein e depois prossegue fazendo algo original, que é capaz de assimilar o que é válido no trabalho de Einstein e, ainda, ir além desse trabalho, percorrendo caminhos qualitativamente novos. Portanto, o que temos de fazer com respeito à grande sabedoria do passado, tanto do Oriente como do Ocidente, é assimilá-la e prosseguir com percepções novas e originais relacionadas à nossa atual condição de vida. Ao fazer isso, é importante que tenhamos uma clara visão do papel das técnicas, tais como as que são utilizadas nas várias formas de meditação. De certo modo, técnicas de meditação podem ser consideradas como medidas (ações ordenadas pelo conhecimento e pela razão) tomadas pelo homem para tentar alcançar o imensurável, isto é, um estado mental em que ele deixa de sentir uma separação entre si próprio e o todo da realidade. Mas, evidentemente, há uma contradição nessa noção, pois o imensurável é, se é que de fato ele é algo, justamente aquilo que não pode ser colocado dentro de limites determinados pelo conhecimento e pela razão do homem. Ora, em certos contextos especificáveis, as medições técnicas, entendidas no espírito apropriado, podem nos levar a fazer coisas das quais podemos obter insight, se estivermos atentos. Tais possibilidades, porém, são limitadas. Seria, pois, uma contradição em termos pensar na formulação de técnicas para fazer novas descobertas fundamentais na ciência ou obras de arte originais e criativas, pois a própria essência de tal ação é uma certa liberdade relativamente à sua dependência de outras, que seriam necessárias como guias. Como pode essa liberdade ser transmitida numa atividade em que a conformidade ao conhecimento de uma outra pessoa é a principal fonte de energia? E se as técnicas não são capazes de ensinar originalidade e criatividade na arte e na ciência, como seria possível a elas fazer-nos "descobrir o imensurável"? Com efeito, não há nada, direta e positivamente, que o homem possa fazer para entrar em contato com o imensurável, pois este deve estar muitíssimo além de qualquer coisa que o ser humano possa apreender com a mente ou executar com as mãos ou com seus instrumentos. O que o homem pode fazer é dar toda a sua atenção e dedicar todas as suas energias criativas para levar clareza e ordem à totalidade do campo de medida. É evidente que isso envolve não apenas a exibição externa da medida em termos de unidades externas, mas também a medida interna, como a saúde do corpo, a moderação na ação, e a meditação, que proporciona insight na medida do pensamento. Esta última é particularmente importante porque, como já foi visto, a ilusão de que o self e o mundo estão divididos em fragmentos origina-se do tipo de pensamento que vai além de sua medida adequada e confunde seu próprio produto com a mesma realidade independente. Para por fim a essa ilusão é necessário o insight, não apenas no mundo como um todo, mas também no modo como opera o instrumento do pensamento. Tal insight implica um ato de percepção original e criativo em todos os aspectos da vida, mental e física, tanto por meio dos sentidos como da mente; e talvez seja este o verdadeiro significado da meditação. Como vimos, a fragmentação tem sua origem, em essência, na fixação dos insights que formam a nossa visão pessoal global de mundo, o que dá continuidade, ininterruptamente, aos nossos modos habituais, geralmente mecânicos e rotineiros, de pensar sobre esses assuntos. Devido ao fato de a realidade primária situar-se além de qualquer coisa que possa estar contida nessas formas fixas de medida, esses insights devem finalmente deixar de ser apropriados, dando, assim, origem a várias formas de obscuridade ou confusão. Todavia, quando todo o campo de medida estiver aberto ao insight original e criativo, sem quaisquer limites ou barreiras fixados, então nossas visões globais de mundo deixarão de ser rígidas e todo o campo de medida entrará em harmonia, enquanto a fragmentação dentro dele chegará ao fim. Mas o insight original e criativo no âmbito de todo o campo de medida é a ação do imensurável. Pois quando esse insight ocorre, a fonte não pode estar no âmbito de ideias já contidas no campo de medida, mas sim no imensurável, que contém a causa formativa essencial de tudo o que acontece no campo de medida. O mensurável e o imensurável estão, assim, em harmonia e, de fato, pode-se ver que não passam de modos diferentes de considerar o todo uno e indiviso. Quando predomina uma tal harmonia, o homem pode, então, não somente ter um insight no significado da totalidade, mas, o que é muito mais importante, pode perceber a verdade desse insight em cada fase e cada aspecto de sua vida. Como Krishnamurti (1) ressaltou com grande vigor e clareza, isso exige que o homem dedique todas as suas energias criativas à investigação de todo o campo de medida. Um tal empreendimento talvez seja extremamente difícil e árduo, mas uma vez que tudo gira em torno disso, é claro que vale a atenção séria e a máxima consideração de cada um de nós. CAPÍTULO 2 O reomodo - uma experiência com a linguagem e o pensamento 1.Introdução No capítulo anterior, assinalou-se que o nosso pensamento é fragmentado, principalmente por ser tomado como uma imagem ou modelo do "que o mundo é". Dá-se por isso uma importância desproporcionada às divisões no pensamento, como se fossem uma estrutura amplamente difundida e infiltrada de rupturas efetivas, existentes independentemente, "naquilo que é", em vez de serem características meramente convenientes de descrição e de análise. Mostrou-se que tal pensamento ocasiona uma total confusão que tende a permear cada fase da vida, e que finalmente torna impossível a solução de problemas individuais e sociais. Vimos a urgente necessidade de por fim a essa confusão mediante uma cuidadosa atenção à unidade (one-ness) do conteúdo do pensamento, bem como ao efetivo processo de pensar que produz esse conteúdo. Neste capítulo, a principal ênfase será indagar sobre o papel da estrutura da linguagem em favorecer a realização desse tipo de fragmentação no pensamento. Embora a linguagem seja apenas um dos fatores envolvidos nessa tendência, é evidente que ele tem uma importância fundamental no pensamento, na comunicação e na organização da sociedade humana em geral. É claro que é possível tão-somente observar a linguagem como ela é, e tem sido, em vários grupos sociais e diferentes períodos da história, mas o que queremos fazer neste capítulo é experimentar com mudanças na estrutura da linguagem comum. Nesta experimentação, nosso objetivo não é produzir uma alternativa bem definida às estruturas atuais da linguagem. Em vez disso, é ver o que acontece à função da linguagem quando a alteramos e, assim, talvez, possibilitar um certo insight que nos esclareça como a linguagem contribui para a fragmentação geral. De fato, uma das melhores maneiras de se saber como alguém é condicionado por um hábito (como o é em grande parte o uso comum da linguagem) é prestar uma cuidadosa e sistemática atenção à reação global do indivíduo ao se "fazer o teste" para ver o que ocorre quando ele faz algo significativamente diferente da função automática e costumeira. Portanto, o ponto principal do trabalho discutido neste capítulo é avançar no que poderia ser uma experiência interminável com a linguagem (e com o pensamento). Isto é, estamos sugerindo que tal experiência deve ser considerada como uma atividade normal do indivíduo e da sociedade (como de fato tem sido considerado durante os últimos séculos com relação às experiências com a natureza e com o próprio homem). Assim, a linguagem (juntamente com o pensamento nela envolvido) será vista como um campo particular de função em meio a todo o resto, de modo que deixe de ser, com efeito, o único campo isento de investigação experimental. 2.Uma investigação em nossa linguagem


Nas investigações científicas, um passo crucial consiste em fazer a pergunta certa. De fato, cada pergunta contém pressuposições, em grande parte implícitas. Se essas pressuposições forem erradas ou confusas, então a própria pergunta estará errada, no sentido de que tentar respondê-la é algo que não tem significado. ? preciso, então, indagar se a pergunta é ou não apropriada. De fato, descobertas verdadeiramente originais na ciência e em outros campos geralmente têm envolvido essa indagação sobre antigas perguntas, e levado à percepção da sua impropriedade, permitindo desse modo a proposição de novas perguntas. Fazer isso costuma ser muito difícil, pois essas pressuposições tendem a ocultar-se bem fundo na estrutura de nosso pensamento. (Por exemplo, Einstein viu que as questões relacionadas com o espaço e com o tempo, bem como com a natureza particular da matéria, da maneira como eram comumente aceitas na física de seu tempo, envolviam pressuposições confusas que precisavam ser abandonadas, e assim ele foi capaz de formular novas questões, que levaram a noções radicalmente diferentes sobre o assunto.) Qual, então, será nossa pergunta, enquanto nos empenhamos nessa investigação em nossa linguagem (e em nosso pensamento)? Começamos com o fato da fragmentação generalizada. Podemos perguntar preliminarmente se há características da linguagem usada comumente que tendem a sustentar e a propagar essa fragmentação, bem como, talvez, a refleti-la. Um rápido exame mostra que uma característica muito importante desse tipo é a estrutura sujeito-verbo-objeto das sentenças, que é comum à gramática e à sintaxe das línguas modernas. Essa estrutura implica que toda a ação surge numa entidade separada, o sujeito, e que, em casos descritos por um verbo transitivo, esta ação atravessa o espaço entre eles até uma outra entidade separada, o objeto. (Se o verbo for intransitivo, como em "ele avança", o sujeito ainda é considerado uma entidade separada, mas a atividade é tomada como uma propriedade do sujeito ou como uma ação reflexiva dele, por exemplo, no sentido de que "ele avança" pode significar "ele avança a si próprio". Essa é uma estrutura difusa que, durante toda a vida, resulta numa função do pensamento que tende a dividir as coisas em entidades separadas, as quais são concebidas como essencialmente fixas e estáticas em sua natureza. Quando esta visão é conduzida ao seu limite, chega-se à visão de mundo científica predominante, onde tudo é visto como constituído fundamentalmente de um conjunto de partículas básicas de natureza fixa. A estrutura sujeito-verbo-objeto da linguagem, juntamente com a sua visão de mundo, tende a impor-se muito vigorosamente em nosso discurso, mesmo nos casos em que alguma atenção revelaria sua evidente impropriedade. Por exemplo, considere a sentença "está chovendo". Onde está o sujeito* que, de acordo com a sentença, seria "aquele que está fazendo chover"? *[Em inglês, no original, a sentença é it is raining, que traduzido literalmente seria "ele está chovendo". O it é pronome neutro, usado para designar objetos e animais. Portanto, pergunta-se "onde está o it"?, o que em português não faz sentido, pois, na verdade, o verbo chover é impessoal e o sujeito, inexistente. (N. do T.)] Evidentemente, haveria maior precisão em dizer: "A chuva está caindo." De maneira semelhante, costumamos dizer: "Uma partícula elementar age sobre a outra." Mas, como se assinalou no capítulo anterior, cada partícula é apenas uma abstração de uma forma de movimento relativamente invariável no campo total do universo. Assim, seria mais apropriado dizer: "Partículas elementares são movimentos contínuos mutuamente dependentes porque, em última instância, elas se fundem e se interpenetram." No entanto, o mesmo tipo de descrição também vigora no nível de uma escala maior. Portanto, em vez de dizer: "Um observador olha para um objeto", podemos mais adequadamente dizer: "A observação está ocorrendo, num movimento indiviso envolvendo essas abstrações comumente chamadas de 'ser humano', e de 'objeto para o qual ele está olhando'." Essas considerações sobre as implicações gerais das estruturas da sentença sugerem uma outra pergunta. Não seria possível mudar a forma sintática e gramatical da linguagem, de modo a dar ao verbo, e não ao substantivo, um papel fundamental? Isto ajudaria a acabar com aquele tipo de fragmentação acima indicado, pois o verbo descreve ações e movimentos, que fluem uns nos outros, fundindo-se, sem separações ou rupturas bem-definidas. Além disso, visto que os movimentos em geral estão sempre mudando, eles não têm em si nenhum padrão permanente ou forma fixa com os quais as coisas existentes separadamente poderiam se identificar. ? evidente que uma tal maneira de abordar a linguagem ajusta-se com a visão global de mundo discutida no capítulo anterior, em que o movimento é, com efeito, tomado como uma noção fundamental, enquanto que coisas existentes separadamente e aparentemente estáticas são vistas como estados relativamente invariáveis de um movimento contínuo (lembre-se do exemplo dos vórtices). Ora, em algumas línguas antigas - por exemplo, o hebreu- o verbo era de fato considerado como fundamental, no sentido acima descrito. Assim, a raiz de quase todas as palavras nessa língua era uma certa forma verbal, ao passo que os advérbios, os adjetivos e os substantivos eram obtidos por modificação da forma verbal com prefixos, sufixos, e também de outras maneiras. Porém, no hebreu moderno, o uso efetivo é semelhante ao do inglês, uma vez que se confere ao substantivo um papel fundamental em seu significado, mesmo que na gramática formal tudo ainda seja construído a partir do verbo como raiz. Aqui, temos de tentar, naturalmente, trabalhar com uma estrutura na qual o verbo tem uma função fundamental, e levar a sério esta condição. Ou seja, não há razão para usar o verbo num papel formalmente fundamental e pensar em termos de um conjunto de objetos separados e identificáveis considerados como aquilo que é básico. Dizer uma coisa e fazer outra é uma forma de confusão que, evidentemente, apenas contribuiria para a fragmentação geral, em vez de ajudar a eliminá-la. Porém, é claro que inventar de repente uma linguagem totalmente nova, que implique uma estrutura de pensamento radicalmente diferente, não é algo praticável. O que pode ser feito é, provisória e experimentalmente, introduzir um novo modo de linguagem. Assim, já temos, por exemplo, diferentes modos do verbo, tais como o indicativo, o subjuntivo, o imperativo, e desenvolvemos a habilidade no uso da linguagem, de maneira que cada um desses modos funcione, quando solicitado, sem a necessidade de escolha consciente. De maneira semelhante, consideraremos agora um modo em que o movimento deve ser tomado como fundamental em nosso pensamento, e onde essa noção será incorporada na estrutura da linguagem, permitindo ao verbo, e não ao substantivo, desempenhar um papel fundamental. ? medida que se desenvolve um tal modo e se trabalha com ele por algum tempo, pode-se obter a necessária habilidade em utilizá-lo, de forma que ele também venha a atuar toda vez que for solicitado sem a necessidade da escolha consciente. A bem da conveniência, daremos a esse modo um nome: reomodo (rheo vem de um verbo grego que significa "fluir"). Ao menos em primeira instância, o reomodo será uma experiência no uso da linguagem, experiência essa voltada, principalmente, para a tentativa de descobrir se é possível criar uma nova estrutura que não seja tão inclinada à fragmentação como é a atual. Evidentemente, nossa indagação terá de começar enfatizando o papel da linguagem no modelamento de nossas visões globais de mundo, bem como em expressá-las mais precisamente na forma de ideias filosóficas gerais. Pois, como foi sugerido no capítulo anterior, essas visões de mundo e suas expressões gerais (que contêm conclusões tácitas sobre tudo, incluindo a natureza, a sociedade, nós mesmos, nossa linguagem, etc.) estão agora desempenhando um papel fundamental, ajudando a criar e sustentar a fragmentação em cada aspecto da vida. Portanto, começaremos utilizando o reomodo principalmente de uma maneira experimental. Como já assinalamos, fazer isso implica dedicar uma cuidadosa atenção ao modo efetivo de operação do pensamento e da linguagem, o que está além de uma simples consideração de seu conteúdo.


Pelo menos na presente investigação, o reomodo ocupar-se-á principalmente com questões relativas às amplas e profundas implicações de nossas visões globais de mundo, que agora tendem a ser levantadas em grande parte no estudo da filosofia, da psicologia, da arte, da ciência e da matemática, e especialmente no estudo do próprio pensamento e da própria linguagem. ? claro que esse tipo de questão pode também ser discutido em termos da atual estrutura da linguagem. Embora domine nessa estrutura a forma divisória sujeito-verbo-objeto, ela contém no entanto uma rica e complexa variedade de outras formas, que são usadas em grande parte tacitamente e por implicação (especialmente na poesia, mas de maneira mais geral em todos os modos de expressão artística). Contudo, a forma dominante sujeito-verbo-objeto tende continuamente a levar a uma fragmentação; e é evidente que a tentativa de evitar essa fragmentação pelo uso habilidoso de outros aspectos da linguagem só pode funcionar de maneira limitada, pois, por força do hábito, mais cedo ou mais tarde tendemos, especialmente nas questões amplas relativas às nossas visões globais de mundo, a cair inadvertidamente no modo fragmentário de funcionamento implicado pela estrutura básica. A razão disso reside não só no fato de que a forma sujeito-verbo-objeto da linguagem está continuamente acarretando uma divisão inadequada entre as coisas, mas, mais ainda, porque o modo comum da linguagem tende, muito acentuadamente a considerar correta a sua própria função, levando-nos, assim, a nos concentrar quase que exclusivamente no conteúdo em pauta, de sorte que pouca ou nenhuma atenção é dada à função simbólica efetiva da própria linguagem. Porém, como já apontamos anteriormente, é aqui que se origina a tendência básica para a fragmentação. Uma vez que o modo ordinário de pensamento e de linguagem não chama a atenção, de maneira adequada, para a sua própria função, esta última parece surgir numa realidade independente do pensamento e da linguagem, de modo que as divisões implicadas na estrutura da linguagem são então projetadas, como se fossem fragmentos, em correspondência com rupturas efetivas, "naquilo que é". Uma tal percepção fragmentária pode, entretanto, dar origem à impressão ilusória de que já está sendo dada a devida atenção à função do pensamento e da linguagem, e assim levar à falsa conclusão de que, na realidade, não há qualquer séria dificuldade do tipo acima descrito. Pode-se supor, por exemplo, que, assim como a função do mundo da natureza é estudada na física, que a da sociedade é estudada na sociologia, e a da mente na psicologia, a função da linguagem é tratada pela linguística. Mas, é claro, tal noção seria apropriada somente se todos esses campos estivessem de fato claramente separados e se fossem constantes ou se alterassem lentamente em suas naturezas, de modo que os resultados obtidos em cada área de especialização fossem pertinentes em todas as situações e em todas as ocasiões em que pudessem ser aplicados. Entretanto o que estivemos enfatizando é o fato de que, em questões de um alcance tão amplo e profundo, esse tipo de separação não é adequado, e que, em todo caso, o ponto crucial é dar atenção à própria linguagem (e ao próprio pensamento) que está sendo utilizada, a cada momento, na investigação de sua função mesma, e também em qualquer outra forma de investigação em que se possa estar empenhado. Portanto, não será adequado isolar a linguagem como um campo particular de investigação e vê-la como uma coisa relativamente estática que só se altera vagarosamente (ou que não se altera) na medida em que é estudada. Fica claro, então, que, ao desenvolver o reomodo, precisaremos estar especialmente conscientes da necessidade de a linguagem chamar, de maneira adequada, a atenção de sua própria função no exato momento em que isto ocorre. Desta forma, podemos não apenas ser capazes de pensar mais coerentemente sobre questões amplas relativas às nossas visões globais de mundo, mas também entender melhor como funciona o modo comum da linguagem, de maneira a poder usar até mesmo esse modo comum com mais coerência. 3.A forma do reomodo Agora continuamos a investigar com mais detalhes qual seria uma forma conveniente de expressão para o reomodo. Como um primeiro passo nessa investigação, podemos perguntar se a rica e complexa estrutura informal da linguagem comumente utilizada não contém, ainda que, talvez, numa forma rudimentar ou germinal, algum aspecto que possa satisfazer a necessidade, acima indicada, de se chamar a atenção para a verdadeira função do pensamento e da linguagem. Se alguém examinar essa questão, poderá ver que tais aspectos existem. De fato, nos tempos modernos, o exemplo mais notável é o uso (e abuso) da palavra "relevante" (que talvez possa ser entendido como uma espécie de "tateamento", ou "procedimento por tentativas", por meio da função de chamar-a-atenção que as pessoas, quase que inconscientemente, sentem ser importante). A palavra relevant [relevante deriva do verbo to relevate [relevar, não muito frequente no uso comum, cujo significado é "alçar" (como em "elevar"). Em essência, "to relevate" quer dizer "alçar à atenção", de modo que o conteúdo assim alçado sobressaia "em relevo". Quando um conteúdo alçado à atenção é coerente com o contexto de interesse, ou lhe é adequado, isto é, quando tem alguma pertinência com o contexto a que ele está relacionado de alguma forma, então diz-se que esse conteúdo é relevante; e, naturalmente, quando não se ajusta a ele dessa maneira, é dito irrelevante. Tomemos como exemplo os escritos de Lewis Carroll, que estão cheios de um humor que se manifesta com o uso do irrelevante. Assim, em Através do Espelho há uma conversa entre o Chapeleiro Maluco e a Lebre Lépida que contém a sentença: "Este relógio não anda, mesmo depois de eu ter usado a melhor manteiga." Esta sentença alça à atenção a noção irrelevante de que a qualidade da manteiga tem relação com o funcionamento dos relógios - uma noção que evidentemente não se ajusta ao contexto da estrutura real dos relógios. Ao formular um enunciado sobre a relevância, se está tratando o pensamento e a linguagem como realidades, no mesmo nível do contexto ao qual se referem. Com efeito, no exato momento em que esse enunciado é formulado, observa-se ou dá-se atenção tanto ao contexto como à função global do pensamento e da linguagem, para ver se eles se ajustam mutuamente ou não. Assim, reconhecer a relevância ou a irrelevância de um enunciado é, fundamentalmente, um ato de percepção de ordem muito elevada, semelhante àquele em que se reconhece sua verdade ou sua falsidade. Num certo sentido, a questão da relevância precede a da verdade, porque perguntar se um enunciado é certo ou errado pressupõe que ele seja relevante (de modo que tentar verificar a verdade ou a falsidade de um enunciado irrelevante é uma forma de confusão), mas, num sentido mais profundo, o ato de ver a relevância ou irrelevância é, evidentemente, um aspecto da percepção da verdade em seu significado global. É claro que o ato de apreender a relevância ou a irrelevância não pode ser reduzido a uma técnica ou a um método, determinados por algum conjunto de regras. Trata-se, antes, de uma arte, tanto no sentido de que isso requer uma percepção criativa como no de que essa percepção tem de desenvolver-se mais ainda numa espécie de habilidade (como no trabalho do artesão). Logo, não é correto, por exemplo, considerar a divisão entre relevância e irrelevância como uma forma de conhecimento acumulado de propriedades que pertençam aos enunciados (p. ex., dizer que certos enunciados "possuem" relevância, enquanto que outros não a possuem). Em vez disso, em cada caso, o enunciado sobre a relevância ou a irrelevância está comunicando uma percepção que tem lugar no momento da expressão, e é o contexto individual indicado nesse momento. Quando muda o contexto na questão, um enunciado que inicialmente era relevante pode deixar de sê-lo, ou vice-versa. Além do mais, não se pode nem mesmo dizer que um dado enunciado é relevante ou irrelevante, e que isto cobre todas as possibilidades. Assim, em muitos casos, o contexto em sua totalidade pode ser tal que não é possível perceber claramente se o enunciado tem sentido ou não. Isto significa que é preciso aprender mais, e que a questão está, por assim dizer, num estado de fluxo. Portanto, quando a relevância ou a irrelevância são comunicadas, deve-se entender que isto não é uma divisão rígida e inflexível entre categorias opostas mas, em vez disso, é uma expressão de uma percepção em constante mudança, na qual é possível, por enquanto, reconhecer um ajuste ou nãoajuste entre o conteúdo alçado à atenção e o contexto ao qual ele se refere.


No momento, a questão do ajuste ou do não-ajuste é discutida no âmbito de uma estrutura de linguagem em que os substantivos são considerados como as entidades básicas (p. ex., dizendo: "Esta noção é relevante.") De fato, tal estrutura implica formalmente uma divisão imutável entre relevância e irrelevância. Portanto, a forma da linguagem está, continuamente, introduzindo uma tendência à fragmentação, até mesmo naqueles aspectos cuja função é chamar a atenção para a totalidade da linguagem e para o contexto onde essa totalidade está sendo utilizada. Como já foi dito, é claro que geralmente somos capazes de superar essa tendência à fragmentação empregando a linguagem de um modo mais livre, mais informal, e mais "poético", que comunique de maneira conveniente a verdadeira natureza fluida da diferença entre relevância e irrelevância. Porém, perguntamos: "Não seria possível fazer isso com mais coerência e eficiência analisando a questão da relevância em termos do reomodo, onde, como sugerimos anteriormente, não surgiriam formalmente divisões imutáveis, porque ao verbo, e não ao substantivo, é dado um papel fundamental?" Para responder a essa pergunta, notamos em primeiro lugar que o verbo to relevate [relevar, de onde deriva o adjetivo relevant] relevante, vem em última instância, da raiz to levate (cujo significado é "alçar"). Como uma etapa no desenvolvimento do reomodo, propomos então que o verbo to levate signifique "o ato espontâneo e irrestrito de alçar à atenção qualquer conteúdo, seja qual for, que inclua alçar à atenção a questão de se esse conteúdo se ajusta ou não a um contexto mais amplo, bem como o alçar à atenção a função mesma de chamar a atenção, que é iniciada pelo próprio verbo". Isto implica uma amplitude e profundidade de significado irrestritas, que não estão fixadas dentro de limites estáticos. Introduzimos então o verbo to re-levate [re-levar.] Seu significado é este: "Alçar um certo conteúdo novamente à atenção, para um contexto determinado, conforme é indicado pelo pensamento e pela linguagem." Aqui, deve-se enfatizar que "ré" significa "novamente", isto é, em outra ocasião. Isto evidentemente implica tempo e semelhança (bem como diferença, uma vez que cada ocasião é não apenas semelhante mas também diferente). Conforme assinalamos anteriormente, é preciso um ato de percepção para ver, em cada caso, se o conteúdo assim "alçado novamente" ajustase ou não ao contexto observado. Nos casos em que esse ato de percepção revela um ajuste, dizemos to relevate is relevant [re-levar é relevante (note que o uso do hífen é essencial aqui, e que a palavra deve ser pronunciada com uma pausa, conforme é indicado pelo hífen).] E claro que nos casos em que a percepção revela um não-ajuste, dizemos "to re-levate is irre-levant" [re-levar é irre-levante.] Vemos, então, que os adjetivos foram construídos a partir do verbo como forma radical. Os substantivos também podem ser construídos desse modo, e eles não significarão objetos separados, mas, sim, estados contínuos de atividade da forma particular indicada pelos verbos. Assim, o substantivo re-levation [re-levação significa "um estado contínuo de alçar um dado conteúdo à atenção".] Prosseguir com a "re-levação" quando fazê-lo é irre-levante será chamado, porém, de irre-levation ["irre-levação".] Em essência, a irre-levação implica que não há atenção conveniente. Quando algum conteúdo é irre-levante, mais cedo ou mais tarde deve ser abandonado. Se isto não acontecer, então, num certo sentido, não se está atento ou alerta. Assim, irre-levação implica a necessidade de dar atenção ao fato de que não há uma atenção conveniente. A atenção a uma tal falta de atenção é, evidentemente, o próprio ato que põe fim à irre-levação. Finalmente, introduziremos o substantivo levation [levação, que significa um tipo de totalidade generalizada e irrestrita de atos de alçar à atenção] (note que isto difere de to levate [levar, que significa um único, espontâneo e irrestrito ato de alçar à atenção.] Evidentemente, essa maneira de usar uma estrutura de forma linguística construída a partir de uma raiz verbal permite-nos analisar o que é comumente significado por "relevância", de um modo que seja livre de fragmentação, pois não estamos mais sendo levados, pela forma da linguagem, a considerar algo chamado relevância como se fosse uma qualidade separada e fixa. E, o que é mais importante, não estamos estabelecendo uma divisão entre o que significa o verbo to levate [levar] e a função efetiva que tem lugar quando utilizamos este verbo. Isto é, to levate não é só atentar ao pensamento de alçar um conteúdo irrestrito à atenção, mas, também, empenhar-se no próprio ato de alçar um tal conteúdo irrestrito à atenção. O pensamento não é, portanto, uma mera abstração, sem percepção concreta à qual ele possa se referir. Em vez disso, algo que se ajusta ao significado da palavra está efetivamente acontecendo, e pode-se, no exato momento em que se utiliza a palavra, perceber o ajuste entre esse significado e o que está ocorrendo. Logo, o conteúdo do pensamento e a sua função efetiva são vistos e sentidos como uma coisa só, e assim pode-se entender o que significa fazer cessar, em sua própria origem, a fragmentação. Evidentemente, é possível generalizar esse modo de construir formas de linguagem de maneira que qualquer verbo possa ser tomado como a forma radical. Diremos então que o reomodo é caracterizado, em essência, por esse modo de utilizar um verbo. Como exemplo, consideremos o verbo latino vídere, que significa "ver", que é utilizado em formas tais como "vídeo". Então, introduzimos o radical verbal to vidate. Isto não significa meramente "ver" no sentido visual, mas o consideraremos como referente a cada aspecto da percepção, incluindo até mesmo o ato de entendimento, que é a apreensão de uma totalidade, que inclui percepção dos sentidos, intelecto, sentimento, etc. (p. ex., na linguagem comum, "entender" e "ver" podem ser utilizados de maneira intercambiável). Portanto, a palavra to vidate chamará a atenção para um ato de percepção espontâneo e irrestrito, seja de que tipo for, incluindo a percepção que reconhece se o que é visto se ajusta ou não "àquilo que é", bem como a percepção da própria função de chamar-a-atenção da palavra em si mesma. Assim, como acontece com to levate, não há nenhuma divisão entre o conteúdo (significado) dessa palavra e a função total à qual ela dá origem. Consideramos então o verbo to re-vidate, que significa perceber um dado conteúdo novamente, conforme é indicado por uma palavra ou pensamento. Se se vê que esse conteúdo ajusta-se ao contexto indicado, então dizemos: "to re-vidate é re-vidant". Se se vê que ele não se ajusta, então, é claro, dizemos: to re-vidate é irre-vidant (que significa, nouso comum, que essa foi uma percepção enganosa ou ilusória). Re-vidation é então um estado contínuo de perceber um certo conteúdo, enquanto que irre-vidation é um estado contínuo de ser apanhado numa ilusão ou engano em relação a um certo conteúdo. Evidentemente (como no caso da irre-levation), a irrevidation implica uma falta de atenção, e atentar para essa falta de atenção é por fim à irre-vidation. Finalmente, o substantivo vidation significa uma totalidade irrestrita e generalizada de atos de percepção. Evidentemente, vidation não deve ser nitidamente distinguido de levation. Num ato de vidation é necessário levar um conteúdo à atenção, e num ato de levation é necessário to vidate esse conteúdo. Desse modo, os dois movimentos, de levation e vidation, se fundem e se interpenetram. Cada uma dessas palavras simplesmente enfatiza (isto é, re-leva) um certo aspecto do movimento em geral. Fica evidente que isto será verdadeiro em relação a todas as raízes verbais no reomodo. Todas elas implicam umas às outras, e convertem-se umas nas outras. Assim, o reomodo revelará uma certa totalidade, que não é característica do uso ordinário da linguagem (embora aí potencialmente, no sentido de que, se começarmos com o movimento como algo fundamental, então, da mesma maneira, temos de dizer que todos os movimentos matizam-se uns aos outros, fundem-se e interpenetram-se). Prossigamos agora considerando o verbo "dividir". Tomemo-lo como uma combinação do verbo "videre" com o prefixo "di", que significa "separado". Portanto, "dividir" deve ser considerado (1) como significando "ver como separado".Nós introduzimos então o verbo to di-vidate. Essa palavra chama a atenção para o ato espontâneo de ver as coisas como separadas, sob qualquer forma que seja, incluindo o ato de ver se a percepção se ajusta ou não "àquilo que é", e mesmo o de ver como a função de chamar-a-atenção dessa palavra possui em si uma forma de divisão inerente. Com respeito a este ponto, notamos que simplesmente considerar a palavra di-vidate deixa claro que ela é diferente de vidate,


da qual foi derivada. Assim, di-vidate implica não apenas um conteúdo (ou significado) de divisão, mas também implica que o próprio uso dessa palavra produz uma função para a qual se constata que a noção de divisão proporciona uma descrição adequada. Agora, consideramos o verbo to re-dividate, que significa perceber novamente, mediante o pensamento e a linguagem, um dado conteúdo em termos de um tipo específico de separação ou divisão. Se se constata que fazer isso ajusta-se ao contexto indicador, então dizemos que redividate é re-dividant. Caso contrário, se não se constatar o ajuste, dizemos que re-dividate é irredividant. Re-dividation é assim, um estado contínuo de ver um certo conteúdo na forma de separação ou divisão. Irre-dividation é um estado contínuo de ver separação onde, na linguagem comum, diríamos que a separação é irrelevante. Irre-dividation é, clara e essencialmente, o mesmo que fragmentação. Portanto, torna-se evidente que a fragmentação não pode ser algo bom, pois não significa simplesmente ver as coisas como separadas, mas persistir em fazê-lo num contexto em que esse modo de ver não se ajusta. Continuar indefinidamente com a irre-dividation é possível somente devido a uma falta de atenção. Assim, a irre-dividation termina no próprio ato de dar atenção a essa falta de atenção. Finalmente, é claro, o substantivo dividation significa uma totalidade de atos irrestritos e generalizados de ver as coisas como separadas. Como foi indicado anteriormente, a di-vidation implica uma divisão na função de chamar-a-atenção da palavra, no sentido de que a di-vidation é vista como diferente de vidation. No entanto, essa diferença aplica-se apenas num contexto limitado e não deve ser considerada como uma fragmentação, ou como uma ruptura efetiva, entre os significados e as funções das duas palavras. Em vez disso, suas próprias formas indicam que a dividation é um tipo de vidation; é na verdade um caso especial desta última. Assim, em última instância, a totalidade é fundamental, no sentido de que esses significados e essas funções convertem-se uns nos outros, fundindo-se e interpenetrando-se. A divisão é vista, portanto, como um meio conveniente de dar uma descrição mais articulada e mais detalhada desse todo, em vez de uma fragmentação "daquilo que é". O movimento que vai da divisão à unidade da percepção é realizado por intermédio da ação de ordenamento. (Para uma discussão mais detalhada, ver o Capítulo 5.) Por exemplo, uma régua pode ser dividida em polegadas, mas esse conjunto de divisões é introduzido em nosso pensamento apenas como um meio conveniente de expressar uma simples ordem sequencial, por cujo intermédio podemos comunicar e entender algo que tem relação com algum objeto inteiro, que é medido com o auxílio de uma tal régua. Essa simples noção de uma ordem sequencial, expressa em termos de divisões regulares numa régua graduada, ajuda a nos orientar no trabalho de construção, nas nossas viagens e nos nossos movimentos sobre a superfície da Terra e no espaço, e num amplo espectro de atividades práticas e científicas em geral. Mas, naturalmente, são possíveis ordens mais complexas, e estas têm de ser expressas em termos de divisões e categorias de pensamento mais sutis, significativas para formas mais sutis de movimento. Há, desse modo, o movimento do crescimento, desenvolvimento e evolução dos seres vivos, o movimento de uma sinfonia, o movimento que é a essência da própria vida, etc. Estes, evidentemente, têm de ser descritos de diferentes maneiras, que geralmente não podem ser reduzidas a uma descrição em termos de ordens sequenciais simples. Além de todas essas ordens está aquela do movimento da atenção. Esse movimento precisa ter uma ordem que se ajuste à ordem presente naquilo que deve ser observado, ou então deixaremos de ver o que deve ser visto. Por exemplo, se tentarmos ouvir uma sinfonia enquanto nossa atenção está dirigida principalmente para uma ordem temporal sequencial, como a indicada por um relógio, não seremos capazes de ouvir as ordens sutis que constituem o significado essencial da música. Evidentemente, nossa capacidade para perceber e entender é limitada pela liberdade com a qual o ordenamento da atenção pode mudar, de modo a ajustar-se à ordem que deve ser observada. Fica claro, então, que a noção de ordem desempenha um papel fundamental no entendimento do verdadeiro significado das divisões do pensamento e da linguagem estabelecidas para a nossa conveniência. Para discutir essa noção no reomodo, vamos introduzir então o radical verbal to ordinate. Esta palavra chama a atenção para um ato espontâneo e irrestrito de ordenamento, seja de que tipo for, incluindo o ordenamento envolvido em ver se alguma ordem específica ajusta-se ou não a um determinado contexto observado, e mesmo o ordenamento que surge na própria função de chamar-aatenção. Portanto, "ordenar" não significa fundamentalmente "pensar sobre uma ordem", mas sim, empenhar-se no próprio ato de ordenar a atenção, enquanto a atenção também está sendo dedicada aos pensamentos sobre ordem. Mais uma vez, vemos a totalidade do significado de uma palavra e de sua função global, o que é um aspecto essencial do reomodo. Assim, re-ordinate é chamar novamente a atenção para uma dada ordem, por meio da linguagem e do pensamento. Se se constata que essa ordem se ajusta àquela que deve ser observada no contexto em discussão, dizemos que to re-ordinate is reordinant. Se se constata que ela não se ajusta, dizemos que to re-ordinate é irre-ordinante (como, por exemplo, na aplicação de uma grade linear a um labirinto complexo de vielas). O substantivo re-ordination descreve então um estado contínuo de chamar a atenção para uma certa ordem. Um estado persistente de reordination num contexto irre-ordinant será, pois, chamado de irre-ordination como acontece com todos os outros verbos, a irre-ordination é atenção. Finalmente, o substantivo ordination significa, naturalmente, uma irrestrita e generalizada totalidade de atos de ordenamento. Evidentemente, ordination implica levation, vidation e dividation. E, em última instância, todos esses implicam ordenação. Assim, para ver se um dado conteúdo é re-levante, a atenção tem de ser convenientemente ordenada para perceber esse conteúdo; um conjunto apropriado de divisões ou categorias terá de ser estabelecido no pensamento, etc., etc. Foi dito o suficiente sobre o reomodo, pelo menos o suficiente para indicar, de maneira geral, como ele funciona. A esta altura, porém, talvez seja útil exibir a estrutura global do reomodo com uma lista das palavras até agora empregadas:Levate, re-kvate, re-levant, irre-levant, levation, relevation, irre-levation.Vidate, re-vidate, re-vidant,irre-vidant, vidation, re-vidation, irre-vidation.Di-vidate, re-âividate, re-dividant, irre-dividant, dividation, re-dividation, irre-dividation.Ordinate, re-ordinate, re-ordinant, irre-ordinant, ordination, re-ordination, irre-ordination[Adaptando esses neologismos do autor para o português, teríamos: Levar, re-levar, re-levante, irre-levante, levação, re-levação, irre-levação.Vidar, re-vidar, revidante, irre-vidante, vidação, re-vidação, irre-vidação.Di-vidar, re-dividar, re-dividante, irre-dividante, di-vidação, re-dividação, irredividação.Ordenar, re-ordenar, re-ordenante, irre-ordenante, ordenação, re-ordenação, irre-ordenação. (N. do T.)] Deve-se notar que o reomodo envolve, em primeiro lugar, uma nova construção gramatical, onde os verbos são utilizados de uma nova maneira. Todavia, o que é nele mais original é o fato de a sintaxe estender-se não apenas ao arranjo de palavras que podem ser consideradas como já dadas, mas também a um conjunto sistemático de regras para a formação de novas palavras. É claro que tal formação de palavras sempre ocorreu na maioria das línguas (p. ex., "relevante" é construído a partir da raiz "levar", à qual se acrescenta o prefixo "ré" e na qual se substitui o sufixo "ar" por "ante"), mas esse tipo de construção tende a surgir principalmente de maneira fortuita, provavelmente como resultado da necessidade de expressar várias relações úteis.Em todo o caso, uma vez formadas as palavras, a tendência predominante tem sido perder de vista o fato de que isso aconteceu e considerar cada palavra como uma "unidade elementar", de modo que sua origem numa construção é, com efeito, tratada como se não tivesse relação alguma com o seu sentido. No reomodo, porém, a palavra construção não é fortuita, mas desempenha um papel fundamental ao tornar possível todo um modo novo de linguagem, embora a atividade da construção da palavra esteja sendo continuamente trazida ao nosso conhecimento pois os significados dependem de uma maneira essencial, das formas dessas construções. Talvez seja útil fazer aqui uma espécie de comparação com o que aconteceu no desenvolvimento da ciência. Como vimos no Capítulo 1, a visão


científica de mundo predominante tem sido, em geral, supor que, no fundo, tudo deve ser descrito em termos dos resultados das combinações de certas unidades de "partículas", consideradas básicas. Essa atitude está, evidentemente, de acordo com a tendência predominante no modo comum da linguagem para tratar as palavras como "unidades elementares" que, supõe-se, podem ser combinadas para expressar qualquer coisa, seja qual for, capaz de ser dita. Obviamente, novas palavras podem ser produzidas para enriquecer o discurso no modo comum da linguagem (assim como novas partículas básicas podem ser introduzidas na física), mas, no reomodo, começou-se a ir além e a tratar a construção das palavras como algo não essencialmente diferente da construção de frases, sentenças, parágrafos, etc. Assim, a atitude "atomística" em relação às palavras foi abandonada e, em seu lugar, nosso ponto de vista assemelha-se mais ao da teoria do campo, na física, onde as "partículas" são apenas abstrações convenientes do movimento total. De maneira semelhante podemos dizer que a linguagem é um campo indiviso de movimento, envolvendo som, significado, chamar-a-atenção, reflexos emocionais e musculares, etc. É um tanto arbitrário dar uma excessiva importância às quebras entre as palavras. Na verdade, as relações entre partes de uma palavra podem, geralmente, ser do mesmo tipo que aquelas entre diferentes palavras. Assim, a palavra deixa de ser tomada como "um átomo indivisível de significado" e passa a ser vista como não mais que um indicador conveniente no movimento total da linguagem, nem mais nem menos fundamental que a oração, a sentença, o parágrafo, o sistema de parágrafos, etc. (Isto significa que dar atenção desta maneira aos componentes das palavras não é, essencialmente, uma atitude de análise, mas uma abordagem que permite o fluxo irrestrito do significado.) Obtém-se algum insight sobre o significado dessa mudança de atitude frente às palavras ao se considerar a linguagem como uma forma particular de ordem. Isto é, a linguagem não chama apenas a atenção para a ordem. Ela é uma ordem de sons, palavras, estruturas de palavras, nuanças de frase e de gesto, etc. Evidentemente, o significado de uma comunicação por intermédio da linguagem depende, de uma maneira essencial, da ordem em que a linguagem está. Essa ordem assemelha-se à de uma sinfonia, em que cada aspecto e cada movimento têm de ser entendidos à luz de sua relação com o todo, do que à simples ordem sequencial de um relógio ou de uma régua; e uma vez que (como já assinalamos aqui) a ordem dos sons dentro de uma palavra é um aspecto inseparável do significado total, podemos desenvolver regras de gramática e de sintaxe que utilizem essa ordem de uma maneira sistemática para enriquecer e intensificar as possibilidades da linguagem para a comunicação e para o pensamento. 4.A verdade e o fato no reomodo No modo comum da linguagem, a verdade é tomada como um substantivo, que assim representa algo que pode ser apreendido imediatamente, ou do qual, pelo menos, podemos nos aproximar passo a passo. Ou então, a possibilidade de ser verdadeiro ou falso pode ser tomada como uma propriedade de enunciados. Porém, como indicamos anteriormente, a verdade e a falsidade, assim como a relevância e a irrelevância, têm de ser efetivamente vistas a cada momento, num ato de percepção de ordem muito alta. Dessa maneira, a verdade ou a falsidade no conteúdo de um enunciado é apreendida observando-se se esse conteúdo ajusta-se ou não a um contexto mais amplo, que é indicado seja no próprio enunciado ou por meio de alguma ação ou gesto (como, por exemplo, o de apontar) que acompanhe o enunciado. Além do mais, quando tratamos com enunciados sobre visões de mundo, que têm a ver com "a totalidade de tudo que é", não há nenhum contexto claramente definível ao qual possam referir-se e, assim, temos de enfatizar a verdade em função, isto é, a possibilidade de livre movimento e mudança em nossas noções gerais sobre a realidade como um todo, de modo a permitir um ajustamento contínuo a novas experiências, indo além dos limites de ajustamento de noções mais antigas desse tipo. (Ver os Capítulos 3 e 7 para uma discussão adicional acerca disso.) Fica claro, então, que o modo comum da linguagem é bastante inadequado para analisar questões de verdade e falsidade, porque tende a tratar cada verdade como um fragmento separado, que é essencialmente fixo e estático em sua natureza. Será, pois, interessante experimentar com o uso do reomodo, para ver de que maneira isso pode nos permitir analisar a questão da verdade mais ajustada e coerentemente. Começaremos considerando a palavra latina verus, que significa "verdadeiro". Introduziremos então o radical verbal to verrate. (Os dois erres são introduzidos aqui para evitar uma certa confusão que ficará evidente à medida que prosseguirmos.) Essa palavra chama a atenção, da maneira discutida na seção anterior, para um ato espontâneo e irrestrito de ver a verdade seja em que forma for, inclusive no ato de ver se essa percepção se ajusta ou não àquilo que se percebe que efetivamente acontece na apreensão da verdade, bem como no de ver a verdade na função de chamar-a-atenção da própria palavra. Desse modo, to verrate é estar no ato de perceber a verdade, bem como prestar atenção àquilo que a verdade significa. Logo, to re-verrate é chamar a atenção novamente, por meio do pensamento e da linguagem, para uma determinada verdade num dado contexto. Se se constata que isso se ajusta ao que deve ser observado nesse contexto, dizemos que to re-verrate é re-verrant, e se se constata que não ocorre esse ajuste, dizemos que to re-verrate é irre-verrant (isto é, uma determinada verdade deixa de ser válida quando repetida e ampliada num contexto que está além de seus próprios limites). Vemos então que a questão da verdade não está sendo mais analisada em termos de fragmentos separados e essencialmente estáticos. Em vez disso, nossa atenção está sendo chamada para o ato geral de verração, e para a sua continuação, num determinado contexto, como reverration e irre-verration. (A ine-vermtian, isto é, o apego persistente a uma verdade além de seus limites apropriados tem sido, evidentemente, uma das maiores fontes de ilusão e de desilusão ao longo de toda a história e em cada fase da vida). A verration deve ser vista como um movimento fluente, que se funde e se interpenetra com a levation, a vidation, a di-vidation, a ordinatian e, de fato, com todos os outros movimentos que serão indicados no desenvolvimento subseq?ente do reomodo. Ora, quando discutimos a verdade no modo comum, somos levados inevitavelmente a considerar aquilo que se entende por fato. Assim, dizer, em certo sentido, "isto é um fato" implica que o conteúdo do enunciado em questão é verdadeiro. Contudo, o significado radical da palavra "fato" é "aquilo que foi feito" (p. ex., como em "manufatura"). Aqui, este significado procede porque, como é evidente, em certo sentido nós realmente "fazemos" o fato: pois esse fato depende não somente do contexto que está sendo observado e da nossa percepção imediata, mas também de como nossas percepções são moldadas por nossos pensamentos, assim como do que nós fazemos, para testar nossas conclusões e aplicá-las em atividades práticas. Continuemos agora a experimentar com o uso do reomodo para ver aonde isso nos leva quando consideramos o que se entende por "o fato". Introduzimos, assim, a raiz verbal to factate, que significa atenção espontânea e irrestrita à atividade humana conscientemente dirigida ao fazer qualquer tipo de coisa, seja qual for (3) (e isto inclui, é claro, o "fazer" da função de chamar-a-atenção da própria palavra). Então, re-factate é chamar a atenção novamente, por meio do pensamento e da linguagem, para uma tal atividade de "fazer" num determinado contexto. Se se constata que essa atividade se ajusta ao contexto (isto é, se o que estamos fazendo "funciona"), então dizemos que refactate é re-factant, e em caso contrário que re-factate é irre-factant. Evidentemente, muito daquilo que a verdade ou a falsidade de um enunciado costuma significar está contido na implicação das palavras refactant e irre-factant. Assim, é claro que quando se aplicam noções verdadeiras na prática, geralmente elas nos levam a fazer algo que "funciona", enquanto que as falsas noções levam a atividades que "não funcionam". Naturalmente, temos de ser cuidadosos aqui para não identificar a verdade como algo que nada mais é a não ser aquilo "que funciona", uma vez


que, como já se viu, a verdade é um movimento total que vai muito além do domínio limitado de nossas atividades funcionais conscientemente dirigidas. Portanto, embora o enunciado "a re-verration é re-factant" seja correto até onde ele alcança, é importante ter em mente que isto chama a atenção apenas para um certo aspecto do que se entende por verdade. Na realidade, nem ao menos abrange tudo o que se entende por fato. Há muito mais coisas envolvidas em estabelecer o fato do que meramente observar que o nosso conhecimento é re-factant, isto é, que ele geralmente nos tem levado, de maneira bem-sucedida, a atingir os objetivos originalmente projetados no pensamento. Além disso, o fato precisa ser testado continuamente, mediante observações e experiências ulteriores. O objetivo básico desse teste não é a produção de algum resultado ou fim desejado; é, isto sim, ver se o fato "resistirá", mesmo quando o contexto ao qual se refere for observado repetidas vezes, seja, essencialmente, da mesma maneira que antes, ou de novas maneiras, que podem ter relação com esse contexto. Na ciência, esse teste é executado por meio de experiências, que não apenas têm de ser reprodutíveis mas que também precisam concordar com os "testes cruzados" fornecidos por outros experimentos significativos no contexto de interesse. De uma maneira mais geral, a experiência como um todo está sempre proporcionando um tipo semelhante de teste, contanto que estejamos alertas e atentos para ver o que ela efetivamente indica. Quando dizemos que "isto é um fato", sugerimos uma certa capacidade desse fato para "resistir" a uma ampla faixa de diferentes tipos de testes. Portanto, o fato fica estabelecido, isto é, ele se mostra estável, no sentido de que não está sujeito ao colapso, ou a ser anulado a qualquer momento, numa observação subseq?ente do tipo geral da que já fora realizada. E é claro que essa estabilidade é apenas relativa, pois o fato está sempre sendo testado repetidas vezes, tanto sob formas já familiares quanto em novas maneiras que estão sendo continuamente exploradas. Portanto, ele pode ser refinado, modificado, e até mesmo radicalmente alterado, mediante observações, experimentos e experiências ulteriores. Mas, para ser um "fato real", é evidente que tem de permanecer constantemente válido, pelo menos em certos contextos ou durante um certo período de tempo. A fim de preparar o terreno para discutir esse aspecto do fato no reomodo, primeiro notamos que a palavra constant é derivada do verbo to constate,* que significa "estabelecer", "verificar" ou "confirmar". Este significado fica ainda mais evidente ao se considerar a raiz latina constare (stare significando "manter-se" e com significando "unido"). Assim, podemos dizer que, na atividade do teste, "constatamos" o fato; de modo que ele é estabelecido e "mantém-se firmemente unido", como um corpo consistente, que é capaz, num certo sentido relativo, de "resistir" (stand up) à submissão ao teste. Portanto, dentro de certos limites, o fato permanece con-stant. *[Em inglês, do verbo hoje obsoleto to constate, diz Bohm. (N. do T.)] Na verdade, a palavra constater, intimamente relacionada, é utilizada no francês moderno, quase com o mesmo sentido que o indicado acima. De certo modo, abrange o que se quer significar aqui melhor do que constate, pois deriva do latim constat, que é o particípio passado de constare, e portanto seu significado radical seria "ter permanecido unido". Isto se encaixa muito bem com "fato" ou "aquilo que tem sido feito". Para considerar essas questões no reomodo, introduzimos então o radical verbal to con-state. Isto significa "dar atenção espontânea e irrestrita à maneira como qualquer tipo de ação ou de movimento, seja qual for, é estabelecido numa forma relativamente constante, que permanece unida de modo relativamente estável, incluindo a ação de estabelecer um corpo-de-prova (body of fact) que permaneça assim unido, e até mesmo a ação dessa própria palavra ao ajudar a estabelecer o fato a respeito da função da própria linguagem". Assim, to re-constate é, chamar a atenção novamente, por meio da palavra e do pensamento para uma determinada ação ou movimento desse tipo num dado contexto. Se se vê que essa ação ou movimento se ajusta ao contexto em questão, dizemos: to re-constate é re-constatant, e se vemos que não se ajusta, dizemos: to re-constate é irre-constatant (p. ex., verificou-se que o fato, conforme tinha sido previamente estabelecido, não "resiste" factualmente a ulteriores observações e experiências). A forma substantiva re-constation significa então um tipo específico de estado contínuo de ação ou de movimento num dado contexto que "permanece unido" de um modo relativamente constante, seja tal ação a nossa própria ação em estabelecer um fato, seja qualquer outra espécie de movimento que possa ser descrito como estabelecido ou estável em sua forma. Pode, assim, em primeiro lugar, referir-se à possibilidde de confirmar repetidas vezes, numa série de atos de observação ou de experimentação, que "o fato ainda permanece"; ou pode referir-se a um certo estado contínuo de movimento (ou de ocorrências) que "ainda permanece" numa realidade global, incluindo e indo além de nossos atos de observação e de experimentação. Finalmente, pode referir-se à atividade verbal de formular um enunciado (statement) (isto é, um state-ment) por meio do qual o que uma pessoa re-constates pode ser comunicado, para ser reconstatated por outras pessoas. Isto é, uma re-constatation é, no uso comum da linguagem, "um fato estabelecido" ou "o estado efetivo de movimento ou de ocorrências sobre o qual versa o fato", ou "o enunciado verbal do fato". Portanto, não fazemos uma distinção bem-definida entre o ato de percepção e de experimentação, a ação daquilo que percebemos e daquilo que experimentamos, e a atividade de fazer uma comunicação verbal sobre aquilo que observamos e fizemos. Todos esses atos são considerados como partes ou aspectos de um movimento total ininterrupto e indiviso, que se acham intimamente relacionados, tanto em função como em conteúdo (e assim não caímos numa divisão fragmentária entre as nossas atividades mentais "interiores" e sua função "exterior"). Evidentemente, esse uso do reomodo ajusta-se muito bem à visão de mundo na qual coisas aparentemente estáticas são igualmente vistas como abstrações de aspectos relativamente invariantes de um movimento total ininterrupto e indiviso. No entanto, vai mais além ao sugerir que o fato a respeito dessas coisas é, ele mesmo, abstraído, justamente como aquele aspecto relativamente constante do movimento total que aparece na percepção e é experimentado na ação, que "permanece unido" num estado contínuo, sendo assim conveniente para a comunicação na forma de um enunciado. 5.O reomodo e suas implicações na nossa visão global de mundo Reconhecendo (como indicamos na seção anterior) que o reomodo não nos permite analisar o fato observado em termos de coisas existentes separadamente, e que possuam uma natureza essencialmente estática, somos levados a notar que o seu uso tem implicações para a nossa visão geral de mundo. De fato, como já foi até certo ponto ressaltado, toda forma de linguagem veicula uma espécie de visão de mundo dominante ou predominante, que tende a operar em nosso pensamento e em nossa percepção toda vez que é utilizado, de modo que é, em geral, muito difícil expressar claramente uma concepção contrária àquela implicada na estrutura primária de uma linguagem. Portanto, é necessário, no estudo de qualquer forma geral de linguagem, prestar séria e persistente atenção à sua visão de mundo, tanto no conteúdo como na função. Conforme indicamos antes, um dos maiores defeitos do modo comum de usar a linguagem é justamente o fato de ela geralmente subentender que não está restringindo, de maneira alguma, a visão de mundo, e que, em todo o caso, questões referentes a visões de mundo têm a ver apenas com a "filosofia particular de cada um" e não com o conteúdo e a função de nossa linguagem, ou com a maneira pela qual tendemos a experimentar a realidade global em que vivemos. Desse modo, fazendo-nos crer que a nossa visão de mundo é apenas um assunto relativamente pouco importante, talvez envolvendo principalmente o nosso gosto ou a nossa escolha pessoal, o modo comum de linguagem leva-


nos a deixar de dar atenção à função efetiva da visão divisória de mundo que permeia esse modo, de maneira que a operação automática e habitual de nosso pensamento e de nossa linguagem seja então capaz de projetar essas divisões (da forma como anteriormente descrevemos) como se fossem rupturas fragmentárias reais na natureza "daquilo que é". É essencial, pois, estar consciente da visão de mundo implicada em cada forma de linguagem, e permanecer vigilante e alerta, e pronto para ver quando essa visão de mundo não mais se ajusta à observação e à experiência efetivas, à medida que estas se estendem além de certos limites. Ficou evidenciado neste capítulo que a visão de mundo implicada no reomodo é, em essência, aquela descrita no capítulo anterior, segundo a qual tudo é um movimento total ininterrupto e indiviso, e que cada "coisa" é abstraída apenas como uma faceta ou aspecto relativamente invariante desse movimento. É claro, portanto, que o reomodo implica uma visão de mundo completamente diferente daquela da estrutura usual da linguagem. De maneira mais específica vemos que o simples ato de considerar com seriedade um tal novo modo de linguagem e observar como ele funciona pode ajudar a atrair nossa atenção para a maneira como a estrutura comum de nossa linguagem exerce sobre nós pressões fortes e sutis para que nos atenhamos à visão fragmentária de mundo. No entanto, não é possível dizer, no momento se seria útil ir mais além e tentar introduzir o reomodo em uso ativo, embora talvez um tal desenvolvimento possa, eventualmente, vir a ser considerado proveitoso. CAPÍTULO 3 A realidade e o conhecimento considerados como processos 1.Introdução A noção de que a realidade deve ser entendida como processo é antiga, remontando pelo menos a Heráclito, segundo o qual tudo flui. Em tempos mais modernos, Whitehead foi o primeiro a dar a essa noção um desenvolvimento sistemático e extensivo. Neste capítulo, discutirei, desse ponto de vista, a questão da relação entre a realidade e o conhecimento. Porém, embora meu ponto de partida explícito seja, de maneira geral, semelhante ao de Whitehead, (1) surgirão algumas implicações que podem ser significativamente diferentes das de sua obra. Considero a essência da noção de processo conforme é expressa neste enunciado: não só todas as coisas estão mudando, mas tudo é fluxo. Ou seja, o que é o processo de tornar-se si mesmo, enquanto todos os objetos, eventos, entidades, condições, estruturas, etc., são formas que podem ser abstraídas desse processo. A melhor imagem de processo talvez seja a de um curso d'água que flui, e cuja substância nunca é a mesma. Nela pode-se ver um padrão sempre cambiante de vórtices, encrespamentos, ondulações, ondas, respingos, etc., que não têm, é claro, qualquer existência independente. Em vez disso, eles são abstraídos do movimento fluente, surgindo e desaparecendo no processo total do fluxo. Uma subsistência assim transitória, como a que podem possuir essas formas abstraídas, implica apenas uma relativa independência ou autonomia de comportamento, em vez de uma existência absolutamente independente enquanto substâncias fundamentais. (Ver o Capítulo l para uma discussão adicional sobre essa noção.) É claro que a física moderna afirma que os fluxos reais (p. ex., de água) são compostos de átomos, que por sua vez são formados por "partículas elementares", tais como os elétrons, os prótons, os nêutrons, etc. Por muito tempo pensou-se que essas "partículas" fossem "a substância fundamental" de toda a realidade, e que todos os movimentos fluentes, tais como os cursos de água devem reduzir-se a formas abstraídas dos movimentos através do espaço de conjuntos de partículas interagentes. Entretanto, descobriu-se que até mesmo as "partículas elementares" podem ser criadas, aniquiladas e transformadas, e isto indica que nem mesmo estas podem ser as substâncias fundamentais, mas que são também formas relativamente constantes, abstraídas de algum nível mais profundo de movimento. Podese supor que esse nível mais profundo de movimento seja analisável em partículas ainda mais sutis, as quais talvez revelar-se-ão a substância fundamental de toda a realidade. Todavia, a noção de que tudo é fluxo, a qual investigamos aqui, nega uma tal suposição. Em vez disso, sugere que qualquer evento, objeto, entidade, etc. descritível é uma abstração de uma totalidade desconhecida e indefinível de movimento fluente. Isto significa que, independentemente de quão longe nosso conhecimento das leis da física possa ir, o conteúdo dessas leis ainda tratará de tais abstrações, dotadas apenas de uma relativa independência de existência e de comportamento. Assim, não seremos levados a supor que todas as propriedades de conjuntos de objetos, eventos, etc. terão de ser explicáveis em termos de algum grupo cognoscível de substâncias fundamentais. Em qualquer estágio, podem surgir propriedades adicionais desses conjuntos, cuja base última deve ser vista como a totalidade desconhecida do fluxo universal. Tendo discutido o que a noção de processo implica no tocante à natureza da realidade, consideremos agora como esta noção deve relacionarse com a natureza do conhecimento. É claro que, para ser coerente, é preciso dizer que o conhecimento também é um processo, uma abstração extraída de um fluxo total único, que é, portanto, em última instância, a base tanto da realidade quanto do conhecimento dessa realidade. E claro que se pode prontamente verbalizar tal noção, mas na realidade é muito difícil não cair na tendência quase universal de tratar nosso conhecimento como um conjunto de verdades basicamente fixas e, assim, não dotadas da natureza de processo (p. ex., pode-se admitir que o conhecimento está sempre mudando, mas afirmar também que é cumulativo, o que implica que seus elementos básicos são verdades permanentes que temos de descobrir.) Com efeito, mesmo o fato de defender a existência de qualquer elemento de conhecimento absolutamente invariável (tal como "tudo é fluxo") corresponde a estabelecer no campo do conhecimento algo de permanente; mas se tudo é fluxo, então cada parte do conhecimento deve ter o seu ser como uma forma abstraída no processo do vir a ser, de modo que não pode haver elementos de conhecimento absolutamente invariantes. Seria possível livrar-se dessa contradição, no sentido de se poder entender não somente a realidade, mas também todo o conhecimento, como alicerçado no movimento fluente? Ou deve-se necessariamente considerar alguns elementos de conhecimento (p. ex., aqueles que se referem à natureza de processo) como verdades absolutas, para além do fluxo do processo? É desta questão que trataremos neste capítulo. 2.O pensamento e a inteligência Para investigar a questão de como o conhecimento deve ser entendido como um processo, primeiro notamos que todo conhecimento é produzido, exibido, comunicado, transformado e aplicado no pensamento. Este, considerado em seu movimento de vir a ser (e não apenas em seu conteúdo de imagens e de ideias relativamente bem definidas) é de fato o processo em que o conhecimento existe efetiva e concretamente. (Isto foi discutido na Introdução.) O que é o processo de pensamento? O pensamento é, em essência, a resposta ativa da memória em cada fase da vida. Nele incluímos as respostas intelectuais, emocionais, sensoriais, musculares e físicas da memória. Todos eles são aspectos de um processo indissolúvel. Tratá-los separadamente favorece a fragmentação e a confusão. Todos constituem um processo único de resposta da memória para cada situação efetiva, resposta essa que por sua vez leva a uma contribuição adicional à memória, condicionando assim o próximo pensamento. Uma das primeiras e mais primitivas formas de pensamento é, por exemplo, a memória do prazer ou da dor, em combinação com uma imagem visual, auditiva ou olfativa que pode ser evocada por um objeto ou por uma situação. É comum em nossa cultura considerar as memórias envolvendo conteúdo de imagens como separadas daquelas que envolvem sentimento. Fica claro, porém, que o significado total de uma tal


memória é justamente a conjunção da imagem com o seu sentimento, o que (junto com o conteúdo intelectual e a reação física) constitui a totalidade do julgamento quanto a se o que é lembrado é bom ou mau, desejável ou não, etc. Considerado assim como a resposta da memória é claro que o pensamento é, basicamente, mecânico em sua ordem de operação. Ou é uma repetição de alguma estrutura previamente existente tirada da memória, ou então é alguma combinação, arranjo e organização dessas memórias em outras estruturas de ideias e conceitos, categorias, etc. Estas combinações podem possuir um certo tipo de novidade resultante da interação fortuita de elementos da memória, mas é claro que tal novidade é ainda essencialmente mecânica (como as novas combinações que aparecem num caleidoscópio). Nesse processo mecânico, não há nenhuma razão inerente para que os pensamentos surgidos devam ser relevantes ou adequados à situação efetiva que os evoca. A percepção da relevância ou adequação ou da irrelevância ou inadequação de quaisquer pensamentos em particular requer a operação de uma energia que não é mecânica, uma energia que chamaremos de inteligência. Esta última é capaz de perceber uma nova ordem ou uma nova estrutura, que não é apenas uma modificação do que já é conhecido ou se encontra presente na memória. Por exemplo, uma pessoa pode estar trabalhando num problema enigmático por um longo tempo. De repente, num lampejo de entendimento, ela pode ver a irrelevância de todo o seu modo de pensar sobre o problema, juntamente com uma abordagem diversa na qual todos os elementos se ajustam numa nova ordem e numa nova estrutura. É claro que esse lampejo é, essencialmente, um ato de percepção, e não um processo do pensamento (uma noção semelhante foi discutida no Capítulo 1), embora depois possa ser expresso em pensamento. O que estáenvolvido nesse ato é percepção por intermédio da mente de ordens e relações abstratas tais como identidade e diferença, separação e conexão, necessidade e contingência, causa e efeito, etc. Juntamos assim todas as respostas basicamente mecânicas e condicionadas da memória sob uma única palavra ou símbolo, isto é, pensamento, e distinguimo-la da resposta recente, original e incondicionada, da inteligência (ou percepção inteligente), onde algo de novo pode surgir. Nesse momento, no entanto, alguém pode perguntar: "Como saber se é possível uma tal resposta incondicionada?" Esta é uma questão ampla, que não pode ser plenamente discutida aqui. Entretanto, pode-se mostrar que, pelo menos implicitamente, todos de fato aceitam a noção de que a inteligência não é condicionada (e, realmente, por coerência, que não é possível proceder de outra maneira). Considere, por exemplo, uma tentativa de defender a ideia de que todas as ações do homem são condicionadas e mecânicas. Tipicamente, tal visão toma uma destas duas formas: ou se diz que o homem é basicamente um produto de sua constituição hereditária, ou então que ele é inteiramente determinado por fatores ambientais. Todavia poder-se-ia perguntar àquele que acreditasse na determinação hereditária se seu próprio enunciado afirmando essa crença não seria apenas o produto de sua hereditariedade. Em outras palavras, não seria a sua estrutura genética que o estaria compelindo a fazer uma tal declaração? Igualmente, podemos indagar àquele que acredita na determinação ambiental se a afirmação dessa crença não passaria de um jorrar de palavras segundo padrões aos quais ele foi condicionado pelo seu ambiente. ? óbvio que em ambos os casos (bem como no caso de alguém que afirmasse que o homem é totalmente condicionado por hereditariedade mais ambiente) a resposta teria de ser negativa, pois de outra forma os interlocutores estariam negando a possibilidade mesma de que aquilo que tinham dito pudesse ter significado. De fato, está necessariamente subentendido, em qualquer enunciado, que o interlocutor é capaz de falar a partir da percepção inteligente, que por sua vez é capaz de uma verdade que não é meramente o resultado de um mecanismo baseado em significados ou habilidades adquiridas no passado. Assim, vemos que ninguém pode evitar sugerir, pelo seu modo de comunicação, que aceita pelo menos a possibilidade dessa percepção livre e incondicionada que chamamos de inteligência. Ora, há muitas evidências indicando que o pensamento é basicamente um processo material. Por exemplo, tem sido observado numa grande variedade de contextos que o pensamento é inseparável da atividade elétrica e química no cérebro e no sistema nervoso, e de concomitantes tensões e movimentos musculares. Poder-se-ia dizer, então, que a inteligência é um processo semelhante, embora talvez de uma natureza mais sutil? Está implícito na visão que estamos sugerindo aqui que isso não é assim. Se a inteligência deve ser um ato incondicionado de percepção, seu fundamento não pode estar em estruturas tais como células, moléculas, átomos, partículas elementares, etc. Em última análise, qualquer coisa determinada pelas leis dessas estruturas estará no campo daquilo que pode ser conhecido, isto é, armazenado na memória, e portanto deverá ter a natureza mecânica de algo que pode ser assimilado no caráter basicamente mecânico do processo do pensamento. A operação efetiva da inteligência está, desse modo, além da possibilidade de ser determinada ou condicionada por fatores que possam ser incluídos em qualquer lei cognoscível. Assim, vemos que o fundamento da inteligência deve estar no fluxo indeterminado e desconhecido, que é também o fundamento de todas as formas definíveis de matéria. Portanto, a inteligência não é dedutível ou explicável com base em nenhum ramo do conhecimento (p. ex., na física ou na biologia). Sua origem é mais profunda e íntima do que qualquer ordem cognoscível que poderia descrevê-la. (De fato, tem de abranger a própria ordem das formas definíveis de matéria, mediante as quais esperaríamos compreender a inteligência.) Qual é, então, a relação entre a inteligência e o pensamento? Em poucas palavras, pode-se dizer que quando o pensamento funciona sozinho, ele é mecânico e não inteligente, pois impõe sua própria ordem, geralmente irrelevante e inadequada, tirada da memória. Porém, o pensamento é capaz de responder não apenas a partir da memória mas também à percepção incondicionada da inteligência que pode ver, em cada caso, se uma determinada linha de pensamento é ou não relevante e adequada. Talvez seja útil considerar aqui a imagem de um receptor de rádio. Quando a saída do receptor "realimenta" a entrada, o receptor opera sozinho, produzindo principalmente ruídos irrelevantes e sem sentido. Mas, se for sensível ao sinal da onda de rádio, sua própria ordem de movimentos internos das correntes elétricas (transformadas em ondas sonoras) corresponde à ordem do sinal, e assim o receptor serve para trazer, até o nível de sua própria estrutura, uma ordem significativa cuja origem está além desse nível. Inteligência e processo material têm, assim, uma única origem, que é, basicamente, a totalidade desconhecida do fluxo universal. Num certo sentido, isso implica que aquilo que comumente se chama de mente e de matéria são abstrações extraídas do fluxo universal, sendo que ambas devem ser vistas como ordens diferentes e relativamente autônomas no movimento uno total. (Esta noção será discutida mais adiante, no Capítulo 7.) É o pensamento responsivo à percepção inteligente que é capaz de realizar uma harmonia ou ajuste global entre a mente e a matéria. 2.A coisa e o pensamento Supondo que o pensamento é um processo material que pode ser relevante num contexto mais geral, quando se move paralelamente à percepção inteligente, somos agora levados a investigar a relação entre pensamento e realidade. Assim, costuma-se acreditar que o conteúdo do pensamento encontra-se numa espécie de correspondência reflexiva com "as coisas reais", talvez como uma espécie de cópia, ou imagem, ou imitação dos objetos, talvez um "mapa" das coisas, ou ainda (em conformidade com o que foi sugerido por Platão) uma apreensão das formas essenciais e mais íntimas das coisas. São corretas algumas dessas visões? Ou será que a própria questão não necessita de esclarecimentos adicionais? Isso porque ela pressupõe que sabemos o que significam a "coisa real" e a distinção entre realidade e pensamento. Mas é justamente isso que não é adequadamente entendido (p. ex., até mesmo a noção kantiana, relativamente sofisticada, de "coisa em si" é tão obscura quanto a ideia ingênua da "coisa real"). Talvez possamos obter uma pista investigando as origens de palavras tais como "coisa" e "realidade". O estudo das origens das palavras pode


ser visto como uma espécie de arqueologia do nosso processo de pensamento, no sentido de que os traços de formas de pensamento mais antigas podem ser descobertos por observações feitas nesse campo. Como acontece no estudo da sociedade humana, as pistas provenientes de investigações arqueológicas podem, com frequência, nos ajudar a entender melhor a situação atual. Ora, a palavra thing [coisa] remonta a várias palavras inglesas antigas, (2) cuja significação inclui "objeto", "ação", "evento", "condição", "encontro", e está relacionada com palavras que significam "determinar", "estabelecer" e, talvez, a "tempo" ou "estação". O significado original pode ter sido "algo que ocorre num dado tempo, ou sob certas condições". (Comparar com o alemão bedingen, que significa "criar condições", ou "determinar", que poderia, talvez ser convertido em inglês como to bething.) Todos esses significados indicam que a palavra thing surgiu como uma indicação altamente generalizada de qualquer forma de existência, transitória ou permanente, limitada ou determinada por condições. Qual é, então, a origem da palavra "realidade"? Ela vem do latim rés, que quer dizer thing, [coisa]. Ser real é ser uma "coisa". Reality, em sua acepção mais antiga, significaria portanto thinghood in general [reicidade em geral ou "a qualidade de ser uma coisa".] É particularmente interessante o fato de que rés venha do verbo reri, que significa "pensar", de modo que, literalmente, rés é "aquilo sobre o que se pensa". Evidentemente, está implícito que aquilo sobre o que se pensa tem uma existência independente do processo do pensamento, ou, em outras palavras, que enquanto criamos e sustentamos uma ideia como uma imagem mental pensando nela, não criamos e sustentamos uma "coisa real" deste modo. No entanto, a "coisa real" é limitada por condições que podem ser expressas em termos de pensamento. Naturalmente, a coisa real tem mais em si do que jamais pode ser sugerido pelo conteúdo do nosso pensamento sobre ela, o que sempre pode ser revelado por observações ulteriores. Além disso, nosso pensamento não é, em geral, totalmente correto, de maneira que se pode esperar, em última instância, que a coisa real exiba um comportamento ou propriedades que contradigam algumas das implicações de nosso pensamento a respeito dela. São esses, de fato, alguns dos principais meios pelos quais a coisa real pode demonstrar sua independência básica em relação ao pensamento. A indicação mais importante da relação entre coisa e pensamento é, então, que, quando alguém pensa corretamente sobre uma certa coisa, esse pensamento pode, pelo menos até certo ponto, guiar as ações dessa pessoa em relação a essa coisa de modo a produzir uma situação global harmoniosa e livre de contradição e de confusão. Se a coisa e o pensamento sobre ela têm a sua base na totalidade de fluxo una, indefinível e desconhecida, então a tentativa de explicar a relação entre eles supondo que o pensamento se encontra em correspondência reflexiva com a coisa não tem sentido, pois tanto o pensamento como a coisa são formas abstraídas do processo total. A razão pela qual essas formas estão relacionadas só pode estar na base de onde elas surgem, mas não pode haver nenhuma maneira de analisar nessa base a correspondência reflexiva, pois esta implica conhecimento, ao passo que a base está além do que pode ser assimilado no conteúdo do conhecimento. Isso significa que não pode haver nenhum insight adicional da relação entre coisa e pensamento? Sugerimos que um tal insight adicional é de fato possível, mas requer que se olhe para a questão de um modo diferente. Para mostrar a orientação envolvida nesse modo, consideremos como analogia a bem-conhecida dança das abelhas, na qual uma abelha é capaz de indicar a outras abelhas a localização das flores que contêm mel. Provavelmente, não se deve entender que essa dança produz na "mente" das abelhas uma forma de conhecimento em correspondência reflexiva com as flores. Em vez disso, é uma atividade que, quando executada apropriadamente, age como um indicador ou apontador, dispondo as abelhas numa ordem de ação que geralmente irá conduzi-las ao mel. Essa atividade não está separada das outras envolvidas na coleta do mel. Ela flui e se funde na próxima etapa, num processo ininterrupto. Assim, pode-se propor, para consideração, a noção de que o pensamento é uma espécie de "dança da mente" que funciona de modo indicativo, e que, quando adequadamente executada, flui e funde-se numa espécie de processo global harmonioso e ordenado, na vida como um todo. Nas coisas práticas, é mais ou menos claro o que essa harmonia e essa ordem significam (p. ex., a comunidade será bem sucedida em produzir alimento, vestuário, abrigo, condições de vida saudáveis, etc.), mas o homem também se empenha no pensamento que vai além do que é imediatamente prático. Por exemplo, desde tempos imemoriais ele procura entender a origem de todas as coisas e sua ordem e natureza gerais, no pensamento religioso, na filosofia e na ciência. Pode-se chamar isto de pensamento que possui, como conteúdo, "a totalidade de tudo que é" (p. ex., a tentativa de compreender a natureza da realidade como um todo). O que estamos propondo aqui é que tal compreensão da totalidade não é uma correspondência reflexiva entre "pensamento" e "realidade como um todo". Deve, em vez disso ser considerada como uma forma de arte, como a poesia, que pode nos dispor em direção à ordem e à harmonia na "dança global da mente" (e portanto no funcionamento geral do cérebro e do sistema nervoso). Este ponto foi assinalado anteriormente, na Introdução. O que é, então, exigido aqui não é uma explicação que nos daria algum conhecimento da relação entre pensamento e coisa, ou entre pensamento e "realidade como um todo". Em vez disso, o que é necessário é um ato de entendimento, no qual vemos a totalidade como um processo efetivo que, realizado adequadamente, tende a produzir uma ação global harmoniosa e ordenada, incorporando tanto o pensamento como aquilo que é pensado num único movimento, no qual a análise em partes separadas (p. ex., pensamento e coisa) não tem qualquer sentido. 3.O pensamento e o não-pensamento Embora esteja claro que, fundamentalmente, pensamento e coisa não podem ser analisados de modo adequado como existentes separadamente, também é evidente que na experiência imediata do homem é preciso que se façam algumas dessas análises e separações, pelo menos provisoriamente, ou como ponto de partida. De fato, a distinção entre o que é real e o que é mero pensamento, e portanto imaginário ou ilusório, é absolutamente necessária, não apenas para o sucesso nos negócios práticos, mas também se, no final das contas, queremos manter nossa sanidade. É útil considerar aqui como uma tal distinção pode ter surgido. Sabe-se muito bem, (3) por exemplo, que uma criança pequena muitas vezes acha difícil distinguir os conteúdos de seu pensamento das coisas reais (p. ex., a criança pode imaginar que esses conteúdos são visíveis para os outros, assim como o são para ela, e pode ter medo do que os outros chamam de "perigos imaginários"). Assim, embora ela tenda a iniciar o processo do pensamento de maneira ingênua (isto é, sem estar explicitamente cônscia de que está pensando), num certo estágio ela torna-se conscientemente atenta em face desse processo, ao se dar conta que algumas "coisas" que parece perceber são, efetivamente, "apenas pensamentos" e portanto são "não-coisas" no things, ou são nada nothing, enquanto que outras são "reais", isto é, são alguma coisa something. Frequentemente, o homem primitivo deve ter-se encontrado numa situação semelhante. À medida que ele começou a consolidar os objetivos do seu pensamento técnico prático em seu trato com as coisas, essas imagens do pensamento tornaram-se mais intensas e mais frequentes. Com o fim de estabelecer, no todo de sua vida, um equilíbrio e uma harmonia adequados, ele provavelmente sentiu a necessidade de desenvolver de maneira semelhante, o pensamento sobre a totalidade. Neste último tipo de pensamento, a distinção entre pensamento e coisa é particularmente passível de confusão. Assim, à medida que os homens começavam a pensar nas forças da natureza e nos deuses, e que os artistas faziam imagens realísticas de animais e de deuses as quais eles sentiam como sendo possuidoras de poderes mágicos ou transcendentes, esses seres humanos eram levados a empenhar-se num tipo de pensamento sem qualquer referente físico bem-delineado que fosse tão intenso, tão persistente, e tão "realístico" que eles não mais seriam capazes de manter uma clara distinção entre imagem mental e realidade. Tais experiências devem ter, finalmente, dado origem a um profundo anseio de esclarecer essa distinção (expresso em perguntas tais como: "Quem sou eu? Qual é a minha natureza?", "Qual é a verdadeira relação entre o homem, a natureza e os deuses?", etc.), pois ficar permanentemente


confuso sobre o que é real e o que não é, é um estado que o homem acaba por considerar intolerável, uma vez que não apenas torna impossível uma abordagem racional dos problemas práticos, mas também despoja a vida de todo o seu significado. ? claro, então, que mais cedo ou mais tarde o homem, em seu processo global de pensamento, empenhar-se-ia em tentativas sistemáticas para esclarecer essa distinção. Pode-se ver que, em alguma etapa, é preciso perceber nesse processo que não basta saber como distinguir pensamentos específicos de coisas específicas. Em vez disso, é necessário entender a distinção universalmente. Talvez, então, o homem primitivo ou a criança pequena possam ter um lampejo de insight no qual eles vejam, provavelmente sem verbalizar de modo explícito, que o pensamento como um todo precisa ser distinguido da totalidade daquilo que não é pensamento. Isto pode ser expresso mais sucintamente como a distinção entre pensamento e não-pensamento, e abreviado em seguida como P e NP. A linha de raciocínio implícita nessa distinção é: P não é NP (pensamento e nãopensamento são diferentes e mutuamente exclusivos). Tudo ou é P ou é NP (pensamento e não-pensamento abrangem a totalidade de tudo o que pode existir). Num certo sentido, o verdadeiro pensamento começa com essa distinção. Antes desta ser feita, o pensamento pode ocorrer, mas, como indicamos antes, não haverá plena consciência de que é ele que está ocorrendo. Portanto, o pensamento propriamente dito começa ao conscientizar-se de si mesmo como distinto do não-pensamento. Além disso, essa etapa em que o pensamento propriamente dito começa é, talvez, o primeiro pensamento do homem que tem a totalidade como conteúdo. E podemos ver quão profundamente tal pensamento se acha encravado na consciência de toda a humanidade, e como surge muito cedo como um estágio necessário na tentativa do pensamento para trazer sanidade e ordem à sua "dança". Esse modo de pensamento é ulteriormente desenvolvido e articulado pela tentativa de se descobrir várias características ou qualidades distintivas que pertençam ao pensamento e ao não pensamento. Desse modo, o não-pensamento é geralmente identificado com a realidade, no sentido de thing hood reicidade. Conforme indicamos anteriormente, as coisas reais são reconhecidas principalmente por sua independência em relação a como pensamos sobre elas. Outras distinções características são que as coisas reais podem ser palpáveis, estáveis, resistentes às tentativas de mudá-las, fontes de atividade independente através do todo da realidade. Por outro lado, os pensamentos podem ser considerados como mera "substância mental", impalpável, transitória, facilmente alterada, e incapaz de iniciar linhas independentes de atividade fora de si próprias, etc. Em última análise, porém, uma distinção assim rígida entre pensamento e não-pensamento não pode ser mantida, pois é possível ver que o pensamento é uma atividade real, que precisa estar embasada numa totalidade mais ampla de movimento e ação reais, que se sobrepõe ao pensamento e o inclui. Portanto, como já foi assinalado, o pensamento é um processo material cujo conteúdo é a resposta total da memória, incluindo sentimentos, reações musculares e mesmo sensações físicas, que se fundem com a resposta total e dela fluem. De fato, todos os aspectos artificiais do nosso ambiente geral são, nesse sentido, extensões do processo de pensamento, pois seus moldes, formas e ordens gerais de movimento originam-se basicamente no pensamento, e são incorporadas neste ambiente, na atividade do trabalho humano, que é guiado por tal pensamento. Inversamente, tudo que está no ambiente geral tem, seja naturalmente ou mediante atividade humana, um molde, uma forma e um modo de movimento, cujo conteúdo "flui para dentro" através da percepção, dando origem a impressões dos sentidos que deixam traços de memória, contribuindo assim para a base de pensamentos ulteriores. Nesse movimento total, o conteúdo que estava originalmente na memória é continuamente transferido para o ambiente, tornando-se um aspecto integrante dele; e o conteúdo total, que estava originalmente no ambiente, é transferido para a memória, tornando-se um aspecto integrante dela, de modo que (como se mostrou anteriormente) os dois participam de um único processo total, no qual a análise em partes separadas (p. ex., pensamento e coisa) não tem, em última instância, nenhum significado. Tal processo, em que o pensamento (isto é, a resposta da memória) e o ambiente geral estão indissoluvelmente ligados, possui, evidentemente, a natureza de um ciclo, como é ilustrado simbolicamente na Figura 3.1 (embora, é claro, o ciclo deva ser visto, mais precisamente, abrindo-se sempre numa espiral). Esse movimento cíclico (ou espiralado), em que o pensamento tem a sua plena existência efetiva e concreta, inclui também a [Memória - Ambiente geral] Figura 3.1 comunicação de pensamentos entre pessoas (que fazem parte do ambiente umas das outras), aprofundando-se indefinidamente no passado. Assim, em nenhum estágio podemos dizer propriamente que o processo global do pensamento começa ou termina. Em vez disso, ele deve ser visto como uma totalidade una e ininterrupta de movimento, não pertencendo a qualquer pessoa, lugar, tempo ou grupo de pessoas em particular. Considerando a natureza física da resposta da memória em reações de nervos, sentimentos, movimentos musculares, etc., e considerando a fusão dessas respostas com o ambiente geral no processo cíclico global descrito, vemos então que o pensamento é o não-pensamento (P é NP). Inversamente, no entanto, podemos ver também que o não-pensamento é o pensamento (NP é P). Portanto, "realidade" é efetivamente uma palavra com um certo conteúdo de pensamento implícito. Na verdade, isto pode ser dito de qualquer termo em nossa linguagem, mas, como foi observado, tais termos podem, em geral, indicar coisas reais, que, em princípio, podemos perceber. Todavia, não há meio de olhar para a realidade como se ela fosse algum tipo de "coisa", a fim de testar se a nossa ideia se ajusta ou não a essa "coisa chamada realidade". Quanto a isso, de fato já sugerimos que o termo "realidade" indica uma totalidade de fluxo desconhecida e indefinível, que é a base de todas as coisas e do próprio processo de pensamento, bem como do movimento da percepção inteligente. Mas isso não altera basicamente a questão, pois se a realidade é assim desconhecida e incognoscível, como podemos estar certos de que, no final das contas, ela está lá? A resposta, naturalmente, é que não podemos ter certeza. No entanto, não se conclui disso que a "realidade" seja uma palavra sem sentido, pois, como já vimos, a mente em sua "dança do pensamento" pode, no final das contas, mover-se de uma maneira ordenada e sã apenas se a "forma da dança" incluir algum tipo de distinção entre pensamento e não-pensamento (isto é, a realidade). Contudo, vimos também que essa distinção tem de ser feita no fluxo, sempre mutável do processo em que o pensamento converte-se em não-pensamento, enquanto que o não-pensamento converte-se em pensamento, de modo que ela não pode ser considerada fixa. Uma tal distinção não fixa evidentemente requer o movimento livre da percepção inteligente, que pode, a cada ocasião, discernir qual o conteúdo que se origina no pensamento e qual se origina numa realidade independente do pensamento. Fica claro, então, que o termo "realidade" (que nesse contexto significa "realidade como um todo") não deve ser propriamente considerado como parte do conteúdo do pensamento. Ou, expressando-o de outra forma, podemos dizer que a realidade não é uma coisa, e que também não é a totalidade de todas as coisas (isto é, não devemos identificar "realidade" com todas as coisas"). Uma vez que a palavra "coisa" significa uma forma condicionada de existência, isto significa que a "realidade como um todo" também não deve ser vista como condicionada. (De fato, não poderia ser coerentemente assim considerada, pois o próprio termo "realidade como um todo" implica que ele contém todos os fatores que poderiam condicioná-lo e dos quais poderia depender. Portanto, qualquer noção de totalidade baseada numa distinção fixa e permanente entre pensamento e realidade deve desmoronar quando aplicada à totalidade.


A forma original da distinção fixa entre pensamento e realidade (isto é, não-pensamento) era: P não é NP - Tudo ou é P ou é NP. Essa forma é característica daquilo que é chamado de lógica aristotélica (embora, é claro, provavelmente seja tão antiga quanto o próprio pensamento, enquanto que Aristóteles foi apenas a primeira pessoa que conhecemos a enunciá-la clara e sucintamente). Isto pode ser chamado de lógica própria das coisas. Qualquer forma específica de pensamento que se ajuste a essa lógica pode, evidentemente, ser aplicável a uma coisa correspondente apenas sob certas condições que são requeridas para essa coisa ser o que é. Isto é, um conjunto de formas de pensamento que seguem as regras da lógica aristotélica servirão como guias adequados em atividades que incorporam coisas somente em algum domínio limitado, além do qual essas coisas devem mudar ou comportar-se de novas maneiras, de modo que outras formas de pensamento serão então necessárias. Porém, quando chegamos a considerar a "totalidade de tudo o que é", nosso principal interesse não está, como já vimos, nas coisas condicionadas, mas na totalidade incondicionada que é a base fundamental de tudo. Aqui, as regras enunciadas por Aristóteles falham, no sentido de que não há sequer um domínio limitado ou conjunto de condições sob as quais elas possam ser aplicadas: pois, em acréscimo às regras aristotélicas, temos de afirmar as seguintes: P é NP - NP é P Tudo é tanto P como NP (isto é, os dois fundem-se e fluem um no outro, num único processo ininterrupto, no qual são essencialmente um). Tudo nem é P nem NP (isto é, o fundamento último é desconhecido, e portanto não-especificável, nem como P nem como NP, ou de qualquer outro modo). Se isso for combinado com os enunciados originais, "P não é NP" e ''Tudo ou é P ou é NP", e se ainda supusermos que "P" e "NP" são nomes de coisas, deduziremos uma absoluta autocontradição. O que estamos fazendo aqui é considerar toda essa combinação como uma indicação de que "P" e "NP" não são nomes de coisas. Em vez disso, como foi indicado anteriormente, eles devem ser considerados como termos em nosso discurso cuja função é dispor a mente para um ato de percepção inteligente, onde a exigência é discernir, em cada caso, que conteúdo se origina no pensamento (isto é, a resposta da memória) e que conteúdo tem a sua origem em alguma "realidade" independente do pensamento. Visto que esta última é essencialmente desconhecida e incognoscível, um tal discernimento evidentemente não pode tomar a forma de uma atribuição de um determinado aspecto do conteúdo a uma determinada categoria fixa, P ou NP. Em vez disso, se houver uma consciência da totalidade sempre mutável, daquilo que tem origem no pensamento (isto é, na resposta da memória, que é o campo do conhecido), então, por implicação, o que não estiver nessa totalidade tem de ser tratado como de origem independente do pensamento. Obviamente, é de extrema importância que nenhuma parte daquilo que se origina na resposta da memória seja perdida ou fique fora da consciência. Ou seja, o principal "engano" que pode ser cometido nessa área não é aquele positivo de se atribuir erroneamente o que se origina no pensamento a uma realidade independente dele. Em vez disso, é o engano negativo de negligenciar ou deixar de perceber que um certo movimento origina-se no pensamento, e assim, implicitamente, tratá-lo como originário do não-pensamento. Desse modo, o que constitui efetivamente o processo único do pensamento é tratado tacitamente como se estivesse dividido em duas partes (mas, é claro, sem que se perceba que isso está acontecendo). Essa fragmentação inconsciente do processo de pensamento deve levar a uma distorção de toda a percepção. Pois se alguém é assim levado a atribuir as próprias respostas de sua memória a uma realidade que seria independente dessas respostas, haverá uma ulterior "realimentação" resultando em mais pensamentos irrelevantes sobre essa "realidade independente". Esses pensamentos ainda constituirão ulteriores respostas inadequadas de memória que se somam a essa "realidade independente" num processo que se mantém a si mesmo e do qual, geralmente, é muito difícil escapar. Esse tipo de realimentação (que indicamos anteriormente em relação à analogia em que o pensamento é visto como semelhante a um receptor de rádio) tenderá, eventualmente, a confundir toda a operação da mente. 4.O campo do conhecimento considerado como processo Na experiência ordinária, onde lidamos com coisas sensorialmente perceptíveis, mais cedo ou mais tarde costuma ser possível para a percepção inteligente discernir com clareza a totalidade daqueles aspectos da experiência que se originam no pensamento (e, por implicação, a totalidade daqueles cuja origem é independente do pensamento). Porém, como já vimos, no pensamento que visa a possuir a totalidade como seu conteúdo, é muito difícil ter uma tal clareza, por um lado porque esse pensamento é tão intenso, contínuo e total que oferece uma forte impressão de realidade, e por outro porque não há "coisas" sensorialmente perceptíveis em comparação com as quais ele pudesse ser testado. É, portanto, muito fácil, devido à atenção inadequada ao processo efetivo do pensamento, "encaixar-se" numa forma de resposta condicionada da memória, onde não se está alerta ao fato de que ainda é apenas uma forma de pensamento, uma forma que visa a dar uma visão do "todo da realidade". Portanto, por negligência, cai-se na armadilha de se tratar tacitamente uma tal visão como se ela se originasse independentemente do pensamento, implicando assim que seu conteúdo é efetivamente o todo da realidade. Daí em diante, não se verá, no campo total acessível, espaço para mudança na ordem global, conforme suposto nas noções de totalidade, as quais, de fato, devem agora parecer encerrar tudo o que é possível ou mesmo imaginável. Isto significa, contudo, que o nosso conhecimento sobre "o todo da realidade" terá então de ser considerado como tendo uma forma fixa e final, que reflete ou revela uma forma correspondentemente fixa e final do que essa realidade total é efetivamente. A adoção de uma tal atitude tenderá evidentemente a evitar aquele livre movimento da mente necessário à clareza da percepção, contribuindo assim para uma distorção e uma confusão difusas que se estenderiam a cada aspecto da experiência. Como foi anteriormente indicado, o pensamento que tem a totalidade como seu conteúdo tem de ser considerado uma forma de arte, como a poesia, cuja função é, principalmente, o de dar origem a uma nova percepção, e a uma ação que esteja implícita nessa percepção e não a de comunicar o conhecimento reflexivo de "como são todas as coisas". Isto implica que não pode haver uma forma definitiva de um tal pensamento, assim como não pode haver um poema definitivo (que faça com que todos os poemas ulteriores sejam desnecessários). Qualquer forma particular de pensar sobre a totalidade indica de fato um modo de olhar para nosso contato total com a realidade, tendo assim implicações sobre como podemos agir nesse contato. Porém, cada um desses modos de olhar é limitado, no sentido de que pode levar à ordem e à harmonia globais somente até certo ponto, além do qual ele deixa de ser relevante e adequado. (Compare com a noção de verdade em função, no Capítulo 2.) Em última análise, o movimento efetivo do pensamento, incorporando qualquer noção específica de totalidade, tem de ser visto como um processo, com forma e conteúdo em perpétua mudança. Se esse processo for apropriadamente executado, com atenção ao pensamento e consciência dele, em seu fluxo efetivo de vir a ser, então não se cairá no hábito de tratar o conteúdo tacitamente como uma realidade final e essencialmente estática, que seria independente do pensamento. Mesmo esse enunciado sobre a natureza de nosso pensamento é, no entanto, em si mesmo apenas uma forma no processo total de vir a ser, uma forma que indica uma certa ordem de movimento da mente, e uma certa disposição necessária para que ela se empenhe com harmonia num tal movimento. Portanto, nada há de definitivo em relação a este. Nem podemos dizer aonde ele levará. É evidente que temos de estar abertos para ulteriores mudanças fundamentais de ordem em nosso pensamento, à medida que prosseguimos com o processo. Essas mudanças têm de ocorrer em novos e criativos atos de insight,


necessários para o movimento ordenado de tal pensamento. O que estamos sugerindo neste capítulo é que apenas uma visão do conhecimento como uma parte integrante do fluxo total do processo pode, em geral, levar a uma abordagem mais ordenada e harmoniosa em relação à vida como um todo, em vez de levar a uma concepção estática e fragmentária, que não trata o conhecimento como um processo, e que o separa do restante da realidade. É importante enfatizar, nesse contexto, que identificar permanentemente certas visões relativas à totalidade como pertencendo a Whitehead, ou a ou trem, é interferir com a tarefa de tratar o conhecimento coerentemente como parte integrante de um processo global. De fato, quem quer que assuma as concepções de Whitehead está efetivamente tomando-as como ponto de partida, num processo ulterior do vir a ser do conhecimento. (Talvez pudéssemos dizer que ele está descendo mais ainda o "rio do conhecimento".) Neste processo, alguns aspectos podem mudar com muita lentidão, ao passo que outros o fazem mais rapidamente, mas o ponto principal a se ter em mente é que o processo não possui nenhum aspecto definível absolutamente fixo. É claro que a percepção inteligente é necessária, a cada momento, para discernir aqueles aspectos que devem mudar vagarosamente e aqueles que devem apresentar uma mudança rápida, à medida que se trabalha na "forma de arte" da criação de ideias sobre a "totalidade de tudo o que é". Aqui temos de estar muito alertas e ser muito cuidadosos, pois tendemos a tentar fixar o conteúdo essencial de nossa análise num determinado conceito ou imagem, e falar a respeito dele como se fosse uma "coisa" separada, independente de nosso pensamento a respeito dele. Não notamos que, de fato, essa "coisa" tornou-se apenas uma imagem, uma forma no processo global do pensamento, isto é, uma resposta da memória, que é um resíduo de percepções passadas que atravessam a mente (seja a de outrem ou a da própria pessoa). Assim, de um modo muito sutil, podemos mais uma vez ser aprisionados num movimento em que tratamos algo que se origina em nosso próprio pensamento como se fosse uma realidade que se originasse independentemente desse pensamento. Podemos nos manter fora dessa armadilha permanecendo cônscios de que a afetividade do conhecimento é um processo vivo cuja ocorrência é exatamente agora (p. ex., nesta sala). Num processo efetivo, não estamos apenas falando sobre o movimento do conhecimento, como se o olhássemos de fora. Estamos na verdade tomando parte nesse movimento, conscientes de que é isso de fato o que está acontecendo. Ou seja, é uma realidade autêntica para todos nós, uma realidade que podemos observar e à qual podemos dedicar nossa atenção. Então, a pergunta fundamental é: "Podemos estar cientes da realidade sempre mutável e fluente desse processo efetivo do conhecimento?" Se podemos pensar a partir dessa percepção atenta, não confundiremos o que se origina no pensamento com o que tem origem na realidade que é independente do pensamento. E assim, a arte de pensar com a totalidade como seu conteúdo pode desenvolver-se de maneira tal que fique livre da confusão inerente àquelas formas de pensamento que tentam definir, de uma vez por todas, "o que é o todo da realidade", e que, portanto, nos levam a confundir o conteúdo de um tal pensamento com a ordem global de uma realidade total que seria independente do pensamento. CAPÍTULO 4 Variáveis ocultas na teoria quântica Há muito tempo, pensou-se que a questão da existência de variáveis ocultas subjacentes à teoria quântica estivesse resolvida negativamente. Em consequência disso, a maioria dos físicos modernos não mais a considera como relevante para a teoria física. Nos últimos anos, porém, vários físicos, incluindo o autor, desenvolveram uma nova abordagem para esse problema, que levanta mais uma vez a questão das variáveis ocultas. (1) Meu objetivo aqui é rever sucintamente os principais aspectos do que tem sido realizado até agora nessa nova abordagem e, assim, indicar algumas linhas gerais ao longo das quais estão se desenvolvendo atualmente teorias que envolvem variáveis ocultas. No decurso deste capítulo, mostraremos diversas razões pelas quais as teorias que envolvem essas variáveis prometem ser significativas para o tratamento de novos problemas da física, especialmente aqueles que surgem no domínio das distâncias muito curtas (da ordem de 10 a 13 cm ou menos) e das energias muito altas (da ordem de 109 ev. ou mais). Finalmente, responderemos às principais objeções levantadas contra a noção de variáveis ocultas; isto é, as dificuldades em lidar com as relações de incerteza de Heisenberg, a quantização da ação, o paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky, e os argumentos de Von Neumann contra a possibilidade de tais variáveis. 1.Os principais aspectos da teoria quântica A fim de entender o modo como se desenvolveu a teoria das variáveis ocultas, primeiro é necessário ter em mente os principais aspectos da teoria quântica. Embora haja várias formulações alternativas para essa teoria (devidas a Heisenberg, Schrodinger, Dirac, Von Neumann e Bohr), que diferem um pouco na interpretação, (2) todas possuem em comum as seguintes suposições básicas: 1. As leis fundamentais da teoria quântica devem ser expressas com o auxílio de uma função de onda (em geral, multidimensional), que satisfaz uma equação linear (de modo que as soluções possam ser superpostas linearmente). 2. Todos os resultados físicos devem ser calculados com o auxílio de certos "observáveis", representados por operadores hermitianos, que operam linearmente sobre a função de onda. 3. Qualquer observável em particular é definido (claramente definido) somente quando a função de onda é uma eigenfunção* do operador correspondente. *[Também conhecida como autofunção. (N. do T.)] 4. Quando a função de onda não é uma eigenfunção desse operador, então o resultado de uma medição do observável correspondente não pode ser determinado de antemão. Os resultados de uma série de medições efetuadas sobre um ensembk** de sistemas representado pela mesma função de onda flutuará aleatoriamente (sob ausência de lei) de um caso para o seguinte, cobrindo as várias possibilidades. **[Conjunto estatístico de sistemas identicamente preparados e submetidos às mesmas condições. (N. do T.)] 5. Se a função de onda é dada por V = Cnyn onde V é a eigenfunção do operador em questão correspondente ao enésimo eigenvalor***, a probabilidade de se obter o enésimo eigenvalor num grande ensembk de medições será dada por P=CJ.***[Também conhecido como autovalor. (N. do T.)] 6. Devido à não-comutação de muitos operadores (tais como P e x) que correspondem a variáveis que devem ser definidas conjuntamente na mecânica clássica, segue-se que não podem existir funções de onda que sejam eigenfunções simultâneas de todos os operadores significativos para um dado problema físico. Isto significa que nem todos os observáveis fisicamente significativos podem ser determinados conjuntamente e, o que é mais importante, aqueles que não são determinados flutuarão aleatoriamente (sob ausência de lei) numa série de medidas tomadas num ensemble representado pela mesma função de onda. 2. Limitações impostas ao determinismo pela teoria quântica


A partir dos aspectos descritos na seção anterior, vê-se imediatamente que existe uma certa limitação quanto ao grau em que são determinados os resultados das medições individuais, de acordo com a teoria quântica. Essa limitação aplica-se a qualquer medida que dependa apreciavelmente das propriedades quânticas da matéria. Assim, num ensemble de núcleos radioativos, o decaimento de cada um deles pode ser detectado individualmente pelo clique de um contador Geiger. Um estudo mais detalhado da mecânica quântica do problema mostra que o operador correspondente à medida de um produto do decaimento não comuta com o operador cujas eigenfunções representam os núcleos nãodesintegrados. Desse modo, segue-se que se começarmos com um ensemble de núcleos não-desintegrados, representados pela mesma função de onda, cada núcleo individual decairá após um tempo imprevisível. Esse tempo variará de um núcleo para outro sem qualquer lei, enquanto que apenas a fração média que decai num dado intervalo de tempo pode ser prevista aproximadamente a partir da função de onda. Quando tais previsões são comparadas com a experiência, descobre-se de fato que há uma distribuição aleatória de cliques do contador Geiger, juntamente com uma distribuição média regular que obedece às leis de probabilidade implicadas pela teoria quântica. 3. Sobre a interpretação do indeterminismo na teoria quântica Partindo do fato de que a teoria quântica concorda com a experiência num domínio tão amplo (incluindo o problema tratado na seção anterior como um caso especial, mas típico), é evidente que os aspectos indeterminísticos da mecânica quântica são de algum modo um reflexo do comportamento real da matéria nos domínios atômico e nuclear. Mas aqui surge a questão de como interpretar de maneira adequada esse indeterminismo. Para esclarecer o significado dessa questão, consideraremos alguns problemas análogos. Assim, é bem conhecido o fato de que as companhias de seguro operam com base em certas leis estatísticas, que prevêem com alto grau de aproximação o número médio de pessoas numa dada classe de idade, altura, peso, etc., que morrerão de uma certa doença num determinado período de tempo. Elas podem fazer isso mesmo não sendo capazes de prever a época exata da morte de um segurado individual, e mesmo que essas mortes individuais estejam distribuídas aleatoriamente, de um modo que é desprovido de qualquer relação dotada de lei face ao tipo de dados que a companhia de seguros é capaz de coletar. Não obstante, o fato de leis estatísticas dessa natureza operarem não impede a operação simultânea de leis individuais que determinem mais detalhadamente as condições precisas da morte de cada segurado (p. ex., um homem pode atravessar uma rua num determinado momento e ser atropelado por um carro, ele pode ser exposto a germes patogênicos quando se acha num estado de debilitação, etc.), pois quando o mesmo resultado (morte) pode ser produzido por um grande número de causas essencialmente independentes, não há qualquer razão pela qual essas causas não devam ser distribuídas de modo tal que resultem em leis estatísticas num grande agregado. A importância de tais considerações é bem evidente. Assim, no campo de pesquisa médica, a atuação de leis estatísticas nunca é vista como uma razão contra a busca de leis individuais mais detalhadas (p. ex., o que faz um dado indivíduo correr num determinado momento, etc.). De maneira semelhante, no campo da física, quando se descobriu que esporos e partículas de fumaça sofrem um movimento aleatório que obedece a certas leis estatísticas (o movimento browniano), supôs-se que tal movimento era devido aos impactos de miríades de moléculas, obedecendo a leis individuais mais profundas. As leis estatísticas foram então consideradas coerentes com a possibilidade de leis individuais mais profundas, pois, como no caso das estatísticas de seguro, o comportamento global de uma partícula browniana individual seria determinado por um número muito grande de fatores essencialmente independentes. Ou, de um modo mais geral: o estado de ausência de lei no comportamento individual, no contexto de uma dada lei estatística, é, em geral, coerente com a noção de leis individuais mais detalhadas que se aplicam num contexto mais amplo. Em vista da análise anterior, parece evidente que, ao menos na superfície da questão, deveríamos ter a liberdade de considerar a hipótese de que os resultados de medições quântico-mecânicas individuais são determinados por uma multidão de novos tipos de fatores, fora do contexto daquilo que pode fazer parte da teoria quântica. Esses fatores seriam representados matematicamente por um conjunto adicional de variáveis, descrevendo os estados de novos tipos de entidades existentes num nível subquântico-mecânico mais profundo e obedecendo qualitativamente a novos tipos de leis individuais. Essas entidades e suas leis constituiriam, então, um novo aspecto da natureza, um aspecto que atualmente está "oculto". Mas então os átomos, postulados primeiramente para explicar o movimento browniano e regularidades em grande escala, também estavam originalmente "ocultos" de maneira semelhante, sendo revelados em detalhes somente mais tarde, por meio de novos tipos de experimentos (p. ex., contadores Geiger, câmaras de bolhas, etc.), sensíveis às propriedades dos átomos individuais. De maneira semelhante, pode-se supor que as variáveis que descrevem as entidades subquântico-mecânicas serão reveladas em detalhe quando tivermos descoberto ainda outros tipos de experimentos, que podem ser tão diferentes dos atuais como estes o são daqueles capazes de revelar as leis no nível das grandes escalas (p. ex., medidas de temperatura, de pressão, etc.). A essa altura, é preciso declarar que, como já se sabe - a maioria dos físicos teóricos modernos (3) rejeitou qualquer sugestão do tipo descrito acima. Eles o fazem principalmente com base na conclusão de que as leis estatísticas da teoria quântica são incompatíveis com a possibilidade de leis individuais mais profundas. Em outras palavras, embora em geral admitissem que alguns tipos de leis estatísticas são coerentes com a suposição de leis individuais adicionais operando num contexto mais amplo, eles acreditam que as leis da mecânica quântica nunca poderiam ser consideradas satisfatoriamente leis desse tipo. Os aspectos estatísticos da teoria quântica são assim vistos como representando uma espécie de estado irredutível de ausência de lei nos fenômenos individuais, no domínio quântico. Todas as leis individuais (p. ex., as da mecânica clássica) são então consideradas como casos limites das leis de probabilidade da teoria quântica, aproximadamente válidas para sistemas que envolvem grandes números de moléculas. 4. Argumentos a favor da interpretação do indeterminismo mecânico-quântico enquanto estado irredutível de ausência de lei Consideraremos agora os principais argumentos sobre os quais se baseia a conclusão de que o indeterminismo mecânico quântico representa uma espécie de estado irredutível de ausência de lei. 4.1 Principio de incerteza de Heisenberg Começamos com uma análise do princípio da incerteza de Heisenberg. Ele mostrou que mesmo supondo-se a existência efetiva de variáveis fisicamente significativas com valores nitidamente bem-definidos (como é exigido pela mecânica clássica), nunca poderíamos medir todas elas simultaneamente, pois a interação entre o aparelhamento de observação e o que é observado sempre envolve uma troca de um ou mais quanta indivisíveis e incontrolavelmente flutuantes. Por exemplo, se se tentar medir a coordenadas ôxö e o momentum associado, ôpö de uma partícula, esta será perturbada de tal modo que a máxima precisão para a determinação simultânea de ambas as variáveis é dada pela bem-conhecida relação Ap Ax > h. Consequentemente, mesmo que houvesse leis subquânticas mais profundas determinando o comportamento preciso de um elétron individual, não haveria como verificar, por qualquer tipo de medição concebível, que essas leis estivessem realmente atuando. Conclui-se, portanto, que a noção de um nível subquântico seria "metafísica",


ou destituída de conteúdo experimental real. Heisenberg argumentava que é desejável formular leis físicas em termos do menor número de tais noções, pois elas não acrescentam nada às previsões físicas da teoria, embora compliquem a expressão de um modo irrelevante. 4.2 Os argumentos de von Neumann contra as variáveis ocultas Os próximos argumentos principais contra as variáveis ocultas, isto é, aqueles de von Neumann, serão apresentados numa forma simplificada. Dos postulados (4), (5) e (6) da seção 1, segue-se que nenhuma função da onda pode descrever um estado em que iodos as quantidades fisicamente significativas estejam "isentas de dispersão" (isto é, claramente definidas e livres de flutuação estatística). Logo, se uma dada variável (digamos, p) é razoavelmente bem-definida, a variável conjugada (x) deve flutuar numa ampla faixa. Suponhamos que, quando o sistema se encontra em tal estado, haja variáveis ocultas num nível mais profundo que determinem justamente como x irá flutuar em casa ocasião. ? claro, não teríamos qualquer necessidade de determinar os valores dessas variáveis ocultas e, num ensemble estatístico de medidas de x, ainda obteríamos as mesmas flutuações conforme previstas pela teoria quântica. No entanto, cada caso que desse um certo valor de x pertenceria a um certo conjunto de valores das variáveis ocultas e, consequentemente, o ensemble poderia ser considerado como composto de um conjunto correspondente de subensembles distintos e claramente definidos. Von Neumann argumentava, porém, que esse conjunto de subensembles distintos e claramente definidos não é coerente com algumas outras características essenciais da teoria quântica, isto é, aquelas associadas com a interferência entre partes da função de onda correspondentes a diferentes valores de x. Para demonstrar essa interferência, poderíamos abster-nos de medir x, mas, em vez disso, fazemos uma terceira medida, que determina um observável sensível à forma da função de onda numa ampla região do espaço. Por exemplo, poderíamos fazer com que as partículas atravessassem uma rede de difração e então medir o padrão de difração. (Na verdade, von Neumann analisou o caso de um observável que corresponde à soma de dois ou mais operadores não-comutativos; mas é evidente que num experimento de interferência realizamos fisicamente um exemplo justamente com um tal observável, visto que o resultado final determina algumas combinações complexas de operadores de posição e de momentum para o sistema observado.) Sabe-se muito bem que num tal experimento ainda se obtém um padrão estatístico de interferência, mesmo fazendo as partículas atravessarem o aparelho em intervalos tão distanciados que cada uma delas entra separada e independentemente de todas as outras. Porém, se todo o ensemble dessas partículas fosse dividido em subensembles, cada um deles correspondendo a um elétron atingindo a rede num valor definido de x, então o comportamento estatístico de cada subensemble seria representado por um estado correspondente a uma função delta do ponto em questão. Consequentemente, um único subensemble poderia não apresentar qualquer interferência que representasse as contribuições de diferentes partes da rede. Como os elétrons entram separada e independentemente, também não será possível qualquer interferência entre subensenbles correspondentes a diferentes posições. Desse modo, mostramos que a noção de variáveis ocultas não é compatível com as propriedades de interferência da matéria, que são experimentalmente observadas mas também são consequências necessárias da teoria quântica. Von Neumann generalizou esse argumento, tornando-o mais preciso; mas chegou essencialmente ao mesmo resultado. Em outras palavras, ele concluiu que não se pode supor, coerentemente, que nada (nem mesmo as hipotéticas variáveis ocultas) determine de antemão os resultados de uma medição individual mais detalhadamente do que é possível de acordo com a teoria quântica. 4.3 O paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky O terceiro argumento importante contra as variáveis ocultas está intimamente ligado à análise do paradoxo de Einstein. Este paradoxo surgiu do ponto de vista, originalmente muito difundido, de considerar o princípio da incerteza como nada mais do que uma expressão do fato de que há uma perturbação mínima, imprevisível e incontrolável, em cada processo de medição. Einstein, Rosen e Podolsky sugeriram então um experimento hipotético, a partir do qual se poderia ver o caráter insustentável da referida interpretação do princípio de Heisenberg. Daremos aqui uma forma simplificada desse experimento. Considere uma molécula de spin total zero, consistindo em dois átomos de spin h/2. Suponha que essa molécula seja desintegrada por um método que não modifique o spin de nenhum dos átomos. O spin total permanece, então, igual a zero, até mesmo enquanto os átomos estão se separando e deixaram de interagir apreciavelmente. Ora, se qualquer componente do spin de um dos átomos (digamos, A) for medido, então, pelo fato de ser zero o spin total, podemos imediatamente concluir que esse componente do spin do outro átomo (B) é exatamente oposto. Logo, medindo-se qualquer componente do spin do átomo A, podemos obter o valor desse componente do spin do átomo B, sem que para isso precisemos interagir de qualquer maneira com o átomo B. Se esse fosse um sistema clássico, não haveria nenhuma dificuldade de interpretação, pois cada componente do spin de cada átomo é sempre bem-definido, e sempre permanece oposto em valor ao mesmo componente do spin do átomo oposto. Desse modo, os dois spins estão correlacionados, e isso nos permite conhecer o spin do átomo B quando medimos o do átomo A. Porém, na teoria quântica temos o fato adicional de que somente um componente do spin pode ser claramente definido no instante em que é medido, enquanto os outros dois estão sujeitos a flutuações aleatórias. Se desejamos interpretar as flutuações como nada mais do que o resultado de perturbações devidas ao aparelho de medida, podemos fazê-lo para o átomo A, que é observado diretamente. Mas como pode o átomo B, que não interage de forma alguma nem com o átomo A nem com o aparelho de observação, "saber" em qual direção deve permitir que o seu spin flutue aleatoriamente? O problema torna-se ainda mais difícil se considerarmos que, enquanto os átomos ainda estão prosseguindo em seu movimento, temos a liberdade de reorientar o aparelho de observação arbitrariamente e, dessa maneira, medir o spin do átomo A em alguma outra direção. Essa mudança é, de algum modo, transmitida imediatamente ao átomo B, que responde de acordo. Assim, somos levados a contradizer um dos princípios básicos da teoria da relatividade, que afirma que nenhuma influência física pode ser propagada mais rapidamente do que a luz. O comportamento acima descrito não apenas mostra o caráter insustentável da noção de que o princípio da incerteza representa, em essência, apenas os efeitos de uma perturbação devida ao aparelho de medida; também nos apresenta certas dificuldades reais, que aparecem quando desejamos entender o comportamento quântico-mecânico da matéria em termos da noção de um nível mais profundo de lei individual atuando no contexto de um conjunto de variáveis ocultas. É claro que, se essas variáveis ocultas existem, poderiam talvez ser responsáveis por uma interação "oculta" entre o átomo B e o átomo A, ou entre o átomo B e o aparelho que mede o spin do átomo A. Uma tal interação, que estaria além daquelas explicitamente levadas em conta na teoria quântica, poderia então, em princípio, explicar como o átomo B "sabe" qual a propriedade do átomo A que está sendo medido; mas ainda resta a seguinte dificuldade: Para explicar a correlação do caso em que o aparelho foi reorientado, enquanto os átomos prosseguiam em sua trajetória, teríamos de supor que essa interação é efetuada através do espaço numa velocidade maior que a da luz. Evidentemente, este é um aspecto do problema que qualquer teoria aceitável de variáveis ocultas deve, de algum modo, conseguir tratar de maneira satisfatória.


4.4 A solução de Bohr para o paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky - a indivisibilidade de todos os processos materiais. Os processos materiais de Einstein, Kosen e Podolsky foi solucionado por Niels Bohr de uma maneira que reteve a noção de indeteminismo na teoria quântica como uma espécie de irredutível ausência de lei na natureza. Para fazê-lo, ele utilizou a indivisibilidade de um quantum como base. Argumentou que, no domínio quântico, o procedimento mediante o qual analisamos sistemas clássicos em partes interagentes cai por terra, pois toda vez que duas entidades se combinam para formar um único sistema (mesmo se o fizerem apenas por um período limitado do tempo), o processo graças ao qual o fazem não é divisível. Estamos, pois, diante de um colapso em nossas ideias habituais sobre a analisabilidade indefinida de cada processo em várias partes, localizadas em regiões definidas no espaço e no tempo. Somente no limite clássico, onde muitos quanta estão envolvidos os efeitos dessa indivisibilidade podem ser negligenciados; e somente aí podemos aplicar corretamente os conceitos usuais de analisabilidade detalhada de um processo físico. Para lidar com essa nova propriedade da matéria no domínio quântico, Bohr propôs começar com o nível clássico, que é imediatamente acessível à observação. Os vários eventos que ocorrem nesse nível podem ser adequadamente descritos com o auxílio de nossos habituais conceitos gerais, envolvendo analisabilidade indefinida. Descobre-se então que, até certo grau de aproximação, esses eventos estão relacionados por um conjunto definido de leis, isto é, as leis do movimento de Newton, que, em princípio, determinariam o curso futuro desses eventos em termos de suas características num dado tempo. Agora vem o ponto essencial. A fim de dar às leis clássicas um conteúdo experimental real, devemos ser capazes de determinar os momentos e as posições de todas as partes relevantes do sistema que nos interessa. Uma tal determinação requer que esse sistema esteja ligado a um aparelho que forneça algum resultado observável em grande escala e que esteja definitivamente correlacionado ao estado do sistema. Mas, a fim de satisfazer a exigência de que devemos ser capazes de conhecer o desejo do sistema observado pela observação do estado do aparelho de larga escala, deve ser possível, pelo menos em princípio, distinguir entre os dois sistemas por meio de uma análise conceitual adequada, mesmo que estejam conectados e sujeitos algum tipo de interação. No domínio quântico, porém, essa análise não pode mais ser corretamente realizada. Consequentemente, é preciso considerar aquilo que antes foi chamado de ''sistema combinado" como uma situação experimental única, invisível e global. O resultado da operação de toda montagem experimental não nos informas sobre o sistema que queremos observar, mas somente sobre ele mesmo como um todo. Essa discussão sobre o significado de uma medição leva corretamente a uma interpretação das relações de incerteza de Heisenberg. Como mostra uma simples análise, a impossibilidade: se definir teoricamente dois observáveis nãocomutativos por meio de uma única função de onda condiz exatamente, e em dois os detalhes, com a impossibilidade da operação conjunta duas montagens globais que permitiriam a determinação experimental simultânea dessas duas variáveis. Isto sugere que a não-comutatividade de dois operadores deve ser interpretada como uma representação matemática da incompatibilidade dos arranjos dos aparelhos, arranjos esses necessários para definir experimentalmente as quantidades correspondentes. Do domínio clássico, claro que é essencial que pares de variáveis canonicamente conjugadas do tipo descrito acima sejam definidos conjuntamente. Cada um desses pares descreve um aspecto necessário de todo o sistema, um aspecto que deve ser combinado com o outro, se se quer definir univocamente e sem ambiguidades o estado físico do sistema. No entanto, no domínio quântico, cada um desses pares, como já vimos, só pode ser definido mais precisamente numa situação experimental em que o outro deve se tornar, de maneira correspondente, menos precisamente definido. Num certo sentido, cada uma das variáveis opõe-se à outra. No entanto, elas ainda continuam "complementares", pois cada uma descreve um aspecto essencial do sistema que a outra deixa escapar. Ambas as variáveis devem, portanto, ser ainda utilizadas conjuntamente, mas agora podem ser definidas apenas dentro dos limites estabelecidos pelo princípio de Heisenberg. Consequentemente, essas variáveis não podem mais nos fornecer um conceito definido de matéria, unívoco e sem ambiguidades, no domínio quântico. Somente no domínio clássico tal conceito encontra uma aproximação adequada. Se não há nenhum conceito definido de matéria no domínio quântico, qual é então o significado da teoria quântica? Do ponto de vista de Bohr, é apenas uma "generalização" da mecânica clássica. Em vez de termos fenômenos clássicos observáveis relacionados pelas equações de Newton, que são um conjunto de leis totalmente deterministas e indefinidamente analisáveis, relacionamos esses mesmos fenômenos pela teoria quântica, que fornece um conjunto de leis probabilísticas que não permite a análise dos fenômenos em detalhes indefinidos. Os mesmos conceitos (p. ex., posição e momentum) aparecem tanto na teoria clássica como na quântica. Em ambas, todos os conceitos obtêm seu conteúdo experimental essencialmente do mesmo modo, isto é, relacionando-os com uma montagem experimental específica envolvendo fenômenos observáveis em grande escala. A única diferença entre as teorias clássica e quântica é que elas envolvem o uso de diferentes tipos de leis para relacionar seus conceitos. É evidente que, segundo a interpretação de Bohr, nada é medido no domínio quântico. De fato, em seu ponto de vista, não há nada a ser medido lá, pois todos os conceitos "sem ambiguidade" que poderiam ser usados para descrever, definir e pensar sobre o significado dos resultados de uma tal medida pertencem unicamente ao domínio clássico. Por conseguinte, não se pode falar da "perturbação" devida a uma medida, uma vez que, em primeiro lugar, não há qualquer sentido na suposição de que havia algo ali a ser perturbado. Agora está claro que o paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky não se manifestará, pois a noção de algum tipo de molécula efetivamente existente, que foi originalmente combinada, e que posteriormente "desintegrou-se", e que foi "perturbada" pelo dispositivo "medidor de spin", também não tem nenhum sentido. Essas ideias deveriam ser vistas como nada mais do que termos pitorescos que é conveniente utilizar na descrição de toda a montagem experimental graças à qual observamos certos pares correlates de eventos clássicos (p. ex., dois dispositivos paralelos "medidores de spin" que estejam em lados opostos da "molécula" sempre registrarão resultados opostos). Enquanto nos restringirmos a computar as probabilidades de pares de eventos dessa maneira, não obteremos nenhum paradoxo semelhante àquele descrito. Nessa computação, a função de onda deve ser considerada apenas como um símbolo matemático, que nos ajudará a calcular as relações corretas entre eventos clássicos, contanto que seja manipulada de acordo com uma certa técnica, mas sem apresentar qualquer outra significação. Agora fica claro que o ponto de vista de Bohr levar-nos-á necessariamente a interpretar os aspectos indeterminísticos da teoria quântica como representando irredutível ausência de lei; pois, devido à indivisibilidade do arranjo experimental como um todo, não há espaço no esquema conceitual para uma atribuição de fatores causais que seja mais precisa e detalhada do que a permitida pelas relações de Heisenberg. Esta característica, então, revela-se a si própria como uma flutuação aleatória irredutível nas propriedades detalhadas dos fenômenos individuais de grande escala, uma flutuação, porém, que ainda satisfaz as leis estatísticas da teoria quântica. A rejeição de Bohr das variáveis ocultas baseiase, portanto, numa revisão muito radical da noção do que se supõe que uma teoria física deve significar, uma revisão que, por sua vez, resulta do papel fundamental que ele atribui à indivisibilidade do quantum. 4.5 Interpretação preliminar da teoria quântica em termos de variáveis ocultas


Nesta seção, esboçaremos as linhas gerais de certas propostas com vistas a uma nova interpretação específica da teoria quântica, envolvendo variáveis ocultas. De início, é preciso enfatizar que essas propostas estão apenas em forma preliminar. Seu principal objetivo é duplo: primeiro, assinalar em termos relativamente concretos o significado de algumas de nossas respostas aos argumentos contra as variáveis ocultas que foram resumidos nas seções anteriores; e, segundo, servir como um ponto de partida definido para um ulterior e mais detalhado desenvolvimento da teoria, que será discutida em seções posteriores deste capítulo. As primeiras sugestões sistemáticas para uma interpretação da teoria quântica em termos de variáveis ocultas foram feitas pelo autor.(8) Baseada a princípio numa ampliação e aperfeiçoamento de certas ideias originalmente propostas por de Broglie, (9) esta nova interpretação foi então publicada num trabalho posterior conjunto que o autor elaborou com Vigier.(10) Depois de algum desenvolvimento adicional, finalmente tomou uma forma cujos pontos principais serão resumidos a seguir:(11) 1. Admite-se que a função de onda, representa um campo objetivamente real e não apenas um símbolo matemático. 2. Supomos que há, além do campo, uma partícula representada matematicamente por um conjunto de coordenadas, que são sempre bemdefinidas e que variam de um modo definido. 3. Admitimos que a velocidade dessa partícula é dada por m=VS onde m é a massa de partícula e S é uma função de fase, obtida escrevendose a função de onda como V= R e s, com R e S reais. 4. Supomos que agem sobre a partícula não só o potencial clássico V (x), mas também um "potencial quântico" adicional. U = W V2K 2m R (2) 5. Finalmente, admitimos que o campo y encontra-se efetivamente num estado de flutuação aleatória muito rápida e caótica, tal que os valores de utilizados na teoria quântica são uma espécie de média sobre um intervalo de tempo característico, T. (Este intervalo de tempo deve ser longo comparado com os períodos médios das flutuações acima descritas, mas curto quando comparado com aqueles dos processos quânticomecânicos.) As flutuações do campo podem ser consideradas como oriundas de um nível subquântico-mecânico mais profundo, mais ou menos como as flutuações no movimento browniano de uma gotícula líquida microscópica provêm de um nível atômico mais profundo. Então, assim como as leis de Newton determinam o comportamento médio de uma tal gotícula, a equação de Schrödinger determinará o comportamento médio do campo y. com base nos postulados acima, é possível provar agora um importante teorema, pois, se o campo y flutua, então a Equação (1) implica que flutuações correspondentes serão comunicadas ao movimento da partícula pelo potencial quântico flutuante (2). Desse modo, a partícula não seguirá uma trajetória completamente regular, mas terá um curso que se assemelha àquele exibido no tipo usual de movimento browniano de uma partícula. Nesse curso haverá uma certa velocidade média dada por uma média da Equação (1) sobre as flutuações de campo que ocorrem durante o intervalo característico, t. Então, com base em certas suposições muito gerais e razoáveis relativas às flutuações, e que são descritas detalhadamente em outros trabalhos, (12) pode-se mostrar que em seus movimentos aleatórios a partícula passará a fração média de seu tempo no elemento de volume, dV, de P= y2dV. (3) Assim, o campo y é interpretado principalmente como determinando o movimento por intermédio de (1) e o "potencial quântico" por intermédio de (2). O fato de que ele também determina a expressão usual para a densidade de probabilidade segue-se então como uma consequência de certas suposições estocásricas sobre as flutuações de y. Demonstrou-se (13) que a teoria acima prevê resultados físicos idênticos àqueles previstos pela interpretação usual da teoria quântica, mas assim o faz com o auxílio de suposições muito diferentes, que dizem respeito à existência de um nível mais profundo de lei individual. Para ilustrar as diferenças essências entre os dois pontos de vista, considere um experimento de interferência em que elétrons de momentum definido incidem numa rede de difração. A função de onda f associada é então difratada pela rede em direções relativamente definidas, obtendo-se um "padrão de interferência" correspondente a partir de um ensemble estatístico de elétrons que atravessaram o sistema. Como vimos nas seções anteriores, o ponto de vista usual não nos permite analisar esse processo em detalhes, nem mesmo se tentássemos conceitualmente; nem nos permite considerar os lugares onde os elétrons chegarão individualmente como sendo determinados de antemão pelas variáveis ocultas. Acreditamos, porém, que esse processo pode ser analisado com o auxílio de um novo modelo conceitual. Esse modelo baseia-se, como já vimos, na suposição de que há uma partícula seguindo um curso definido mas aleatoriamente flutuante, cujo comportamento é fortemente dependente de um campo, objetivamente real e aleatoriamente flutuante, satisfazendo na média a equação de Schrõdinger. Quando o campo atravessa a rede, ele difrata quase do mesmo modo como outros campos o fariam (p. ex., o eletromagnético). Consequentemente, haverá um padrão de interferência na intensidade posterior do campo y, um padrão de interferência que reflete a estrutura da rede. Mas o comportamento do campo também reflete as variáveis ocultas no nível subquântico, que determinam os detalhes de suas flutuações em torno do valor médio, obtidas resolvendo-se a equação de Schrõdinger. Desse modo, o lugar onde cada partícula chegará é finalmente determinado, em princípio, por uma combinação de fatores, que incluem a posição inicial da partícula, a forma inicial de seu campo y, as mudanças sistemáticas desse campo devidas à rede, e as mudanças aleatórias desse campo originárias do nível subquântico. Num ensemble estatístico de casos tendo a mesma função de onda inicial média, as flutuações do campo y produzirão, como já se mostrou,(14) justamente o mesmo padrão de interferência previsto na interpretação usual da teoria quântica. A essa altura, devemos perguntar como fomos capazes de chegar a um resultado oposto àquele deduzido por von Neumann (seção 4.2). A resposta deve ser encontrada numa certa suposição desnecessariamente restritiva por trás dos argumentos de von Neumann. Essa suposição é a de que as partículas que chegam à rede numa dada posição x (determinada de antemão pela variável oculta) devem pertencer a um ensemble que tem as mesmas propriedades estatísticas que aquelas que um ensemble de partículas cuja posição x tenha efetivamente sido medida (e cujas funções são, portanto, todas elas uma correspondente função delta de posição). Ora, sabe-se muito bem que se a posição de cada elétron fosse medida enquanto ele atravessasse a rede, não se obteria nenhuma interferência (por causa da perturbação devida à medição que faz com que o sistema se divida em ensembles não-interferentes representados por funções delta, como discutimos na seção 4.2). Portanto, o procedimento de von Neumann é equivalente a uma suposição implícita de que quaisquer fatores (tais como as variáveis ocultas) que determinem x antecipadamente devem destruir a interferência do mesmo modo como ela é destruída numa medição da coordenada x. Em nosso modelo, vamos além da suposição implícita de que falamos acima, admitindo desde o início que o elétron possui mais propriedades do que as que podem ser descritas em termos dos assim chamados "observáveis" da teoria quântica. Assim, como vimos, ele tem uma posição, um momentum, um campo de onda y e flutuações subquânticas, todos combinando-se para determinar o comportamento detalhado de cada sistema individual com a passagem do tempo. Consequentemente, a teoria tem espaço para descrever em seu âmbito a diferença entre um experimento em que os elétrons atravessam a rede sem serem perturbados por qualquer outra coisa, e um experimento onde são perturbados por um aparelho medidor de posição. Esses dois conjuntos de condições experimentais resultaria em campos y muito diferentes, mesmo que em ambos os casos as partículas atingissem a rede na mesma posição. As diferenças no comportamento subsequente do elétron (isto é,


interferência num dos casos e não interferência no outro) resultarão, portanto, dos diferentes campos y que existem nos dois casos. Resumindo, não precisamos nos restringir às suposições de von Neumann de que os subensembles devam ser classificados somente em termos dos valores de "observáveis" quântico-mecânicos. Em vez disso, essa classificação deve também envolver outras propriedades internas, atualmente "ocultas", que podem posteriormente influenciar o comportamento diretamente observável do sistema (como no exemplo que discutimos). Finalmente, é possível estudar de maneira semelhante como outros problemas característicos são tratados em termos de nossa nova interpretação da teoria quântica (p. ex., a relação de incerteza de Heisenberg e o paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky). De fato, isso já foi feito com alguns detalhes. (15) Todavia, adiaremos uma discussão dessas questões até depois de havermos desenvolvido algumas ideias adicionais, pois isto nos capacitará para tratar esses problemas de um modo mais simples e claro do que foi possível anteriormente. 4.6 Críticas de nossa interpretação preliminar da teoria quântica em termos de variáveis ocultas A interpretação da teoria quântica discutida na seção anterior está sujeita a várias críticas sérias. Antes de mais nada, deve-se admitir que a noção de "potencial quântico" não é inteiramente satisfatória, pois não apenas sua forma proposta, U = - (W/2m) (V2R/R) é um tanto estranha e arbitrária, como também (diferentemente de outros campos, como o eletromagnético) ele não tem fonte visível. Esta crítica de modo nenhum invalida a teoria como uma estrutura lógica auto consistente, mas apenas ataca sua plausibilidade. Não obstante, evidentemente não podemos ficar satisfeitos em aceitar um tal potencial numa teoria definitiva. Em vez disso, devemos considerá-lo, na melhor das hipóteses, como uma representação esquemática de alguma física mais plausível para a qual esperamos avançar mais tarde, à medida que formos desenvolvendo a teoria. Em segundo lugar, no problema dos muitos corpos, somos levados a introduzir um campo y multidimensional [x/(x,, x2, ..., xn, ... xN) e um potencial quântico multidimensional correspondente como no caso de um só corpo. O momentum de cada partícula é então dado por P. (4) Todas essas noções são bem consistentes logicamente. Contudo, deve-se admitir que são difíceis de serem entendidas de um ponto de vista físico. Na melhor das hipóteses, deveriam ser vistas, como o próprio potencial quântico, como representações esquemáticas ou preliminares de certas características de algumas ideias físicas mais plausíveis a serem obtidas mais tarde. Em terceiro lugar, nivelou-se a crítica contra essa interpretação de que os valores precisos do campo flutuante e das coordenadas da partícula são destituídos de conteúdo físico real. A teoria foi construída de um tal modo que os resultados observáveis em grande escala de qualquer tipo possível de medições são idênticos àqueles previstos pela teoria quântica atual. Em outras palavras, a partir dos resultados experimentais não se verifica nenhuma evidência da existência das variáveis ocultas, nem a teoria permite que sua definição seja suficientemente boa para prever qualquer resultado com maior precisão do que a atual teoria quântica o faz. A resposta a essa crítica deve ser considerada em dois contextos. Antes de mais nada, deve-se ter em mente que, antes de elaborada essa proposta, havia uma impressão generalizada de que nenhuma concepção de variáveis ocultas, mesmo que fosse abstrata e hipotética, poderia de algum modo ser consistente com a teoria quântica. De fato, provar a impossibilidade de tal concepção era o objetivo fundamental do teorema de von Neumann. Assim, em grande parte, a questão já tinha sido levantada de uma maneira abstrata em certos aspectos de formulações comumente sustentadas da interpretação usual da teoria quântica. Para mostrar que era errado desfazer-se das variáveis ocultas porque não podiam ser imaginadas, bastou, portanto, propor qualquer teoria logicamente consistente que explicasse a mecânica quântica por meio das variáveis ocultas, por mais abstratas e hipotéticas que pudessem ser. Assim, a existência de uma única teoria consistente desse tipo mostrava que, quaisquer que fossem os argumentos que se continuasse a usar contra as variáveis ocultas, não se poderia mais usar o argumento de que elas eram inconcebíveis. Naturalmente, a teoria específica que foi proposta não era satisfatória por razões físicas gerais, mas se uma tal teoria é possível, então outras e melhores também podem ser possíveis, e a implicação natural desse argumento é: "Por que não tentar encontrá-las?" Em segundo lugar, para responder plenamente à crítica de que essas ideias são puramente hipotéticas, notamos que a estrutura lógica da teoria dá lugar à possibilidade de que seja mudada de maneira tal que deixa de ser totalmente idêntica à mecânica quântica atual em seu conteúdo experimental. Consequentemente, os detalhes das variáveis ocultas (p. ex., as flutuações do campo y e das posições das partículas) poderão revelar-se em novos resultados experimentais não previstos pela teoria quântica como ela é hoje formulada. A essa altura, alguém poderia talvez levantar a questão de saber se esses novos resultados são mesmo possíveis. Afinal de contas, o arcabouço geral da teoria quântica já não está de acordo com todos os resultados experimentais conhecidos e, se é assim, como poderia haver outros? Para responder a essa pergunta, primeiro assinalamos que mesmo que não existissem experimentos conhecidos que o atual arcabouço teóricoquântico deixasse de tratar satisfatoriamente, sempre estaria aberta a possibilidade para novos resultados experimentais, que não se ajustassem nesse arcabouço. Todos os experimentos são realizados necessariamente num domínio limitado e, mesmo nesse domínio, apenas num grau limitado de aproximação. Logicamente falando, sempre sobra espaço para a possibilidade de que, ao serem realizados experimentos em novos domínios, e em novos graus de aproximação, obter-se-ão resultados que não se ajustarão por completo ao arcabouço das teorias atuais. Frequentemente, a física tem-se desenvolvido do modo acima descrito. Assim, a mecânica newtoniana, que se pensava originalmente ter validade completamente universal, acabou se verificando válida num domínio limitado (o das velocidades pequenas comparadas com a da luz) e apenas num grau limitado de aproximação. A mecânica newtoniana teve de dar espaço para a teoria da relatividade, que utilizou concepções básicas referentes a espaço e tempo que, sob muitos aspectos, não eram consistentes com os da mecânica newtoniana. A nova teoria era, portanto, em certos aspectos essenciais, qualitativa e fundamentalmente diferente da antiga. Não obstante, no domínio das baixas velocidades, a nova teoria aproximava-se da antiga como um caso limite. De maneira semelhante, a mecânica clássica finalmente deu espaço à teoria quântica, que é muito diferente em sua estrutura básica, mas que ainda contém a teoria clássica como um caso limite, aproximadamente válida no domínio dos grandes números quânticos. Concordância com experimentos num domínio limitado e num grau limitado de aproximação não constitui evidentemente, nenhuma prova, portanto, de que os conceitos básicos de uma dada teoria tenham validade inteiramente universal. Da discussão precedente, vemos que a evidência experimental tomada em si mesma sempre deixará aberta a possibilidade de uma teoria das variáveis ocultas que produz resultados diferentes daqueles da teoria quântica em novos domínios (e mesmo nos velhos domínios, quando levada a um grau suficientemente alto de aproximação). Agora, porém, devemos ter algumas ideias mais definidas sobre quais são os domínios em que esperamos novos resultados, e em quais aspectos devem ser novos. Aqui, temos esperanças de obter algumas pistas ao considerarmos problemas num domínio onde as teorias atuais geralmente não rendem resultados satisfatórios, isto é, aquele associado a energias muito altas e a distâncias muito curtas. Com respeito a esses problemas, primeiramente notamos que a atual teoria relativista do campo quântico enfrenta severas dificuldades que levantam sérias dúvidas quanto à sua auto consistência interna. Há as dificuldades que surgem associadas às divergências (resultados infinitos) obtidas nos cálculos dos efeitos de interações de vários tipos de partículas e campos. É verdade que, para o caso especial das interações eletromagnéticas, tais divergências


podem ser evitadas até um certo ponto por meio das assim chamadas técnicas de "renormalização". Porém, de modo algum fica claro que essas técnicas possam ser colocadas sobre uma base lógico-matemática (16) segura. Além do mais, para o problema das interações mesônicas, e de outras, o método de renormalização não funciona bem, mesmo quando considerado como uma manipulação puramente técnica de símbolos matemáticos, independentemente da questão de sua justificação lógica. Embora não tenha sido provado conclusivamente, até agora, que as infinidades acima descritas são características essenciais da teoria, já há uma considerável soma de evidências a favor dessa conclusão.(17) Geralmente, como parece provável, concorda-se que, se a teoria não converge, então alguma mudança fundamental deve ser feita em seu tratamento de interações envolvendo distâncias muito curtas, de cujo domínio surgem todas as dificuldades (como se vê numa análise matemática detalhada). A maioria dos proponentes da interpretação usual da teoria quântica não negaria que uma mudança assim fundamental parece necessária na teoria atual. De fato, alguns deles, incluindo Heisenberg, estão prontos até mesmo a ir tão longe a ponto de abandonar completamente nossas noções de um espaço e de um tempo definíveis, com relação a tais distâncias muito curtas, enquanto que mudanças comparavelmente fundamentais em outros princípios, como os da relatividade, também têm sido consideradas por vários físicos (com relação à teoria dos campos não-locais). Mas parece existir uma impressão muito difundida de que os princípios da mecânica quântica quase certamente não terão de ser mudados em essência. Em outras palavras, sente-se que por mais radicais que possam ser as mudanças nas teorias físicas, elas apenas basear-se-ão em princípios da atual teoria quântica como fundamento, e talvez enriqueçam e generalizem esses princípios proporcionando-lhes uma esfera de aplicação mais ampla e mais nova. Nunca consegui descobrir qualquer razão bem fundamentada para a existência de um grau tão alto de confiança nos princípios gerais da atual forma da teoria quântica. Vários físicos (18) têm sugerido que a tendência do século é afastar-se do determinismo, e que um passo para trás não é muito provável. Esta, porém, é uma especulação do tipo que poderia facilmente ser feita em qualquer período em relação a teorias que até então foram bemsucedidas. (Por exemplo, os físicos clássicos do século dezenove poderiam ter argumentado com igual justificação que a tendência da época era na direção de mais determinismo, ao passo que os eventos futuros provariam que essa especulação estava errada. Outros, ainda, têm apresentado uma preferência psicológica pelas teorias indeterministas, mas isto pode muito bem ser consequência de estarem acostumados a essas teorias. Os físicos clássicos do século dezenove certamente teriam expressado uma propensão psicológica igualmente forte para o determinismo.) Finalmente, há uma crença generalizada de que realmente não será possível realizar o programa por nós sugerido de desenvolver uma teoria de variáveis ocultas genuinamente diferente, em conteúdo experimental, da teoria quântica, e quea inda concorde com esta última no domínio onde já se sabe que ela é essencialmente correta. Esta visão é sustentada em particular por Niels Bohr, que manifestou sérias dúvidas (19) de que uma tal teoria pudesse tratar de todos os aspectos significativos do problema da indivisibilidade do quantum de ação - mas, então, esse argumento insiste na, ou recorre à, questão de saber se uma teoria alternativa como a do tipo acima descrito pode realmente ser produzida. Nas próximas seções, veremos que tal posição não é muito segura. 4.7 Avanços em direção a uma teoria mais detalhada das variáveis ocultas Com base na discussão feita na seção anterior, fica claro que a nossa tarefa central é desenvolver uma nova teoria de variáveis ocultas. Essa teoria deveria ser muito diferente da teoria quântica atual, tanto em seus conceitos básicos como em seu conteúdo experimental geral, e pode ser capaz de produzir essencialmente os mesmos resultados no domínio em que esta última tem sido verificada, e com o grau de aproximação das medições que efetivamente tem sido obtido. A possibilidade de distinguir experimentalmente entre as duas teorias surgirá, então, seja em novos domínios (p. ex., o das distâncias muito curtas) seja em medições mais precisas realizadas em domínios mais antigos. Nosso ponto de partida básico será tentar fornecer uma teoria física mais concreta que resulte em ideias semelhantes àquelas que discutimos com relação à nossa interpretação preliminar (seção 6). Ao fazê-lo, devemos primeiro recordar que vimos considerando o indeterminismo como uma propriedade real e objetiva da matéria, mas que está associado a um dado contexto limitado (neste caso, o das variáveis do nível quânticomecânico). Estamos supondo que, num nível subquântico mais profundo, existem outras variáveis que determinam mais detalhadamente as flutuações dos resultados das medições quântico-mecânicas individuais. A teoria física existente nos dá alguma sugestão quanto à natureza dessas variáveis subquântico-mecânicas mais profundas? Para guiar-nos em nossa busca, podemos começar considerando a atual teoria quântica em sua forma mais desenvolvida, a saber, a da teoria dos campos relativista. De acordo com os princípios da teoria corrente, é essencial que cada operador de campo, seja uma função de um ponto x bem-definido, e que todas as interações sejam entre campos no mesmo ponto. Isto nos leva a formular nossas teorias em termos de uma infinidade não numerável de variáveis de campo. É claro que uma tal formulação deve ser feita, mesmo classicamente, mas na física clássica pode-se supor que os campos variam continuamente. Como resultado, é possível reduzir efetivamente o número de variáveis a um conjunto numerável (p ex., os valores médios dos campos em regiões muito pequenas), pois, essencialmente, as variações de campo no âmbito de distâncias muito curtas, são negligenciavelmente pequenas. No entanto, como mostra um simples cálculo, isto não é possível na teoria quântica, porque quanto mais curtas as distâncias consideradas, mais violentas são as flutuações quânticas associadas à "energia do ponto zero" do vácuo. De fato, essas flutuações são tão grandes que a suposição de que os operadores de campo são funções contínuas das posições (e do tempo) não é válida num sentido estrito. Mesmo na teoria quântica usual, o problema de uma infinidade não-numerável de variáveis de campo apresenta diversas dificuldades matemáticas básicas, até agora não solucionadas. Assim, é comum lidar-se com cálculos teóricos do campo começando com certas suposições relativas ao estado de "vácuo", e daí em diante aplicar a teoria da perturbação. No entanto, em princípio, é possível começar com uma variedade infinita de suposições muito diferentes para o estado de vácuo, envolvendo a atribuição de valores definidos a um conjunto de funções completamente descontínuas das variáveis de campo, funções que "preenchem" densamente o espaço, deixando porém um denso conjunto de "buracos". Esses novos estados não podem ser atingidos, a partir do estado de "vácuo" original, por nenhuma transformação canônica. (20) Portanto, eles levam a teorias que, em geral, são diferentes em conteúdo físico daquelas obtidas com o ponto de partida original. E plenamente possível que, por causa das divergências nos resultados teóricos do campo, mesmo as técnicas atuais de renormalização impliquem esse estado de vácuo infinitamente diferente; porém, ainda mais importante é a necessidade de enfatizar que uma reorganização de uma infinidade não-numerável de variáveis geralmente resulta numa teoria diferente, e que os princípios dessa reorganização serão então equivalentes às suposições básicas sobre as novas leis da natureza que lhes correspondam. Até aqui, restringimos a discussão acima aos efeitos de uma reorganização de uma infinidade não-numerável de variáveis no âmbito do arcabouço da atual teoria quântica, mas conclusões semelhantes continuarão válidas mesmo para uma teoria clássica envolvendo uma


infinidade não-numerável de variáveis. Assim, se abandonarmos a suposição da continuidade do campo clássico, veremos que o propósito de se obter uma teoria clássica diferente nessa reorganização é o mesmo que existe na teoria quântica. A essa altura, perguntamo-nos se seria possível reorganizar uma teoria clássica dos campos de modo tal que ela se tornasse equivalente (pelo menos em alguma aproximação e dentro de algum domínio) à moderna teoria quântica dos campos. Para responder a essa questão, devemos evidentemente reproduzir, a partir da lei "determinista" básica de nossa suposta infinidade não-numerável de variáveis de campo "clássicas", as flutuações dos processos quânticos, a indivisibilidade do quantum, e outras propriedades quântico-mecânicas essenciais, tais como a interferência e as correlações associadas ao paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky. Nas seções subsequentes, abordaremos esses problemas. 4.8 Tratamento das flutuações quânticas Comecemos admitindo uma teoria dos campos "determinista". No momento, suas características precisas são irrelevantes para os nossos propósitos. O importante é supor as seguintes propriedades. 1. Há um conjunto de equações de campo que determina completamente as mudanças do campo com relação ao tempo. 2. Essas equações são suficientemente não-lineares para garantir um acoplamento significativo entre todos os componentes de onda, de modo que (exceto talvez em alguma aproximação) as soluções não possam ser linearmente superpostas. 3. Mesmo no "vácuo", o campo está tão altamente excitado, que o campo médio em cada região, mesmo que pequeno, flutua significativamente, com uma espécie de movimento turbulento que leva a um alto grau de randomicidade nas flutuações. Essa exaltação garante a descontinuidade dos campos nas menores regiões. 4. O que costumamos chamar de "partículas" são excitações relativamente estáveis e preservadas que ocorrem no topo desse vácuo. Essas partículas serão registradas ao nível de grande escala, onde todo o aparelho é sensível somente àqueles aspectos do campo que duram um longo tempo, e não àqueles que flutuam rapidamente. Desse modo, o "vácuo" não produzirá efeitos visíveis no nível de grande escala, visto que seus campos na média anular-se-ão mutuamente, e o espaço estará efetivamente "vazio" para todo processo de grande escala (p. ex., como uma rede cristalina perfeita é efetivamente "vazia" para um elétron na faixa mais baixa, mesmo que o espaço esteja cheio de átomos). É evidente que não haveria nenhum meio de resolver diretamente esse conjunto de equações de campo. A única possibilidade seria tentar lidar com algum tipo de quantidades de campo médias (tomadas em pequenas regiões do espaço e do tempo). Em geral, poderíamos esperar que um grupo dessas quantidades médias, ao menos no âmbito de alguma aproximação, determinasse a si próprio independentemente das flutuações infinitamente complexas nas regiões do espaço associadas. (21) Até o ponto em que isso ocorresse, poderíamos obter leis de campo aproximadas, associadas a um certo nível de grandeza, mas essas leis não podem ser exatas porque a não-linearidade das equações significa que os campos serão necessariamente acoplados de algum modo às flutuações interiores que foram desprezadas. Consequentemente, os campos médios também flutuarão aleatoriamente em torno de seu comportamento médio. Haverá um típico domínio de flutuação dos campos médios, determinado pelo caráter dos movimentos de campo mais profundos que foram descartados. Como no caso do movimento browniano de uma partícula, essa flutuação determinará uma distribuição de probabilidade (5) que fornece a fração média do tempo em que as variáveis, representando os campos médios nas regiões 1, 2..., k..., respectivamente, estarão nas faixas D1, D2, Dk... (Note que P é, em geral, uma função multidimensional, que pode descrever correlações estatísticas nas distribuições de campo.) Resumindo, estamos reorganizando a infinidade não-numerável das variáveis de campo, e considerando explicitamente apenas alguns conjuntos numeráveis dessas coordenadas reorganizadas. Fazemos isso ao definir uma série de níveis por campos médios, cada um associado a uma certa dimensão, sobre a qual são tomadas as médias. Esse tratamento pode ser justificado somente naqueles casos em que os conjuntos numeráveis de variáveis formam uma totalidade que, dentro de certos limites, determina seus próprios movimentos independentemente dos detalhes precisos da infinidade não-numerável de coordenadas que necessariamente não foram levadas em conta. Porém, essa autodeterminação nunca é completa, e seus limites básicos são definidos por um certo grau mínimo de flutuação num domínio que depende do acoplamento das coordenadas de campo em questão com aquelas que foram desprezadas. Assim, obtemos uma limitação real e objetiva sobre o grau de autodeterminação de um certo nível, juntamente com uma função de probabilidade que representa o caráter das flutuações estatísticas responsáveis pelas limitações à autodeterminação acima descritas. 4.9 O princípio da incerteza de Heisenberg Agora estamos prontos para mostrar como o princípio da incerteza de Heisenberg se ajusta em nosso esquema geral. Faremos isso discutindo o grau de determinismo associado a uma coordenada de campo promediada sobre valores de espaço, t, e à média correspondente do momentum de campo canonicamente conjugado, nt. Para simplificar a discussão, suponhamos que o momentum canônico é proporcional à derivada, em relação ao tempo, da coordenada de campo, 3<t>t>3f (tal acontece com muitos campos, tais como o eletromagnético, o mesônico, etc.). Cada uma dessas coordenadas de campo flutua aleatoriamente. Isto significa que sua derivada instantânea em relação ao tempo é infinita (o que também ocorre no caso do movimento browniano de uma partícula). Consequentemente, não há nenhuma maneira rigorosa de definir essa derivada temporal instantânea. Em vez disso, devemos discutir a mudança média do campo, A numa pequena região de tempo, A1 (assim como também tivemos de tomar a média numa região do espaço). O valor médio do momentum de campo nesse intervalo de tempo é, portanto, (6) onde A é a constante de proporcionalidade. Se o campo flutuar de forma aleatória, então, pela própria definição de randomicidade, a região na qual ele flutua durante o tempo Af é dada por (&)>/= b&t ou l&f>J = bJ2(Atr'2 (7)onde b é uma outra constante de proporcionalidade, associada à magnitude média das flutuações aleatórias do campo. Naturalmente, a maneira precisa segundo a qual o campo flutua é determinada pela infinidade de variáveis do campo mais profundas que não são levadas em conta. Mas, no contexto do nível em questão, nada determina esse comportamento preciso. Em outras palavras, representa o grau máximo possível de determinação de tyk no âmbito do nível de quantidades de campo promediadas sobre intervalos de tempo semelhantes. Da definição (6), vemos que nk também flutuará aleatoriamente na faixa Multiplicando (8) por (7), obtemos (8) O 7rt5<jk = ab. (9) Assim, o produto do grau máximo de determinação nk pelo de <t>t é uma constante, ab, independente do intervalo de tempo At. Fica claro, de imediato, que o resultado acima mostra uma forte analogia com o princípio da incerteza de Heisenberg, (22) 8p&7 g h. A constante ab, que aparece na Equação (9), desempenha o papel da constante de Planck, h, no princípio de Heisenberg. A universalidade de h implica, portanto, a universalidade de ab. Ora, fl é apenas uma constante que relaciona o momentum do campo com sua derivada em relação ao tempo, e evidentemente será uma


constante universal. A constante b representa a intensidade básica da flutuação aleatória. Supor que b é uma constante universal é o mesmo que admitir que as flutuações aleatórias de campo estão em todos os lugares, em todos os tempos, e em todos os níveis de grandeza, tendo essencialmente o mesmo caráter. Com respeito a diferentes lugares e tempos, a suposição da universalidade da constante b não é de todo implausível. As flutuações aleatórias de campo (que aqui desempenham um papel semelhante ao das flutuações associadas ao "ponto zero" do vácuo na teoria quântica usual) são infinitamente grandes, de modo que quaisquer perturbações feitas por outras excitações localizadas ou concentrações de energia que ocorram naturalmente, ou produzidas num experimento de laboratório, teriam uma influência desprezível sobre as magnitudes gerais das flutuações aleatórias básicas. (Assim, a presença de matéria como a conhecemos numa grande escala significaria a concentração de uma parte não-flutuante da energia, associada a alguns gramas extras por centímetro cúbico no topo das infinitas flutuações no ponto zero do campo do "vácuo".) Com relação ao problema de diferentes níveis de intervalos de espaço e de tempo, a suposição da universalidade de b não é tão plausível. Assim, é bem possível que a quantidade b permaneça constante para campos promediados sobre intervalo de tempo cada vez mais curtos somente até algum intervalo de tempo característico Ato, além do qual a quantidade b pode mudar. Isso é equivalente à possibilidade de que o grau de autodeterminação possa não ser limitado pela constante de Planck, h, para tempos muito curtos (e, correspondentemente, para distâncias muito curtas). É fácil sugerir uma teoria que tenha as características acima descritas. Suponha que as flutuações de campo no "ponto zero" estivessem numa espécie de equilíbrio estatístico correspondente a uma temperatura extremamente elevada, T. A flutuação média na energia por grau de liberdade seria, de acordo com o teorema da equipartição, da ordem de kT, mas essa energia média também é proporcional à média de (3<>/3f)2 (como acontece, por exemplo, num conjunto de osciladores harmônicos). Desse modo, escrevemos (-) dt Ia = KT û (TC)2 V (10) onde k é a constante de Boltzmann e a é uma constante de proporcionalidade adequada. Consequentemente, se o intervalo de tempo At que aparece na Equação (8) torna-se cada vez mais curto, não será possível para (n)2 aumentar ilimitadamente, como se segue das Equações (8) e (9). Em vez disso, (jt)2 deixará de crescer em algum intervalo de tempo crítico definido por a a2b ao 2- kT = ; ou (Aí)2 = b2 (At)2 bkT (11). Para intervalos de tempo mais curtos (e distâncias correspondentemente curtas), o grau de autodeterminação dos campos médios não seriam então limitado precisamente pelas relações de Heisenberg, mas, sim, por um conjunto mais fraco de relações. Construímos, assim, uma teoria que contém as relações de Heisenberg como um caso limite, válida aproximadamente para campos promediados sobre um certo nível de intervalos de espaço e de tempo. Não obstante, campos promediados sobre intervalos menores estão sujeitos a um grau maior de autodeterminação do que seria consistente com esse princípio. Daí segue-se que a nossa nova teoria é capaz de reproduzir, pelo menos em essência, um dos aspectos essenciais da teoria quântica, isto é, o princípio de Heisenberg e, no entanto, ter um conteúdo diferente em novos níveis. A questão de como esse novo conteúdo da nossa teoria poderia ser revelado em experimentos será discutida em seções posteriores. Por enquanto, restringimo-nos a assinalar que as divergências das atuais teorias de campo são um resultado direto de contribuições à energia, à carga, etc., provenientes de flutuações quânticas associadas a distâncias e a tempos infinitamente curtos. Nosso ponto de vista permite-nos admitir que, embora a flutuação total ainda seja infinita, a flutuação por grau de liberdade deixa de aumentar ilimitadamente à medida que se leva em consideração tempos cada vez mais curtos. Desse modo, podem ser realizados cálculos teóricos de campo para dar resultados finitos. Assim, já está claro que as divergências da atual teoria quântica dos campos podem provir da extrapolação dos princípios básicos dessa teoria para intervalos de tempo e de espaço excessivamente curtos. 4.10 A indivisibilidade dos processos quânticos Nosso próximo passo é mostrar como a quantização, isto é, a indivisibilidade do quantum de ação, ajusta-se às nossas noções relativas ao nível subquântico-mecânico. Para fazê-lo, começamos considerando mais detalhadamente o problema de como definir as médias de campo necessárias para o tratamento de uma infinidade não-numerável de variáveis. Aqui, guiar-nos-emos por certos resultados obtidos no problema dos muitos corpos, bastante análogo (p. ex., a análise de sólidos, líquidos, plasmas, etc., em termos de suas partículas atômicas constituintes). Nesse problema, confrontamonos igualmente com a necessidade de lidar com certos tipos de médias de variáveis (atômicas) mais profundas. A totalidade de um conjunto de tais médias determina a si própria com alguma aproximação, enquanto que seus detalhes estão sujeitos a domínios característicos de flutuações aleatórias que surgem dos movimentos no nível inferior (atômico), mais ou menos da mesma forma como foi sugerido para as médias da infinidade não-numerável de variáveis de campo discutidas nas seções anteriores. Ora, no problema dos muitos corpos, lida-se com comportamento em grande escala operando-se com coordenadas coletivas, (13) que são um conjunto aproximadamente autodeterminante de funções simétricas das variáveis das partículas, representando certos aspectos globais dos movimentos (p. ex., as oscilações). Os movimentos coletivos são determinados (dentro de seus domínios característicos de flutuação aleatória) por constantes do movimento aproximadas. Para aquele caso especial, mas muito difundido, em que as coordenadas coletivas descrevem oscilações quase harmônicas, as constantes do movimento são as amplitudes das oscilações e suas fases iniciais. De um modo mais geral, porém, elas podem tomar a forma de funções mais complexas das coordenadas coletivas. ?, com frequência, muito instrutivo resolver as coordenadas coletivas por meio de uma transformação canônica. Na mecânica clássica, (24) isso toma a seguinte forma 3SP, = - 8, - 9 -; 7, 7B> at as Qn= - < ,- < ; A- 7..É Jn (12) onde S é a função de transformação, pk e qk são os momentum e as coordenadas das partículas, e Jn e Qn são os momenta dos graus de liberdade coletivos. Aqui, supomos que os J sejam constantes do movimento. Em outras palavras, supomos que a transformação é tal que, pelo menos no domínio em que é boa a aproximação de coordenadas coletivas, a hamiltoniana é apenas uma função dos Jn e não dos Qn. Segue-se então que os Qn aumentam linearmente com o tempo, de modo que tenham as propriedades das assim chamadas "variáveis de ângulo". (25) É claro que se pode fazer uma investida similar sobre o problema de uma infinidade não-numerável de variáveis de campo sujeitas a um acoplamento não-linear umas com as outras. Para isso, fazemos agora com que qk e pk representem o conjunto de variáveis de campo canonicamente conjugadas original e supomos que haverá um conjunto de movimentos globais em grande escala, que representamos pelas constantes do movimento, e pelas variáveis de ângulo canonicamente conjugadas, Qn. E claro que se esses movimentos globais existem, eles se manifestarão de maneira relativamente direta em interações de alto nível, pois, por hipóteses, são eles os movimentos que retêm seus aspectos característicos por um longo tempo sem se perderem nas flutuações aleatórias infinitamente rápidas, que, face a um nível mais alto, anulam-se na média. Nossa próxima tarefa é mostrar que as constantes do movimento (que são, para os osciladores harmônicos, proporcionais à energia de um grau de liberdade coletivo em grande escala) são quantizadas pela regra w = nh, onde w é um inteiro e h é a constante de Planck. Tal demonstração constituirá uma explicação de dualidade onda-partícula, uma vez que já se sabe que os graus de liberdade coletivos são movimentos ondulatórios, com amplitudes harmonicamente oscilantes. Em geral, essas ondas tomarão a forma de pacotes bem localizados, e se esses pacotes possuírem quantidades de energia, momentum e outras propriedades discretas e bem-definidas, reproduzirão, no nível mais elevado,


todas as características essenciais das partículas. Porém, eles terão movimentos ondulatórios internos que se revelarão somente sob condições onde existam sistemas que possam responder significativamente a esses detalhes mais sutis. A fim de demostrar a quantização das constantes do movimento como foram acima descritas, voltamos primeiramente à interpretação preliminar da teoria quântica dada nas seções 6 e 7. Aqui, encontramos uma relação muito semelhante à (12); as Pt = -- (f,... q, -.) d (13). A principal diferença entre (4) e (12) é que a primeira não contém nenhuma constante do movimento, ao passo que a última, sim. Mas, uma vez especificadas as constantes do movimento elas são apenas números, que só precisam receber certos valores que, daí em diante, conservarão. Se isso for feito, o S da Equação (12) também não conterá mais os Jn como variáveis explicitamente representadas. Podemos, portanto, considerar o S da nossa interpretação preliminar, (4), como a função S efetiva, na qual as constantes do movimento já foram especificadas. S é então determinado pela função de onda, p = ReK. Desse modo, quando damos a função de onda, definimos uma função de transformação S = filn (Inty), que depois determina implicitamente certas constantes do movimento. A fim de ver mais claramente como as constantes do movimento são determinadas pelo S da Equação (4), construamos a integral da fase J = Z*fc*fc- (14). A integral é tomada em torno de um circuito C, representando um conjunto de deslocamentos, Sf/t (virtual ou real), no espaço de configuração do sistema. Se se aplica a Equação (13), então obtemos as fc = - fy = SS k fy (15)onde o Sc é a variação de S ao percorrer o circuito C. É bem sabido que os que são as assim chamadas "variáveis de ação" da mecânica clássica, geralmente representam as constantes do movimento. (Por exemplo, no caso de um conjunto de osciladores acoplados, harmônicos ou não, as constantes básicas do movimento podem ser obtidas avaliando-se os Ic com circuitos convenientemente definidos.) (26) A função de onda Y que define uma certa função S, implica portanto um correspondente conjunto de constantes do movimento. Ora, de acordo com a teoria quântica atual, a função de onda, f = Re (5), é uma função unívoca de todas as suas coordenadas dinâmicas qk. Assim, devemos terSSc = 2T7i = nh (16) onde n é um inteiro. As funções efetivas S, obtidas da função de onda y, implicam, portanto, que as constantes básicas do movimento para o sistema são discretas e quantizadas. Se o inteiro n não for zero, então, como um simples cálculo pode mostrar, deve haver uma descontinuidade em algum lugar dentro do circuito. Mas, uma vez que S = film (Ijy), e que é uma função contínua, geralmente ocorrerá uma descontinuidade de S onde (e portanto R2) tem um zero. Como veremos logo mais, R2 é a densidade de probabilidade para o sistema estar num certo ponto no espaço de configuração. O sistema, portanto, não tem nenhuma probabilidade de estar num zero de y, com o resultado de que as singularidades de S não implicarão quaisquer inconsistências na teoria. Sob muitos aspectos, a quantização acima descrita assemelha-se à velha regra de Bohr-Sommerfeld; porém, é basicamente diferente em seu significado. Aqui, a variável de ação, Ic que é quantizada, não é obtida utilizando-se a expressão simples da mecânica clássica para os pk na Equação (14). Em vez disso, ela é obtida utilizando-se a expressão (12), que envolve as funções de transformação, S, uma função que depende da infinidade não numerável de variáveis qk. Num certo sentido, podemos dizer que a velha regra de Bohr-Sommerfeld seria exatamente correta se a fizéssemos referir-se à infinidade não-numerável de variáveis de campo, e não apenas aos valores das variáveis que se obtêm pela solução das equações clássicas simples do movimento para um pequeno número de coordenadas abstratas Qn. Antes de seguirmos em frente para sugerir uma explicação do motivo pelo qual SSc deve restringir-se aos valores discretos denotados pela Equação (16), faremos um resumo e desenvolveremos de modo sistemático as principais ideiasfísicas às quais até agora fomos levados. 1. Abstraímos da infinidade não-numerável de variáveis um conjunto de constantes do movimento "coletivas", Jn e suas quantidades canonicamente conjugadas, Qn. 2. As n podem ser consistentemente restritas a múltiplos inteiros discretos de h. Desse modo, a ação pode ser quantizada. 3. Se esse conjunto de coordenadas determinou completamente a si próprio, os Qn (como acontece em teorias clássicas típicas) aumentariam linearmente com o tempo. Todavia, devido às flutuações decorrentes das variáveis excluídas da teoria, os Qn flutuarão aleatoriamente na faixa que lhes é acessível. 4.Essa flutuação implicará uma certa distribuição de probabilidade dos Qn com uma dimensionalidade igual a t por grau de liberdade (e não 2, como é o caso das típicas distribuições estatísticas clássicas no espaço de fase). Quando essa distribuição é transformada para o espaço de configuração dos qk, haverá uma função de probabilidade correspondente, p(q...qk...), que também possui uma dimensionalidade de 1 por grau de liberdade (os momenta, pk, sendo sempre determinados em termos de qk pela Equação (12)). 5. Interpretamos então a junção de onda = Reb estabelecendo p(qr- qk-) = R2(qr..qk...) e tomando S como a função de transformação que define as constantes do movimento do sistema. ? claro que, desse modo, damos à função de onda um significado bem diferente daquele sugerido na interpretação preliminar da seção 5, mesmo que as duas interpretações estejam numa relação bem definida entre si. 6. Devido aos efeitos das variáveis de campo de nível inferior desprezadas, as quantidades In permanecerão, em geral, constantes apenas por um período de tempo limitado. De fato, à medida que a função de onda varia, a integral em torno de um dado circuito, Zk<y7k8<fk = SSc, variará abruptamente toda vez que uma singularidade de S (e portanto um zero de y) cruzar o circuito C. Daí, mudanças discretas, por algum múltiplo de h, ocorrerão nas variáveis de ação para estados não-estacionários. 4.11 Explicação da quantização da ação Na seção anterior, desenvolvemos uma teoria envolvendo uma infinidade não-numerável de variáveis de campo, que tem espaço para a quantização da ação conforme as regras usuais dateoria quântica. Sugeriremos agora uma teoria mais definida, que dará possíveis razões físicas que expliquem por que a ação é quantizada pelas regras acima descritas, e que mostrará possíveis limitações sobre o domínio de validade dessas regras. Evidentemente, nosso problema básico é propor alguma interpretação física direta da função S, que aparece na fase da função de onda (como y = Re*1*), e que é também, de acordo com a nossa teoria, a função de transformação que define as constantes básicas do movimento (ver Equação) (15); pois se fossemos explicar por que a variação de S em torno de um circuito está restrita a múltiplos discretos de h, devemos evidentemente admitir que, de algum modo, S está relacionado com algum sistema físico, de tal forma que só pode ser unívoca. Para dar a S um significado físico que leve à propriedade acima descrita, começaremos com certas modificações de uma ideia originalmente sugerida por de Broglie. (27) Suponhamos que a infinidade de variáveis de campo acopladas não-linearmente esteja, na realidade, tão organizada que, em cada região do espaço e do tempo associada a qualquer nível de grandeza dado, tem lugar um processo interno periódico. A natureza precisa desse processo não é importante para a nossa discussão aqui, contanto que seja periódico (p. ex., poderia ser uma oscilação ou uma rotação). Esse processo periódico determinaria uma espécie de tempo interior para cada região do espaço e, portanto, constituiria efetivamente uma espécie de "relógio" local. Ora, cada processo periódico localizado tem, por definição, algum referencial de Lorentz onde permanece em repouso, ao menos por algum


tempo (isto é, onde ele não varia significativamente sua posição média durante esse tempo). Admitiremos além disso que, nesse referencial, relógios vizinhos do mesmo nível de grandeza tenderão a estar quase em repouso. Tal suposição é equivalente à exigência de que, em cada nível de grandeza, a divisão de uma dada região em regiões pequenas, cada uma delas contendo o seu relógio efetivo, tenha uma certa regularidade e permanência, ao menos por algum tempo. Se esses relógios forem considerados num outro referencial (p. ex. o do laboratório), cada relógio efetivo terá então uma certa velocidade, que pode ser representada por uma função contínua v(x, f). Será agora muito natural supor: (1) que em seu próprio referencial em repouso cada relógio oscila com uma frequência angular uniforme, que é a mesma para todos os relógios, e (2), que todos os relógios na mesma vizinhança estão, na média, em fase uns com os outros. No espaço homogêneo, não há razão para se favorecer um relógio em relação a outro, nem pode haver, no espaço, uma direção favorecida (como seria implicado por um valor médio diferente de zero para V<> no referencial de repouso). Podemos, portanto, escrever 6jt > = w Sr (17) onde T é a variação do tempo próprio do relógio, e onde 5<jt é independente de 8x nesse referencial. A razão para a igualdade das fases do relógio no referencial em repouso e numa vizinhança pode ser entendida mais profundamente como uma consequência natural da não-linearidade, do acoplamento dos relógios vizinhos (implicado pela não linearidade geral das equações do campo). Sabe-se que dois osciladores da mesma frequência natural tendem a entrar em fase um com o outro quando há um tal acoplamento. (28) ? claro que a fase relativa oscilará um pouco, mas com o passar do tempo, e na média, essas oscilações se anularão. Consideremos agora o problema num referencial fixo de Lorentz, por exemplo, o do laboratório. Calculamos então a variação de ?(> (x, í), que se seguiria a um deslocamento virtual (ôx, 80. Isto depende somente de Sr. Por uma transformação de Lorentz, obtemos Sf> = I?.AT= w [5f û (vôx)A-: V^T (18) Se integrarmos em torno de um circuito fechado, a mudança de fase &t>c deve então ser 2nn, onde n é um inteiro. De outra maneira, as fases do relógio não seriam funções unívocas de x e f. Obtemos assim yõ<f> - <i>o 9(S/ - v-Sx/c2)= 2nit.V^T(19) Se supusermos agora que cada relógio efetivo possui alguma massa de repouso, m e se escrevermos para a energia total de translação do relógio, ú = m0cYV~T - (tf/c2), e para o momentum correspondente, p = wiov/VT- (tf/c2), teremos (ESt û pox) 2/iTr^V <*i (20). Se admitirmos que mtwo=fi (uma constante universal para todos os relógios), obtemos justamente o tipo de quantização de que precisamos para as integrais de circuito envolvendo o momentum de translação, p, e as coordenadas dos relógios, x (p. ex., podemos estabelecer 5t=O e a Equação (20) se reduz a um caso especial da Equação (16). Vemos então que a quantização da ação pode, ao menos nesse caso especial, surgir de certas condições topológicas, implicadas pela necessidade de univocidade (single-valuedness) para as fases do relógio. A ideia acima fornece um ponto de partida para um entendimento mais profundo do significado das condições quânticas, mas precisa ser suplementada de duas maneiras. Primeiro, devemos considerar as flutuações adicionais no campo, associadas à infinidade não-numerável de graus de liberdade. Segundo, teremos de justificar a suposição de que a razão maa-wo na Equação (20) é universal para todos os relógios locais e igual. Para começar, recordemos que cada relógio local de um dado nível existe numa certa região do espaço e do tempo, que é formada por regiões ainda menores, e assim por diante, ilimitadamente. Veremos que se pode obter a universabilidade do quantun de ação, h, em todos os níveis, se se admitir que cada uma das sub-regiões acima contém um relógio efetivo de tipo semelhante, relacionado com os outros relógios efetivos de seu nível de uma maneira similar, e que essa estrutura de relógios efetivos continua indefinidamente com a análise do espaço e do tempo dentro das sub-regiões. Salientamos que essa é apenas uma suposição preliminar, e que mais tarde mostraremos que a noção da continuação indefinida da estrutura de relógios pode ser descartada. Para tratar desse problema, introduzimos uma infinidade ordenada de coordenadas dinâmicas, x, e de momenta conjugados, pt. A posição média do zésimo relógio no zésimo nível de grandeza é representada por x, e pt representa o momentum correspondente. Para uma primeira aproximação, as quantidades de cada nível podem ser tratadas como coordenadas coletivas do conjunto de variáveis do próximo nível inferior; mas, em geral, esse tratamento não pode ser totalmente exato, porque cada nível, até certo ponto, será influenciado diretamente por todos os outros níveis, de uma maneira que não pode ser plenamente expressa tão-somente em termos de seus efeitos sobre as quantidades do próximo nível inferior. Assim, embora cada nível esteja fortemente correlacionado com o comportamento médio do próximo nível inferior, ele possui algum grau de independência. A discussão precedente leva-nos a um certo ordenamento da infinidade de variáveis de campo indicada pela natureza do próprio problema. Nesse ordenamento, consideramos a série de quantidades, x e pf, acima definidas, em princípio, como coordenadas e momenta independentes que se encontram, porém, usualmente conectadas e correlacionadas por meio de interações adequadas. Agora, podemos tratar desse problema por meio de uma transformação canônica. Introduzimos uma função de ação, S, que depende de todas as variáveis x[, da infinidade de relógios dentro de relógios. Como antes, escrevemosPi-M (rl ri ) Pk~dxf(Xl) (21) onde X' representa todos os níveis possíveis. Para as constantes do movimento, escrevemos /c = 2 # ^5jr* = ?5t (22) onde as integrais são calculadas ao longo de contornos convenientes. Cada uma dessas constantes do movimento é agora estabelecida a partir de integrais de circuito envolvendo pf8x., mas, como vimos, cada um desses relógios deve satisfazer a condição de fases SS = 2mtfi em torno de qualquer circuito. Portanto, a soma satisfaz tal condição, que por sua vez deve ser satisfeita não somente em circuitos reais efetivamente percorridos pelos relógios, mas também em qualquer circuito virtual que seja consistente como um dado conjunto de valores para as constantes do movimento. Devido às flutuações provenientes de níveis inferiores, há sempre a possibilidade de que qualquer relógio possa movimentar-se em qualquer um dos circuitos em questão; e, a não ser que as constantes do movimento sejam determinadas de modo tal que 5Sc = 2nnfi, relógios que atinjam a mesma posição depois de terem seguido diferentes trajetórias aleatoriamente flutuantes não concordarão, em geral, uns com os outros em suas fases. Desse modo, a concordância das fases de todos os relógios que atinjam o mesmo ponto no espaço e no tempo é equivalente à condição quântica. A autoconsistência do tratamento acima pode agora ser verificada numa análise suplementar, que também elimina a necessidade de introduzir a suposição especial de que moc2/wo é universalmente constante e igual a fi para todos os relógios. Cada relógio é agora considerado como um sistema composto fechado de relógios menores. De fato, para um grau de aproximação adequado, cada fase de relógio pode ser tratada como uma variável coletiva associada às coordenadas espaciais dos relógios menores (que representam então a estrutura interna do relógio em questão). Ora, a variável de ação c=fc é canonicamente invariante, no sentido de que toma a mesma forma em cada conjunto de variáveis canônicas, não sendo alterado em seu valor por uma transformação canônica. Portanto, se fizéssemos a transformação para as coordenadas coletivas de qualquer nível dado, ainda obteríamos o mesmo tipo de restrição fc para múltiplos inteiros de h, mesmo se fc fosse expresso em termos das variáveis coletivas. Desse modo, as variáveis coletivas de um dado nível geralmente estarão sujeitas à mesma restrição quântica que aquelas satisfeitas pelas variáveis originais desse nível. A fim de que seja consistente para variáveis de um dado nível serem essencialmente iguais àsvariáveis coletivas para o próximo nível inferior, é suficiente que as variáveis em todos os níveis sejam quantizadas em termos da mesma unidade de ação, h. Desse modo, torna-se possível um ordenamento global consistente da infinidade não-numerável de variáveis.


Cada relógio terá então um valor quantizado para a variável de ação fc, associada ao seu movimento interno (isto é, de suas mudanças de fase). Admitiu-se, porém, que esse movimento interno é, efetivamente, o de um oscilador harmônico. Logo, de acordo com um resultado clássico bem conhecido, a energia interna é E = JwJ2n; e uma vez que = Sh, onde S pode ser qualquer inteiro, obtemos Eo=Sw/i. Ora, Eo é também a energia de repouso do relógio, de modo que Eo=mj. Daí, obtemos fMnC t= Sfi.(23)Isso nos dá, a partir da Equação (20), f (ESt - pox) = 27r n = nSh =A; (24) e, uma vez que, em geral, S assume valores inteiros arbitrários, ele é também um inteiro arbitrário. Dessa maneira, eliminamos a necessidade de admitir separadamente que moc2/wo é uma constante universal, igual. Para concluir essa etapa do desenvolvimento da teoria, devemos mostrar que o modelo acima analisado leva a uma flutuação no espaço de fase das variáveis de um dado nível, em concordância com o que é implicado pelo princípio de Heisenberg. Em outras palavras, também é preciso mostrar que o quantum de ação, h, produz uma estimativa correta da limitação sobre o grau de autodeterminação das quantidades de qualquer nível. Para provar essa conjectura, devemos notar que cada variável flutua porque depende das quantidades de nível inferior (das quais é uma coordenada coletiva). As quantidades de nível inferior podem mudar suas variáveis de ação somente por múltiplos discretos de h. Não é, portanto, implausível que o domínio de flutuação de uma dada variável esteja intimamente relacionado à grandeza das possíveis mudanças discretas nas variáveis de nível inferior que a constituem. Provaremos o teorema acima enunciado para o caso especial em que todos os graus de liberdade podem ser representados como osciladores harmônicos acoplados. Isto é uma simplificação do problema real (que é não-linear). Os movimentos reais consistem em pequenas perturbações sistemáticas no topo de um background infinitamente turbulento. Essas perturbações sistemáticas podem ser tratadas como coordenadas coletivas, representando o comportamento global dos relógios locais constituintes de um dado nível. Em geral, esse movimento coletivo tomará a forma de uma oscilação ondulatória que, até um certo grau de aproximação, está sujeito a movimento harmônico simples. Representemos as variáveis de ação e as variáveis de ângulo do zésimo oscilador harmônico por Jn e tyn, respectivamente. Até o ponto em que a aproximação linear é correta, Jn será uma constante do movimento e t>B aumentará linearmente com o tempo de acordo com a equação fyn=UB onde UB é a freq?ência angular do enésimo oscilador. Jn e <t>B estarão relacionadas às variáveis de relógio por uma transformação canônica, tal como (12). Uma vez que a correlação generalizada de Bohr-Sommerfeld (16) é invariante para uma transformação canônica, segue-se que Jn = Sn, onde S é um inteiro. Além disso, as coordenadas e momenta desses osciladores podem ser escritos como (29) p=2VT= 2 VT. Consideremos agora um conjunto de variáveis canônicas de nível superior, indicando um par específico dessas variáveis por Q e iCf Em princípio, estas seriam determinadas pela totalidade de todos os outros níveis. Certamente, o próximo nível inferior será o principal nível que entra nessa determinação; no entanto, os outros ainda terão algum efeito. Por isso, em concordância com nossas discussões anteriores, devemos considerar n e Q como sendo, em princípio, independentes de qualquer dado conjunto de variáveis de nível inferior, incluindo, é claro, aquelas do próximo nível inferior. Até onde é válida a aproximação linear, podemos escrever (30) Gf=2 a "P"=2 2a<vTTcos^ (25) onde ct^ e Pin são coeficientes constantes, e onde, como lembramos, supõe-se que n cobre todos os níveis diferentes de T. A fim de que seja consistente supor que Q1, e n são conjugados canônicos, é necessário que seus parênteses de Poisson sejam a unidade ou que com a ajuda da Equação (25), isso se torna Ia./3= 1.(26). A Equação (25) implica um movimento muito complexo para Q1 e TC', pois num sistema típico de osciladores acoplados, os (0B são, em geral, todos diferentes, não sendo múltiplos inteiros um do outro (exceto para possíveis conjuntos de medida zero). Assim, o movimento será uma curva que "preenche o espaço" (quase ergótico) no espaço de fase, sendo uma generalização das figuras bidimensionais de Lissajou para osciladores harmônicos perpendiculares entre si, com períodos que não sejam múltiplos racionais um do outro. Durante um intervalo de tempo t, que é razoavelmente longo em comparação com os períodos 2n/<ân dos osciladores de nível inferior, a trajetória de Q.1 e TC' no espaço de fase preencherá, essencialmente, uma certa região, mesmo que a órbita seja definida em todos os instantes. Calcularemos agora a flutuação média de Q e TC' nessa região tirando as médias durante o tempo t. Notando que Q1. = TC = O para tais médias, temos, para essas flutuações, (4GI)2 = 4 a- V7mJ,cos^cos^=2^(?-)2J-2 = 4 ^ 0-0- V/my, sendo ^msen= 2 2 (p,)2 Jn(27)(28)onde utilizamos o resultado cos 8m cos 6B = sen 8m sen 6n = O para rn # n (exceto para o conjunto de medida zero, acima mencionado, em que con e con são múltiplos racionais um do outro). Supomos agora que todos os osciladores estão em seus estados mais baixos (com = h), exceto para um conjunto de medida zero. Este conjunto representa um número denumerável de excitações relativas ao estado de "vácuo". Devido ao seu pequeno número, essas excitações dão uma contribuição negligenciável para (AQ1.)2 e (Ajc.1)2. Estabelecemos, portanto, H = h na Equação (28), e obtemos AQV = 2 ú (?-)2*: <47r>2 = 2 2Wh-m. Usamos então a desigualdade de Schwarz ú (<*ä,)' (p.)1 *ú am^ P (29). Combinando a expressão acima com as Equações (26), (27) e (28), obtemos Air1, AQif > 4h (30). As relações acima são, em essência, aquelas de Heisenberg. AJI- e AQ representarão efetivamente limitações sobre o grau de autodeterminação do zésimo nível, pois todas as quantidades desse nível evidentemente terão que ser promediadas em períodos de tempo longos comparados com 2n/dn. Assim, deduzimos o princípio de Heisenberg a partir de suposição do quantum de ação. Notamos que a Equação (30) já foi obtida na seção 10 de uma maneira muito diferente - supondo simples flutuações de campo aleatórias à semelhança de partículas submetidas ao movimento browniano. Por conseguinte, uma infinidade de variáveis de nível inferior que satisfaçam as condições de que Jn é discreto e igual à mesma constante, h, para todas as variáveis, produzirá um padrão de movimentos de longo percurso que reproduz certas características essenciais de uma flutuação aleatória do tipo browniano. Completamos assim nossa tarefa de propor um modelo físico geral que explique as regras de quantização juntamente com as relações de incerteza de Heisenberg. Mas, agora, pode-se ver facilmente que o nosso modelo físico básico, envolvendo uma infinidade de relógios dentro de relógios, deixa espaço para mudanças fundamentais, que extravasariam para além do âmbito da atual teoria quântica. Para ilustrar essas possibilidades, suponha que uma tal estrutura devesse continuar somente durante um tempo característico TO, após o qual deixaria de existir e seria substituída por outro tipo de estrutura. Então, em processos que envolvem tempos muito maiores do que TO, os relógios ainda estarão sujeitos, essencialmente, às mesmas restrições que antes, visto que seus movimentos não seriam alterados significativamente pela subestrutura mais profunda. Não obstante, em processos que envolvam tempos mais curtos do que TO, não haverá razão para que tais restrições se apliquem, uma vez que a estrutura não é mais a mesma. Desse modo, vemos como os B serão restritos a valores discretos em certos níveis, embora não sejam necessariamente assim restritos em outros. Para níveis em que os n não são restritos a serem múltiplos de h, a Equação (30) para a flutuação de TC- e QJ não precisa mais ser aplicada. Em lugar de h, aparecerá uma quantidade Jmt a ação média associada aos níveis em questão. Além disso, médias de cos<t>mcos tyj podem deixar de ser desprezíveis, pois os tempos são demasiado curtos. Assim, há espaço para qualquer tipo concebível de mudança nas regras para a determinação de Jn e naquelas que determinam as magnitudes de flutuação associadas a um dado nível. Não obstante, nos níveis quânticos as regras usuais serão válidas até um grau muito alto de aproximação.


4.12 Discussão sobre experimentos para sondar o nível subquântico Agora estamos prontos para discutir, pelo menos em termos gerais, as condições sob as quais poderia ser possível examinar experimentalmente um nível subquântico, e desse modo completar nossas respostas às críticas da sugestão das variáveis ocultas feitas por Heisenberg e por Bohr. Em primeiro lugar, lembremos que a prova das relações de Heisenberg, referente à máxima precisão de medida possível de variáveis canonicamente conjugadas, fazia uso da suposição implícita de que as medições devem envolver apenas processos que satisfaçam as leis gerais da atual teoria quântica. Desse modo, no bem conhecido exemplo do microscópio de raios gama, ele supõe que a posição de um elétron devia ser medida pelo espalhamento de um raio gama que, depois de incidir na partícula em questão, atravessaria uma lente e atingiria uma placa fotográfica. Esse espalhamento é, em essência, um caso de efeito Compton; e a prova do princípio de Heisenberg dependia essencialmente da premissa de que o efeito Compton satisfaz as leis da teoria quântica (isto é, conservação da energia e do momentum num processo de espalhamento "indivisível", caráter ondulatório do quantum espalhado ao atravessar a lente, e determinismo incompleto da mancha com caráter de partícula na chapa fotográfica). De um modo mais geral, qualquer uma dessas provas deve basear-se na suposição de que em cada estágio o processo de medição satisfará as leis da teoria quântica. Logo, supor que o princípio de Heisenberg tem validade universal é, em última análise, o mesmo que supor que as leis gerais da teoria quântica são universalmente válidas. Mas essa suposição é agora expressa em termos das relações externas da partícula com um aparelho de medição, e não das características internas da partícula em si mesma. Em nosso ponto de vista, o princípio de Heisenberg não deve ser considerado primariamente como uma relação externa, expressando a impossibilidade de fazer medições de precisão ilimitada no domínio quântico. Em vez disso, deve ser considerado basicamente como uma expressão do grau incompleto de autodeterminação característico de todas as entidades que possam ser definidas ao nível mecânico-quântico. Logo, se medirmos essas entidades, também utilizaremos processos que ocorrem no nível mecânico-quântico, de modo que o processo de medição terá os mesmos limites em seu grau de autodeterminação que qualquer outro processo nesse nível. É mais ou menos como se estivéssemos medindo o movimento browniano com microscópios sujeitos ao mesmo grau de flutuação aleatória dos sistemas que estivéssemos tentando observar. No entanto, como vimos nas seções 10 e 12, é possível, e de fato plausível, supor que processos subquântico-mecânicos envolvendo intervalos muito pequenos de tempo e de espaço não estarão sujeitos às mesmas limitações de seu grau de autodeterminação que aquelas dos processos mecânico-quânticos. É claro que esses processos subquânticos muito provavelmente envolverão tipos basicamente novos de entidades, tão diferentes dos elétrons, prótons, etc., quanto estes o são dos sistemas macroscópicos. Portanto, métodos inteiramente novos teriam de ser desenvolvidos para observá-los (assim como novos métodos tiveram de ser desenvolvidos para observar átomos, elétrons, nêutrons, etc.). Esses métodos dependerão do uso de interações envolvendo leis subquânticas. Em outras palavras, assim como o "microscópio de raios gama" baseou-se na existência do efeito Compton, um "microscópico subquântico" estaria baseado em novos efeitos, não limitados em seu grau de autodeterminação pelas leis da teoria quântica. Esses efeitos, então, tornariam possível uma correlação entre um evento observável de grande escala e o estado de alguma variável subquântica com mais precisão do que é permitido pelas relações de Heisenberg. Evidentemente, não se espera, da maneira acima descrita, determinar efetivamente todas as variáveis subquânticas e, assim, prever o futuro com plenos detalhes. Em vez disso, pretende-se apenas, com uns poucos experimentos cruciais, mostrar que o nível subquântico está aí, investigar suas leis, e utilizá-las para explicar e prever as propriedades dos sistemas de nível superior com mais detalhes e com maior precisão, do que o faz a atual teoria quântica. Para tratar dessa questão mais detalhadamente, recordemos agora uma conclusão da seção anterior, a saber, se nos níveis inferiores a variável de ação fosse divisível em unidade menores que h, então os limites do grau de autodeterminação desses níveis poderiam ser menos rigorosos do que aqueles dados pelas relações de Heisenberg. Assim, pode muito bem haver processos relativamente divisíveis e autodeterminados ocorrendo em níveis inferiores. Mas como podemos observá-los em nosso nível? Para responder a essa questão, vamos nos referir à Equação (25), a qual indica, em caso típico, como as variáveis de um dado nível dependem até certo ponto de todas as variáveis de nível inferior. Desse modo, se TC e Q representam o nível clássico, então eles seriam, em geral, determinados principalmente pelos p1, e cf do nível quântico; mas haveria alguns efeitos devidos aos níveis subquânticos. Geralmente, estes seriam muito pequenos. Todavia, em casos especiais (p. ex., com arranjos especiais nos aparelhos, os TC' e Q1 poderiam depender significativamente dos p1 e q' de um nível subquântico. Naturalmente, isso significaria o acoplamento de algum novo tipo de processo subquântico (até agora desconhecido, mas talvez a ser descoberto) aos fenômenos clássicos observáveis de grande escala. Esse processo presumivelmente envolveria altas frequências e, portanto, altas energias, mas de uma maneira nova. Mesmo quando os efeitos do nível subquântico em TC' e Q forem pequenos, não serão identicamente iguais a zero. Assim, criam-se oportunidades para testar esses efeitos efetuando-se velhos tipos de experimentos com precisão extremamente alta. Por exemplo, a relação Jn = nh era obtida na Equação (24) somente se se supusesse o quantum de ação universalmente igual a h (em todos os níveis). Desvios subquânticos dessa regra seriam, portanto, refletidos no nível clássico como um erro diminuto na relação E = nh> para um oscilador harmônico. Quanto a isso, lembre-se de que, na teoria clássica, não há em absoluto qualquer relação especial entre energia e freq?ência. Até certo ponto, essa situação pode ser restabelecida no domínio subquântico. Consequentemente, descobrir-se-ia uma pequena flutuação na relação entre En e nh>. Por exemplo, ter-se-ia E = nh> + eonde e é uma quantidade muito pequena e aleatoriamente flutuante (que fica cada vez maior à medida que consideramos frequências cada vez mais altas). Para testar uma tal flutuação, poder-se-ia realizar um experimento em que a frequência de um feixe luminoso fosse medida com uma precisão Vi. Se a energia observada flutuasse em mais do que TzVi, e se não fosse encontrada nenhuma fonte para a flutuação no nível quântico, esse experimento poderia ser considerado como uma indicação de flutuações subquânticas. Com essa discussão, completamos nossa resposta às críticas de Bohr e Heisenberg, que argumentam que um nível mais profundo de variáveis ocultas no qual o quantum de ação fosse divisível nunca poderia ser revelado em nenhum fenômeno experimental. Isso também significa que não há argumentos válidos para justificar a conclusão de Bohr, segundo a qual o conceito do comportamento detalhado da matéria como um processo único e autodeterminante deve restringir-se apenas ao nível clássico (onde se pode observar de maneira razoavelmente direta o comportamento dos fenômenos em grande escala). De fato, também somos capazes de aplicar tais noções num nível subquântico, cujas relações com o nível clássico são relativamente indiretas e, contudo, aptas, em princípio, a revelar a existência e as propriedades do nível inferior graças aos seus efeitos sobre o nível clássico. Finalmente, consideremos o paradoxo de Einstein, Rosen e Podolsky. Como vimos na seção 4, podemos facilmente explicar as co-relações mecânico-quânticas peculiares de sistemas, distantes supondo interações ocultas entre tais sistemas mantidas no nível subquântico. Com uma


infinidade de variáveis de campo flutuantes nesse nível inferior, há amplos movimentos ocorrendo que poderiam explicar uma tal correlação. A única dificuldade real é explicar como as correlações são mantidas se, enquanto os dois sistemas ainda estejam se separando, de repente alternamos a variável a ser medida ao alterar o aparelho de medição para um dos sistemas. Como, então, o sistema longínquo receberá instantaneamente um "sinal" indicando que uma nova variável vai ser medida, de modo a que possa responder de acordo? Para responder a essa questão, primeiro notamos que as correlações mecânico-quânticas características têm sido observadas experimentalmente com sistemas distantes somente quando as várias peças de aparelho de observação permaneceram nas proximidades por um tempo tão longo que possibilite uma profusão de oportunidades para que entrem em equilíbrio com o sistema original mediante interações subquântico-mecânicas. (31) Por exemplo, no caso da molécula descrita na seção 4, haveria tempo para que muitos impulsos se deslocassem de um lado para outro entre a molécula e os dispositivos medidores de spins, até mesmo antes que a molécula se desintegrasse. Desse modo, as ações da molécula poderiam ser "disparadas" por sinais vindos do aparelho, de modo que ela emitiria átomos com spins já adequadamente alinhados para o aparelho encarregado de medi-los. A fim de testar aqui o ponto essencial, seria preciso utilizar sistemas de medição que se alterassem rapidamente em comparação com o tempo necessário para um sinal se dirigir, do aparelho até o sistema observado e vice-versa. Ainda não se sabe o que realmente aconteceria se isso fosse feito. É possível que os experimentos revelassem uma insuficiência das correlações mecânico-quânticas típicas. Se isso acontecesse, seria uma prova de que aqui os princípios básicos do quantum estão falhando, pois a teoria quântica não poderia explicar esse comportamento, ao passo que uma teoria subquântica poderia muito facilmente explicá-lo como um efeito da insuficiência das conexões subquânticas em relacionar os sistemas com rapidez suficiente para garantir correlações quando o aparelho for alterado muito subitamente. Por outro lado, se as correlações mecânico-quânticas previstas ainda forem constatadas nessa medição, isso não é prova da não-existência do nível subquântico,-pois até mesmo o dispositivo mecânico que altera subitamente o aparelho de observação deve ter conexões subquânticas com todas as partes do sistema, e, por meio destas, poderia ainda ser transmitido à molécula um "sinal" de que um certo observável iria eventualmente ser medido. Esperaríamos, é claro, que em algum nível de complexidade do aparelho as conexões subquânticas deixassem de ser capazes de fazê-lo. Não obstante, na ausência de uma teoria subquântico-mecânica mais detalhada, não é possível saber a priori onde isso aconteceria. Seja como for, os resultados de um tal experimento certamente seriam muito interessantes. 4.13 Conclusão Em conclusão, aprofundamos a teoria o suficiente para mostrar que podemos explicar os aspectos essenciais da mecânica quântica em termos de um nível subquântico-mecânico envolvendo variáveis ocultas. Essa teoria é capaz de ter um novo conteúdo experimental, especialmente em relação ao domínio das distâncias muito curtas e das energias muito altas, onde há novos fenômenos que não são tratados satisfatoriamente bem em termos das teorias atuais (e também em relação à verificação experimental de certos aspectos das correlações de sistemas distantes). Além do mais, vimos que esse tipo de teoria abre novas possibilidades para a eliminação de divergências nas teorias vigentes que também estão associadas ao domínio de distâncias curtas e altas energias. (P. ex., como foi mostrado na seção 10, o colapso do princípio de Heisenberg para tempos muito curtos poderia eliminar os infinitos efeitos das flutuações quânticas.) Evidentemente, a teoria, conforme a desenvolvemos aqui, está longe de ser completa. ? necessário, ao menos, mostrar como se obtém a equação dos muitos corpos de Dirac para férmions, e as equações de onda usuais para bósons. Muito progresso tem sido feito com respeito a esses problemas, mas não há espaço para discuti-los aqui. Além disso, estão sendo realizados novos progressos relativos ao tratamento sistemático dos novos tipos de partículas (mésons, híperons, etc.) em termos de nosso esquema. Tudo isso será publicado mais tarde, em algum outro lugar. No entanto, mesmo na sua atual forma incompleta, a teoria responde às críticas básicas daqueles que a consideravam impossível, ou que achavam que ela jamais poderia dizer respeito a quaisquer problemas experimentais reais. No mínimo, parece que ela promete ser capaz de lançar alguma luz sobre vários desses problemas experimentais, bem como sobre aqueles que surgem com relação à falta de consistência interna da teoria atual. Pelas razões acima descritas, parece que, no momento, algumas considerações sobre as teorias envolvendo variáveis ocultas são necessárias para nos ajudar a evitar preconceitos dogmáticos. Esses preconceitos não só restringem nosso pensamento de forma injustificável como também restringem igualmente os tipos de experimentos que somos capazes de realizar (uma vez que, no final das contas, uma fração considerável de todos os experimentos destina-se a responder questões levantadas em alguma teoria). É claro que seria igualmente dogmático insistir no fato de que a interpretação usual já esgotou todas as suas possíveis utilidades para esses problemas. No momento, o necessário é que muitas vias de pesquisa sejam trilhadas, uma vez que não é possível saber de antemão qual é a correta. Além disso, a demonstração da possibilidade de teorias de variáveis ocultas pode servir, num sentido filosófico mais geral, para nos lembrar da falibilidade de conclusões baseadas na suposição da completa universalidade de certos aspectos de uma dada teoria, por mais geral que possa parecer seu domínio de validade. CAPÍTULO 5 A teoria quântica como indicação de uma nova ordem na física Parte A: O desenvolvimento de novas ordens, conforme o revela a história da física 1.Introdução Mudanças revolucionárias na física sempre envolveram a percepção de uma nova ordem e a atenção ao desenvolvimento de novas maneiras de utilizar a linguagem, as quais sejam apropriadas à comunicação dessa ordem. Iniciaremos este capítulo com um exame de certos aspectos da história do desenvolvimento da física que possam ajudar a nos fornecer algum insight sobre o que significa a percepção e a comunicação de uma nova ordem. Em seguida, passaremos, no capítulo seguinte, à apresentação de sugestões a respeito da nova ordem indicada pela consideração da teoria quântica. Nos tempos antigos, havia apenas uma vaga noção qualitativa de ordem na natureza. Com o desenvolvimento da matemática, em especial nos campos da aritmética e da geometria, surgiu a possibilidade de definir formas e ratios com mais precisão, de modo que se pudesse, por exemplo, descrever as órbitas detalhadas dos planetas, etc. Porém, essas descrições matemáticas detalhadas dos movimentos dos planetas e


de outros corpos celestes implicavam certas noções gerais de ordem. Assim, os gregos antigos pensavam que a Terra estivesse no centro do universo, e que, circundando-a, havia esferas que iam se aproximando da perfeição ideal da matéria celeste à medida que se ia afastando de nosso planeta. Supunha-se que a perfeição da matéria celeste se revelasse em órbitas circulares, que eram consideradas as mais perfeitas de todas as figuras geométricas, enquanto que a imperfeição da matéria terrena revelava-se em seus movimentos muito complicados e aparentemente arbitrários. Desse modo, o universo era percebido e discutido em termos de uma certa ordem global; isto é, a ordem de graus de perfeição, que correspondia à ordem de distância a partir do centro da Terra. A física como um todo era entendida em termos de noções de ordem intimamente relacionadas àquelas descritas acima. Desse modo, Aristóteles comparava o universo a um organismo vivo, onde cada parte tinha o seu lugar e a sua função adequados, de modo que tudo funcionava conjuntamente, perfazendo um todo único. Nesse todo, um objeto podia se movimentar apenas se houvesse uma força atuando sobre ele. A força era, então, considerada uma causa do movimento. Logo, a ordem do movimento era determinado pela ordem das causas, que por sua vez dependia do lugar e da função de cada parte no todo. O modo geral de perceber e de comunicar a ordem na física evidentemente não estava em contradição com a experiência comum (na qual, por exemplo, o movimento só é possível como regra quando há uma força que supere o atrito). Certamente, quando os planetas foram observados de maneira mais detalhada, descobriu-se que suas órbitas não eram, na verdade, círculos perfeitos, mas este fato foi acomodado dentro das noções predominantes de ordem graças à consideração de que as órbitas planetárias seriam uma superposição de epiciclos, isto é, círculos dentro de círculos. Pode-se ver aqui um exemplo da notável capacidade de adaptação no âmbito de uma determinada noção de ordem, adaptação essa que capacita o indivíduo a continuar percebendo e falando em termos de noções essencialmente fixas desse tipo, apesar da evidência factual que, à primeira vista, parece exigir uma completa mudança nessas noções. Com o auxílio de tais adaptações, os homens puderam, durante milhares de anos, olhar para o céu noturno e ali ver os epiciclos, quase independentemente do conteúdo detalhado de suas observações. Parece claro, então, que uma noção básica de ordem, tal como a que foi expressa em termos de epiciclos, nunca poderia ser definitivamente contestada, pois seria sempre possível ajustá-la de modo a que se adequasse aos fatos observados. Mas, por fim, surgiu na pesquisa científica um novo espírito, que levou ao questionamento da relevância da velha ordem, e que se manifestou notadamente em Copérnico, Kepler e Galileu. O que emergiu desse questionamento foi, em essência, a proposta de uma ideia segundo a qual a diferença entre a matéria terrestre e a matéria celeste não é, na verdade, muito significativa. Em vez disso, sugeriu-se que uma diferença fundamental é a que se constata entre o movimento da matéria no espaço vazio e seu movimento num meio viscoso. As leis básicas da física deveriam então referir-se ao movimento da matéria no espaço vazio, e não num meio viscoso. Assim, Aristóteles estava certo ao dizer que a matéria, conforme a experiência usual, movimentava-se apenas sob a ação de uma força, mas errado em supor que essa experiência usual era relevante para as leis fundamentais da física. Daí concluía-se que a diferença básica entre as matérias celeste e terrestre não estava em seu grau de perfeição mas, sim, no fato de que a primeira geralmente movimenta-se sem atrito num vácuo, ao passo que a matéria terrestre movimenta-se com atrito num meio viscoso. Evidentemente, essas noções não eram, de um modo geral, compatíveis com a ideia de que o universo deve ser considerado como um único organismo vivo. Em vez disso, numa descrição fundamental, o universo tinha de ser agora considerado como analisável em partes ou objetos separadamente existentes (p. ex., planetas, átomos, etc.) cada um deles movimentando-se num vazio ou vácuo. Essas partes podiam atuar juntas em interação, mais ou menos como acontece com as partes de uma máquina, porém não podiam crescer, desenvolver-se e funcionar em resposta a fins determinados por um "organismo como um todo". Considerava-se que a ordem básica para a descrição do movimento das partes dessa "máquina" era a das posições sucessivas de cada objeto constituinte, em momentos sucessivos. Desse modo, uma nova ordem tornou-se relevante, e um novo uso da linguagem precisava ser desenvolvido para a descrição dessa nova ordem. No desenvolvimento de novos modos de utilização da linguagem, as coordenadas cartesianas desempenharam um papel fundamental. De fato, a própria palavra "coordenada" implica uma função de ordenamento. Esse ordenamento é realizado com o auxílio de uma grade. Esta é constituída de três conjuntos perpendiculares de linhas uniformemente espaçadas. Cada conjunto de linhas é, evidentemente, uma ordem (semelhante à ordem dos inteiros). Uma curva é então determinada por uma coordenação entre as ordens x, y e z. É evidente que não se deve considerar as coordenadas como objetos naturais. São, em vez disso, apenas formas de descrição convenientes estabelecidas por nós. Como tais, elas têm muito de arbitrariedade ou de convencionalidade (p. ex., na orientação, na escala, na ortogonalidade, etc., dos eixos coordenados). No entanto, a despeito desse tipo de arbitrariedade, é possível, como hoje se sabe muito bem, ter uma lei geral não-arbitrária expressa em termos de coordenadas. Isso é possível se a lei toma a forma de uma relação que permanece invariante sob mudanças nas características arbitrárias da ordem descritiva. Utilizar coordenadas é, na verdade, ordenar nossa atenção de uma maneira que seja apropriada à concepção mecânica do universo, e desse modo ordenar, de maneira semelhante, nossa percepção e nosso pensamento. É claro, por exemplo, que embora Aristóteles, muito provavelmente, tivesse entendido o significado de coordenadas, ele as teria julgado de pouca ou nenhuma importância para o seu intuito de entender o universo como um organismo. Mas assim que os homens estivessem preparados para conceber o universo como uma máquina, naturalmente tenderiam a considerar a ordem de coordenadas como universalmente relevante, válida para todas as descrições básicas na física. No âmbito dessa nova ordem, a ordem cartesiana, de percepção e de pensamento que se desenvolvera após o Renascimento, Newton foi capaz de descobrir uma lei muito geral. Essa lei pode ser enunciada da seguinte forma: "Assim como acontece com a ordem de movimento na queda de uma maçã, ocorre com a da Lua, e com todas as coisas." Isto foi uma nova percepção de lei, isto é, a harmonia universal na ordem da natureza, conforme descrita em detalhe mediante o uso de coordenadas. Tal percepção é um lampejo de insight muito penetrante, e que é basicamente poético. De fato, a raiz da palavra "poesia" é o grego "poiein", que significa "fazer" ou "criar". Assim, em seus aspectos mais originais, a ciência assume uma qualidade de comunicação poética de percepção criativa de uma nova ordem. Uma maneira mais "prosaica" de expressar o insight de Newton é escrever A:B::C:D. Isto quer dizer: "Assim como as sucessivas posições A, B da maçã estão relacionadas, o mesmo acontece com as sucessivas posições C, D da Lua." Isto constitui uma noção generalizada daquilo que se pode chamar de ratio. Aqui, consideramos ratio em seu significado mais amplo (p. ex., no sentido latino original), que inclui tudo o que se relaciona a razão. A ciência, portanto, visa a descobrir a ratio ou razão universal, que inclui não apenas a ratio ou proporção numérica (A/C = C/D) mas também a similaridade qualitativa geral. A lei racional não se restringe a uma expressão de causalidade. Evidentemente, a razão, no sentido que a entendemos aqui, vai muito além do de causalidade, sendo esta um caso especial daquela. De fato, a forma básica de causalidade é: "Realizo uma determinada ação X e faço com que algo aconteça." Uma lei causal toma então a forma: "Assim como acontece com minhas ações causais, também ocorre com certos processos que podem ser observados na natureza." Logo, uma lei causal proporciona um certo tipo limitado de razão. Mas, de um modo mais geral, uma explicação racional toma a seguinte forma: "Assim como as coisas estão relacionadas numa determinada ideia ou conceito, elas estão relacionadas de fato." Da discussão precedente fica claro que, ao encontrar uma nova estrutura de razão ou racionalidade, é crucial discernir, em primeiro lugar,


diferenças relevantes. Tentar encontrar uma conexão racional entre diferenças irrelevantes resulta em arbitrariedade, confusão e esterilidade geral (p. ex., como no caso dos epiciclos). Portanto, temos de estar prontos para abandonar nossas suposições quanto às diferenças relevantes, embora, com frequência, isto pareça muito difícil, pois tendemos a dar um alto valor psicológico às ideias que nos são familiares. 2.O que é ordem? Até agora, o termo ordem tem sido utilizado em vários contextos mais ou menos conhecidos por todos, de modo que o seu significado pode ser entendido de forma razoavelmente clara a partir de seu uso. Contudo, a noção de ordem é evidentemente relevante em contextos muito mais amplos. Assim, não restringimos a ordem a algum arranjo regular de objetos ou formas em linhas ou em colunas (como nas grades). Em vez disso, podemos considerar ordens muito mais gerais, como a ordem de crescimento de um ser vivo, a ordem de evolução de espécies vivas, a ordem da sociedade, a ordem de uma composição musical, a ordem da pintura, a ordem que constitui o significado da comunicação, etc. Se quisermos investigar esses contextos mais amplos, é evidente que as noções de ordem às quais nos referimos anteriormente neste capítulo não serão mais adequadas. Somos, portanto, levados à questão geral: "O que é ordem?" No entanto, a noção de ordem é tão vasta e imensa em suas implicações que não pode ser definida em palavras. De fato, o melhor que podemos fazer é tentar "apontar para ela" tacitamente e por implicação, numa gama de contextos tão ampla quanto possível em que essa noção é relevante. Todos nós conhecemos a ordem implicitamente, e tal ato de "apontar" pode talvez comunicar um significado geral e global de ordem sem a necessidade de uma definição verbal precisa. A B C D E F G Figura 5.1 Para começar a entender a ordem num sentido tão geral, podemos primeiramente recordar que, no desenvolvimento da física clássica, via-se que a percepção de uma nova ordem envolvia a discriminação de novas diferenças relevantes (posições de objetos em sucessivos momentos), juntamente com novas similaridades que devem ser encontradas nas diferenças (similaridade de ratios nessas diferenças). Sugere-se aqui que essa é a semente ou núcleo de um modo muito geral de perceber a ordem, isto é, dar atenção a diferenças similares e similaridades diferentes. Ilustremos essas noções em termos de uma curva geométrica. Para simplificar o exemplo, faremos uma aproximação da curva por meio de uma série de segmentos de reta de igual comprimento. Começamos com uma reta. Como mostra a Figura 5.1, os segmentos numa reta têm, todos, a mesma direção, de modo que sua única diferença está na posição. A diferença entre o segmento A e o segmento B é, portanto, um deslocamento no espaço semelhante à diferença entre B e C, e assim por diante. Desse modo, podemos escrever A-B::B:C::C:D::D:E. Pode-se dizer que essa expressão de ratio ou "razão" define uma curva de primeira classe, isto é, uma curva que tem apenas uma diferença independente. Em seguida, consideremos um círculo, conforme ilustrado na Figura 5.2. Aqui, a diferença entre A e B está na direção, bem como na posição. Desse modo, temos uma curva com duas diferenças independentes, sendo, portanto, uma curva de segunda classe. Porém, ainda temos uma única ratio nas diferenças, A-B.-.-B.C Agora chegamos a uma hélice. Aqui, o ângulo entre as linhas pode dobrar-se numa terceira dimensão. Assim, temos uma curva de terceira classe. Também ela é determinada por uma única ratio, A:B::B:C. Até agora vimos considerando vários tipos de similaridade nas diferenças para obter curvas de primeira, segunda, terceira classes, etc. Todavia, em cada curva, a similaridade (ou ratio) entre passos sucessivos permanece invariante. Podemos agora chamar a atenção para curvas em que essa similaridade é diferente, à medida que percorremos sua curvatura. Dessa maneira, somos levados a considerar não só as diferenças similares, mas também as diferentes similaridades das diferenças. Figura 5.2 A ' B 'C 'D Figura 5.3 Podemos ilustrar essa noção por meio de uma curva que é uma cadeia de retas em diferentes direções (veja a Figura 5.3). Sobre a primeira linha (ABCD), podemos escrever A:B::B:C. O símbolo Sj representa "o primeiro tipo de similaridade", isto é, na direção ao longo da linha (ABCD). Escrevemos então para as linhas (EFG) e (HIJ) E:FS2::F:G e H:IS3::I:J; onde S2 representa a "similaridade do segundo tipo" e S3 a "similaridade do terceiro tipo". Podemos agora considerar a diferença de similaridades sucessivas (S, S2 S3,...) como um segundo grau de diferença. Disto, desenvolvemos um segundo grau de similaridade nessas diferenças: Si:S2::S2:S3. Dessa maneira, ao introduzirmos aquilo que, na verdade, é o começo de uma hierarquia de similaridades e diferenças, podemos continuar com curvas de graus de ordem arbitrariamente altos. À medida que os graus tornam-se indefinidamente altos, somos capazes de descrever o que costuma ser chamado de curvas "aleatórias" - como aquelas encontradas no movimento browniano. Esse tipo de curva não é determinado por nenhum número finito de etapas. Mesmo assim, não seria apropriado chamá-lo de "desordenado", isto é, sem nenhuma ordem. Ele possui um certo tipo de ordem que é de um grau indefinidamente alto. Desse modo, somos levados a realizar uma importante mudança na linguagem geral da descrição. Não mais utilizamos o termo "desordem", mas, em vez disso, distinguimos entre diferentes graus de ordem (de modo a haver, por exemplo, uma gradação ininterrupta de curvas, começando com as de primeiro grau e continuando, passo a passo, até aquelas que geralmente têm sido chamadas de "aleatórias"). É importante acrescentar que ordem não é algo que deve ser identificado com previsibilidade. Esta é uma propriedade de um tipo especial de ordem, uma ordem tal que bastam algumas etapas para determiná-la por inteiro (isto é, como nas curvas de baixo grau), mas pode haver ordens complexas e sutis que, em essência, não estão relacionadas com previsibilidade (p. ex., uma boa pintura é altamente ordenada e, contudo, essa ordem não permite que uma parte seja prevista a partir de outra). 3. Medida Ao desenvolvermos a noção de uma ordem de alto grau, tacitamente introduzimos a ideia de que cada subordem tem um limite. Assim, na Figura 5.4 a ordem da linha ABC chega ao seu limite no fim do segmento C. Além deste limite, há uma outra ordem, EFG, e assim por diante. Portanto, a descrição de uma ordem hierárquica de alto grau geralmente envolve a noção de limite. ? importante notar que antigamente o significado mais básico da palavra "medida" era "limite" ou "fronteira". Neste sentido, podia-se dizer que cada coisa tinha a sua medida apropriada. Por exemplo, pensava-se que, quando o comportamento humano ia além de seus limites adequados (ou além de sua medida) o resultado teria de ser a tragédia (conforme era encenada com muito vigor nos dramas gregos). De fato, a medida era considerada essencial para o entendimento do bem. Assim, a origem da palavra "medicina" é a palavra latina mederi, que significa "curar", e que era derivada de uma raiz cujo significado é "medida". Isto implicava que ser saudável era possuir tudo numa medida correta, no corpo e na mente. De maneira semelhante, a sabedoria era equiparada à moderação e à modéstia (cuja raiz comum também é derivada de medida), sugerindo, pois, que o sábio é aquele que mantém tudo na justa medida. Para ilustrar esse significado da palavra "medida" na física, pode-se dizer que "a medida da água" é entre 0ºC e 100ºC. Em outras palavras, a medida dá primariamente os limites de qualidades ou de ordens de movimento e de comportamento. Naturalmente, a medida tem de ser


especificada por intermédio da proporção ou ratio, mas, em termos da noção antiga, essa especificação é entendida como de importância secundária em relação à fronteira ou limite assim especificado; e aqui pode-se acrescentar que, em geral, essa especificação não precisa nem mesmo ser em termos de proporção quantitativa, mas, sim, em termos de razão qualitativa (p. ex., num drama, a medida apropriada do comportamento humano é especificada em termos qualitativos, e não mediante ratio numéricas). No uso moderno da palavra "medida", o aspecto de proporção quantitativa ou ratio numérica tende a ser enfatizado muito mais intensamente do que nos tempos antigos. No entanto mesmo aqui a noção de fronteira ou limite ainda se encontra presente, embora em segundo plano. Assim, para montar uma escala (p. ex., de comprimento), deve-se estabelecer divisões que, na verdade, são limites ou fronteiras de segmentos ordenados. Ao se dar atenção, dessa maneira, para significados mais antigos de certas palavras, juntamente com seus significados atuais, pode-se obter um certo insight sobre a plena significação de uma noção geral, tal como a de medida, que não é proporcionada quando se consideram apenas significados modernos mais especializados, desenvolvidos em várias formas de análise científica, matemática e filosófica. 4. A estrutura como um desenvolvimento a partir da ordem e da medida Se considerarmos a medida no sentido amplo acima indicado, podemos verificar como essa noção trabalha junto com a de ordem. Assim, como é mostrado na Figura 5.4, qualquer ordem linear dentro de um triângulo (tal como a linha FG) é limitada (isto é, medida) pelas linhas AB, BC, e CA. Cada uma dessas linhas é, ela mesma, uma ordem de segmentos, que é limitada (isto é, medida) pelas outras linhas. O formato do triângulo é então descrito em termos de certas proporções entre os lados (comprimentos relativos). Figura 5.4 A consideração do trabalho conjunto da ordem e da medida em contextos cada vez mais amplos e complexos leva à noção de structure [estrutura]. Como indica a raiz latina struere, o significado essencial da noção de estrutura é construir, crescer, evoluir. Essa palavra é agora tratada somo um substantivo, mas o sufixo latino ura significava originalmente "a ação de fazer algo". Para enfatizar que não estamos nos referindo principalmente a um "produto acabado", ou a um resultado definitivo, podemos introduzir um novo verbo, to structate significando "criar e dissolver o que agora se chama de structures [estruturas]. Evidentemente, structation deve ser descrita e entendida por meio da ordem e da medida. Por exemplo, considere a structation (construção) de uma casa. Os tijolos são arranjados numa ordem e numa medida (isto é, dentro de limites) para fazer as paredes. Estas são igualmente ordenadas e medidas para fazer aposentos, estes para fazer uma casa, as casas para fazer ruas, as ruas para fazer cidades, etc.Structation implica, portanto, totalidade harmoniosamente organizada de ordem e de medidas, que é hierárquica (isto é, construída em muitos níveis) e extensiva (isto é, "espalhada" em cada nível). A raiz grega da palavra "organizar" é ergon, que se baseia num verbo que significa "trabalhar". Assim, pode-se pensar em todos os aspectos de uma estrutura como "trabalhando conjuntamente", de um modo coerente. É claro que esse princípio de estrutura é universal. Por exemplo, os seres vivos estão em contínuo movimento de crescimento e evolução de estrutura, movimento esse que é altamente organizado (p. ex., moléculas trabalham juntas para fazer células, células trabalham juntas para fazer órgãos, estes para fazer o ser vivo individual, seres vivos individuais para fazer uma sociedade, etc.). De maneira semelhante, na física, descrevemos a matéria como constituída de partículas em movimento (p. ex., os átomos) que trabalham juntas para fazer estruturas sólidas, líquidas ou gasosas, que, de maneira semelhante, fazem estruturas maiores, que vão até planetas, estrelas, galáxias, galáxias de galáxias, etc. Aqui, é importante enfatizar a natureza essencialmente dinâmica da Structation na natureza inanimada, nos seres vivos, na sociedade, na comunicação humana, etc. (p. ex., considere a estrutura de uma língua, que é uma totalidade organizada de movimento em constante fluência). Os tipos de estruturas que podem evoluir, crescer ou ser construídos são, evidentemente, limitados por sua ordem e por sua medida subjacentes. Novas ordens e medidas tornam possível a consideração de novos tipos de estrutura. Um simples exemplo desse fato pode ser tomado na música. Nela, as estruturas com as quais se trabalha dependem da ordem das notas e de certas medidas (escala, ritmo, tempo, etc.). Novas ordens e medidas evidentemente possibilitam a criação de novas estruturas na música. Neste capítulo, estamos indagando como novas ordens e medidas na física podem, de modo semelhante, tornar possível a consideração de novas estruturas. 4. Ordem, medida e estrutura na física clássica Como já foi assinalado em termos gerais, a física clássica implica uma certa ordem e medida descritiva básica. Esta pode ser caracterizada pelo uso de determinadas coordenadas cartesianas e pela noção de uma ordem de tempo universal e absoluta, independente da ordem do espaço. Além disso, implica o caráter absoluto do que se pode chamar de ordem e medida euclidiana (isto é, característica da geometria euclidiana). com essa ordem e medida, são possíveis certas estruturas. Estas, em essência, baseiam-se no corpo quase rígido, considerado como um elemento constituinte. A característica geral da estrutura clássica é justamente a analisabilidade de tudo em partes separadas, que são ou corpos pequenos, quase-rígidos, ou sua idealização extrema como partículas sem extensão. Como se assinalou anteriormente, considera-se que essas partes trabalham juntas, interagindo (como numa máquina). As leis da física, então, expressam a razão ou ratio nos movimentos de todas as partes, no sentido de que uma lei relaciona o movimento de cada parte com a configuração de todas as outras partes. Essa lei é determinista na forma, visto que os únicos aspectos contingentes de um sistema são as posições e as velocidades iniciais de todas as suas partes. É também causal, pois qualquer perturbação externa pode ser tratada como uma causa, que produz um efeito especificável que pode, em princípio, propagar-se para cada parte do sistema. Com a descoberta do movimento browniano, obtiveram-se fenômenos que, à primeira vista, pareciam por em questão todo o esquema clássico de ordem e medida, pois descobriram-se movimentos de "ordem de grau ilimitado", como os chamamos aqui, movimentos que não são determinados por algumas etapas apenas (p. ex., posições e velocidades iniciais). Porém, isso foi explicado supondo-se que, toda vez que ocorre o movimento browniano, a causa são impactos muito complexos provocados por partículas menores ou por campos aleatoriamente flutuantes. Então, supõe-se ainda mais afirmando-se que quando se leva em conta essas partículas e campos adicionais, a lei total será determinista. Desse modo, noções clássicas de ordem e de medida podem ser adaptadas, de modo a acomodar o movimento browniano, que, pelo menos da maneira como se apresenta, pareceria exigir descrição em termos de uma ordem e de uma medida diferentes. Todavia, a possibilidade de tal adaptação depende evidentemente de uma suposição. De fato, mesmo se pudermos rastrear alguns tipos de movimento browniano (p. ex., os das partículas de fumaça) até chegarmos aos impactos de partículas menores (átomos), isto não prova que as leis são, em última análise, do tipo clássico, determinista - pois é sempre possível supor que, basicamente, todos os movimentos devem ser descritos desde o início como movimento browniano (de modo que as órbitas aparentemente contínuas de grandes objetos, tais como planetas, seriam apenas aproximações de um tipo de trajetória efetivamente browniana. De fato, matemáticos (notavelmente Wiener) têm trabalhado tanto implícita como explicitamente em termos de movimento browniano como uma descrição básica (2) (não o explicando, portanto, como resultado de impactos de partículas mais sutis). Tal ideia realmente introduziria uma nova espécie de ordem e medida. Se se prosseguisse com seriedade a investigação dessa ideia, isto implicaria numa mudança de possíveis estruturas que talvez viesse a ser constatada como sendo tão importante


quanto aquela que decorreu da passagem dos epiciclos ptolomaicos para as equações de movimento de Newton. Na verdade, esse caminho não foi seriamente trilhado na física clássica. Não obstante, como veremos mais tarde, talvez seja útil dedicar-lhe alguma atenção com vistas a obtermos um novo insight sobre os possíveis limites de relevância da teoria da relatividade, bem como sobre a relação entre esta e a teoria quântica. 5. A teoria da relatividade Uma das primeiras reais rupturas nas noções clássicas de ordem e de medida veio com a teoria da relatividade. É importante assinalar aqui que a raiz da teoria da relatividade estava provavelmente numa pergunta que Einstein formulou a si próprio quando tinha quinze anos: "O que aconteceria se alguém se movimentasse na velocidade da luz e olhasse num espelho?" Evidentemente, ele não veria nada, porque a luz proveniente de seu rosto nunca alcançaria o espelho. Isto levou Einstein a achar que a luz é, de algum modo, basicamente diferente das outras formas de movimento. Do nosso ponto de vista mais moderno, podemos enfatizar ainda mais essa diferença, ao considerarmos a estrutura atômica da matéria da qual somos constituídos. Se nos deslocássemos mais rapidamente do que a luz, então, como mostra um simples cálculo, os campos eletromagnéticos que mantêm unidos os nossos átomos seriam deixados para trás de nós (como as ondas produzidas por um avião são deixadas para trás de si quando ele voa mais depressa do que o som). Consequentemente, nossos átomos dispersar-se-iam, e seríamos desintegrados. Portanto, não faria sentido supor que pudéssemos nos deslocar mais depressa do que a luz. Ora, um aspecto básico da ordem e da medida clássicas de Galileu e Newton é que se pode, em princípio, alcançar e ultrapassar um objeto que esteja descrevendo qualquer forma de movimento, contanto que a velocidade seja finita. Porém, como já assinalamos aqui, supor que podemos alcançar e ultrapassar a luz leva a absurdos. Essa percepção de que a luz deveria ser considerada como diferente das outras formas de movimento é semelhante à de Galileu quanto a compreensão de que o espaço vazio e um meio viscoso são diferentes com respeito à expressão das leis da física. No caso de Einstein, vê-se que a velocidade da luz não é uma velocidade possível para um objeto. É como um horizonte que não pode ser alcançado. Mesmo que pareçamos nos mover na direção do horizonte, nunca chegamos mais próximo dele. Ainda que nos movimentemos em direção a um raio de luz, nunca chegaremos mais perto de sua velocidade. Pois esta sempre permanece a mesma, em relação a nós. A relatividade introduz novas noções concernentes à ordem e medida do tempo. Essas noções não são mais absolutas, como era o caso na teoria newtoniana. Em vez disso, agora elas são relativas à velocidade de um sistema de coordenadas. Essa relatividade do tempo é uma das características radicalmente novas da teoria de Einstein.Uma mudança de linguagem muito significativa está envolvida na expressão da nova ordem e da nova medida do tempo manipuladas pela teoria relativística. A velocidade da luz é considerada não como uma possível velocidade de um objeto, mas, sim, como a velocidade máxima de propagação de um sinal. Antes disso, a noção de sinal não havia desempenhado nenhum papel na ordem descritiva geral subjacente da física, mas agora desempenha um papel fundamental nesse contexto. A palavra signal [sinal]contém a palavra sign [signo], que quer dizer "apontar para algo", bem como "ter significação". Um sinal é de fato uma espécie de comunicação. Assim, de certo modo, significação, significado e comunicação tornaram-se relevantes na expressão da ordem descritiva geral da física (como também a informação, que é, porém, apenas uma parte do conteúdo ou significado de uma comunicação). Talvez ainda não tenham sido percebidas todas as implicações desse fato, isto é, de como certas noções muito sutis de ordem, que vão muito além daquelas da mecânica clássica, introduziram-se tacitamente no arcabouço descritivo geral da física. A nova ordem e medida introduzida na teoria da relatividade implica novas noções de estrutura, nas quais a ideia de um corpo rígido não pode mais desempenhar um papel fundamental. De fato, não é possível na relatividade obter uma definição consistente de um corpo rígido extenso, pois isto implicaria sinais mais rápidos do que a luz. A fim de tentar acomodar essa nova característica da teoria da relatividade nas velhas noções de estrutura, os físicos foram levados à noção de uma partícula que é um ponto sem extensão, mas, como se sabe muito bem, esse esforço não tem levado a resultados satisfatórios devido aos infinitos campos associados às partículas punctiformes. Na verdade, a relatividade implica que nem as partículas punctiformes nem os corpos quase-rígidos podem ser tomados como conceitos primários. Em vez disso, estes têm de ser expressos em termos de eventos e de processos. Tubo de universo Figura 5.5 Por exemplo, qualquer estrutura localizável pode ser descrita como um tubo de universo (veja Figura 5.5). Dentro desse tubo ABCD, está ocorrendo um processo complexo, como indicam as muitas linhas no seu interior. Não é possível analisar consistentemente o movimento dentro desse tubo em termos de "partículas mais sutis" porque também estas teriam de ser descritas como tubos, e assim por diante ad infinitum. Além disso, cada tubo passa a existir a partir de um background ou contexto mais amplo, indicado pelas linhas que precedem AD, embora, eventualmente, ele volte a dissolver-se nesse background, como é indicado pelas linhas que seguem a BC. Assim, o "objeto" é uma abstração de uma forma relativamente invariante. Ou seja, assemelha-se mais a um padrão de movimento do que a uma coisa sólida e separada, que existe autônoma e permanentemente. (3) No entanto, até agora não foi solucionado o problema de se obter uma descrição consistente de um tal tubo de universo. Einstein de fato tentou, muito seriamente, obter tal descrição em termos de uma teoria do campo unificado. Ele considerou o campo total de todo o universo como uma descrição primária. Este campo é contínuo e indivisível. As partículas devem então ser vistas como certos tipos de abstrações do campo total, correspondendo a regiões de campo muito intenso (chamadas singularidades). À medida que aumenta a distância da singularidade (veja a Figura 5.6), o campo fica mais fraco, até que se funde imperceptivelmente com os campos de outras singularidades. Mas em parte alguma há uma ruptura ou divisão. Logo, a ideia clássica da separabilidade do mundo em partes distintas mas interagentes não é mais válida ou relevante. Em vez disso, temos de ver o universo como um todo indiviso e ininterrupto. A divisão em partículas, ou em partículas e campos, é apenas uma abstração e uma aproximação grosseiras. Assim, chegamos a uma ordem que é radicalmente diferente da de Galileu e Newton - a ordem da totalidade indivisa. figura 5.6 Ao formular sua descrição em termos de um campo unificado, Einstein desenvolveu a teoria geral da relatividade. Isto envolveu várias novas noções de ordem. Assim, Einstein considerou conjuntos arbitrários de curvas contínuas como coordenadas admissíveis, de modo que trabalhou em termos de ordem e de medida curvilíneas em vez de fazê-lo em termos de ordem e de medida retilíneas (embora, é claro, tais curvas ainda sejam, em termos locais, aproximadamente retilíneas ao longo de distâncias suficientemente curtas). Lançando mão dos princípios de equivalência da gravitação e da aceleração e fazendo uso do símbolo de Christoffel, I'abc, que descreve matematicamente a taxa local de "encurvamento" das coordenadas curvilíneas, Einstein pôde relacionar essa ordem e medida curvilíneas com o campo gravitacional. Esta relação implicava a necessidade de equações não-lineares, isto é, equações cujas soluções não podem simplesmente ser somadas para produzir novas soluções. Essa característica não-linear das equações era de crucial importância, não somente pelo fato de que, em princípio, abria a possibilidade de soluções com singularidades estáveis assimiláveis a partículas (partide-like) do tipo acima descrito (que são impossíveis com


as equações lineares), como também pelo fato de que tinha implicações muito importantes com respeito à questão da análise do mundo em componentes distintos mas interagentes. Ao discutir essa questão, é útil notar, primeiramente, que a palavra "análise" vem da raiz grega lysís, que é também a raiz do verbo inglês to loosen, que quer dizer "desatar, romper ou dissolver-se". Portanto, um químico pode romper um composto em seus constituintes elementares básicos e, depois, juntá-los novamente, sintetizando, assim, o composto. As palavras "análise" e "síntese" passaram, no entanto, a significar não apenas operações físicas ou química efetivas com coisas, mas também operações semelhantes realizadas no pensamento. Assim, pode-se dizer que a física clássica é expressa em termos de uma análise conceitual do mundo em partes constituintes (tais como átomos ou partículas elementares), que são a seguir conceitualmente juntadas de novo para "sintetizar" um sistema total, considerando-se as interações dessas partes. Tais partes podem estar separadas no espaço (como o estão os átomos), mas podem também envolver noções mais abstratas que não implicam separação no espaço. Por exemplo, num campo ondulatório que satisfaça uma equação linear, é possível escolher um conjunto de "modos normais" de movimento de todo o campo sendo que cada um deles pode ser considerado como um movimento independente dos outros. Podese então pensar no campo analiticamente como se cada forma possível de movimento ondulatório fosse constituída de uma soma desses "modos normais" independentes. Mesmo se o campo ondulatório satisfizer uma equação não-linear, pode-se ainda, numa certa aproximação, analisá-la em termos de um conjunto desses "modos normais'' mas agora estes têm de ser considerados mutuamente dependentes devido a um certo tipo de interação. Porém, esse tipo de "análise e síntese" tem apenas validade limitada, pois em geral as soluções das equações nãolineares possuem propriedades que não podem ser expressas em termos de uma tal análise. (Em termos matemáticos, pode-se dizer, por exemplo, que a análise envolve séries que nem sempre convergem.) De fato as equações não-lineares da teoria do campo unificado são em geral dessa natureza. Assim, é claro que não só a noção de análise em termos de objetos espacialmente separados é, em geral, irrelevante no contexto dessas teorias, como também o é a noção de análise em constituintes mais abstratos que não são vistos como separados no espaço. É importante aqui chamar a atenção para a diferença entre análise e description [descrição]. A palavra de-scríbe [de-screver] significa literalmente "tomar nota", mas quando tomamos nota das coisas, em geral isto não significa que os termos que aparecem nessa descrição podem ser efetivamente "desatados" ou "separados" em componentes de comportamento autônomo e depois juntados novamente numa síntese. Em vez disso, esses termos são, em geral, abstrações de pouco ou nenhum significado quando considerados como autônomos e separados uns dos outros. De fato, o que é fundamentalmente relevante numa descrição é como os termos estão relacionados por meio da ratio ou razão. O que uma descrição quer dizer é justamente essa ratio ou razão, a qual chama a atenção para o todo. Portanto, mesmo conceitualmente, uma descrição não constitui, em geral, uma análise. Em vez disso, uma análise conceitual fornece um tipo especial de descrição, na qual podemos pensar sobre algo como se estivesse quebrado em partes que se comportam de maneira autônoma, e que são a seguir pensadas como se se juntassem novamente em interação. Tais formas analíticas de descrição eram, em geral adequadas para a física de Galileu e Newton, mas, como já indicamos aqui, deixaram de sê-lo na física de Einstein. Embora Einstein tivesse dado passos iniciais muito promissores ao longo dessa nova direção de pensamento na física, ele nunca conseguiu chegar a uma teoria geral coerente e satisfatória, partindo do conceito de campo unificado. Como assinalamos anteriormente, os físicos ficaram com o problema de tentar adaptar ao contexto de relatividade o conceito mais antigo de análise do mundo em partículas sem extensão, contexto esse na qual essa análise realmente não é relevante ou consistente. Será útil considerar aqui certas possíveis inadequações nas maneiras como Einstein abordou essas questões, embora, é claro, apenas de um modo muito preliminar. Em relação a isso, é útil recordar que, em 1905, Einstein escreveu três artigos fundamentais, um sobre a relatividade, outro sobre o quantum da luz (efeitos fotoelétricos) e outro sobre o movimento browniano. Um estudo detalhado desses artigos mostra que estão intimamente relacionados sob vários aspectos, e isto sugere que nas etapas iniciais de seu pensamento, Einstein considerava pelomenos tacitamente, esses três assuntos como aspectos de uma unidade mais ampla. Todavia, com o desenvolvimento da relatividade geral surgiu uma ênfase muito intensa na continuidade dos campos. Os dois outros temas (movimento browniano e as propriedades quânticas da luz) que envolviam uma espécie de descontinuidade que não se harmonizava com a noção de um campo contínuo, tenderam a ficar em segundo plano, e, finalmente deixaram, de certa forma, de ser levados em consideração, pelo menos dentro do contexto da relatividade geral. Ao discutir essa questão, seria útil, em primeiro lugar levar em conta o movimento browniano, que sem dúvida é muito difícil de descrever de um modo relativisticamente invariante. Devido ao fato de o movimento browniano implicar "velocidades instantâneas" infinitas, ele não pode restringir-se à velocidade da luz. No entanto, em compensação, o movimento browniano não pode, em geral, ser a portadora de um sinal, pois um sinal é uma modulação ordenada de uma "portadora". Essa ordem não é separável do significado do sinal (isto é, mudar a ordem é mudar o significado). Desse modo, pode-se falar adequadamente de propagação de um sinal apenas num contexto em que o movimento da "portadora" é tão regular e contínuo que a ordem não é confundida. No entanto, com o movimento browniano a ordem é de um grau tão alto (isto é, "aleatória", no sentido usual da palavra) que o significado de um sinal não mais seria deixado inalterado em sua propagação. Portanto, não há razão pela qual uma curva browniana de ordem infinita não possa ser considerada como parte de uma descrição primária de movimento, contanto que sua velocidade média não seja maior do que a da luz. Dessa maneira, é possível para a teoria da relatividade emergir como relevante para a velocidade média de uma curva browniana (que também seria apropriada para investigar a propagação de um sinal), embora não tivesse nenhuma relevância num contexto mais amplo em que a lei primária estaria relacionada com curvas brownianas de grau indefinidamente alto, e não a uma curva contínua de baixo grau. Desenvolver uma tal teoria evidentemente implicaria uma nova ordem e medida na física (indo além das ideias tanto newtonianas como einsteinianas, e levaria a estruturas correspondentemente novas. A consideração dessas noções pode talvez apontar para algo novo e relevante. Entretanto, antes de prosseguirmos com esse tipo de investigação, é melhor examinar a teoria quântica, que, em muitos aspectos, é mais significativa nesse contexto do que o movimento browniano. 6. A teoria quântica A teoria quântica implica uma mudança muito mais radical nas noções de ordem e de medida do que a relatividade. Para entender essa mudança, deve-se considerar quatro novos aspectos de fundamental importância introduzidos por essa teoria. 7.1 Indivisibilidade do quantum de ação Essa indivisibilidade implica que transições entre estados estacionários são, de certa maneira, discretas. Assim, não faz sentido dizer que um sistema passa por uma série contínua de estados intermediários, semelhantes aos estado inicial e final. Claro que isso é bem diferente da física clássica, que implica uma série contínua de estados intermediários em cada transição. 7.2 Dualidade onda-partícula das propriedades da matéria


Sob diferentes condições experimentais, a matéria comporta-se mais como uma onda ou mais como uma partícula, mas sempre, em certos aspectos, como ambas. 7.3 Propriedades da matéria como potencialidades estatisticamente reveladas Toda situação física é agora caracterizada por uma função de onda (ou, mais abstratamente, por um vetor no espaço de Hilbert). Essa função de onda não está diretamente relacionada com as propriedades efetivas de um objeto, evento ou processo individuais. Em vez disso, tem de ser pensada como uma descrição das potencialidades presentes na situação física. (4) Potencialidades diferentes e, de um modo geral, mutuamente incompatíveis (p. ex., comportamento ondulatório ou comportamento de partícula) são efetivadas em diferentes arranjos experimentais (de modo que a dualidade onda-partícula pode ser entendida como uma das principais formas de expressão dessas potencialidades incompatíveis). Em geral, a função de onda fornece apenas uma medida de probabilidade para a atualização de diferentes potencialidades num ensemble estatístico de observações semelhantes realizadas sob condições especificadas, não podendo prever o que acontecerá detalhadamente com cada observação individual. Essa noção de determinação estatística de potencialidade mutuamente incompatíveis é, evidentemente, muito diferente do que é feito na física clássica, onde não há lugar para que a noção de potencialidade tenha um papel tão fundamental. Na física clássica, julga-se que apenas o estado efetivo de um sistema pode ser relevante numa dada situação física, e que a probabilidade aparece porque ignoramos o estado efetivo ou porque estamos tomando a média num ensemble de estados efetivos que se distribuem por toda uma gama de condições. Na teoria quântica, não faz sentido investigar o estado efetivo de um sistema à parte de todo o conjunto das condições experimentais que são essenciais para efetivar esse estado. 7.4 Correlações não-causais (o paradoxo de Einstein, Podolsky e Rosen) Segundo uma inferência da teoria quântica, eventos separados no espaço e sem possibilidade de conexão por meio de interações estão correlacionados de um modo tal que se pode mostrar ser impossível uma explicação causal detalhada, mediante a propagação de efeitos a velocidades não-maiores que a da luz. (5) Assim, a teoria quântica não é compatível com a abordagem básica de Einstein quanto à relatividade, onde é essencial que tais correlações sejam explicáveis por sinais propagados a velocidades não-maiores que a da luz. Evidentemente, todos esses aspectos implicam um colapso da ordem geral de descrição que havia predominado antes do advento da teoria quântica. Os limites dessa ordem "pré-quântica" são apresentados de maneira muito clara em termos das relações de incerteza usualmente ilustradas pelo famoso experimento do microscópio de Heisenberg. Esse experimento será agora discutido aqui, sob uma forma um tanto diferente daquela utilizada por Heisenberg, a fim de que nos sejam reveladas certas particularidades novas. Nosso primeiro passo é examinar o que significa fazer uma medição clássica da posição e do momentum. Para isso, consideramos o uso de um microscópio eletrônico em vez de um microscópio de luz. A Figura 5.7 mostra que, no alvo, há uma "partícula observada" em O. Admite-se que ela tem, inicialmente, um momentum conhecido (p. ex., pode estar em repouso, com momentum zero). Elétrons de energia conhecida incidem no alvo, e um desses é desviado pela partícula em O. Ele atravessa a lente eletrônica, seguindo uma órbita que o leva até o foco em P. A partir daí o elétron deixa um rastro T numa certa direção, à medida que penetra na emulsão fotográfica. Feixe de elétrons Lente eletrônica Emulsão fotográfica Figura 5.7 Ora, os resultados diretamente observáveis desse experimento são a posição P e a direção do rastro T, mas, é claro, estes em si mesmos não nos interessam. Somente quando se conhece por completo as condições experimentais (isto é, a estrutura do microscópio, o alvo, a energia do feixe incidente de elétrons, etc.) e que os resultados experimentais tornam-se significativos no contexto de uma investigação física. Com o auxílio de uma descrição adequada dessas condições, pode-se utilizar os resultados experimentais para fazer inferências sobre a posição da "partícula observada" em O, e sobre o momentum transferido a ela no processo de desviar o elétron incidente. Assim, embora a operação do instrumento influencie a partícula observada, essa influência pode ser levada em conta, de modo que podemos inferir, e portanto "saber", tanto a posição como o momentum dessa partícula no instante em que ocorre o desvio do elétron incidente. Tudo isso é bem fácil de entender no contexto da física clássica. O passo original dado por Heisenberg foi considerar as implicações do caráter "quântico" do elétron que fornece o "elo" entre os resultados experimentais e o que se deve inferir desses resultados. Esse elétron não pode mais ser descrito como sendo apenas uma partícula clássica. Ele também tem de ser descrito em termos de uma "onda", como mostra a Figura 5.8. Diz-se que as ondas eletrônicas incidem no alvo e são difratadas pelo átomo em O. Alvo Lente eletrônica Emulsão fotográfica Figura 5.8 Eles então atravessam a lente, onde são novamente difratados e focalizados na emulsão em P. A partir daí, começa um rastro T (assim como aconteceu na descrição clássica). Evidentemente, Heisenberg introduziu os quatro aspectos fundamentalmente significativos da teoria quântica referidos no começo desta seção. Desse modo (como também acontece no experimento de interferência), ele descreve das duas maneiras o elétron de ligação, como uma onda (enquanto ele vai do objeto O, atravessando a lente, até a imagem em P) e como uma partícula quando chega no ponto P e então deixa um rastro D. A transferência de momentum para o "átomo observado" em O tem de ser tratada como discreta e indivisível. Entre O e P, a descrição mais detalhada possível do elétron de ligação é em termos de uma função de onda que determina apenas uma distribuição estatística de potencialidades cuja atualização depende das condições experimentais (p. ex., a presença de átomos sensíveis na emulsão, que podem revelar o elétron).Finalmente, os resultados efetivos (a mancha P, o rastro T e as propriedades do átomo O) estão correlacionados da maneira nãocausal mencionada anteriormente neste capítulo. Utilizando todos esses aspectos básicos da teoria quântica ao discutir sobre o elétron de "ligação", Heisenberg foi capaz de mostrar que há um limite para a precisão de inferências que podem ser feitas sobre o objeto observado, limite esse dado pelas relações de incerteza ( A*x Ap^h).


De início, Heisenberg explicou a incerteza como o resultado do caráter "incerto" da órbita precisa da "ligação do elétron" entre O e P, o que também acarretava uma "perturbação" incerta do átomo O quando esse elétron era espalhado. Entretanto, Bohr (6) fez uma análise relativamente completa e consistente sobre toda a situação, que deixou claro o fato de que os quatro aspectos básicos da teoria quântica acima descritos não são compatíveis com nenhuma descrição em termos de órbitas definidas com precisão, que são "incertas" para nós. Trata-se aqui, portanto, de uma situação inteiramente nova na física, em que a noção de uma órbita detalhada não tem mais nenhum sentido. Em vez disso, pode-se talvez dizer que a relação entre O e P por meio do elétron de "ligação" é semelhante a um "salto quântico" indivisível e não-analisável entre estados estacionários, e não ao movimento contínuo, embora não precisamente conhecido, de uma partícula que atravessa o espaço entre O e P. Qual pode ser, então, a importância da descrição que foi dada do experimento de Heisenberg? Evidentemente, apenas num contexto em que a física clássica é aplicável pode esse experimento ser analisado coerentemente dessa maneira. Uma tal análise pode, portanto, no máximo, servir para indicar os limites de relevância dos modos clássicos de descrição; não é efetivamente capaz de fornecer uma descrição que seja coerente num contexto "quântico". No entanto, mesmo quando vista dessa maneira, a análise usual desse experimento deixa de observar certos aspectos fundamentais de significação profunda e de longo alcance. Para saber quais são esses aspectos, notamos que a partir de um determinado conjunto de condições experimentais, conforme determinadas por elementos tais como a estrutura do microscópio, etc., pode-se, num sentido aproximado, dizer que os limites de aplicabilidade da descrição clássica são indicados por uma certa célula no espaço de fase desse objeto, que descrevemos por A na Figura 5.9. No entanto, se tivéssemos um conjunto diferente de condições experimentais (p. ex., um microscópio com outra abertura, elétrons com diferentes energias, etc.), então esses limites seriam indicados por uma outra célula, indicada por B, no espaço de fase. Heisenberg enfatizou que ambas as células devem ter a mesma área, h, mas ao fazê-lo ele não levou em conta a importância do fato de que seus "formatos" são diferentes. Figura 5.9 É claro que no contexto da física clássica onde quantidades da ordem da constante de Planck, h, podem ser desprezadas, todas as células podem ser substituídas por pontos sem dimensão, de modo que seus "formatos" não têm qualquer significação. Portanto, pode-se dizer que os resultados experimentais nada mais fazem do que permitir inferências sobre um objeto observado, inferências nas quais os "formatos" das células, e portanto os detalhes das condições experimentais, desempenham apenas o papel de elos intermediários no encadeamento do raciocínio, que se desliga do resultado definitivo que é inferido. Isto significa que há consistência em se dizer que o objeto observado existe separada e independentemente do instrumento de observação, no sentido de que ele pode ser considerado como "tendo" certas propriedades, quer ele interaja com alguma outra coisa (tal como um instrumento de observação) quer não. No entanto, no contexto "quântico" a situação é muito diferente. Aqui, os "formatos" das células continuam a ser relevantes, como partes essenciais da descrição da partícula observada. Esta última, portanto, não pode ser propriamente descrita a não ser em conjunto com uma descrição das condições experimentais; e se nos ocupamos mais detalhadamente com um tratamento matemático de acordo com as leis da teoria quântica, a "função de onda" do "objeto observado" não pode ser especificada independentemente de uma especificação da função de onda do "elétron de ligação", que por sua vez requer uma descrição das condições experimentais globais (de modo que a relação entre o objeto e o resultado observado é, na verdade, um exemplo das correlações do tipo indicado por Einstein, Podolsky e Rosen, que não podem ser explicadas em termos de propagação de sinais enquanto encadeamento de influência causal). Isto significa que a descrição das condições experimentais não desaparece como um mero vínculo intermediário de inferência, mas permanece inseparável da descrição do que é chamado de objeto observado. O contexto "quântico" exige assim um novo tipo de descrição que não implica a separabilidade do "objeto observado" em face do "instrumento de observação". Em vez disso, a forma das condições experimentais e o significado dos resultados experimentais têm agora de ser um todo, no qual a análise em elementos autonomamente existentes não é relevante. O que se quer dizer aqui com totalidade pode ser indicado metaforicamente chamando-se a atenção para um padrão (p. ex., num tapete). Na medida em que o importante é o padrão, não faz sentido dizer que diferentes partes desse padrão (p. ex., várias flores e árvores que são vistas no tapete) são objetos separados em interação. De maneira semelhante, no contexto quântico, pode-se considerar termos como "objeto observado", "instrumento de observação", "elétron de ligação", "resultados experimentais", etc., como aspectos de um único "padrão" global, que, na verdade, são abstraídos ou "assinalados" pelo nosso modo de descrição. Logo, não tem nenhum significado falar da interação entre "instrumento de observação" e "objeto observado". Uma mudança de fundamental relevância na ordem descritiva requerida na teoria quântica é, pois, o abandono da noção de análise do mundo em partes relativamente autônomas, existentes separadamente mas em interação. Em vez disso, a ênfase primária está agora na totalidade indivisa, na qual o instrumento de observação não é separável daquilo que é observado. Embora a teoria quântica seja muito diferente da relatividade, num sentido profundo elas têm em comum essa implicação de totalidade indivisa. Assim, na relatividade, uma descrição consistente dos instrumentos teria de ser em termos de uma estrutura de singularidades no campo (correspondendo àquilo que agora costuma ser chamado de "átomos constituintes" do instrumento). Estes fundir-se-iam com os campos das singularidades que constituem a "partícula observada" (e, eventualmente, com aqueles que constituem "os átomos dos quais é constituído o observador humano"). Este é um tipo de totalidade diferente daquela implicada pela teoria quântica, mas é semelhante a ela no sentido de que não pode haver nenhuma divisão definitiva entre o instrumento de observação e o objeto observado. Não obstante, a despeito dessa profunda semelhança, ainda não se provou ser possível unir a relatividade e a teoria quântica de uma maneira coerente. Uma das principais razões é porque não há meios consistentes de introduzir estruturas extensas na relatividade, de modo que as partículas têm de ser tratadas como pontos sem extensão. Isso tem levado a infinitos resultados nos cálculos teóricos sobre o campo quantizado. Por meio de vários algoritmos formais (p. ex., renormalização, matrizes S, etc.) certos resultados finitos e essencialmente corretos têm sido abstraídos da teoria. Porém, no fundo, a teoria de um modo geral contínua insatisfatória, não só porque contém o que pelo menos parecem ser algumas sérias contradições, mas também por ter certamente vários aspectos arbitrários capazes de adaptação indefinida aos fatos, algo reminiscente do modo pelo qual os epiciclos ptolomaicos podiam ser acomodados quase que a quaisquer dados observacionais que pudessem surgir na aplicação de um tal arcabouço descritivo (p, ex., na renormalização, a função de onda do estado de vácuo tem um número infinito de aspectos arbitrários). Todavia, não seria muito proveitoso fazer uma análise detalhada desses problemas. Mais útil seria chamar a atenção para algumas dificuldades gerais, cujas considerações talvez mostrem que esses detalhes não são muito relevantes no contexto da presente investigação. Em primeiro lugar, a teoria quântica dos campos começa definindo um campo vji (x, t). Este campo é um operador quântico, mas x e t descrevem uma ordem contínua no espaço e no tempo. Para apresentar essa questão mais detalhadamente, podemos escrever o elemento de matriz j, (x, t). Porém, tão logo impomos a invariância relativística, deduzimos "infinitas flutuações", isto é, (x, t) em geral é infinito e descontínuo devido às flutuações quânticas no "ponto-zero". Isto contradiz a suposição original de continuidade de todas as funções, exigida em qualquer teoria relativística. Essa ênfase nas ordens contínuas é (como foi mostrado na seção anterior) uma séria debilidade da teoria da relatividade. Porém, se lidamos com a ordem descontínua (p. ex., como no movimento browniano), então a noção de sinal deixa de ser relevante (e, com ela, a noção de limitação à velocidade da luz); e sem a noção de sinal desempenhando um papel básico, estamos mais uma vez livres para considerar estruturas


extensas num papel primário em nossas descrições. E claro que a limitação à velocidade da luz continuará, a médio e a longo prazo. Assim, as noções relativísticas serão relevantes em casos limites apropriados. Mas a teoria da relatividade não precisa ser imposta sobre a teoria quântica. É essa imposição da ordem descritiva subjacente de uma ou de outra teoria que leva a aspectos arbitrários e a possíveis contradições. Para ver como isso ocorre, notamos que se a noção relativística de atribuir um papel fundamental à possibilidade de sinalização entre um ponto e outro tem algum significado, a fonte de um sinal deve estar nitidamente separada da região onde ele é recebido, não só espacialmente, mas também no sentido de que os dois devem ser essencialmente autônomos em seu comportamento. Portanto, como é mostrado na Figura 5.10, se um sinal é emitido do tubo de universo de uma fonte de A, então ele tem de ser propagado continuamente, e sem mudança de ordem, até B, o tubo de universo do receptor. No entanto, num nível quântico de descrição, a ordem temporal dos eventos no tubo de universo em A e B pode, de acordo com o princípio da incerteza, deixar de ser definível da maneira usual. Só isso bastaria para tornar sem sentido a noção de sinal. Além do mais, a noção de uma clara e distinta separação espacial entre A e B, assim como a de uma possível autonomia em seu comportamento, deixarão de ser relevantes pois o "contato" entre A e B tem agora de ser considerado como semelhante a um salto quântico indivisível de um átomo entre estados estacionários. Além disso, o desenvolvimento ulterior dessa noção ao longo das linhas do experimento de Einstein, Podolsky e Rosen leva à inferência de que a conexão entre A e B não pode, em geral, ser descrita em termos de propagação de influências causais (cujo tipo de propagação é evidentemente necessário para garantir a existência de uma "portadora" subjacente do sinal). Tubo de universo da fonte Tubo de universo do receptor Sinal Então, parece claro que a noção relativística de um sinal simplesmente não se ajusta de modo coerente no contexto "quântico". Basicamente, isto ocorre porque esse sinal implica a possibilidade de um certo tipo de análise que não é compatível com a espécie de totalidade indivisa implicada pela teoria quântica. De fato, pode-se dizer que, embora a teoria do campo unificado de Einstein negue a possibilidade de análise definitiva do mundo em elementos componentes autônomos, no entanto, a noção de que a possibilidade de um sinal desempenhe um papel tão básico implica um tipo de análise diferente e mais abstrata, baseada numa espécie de "conteúdo de informação" independente e autônomo, que é diferente em diferentes regiões. Esse tipo abstrato de análise pode não apenas ser inconsistente com a teoria quântica mas, muito provavelmente, também com a totalidade indivisa implicada nos outros aspectos da teoria da relatividade. O que a si mesmo se sugere é, então, que consideremos seriamente a possibilidade de abandonar a ideia do papel fundamental da noção de sinal, mas continuando com os outros aspectos da teoria da relatividade (especialmente o princípio de que as leis são relações invariantes, e que devido à não linearidade das equações, ou a algum outro motivo, a análise em componentes autônomos deixará de ser relevante). Assim, abandonando o apego a um certo tipo de análise que não se harmoniza com o contexto "quântico", abrimos caminho para uma nova teoria que abranja o que ainda é válido na teoria da relatividade, mas não nega a totalidade indivisível implicada pela teoria quântica. Por outro lado, a teoria quântica também contém um apego implícito a um certo tipo de análise muito abstrata que não se harmoniza com o tipo de totalidade indivisível implicado pela teoria da relatividade. Para entender o que é isso, notamos que as discussões como aquelas que se centralizam um torno do microscópio de Heisenberg enfatizam a totalidade indivisível do instrumento de observação e do objeto observado somente no contexto dos resultados efetivos de uma experiência. No entanto, na teoria matemática, a função de onda é ainda geralmente tomada como uma descrição de potencialidades estatísticas globais, que são consideradas como existindo separada e autonomamente. Em outras palavras, o objeto efetivo e individual da física clássica é substituído por um tipo mais abstrato de objeto potencial e estatístico. Diz-se que este último corresponde ao "estado quântico do sistema", que por sua vez corresponde à "função de onda do sistema" (ou, de um modo mais geral, a um vetor no espaço de Hilbert). Esse uso da linguagem (p. ex., introduzir palavras tais como "estado de um sistema") implica que estamos pensando em algo que tem um tipo de existência separado e autônomo. A consistência desse modo de usar a linguagem depende, em grande parte, da suposição matemática de que a equação de onda (isto é, a lei que governa as variações, com o tempo, da função de onda, ou o vetor do espaço de Hilbert) é linear. (Equações não-lineares para operações de campo têm sido propostas, mas, mesmo aqui, este é apenas um tipo limitado de não linearidade, no sentido de que a equação básica para "o vetor de estado no espaço de Hilbert" é sempre tomada como sendo linear.) Essa linearidade das equações permite-nos então considerar os "vetores de estado" como tendo uma espécie de existência autônoma (semelhante, sob certos aspectos, àquela que é atribuída, nas teorias do campo clássicas, aos modos normais, mas diferente pelo fato de serem mais abstratas). Presume-se que essa completa autonomia do "estado quântico" de um sistema se mantenha apenas quando ele não está sendo observado. Numa observação, supõe-se que temos a ver com dois sistemas inicialmente autônomos e que passaram a interagir. (7) Um desses é descrito pelo "vetor de estado do objeto observado", e o outro pelo "vetor de estado do aparelho de observação". (1) Ao se considerar essa interação, são introduzidos alguns novos aspectos, que correspondem a levar em conta a possibilidade de efetivar as potencialidades do sistema observado às custas de outras, que não podem ser efetivados ao mesmo tempo, (Matematicamente, pode-se dizer que "o pacote de ondas é reduzido", ou que "ocorre uma operação de projeção".) Há muita controvérsia e discussão quanto à precisão com que deve ser tratado esse estágio, pois as noções básicas envolvidas não parecem muito claras. Porém, não é nosso objetivo criticar aqui esses esforços detalhadamente. Em vez disso queremos apenas mostrar que toda essa linha de abordagem restabelece, no nível abstrato das potencialidades estatísticas, o mesmo tipo de análise em componentes separados e autônomos em interação que e negado ao nível mais concreto dos objetos individuais. E justamente esse tipo de análise abstrata que não combina com a ordem descritiva básica subjacente da teoria da relatividade, pois, como foi visto, esta não é compatível com uma tal análise do mundo em componentes separados. Em vez disso, ele implica, em última instância, que tais "objetos" tem de ser entendidos como fundindo-se uns com os outros (como o fazem as singularidades do campo) para formar um todo indivisível. De maneira semelhante, pode-se considerar a noção de que, mediante uma perfeita não-linearidade, ou de alguma outra forma, a teoria quântica possa mudar, de modo que a nova teoria resultante também implique totalidade indivisa, não meramente no nível dos fenômenos individuais efetivos, mas também no nível das potencialidades tratadas em termos de agregados estatísticos. Dessa maneira, os aspectos da teoria quântica e os da relatividade que ainda são válidos poderão harmonizar-se. Porém, renunciar tanto ao papel básico do sinal como ao papel do estado quântico não é nada fácil. Encontrar uma nova teoria que funcione sem eles evidentemente exigirá noções radicalmente novas de ordem, de medida e de estrutura. Alguém pode sugerir que estamos numa posição que, em certos aspectos, é semelhante à de Galileu quando começou suas investigações. Muito trabalho tem sido realizado mostrando a inadequação das velhas ideias, as quais permitem apenas que uma série de novos fatos seja ajustada matematicamente (algo comparável com o que foi feito por Copérnico, Kepler e outros). Porém, ainda não nos libertamos completamente da antiga ordem de pensamento, de utilização da linguagem e de observação temos ainda, pois, de perceber uma nova ordem. Como aconteceu com Galileu, isso deve implicar ver novas diferenças, de modo que muito do que se pensou ser fundamental nas velhas ideias será percebido como sendo mais ou menos correto, mas não de relevância primária (o que ocorreu, por exemplo, com algumas das ideias fundamentais de Aristóteles). Quando virmos as novas diferenças básicas, então (como aconteceu com Newton) seremos capazes de perceber


uma nova ratio ou razão universal relacionando e unificando todas as diferenças. Finalmente, isto pode levar-nos para tão além da teoria quântica e da relatividade quanto as ideias de Newton foram além das de Copérnico. É claro que um tal empreendimento não pode ser da noite para o dia. Temos de trabalhar com paciência, lentamente, e com cuidado, para entender de uma nova maneira a situação atual e geral na física. Alguns passos preliminares nesse sentido serão discutidos no Capítulo 6. CAPÍTULO 6 A teoria quântica como indicação de uma nova ordem na física Parte B: A ordem implicada e a ordem explicada na lei da física 1.Introdução No capítulo 5, chamamos a atenção para a emergência de novas ordens ao longo de toda a história da física. Um aspecto geral do desenvolvimento desse assunto tem sido uma tendência a enxergar certas noções básicas de ordem como permanentes e imutáveis. Considerou-se que a tarefa da física era acomodar novas observações por meio de adaptações feitas no âmbito dessas noções básicas de ordem, de modo a ajustá-las aos novos fatos. Esse tipo de observação começou com os epiciclos ptolomaicos, que vigoraram desde a antiguidade até o advento dos trabalhos de Copérnico, Kepler, Galileu e Newton. Tão logo as noções básicas de ordem na física clássica foram expressas de forma razoavelmente clara, supôs-se que os trabalhos que viessem a ser realizados na física consistiriam em adaptações feitas dessa ordem de molde a acomodar novos fatos. Essa abordagem prosseguiu até o aparecimento da relatividade e da teoria quântica. Pode-se dizer com precisão que, desde o surgimento dessas teorias, a principal linha de trabalho na física tem sido a adaptação dentro das ordens gerais subjacentes a elas, para acomodar os fatos aos quais ambas, por sua vez, têm levado. Pode-se assim inferir que a acomodação dentro de arcabouços de ordem já existentes tem, geralmente, sido considerada a principal atividade a ser enfatizada na física, enquanto que a percepção de novas ordens é concebida como algo que acontece apenas ocasionalmente, talvez em períodos revolucionários, durante os quais aquilo que é visto como o processo normal de acomodação entra em colapso. (1)É pertinente a esse assunto considerar a descrição que Piaget (2) faz de toda a percepção inteligente em termos de dois movimentos complementares, acomodação e assimilação. A partir das raízes mod, que significa "medida", e com, que quer dizer "junto", pode-se ver que acomodar significa "estabelecer uma medida comum" (veja o Capítulo 5 para uma discussão sobre o sentido mais amplo da noção de medida que é relevante nesse contexto). Exemplos de acomodação são justamente, o modelamento a um padrão, a adaptação, a imitação, a conformidade a regras, etc. Por outro lado, "assimilar" é "digerir" ou converter num todo abrangente e inseparável (que inclui o próprio indivíduo). Assim, assimilar significa "compreender". É claro que na percepção inteligente, a ênfase primária deve, em geral, ser dada à assimilação, enquanto que a acomodação tende a desempenhar um papel relativamente secundário, no sentido de que sua principal importância é como o de um auxiliar da assimilação. Evidentemente, somos capazes, em certos tipos de contextos, de simplesmente acomodar algo que observamos dentro de ordens de pensamentos já conhecidas, e nesse próprio ato ele será adequadamente assimilado. No entanto, em contextos mais gerais, é necessário atentar seriamente à possibilidade de que as velhas ordens de pensamento possam deixar de ser relevantes, de modo a não mais poderem ser coerentemente adaptadas para se ajustar ao novo fato. Conforme foi ressaltado com alguns detalhes no Capítulo 5, talvez seja então preciso ver a irrelevância de velhas diferenças, e a relevância de novas, sendo assim possível abrir caminho para a percepção de novas ordens, novas medidas e novas estruturas. É claro que essa percepção pode ocorrer, de maneira apropriada, quase que em qualquer tempo, e não tem de ser restrita a períodos incomuns e revolucionários, quando se descobre que as ordens mais antigas não podem ser convenientemente adaptadas aos fatos. Pelo contrário, pode-se estar continuamente pronto a abandonar velhas noções de ordem em vários contextos, que podem ser amplos ou estreitos, e perceber novas noções que sejam relevantes nesses contextos. Assim, compreender o fato assimilando-o em novas ordens pode tornar-se o que poderia talvez ser chamado de a via normal de fazer pesquisa científica. Trabalhar dessa maneira é, evidentemente, dar ênfase primária a algo semelhante à percepção artística. Tal percepção começa ao se observar todo o fato em sua plena individualidade, e então, aos poucos, articula a ordem que é adequada à assimilação desse fato. Ela não tem início com pré-concepções abstratas quanto àquilo que a ordem deve ser, e que são a seguir adaptadas à ordem observada. Qual é, então, o papel adequado de acomodação dos fatos dentro de ordens, medidas e estruturas teóricas conhecidas? É importante notar aqui que os fatos não devem ser considerados como se fossem objetos de existência independente que pudéssemos encontrar ou apanhar no laboratório. Antes, como indica a raiz latina da palavra facere, o fato é "o que tem sido feito" (p. ex., como em "manufatura"). Logo, num certo sentido, nós "fazemos" o fato. Ou seja, começando com a percepção imediata de uma situação efetiva, desenvolvemos o fato dando a ele ordem, forma e estrutura ulteriores com o auxílio de nossos conceitos teóricos. Por exemplo, utilizando as noções de ordem predominantes na antiguidade, os homens foram levados a "fazer" o fato sobre os movimentos planetários, descrevendo e medindo em termos de epiciclos. Na física clássica, o fato foi "feito" em termos da ordem das órbitas planetárias, medidas a partir de posições e tempos. Na relatividade geral, o fato foi "feito" em termos da ordem da geometria riemanniana, e da medida implicada por conceitos tais como "curvatura do espaço". Na teoria quântica, o fato foi feito em termos da ordem de níveis de energia, de números quânticos, de grupos de simetria, etc., juntamente com medidas apropriadas (p. ex., seção transversal do espalhamento, cargas e massas de partículas, etc.). E claro, então, que mudanças de ordem e de medida na teoria levam, em última instância, a novas maneiras de realizar experiências e a novos tipos de instrumentos, que por sua vez resultam em "fazer" novos tipos de fatos correspondentemente ordenados e medidos. Nesse desenvolvimento, o fato experimental serve em primeiro lugar como um teste para noções teóricas. Assim, como foi assinalado no Capítulo 5, a forma geral da explicação teórica é aquela de um tipo generalizado de ratio ou razão. "Assim com A está para B na estrutura do nosso pensamento, o mesmo acontece no fato." Essa ratio ou razão constitui um tipo de "medida comum" ou "acomodação" entre teoria e fato. Enquanto predominar essa medida comum, então, evidentemente, a teoria utilizada não precisa ser mudada. Mas se a medida comum não for percebida, então o primeiro passo é verificar se ela pode ser restabelecida por meio de ajustes na teoria, sem mudanças na sua ordem subjacente. Se, depois de esforços razoáveis, não se consegue obter uma acomodação desse tipo, então o que será preciso é uma nova percepção de todo o fato. Isto agora inclui não só os resultados das experiências mas também a incapacidade de certas linhas teóricas para ajustar os resultados experimentais numa "medida comum". Então, como indicamos anteriormente, é preciso estar sensivelmente consciente de todas as diferenças relevantes subjacentes às principais ordens na velha teoria, e verificar se há espaço para uma mudança de ordem global. Aqui, estamos enfatizando que esse tipo de percepção deve ser entrelaçado apropriadamente e de maneira contínua com as atividades que visam à acomodação, e não deve ser retardado por muito tempo, o que poderia tornar toda a situação confusa e caótica, exigindo compreensivelmente a destruição revolucionária da velha ordem para aclará-la. Assim como a relatividade e a teoria quântica mostraram que não faz sentido separar o aparelho de observação daquilo que é observado, as


considerações que aqui fizemos indicam que não faz sentido separar o fato observado (juntamente com os instrumentos utilizados para observálo) das noções teóricas de ordem que ajudam a dar "forma" a esse fato. À medida que continuamos a desenvolver novas noções de ordem, que vão além daquelas da teoria da relatividade e da teoria quântica, não será, portanto, conveniente tentar aplicar de imediato essas noções a problemas correntes que surgiram com a consideração do atual conjunto de fatos experimentais. Em vez disso, o que se exige nesse contexto é, de um modo bem amplo, a assimilação da totalidade do fato na física às novas noções teóricas de ordem. Depois de "digerido" esse fato, podemos começar a vislumbrar novos caminhos onde essas noções de ordem possam ser testadas e, talvez, estendidas em várias direções. Conforme assinalamos no Capítulo 5, temos de proceder lenta e pacientemente, ou então podemos ficar confusos com fatos "indigestos". Fato e teoria são, assim, vistos como aspectos diferentes de um todo em que a análise em partes separadas mas interagentes não é relevante. Isto é, a totalidade indivisa está implicada não apenas no conteúdo da física (notavelmente na teoria da relatividade e na teoria quântica), mas também na maneira de trabalhar em física. Isto significa que não é sempre que tentamos forçar a teoria a ajustar-se a tipos de fatos que possam ser apropriados nas ordens gerais de descrição atualmente aceitas, mas também significa que estamos prontos, quando necessário, para considerar mudanças naquilo que se entende por fato, mudanças essas que podem ser requeridas para a assimilação de tal fato em novas noções teóricas de ordem. 2. Totalidade indivisa - a lente e o holograma A totalidade indivisa de modos de observação, instrumentação e entendimento teórico acima indicada implica a necessidade de considerar uma nova ordem do fato, isto é, o fato a respeito da maneira pela qual modos de entendimento teórico e de observação e instrumentação estão relacionados entre si. Até agora, temos num grau maior ou menor admitido essa relação como verdadeira, sem prestar muita atenção na maneira como ela surge, provavelmente devido à crença de que o estudo do tema pertence mais à "história da ciência" do que à "ciência propriamente dita". Porém, estamos sugerindo agora que levar em conta essa relação é essencial para um entendimento adequado da própria ciência, pois o conteúdo do fato observado não pode ser coerentemente visto como separado dos modos de observação, da instrumentação e dos modos de entendimento teórico.Um exemplo da relação muito íntima entre instrumentação e teoria pode ser visto quando se considera a lente, que foi sem dúvida um dos aspectos fundamentais por detrás do desenvolvimento do pensamento científico moderno. A característica essencial de uma lente é, conforme indicado na Figura 6.1, o fato de ela formar uma imagem na qual um dado ponto P no objeto corresponde (num grau de aproximação) a um ponto Q na imagem. Pondo assim em relevo, de maneira tão nítida, a correspondência entre aspectos específicos do objeto e da imagem, a lente fortaleceu em muito a percepção do homem quanto às várias partes do objeto e da relação entre essas partes. Dessa maneira, ela favoreceu a tendência a pensar em termos de análise e síntese. Além disso, tornou possível uma enorme extensão da ordem clássica de análise e síntese a objetos muito distantes, muito grandes, muito pequenos, ou muito rápidos para serem ordenados a olho nu. Consequentemente, os cientistas foram encorajados a extrapolar suas ideia se a pensar que essa abordagem seria relevante e válida não importa quão longe eles fossem, em todas as condições, contextos e graus de aproximação possíveis. Figura 6.1 - lente No entanto, como se viu no Capítulo 5, a teoria da relatividade e a teoria quântica implicam totalidade indivisa, na qual a análise em partes distintas e bem-definidas não é mais relevante. Há um instrumento que pode nos ajudar a fornecerum certo insight perceptivo imediato sobre o que se pode entender por totalidade indivisa, assim como a lente o fez para o que se pode entender por análise de um sistema em partes? Sugere-se aqui que é possível obter um tal insight ao se considerar o holograma. (O nome vem das palavras gregas holo que significa "todo", e gram, que significa "escrever". Assim, o holograma é um instrumento que, por assim dizer, "escreve o todo".) Como é mostrado na Figura 6.2, a luz coerente de um laser atravessa um espelho semiprateado. Parte do feixe segue diretamente para uma chapa fotográfica, enquanto outra parte é refletida, de modo a iluminar uma certa estrutura total. A luz que é refletida dessa estrutura também alcança a chapa onde interfere com aquela que ali chega por um trajeto direto. O padrão de interferência resultante que é registrado na chapa não só é muito complexo como também é usualmente tão sutil que não é nem mesmo visível a olho nu. No entanto, de alguma maneira, esse padrão é relevante para a estrutura total iluminada, embora algumas de um modo altamente implícito. Feixe de laser Estrutura total iluminada l Espelho semiprateado Chapa fotográfica Figura 6.2 Essa relevância do padrão de interferência para a estrutura total iluminada é revelada quando a chapa fotográfica é iluminada com a luz laser. Conforme mostra a Figura 6.3, uma frente de onda é então criada, a qual é muito semelhante na forma àquela que sai da estrutura iluminada original. Posicionando o olho no caminho dessas ondas, pode-se ver, de fato, a totalidade de estrutura original, em três dimensões, a partir de toda uma faixa de possíveis pontos de vista (como se a pessoa estivesse olhando através de uma janela). Se iluminarmos apenas uma pequena região R da chapa, ainda veremos toda a estrutura, mas um pouco menos bem-definida em detalhes, a partir de uma faixa diminuída de possíveis pontos de vista (como se estivéssemos olhando através de uma janela menor). Luz laser Chapa fotográfica Ondas Figura 6.3 É claro, então, que não há nenhuma correspondência biunívoca entre as partes de um "objeto iluminado" e partes de uma "imagem desse objeto na chapa". Em vez disso, o padrão de interferência em cada região R da chapa é relevante para a estrutura toda, e cada região da estrutura é relevante para a totalidade do padrão de interferência na chapa. Devido às propriedades ondulatórias da luz, até mesmo uma lente não pode produzir uma exata correspondência biunívoca. Portanto, uma lente pode ser considerada como um caso limite de um holograma. Todavia, podemos ir além e dizer que em seus modos globais de indicar o significado das observações, experiências típicas, como as que são feitas atualmente na física (especialmente no contexto "quântico"), se parecem mais com o caso geral de um holograma do que com o caso especial de uma lente. Por exemplo, considere uma experiência de espalhamento. Conforme é mostrado na Figura 6.4, o que se observa no detectar é geralmente relevante para todo o alvo, ou pelo menos para uma área dele que seja ampla o suficiente para conter um grande número de átomos. Além disso embora se pudesse em princípio tentar fazer uma imagem de um átomo em particular, a teoria quântica implica que fazêlo teria pouca ou nenhuma importância. De fato, como mostramos no Capítulo 5, ao falar da experiência do microscópio de Heisenberg, a formação de uma imagem é justamente o que não é relevante num contexto "quântico"; no máximo, uma análise sobre formação de imagem


serve para indicar os limites de aplicabilidade dos modos clássicos de descrição. Portanto, podemos dizer que na atual pesquisa em física, um instrumento tende a ser relevante para uma estrutura total, de maneira mais ou menos semelhante ao que acontece com um holograma. Na verdade, há algumas diferenças. Por exemplo, em experiências atuais com feixes de elétrons ou com raios X, estes últimos raramente permanecem coerentes ao longo de distâncias apreciáveis. No entanto, se algum dia for possível desenvolver algo como um laser de elétrons ou um laser de raios X, então surgirão experimentos que poderão revelar diretamente as estruturas "atômicas" e "nucleares" sem a necessidade de complexas cadeias dedutivas do tipo que se exige atualmente, como faz o holograma para estruturas comuns de grande escala. Alvo Feixe Detetor Figura 6.4 3. Ordem implicada e ordem explicada O que está sendo sugerido aqui é que a consideração da diferença entre lente e holograma pode desempenhar um papel significativo na percepção de uma nova ordem que seja relevante para a lei física. Assim como Galileu notou a distinção entre um meio viscoso e o vácuo, observando que a lei física deve referir-se fundamentalmente à ordem de movimento de um objeto no vácuo, podemos agora perceber a distinção entre uma lente e um holograma, e considerar a possibilidade de que a lei física deve referir-se fundamentalmente a uma ordem de totalidade indivisa do conteúdo de uma descrição semelhante àquela indicada pelo holograma, e não a uma ordem de análise desse conteúdo em partes separadas, como a indicada por uma lente. Todavia, quando as ideias de Aristóteles sobre o movimento foram abandonadas, Galileu e aqueles que o seguiram tiveram que levar em conta a questão de como a nova ordem de movimento deveria ser descrita em detalhes adequados. A resposta veio na forma das coordenadas cartesianas estendidas à linguagem do cálculo (equações diferenciais, etc.,) Mas esse tipo de descrição evidentemente só é adequado num contexto onde a análise em partes distintas e autônomas é relevante, e por sua vez terá, portanto, de ser abandonado. Qual será, então, o novo tipo de descrição apropriado ao presente contexto? Como aconteceu com as coordenadas cartesianas e o cálculo, essa questão não pode ser respondida imediatamente em termos de prescrições definidas quanto ao que fazer. Antes, é preciso observar a nova situação de maneira muito ampla e especulativa e "sondar" quais poderão ser as novas características relevantes. A partir daí, surgirá um discernimento da nova ordem, que irá se articular e se desdobrar de um modo natural (e não como resultado de esforços para fazê-la ajustar-se a noções bem-definidas e preconcebidas quanto àquilo que essa ordem deve ser capaz de realizar). Podemos começar essa investigação notando que num sentido sutil, que não aparece na visão comum, o padrão de interferência em toda a chapa pode distinguir diferentes ordens e medidas na estrutura total iluminada. Por exemplo, a estrutura iluminada pode conter todo tipo de formatos e tamanhos de formas geométricas (indicadas na Figura 6.5a), bem como todo tipo de relações topológicas, tais como dentro e fora (indicadas na Figura 6.5b), e de intersecções e separações (indicadas na Figura 6.5c). Tudo isso resulta em diferentes padrões de interferência, e é essa diferença que, de algum modo, deve ser descrita em detalhes. Figura 6.5 (a) (b) (c) No entanto, as diferenças acima descritas não estão apenas na chapa fotográfica. De fato, a importância desta última é secundária, no sentido de que sua principal função é fazer um "registro escrito", relativamente permanente, do padrão de interferência da luz presente em cada região do espaço. Porém, de um modo mais geral, em cada uma dessas regiões, o movimento da luz contém implicitamente uma vasta gama de distinções de ordem e de medida, apropriadas a uma estrutura total iluminada. Na verdade, em princípio, essa estrutura se estende por todo o universo e por todo o passado, com implicações para todo o futuro. Considere, por exemplo, como, ao olhar para o céu noturno, somos capazes de discernir estruturas que cobrem imensas regiões de espaço e tempo, que, num certo sentido, estão contidas nos movimentos da luz no pequenino espaço que a nossa vista abrange (e também como os instrumentos, tais como os telescópios ópticos e os radiotelescópios podem discernir parcelas cada vez maiores dessa totalidade contida em cada região do espaço). Aqui há o germe de uma nova noção de ordem. Essa ordem não deve ser entendida unicamente em termos de um arranjo regular de objetos (p. ex., enfileirados) ou de um arranjo regular de eventos (p. ex., numa série). Em vez disso, uma ordem total está, num sentido implícito, contido em cada região de espaço e tempo. Ora, a palavra "implícito" vem do verbo "implicar*", que significa "dobrar para dentro" (assim como multiplicação quer dizer "dobrar muitas vezes"). *[Em uma de suas acepções, em português, esse verbo também significa "envolver". A palavra latina implicare também é entendida no sentido de "envolver", "enredar". (N. do T.)]* Portanto, podemos ser levados a explorar a noção de que, num certo sentido, cada região contém uma estrutura total "envolvida" ou "dobrada" dentro dela. Será útil considerar, nessa exploração, alguns outros exemplos de ordem envolvida ou implicada. Assim, numa transmissão de televisão, a imagem visual é traduzida numa ordem temporal, que é "transportada" pela onda de rádio. Pontos que, na imagem visual, estão próximos uns dos outros, não se encontram necessariamente "próximos" na ordem do sinal de rádio. Logo, a onda de rádio transporta a imagem visual numa ordem implicada. A função do receptor é, pois, explicar essa ordem, ou seja, "desdobrá-la" na forma de uma nova imagem visual. Um exemplo mais notável de ordem implicada pode ser demonstrado no laboratório com um recipiente transparente, cheio de um fluido muito viscoso, como o melaço, e equipado com um motor mecânico que "mexe" esse fluido muito lentamente, mas por inteiro. Se uma gotícula de tinta insolúvel for colocada sobre o fluido ao mesmo tempo em que é posto em movimento o dispositivo de rotação, a gota é gradualmente transformada num filete que se estende por todo o fluido. Agora ela parece estar distribuída de maneira mais ou menos "aleatória", de modo que é vista sob a forma de uma certa tonalidade cinza. Mas, ao se fazer o dispositivo mecânico de mistura girar no sentido oposto, a transformação é revertida e a gotícula repentinamente aparece, reconstituída. (Essa ilustração da ordem implicada é discutida mais extensamente no Capítulo 7.) Quando o corante distribuiu-se no fluido de uma maneira aparentemente aleatória, havia, não obstante, algum tipo de ordem, diferente por exemplo daquela que surge de uma outra gotícula originalmente colocada em outra posição. Mas essa ordem está dobrada ou implicada na "massa cinza" visível no fluido. De fato, pode-se "envolver" dessa maneira uma imagem toda. Imagens diferentes pareceriam indistinguíveis e, contudo, teriam diferentes ordens implicadas, cujas diferenças seriam reveladas quando fossem explicadas, à medida que o dispositivo de mistura girasse no sentido contrário. O que acontece aqui é evidentemente similar, em certos aspectos cruciais, ao que ocorre com o holograma. Sem dúvida, há diferenças. Assim, numa análise suficientemente precisa, pode-se ver que as partes da gotícula de tinta mantêm-se numa correspondência biunívoca à medida que são agitadas e que o fluido se movimenta continuamente. Por outro lado, no funcionamento do holograma não há essa correspondência biunívoca. Portanto, no holograma (como também em experiências num contexto "quântico"), não há,


em última instância, uma maneira de reduzir a ordem implicada a uma ordem explicada de um tipo mais sutil e mais complexo. Tudo isso chama a atenção para a relevância de uma nova distinção entre ordem implicada e ordem explicada. Falando de um modo geral, as leis da física têm-se referido, até hoje, principalmente à ordem explicada. Na verdade, pode-se dizer que a função original das coordenadas cartesianas é justamente a de fornecer uma descrição clara e precisa da ordem explicada. Ora, estamos propondo que, na formulação das leis da física, a relevância primária seja dada à ordem implicada, enquanto que a ordem explicada terá uma importância secundária (como aconteceu, por exemplo, com a noção de Aristóteles sobre o movimento, após o desenvolvimento da física clássica). Assim, espera-se que deixe de ser dada ênfase primária a uma descrição em termos de coordenadas cartesianas, e que de fato um novo tipo de descrição tenha de ser desenvolvido para investigar as leis da física. 4. O holomovimento e seus aspectos A fim de indicar um novo tipo de descrição apropriado para dar relevância à ordem implicada, consideremos mais uma vez a característica fundamental do funcionamento do holograma, isto é, em cada região do espaço, a ordem de uma estrutura total iluminada está "dobrada" e é "transportada" no movimento da luz. Algo semelhante acontece com um sinal que modula uma onda de rádio (veja a Figura 6.6). Em todos os casos, o conteúdo ou significado que é "dobrado" e "transportado" é, primariamente, uma ordem e uma medida, que permitem o desenvolvimento de uma estrutura. Com a onda de rádio, essa estrutura pode ser a de uma comunicação verbal, a de uma imagem visual, etc. com o holograma, porém, estruturas muito mais sutis podem ser envolvidas dessa maneira (notavelmente estruturas tridimensionais, visíveis a partir de muitos pontos de vista). De um modo mais geral, essa ordem e medida pode ser "dobrada" e "transportada" não apenas em ondas eletromagnéticas mas também de outras maneiras (em feixes de elétrons, no som e em outras inumeráveis formas de movimento). Generalizando, de modo a enfatizar a totalidade indivisa, diremos que aquilo que "transporta" uma ordem implicada é o holomovimento, que é uma totalidade ininterrupta e indivisa. Em certos casos, podemos abstrair aspectos particulares do holomovimento (p. ex., luz, elétrons, som, etc.), mas, de um modo mais geral, todas as formas do holomovimento se fundem e são inseparáveis. Assim, em sua totalidade, o holomovimento não é em absoluto limitado de nenhuma maneira especificável. Ele não precisa conformar-se a nenhuma ordem em particular, ou ser limitado por alguma medida em particular. Portanto, o holomovimento é indefinível e imensurável. Dar importância primária ao indefinível e imensurável holomovimento implica que não faz sentido falar de uma teoria fundamental, onde toda a física pudesse encontrar uma base permanente, ou à qual todos os fenômenos físicos pudessem finalmente ser reduzidos. Em vez disso, cada teoria abstrairá um certo aspecto que seja relevante somente num contexto limitado, que é indicado por alguma medida apropriada. Ao discutir como se deve chamar a atenção para esses aspectos, é útil recordar que a palavra "relevante" é uma forma obtida do verbo "relevar", que é pouco utilizado,* e que significa "alçar" (como em "elevar"). Figura 6.6 *[É pouco utilizado em português. Em inglês, diz Bohm, o verbo to relevate "caiu em desuso". (N. do T.)]* Podemos assim dizer, num determinado contexto em consideração, que os modos gerais de descrição pertencentes a uma dada teoria servem para relevar um certo conteúdo, isto é, alçá-lo à atenção, de modo que se destaque pondo-se "em relevo". Se esse conteúdo é pertinente no contexto em discussão, dizemos que ele é relevante, e em caso contrário, irrelevante. Para ilustrar o que significa relevar certos aspectos da ordem implicada no holomovimento, é útil considerar mais uma vez o exemplo do dispositivo mecânico para arrastar um fluido viscoso, descrito na seção anterior. Suponhamos que primeiro colocamos uma gotícula de tinta e fazemos girar o mecanismo n vezes. Poderíamos então colocar uma outra gotícula perto da posição onde colocamos a primeira e fazer novamente o dispositivo dar n voltas. Poderíamos repetir esse processo indefinidamente, com uma longa série de gotículas, distribuídas mais ou menos ao longo de uma linha, como na figura 6.7. [figura 6.7] Suponhamos, então, que depois de "dobrar" dessa maneira um grande número de gotículas, fazemos girar no sentido contrário o dispositivo de mistura, mas tão rapidamente que as gotículas individuais não sejam resolvidas pela percepção. Então veremos o que aparenta ser um objeto "solido" (p. ex., uma partícula) movimentando-se continuamente através do espaço. Essa forma de objeto em movimento surge na percepção imediata principalmente porque o olho é sensível a concentrações de tinta inferiores a um determinado mínimo, de modo que o "movimento total" da tinta não é visto diretamente. Em vez disso, essa percepção releva um certo aspecto. Isto é, faz com que esse aspecto sobressaia "em relevo", enquanto que o resto do fluido é visto apenas como um "fundo cinza" no qual o "objeto" a ele relacionado parece estar se movimentando. E claro que um tal aspecto tem pouco interesse em si mesmo, isto é, fora de seu significado mais amplo. Logo, nesse exemplo, um possível significado é que há efetivamente um objeto autônomo movimentando-se através do fluido. Isso significaria, naturalmente, que a ordem total do movimento deve ser considerada semelhante àquela do aspecto imediatamente percebido. Em alguns contextos, esse significado é pertinente e adequado (p. ex., se estamos lidando, no nível usual de experiência, com uma pedra voando pelos ares). Porém, no presente contexto, indica-se um significado muito diferente, e este só pode ser comunicado mediante um tipo muito diferente de descrição. Uma tal descrição tem de começar relevando conceitualmente certas ordens de movimento mais amplas, indo além de qualquer ordem que seja semelhante àquelas relevadas na percepção imediata. Ao fazê-lo, sempre se começa com o holomovimento, e então abstraem-se aspectos especiais que envolvem uma totalidade suficientemente ampla para uma descrição adequada no contexto em discussão. No presente exemplo, essa totalidade deve incluir o movimento total do fluido e da tinta, conforme determinado pelo dispositivo mecânico de mistura, e o movimento da luz, que nos permite perceber visualmente o que está acontecendo, juntamente com o movimento do olho e do sistema nervoso, que determina as distinções que podem ser percebidas no movimento da luz. Pode-se então dizer que o conteúdo relevado na percepção imediata (isto é, o "objeto em movimento") é uma espécie de intersecção entre duas ordens. Uma delas é a ordem de movimento que cria a possibilidade de um contato perceptivo direto (neste caso, entre a luz e a resposta do sistema nervoso a ela), e a outra é uma ordem de movimento que determina o conteúdo detalhado que é percebido (neste caso, a ordem de movimento da tinta no fluido). Evidentemente, essa descrição em termos de intersecção de ordens é aplicável de um modo muito geral. (3) Já foi visto que, em geral, o movimento da luz deve ser descrito em termos do "dobramento e transporte" de ordens implicadas que são relevantes a uma estrutura total, onde a análise em partes separadas e autônomas não é aplicável (embora, é claro, em certos contextos limitados, uma descrição em termos de ordens explicadas seja adequada). Porém, no exemplo que estamos examinando é igualmente adequado descrever o movimento da tinta em termos semelhantes. Ou seja, no movimento, certas ordens implicadas (na distribuição da tinta) tornam-se explicadas, enquanto que ordens explicadas tornam-se implicadas. Para especificar esse movimento de maneira detalhada, será útil introduzir uma nova medida, isto é, um "parâmetro de implicação", indicado por T. No fluido, esse parâmetro seria o número de voltas necessárias para trazer uma dada gotícula de tinta à forma explicada. A estrutura total da tinta presente em qualquer instante pode então ser vista como uma série ordenada de subestruturas, cada qual correspondendo a uma única gotícula N com seu parâmetro de implicação TN.


Evidentemente, temos aqui uma nova noção de estrutura, pois não mais construímos estruturas tão-somente como arranjos ordenados e medidos aos quais juntamos coisas separadas, todas conjuntamente explicadas. Em vez disso, podemos agora considerar estruturas nas quais aspectos de diferentes graus de implicação (conforme medidos por T) podem ser arranjados numa certa ordem. Esses aspectos podem ser bem complexos. Por exemplo, podemos implicar uma "figura completa" girando n vezes o dispositivo de mistura. Poderíamos, a seguir, implicar uma figura um pouco diferente, e assim por diante, indefinidamente. Se fizéssemos o dispositivo girar no sentido contrário, poderíamos ver uma "cena tridimensional" consistindo aparentemente de um "sistema total" de objetos em movimento e interação contínuos. Nesse movimento, a "figura" presente em qualquer dado momento consistiria apenas em aspectos que podem ser explicados conjuntamente (isto é, aspectos que correspondem a um certo valor do parâmetro de implicação T). Assim como os eventos que ocorrem ao mesmo tempo são chamados de sincrônicos, aos aspectos que podem ser explicados conjuntamente podemos chamar de sinordenados, enquanto aqueles que não podem ser explicados conjuntamente serão chamados de assinordenados. E evidente que as novas noções de estrutura que estamos discutindo aqui envolvem aspectos assinordenados, ao passo que as noções anteriores envolvem somente aspectos sinordenados. É preciso enfatizar aqui que a ordem de implicação, conforme medida pelo parâmetro T, não apresenta qualquer relação necessária com a ordem temporal (medida por um outro parâmetro, f). Esses dois parâmetros relacionam-se apenas de uma maneira contingente (no caso de nosso exemplo pela velocidade de rotação do dispositivo de mistura). É o parâmetro T que é diretamente relevante para a descrição da estrutura implicada, e não o parâmetro f. Quando uma estrutura é assinordenada (isto é, constituída de aspectos com diferentes graus de implicação), então, evidentemente, a ordem do tempo não é, em geral, a ordem primária que é pertinente à expressão da lei. Em vez disso, como se pode ver pelos exemplos anteriores, toda a ordem implicada está presente em qualquer momento, de tal modo que toda a estrutura que se origina dessa ordem implicada pode ser descrita sem ser atribuído um papel fundamental ao tempo. A lei da estrutura será, então, apenas, uma lei que relaciona aspectos com vários graus de implicação. É claro que uma tal lei não será determinista no tempo. Mas, como foi indicado no Capítulo 5, o determinismo no tempo não é a única forma de ratio ou razão; e, enquanto pudermos encontrar ratio ou razão nas ordens que são fundamentalmente relevantes, isto é tudo o que é necessário para a lei. Pode-se ver no "contexto quântico" uma semelhança significativa com as ordens de movimento que foram descritas em termos dos simples exemplos acima examinados. Desse modo, como se vê na Figura 6.8, as "partículas elementares" geralmente são observadas por meio de rastros que, presume-se, elas deixam nos dispositivos de detecção (emulsões fotográficas, câmaras de bolhas, etc.). Evidentemente, esse rastro deve ser visto apenas como um aspecto que ocorre na percepção imediata (como foi feito com a sequência móvel de gotículas de tinta indicada na Figura 6.7). Descrevê-lo como o rastro de "uma partícula" é então supor, além disso, que a ordem de movimento primariamente relevante assemelha-se àquela que se acha presente no aspecto imediatamente percebido. Rastro de "partícula elementar" [figura 6.7] – Emulsão. No entanto, toda a discussão a respeito da nova ordem implícita na teoria quântica mostra que essa descrição não pode ser coerentemente mantida. Por exemplo, a necessidade de descrever descontinuamente o movimento em termos de "saltos quânticos", implica que não tem nenhum significado a noção de uma órbita bem-definida de uma partícula que liga as marcas visíveis constituindo o rastro. Em todo caso, as propriedades de onda-partícula da matéria mostram que o movimento global depende de todo o arranjo experimental num sentido que não é consistente com a ideia de movimento autônomo de partículas localizadas; e, naturalmente, a discussão a respeito da experiência do microscópio de Heisenberg indica a relevância de uma nova ordem de totalidade indivisa, na qual não tem sentido falar sobre um objeto observado como se fosse separado de toda a situação experimental em que ocorre a observação. Portanto, o uso do termo descritivo "partícula" nesse contexto "quântico" é muito enganoso. Evidentemente, temos aqui de lidar com algo semelhante, sob certos importantes aspectos, ao exemplo da tinta misturada num fluido viscoso. Em ambos os casos, aparece na percepção imediata uma ordem explicada que não pode ser consistentemente considerada como autônoma. No exemplo da tinta a ordem explicada é determinada como uma intersecção entre a ordem implicada do "movimento total" do fluido e uma ordem implicada de distinções de densidade da tinta que são relevadas na percepção dos sentidos. No contexto "quântico", haverá, de maneira semelhante, uma intersecção entre uma ordem implicada de algum "movimento total" correspondente ao que temos chamado, por exemplo, de "elétron", e uma outra ordem implicada de distinções que são relevadas (e registradas) por nossos instrumentos. Assim, a palavra "elétron" deveria ser considerada apenas como um nome por cujo intermédio chamamos a atenção para um certo aspecto do holomovimento, um aspecto que somente pode ser discutido se se levar em conta a situação experimental total, e que não pode ser especificado em termos de objetos localizados, em movimento autônomo através do espaço. E, é claro, todo tipo de "partícula" que, na física atual, é chamado de constituinte básico da matéria terá de ser discutido nos mesmos termos (de modo que tais "partículas" não sejam mais consideradas autônomas e separadamente existentes). Portanto, chegamos a uma nova descrição física geral em que "tudo implica tudo" numa ordem de totalidade indivisa. Uma análise matemática de como o contexto "quântico" pode ser assimilado em termos da espécie de ordem implicada que discutimos acima é dada no apêndice deste capítulo. 5. A lei no holomovimento Vimos que no contexto "quântico" a ordem em cada aspecto imediatamente perceptível do mundo deve ser considerada como originária de uma ordem implicada mais abrangente, onde todos os aspectos finalmente se fundem no indefinível e imensurável holomovimento. Como então entendermos o fato de que as descrições envolvendo a análise do mundo em componentes autônomos realmente funcionam, pelo menos em certos contextos (p. ex., aqueles em que a física clássica é válida)? Para responder a questão, primeiro notamos que a palavra "autonomia" baseia-se em duas palavras gregas: auto, que significa "si próprio", e nomos, que significa "lei". Portanto, ser autônomo é governar a si próprio. Evidentemente, nada é "uma lei para si próprio". No máximo, algo pode-se comportar com um relativo e limitado grau de autonomia, sob certas condições e em certos graus de aproximação. De fato, cada coisa relativamente autônoma (p. ex., uma partícula) é, pelo menos, limitada por outras coisas relativamente autônomas. Tal limitação atualmente é descrita em termos de interação. Entretanto, introduziremos aqui a palavra "heteronomia" para chamar a atenção para uma lei na qual muitas coisas relativamente autônomas estão relacionadas dessa maneira, isto é, externamente e mais ou menos mecanicamente. Ora, o que é característico da heteronomia é a aplicabilidade das descrições analíticas. (Como assinalamos no Capítulo 5, a raiz da palavra "análise" está no grego lysis, que significa "dissolver" ou "decompor". Uma vez que o prefixo ana significa "acima" pode-se dizer que "analisar" é


"decompor" a partir do "alto", isto é, obter uma visão ampla, como se fosse de uma grande altura, em termos de componentes considerados como autônomos e separadamente evidentes, embora em interação mútua.)No entanto, como se viu em contextos suficientemente amplos, tais descrições analíticas deixam de ser adequadas. O que se exige, então, é holonomia, isto é, a lei do todo. A holonomia não nega totalmente a relevância da análise no sentido que discutimos acima. Na verdade, "a lei do todo" geralmente incluirá a possibilidade de descrever o ato de "decompor" aspectos uns dos outros, de modo que eles serão relativamente autônomos em contextos limitados (bem como a possibilidade de descrever as interações desses aspectos num sistema de heteronomia). Entretanto, qualquer forma de relativa autonomia (e heteronomia) é, em última instância, limitada pela holonomia, de modo que num contexto suficientemente amplo essas formas são vistas como meros aspectos, relevados no holomovimento, em vez de coisas em interação, desarticuladas e existentes separadamente. Investigações científicas geralmente tendem a começar relevando aspectos aparentemente autônomos da totalidade. O estudo das leis desses aspectos geralmente tem sido enfatizado em primeiro lugar, mas, via de regra, esse tipo de estudo tem levado gradualmente a uma percepção de que tais aspectos estão relacionados a outros sobre os quais originalmente se pensava que não tivessem nenhuma relação significativa com o tema de interesse primário. De tempos em tempos, tem-se abarcado uma ampla gama de aspectos dentro de uma "nova totalidade". Mas, naturalmente, a tendência geral até agora tem sido a de fixar essa "nova totalidade" como uma ordem geral definitivamente válida, que, daqui por diante, deve ser adaptada da maneira como discutimos na seção 1 para encaixar quaisquer fatos posteriores que possam ser observados ou descobertos. Subentende-se aqui, no entanto, que mesmo essa "nova totalidade" será ela, própria, revelada como um aspecto numa outra nova totalidade. Assim, a holonomia não deve ser vista como um objetivo fixo e final da pesquisa científica, mas, sim, como um movimento no qual "novas totalidades" estejam continuamente emergindo. E é evidente que isso implica que a lei total do holomovimento indefinível e imensurável nunca poderia ser conhecida, especificada ou expressa em palavras. Em vez disso, tal lei tem de ser considerada, necessariamente, como implícita.Será agora discutida a questão geral da assimilação do fato global, na física, numa tal noção de lei. Apêndice: A ordem implicada e a ordem explicada na lei física A.1 Introdução Neste apêndice, as noções de ordem implicada e de ordem explicada introduzidas anteriormente serão expressas numa forma mais matemática. É importante enfatizar que a matemática e a física não estão sendo vistas aqui como estruturas separadas (para as quais se poderia dizer, por exemplo, que aplicar a matemática à física é como aplicar tinta à madeira), mas sim como estruturas mutuamente relacionadas. Sugerimos, em vez disso, que a matemática e a física devem ser consideradas como aspectos de um único todo indiviso. Ao discutir esse todo, começamos com a linguagem geral utilizada para a descrição na física. Podemos dizer então que matematizamos essa linguagem, isto é, articulamo-la ou definimo-la mais detalhadamente de modo a que isso permita enunciados de maior precisão, a partir dos quais possamos extrair um amplo espectro de inferências significativas de maneira clara e coerente. Para que a linguagem geral e sua matematização sejam capazes de atuar conjuntamente de maneira coerente e harmoniosa, esses dois aspectos têm de ser semelhantes entre si em certos pontos fundamentais, embora, é claro, venham a ser diferentes em outros (especialmente no fato de que o aspecto matemático tem maiores possibilidades para a precisão de inferências). Mediante uma consideração dessas semelhanças e diferenças, pode surgir aquilo a que poderemos chamar de uma espécie de "diálogo", em que são criados novos significados comuns a ambos os aspectos. É nesse "diálogo" que deve ser vista a totalidade da linguagem geral e sua matemática. Neste apêndice indicaremos, embora de maneira muito preliminar e provisória, como podemos matematizar a linguagem geral para desenvolver as ordens implicadas e explicadas de forma coerente e harmoniosa. A.2 Sistemas euclidianos de ordem e medida Começaremos com a descrição matemática da ordem explicada. Ora, a linguagem explicada surge primariamente como um certo aspecto da percepção dos sentidos, e da experiência com o conteúdo dessa percepção. Pode-se acrescentar que, na física, a ordem explicada geralmente se revela nos resultados sensivelmente observáveis do funcionamento de um instrumento. O que é comum ao funcionamento dos instrumentos geralmente usados na pesquisa física é o fato de que o conteúdo sensivelmente perceptível é basicamente descritível em termos de um sistema euclidiano de ordem e medida, ou seja, um sistema que pode ser entendido adequadamente em termos da geometria euclidiana usual. Começaremos, portanto, com uma discussão sobre os sistemas euclidianos de ordem e medida. Nessa discussão, adotaremos a bem conhecida percepção do matemático Klein, segundo o qual as transformações gerais são as características determinantes essenciais de uma geometria. Assim, num espaço euclidiano de três dimensões, há três operadores de deslocamento D. Cada um desses operadores define um conjunto de linhas paralelas que se transformam em si próprias sob a operação em questão. Há também três operadores de rotação Rr. Cada um destes define um conjunto de cilindros concêntricos em torno da origem que se transformam em si próprios sob a operação em questão. Juntos, eles definem esferas concêntricas que se transformam em si próprias sob o conjunto de todos os Rr. Finalmente, tem-se o operador de dilatação Ro, que transforma uma esfera de um dado raio numa outra de raio diferente. Sob esta operação, as linhas radiais que passam pela origem transformam-se em si próprias. A partir de qualquer conjunto de operadores Rjr Ro, obtemos um outro conjunto R', R'o correspondente a um centro diferente, por meio de um deslocamento.A partir dos Dv obtemos um conjunto em novas direções por meio da rotação. Ora, se Dj é um certo deslocamento, (D) será um deslocamento resultante de n operações semelhantes. Isto significa que os deslocamentos podem ser ordenados naturalmente numa ordem semelhante àquela dos números inteiros. Assim, podemos descrever deslocamentos numa escala numérica. Isto proporciona não só uma ordem, mas também uma medida (na medida em que consideramos deslocamentos sucessivos como equivalentes em tamanho). De maneira semelhante, cada rotação Rt determina uma série (Rj)" de rotações ordenadas e mensuradas, enquanto que uma dilatação Ro determina uma série (Ro)n de dilatações ordenadas e mensuradas. É claro que operações desse tipo determinam o que se entende por paralelismo e por perpendicularidade, bem como o que se entende por congruência e similaridade de figuras geométricas. Portanto, determinam o caráter distintivo essencial de uma geometria euclidiana, com todo o seu sistema de ordem e medida. É preciso ter em mente, porém, que aquilo que está sendo considerado como fundamentalmente relevante é


todo o conjunto de operações, enquanto que os elementos estáticos (p. ex., retas, círculos, triângulos, etc.) estão sendo agora considerados como "subespaços invariantes" das operações, e como configurações formadas a partir desses subespaços. A.3 Transformação e metamorfose Discutiremos agora a descrição matemática da ordem implicada. A ordem implicada deve, em geral, ser descrita não em termos de transformações geométricas simples, tais como translações, rotações e dilatações, mas, sim, em termos de um tipo diferente de operação. A bem da clareza, reservaremos portanto a palavra transformação para descrever uma mudança geométrica simples dentro de uma dada ordem explicada. Ao que acontece no contexto mais amplo da ordem implicada chamaremos, então, de metamorfose. Esta palavra indica que a mudança é muito mais radical do que a simples mudança de posição ou de orientação de um corpo rígido, e que, sob certos aspectos, assemelha-se mais às mudanças de larva para borboleta (onde tudo se altera completamente, embora alguns aspectos sutis e altamente implícitos permaneçam invariantes). Evidentemente, a mudança que leva um objeto iluminado ao seu holograma (ou que leva uma gotícula de tinta à "massa cinza" obtida ao arrastá-la) deve ser descrita como uma metamorfose e não como uma transformação. Usaremos o símbolo M para indicar uma metamorfose e o T para uma transformação, enquanto que ú indica todo um conjunto de transformações que são relevantes numa dada ordem explicada DJf Rt, RJ. Sob uma metamorfose, o conjunto E converter-se-á num outro conjunto E' dado por ú' = MEM1. Até agora isso tem sido chamado de transformação de similaridade, mas doravante será chamado de metamorfose de similaridade. Para indicar os aspectos distintivos essenciais de uma metamorfose de similaridade, consideremos o exemplo do holograma. Neste caso, a metamorfose apropriada M é determinada pela função de Green, que relaciona amplitudes na estrutura iluminada a amplitudes na chapa fotográfica. Para ondas de frequência definida com a função de Green é G (x - y) = {exp[z(co/c) Ix - yl} / Ix û yl, onde x é uma coordenada relevante para a estrutura iluminada e y é uma coordenada relevante para a chapa. Assim, se 4(x) é a amplitude da onda na estrutura iluminada, então a amplitude B(y) na chapa é B(y)=({exp[i(o)/c)Ix - yl}/ Ix - ylM(x)dx.Vê-se, a partir da equação acima, que toda a estrutura iluminada é "transportada" a cada região da chapa, e é nela "dobrada", de um modo que, evidentemente, não pode ser descrito em termos de uma transformação ponto-aponto entre x e y. A matriz M(x, y), que é essencialmente G(x-y), pode assim ser chamada de metamorfose das amplitudes na estrutura iluminada em amplitudes no holograma. Consideremos agora a relação entre a transformação E na estrutura iluminada e mudanças concomitantes no holograma, que se seguem a essa transformação. Na estrutura iluminada, E pode ser caracterizado como uma correspondência ponto-a-ponto, onde qualquer posição similar é transformada numa posição similar. A mudança correspondente no holograma é descrita por E' = MEM1. Esta não é uma correspondência mútua de pontos no holograma, na qual a propriedade de localização de tais conjuntos de pontos seria preservada. Em vez disso, cada região do holograma é transformada de uma maneira que depende de todas as outras. Não obstante, a mudança E' no holograma determina, evidentemente, a mudança E na estrutura que pode ser vista quando o holograma é iluminado com a luz laser. De maneira semelhante, num contexto quântico uma transformação unitária (p. ex., como é dada por uma função de Green que opera sobre o vetor de estado) pode ser entendida como uma metamorfose em que transformações ponto-a-ponto de espaço e tempo que preservam a localização são "dobradas" em operações mais gerais, similares no sentido acima definido, e que, no entanto, não são transformações ponto-aponto preservadoras da localização. A.4 Matematização da descrição da ordem implicada O próximo passo é discutir a matematização da linguagem para a descrição da ordem implicada. Começamos considerando uma metamorfose M. Aplicando M repetidas vezes, obtemos (M)", que descreve o dobramento, ou envolvimento de uma dada estrutura n vezes. Então, se escrevermos Q = (M)", teremos Q, .-Q.., = Qnl--Qn2 = M.Assim, há uma série de diferenças similares nos Qn (na verdade as diferenças são não apenas similares, mas também são todas iguais a M). Como foi assinalado no Capítulo 5, essa série de diferenças similares indica uma ordem. Uma vez que as diferenças estão no grau de implicação, essa ordem é uma ordem implicada. Além disso, na medida em que sucessivas operações M são vistas como equivalentes, há também uma medida, onde n pode ser tomado como um parâmetro de implicação. Se pensarmos no exemplo das gotículas de tinta insolúvel arrastadas num fluido viscoso (de modo que M descreve a mudança da gotícula quando o sistema for dobrado um certo número de vezes, isto é, quando o dispositivo tiver dado um certo número de voltas completas), então M" descreve a mudança da gotícula quando sujeita a n dobramentos. No entanto, cada gotícula é inserida numa posição que é deslocada de uma certa quantidade relativamente à gotícula anterior. Indiquemos esse deslocamento por D. A enésima gotícula primeiro sofre o deslocamento D" e, assim, a metamorfose é M", de maneira que o resultado efetivo é dado por M"D". Suponhamos ainda que a densidade da tinta injetada com cada gotícula possa variar, e indiquemos isso supondo que a tinta é injetada na enésima gotícula com o auxílio da operação Qn = CAfD". O operador correspondente à série completa das gotículas é obtido adicionando-se as contribuições de cada uma, dando Q = ?CM"D". Além disso, qualquer número de estruturas, correspondentes a Q' Q / Q", etc., pode também ser superposto, produzindo R = Q + Q' + Q" + Mais ainda, qualquer uma dessas estruturas pode sofrer um deslocamento, tal como D, e uma metamorfose, tal como M, dando R' = MDR.Se o fluido já fosse um fundo "uniformemente cinza", poderíamos dar significado a um coeficiente negativo Cn dizendo que ele significa a remoção de uma certa quantidade de tinta de uma região correspondente a uma gotícula (e não a adição dessa quantidade de tinta à região). Na formulação acima, cada símbolo matemático corresponde a uma operação (transformação e/ou metamorfose). Há um significado em somar operações, em multiplicar o resultado por um número C e em multiplicar operações entre si. Se, além disso, introduzirmos uma operação unidade (uma operação que deixa todas as operações inalteradas na multiplicação) em uma operação zero (que deixa todas as operações inalteradas quando somadas), teremos satisfeito todas as condições necessárias para uma álgebra. Vemos, então, que uma álgebra contém características distintivas fundamentais semelhantes às características fundamentais de estruturas construídas sobre ordens implicadas. Desse modo, tal álgebra torna possível uma matematização relevante que pode ser relacionada de maneira coerente à linguagem geral para discutir ordens implicadas. Ora, na teoria quântica, uma álgebra semelhante à descrita acima também desempenha um papel fundamental. De fato, a teoria é expressa em termos de operadores lineares (inclusive um operador unidade e um operador zero) que podem ser adicionados, multiplicados por números e multiplicados entre si. Todo o conteúdo da teoria quântica pode, assim, ser expresso em termos dessa álgebra. É claro que na teoria quântica os termos algébricos são interpretados como representando "observáveis físicos" aos quais correspondem. No entanto, na abordagem aqui sugerida, tais termos não devem ser considerados como representando qualquer coisa em particular. Em vez disso, devem ser vistos como extensões da linguagem geral. Um símbolo algébrico isolado é, pois, similar a uma palavra, no sentido de que seu significado implícito se evidencia plenamente apenas na maneira pela qual é utilizada a linguagem como um todo. Essa abordagem é realmente empregada em grande parte das matemáticas modernas


(4), especialmente na teoria dos números. Assim, pode-se começar com os chamados símbolos indefiníveis. O significado de um desses símbolos nunca é diretamente relevante. Somente relações e operações nas quais esses símbolos tomam parte são relevantes. O que estamos propondo aqui é que, à medida que matematizamos a linguagem do modo acima indicado, surgirão ordens, medidas e estruturas dentro da linguagem que serão semelhantes a (mas também diferentes de) ordens, medidas e estruturas que devem ser percebidas na experiência comum e na experiência com o funcionamento de instrumentos científicos. Conforme indicamos acima com mais detalhes, pode haver uma relação entre esses dois tipos de ordens, medidas e estruturas, de modo que aquilo de que falamos e sobre o que pensamos terá uma ratio ou razão comum com o que podemos observar e fazer (veja o Capítulo 5 para uma discussão sobre esse sentido de "ratio" ou "razão"). Isso significa, naturalmente, que não consideramos termos tais como "partícula", "carga", "massa", "posição", "momentum", etc. como tendo relevância fundamental na linguagem algébrica. Terão, em vez disso, na melhor das hipóteses, que evidenciar-se como abstrações de alto nível. Conforme assinalamos nesta seção, o verdadeiro significado da "álgebra quântica" será, então, o de ela ser uma matematização da linguagem geral, que enriquece esta última e possibilita uma discussão sobre a ordem implicada que se articula de maneira mais precisa do que é possível fazê-lo exclusivamente em termos da linguagem geral. Naturalmente, a álgebra é, em si mesma, uma forma limitada de matematização. Em princípio, não há nenhuma razão para não prosseguirmos com outras espécies de matematização (que envolvam, por exemplo, anéis e retículos, ou estruturas anda mais gerais, que ainda têm de ser criadas). Entretanto, será visto neste apêndice que até mesmo dentro dos limites de uma estrutura algébrica, pode-se assimilar uma faixa muito ampla de aspectos da física moderna, e também abrir muitas novas vias de grande interesse para serem exploradas. ? útil, portanto, aprofundarmo-nos em alguns detalhes da matematização algébricas (3) da linguagem comum antes de abordarmos tipos mais gerais de matematização. A.5 A álgebra e o holomovimento Começamos nossa exploração da matematização algébrica da linguagem geral chamando a atenção para o fato de que o significado básico de um símbolo algébrico é que ele descreve um certo tipo de movimento. Assim, considere o conjunto de termos algébricos indefiníveis indicado por A. É característico de uma álgebra o fato de esses termos terem uma relação dada por A4=X'A onde X é um conjunto de constantes numéricas. Essa relação significa que quando um dado termo A precedeu um outro A, o resultado é equivalente a uma "soma ponderada" ou superposição de termos (de modo que uma álgebra contém uma espécie de "princípio de superposição", semelhante, em certos aspectos fundamentais, àquele que vigora na teoria quântica). Com efeito, pode-se dizer que, embora o termo A seja "em si mesmo" indefinível, ele não obstante significa um certo tipo de "movimento" do conjunto total de termos, no qual cada símbolo A é substituído por (ou transformado em) uma superposição de símbolos T. K *. Ak. No entanto, como assinalamos anteriormente, na linguagem geral para a descrição da ordem implicada o indefinível e imensurável holomovimento é considerado como a totalidade na qual tudo que deve ser discutido deve, em última instância, ser relevado. De modo semelhante, na matematização algébrica dessa linguagem geral consideramos como totalidade uma álgebra indefinível na qual o significado básico de cada termo é que ele significa um "movimento total" em todos os termos da álgebra. Por meio dessa similaridade fundamental surge a possibilidade de uma matematização coerente do tipo de descrição geral que considera a totalidade como o holomovimento indefinível e imensurável. Podemos agora ir mais adiante nesse sentido. Portanto, assim como na linguagem geral podemos considerar aspectos relativamente autônomos do holomovimento, em sua matematização podemos considerar subálgebras relativamente autônomas que são aspectos da "álgebra total" indefinível. Assim como cada aspecto do holomovimento é, em última instância, limitado em sua autonomia pela lei do todo (isto é, pela holonomia) da mesma forma cada subálgebra é, em última instância, limitada pelo fato de que a lei relevante envolve movimentos que ultrapassam o âmbito daqueles que podem ser descritos em termos da subálgebra em questão. Um dado contexto físico será então descritível em termos de uma subálgebra apropriada. À medida que nos aproximamos dos limites desse contexto, descobrimos que uma tal descrição é inadequada, e passamos a considerar álgebras mais abrangentes até que encontremos uma descrição que seja adequada ao novo contexto ao qual fomos levados. No contexto da física clássica, por exemplo, é possível abstrair uma subálgebra correspondente a um conjunto de operações euclidianas E. Porém, num contexto "quântico", a "lei do todo" envolve metamorfoses M que nos afastam dessa subálgebra e nos aproximam de subálgebras diferentes (mas similares) dadas por E' = MEM. Como foi assinalado, agora há indicações de que até mesmo a álgebra quântica é inadequada em contextos ainda mais amplos. Portanto, é natural continuar considerando álgebras ainda mais abrangentes (e por fim), evidentemente, tipos de matematização ainda mais gerais que possam revelar-se relevantes). A.6 Extensão do princípio da relatividade a ordens implicadas Como um passo na investigação de formas mais abrangentes de matematização, assinalaremos a possibilidade de uma certa extensão do princípio da relatividade a ordens implicadas, possibilidade essa sugerida ao se considerar como a álgebra quântica limita a autonomia da álgebra clássica da maneira acima descrita. Ora, num contexto clássico, qualquer estrutura pode ser especificada em termos de um conjunto de operações EjE2E3 ... (que descrevem comprimentos, ângulos, congruência, similaridade, etc.)- Quando passamos para um contexto "quântico" mais amplo, podemos chegar a operações semelhantes, E'= MEM7. Essa similaridade significa que se dois elementos quaisquer, digamos Ej e E2, relacionam-se de um certo modo na descrição de uma estrutura específica, então há um conjunto de elementos E' e E2' descrevendo transformações "dobradas" não locais que são relacionadas de maneira similar. Ou, numa forma mais concisa, P .p .. p ò. p ò t,. c2.. tj. t2. Disso segue-se que se tivermos um sistema euclidiano de ordem e medida, com certas estruturas nele construídas, podemos sempre obter um outro sistema E' "dobrado" e correspondente a E, e ainda capaz de possuir estruturas similares nele construídas. Até aqui, o princípio da relatividade assumiu uma forma que pode ser expressa da seguinte maneira: "Dada qualquer relação estrutural como é descrita num sistema de coordenadas correspondente a uma certa velocidade, é sempre possível ter uma relação estrutural semelhante, como é descrita num sistema de coordenadas correspondente a qualquer outra velocidade." No entanto, segue-se da discussão anterior que a matematização da linguagem geral em termos de uma álgebra "quântica" abre a possibilidade de uma extensão do princípio da relatividade. Evidentemente, essa extensão é semelhante ao princípio da complementaridade, pois quando as condições são tais que uma dada ordem correspondente a um conjunto de operações E é explicada, então uma outra ordem correspondente a operações similares E' = MEM'1 é implicada (de modo que, num certo sentido, ambas as ordens não podem ser definidas conjuntamente). No entanto, difere do princípio da complementaridade pelo fato de que agora a ênfase básica é em ordens e medidas relevantes para a geometria, e não em arranjos experimentais mutuamente incompatíveis. Segue-se dessa extensão do princípio da relatividade que a ideia de espaço como algo constituído de um conjunto de pontos isolados e bem-definidos, relacionados topologicamente por um conjunto de vizinhanças e metricamente por uma


definição de distância, não é mais adequada. De fato, cada conjunto de operações euclidianas E' define tal conjunto de pontos, vizinhanças, medidas, etc., que são implicados em relação àqueles definidos por um outro conjunto E. A noção de espaço como um conjunto de pontos com uma topologia e uma métrica é, pois, meramente um aspecto de uma totalidade mais ampla. Será útil introduzir aqui mais uma nova utilização da linguagem. Em topologia, pode-se descrever um espaço como algo abrangido por um complexo, constituído de figuras elementares (p. ex., triângulos ou outras formas celulares poligonais básicas), cada uma das quais é chamada de simplexo. A palavra "plexo" é uma forma do latim plicare, que, como já vimos anteriormente, significa "dobrar" ou "envolver". Portanto, "simplexo" significa "dobrado uma vez", e "complexo" significa "dobrado conjuntamente", mas no sentido de muitos objetos separados que estão unidosentre si. Para descrever o dobramento de um conjunto ilimitado de sistemas euclidianos de ordens e medidas, dentro uns dos outros podemos introduzir então a palavra multiplexo (que é nova neste contexto). Ela significa "muitos complexos, todos dobrados conjuntamente". Literalmente, este é também o significado de "múltiplo" (manifold). No entanto por hábito, esta última palavra passou a significar "continuum". Assim somos levados a usar a palavra multiplexo para chamar a atenção para a relevância fundamental da ordem implicada, e para a inadequação de uma descrição em termos de um continuum. Até agora, de um modo geral, o espaço tem sido considerado como um continuum que pode ser abrangido por um complexo (que é, evidentemente, uma forma de ordenamento explicado do espaço). Tal complexo pode ser discutido em termos de sistemas de coordenadas. Desse modo, cada simplexo pode ser descrito com o auxílio de um referencial localmente euclidiano, e todo o espaço pode então ser tratado utilizando-se um número muito grande de "remendos" (patches) coordenados sobrepostos. Ou, alternativamente, é possível encontrar um conjunto único de coordenadas curvilíneas aplicável sobre o espaço inteiro. O princípio da relatividade afirma então que todos esses sistemas de coordenadas fornecem referenciais equivalentes de descrição (isto é, equivalentes para a expressão da ratio, ou razão, ou lei). Podemos agora prosseguir considerando conjuntos semelhantes de operações E e E' que são implicados um em relação ao outro. Como foi assinalado acima, estamos estendendo o princípio da relatividade supondo que as ordens definidas por meio de qualquer das duas operações E e E' são equivalentes, no sentido de que a "lei do todo" é a tal que estruturas similares podem ser construídas umas sobre as outras. Para ajudar a esclarecer o que se quer dizer com isso, notamos que as ordens de movimento diretamente perceptíveis pelos sentidos geralmente são vistas como explicadas, ao passo que outras ordens (tais como, por exemplo, aquelas apropriadas para a descrição de "um elétron" num contexto quântico) são consideradas como implicadas. Todavia, de acordo com o princípio da relatividade estendido, pode-se igualmente bem considerar a ordem do "elétron" como explicada e a nossa ordem sensorial como implicada. Isto é, colocamo-nos (metaforicamente) na situação do "elétron" e então entendemo-lo assimilando-nos a ele e assimilando-o a nós. Evidentemente, isso significa uma perfeita totalidade em nosso pensamento. Ou, como colocamos anteriormente, "tudo implica tudo", mesmo até o ponto em que "nós próprios" estamos implicados conjuntamente com "tudo o que vemos e pensamos". Portanto, estamos presentes em todos os lugares e em todos os tempos, embora apenas implicadamente (isto é, implicitamente). O mesmo é verdadeiro para cada "objeto". É somente em certas ordens especiais de descrição que tais objetos aparecem como explicados. A lei geral, isto é, a holonomia, tem de ser expressa em todas as ordens, nas quais todos os objetos e todos os tempos estão "dobrados conjuntamente". A.7 Algumas sugestões preliminares sobre a lei num multiplexo Daremos agora algumas sugestões preliminares quanto às linhas de investigação sobre a lei geral, conforme formulada em termos de um multiplexo em vez de sê-lo em termos de um continum. Começamos recordando que as descrições clássicas são relevantes apenas num contexto em que a expressão da lei é limitada a uma subálgebra particular correspondente a um dado sistema euclidiano de ordem e medida. Se esse sistema for estendido ao tempo bem como ao espaço, então tal lei pode ser compatível com a relatividade restrita. A característica essencial da relatividade restrita é que a velocidade da luz é um limite invariante para a propagação de sinais (e de influências causais). Quanto a isso, notamos que um sinal sempre será constituído de uma certa ordem explicada de eventos, e que num contexto onde essa ordem explicada deixa de ser relevante, o mesmo acontece com a noção de sinal (p. ex., se uma ordem é "dobrada" em toda a parte de todo o espaço e de todo o tempo, não se pode coerentemente considerá-la como constituindo um sinal que propagaria informação de um lugar para outro durante um período de tempo). Isso significa que onde a ordem implicada se acha envolvida, a linguagem descritiva da relatividade restrita não será mais, em geral, aplicável. A teoria geral da relatividade é semelhante à teoria restrita, no sentido de que em cada região do espaçotempo há um cone de luz que define uma velocidade limite para os sinais. É diferente, no entanto, no sentido de que cada região tem o seu próprio sistema local de coordenadas (indicado por m), relacionado com os seus vizinhos (indicados por n), por intermédio de certas transformações lineares gerais T. Mas um sistema de coordenadas locais, segundo o nosso ponto de vista, deve ser considerado como uma expressão de um correspondente sistema euclidiano de ordem e medida (que, por exemplo, geraria as linhas do referencial em questão como subespaços invariantes das operações ú). Consideremos, pois, os sistemas euclidianos de operações Em e En, e as transformações que os relacionam En = TJE.Jml. Quando consideramos uma série de transformações desses sistemas em torno de um círculo fechado de remendos, chegamos àquilo que em termos matemáticos é chamado de "grupo de holonomia". Num certo sentido, esse nome é apropriado, pois esse grupo determina o caráter de "todo o espaço". Assim, na relatividade geral, esse grupo é equivalente ao grupo de Lorentz, que é compatível com a exigência de um "cone local de luz" invariante. O uso, aqui, de um grupo diferente implicaria, é claro, um caráter correspondentemente diferente para "todo o espaço". Num outro sentido, porém, seria melhor considerar o grupo em questão como um "grupo de autonomia" em vez de um "grupo de holonomia", pois, na relatividade geral (bem como numa vasta classe de modernas teorias do campo), a lei geral é invariante em relação a "transformações de gauge" arbitrárias dos referenciais em cada região, ú,'= RmEmR~2. O significado dessas transformações pode ser visto considerando-se várias regiões vizinhas, cada uma delas contendo uma estrutura localizada, isto é, uma estrutura que tenha uma conexão desprezível com as estruturas vizinhas (de modo que se possa apropriadamente considerar o espaço entre elas como vazio, ou aproximadamente vazio). A importância da invariância de gauge é, então, a de que as leis são tais que quaisquer duas estruturas podem ser transformadas independentemente uma da outra, ao menos dentro de certos limites (por exemplo, enquanto houver "espaço vazio" suficiente entre elas). Um exemplo dessa relativa autonomia de estruturas é que objetos que não estão muito próximos podem ser postos em rotação e em translação uns em relação aos outros. Evidentemente, é esse aspecto particular da "lei do todo" (isto é, invariância de gauge) que permite uma relativa autonomia do tipo acima descrito. À medida que nos dirigimos para um contexto quântico, a "lei do todo" (isto é, a generalização do que se entende por "grupo de holonomia" na geometria de Riemann) envolverá a metamorfose M, bem como transformações T. Isto nos levará ao multiplexo, no qual novos tipos de ordem e medida serão relevantes. No entanto, é importante enfatizar que a "lei do todo" não será só uma transcrição da atual teoria quântica para uma nova linguagem. Em vez disso, todo o contexto da física (clássica e quântica) terá de ser assimilado numa estrutura diferente, no qual espaço,


tempo, matéria e movimento são descritos de novas maneiras. Tal assimilação nos levará, assim, a novos caminhos a serem explorados, sobre os quais não somos sequer capazes de pensar, em termos das teorias atuais. Indicaremos aqui apenas algumas das muitas possibilidades desse tipo. Primeiramente, vamos recordar que começamos com uma álgebra total indefinível e extraímos subálgebras adequadas para a descrição de certos contextos da pesquisa física. Ora, os matemáticos já desenvolveram certos aspectos interessantes e potencialmente relevantes dessas subálgebras. Assim, considere uma dada subálgebra A. Dentre seus termos Alt pode haver alguns An que sejam nilpotentes, isto é, que tenham a propriedade segundo a qual algumas potências de An digamos, AJ são nulas. Entre estes termos, há um subconjunto de termos Af que são propriamente nilpotentes, isto é, que permanecem nilpotentes quando multiplicados por qualquer termo da álgebra A^ (de modo que (A-A Y = 0). Como um exemplo, considere primeiro uma álgebra clifford, na qual cada termo é propriamente nilpotente. Porém, numa álgebra fermiônica, com termos Cj e C.*, cada Q e C' é nilpotente (isto é, (Q)2 = (C.)2 = 0), mas não propriamente nilpotente (isto é, (Cf C/ # 0). Pode-se dizer que termos propriamente nilpotentes descrevem movimentos que acabam levando a aspectos que desaparecem. Portanto, se estivermos procurando descrever aspectos invariantes e relativamente permanentes do movimento, deveríamos ter uma álgebra que não possui termos propriamente nilpotentes. Uma tal álgebra pode sempre ser obtida de qualquer álgebra A, subtraindo-se dela os termos propriamente nilpotentes para se obter o que se chama de álgebra de diferença. Consideremos agora o seguinte teorema. (5) Cada álgebra diferente pode ser expressa em termos de produtos de uma álgebra matricial (isto é, uma álgebra cujas regras de multiplicação são semelhantes àquelas das matrizes) e uma álgebra de divisão, isto é, uma álgebra na qual o produto de dois termos não-nulos nunca é zero). Quanto à álgebra de divisão, seus possíveis tipos dependem dos campos de onde são tomados os coeficientes numéricos.Se esse campo for o dos números reais, então há exatamente três álgebras de divisão, os próprios números reais, uma álgebra de ordem dois, que é equivalente aos números complexos, e os quatérnions reais. Por outro lado, no campo dos números complexos, a única álgebra de divisão é a dos próprios números complexos (isto explica porque os quatérnions, estendidos de modo a incluir os coeficientes complexos, tornam-se uma álgebra matricial de matrizes de duas colunas). É significativo que, matematizando a linguagem geral em termos de uma álgebra inicialmente indefinida e não-específica, chegamos naturalmente a um tipo de álgebras utilizadas na atual teoria quântica para as "partículas com spin", isto é, produtos de matrizes e quatérnions. No entanto, além disso, essas álgebras têm uma importância que vai além da de oferecer cálculos técnicos efetuados na teoria quântica. Por exemplo, os quatérnions implicam invariância sob um grupo de transformações semelhantes a rotações no espaço tridimensional (que podem ser estendidas, de uma maneira simples, a grupos semelhantes ao grupo de Lorentz). Isso indica que, num certo sentido, as transformações fundamentais que determinam a ordem (3+l)-dimensional do "espaço-tempo relativístico" já estão contidas no holomovimento, descrito por meio da ordem implicada, matematizada em termos de álgebra. Mais precisamente, pode-se dizer que, começando de uma matematização algébrica geral da linguagem e indagando sobre aqueles aspectos que são relativamente permanentes ou invariantes (descritos por álgebras sem termos propriamente nilpotentes) e sobre aqueles que não estão restritos a uma escala em particular (descritos por álgebras cujos termos podem ser multiplicados por um número real arbitrário), chegamos a transformações que determinam uma ordem equivalente à do espaço-tempo relativístico. Isto significa, porém, que se considerássemos aspectos não-permanentes e não-invariantes (implicando álgebras com termos propriamente nilpotentes), e aspectos restritos a escalas particulares (implicando álgebras sobre os números racionais ou sobre campos numéricos finitos), então ordens inteiramente novas (não redutíveis, em absoluto, à ordem (3+l)-dimensional) podem tornar-se relevantes. Torna-se claro, portanto, que aqui há uma vasta área para possíveis explorações.Uma outra área para ser investigada estaria no desenvolvimento de uma nova descrição combinando aspectos clássicos e quânticos numa única ou mais abrangente estrutura de linguagem. Em vez de considerar as linguagens clássica e quântica como separadas mas relacionadas por algum tipo de correspondência (como geralmente é feito nas atuais teorias), pode-se, ao longo das diretrizes já indicadas neste apêndice, investigar a possibilidade de abstraí-las como casos limites de linguagens matematizadas em termos de álgebras mais amplas. Fazê-lo poderia evidentemente levar a diferentes teorias, dotadas de um novo conteúdo, que iriam além dos conteúdos das teorias clássica e quântica. Com relação a isso, seria particularmente interessante constatar se seriam descobertas estruturas algébricas que também levassem a noções relativísticas como casos limites (p. ex., em termos de álgebras sobre campos numéricos finitos, e não sobre os reais). Poder-se-ia esperar que tais teorias estivessem livres das infinidades presentes nas teorias atuais, e levassem a um tratamento geralmente coerente dos problemas que essas teorias atuais não conseguem resolver. CAPÍTULO 7 O proceder do universo e da consciência: o dobramento e o desdobramento 1. Introdução No decorrer de todo este livro o tema central subjacente tem sido a totalidade (wholeness) ininterrupta da totalidade da existência como um movimento fluente indiviso sem fronteiras. Parece claro, a partir da discussão feita no capítulo anterior, que a ordem implicada é particularmente adequada para o entendimento dessa totalidade ininterrupta no movimento fluente, pois na ordem implicada a totalidade da existência está dobrada dentro de cada região do espaço (e do tempo). Portanto, qualquer que seja a parte, o elemento ou o aspecto que possamos abstrair no pensamento, ele ainda envolve o todo dobrado em si e, por conseguinte, está intrinsecamente relacionado à totalidade (totality) de onde foi abstraído. Assim, a totalidade (wholeness) permeia tudo o que está sendo discutido, desde o começo. Neste capítulo faremos uma apresentação não-técnica dos principais aspectos da ordem implicada, primeiro como ela aparece na física, e depois como pode ser estendida ao campo da consciência, para indicar certas linhas gerais ao longo das quais é possível compreender tanto o cosmo como a consciência como uma única totalidade ininterrupta de movimento. (1) 2. Resumo, contrastando a ordem mecanicista na física com a ordem implicada Será útil começar com um resumo de alguns dos principais pontos apresentados anteriormente, contrastando a ordem mecanicista geralmente aceita na física com a ordem implicada.Em primeiro lugar, consideremos a ordem mecanicista. Conforme indicado nos Capítulos 1 e 5, o principal aspecto dessa ordem é que o mundo é visto como constituído de entidades exteriores umas às outras, no sentido de que elas existem independentemente em diferentes regiões do espaço (e do tempo), interagindo por meio de forças que não efetuam quaisquer mudanças em suas naturezas essenciais. A máquina oferece uma ilustração típica de um tal sistema de ordem. Cada peça é moldada (p. ex., por estampagem, ou modelagem, independentemente das outras peças, e com elas interage somente por meio de algum tipo de contato externo. Num organismo vivo, pelo contrário, cada parte cresce no contexto do todo, de modo que não existe independentemente, nem se pode dizer que meramente "interage" com as outras, sem que ela própria seja essencialmente afetada nessa relação.


Como assinalamos no Capítulo 1, a física tornou-se quase que totalmente comprometida com a noção de que a ordem do universo é basicamente mecanicista. A forma mais comum dessa noção é a de que o mundo é supostamente constituído de um conjunto de "partículas elementares" separadamente existentes, indivisíveis e imutáveis, e que são os "blocos de construção" fundamentais de todo o universo. Originalmente, pensava-se que eram os ?tomos, mas os átomos foram finalmente divididos em elétrons, prótons e nêutrons. Pensou-se então que estes fossem os constituintes absolutamente imutáveis e indivisíveis de toda a matéria, mas descobriu-se que eles, por sua vez, estavam sujeitos a se transformarem em centenas de diferentes tipos de partículas instáveis, e agora partículas ainda menores, chamadas "quarks" e "pártons", têm sido postuladas para explicar essas transformações. Embora ainda não tenham sido isoladas, parece haver uma fé inabalável entre os físicos que essas partículas, ou algum outro tipo ainda a ser descoberto, finalmente possibilitarão uma completa e coerente explicação sobre tudo. A teoria da relatividade foi a primeira indicação significativa, na física, da necessidade de questionar a ordem mecanicista. Conforme explicouse no Capítulo 5, ela implicava que não é possível nenhum conceito coerente de uma partícula independentemente existente, nem o conceito segundo o qual uma partícula seria um corpo extenso, e nem aquele em que ela seria um ponto sem dimensões. Portanto, a suposição básica subjacente à forma geralmente aceita de mecanismo na física tem-se mostrado insustentável. Para enfrentar esse desafio fundamental, Einstein propôs que o conceito de partícula não mais fosse tomado como básico, e que, em vez disso, a realidade fosse vista desde o começo como constituída de campos, obedecendo a leis consistentes com a exigência da teoria da relatividade. Uma nova e fundamental ideia dessa "teoria do campo unificado" de Einstein é a de que as equações de campo sejam não-lineares. Como foi dito no Capítulo 5, essas equações podem ter soluções na forma de pulsos localizados, consistindo numa região de campo intenso, que poderia se mover através do espaço como um todo estável, e que poderia assim fornecer um modelo da "partícula". Esses pulsos não cessam abruptamente, mas se estendem ao longo de distâncias arbitrariamente grandes com intensidade decrescente. Assim, as estruturas de campo associadas a dois pulsos fundir-se-ão e fluirão juntas num todo ininterrupto. Além disso, quando dois pulsos se encontram bem próximos, as formas originais semelhantes a partículas estarão alteradas tão radicalmente que não há mais nem mesmo uma similaridade com uma estrutura composta de duas partículas. Logo, em termos dessa noção, a ideia de uma partícula existente separada e independentemente é vista, no máximo, como uma abstração que proporciona uma aproximação válida somente num certo domínio limitado. Em última instância, o universo inteiro (com todas as suas "partículas", incluindo aquelas que constituem os seres humanos, seus laboratórios, instrumentos de observação, etc.) tem de ser entendido como um único todo indiviso, no qual a análise em partes existentes separada e independentemente não possui qualquer status fundamental. Porém, como vimos no Capítulo 5, Einstein não foi capaz de obter uma formulação de sua teoria do campo unificado que fosse de um modo geral coerente e satisfatória. Além disso (e talvez mais importante no contexto de nossa discussão da abordagem mecanicista da física), o conceito de campo, que é o seu ponto de partida básico, ainda retém os aspectos essenciais de uma ordem mecanicista, pois as entidades fundamentais, os campos, são concebidas como existindo exteriormente umas às outras, em pontos separados do espaço e do tempo, e supostas de estarem conectadas umas com as outras apenas por intermédio de relações externas que, na realidade, também são consideradas como locais, no sentido de que somente esses elementos do campo que estão separados por distâncias "infinitesimais" podem afetar uns aos outros (2). Embora a teoria do campo unificado não fosse bem-sucedida nessa tentativa de proporcionar uma base mecanicista definitiva para a física, em termos do conceito de campo, ela, não obstante, mostra de uma maneira concreta como a consistência com a teoria da relatividade pode ser obtida derivando-se o conceito de partícula como uma abstração a partir de uma totalidade de existência ininterrupta e indivisa. Desse modo, ela ajudou a fortalecer o desejo imposto pela teoria da relatividade à ordem mecanicista predominante. A teoria quântica, no entanto, impõe um desafio muito mais sério a essa ordem mecanicista, indo muito além daquele que a teoria da relatividade coloca. Conforme foi visto no Capítulo 5, os aspectos fundamentais da teoria quântica que desafiam o mecanicismo são estes: 1. O movimento é, em geral, descontínuo, no sentido de que a ação é constituída de quanta indivisíveis, implicando também que um elétron, por exemplo, pode ir de um estado a outro sem passar por quaisquer estados intermediários. 2. Entidades, tais como os elétrons, podem apresentar diferentes propriedades (p. ex., comportar-se como uma partícula, ou como uma onda, ou como algo que seja intermediário), dependendo do contexto ambiental em cujo âmbito existem e estão sujeitos à observação. 3. Duas entidades, tais como os elétrons, que inicialmente combinam-se para formar uma molécula e depois se separam, apresentam uma peculiar relação não-Iocal, que pode ser melhor descrita como uma conexão não-causal de elementos bem separados (3) como é demonstrado no experimento de Einstein, Podolsky e Rosen (4). Deve-se acrescentar, é claro, que as leis da mecânica quântica são estatísticas e não determinam eventos futuros individuais de maneira única e precisa. Isto, naturalmente, difere das leis clássicas, que, em princípio, determinam esses eventos. No entanto, tal indeterminismo não representa um sério desafio à ordem mecanicista, isto é, a uma ordem, na qual os elementos fundamentais existem independentemente, são exteriores uns aos outros, e conectados apenas por relações externas. O fato (como numa máquina de pebolim) de tais elementos estarem relacionados pelas regras do acaso (expressas matematicamente em termos da teoria das probabilidades) não altera a exterioridade básica desses elementos (5) e, portanto, não afeta essencialmente a questão de a ordem fundamental ser mecanicista ou não. No entanto, os três aspectos básicos da teoria quântica assinalados acima mostram claramente a inadequação das noções mecanicistas. Assim, se todas as ações estão na forma de quanta discretos, as interações entre diferentes entidades (p. ex., elétrons) constituem uma estrutura única de vínculos indivisíveis, de modo que o universo inteiro tem de ser pensado como um todo ininterrupto. Nesse todo, cada elemento que podemos abstrair em pensamento apresenta propriedades básicas (onda ou partícula, etc.) que dependem de seu ambiente global, num sentido que lembra muito mais a maneira como os órgãos que constituem os seres humanos estão relacionados do que a maneira como as partes de uma máquina interagem. Além disso, a natureza não-local, não-causal das relações entre elementos distantes uns dos outros evidentemente viola as exigências de separatividade e de independência dos constituintes fundamentais, que são básicas para qualquer abordagem mecanicista. É instrutivo a essa altura contrastar os aspectos fundamentais das teorias da relatividade e quântica. Como vimos, a teoria da relatividade requer continuidade, estrita causalidade (ou determinismo) e localidade. Por outro lado, a teoria quântica requer não-continuidade, não-causalidade e não-localidade. Portanto, os conceitos básicos da teoria da relatividade e da teoria quântica se contradizem diretamente. Não surpreende, pois, que essas duas teorias nunca tenham sido unificadas de uma maneira consistente. Em vez disso, parece mais provável que uma tal unificação não seja efetivamente possível. Muito provavelmente, é necessária uma teoria qualitativamente nova, a partir da qual tanto a relatividade como a teoria quântica possam ser derivadas como abstrações, aproximações e casos limites. As noções básicas dessa nova teoria evidentemente não podem ser encontradas começando-se com aqueles aspectos em que a teoria da relatividade e a teoria quântica estão em contradição direta. O melhor é começar com aquilo que, basicamente, elas têm em comum. Isto é, a totalidade indivisa. Embora cheguem a essa totalidade por caminhos diferentes, é claro que é para isso que ambas fundamentalmente estão apontando. Começar com a totalidade indivisa significa, porém, que devemos abandonar a ordem mecanicista. Mas essa ordem tem sido, durante muitos


séculos, básica para todo pensamento em física. Conforme foi ressaltado no Capítulo 5, a ordem mecanicista é expressa de modo mais natural e direto por meio da grade cartesiana. Embora a física tenha mudado radicalmente sob muitos aspectos, a grade cartesiana (com modificações de menor importância, tais como o uso de coordenadas curvilíneas) permaneceu sendo a característica fundamental que não mudou. Evidentemente, não é fácil mudá-la, pois nossas noções de ordem estão extremamente difundidas, pois envolvem não apenas nossos pensamentos, mas também nossos sentidos, nossos sentimentos, nossas intuições, nosso movimento físico, nossas relações com outras pessoas e com a sociedade como um todo, e, na verdade, cada fase de nossas vidas. Portanto, é difícil "recuar" de nossas velhas noções de ordem o suficiente para sermos capazes de considerar seriamente novas noções de ordem. Para ajudar a ver com mais facilidade aquilo que entendemos por nossa proposta de novas noções de ordem que sejam apropriadas à totalidade indivisa, é útil portanto começar com exemplos que possam envolver diretamente a percepção dos sentidos, bem como com modelos e analogias que ilustrem essas noções de uma maneira imaginativa e intuitiva. No Capítulo 6, começamos observando que a lente fotográfica é um instrumento que nos tem oferecido um tipo de percepção sensorial bastante direta do significado da ordem mecanicista, pois ao se ressaltar uma correspondência aproximada entre pontos no objeto e pontos na imagem fotográfica, chama-se a atenção, de maneira bastante ostensiva, para os elementos separados nos quais o objeto pode ser analisado. Tornando possível a formação da imagem ponto-a-ponto e o registro de coisas pequenas demais para serem vistas a olho nu, e também grandes demais, rápidas demais, lentas demais, etc., somos levados a crer que, no final das contas, tudo pode ser percebido dessa maneira. Disso vem a ideia de que não há nada que também não possa ser concebido como constituído de tais elementos localizados. Desse modo, a abordagem mecanicista foi grandemente encorajada pelo desenvolvimento da lente fotográfica. Prosseguimos então considerando um novo instrumento chamado holograma. Conforme explicamos no Capítulo 6, este faz um registro fotográfico do padrão de interferência de ondas luminosas que provêm de um objeto. O novo aspecto-chave desse registro é que cada parte dele contém informações sobre todo o objeto (de modo que não há nenhuma correspondência ponto-a-ponto entre objeto e imagem registrada). Isto é, pode-se dizer que a forma e a estrutura do objeto inteiro estão dobradas dentro de cada região do registro fotográfico. Quando se ilumina qualquer dessas regiões, essa forma e essa estrutura são então desdobradas, fornecendo novamente uma imagem identificável do objeto todo. Propusemos que uma nova noção de ordem acha-se envolvida aqui à qual chamamos de ordem implicada (de uma raiz latina que quer dizer "envolver" ou "dobrar para dentro"). Em termos da ordem implicada, pode-se dizer que tudo está envolvido ou dobrado dentro de tudo. Isto contrasta com a ordem explicada, que é hoje dominante na física, e na qual as coisas estão desdobradas, no sentido de que cada uma ocupa apenas a sua própria região particular do espaço (e do tempo), exteriormente às regiões pertencentes às outras coisas. O valor do holograma nesse contexto é que ele pode nos ajudar a fazer com que a nossa atenção se volte para essa noção de ordem de uma maneira sensivelmente perceptível; mas, é claro, o holograma é apenas um instrumento cuja função é fazer um registro estático (ou "instantâneo") dessa ordem. A própria ordem efetiva que foi registrada dessa maneira está no complexo movimento de campos eletromagnéticos, sob a forma de ondas luminosas. Esse movimento das ondas luminosas está presente em toda a parte e, em princípio, ele dobra o universo inteiro do espaço (e do tempo) em cada região (como pode ser demonstrado, em qualquer uma dessas regiões, posicionando-se nela um olho ou um telescópio, os quais "desdobrarão" esse conteúdo). Como assinalamos no Capítulo 6 esse dobramento e esse desdobramento têm lugar não apenas no movimento do campo eletromagnético mas também no de outros campos, como no eletrônico, no protônico, no das ondas sonoras, etc. Já existe toda uma multidão desses campos que são conhecidos, e um certo número de outros mais, até agora desconhecidos e que poderão ser descobertos mais tarde. Além disso, para se aproximar desse movimento usa-se apenas a concepção clássica dos campos (que é geralmente utilizada para explicar como funciona o holograma). Mas, de maneira mais precisa, esses campos obedecem a leis mecânico-quânticas, que implicam as propriedades de descontinuidade e de não localidade, que já mencionamos (e que discutiremos novamente mais adiante neste capítulo). Como veremos mais tarde, até mesmo as leis quânticas podem ser apenas abstrações de leis ainda gerais, das quais somente alguns vagos contornos podem ser vistos agora. Desse modo, a totalidade do movimento de dobramento e desdobramento pode ir imensamente além do que tem-se revelado até agora às nossas observações. No Capítulo 6, chamamos essa totalidade de holomovimento. Nossa proposta básica foi então a de que aquilo que é é o holomovimento, e a de que tudo deve ser explicado em termos de formas derivadas desse holomovimento. Embora todo o conjunto de leis que governam sua totalidade seja desconhecido (e, na verdade, provavelmente incogniscível), no entanto admite-se que essas leis sejam tais que a partir delas podem ser abstraídas subtotalidades de movimento relativamente autônomas e independentes (p. ex., campos, partículas, etc.) que apresentam uma certa recorrência e estabilidade em seus padrões básicos de ordem e medida. Essas subtotalidades podem então ser investigadas, cada uma por si só, sem que tenhamos de conhecer primeiro todas as leis do holomovimento. Isto implica, é claro, que não devemos considerar o que encontramos em tais investigações como tendo uma validade absoluta e final, mas, antes, precisamos estar sempre prontos para descobrir os limites de independência de qualquer estrutura de lei relativamente autônoma, e a partir daí, continuar a procurar novas leis que possam referir-se a domínios desse tipo relativamente autônomos e ainda mais amplos. Até agora temos contrastado as ordens implicada e explicada, tratando-as como separadas e distintas, mas conforme foi sugerido no Capítulo 6, a ordem explicada pode ser vista como um caso particular ou distinto de um conjunto mais geral de ordens implicadas, das quais se pode derivála. O que distingue a ordem explicada é o fato de que aquilo que é então derivado é um conjunto de elementos recorrentes e relativamente estáveis que são exteriores entre si. Este conjunto de elementos (p. ex., campos e partículas) fornece então a explicação daquele domínio de experiência para o qual a ordem mecanicista dá um tratamento adequado. Porém, na abordagem mecanicista predominante, esses elementos, que se supõe sejam separada e independentemente existentes, são tomados como constituindo a realidade básica. A tarefa da ciência é, pois, começar dessas partes e derivar todas as totalidades mediante abstração explicando-as como resultados de interações entre as partes. Quando se opera, pelo contrário, em termos da ordem implicada, começa-se com a totalidade indivisa do universo, sendo a tarefa da ciência derivar as partes abstraindo-as do todo, explicando-as como aproximadamente separáveis, estáveis e recorrentes; porém, elementos externamente relacionados formam subtotalidades relativamente autônomas, que devem ser descritas em termos de uma ordem explicada. 3. A ordem implicada e a estrutura geral da matéria Prosseguiremos agora dando uma explicação mais detalhada de como a estrutura geral da matéria pode ser entendida em termos da ordem implicada. Para fazê-lo, começaremos considerando mais uma vez o dispositivo que discutimos no Capítulo 6, e que serviu como analogia, ilustrando certos aspectos essenciais da ordem implicada. (É preciso enfatizar, porém, que se trata apenas de uma analogia e que, como será ressaltado posteriormente com mais detalhes, sua correspondência com essa ordem é limitada.) Esse dispositivo consiste em dois cilindros de vidro concêntricos, com um fluido altamente viscoso, como a glicerina, entre eles. Seu arranjo é tal que o cilindro externo pode ser girado bem lentamente, de modo que seja desprezível a difusão do fluido viscoso. Uma gotícula de tinta é colocada sobre o fluido, fazendo-se então girar o cilindro externo. A gotícula é arrastada, alongando-se até se transformar num filete delgado que, finalmente, torna-se invisível. Quando o cilindro é


girado no sentido oposto, a forma de filete retrocede e, de repente, torna-se de novo visível como uma gotícula, essencialmente aquela mesma que no começo lá estava. Vale a pena refletir com cuidado sobre o que de fato acontece no processo acima descrito. Primeiro, consideremos um elemento de fluido. As partes situadas em posições onde o raio é maior movimentar-se-ão mais rapidamente do que aquelas onde os raios são menores. Tal elemento será portanto deformado, e isto explica por que ela finalmente se estica formando um longo filete. Ora, a gotícula de tinta consiste num agregado de partículas de carbono que, inicialmente, estão suspensas nesse elemento de fluido. À medida que o elemento é arrastado, as partículas de tinta serão levadas com ele. O conjunto de partículas estender-se-á ao longo de um volume tão grande que sua densidade cairá abaixo do limiar mínimo de visibilidade. Quando o movimento é revertido, então (como se sabe das leis físicas que governam os meios viscosos) cada parte do fluido reconstitui o seu trajeto, de modo que, finalmente, o elemento filiforme de fluido retrocede à sua forma original. Ao fazê-lo, ele transporta consigo as partículas de tinta, e consequentemente estas também acabam se juntando até se tornar suficientemente densas para atravessarem o limiar da perceptibilidade, emergindo mais uma vez como gotículas visíveis. Quando as partículas de tinta são arrastadas formando um longo fio, pode-se dizer que elas foram dobradas para dentro da glicerina, como se poderia dizer que um ovo pode ser dobrado dentro de um bolo. Naturalmente, a diferença está no fato de que a gotícula pode ser desdobrada revertendo-se o movimento do fluido, enquanto que não há meios de desdobrar o ovo, pois o material que o constitui sofre uma mistura difusiva irreversível. A analogia desse dobramento e desdobramento com a ordem implicada introduzida em associação com o holograma é muito boa. Para desenvolver ainda mais essa analogia, consideremos duas gotículas de tinta bem próximas uma da outra, e, para facilitar a visualização, vamos supor que as partículas de tinta de uma gotícula são vermelhas, ao passo que as da outra são azuis. Se for então girado o cilindro externo, cada um dos dois elementos de fluido distintos, nos quais as partículas de tinta estão suspensas, serão esticados na forma de um fio e ambos, embora permaneçam separados e distintos, se entrelaçarão formando um padrão complexo e demasiadamente fino para ser perceptível pelo olho (mais ou menos como o padrão de interferência que é gravado no holograma, o qual, no entanto, possui uma origem muito diferente). As partículas de tinta em cada gotícula serão evidentemente levadas pelos movimentos do fluido, mas cada partícula permanece em seu próprio filete de fluido. Finalmente, porém, em qualquer região que seja suficientemente grande para ser visível ao olho, partículas vermelhas de uma gotícula e partículas azuis da outra serão vistas entremesclando-se, aparentemente ao acaso. No entanto, quando os movimentos do fluido forem revertidos, cada elemento filiforme de fluido retrocederá sobre si mesmo, até que, finalmente, ambos se juntam mais uma vez, em regiões nitidamente separadas. Se alguém fosse capaz de observar mais de perto o que está acontecendo (p. ex., com um microscópio), veria partículas vermelhas e azuis que estavam próximas umas das outras começando a se separar, enquanto que outras partículas, de uma mesma cor e que estavam distantes umas das outras, começariam a se juntar. É quase como se partículas distantes de uma certa cor "soubessem" que tinham um destino comum, separado do destino das partículas da outra cor, das quais estavam próximas. Na verdade, não há nesse caso nenhum "destino". De fato, explicamos mecanicamente tudo o que aconteceu, por meio dos complexos movimentos dos elementos de fluido em que as partículas de tinta estão suspensas. Mas temos de recordar aqui que esse dispositivo é apenas uma analogia destinada a ilustrar uma nova noção de ordem. Para permitir que essa nova noção se destaque com nitidez, é necessário começar focalizando nossa atenção nas partículas de tintas isoladas, pondo de lado as considerações sobre o fluido no qual elas estão suspensas, pelo menos por enquanto. Quando os conjuntos de partículas de tinta de cada gotícula tiverem sido arrastados até ficarem distribuídos num fio invisível, de modo que partículas de ambas as cores se entremesclem, pode-se, não obstante, dizer que enquanto ensemble, cada conjunto é, de certo modo, distinto do outro. Essa distinção não é, em geral, evidente aos sentidos, mas apresenta uma certa relação com a situação total de onde provieram os ensembles. Essa situação inclui os cilindros de vidro fluido viscoso e seus movimentos, e a distribuição original das partículas de tinta. Pode-se dizer então que cada partícula de tinta pertence a um certo ensemble distinto, e que está vinculada com a outra nesse mesmo ensemble por força de uma necessidade global, inerente a essa situação total, que pode levar todo o conjunto para um fim comum (isto é, reconstituir a forma de uma gotícula). No caso desse dispositivo, a necessidade global opera mecanicamente, conforme o movimento do fluido, de acordo com certas leis bem-conhecidas da hidrodinâmica. No entanto, como indicamos anteriormente, acabaremos por abandonar essa analogia mecânica e prosseguiremos considerando o holomovimento. No holomovimento, também há uma necessidade global (que, no Capítulo 6, chamamos de "holonomia"), mas suas leis não são mais mecânicas. Em vez disso, como indicamos na seção 2 deste Capítulo, suas leis serão, numa primeira aproximação, as da teoria quântica, embora, falando mais precisamente, vão até mesmo além destas, por caminhos que no presente são apenas vagamente discerníveis. Não obstante, certos princípios de distinção semelhantes predominarão no holomovimento, como na analogia do dispositivo feito de cilindros de vidro. Isto é, ensembles de elementos que (86) entremesclam ou se interpenetram no espaço podem, não obstante, ser distinguidos, mas somente no contexto de certas situações totais em que os membros de cada ensemble estão relacionados por meio da força de uma necessidade global, inerente a essas situações, que pode juntá-los de uma maneira especificável. Agora que estabelecemos um novo tipo de distinção de ensembles que estão conjuntamente dobrados no espaço, podemos ir adiante e colocar essas distinções numa ordem. A noção mais simples de ordem é a de uma sequência ou sucessão. Começaremos com essa ideia simples e a desenvolveremos depois em noções de ordem muito mais complexas e sutis. Como mostramos no Capítulo 5, a essência de uma ordem simples, sequencial, está na série de relações entre elementos distintos: A:B : :B : C : : C :D . . . Por exemplo, se A representa um segmento de uma linha, B o segmento seguinte, etc., a sequencialidade de segmentos da linha segue-se do conjunto de relações acima. Voltemos agora à nossa analogia da tinta-no-fluido e suponhamos que inserimos no fluido um grande número de gotículas, colocadas perto uma da outra e distribuídas em forma de linha (desta vez não iremos supor cores diferentes). Vamos rotulá-las com as letras A, B, C, D.... A seguir fazemos o cilindro externo girar muitas vezes, de modo que cada uma das gotículas dê origem a um ensemble de partículas de tinta, dobradas numa região do espaço tão ampla que partículas provenientes de todas as gotículas se entremesclem. Rotulamos os ensembles sucessivos de A', B', C', D'.... É claro que, num certo sentido, toda uma ordem linear foi dobrada dentro do fluido. Essa ordem pode ser expressa pelas relações A' : B' : : B' : C: : C : D' É uma ordem que não se mostra aos sentidos. Todavia, sua realidade pode ser demonstrada revertendo-se o movimento do fluido, de modo que os ensembles A', B', C', D'... desdobrar-se-ão para dar origem à série de gotículas originais linearmente distribuídas, A, B, C, D . . . .No caso acima, tomamos uma ordem explicada preexistente, consistindo em ensembles de partículas de tinta em gotículas distribuídas ao longo de uma linha, e a transformamos numa ordem de ensembles dobrados, que é, num certo sentido fundamental, semelhante ao primeiro. Consideraremos em seguida um tipo de ordem mais sutil, não derivável de uma tal transformação. Suponha agora que inserimos uma gotícula de tinta, A, e giramos o cilindro externo n vezes. Inserimos então uma segunda gotícula de tinta, B, no mesmo lugar, e novamente giramos o cilindro n vezes. Continuamos esse procedimento com outras gotículas, C, D, ú .... Os ensembles resultantes de partículas de tinta, a, b, c, d, e..., diferirão agora de uma nova maneira, pois, quando o movimento do fluido é revertido, os ensembles sucessivamente juntar-se-ão para formar gotículas numa ordem oposta àquela em que foram colocadas. Por exemplo, num certo estágio as partículas do ensemble d juntar-se-ão (após o que serão novamente arrastadas ao longo de um fio). O mesmo acontecerá a seguir com as partículas do c, depois com as do b, etc. Vêse claramente a partir disso que o ensemble d está relacionado com o c assim como o c está com o b, e assim por diante. Portanto, esses


ensembles formam uma certa ordem sequencial. Em nenhum sentido, porém, essa é uma transformação de uma ordem linear no espaço (como foi a da sequência A', B', C', D'.... que consideramos antes, pois em geral só um desses ensembles desdobrar-se-á por vez; quando qualquer um deles estiver desdobrado, todos os outros ainda estarão dobrados. Em poucas palavras, temos uma ordem que não pode, toda ela, tornar-se explicada de uma só vez, e que, no entanto, é real, como pode ser revelado quando sucessivas gotículas tornam-se visíveis à medida que o cilindro é girado. Chamamos a isso de ordem intrinsecamente implicada, para distingui-la de uma ordem que pode estar dobrada, mas que é capaz de desdobrar-se de uma só vez numa única ordem explicada. Portanto, temos aqui um exemplo que nos mostra, conforme estabelecemos na seção 2, como uma ordem explicada é um caso particular de um conjunto mais geral de ordens implicadas. Continuamos agora a combinar ambos os tipos de ordem acima descritos. Primeiro, inserimos uma gotícula A numa certa posição e giramos o cilindro n vezes. Inserimos então uma gotícula B numa posição ligeiramente diferente e giramos o cilindro mais n vezes (de modo que A tenha sido dobrada, isto é, envolvida por 2n voltas). Depois inserimos C mais adiante ao longo da linha AB e giramos mais n vezes, de maneira que A fica dobrada por 3n voltas, B por 2n voltas, e C por n voltas. Prosseguimos assim dobrando um grande número de gotículas. Movimentamos então o cilindro bem rapidamente no sentido oposto. Se a velocidade de emergência das gotículas for maior que o tempo mínimo de resolução do olho humano, o que veremos é aparentemente uma partícula movimentando-se continuamente e cruzando o espaço. Tal dobramento e desdobramento na ordem implicada pode evidentemente fornecer, por exemplo, um novo modelo do elétron, muito diferente daquele apresentado pela atual noção mecanicista de uma partícula que existe a cada momento apenas numa pequena região do espaço e que muda de posição continuamente com o tempo. O essencial nesse novo modelo é que o elétron passa a ser entendido mediante um conjunto total de ensembles envolvidos, geralmente não localizados no espaço. Em qualquer dado momento, um desses ensembles pode ser desdobrado e, portanto, localizado, mas no momento seguinte, este é dobrado para ser substituído por aquele que vem depois. A noção de continuidade da existência é aproximada da noção de uma recorrência muito rápida de formas semelhantes, transformando-se de maneira simples e regular (assim como uma roda de bicicleta girando rapidamente dá a impressão de um disco sólido em vez de uma sequência de raios em rotação). É claro que, mais fundamentalmente, a partícula é apenas uma abstração que se manifesta aos nossos sentidos. O que é é sempre uma totalidade de ensembles, todos eles conjuntamente presentes, numa série ordenada de estágios de dobramento e desdobramento, que se entremesclam e interpenetram uns nos outros, em princípio por toda a parte em todo o espaço. Além disso, é evidente que poderíamos ter dobrado um número qualquer desses "elétrons", cujas formas ter-se-iam misturado e interpenetrado na ordem implicada. No entanto, à medida que essas formas se desdobrassem e se manifestassem aos nossos sentidos, elas surgiriam como um conjunto de "partículas" nitidamente separadas umas das outras. A distribuição dos ensembles poderia ter sido tal que essas manifestações à semelhança de partículas aparecessem "movimentando-se" independentemente em linhas retas, ou mesmo ao longo de trajetos curvos mutuamente relacionados e dependentes, como se houvesse uma força de interação entre elas. Uma vez que a física clássica, tradicionalmente, procura explicar tudo em termos de sistemas de partículas interagentes, é claro que, em princípio, poder-se-ia igualmente bem tratar todo o domínio que é corretamente abrangido por esses conceitos clássicos em termos do nosso modelo de sequências ordenadas de ensembles de dobramento e desdobramento. O que estamos propondo aqui é que no domínio quântico esse modelo é muito melhor do que a noção clássica de um conjunto de partículas interagentes. Assim, embora sucessivas manifestações localizadas de um elétron, por exemplo, possam estar muito próximas entre si, de modo que se aproximem de um rastro contínuo, não é necessário que isso seja sempre assim. Em princípio, pode-se admitir descontinuidades nos rastros manifestados - e essas descontinuidades podem, é claro, fornecer a base para uma explicação de como, conforme afirmou-se na seção 2, um elétron é capaz de ir de um estado a outro sem passar por estados intermediários. Naturalmente, isso é possível porque a "partícula" é somente uma abstração de uma totalidade estrutural muito maior. Essa abstração é o que se manifesta aos nossos sentidos (ou instrumentos), mas evidentemente não há razão para haver movimento contínuo (ou, na verdade, existência contínua). Em seguida, se o contexto total do processo for alterado, poderão surgir modos de manifestação inteiramente novos. Assim, voltando à analogia da tinta-no-fluido, se os cilindros forem mudados, ou se forem colocados obstáculos no fluido, a forma e a ordem de manifestação serão diferentes. Uma tal dependência - a dependência, em relação à situação total, daquilo que se manifesta - observação - possui um estreito paralelo com um aspecto que também mencionamos na seção 2, isto é, que de acordo com a teoria quântica, os elétrons podem exibir propriedades que se assemelham às de partículas ou às de ondas (ou às de algo intermediário), em conformidade com a situação total onde eles existem e podem ser observados experimentalmente. O que foi dito até agora indica que a ordem implicada oferece, de um modo geral, uma explicação muito mais coerente das propriedades quânticas da matéria do que a ordem mecanicista tradicional. O que estamos propondo aqui é que a ordem implicada seja, portanto, considerada como fundamental. Todavia, para entender plenamente essa proposta, é necessário contrastá-la cuidadosamente com o que está subentendido numa abordagem mecanicista baseada na ordem explicada; pois, mesmo em termos desta última abordagem, pode-se admitir naturalmente que, pelo menos num certo sentido, o dobramento e o desdobramento podem ocorrer em várias situações específicas (p. ex., como no caso do que acontece com a gotícula de tinta). Porém, esse tipo de situação não é visto como tendo uma importância fundamental. Tudo que é primário, universal, e dotado de existência independente é considerado expressável numa ordem explicada, em termos de elementos que estão externamente relacionados (e supõe-se usualmente que estes sejam partículas, ou campos, ou alguma combinação de ambos). Toda vez que se verifica a ocorrência efetiva do dobramento e do desdobramento, admite-se que, em última instância, esses podem ser explicados em termos de uma ordem explicada subjacente por meio de uma análise mecânica mais profunda (como, de fato, acontece com o dispositivo da gotícula de tinta). Nossa proposta de começar com a ordem implicada como básica significa, então, que aquilo que é primário, universal e dotado de existência independente tem de ser expresso em termos dessa ordem. Portanto, estamos sugerindo que a ordem implicada é que é autonomamente ativa, enquanto que, como indicamos antes, a ordem explicada flui de uma lei da ordem implicada, sendo, pois, secundária, derivada e apropriada somente em certos contextos limitados. Ou, em outras palavras, as relações que constituem a lei fundamental estão entre as estruturas dobradas que se entrelaçam e interpenetram umas às outras, por toda a parte em todo o espaço, e não entre as formas abstraídas e separadas que se manifestam aos sentidos (e aos nossos instrumentos).Qual é então o significado do aparecimento do "mundo manifesto", aparentemente independente e existente por si mesmo, na ordem explicada? A resposta a esta pergunta é indicada pela raiz da palavra "manifesto", que vem do latim manus, que significa "mão". Essencialmente, o que é manifesto é o que se pode segurar com a mão - algo sólido, tangível e visivelmente estável. A ordem implicada tem sua base no holomovimento, o qual, como já vimos, é vasto, fecundo e se acha num estado de fluxo interminável de dobramento e desdobramento, com leis a maioria das quais apenas vagamente conhecidas, e que talvez sejam, em última análise, até mesmo incognoscíveis em sua totalidade. Logo, ele não pode ser apreendido pelos sentidos (ou por nossos instrumentos) como algo sólido, tangível e estável. Não obstante, como foi indicado anteriormente, a lei global (holonomia) pode ser suposta tal que, numa certa subordem, dentro de todo o conjunto da ordem implicada, há uma totalidade de formas que possuem um tipo aproximado de recorrência, estabilidade e


separabilidade. Evidentemente, essas formas são capazes de aparecer como os elementos relativamente sólidos, tangíveis e estáveis que elaboram o nosso "mundo manifesto". A subordem especial e distinta acima indicada, que é a base da possibilidade desse mundo manifesto, é então, com efeito, aquilo que se entende por ordem explicada. Podemos, sempre por conveniência, retratar a ordem explicada, ou imaginá-la, ou representá-la para nós mesmos, como a ordem presente aos nossos sentidos. O fato de que essa ordem é, na verdade, mais ou menos aquela que se apresenta aos nossos sentidos deve, porém, ser explicado. Isso só pode ser feito quando trazemos a consciência ao nosso "universo do discurso" e mostramos que a matéria em geral e a consciência em particular podem, pelo menos em certosentido, ter em comum essa ordem explicada (manifesta). Essa questão será mais detalhadamente explorada quando discutirmos a consciência, nas seções 7 e 8. 4. A teoria quântica como indicação de uma ordem implicada multidimensional Até agora temos apresentado a ordem implicada como um processo de dobramento e desdobramento que ocorre no espaço tridimensional ordinário. No entanto, como assinalamos na seção 2, a teoria quântica possui um tipo fundamentalmente novo de relação não-local, que pode ser descrito como uma conexão não causal de elementos distantes entre si, a qual entra em cena no experimento de Einstein, Podolsky e Rosen. (6) Para os nossos propósitos, não é necessário entrar em detalhes técnicos no que diz respeito a essa relação não-local. Tudo o que é importante aqui é que se descobre, mediante um estudo das implicações da teoria quântica, que a análise de um sistema total num conjunto de partículas independentemente existente mas interagente colapsa descortinando uma via inteiramente nova. De fato, descobre-se, tanto a partir de uma consideração do significado das equações matemáticas como a partir dos resultados das experiências efetivas, que as várias partículas têm de ser consideradas, literalmente, como projeções de uma realidade de dimensão mais elevada,* que não podem ser explicadas em termos de qualquer tipo de força de interação entre elas. (7) *[Esta expressão, higher-dimensional, que David Bohm ainda utilizará algumas vezes mais adiante, é uma generalização das palavras que dão o número de dimensões de um espaço: two-dimensional, three-dimensional, etc. (N. do T.)] Tanque Câmaras de televisão Figura 7.1 Podemos obter uma útil apreensão intuitiva do significado que atribuímos à noção de projeção considerando o seguinte dispositivo. Comecemos com um tanque retangular cheio de água e com paredes transparentes (veja a Figura 7.1). Suponha ainda que há duas câmaras de televisão, A e B, focalizadas no que está ocorrendo na água (p. ex., um peixe nadando) como é visto através de duas paredes que fazem ângulos retos uma com a outra. Agora, suponha que as imagens de televisão correspondentes sejam visíveis nas telas A e B, em outra sala. Aquilo que veremos nessas telas é certa relação entre as imagens que nelas aparecem. Por exemplo, na tela A podemos ver a imagem de um peixe, e na tela B veremos outra imagem dele. Em qualquer dado momento, cada imagem, de maneira geral, parecerá diferente da outra. Não obstante, as diferenças estarão relacionadas, no sentido de que quando se vê uma imagem executar certos movimentos vê-se também que a outra executa movimentos correspondentes. Além disso, o conteúdo que é visto principalmente numa das telas passará para outra, e vice-versa (p. ex., quando um peixe que inicialmente se achava de frente para a câmara A vira num ângulo reto, a imagem que antes estava em A agora é encontrada em B). Assim, em todo os instantes, o conteúdo da imagem numa das telas estará correlacionado com, e refletirá, o conteúdo da outra. Naturalmente, sabemos que as duas imagens não se referem a realidades existentes independentemente, embora interagentes (em relação às quais, por exemplo, poder-se-ia dizer que uma imagem "causa" mudanças na outra). Em vez disso, elas se referem a uma única realidade, que é a base comum de ambas (e isso explica a correlação de imagens sem que se precise admitir que elas se afetam entre si de maneira causai). Essa realidade é de uma dimensionalidade superior às das imagens separadas nas telas; ou, em outras palavras, as imagens nas telas são projeções (ou facetas) bidimensionais de uma realidade tridimensional. Num certo sentido, essa realidade tridimensional retém essas projeções bidimensionais dentro de si. Porém, uma vez que essas projeções existem somente como abstrações, a realidade tridimensional não é nenhuma delas, mas, sim, é algo mais, algo de uma natureza que está além de ambas.O que estamos propondo aqui é que a propriedade quântica de uma relação não-local, não-causal, entre elementos distantes pode ser entendida por meio de uma extensão da noção acima descrita. Isto é, podemos ver cada uma das "partículas" que constituem um sistema como uma projeção de uma realidade de "dimensão mais elevada", e não como uma partícula separada, existindo conjuntamente com todas as outras num espaço comum tridimensional. Por exemplo, no experimento de Einstein, Podolsky e Rosen, anteriormente mencionado, cada um dos dois átomos que inicialmente se combinam para formar uma única molécula deve ser considerado como projeção tridimensional de uma realidade hexadimensional. Isso pode ser demonstrado experimentalmente desintegrando-se a molécula e depois observando os dois átomos após se separarem e ficarem bem distantes um do outro, de modo que não interajam e, portanto, não tenham quaisquer conexões causais. O que efetivamente se verifica é que o comportamento dos dois átomos está correlacionado de uma maneira um tanto semelhante àquela das duas imagens de televisão do peixe, conforme descrevemos mais acima. Desse modo, (como pode de fato, ser mostrado suplementarmente graças a uma consideração mais cuidadosa da forma matemática das leis quânticas aqui envolvidas), cada elétron age como se fosse uma projeção de uma realidade de dimensão mais elevada. Sob certas condições, (8) as duas projeções tridimensionais correspondentes aos dois átomos podem apresentar uma relativa independência de comportamento. Quando essas condições forem satisfeitas, será uma boa aproximação tratar ambos os átomos como partículas relativamente independentes mas interagentes, ambas no mesmo espaço tridimensional. De um modo mais geral, porém, os dois átomos exibirão a típica correlação nãolocal de comportamento que implica o fato de que, no fundo, eles são apenas projeções tridimensionais do tipo acima descrito. Um sistema constituído de N "partículas" é então uma realidade 3N-dimensional, da qual cada "partícula" é uma projeção tridimensional. Sob as condições ordinárias de nossa experiência, essas projeções estarão suficientemente próximas de independência, de modo que será uma boa aproximação tratá-las da maneira como usualmente o fazemos, como um conjunto de partículas separadamente existentes, todas no mesmo espaço tridimensional. Sob outras condições, essa aproximação não será adequada. Por exemplo, a baixas temperaturas um agregado de elétrons revela uma nova propriedade de supercondutividade, na qual desaparece a resistência elétrica, de modo que a corrente elétrica pode fluir indefinidamente. Isto se explica mostrando-se que os elétrons entram num diferente tipo de estado, onde deixam de ser relativamente independentes. Em vez disso, cada elétron age como uma projeção de uma única realidade de dimensão mais elevada, e todas essas projeções partilham uma correlação não-local e não-causal, que é de tal natureza que eles contornam obstáculos "co-operativamente", sem serem espalhados ou difundidos, e portanto sem resistência. (Poder-se-ia comparar esse comportamento com um bale, enquanto que o comportamento usual dos elétrons pode ser comparado ao de uma agitada multidão de pessoas movimentando-se desordenadamente.) O que se conclui de tudo isso é que, basicamente, a ordem implicada tem de ser considerada como um processo de dobramento e desdobramento num espaço de dimensão mais elevada. Somente sob certas condições é que isso pode ser simplificado como um processo de


dobramento e desdobramento em três dimensões. De fato, até agora temos utilizado esse tipo de simplificação, não apenas com a analogia da tinta-no-fluído, mas também com o holograma. Contudo, esse tratamento é apenas uma aproximação, mesmo para o holograma. Na verdade, como já foi assinalado anteriormente neste capítulo, o campo eletromagnético, que é a base da imagem holográfica, obedece às leis da teoria quântica, e quando estas são adequadamente aplicadas ao campo, verifica-se que este também é, efetivamente, uma realidade multidimensional que somente sob certas condições pode ser simplificada como uma realidade tridimensional. Portanto, de uma maneira muito geral, a ordem implicada tem de ser estendida para uma realidade multidimensional. Em princípio, essa realidade é um todo ininterrupto, que inclui o universo inteiro com todos os seus "campos" e "partículas". Assim, temos de dizer que o holomovimento se dobra e se desdobra numa ordem multidimensional, cuja dimensionalidade é com efeito infinita. Porém, como já vimos, subtotalidades relativamente independentes podem, de um modo geral, ser abstraídas e consideradas como aproximadamente autônomas. Portanto, vemos agora que o princípio da relativa autonomia das subtotalidades, que introduzimos anteriormente como sendo fundamental para o holomovimento, estende-se à ordem multidimensional da realidade. 5. A cosmologia e a ordem implicada A partir de nossa consideração sobre como a estrutura geral da matéria pode ser entendida em termos da ordem implicada, chegamos agora a algumas novas noções de cosmologia, implícitas naquilo que aqui está sendo tratado. Para apresentar essas noções, primeiro observamos que quando a teoria quântica é aplicada aos campos (da maneira como discutimos na seção anterior), verifica-se que os possíveis estados de energia desse campo são discretos (ou quantizados). Esse estado do campo é, em alguns aspectos, uma excitação ondulatória que se espalha por uma ampla região do espaço. Não obstante, de algum modo também possui um quantum discreto de energia (e um momentum) proporcional à sua frequência, de maneira que, em outros aspectos, ele se comporta como uma partícula (9) (p. ex., um fóton). No entanto, ao se considerar, por exemplo, o campo eletromagnético no espaço vazio, verifica-se, a partir da teoria quântica, que cada um desses modos de excitação "onda-partícula" do campo possui aquilo que é chamado de energia do "ponto-zero", abaixo da qual ele não pode ir, mesmo quando sua energia cai para o mínimo possível. Se fossem somadas as energias de todos os modos de excitação "onda-partícula" em qualquer região do espaço, o resultado seria infinito, pois um número infinito de comprimentos de onda está presente. Porém, há boas razões para se supor que não é preciso continuar somando as energias correspondentes a comprimentos de onda cada vez menores. Pode haver um certo comprimento de onda mínimo possível, de modo que o número total de modos de excitação, e portanto a energia, seria finito. De fato, se forem aplicadas as regras da teoria quântica à teoria geral da relatividade atualmente aceita, verificar-se-á que o campo gravitacional também é constituído desses modos "onda-partícula", cada um com uma energia do "ponto-zero" mínima. Consequentemente, o campo gravitacional, e portanto a definição do que significa distância, deixa de ser completamente definido. À medida que continuamos a adicionar ao campo gravitacional excitações correspondentes a comprimentos de onda cada vez mais curtos, chegamos a um certo comprimento em que a medição do espaço e do tempo torna-se totalmente indefinível. Para além disso, toda a noção de espaço e tempo como a conhecemos desapareceria, dissolvendo-se em alguma coisa que atualmente não é especificável. Logo, seria razoável supor, pelo menos provisoriamente, que esse é o menor comprimento de onda que se deveria considerar como contribuindo para a energia do "ponto-zero" do espaço. Ao ser estimado, esse comprimento se revela como sendo da ordem de 10"33 cm. Este é um intervalo muito menor do que qualquer coisa que tenha sido sondada até hoje em experiências físicas (que chegaram até cerca de 10"17 cm aproximadamente). Se for computada a quantidade de energia presente em um centímetro cúbico de espaço, com esse comprimento de onda mínimo possível, constatar-se-á que o seu valor é muitíssimo maior do que a energia total de toda a matéria presente no universo conhecido. (10) O que essa proposta sugere é que aquilo que chamamos de espaço vazio contém um imenso background de energia, e que a matéria como a conhecemos é uma pequena excitação ondulatória "quantizada" presente no topo desse background, mais ou menos como uma pequena ondulação sobre um vasto oceano. Nas teorias físicas atuais, evita-se levar explicitamente em consideração esse background calculando-se apenas a diferença entre a energia do espaço vazio e a energia do espaço com matéria presente. Essa diferença é tudo o que conta na determinação das propriedades gerais da matéria, conforme elas se acham atualmente acessíveis à observação. Entretanto, desenvolvimentos ulteriores na física podem fazer com que seja possível sondar de uma maneira mais direta esse background acima descrito. Além disso, mesmo agora, esse vasto mar de energia pode desempenhar um papel fundamental no entendimento do cosmo como um todo.Quanto a isso, pode-se dizer que o espaço, dotado de tanta energia, está cheio e não vazio. As duas noções opostas de espaço - vazio e cheio - de fato alternaram-se continuamente no desenvolvimento das ideias filosóficas e físicas. Assim, na Grécia antiga, a escola de Parmênides e Zenão sustentava que o espaço é um plenum. Esta concepção opunha-se à de Demócrito, que foi talvez o primeiro a propor seriamente uma visão de mundo que concebia o espaço como um estado de vazio, isto é, o vácuo onde partículas materiais (p. ex., átomos) podem se mover livremente. A ciência moderna, de um modo geral, favoreceu esta última, a visão atomística, porém, durante o século dezenove, a primeira também foi seriamente levada em consideração em virtude da hipótese de um éter que preenche todo o espaço. A matéria, imaginada como constituída de formas especiais recorrentes, estáveis e separáveis, que se manifestavam no éter (tais como ondulações ou vórtices), seria transmitida através desse plenum, como se esse último fosse vazio. Uma noção semelhante é utilizada na física moderna. De acordo com a teoria quântica, um cristal no zero absoluto permite que os elétrons o atravessem sem sofrer espalhamento. Eles passam pelo cristal como se o espaço fosse vazio. Se a temperatura for aumentada, aparecem inomogeneidades, e estas espalham os elétrons. Se esses elétrons fossem utilizados para observar o cristal (isto é, focalizando-os com uma lente eletrônica para fazer uma imagem), justamente as inomogeneidades é que seriam visíveis. Pareceria então que as inomogeneidades teriam existência independente e que a maior parte do corpo do cristal não seria outra coisa que um puro nada. O que estamos sugerindo, então, é que aquilo que percebemos através dos sentidos como espaço vazio é, na verdade, o plenum, que é o fundamento para a existência de tudo, inclusive a de nós mesmos. As coisas que aparecem aos nossos sentidos são formas derivadas, e seu verdadeiro significado só pode ser entendido quando consideramos o plenum, onde elas são geradas e sustentadas, e no qual devem finalmente desaparecer. No entanto, esse plenum não deve mais ser concebido por meio da ideia de um simples meio material, tal como o éter, o qual seria visto como existindo e movimentando-se apenas num espaço tridimensional. Em vez disso, deve-se começar com o holomovimento, no qual há o imenso "mar" de energia descrito mais acima. Esse mar deve ser entendido em termos de uma ordem implicada multidimensional, ao longo das linhas esboçadas na seção 4, enquanto que todo o universo de matéria como geralmente o observamos deve ser tratado como um padrão de excitação comparativamente pequeno. Esse padrão é relativamente autônomo e dá origem a projeções aproximadamente recorrentes, estáveis e separáveis numa ordem de manifestação explicada tridimensional, que é mais ou menos equivalente à do espaço como normalmente o experimentamos. Tendo em mente tudo isso, consideremos a noção atual geralmente aceita de que o universo, como o conhecemos, originou-se naquilo que quase se poderia considerar como um ponto isolado no espaço e no tempo, a partir de um big-bang que ocorreu há uns dez bilhões de anos.* [Hoje já se admite que são, mais ou menos, quinze (N.R.)]


Em nossa abordagem, esse big-bang deve, na verdade, ser visto apenas como uma "pequena ondulação". Uma imagem interessante é obtida considerando-se que, no meio do atual oceano (isto é, na superfície da Terra), miríades de pequenas ondas ocasionalmente se juntam ao acaso, estando todas elas em relações de fase tais que terminam numa pequena região do espaço, gerando subitamente uma onda muito alta que aparece como que surgindo do nada. Talvez algo assim possa acontecer no imenso oceano de energia cósmica, criando um repentino pulso de onda, do qual teria nascido o nosso "universo". Esse pulso explodiria para o exterior e se fragmentaria em ondulações menores que se espalhariam ainda mais paira o exterior, constituindo assim o nosso "universo em expansão". Este traria o seu "espaço" dobrado dentro de si como uma ordem explicada e manifesta especialmente distinta." Em termos dessa proposta, segue-se que a atual tentativa de entender nosso "universo" como se ele existisse por si mesmo e independentemente do mar de energia cósmica pode, na melhor das hipóteses, funcionar de alguma maneira limitada (dependendo de até onde pode ser a ela aplicada a noção de uma subtotalidade relativamente independente). Por exemplo, os "buracos negros" podem nos conduzir a uma área em que o background cósmico de energia é importante. É claro que também pode haver muitos outros desses universos em expansão. Além disso, é preciso lembrar que mesmo esse vasto mar de energia cósmica só leva em conta o que acontece numa escala maior que o comprimento crítico de 10ö33 cm a que antes nos referimos. Mas esse comprimento é apenas um certo tipo de limite à aplicabilidade das noções ordinárias de espaço e tempo. Supor que não existe nada além desse limite seria, sem dúvida, muito arbitrário. Em vez disso, é bem provável que, além dele, haja um outro domínio, ou conjunto de domínios, sobre cuja natureza até agora temos pouca ou nenhuma ideia. O que vimos até aqui é uma progressão da ordem explicada para uma ordem implicada tridimensional simples, depois para uma ordem implicada multidimensional, e então para uma extensão desta ao imenso "mar" no qual ela é percebida como o espaço vazio. O próximo estágio pode bem nos levar a um enriquecimento e a uma extensão ainda maiores da noção de ordem implicada, para além do limite crítico de 10"33 cm acima mencionado; ou talvez possa nos levar a algumas noções basicamente novas que não poderiam ser compreendidas mesmo no âmbito dos possíveis desenvolvimentos ulteriores da ordem implicada. Não obstante, seja lá o que for possível em relação a isso, é claro que podemos admitir que o princípio da autonomia relativa de subtotalidades continua a ser válido. Qualquer subtotalidade, incluindo aquelas que vimos considerando até agora, pode até certo ponto ser estudada por si só. Assim, sem que pretendamos ter chegado sequer a um mero perfil de verdade absoluta e final, podemos, pelo menos por algum tempo, por de lado a necessidade de considerar o que pode estar além das imensas energias do espaço vazio, e continuar apresentando as implicações ulteriores da subtotalidade da ordem que a si própria se revelou até aqui. 6. A ordem implicada, a vida e a força da necessidade global Nesta seção, apresentaremos o significado da ordem implicada mostrando, em primeiro lugar, como ela possibilita a compreensão tanto da matéria inanimada como da vida, com base num único fundamento, comum a ambas, e depois prosseguiremos propondo uma certa forma mais geral para as leis da ordem implicada. Comecemos focalizando o crescimento de uma planta viva. Esse crescimento tem seu início numa semente, mas esta pouco ou nada contribui para a substância material efetiva da planta ou para a energia necessária para fazê-la crescer. Esta última vem quase que inteiramente do solo, da água, do ar e da luz solar. De acordo com as teorias modernas, a semente contém informações, na forma de ADN, e estas informações, de algum modo, "dirigem" o meio ambiente para formar uma planta correspondente. Em termos da ordem implicada, podemos dizer que até mesmo a matéria inanimada se mantém num processo contínuo semelhante ao crescimento das plantas. Desse modo, recordando o modelo tinta-no-fluido do elétron, vemos que essa "partícula" deve ser entendida como uma ordem de desdobramento, recorrente e estável, na qual uma certa forma passando por mudanças regulares manifesta-se repetidas vezes, mas tão depressa que parece existir continuamente. Isso pode ser comparado a uma floresta constituída de árvores que estão continuamente morrendo e sendo substituídas por novas. Se considerada numa longa escala de tempo, essa floresta pode ser igualmente vista como uma entidade cuja existência é contínua, mas que se altera lentamente. Portanto, quando entendidos por meio da ordem implicada, a matéria inanimada e os seres vivos são vistos, em certos aspectos fundamentais, como basicamente semelhantes em seus modos de existência. Quando a matéria inanimada é deixada entregue a si mesma o processo de dobramento e desdobramento acima descrito simplesmente reproduz uma forma similar de matéria inanimadaporém quando esta é "informada" pela semente, começa a produzir uma planta viva. Finalmente, esta última dá origem a uma nova semente, que permite a continuação do processo depois da morte da planta. À medida que a planta é formada, mantida e dissolvida pela troca de matéria e energia com seu meio ambiente, até que ponto podemos dizer que há uma nítida distinção entre o que é vivo e o que não é? Evidentemente, uma molécula de dióxido de carbono que atravessa o limite de uma célula entrando numa folha não se "torna viva" de repente, nem uma molécula de oxigênio "morre" subitamente ao ser liberada na atmosfera. Em vez disso, a própria vida tem de ser considerada como pertencendo, num certo sentido, a uma totalidade, que inclui planta e meio ambiente. Na verdade, pode-se dizer que a vida está dobrada na totalidade e que, mesmo quando não se manifesta, de alguma maneira se acha "implícita" naquilo que geralmente chamamos de uma situação na qual não há vida. Isso pode ser ilustrado considerando-se o ensemble de todos os átomos que estão agora no meio ambiente, mas que irão finalmente constituir uma planta que crescerá a partir de uma certa semente. É claro que esse ensemble, em certos aspectos fundamentais, é semelhante àquele considerado na seção 3, de partículas de tinta formando uma gotícula. Em ambos os casos, os elementos do ensemble são aglutinados, de modo a contribuir para um fim comum (num dos casos, uma gotícula de tinta; no outro, uma planta viva). Porém, o que foi dito acima não significa que a vida pode ser reduzida completamente a nada mais do que aquilo que provém da atividade de uma base governada apenas pelas leis da matéria inanimada (embora não neguemos que certos aspectos da vida possam ser entendidos dessa maneira). Em vez disso, estamos propondo que, assim como a noção do holomovimento foi enriquecida ao se passar da ordem implicada tridimensional para a multidimensional, e daí para o vasto "mar" de energia no espaço "vazio", podemos agora enriquecer ainda mais essa noção dizendo que, em sua totalidade, o holomovimento também inclui o princípio da vida. A matéria inanimada deve então ser vista como uma subtotalidade relativamente autônoma, na qual, pelo menos até onde o sabemos agora, a vida não se manifesta de maneira significativa. Isto é, a matéria inanimada é uma abstração secundária, derivada e particular do holomovimento (como também o seria a noção de uma "força vital" inteiramente independente da matéria). De fato, o holomovimento que é "vida implícita" é o fundamento tanto da "vida explícita" como da "matéria inanimada", e é esse fundamento que é primário, existente por si mesmo e universal. Assim, não fragmentamos a vida e a matéria inanimada, nem tentamos reduzir completamente aquela a um mero produto desta. Expressemos agora essa abordagem de um modo mais geral. O que é básico para a lei do holomovimento é, como vimos, a possibilidade de abstração de um conjunto de subtotalidades relativamentes autônomas. Podemos agora acrescentar que as leis de cada uma dessas subtotalidades abstraídas geralmente operam sob certas condições e limitações definidas apenas numa situação total correspondente (ou conjunto de situações semelhantes). Em geral, essa operação terá esses três aspectos fundamentais: 1. Um conjunto de ordens implicadas.


2. Um caso distinto especial do conjunto acima, que constitui uma ordem de manifestação explicada. 3. Uma relação geral (ou lei) que expressa uma força de necessidade que aglutina um certo conjunto dos elementos da ordem implicada, de tal modo que eles contribuem para um fim comum explicado (diferente daquele para o qual contribuirá um outro conjunto de elementos que se interpenetram e se entremesclam). A origem dessa força de necessidade não pode ser entendida unicamente em termos das ordens implicada e explicada pertencentes ao tipo de situação em questão. Em vez disso, nesse nível, tal necessidade tem de ser simplesmente aceita como inerente à situação global em discussão. Um entendimento de sua origem nos levaria a um nível mais profundo, mais abrangente, e mais interno de relativa autonomia, o qual, porém, também teria as suas ordens implicada e explicada, bem como uma força de necessidade correspondentemente mais profunda e mais interna, que realizaria a transformação de uma na outra. (12) Em resumo, estamos propondo que essa forma da lei de uma subtotalidade relativamente autônoma, que é uma generalização consistente de todas as formas que estudamos até agora, deve ser considerada como universal; e que em nosso trabalho subsequente examinaremos as implicações de uma tal noção, pelo menos por tentativas e de maneira provisória. 7. A consciência e a ordem implicada Pode-se dizer, a essa altura, que pelo menos alguns contornos das nossas noções de cosmologia e sobre a natureza geral da realidade foram esboçados (embora, é claro, "preencher" esse esboço com detalhes adequados exigiria uma grande dose de trabalho adicional, e grande parte desse trabalho ainda está para ser feito). Vejamos agora como a consciência pode ser entendida em relação a essas noções. Começamos propondo que, num certo sentido, a consciência (onde incluímos o pensamento, o sentimento, o desejo, a vontade, etc.) deve ser compreendida em termos da ordem implicada, juntamente com a realidade como um todo. Isto é, estamos sugerindo que a ordem implicada aplica-se tanto à matéria (viva e não-viva) como à consciência, e que ela pode, consequentemente possibilitar um entendimento da relação geral entre essas duas últimas, a partir do qual talvez possamos chegar a alguma noção de uma base comum para ambas (mais ou menos como foi igualmente sugerido na seção anterior, quando discutimos sobre a relação entre a matéria inanimada e a vida). Até agora, porém, tem-se mostrado extremamente difícil a tarefa de se obter um entendimento da relação entre matéria e consciência, e essa dificuldade tem raiz na diferença muito grande que há em suas qualidades básicas, conforme elas se apresentam em nossa experiência. Essa diferença foi expressa com grande clareza particularmente por Descartes, que descreveu a matéria como "substância extensa" e a consciência como "substância pensante". Evidentemente, Descartes entendia, por "substância extensa", algo composto de formas distintas existentes no espaço, numa ordem de extensão e separação basicamente semelhante àquela que temos chamado de explicada. Ao utilizar o termo "substância pensante", num contraste tão nítido com relação a "substância extensa", ele estava claramente sugerindo que as várias formas distintas que aparecem no pensamento não existem numa tal ordem de extensão e separação (isto é, algum tipo de espaço), mas numa ordem diferente, na qual a extensão e as separações não possuem importância fundamental. A ordem implicada tem justamente essa última qualidade, e portanto, num certo sentido, Descartes talvez estivesse antecipando que a consciência tem de ser entendida em termos de uma ordem mais próxima da implicada que da explicada. No entanto, quando começamos, como fez Descartes, com a extensão e a separação no espaço como algo primário para a matéria, então nada podemos ver nessa noção que possa servir como base para uma relação entre matéria e consciência, cujas ordens são tão diferentes. Descartes, claramente, entendeu essa dificuldade e de fato propôs resolvê-la por meio da ideia de que tal relação é possibilitada por Deus, que, estando fora e além da matéria e da consciência (ambas por Ele criadas), é capaz de dar a esta última "noções claras e distintas" que usualmente são aplicáveis à primeira. Desde então, a ideia de que Deus cuida dessa necessidade tem sido, em geral, abandonada, mas não se costuma notar que, sendo assim, a possibilidade de compreender a relação entre matéria e consciência caiu por terra. No entanto, neste capítulo mostramos, com alguns detalhes, que a matéria como um todo pode ser entendida em termos da noção de que a ordem implicada é a realidade imediata e primária (enquanto que a ordem explicada pode ser derivada, como um caso particular e distinto, da ordem implicada). A gestão que aqui surge é, então, se a "substância" real da consciência (como foi, num certo sentido, antecipado por Descartes) pode ou não ser entendida em termos da noção de que a ordem implicada é também sua realidade primária e imediata. Se a matéria e a consciência pudessem, desse modo, ser entendidas conjuntamente, em termos da mesma noção geral de ordem, estaria aberto o caminho para se compreender sua relação com base em algum fundamento comum. (13) Desse modo, chegaríamos ao germe de uma nova noção de totalidade ininterrupta, na qual a consciência não mais estará fundamentalmente separada da matéria. Consideremos agora qual a justificativa para a noção de que a matéria e a consciência têm em comum a ordem implicada. Primeiramente, notamos que a matéria em geral é, antes de mais nada, o objeto da nossa consciência. Todavia, como vimos no decorrer de todo este capítulo, várias energias, tais como a luz, o som, etc., estão continuamente dobrando informações que, em princípio, dizem respeito a todo o universo material, dentro de cada região do espaço. Por meio desse processo, tais informações podem, naturalmente, introduzir-se em nossos órgãos dos sentidos, prosseguindo pelo sistema nervoso até o cérebro. Num sentido mais profundo, toda a matéria em nossos corpos, desde o começo, de algum modo envolve em si o universo, isto é, dobra-o dentro de si. Será que é essa estrutura dobrada, constituída tanto de informações como de matéria (p. ex., no cérebro e no sistema nervoso), que primariamente se introduz na consciência? Consideremos em primeiro lugar a questão de saber se a informação se acha efetivamente dobrada nas células do cérebro. Alguma luz sobre essa questão é fornecida por certos trabalhos sobre a estrutura cerebral, notavelmente o de Pribram. (4) Pribram tem fornecido evidências que sustentam sua sugestão de que as memórias são geralmente registradas em todo o cérebro de tal modo que as informações concernentes a um dado objeto ou qualidade não são armazenadas numa célula em particular ou numa parte localizada do cérebro, mas, sim, que todas as informações estão dobradas sobre o todo. Esse armazenamento lembra, em sua função, um holograma, mas a estrutura real é muito mais complexa. Podemos então sugerir que quando o registro "holográfico" no cérebro é adequadamente ativado, a resposta é criar um padrão de energia nervosa que constitua uma experiência parcial semelhante àquela que em primeiro lugar produziu o "holograma". Mas também é diferente, visto que é menos detalhado, que memórias provenientes de muitos tempos diferentes podem fundir-se conjuntamente, e que memórias podem ser conectadas por associação e por pensamento lógico, dando uma certa ordem adicional a todo o padrão. Além disso, se ao mesmo tempo se está cuidando dos dados sensoriais, toda essa resposta de memória fundir-se-á, em geral, com a excitação nervosa que vem dos sentidos para dar origem a uma experiência global em que a memória, a lógica e a atividade sensorial combinam-se num todo nãoanalisável. É claro que a consciência é mais do que aquilo que foi descrito acima. Também envolve compreensão (awareness), atenção, percepção, ações de entendimento, e talvez ainda mais. Sugerimos no primeiro capítulo que todas essas faculdades devem ir além de uma resposta mecanicista (tal como aquela que o modelo holográfico da função cerebral por si só implicaria). Assim, ao estudá-las, podemos estar chegando mais perto da essência da real experiência consciente do que é possível fazê-lo apenas analisando padrões de excitação dos nervos sensoriais e como eles podem ser registrados na memória.


É difícil dizer muita coisa sobre faculdades tão sutis quanto essas. Porém, refletindo sobre o que acontece em certas experiências e prestando atenção a elas com muito cuidado, podem-se obter valiosos indícios. Considere, por exemplo, o que ocorre quando alguém está ouvindo música. Num dado momento, toca-se uma certa nota, mas muitas notas anteriores ainda estão "reverberando" na consciência. Uma cuidadosa atenção mostrará que é a presença e a atividade simultâneas de todas essas reverberações que é responsável pela sensação direta, e imediatamente percebida, de movimento, fluxo e continuidade. Ouvir um conjunto de notas tão separadas no tempo que não há qualquer reverberação destruirá por completo a sensação de um movimento total ininterrupto e vivo, que dá sentido e força àquilo que se ouve. Fica claro, portanto, que não se experimenta a realidade desse movimento total "agarrando-se" ao passado, com o auxílio de uma memória da sequência de notas, e comparando esse passado com o presente. Em vez disso, como se pode verificar prestando a elas uma atenção adicional, as "reverberações" que possibilitam uma tal experiência não são memórias, mas transformações ativas do que veio antes, nas quais se encontra não apenas uma sensação geralmente difusa dos sons originais, com uma intensidade que diminui de acordo com o tempo decorrido desde o momento em que foram captados pela audição, mas também várias respostas emocionais, sensações corpóreas, movimentos musculares incipientes, e a evocação de uma vasta gama de outros significados, frequentemente de grande sutileza. Pode-se assim obter uma sensação direta de como uma sequência de notas vai-se dobrando para dentro de muitos níveis de consciência, e de como, em qualquer dado momento, as transformações que fluem de muitas dessas notas dobradas se interpenetram e se entremesclam para dar origem a uma sensação imediata e primária de movimento. Essa atividade na consciência constitui evidentemente um notável paralelo com a atividade que propomos para a ordem implicada em geral. Assim, na seção 3, demos um modelo de elétron no qual, em qualquer instante, há um conjunto co-presente de ensembles diferentemente transformados, que se interpenetram e se entremesclam em seus vários graus de dobramento. Nesse dobramento há uma mudança radical, não apenas de forma mas também de estrutura, em todo o conjunto de ensembles (mudança essa a que chamamos, no Capítulo 6, de metamorfose); e, no entanto um certa totalidade de ordem nos ensembles permanece invariante, no sentido de que em todas essas mudanças é preservada uma semelhança de ordem sutil, mas fundamental. (15) Na música, há, como já vimos, uma transformação (de notas) basicamente semelhante, na qual se pode verificar que uma certa ordem também é preservada. A principal diferença nesses dois casos é que para o nosso modelo do elétron, uma ordem dobrada é apreendida no pensamento como a presença conjunta de muitos graus, diferentes mas inter-relacionados, de transformações de ensembles, enquanto que para a música a ordem implicada é sentida imediatamente como a presença conjunta de muitos graus, diferentes mas inter-relacionados, de transformações de tons e de sons. Nesta última, há uma sensação tanto de tensão como de harmonia entre as várias transformações co-presentes, e essa sensação é, de fato, o que é primário na apreensão da música em seu estado indiviso de movimento fluente.Ao ouvir música, estamos portanto percebendo diretamente uma ordem implicada. Evidentemente, essa ordem é ativa, no sentido de que flui continuamente em respostas emocionais, físicas, etc., que estão inseparáveis das transformações de que ela é essencialmente constituída. Uma noção semelhante pode ser aplicável à visão. Para evidenciá-la, considere a sensação de movimento que surge quando se olha para uma tela de cinema. O que efetivamente acontece é que uma série de imagens, ligeiramente diferentes umas das outras, é emitida sobre a tela. Se as imagens forem separadas por longos intervalos de tempo, não se obtém uma sensação de movimento contínuo, mas, em vez disso, vê-se uma série de imagens desconectadas, talvez acompanhadas por uma sensação de leves solavancos. Se, no entanto, as imagens estiverem suficientemente próximas (digamos, um centésimo de segundo), o que se tem é uma experiência direta e imediata, como se proviesse de uma realidade em contínuo movimento e fluência, indivisa e sem quebras. Essa questão pode ser ressaltada de uma forma ainda mais clara considerando-se uma conhecida ilusão de movimento produzida com o auxílio de um dispositivo estroboscópico, ilustrado na figura 7.2. Figura 7.2 Dois discos, A e B, encerrados num bulbo, podem emitir luz por meio de excitação elétrica. Faz-se com que a luz acenda e apague tão rapidamente que pareça contínua, mas a cada lampejo ajusta-se para que B sobrevenha pouco depois de A. O que, efetivamente, se experimenta é uma sensação de "movimento fluente" entre A e B, mas que paradoxalmente nada flui de B (ao contrário do que se esperaria se houvesse um processo real de fluxo). Isso significa que uma sensação de movimento fluente é experimentada quando, na retina, há duas imagens em posições vizinhas, uma das quais aparecendo pouco depois da outra. (Intimamente relacionado com isso está o fato de que uma fotografia "borrada" de um carro em alta velocidade, contendo uma sequência de imagens sobrepostas em posições ligeiramente diferentes, nos transmite uma sensação de movimento muito mais imediata e vívida do que uma imagem nítida, fotografada comuma câmara de alta velocidade.) Parece evidente que a sensação de movimento ininterrupto acima descrita é basicamente semelhante àquela que surge de uma sequência de notas musicais. A principal diferença entre a música e as imagens visuais, nesse caso, é que estas podem chegar a nós tão próximas umas das outras no tempo que não conseguem ser resolvidas na consciência. No entanto, é evidente que as imagens visuais devem passar também por uma transformação ativa à medida que vão sendo "dobradas" dentro do cérebro e do sistema nervoso (p. ex., elas dão origem a respostas emocionais, físicas e outras mais sutis, das quais pode-se estar apenas vagamente consciente, bem como a "imagens futuras", que, de certa forma, são semelhantes às reverberações nas notas musicais). Mesmo que seja pequena a diferença de tempo entre duas dessas imagens, os exemplos citados acima deixam claro que uma sensação de movimento é experimentada graças ao entremesclamento e à interpenetração das transformações co-presentes, à quais essas imagens devem dar origem à medida que penetram no cérebro e no sistema nervoso. Tudo isso sugere que, de um modo bem geral (e não simplesmente para o caso especial em que se ouve música), há uma semelhança básica entre a ordem de nossa experiência imediata de movimento e a ordem implicada, conforme expressa em termos de nosso pensamento. Dessa maneira, chegamos à possibilidade de um modo coerente de entender a experiência imediata do movimento em termos de nosso pensamento (com efeito, resolvendo assim o paradoxo de Zenão, relativo ao movimento). Para ver como isso acontece, considere como o movimento costuma ser pensado, em termos de uma série de pontos ao longo de uma linha. Suponhamos que num certo instante t uma partícula esteja numa posição x, e que num instante posterior t2 ela se encontre numa posição xr. Dizemos então que essa partícula está em movimento, e que há velocidade. Evidentemente, esse modo de pensar não reflete nem transmite de modo algum a sensação imediata de movimento que podemos ter, num dado instante, por exemplo, ao ouvir uma sequência de notas musicais reverberando na consciência (ou ao experimentar a percepção visual de um carro em alta velocidade). Em vez disso, tal modo de pensar é apenas uma simbolização abstrata do movimento, tendo com a realidade deste, uma relação semelhante à que existe entre uma partitura musical e a experiência efetiva da própria música. Se, como geralmente é feito, tomamos essa simbolização abstrata como uma fiel representação da realidade do movimento, ficamos enredados numa série de problemas confusos e basicamente insolúveis. Todos estes têm a ver com a imagem com que representamos o tempo, como se ele fosse uma série de pontos ao longo de uma linha, todos de algum modo presentes juntos, seja para nossa admiração conceitual ou talvez para a de Deus. Porém, nossa experiência efetiva é que, quando um dado momento, digamos f2, é presente e efetivo, um momento anterior, tal como fj, já é passado. Isto é, ele se foi, não existe mais, nunca voltará. Portanto, se dizemos que a velocidade de um determinado agora (em f2) é (x2 - xj/(t2 - f2), estamos tentando relacionar o que é (ou seja, x2 e tx) ao que não é (ou seja, x, e f). Podemos, é claro, fazer isso abstrata e simbolicamente (como é, de fato, a prática comum em ciência e matemática), mas o fato ulterior, que não é abrangido nesse simbolismo, é que a velocidade agora é ativa


agora (p. ex., determina como uma partícula atuará de agora emdiante, em si mesma, e em relação a outras partículas). Como entender a atividade presente de uma posição (Xj) que agora é não-existente e que se foi para sempre?Costuma-se pensar que esse problema é resolvido pelo cálculo diferencial. O que se faz aqui é supor que o intervalo de tempo Aí = í2- Í2 torna-se infinitamente pequeno, juntamente com Ax = x2 - xr A velocidade agora é definida como o limite da razão Ax/Aí, quando Aí tende para zero. Conclui-se então que o problema acima descrito deixa de existir, porque x2 e x2 são na verdade, tomados ao mesmo tempo. Desse modo eles podem estar conjuntamente presentes juntos e relacionados numa atividade que depende de ambos. No entanto, uma pequena reflexão mostra que esse procedimento é ainda tão abstrato e simbólico quanto o original, onde o intervalo de tempo era considerado finito. Portanto, não se tem nenhuma experiência imediata de um intervalo de tempo zero, nem se pode ver em termos de pensamento reflexivo o que isso possa significar. Mesmo enquanto formalismo abstrato, essa abordagem não é plenamente consistente num sentido lógico, nem possui uma faixa universal de aplicabilidade. De fato, aplica-se apenas na área de movimentos contínuos, e somente como um algoritmo técnico que calha ser correto para esse tipo de movimento. Porém como já vimos, de acordo com a teoria quântica o movimento não é fundamentalmente contínuo. Assim, mesmo enquanto algoritmo, o seu campo usual de aplicação limita-se a teorias expressas em termos de conceitos clássicos (isto é, na ordem explicada), na qual proporciona uma boa aproximação para efeitos de cálculo dos movimentos de objetos materiais. Entretanto, quando pensamos no movimento em termos da ordem implicada, (16) esses problemas não aparecem. Nessa ordem, o movimento é compreendido em termos de uma série de elementos que se interpenetram e se entremesclam em diferentes graus de dobramento, todos presentes juntos. A atividade desse movimento não apresenta, pois, nenhuma dificuldade, pois é uma consequência de toda essa ordem dobrada, e é determinada por relações entre elementos co-presentes, e não por relações entre elementos que existem e outros que não existem mais. Vemos então que, ao pensarmos em termos da ordem implicada, chegamos a uma noção de movimento que é logicamente coerente e que representa com propriedade nossa experiência imediata do movimento. Assim, a nítida ruptura entre o pensamento lógico abstrato e a experiência imediata concreta, que vem impregnando por tanto tempo a nossa cultura, não precisa mais ser mantida. Está criada a possibilidade para um movimento fluente e ininterrupto que vai da experiência imediata para o pensamento lógico, e vice-versa, e portanto, para acabar com esse tipo de fragmentação. Além disso, agora somos capazes de entender de uma maneira nova e mais consistente a noção que propomos sobre a natureza geral da realidade a de, que aquilo que é movimento. Na verdade, o que tende a nos dificultar o trabalho em termos dessa noção é que costumamos pensar no movimento da maneira tradicional, como uma relação ativa entre o que é e o que não é. Nossa noção tradicional concernente à natureza geral da realidade equivaleria, portanto, a dizer que o que é uma relação ativa entre que é e o que não é. Dizer isto é, no mínimo, confuso. Porém, em termos da ordem implicada, o movimento é uma relação entre certas fases daquilo que é e outras fases daquilo que é, que se acham em diferentes estágios de dobramento. Esta noção implica que a essência da realidade como um todo é a relação acima entre as várias fases em diferentes estágios de dobramento (em vez de ser, por exemplo, uma relação entre várias partículas e campos, todos eles explicados e manifestos). É claro que o movimento efetivo envolve mais do que a mera sensação intuitivaimediata de fluxo ininterrupto, que é o nosso modo de experimentar diretamente a ordem implicada. A presença de tal sensação de fluxo geralmente também implica que, no momento seguinte, o estado de coisas efetivamente mudará - isto é, será diferente. Como devemos entender esse fato da experiência em termos da ordem implicada? Obtemos uma pista valiosa ao refletirmos e prestarmos cuidadosa atenção ao que acontece quando, em nosso pensamento, dizemos que um conjunto de ideias implica* um conjunto inteiramente diferente. A palavra imply* tem, é claro, a mesma raiz que a palavra implicate, [Em inglês, ambos os verbos, to imply e to implicate têm o sentido de envolver", "conter". Mas to imply também abriga os sentidos de "inferir", "concluir", "querer dizer". (N. do T.)]e portanto também envolve a noção de dobramento. De fato, ao dizer que algo está implícito, geralmente pretendemos mais do que simplesmente dizer que essa coisa é uma inferência que se segue de algo mais por intermédio das regras da lógica. Em vez disso, usualmente pretendemos que de muitas diferentes ideias e noções (e de algumas delas estamos explicitamente conscientes) emerge uma nova noção que, de algum modo, junta todas essas num todo concreto e indiviso. Vemos, então, que cada momento de consciência possui um certo conteúdo explícito, que constitui um primeiro plano, e outro implícito, que corresponde ao segundo plano, ou background. Propomos agora que não somente a experiência imediata é melhor entendida em termos da ordem implicada, mas que também o pensamento deve ser basicamente compreendido nessa ordem. Com isso queremos dizer não apenas o conteúdo do pensamento, para o qual já começamos a utilizar a ordem implicada. Também incluímos na ordem implicada a estrutura e a atividade efetivas do pensamento. A distinção entre implícito e explícito no pensamento está sendo, portanto, considerada aqui como essencialmente equivalente à distinção entre implicado e explicado na matéria em geral. Para ajudar a esclarecer o que isso significa, vamos recordar brevemente a forma básica da lei de uma subtotalidade (discutida nas seções 3 e 6), isto é, que os elementos dobrados de um ensemble característico (p. ex., de partículas de tinta ou de átomos), que irão constituir o próximo estágio de dobramento, acham-se unidos por uma força de necessidade global, que os aglutina, de modo a que contribuam para um fim comum, que emerge na fase seguinte do processo em discussão. De maneira semelhante, propomos que o ensemble de elementos dobrados no cérebro e no sistema nervoso, e que irão constituir o próximo estágio de desenvolvimento de uma linha de pensamento encontram-se, da mesma forma, unidos por uma força de necessidade global, que os aglutina de modo a que contribuam para a noção comum que emerge no momento seguinte de consciência. Neste estudo, estivemos utilizando a ideia de que a consciência pode ser descrita em termos de uma série de momentos. A atenção mostra que um dado momento não pode ser fixado de maneira exata em relação ao tempo (p. ex., por meio do relógio), mas, sim, que abrange um certo período de duração prolongada, vagamente definido a um tanto variável. Como assinalamos anteriormente, cada momento é experimentado diretamente na ordem implicada. Vimos, além disso, que por meio da força de necessidade na situação global, um momento dá origem ao próximo, cujo conteúdo, que antes se achava implicado, agora se torna explicado, ao passo que o conteúdo explicado anterior torna-se agora implicado (p. ex., como acontecia na analogia das gotículas de tinta). A continuação desse processo fornece uma explicação como ocorre a mudança de um momento para outro. Em princípio, a mudança em qualquer momento pode ser uma transformação fundamental e radical. No entanto, a experiência mostra que no pensamento (assim como na matéria em geral) há geralmente muita recorrência e sutileza, o que leva à possibilidade de subtotalidades relativamente independentes. Em qualquer uma dessas subtotalidades, há a possibilidade da continuação de uma certa linha de pensamento, que se dobra de um modo variável razoavelmente regular. Evidentemente, o caráter preciso dessa sequência de pensamentos, conforme ela vai sendo dobrada de um momento para o próximo, dependerá, em geral, do conteúdo da ordem implicada nos momentos anteriores. Por exemplo, um momento que contém uma sensação de movimento tende geralmente a ser seguido por uma mudança, no próximo momento, que é tanto mais intensa quanto mais forte for a sensação de movimento que estava originalmente presente (de modo que, como no caso do dispositivo estroboscópico discutido anteriormente, quando isso não acontece sentimos que algo surpreendente ou paradoxal está ocorrendo).


Assim como fizemos em nossa discussão sobre a matéria em geral, agora é necessário investigar a questão de como, na consciência, a ordem explicada é aquilo que é manifesto. Como nos mostram a observação e a atenção (tendo em mente que a palavra "manifesto" significa aquilo que é recorrente, estável e separável), o conteúdo manifesto da consciência baseia-se essencialmente na memória, que é o que permite a esse conteúdo ser mantido numa forma razoavelmente constante. É claro que para tornar possível essa constância, também é necessário que esse conteúdo seja organizado, não apenas por meio de associações relativamente fixas, mas também com o auxílio das regras da lógica e de nossas categorias básicas de espaço, tempo, causalidade, universalidade, etc. Deste modo, pode ser desenvolvido um sistema global de conceitos e imagens mentais, que é uma representação mais ou menos fiel do "mundo manifesto". No entanto, o processo do pensamento não é meramente uma representação do mundo manifesto; mais que isso, ele dá uma importante contribuição à maneira como experimentamos este mundo, pois, como já assinalamos anteriormente, essa experiência é uma fusão de informações sensoriais com a "repetição" (replay) de parte do conteúdo da memória (a qual contém o pensamento estabelecido em sua própria forma e ordem). Nessa experiência, haverá um acentuado background de características recorrentes, estáveis e separáveis, contra o qual os aspectos transitórios e cambiantes do fluxo ininterrupto da experiência serão vistos como impressões fugazes que tendem a se distribuir e a se ordenar principalmente em termos da vasta totalidade do relativamente estático e fragmentado conteúdo de registros do passado. Pode-se de fato aduzir uma considerável quantidade de evidências científicas mostrando quanto de nossa experiência consciente é uma construção baseada na memória organizada pelo pensamento, da maneira geral descrita acima. (17) Porém, examinar esse assunto em detalhes nos levaria longe demais. Não obstante, talvez seja útil mencionar que Piaget (18) deixou claro que uma consciência daquilo que, para nós, é a ordem familiar de espaço, tempo, causalidade, etc. (e que é essencialmente o que vimos chamando de ordem explicada) opera somente num pequeno âmbito nas primeiras fases da vida do indivíduo humano. O que na verdade acontece, como ele mostra a partir de cuidadosas observações, é que na maioria dos casos as crianças aprendem esse conteúdo primeiro na área da experiência sensório-motora, e mais tarde, quando ficam mais velhas, elas conectam essa experiência com sua expressão na linguagem e na lógica. Por outro lado, parece haver uma consciência imediata do movimento desde a mais tenra idade. Recordando que o movimento é percebido primariamente na ordem implicada, vemos que o trabalho de Piaget comporta a noção de que a experiência da ordem implicada é fundamentalmente muito mais imediata e direta do que a da ordem explicada, a qual, como já apontamos, requer uma construção complexa que tem de ser aprendida. Uma razão pela qual geralmente não notamos a primazia da ordem implicada é que nos tornamos tão habituados à ordem explicada, e a enfatizamos tanto em nosso pensamento e em nossa linguagem que tendemos fortemente a sentir que nossa experiência primária tem a natureza daquilo que é explicado e manifesto. Porém, uma outra razão, talvez ainda mais importante, é que a ativação dos registros da memória, cujo conteúdo principal é aquilo que é recorrente, estável e separável, deve, evidentemente focalizar nossa atenção de maneira muito acentuada no que é estático e fragmentado. Isso então contribui para a formação de uma experiência na qual esses aspectos estáticos e fragmentados costumam ser tão intensos que os aspectos mais transitórios e sutis do fluxo ininterrupto (p. ex. as "transformações" das notas musicais) geralmente tendem a empalidecer numa tal insignificância aparente que, na melhor das hipóteses tem-se deles apenas uma vaga consciência. Assim, pode surgir uma ilusão na qual o conteúdo manifesto da consciência, estático e fragmentado, é experimentado como a própria base da realidade e, a partir dessa ilusão, pode-se aparentemente obter uma prova de precisão desse modo de pensar, no qual esse conteúdo é tomado como fundamental. (17) 8. A matéria, a consciência e seu fundamento comum No começo da seção anterior, sugerimos que a matéria e a consciência podem, ambas, ser entendidas em termos da ordem implicada. Mostraremos agora como as noções de ordem implicada que desenvolvemos com relação à consciência podem ser relacionadas àquelas que dizem respeito à matéria, de modo a tornar possível um entendimento de como ambas teriam uma base comum. Começamos notando que (como foi assinalado nos Capítulos 1 e 5) as atuais teorias relativísticas da física descrevem o todo da realidade em termos de um processo cujo elemento último é um evento punctiforme, isto é, algo que acontece numa região relativamente pequena do espaço e do tempo. Propomos, em vez disso, que o elemento básico seja um momento, o qual à semelhança do momento da consciência, não possa ser relacionado com precisão a medidas de espaço e de tempo, mas, em vez disso, abranja uma região um tanto vagamente definida, que é extensa no espaço e tenha duração no tempo. A extensão e a duração de um momento podem variar de uma quantidade um tanto muito pequena para uma quantidade um tanto muito grande, de acordo com o contexto em discussão (mesmo um determinado século pode ser um "momento" na história da humanidade). Assim como no caso da consciência, cada momento possui uma certa ordem explicada, e além disso dobra em si todos os outros momentos, embora à sua própria maneira. Desse modo, a relação entre cada momento no todo e todos os demais momentos é implicada pelo seu conteúdo total: a maneira como ele "retém" todos os outros dobrados dentro de si. Em certos aspectos, essa noção é semelhante à ideia das mônadas de Leibniz, cada uma das quais "espelha" o todo à sua própria maneira, algumas com muitos detalhes, outras um tanto vagamente. A diferença é que as mônadas de Leibniz tinham uma existência permanente, ao passo que os nossos elementos básicos são apenas momentos e são, portanto, não-permanentes. A ideia de "ocasiões efetivas", de Whitehead, está mais próxima daquela que se propõe aqui, sendo que a principal diferença é que utilizamos a ordem implicada para expressar as qualidades de nossos momentos, e as relações entre eles, enquanto que Whitehead o faz de um modo um tanto diferente. Recordamos agora que as leis da ordem implicada são tais que há uma subtotalidade relativamente independente, recorrente, estável, que constitui a ordem explicada, e que, basicamente, é a ordem com a qual costumamos entrar em contato na experiência ordinária (estendida e ampliada de certa formal pelo nossos instrumentos científicos). Essa ordem traz consigo espaço para algo como a memória, no sentido de que momentos anteriores geralmente deixam um vestígio (que geralmente se acha dobrado), que continua em momentos posteriores, embora esse vestígio possa mudar e transformar-se quase que ilimitadamente. A partir desse vestígio (p. ex., nas rochas), nos é possível, em princípio, desdobrar uma imagem de momentos do passado, semelhantes em certos aspectos ao que efetivamente aconteceu; tirando proveito desses vestígios, criamos instrumentos tais como câmaras fotográficas, gravadores de fita e memórias de computadores, que são capazes de registrar momentos reais de tal modo que uma parte muito maior do conteúdo daquilo que aconteceu pode tornar-se direta e imediatamente acessível a nós, relativamente às informações que, em geral, é possível obter apenas a partir dos vestígios naturais. Pode-se de fato dizer que a nossa memória é um caso especial do processo descrito acima, pois tudo o que é registrado mantém-se dobrado dentro das células do cérebro, e estas fazem parte da matéria em geral. A recorrência e a estabilidade de nossa própria memória como uma subtotalidade relativamente independente são, assim, levadas a efeito como parte do mesmo processo que sustenta a recorrência e a estabilidade na ordem manifesta da matéria em geral. Conclui-se então que a ordem explicada e manifesta da consciência não é, em última análise, distinta daquela da matéria em geral. Fundamentalmente, esses são aspectos essencialmente diferentes da ordem global única. Isto explica um fato básico que apontamos antes: que em geral a ordem explicada da matéria é também, em essência, a ordem explicada sensorial que é apresentada na consciência, na experiência ordinária. Não apenas quanto a isso, mas, como vimos, também numa ampla faixa de outros aspectos importantes, a consciência e a matéria em geral são


basicamente a mesma ordem (isto é, a ordem implicada como um todo). Conforme indicamos anteriormente, essa ordem é o que torna possível uma relação entre as duas; mas, de um modo mais específico, o que dizer da natureza dessa relação? Podemos começar considerando o ser humano individual como uma subtotalidade relativamente independente, com suficiente recorrência e estabilidade em seu processo total (p. ex., físico, químico, neurológico, mental, etc.) para permitir a ele subsistir durante um certo período de tempo. Nesse processo, sabemos ser um fato que o estado físico pode afetar de muitas maneiras o conteúdo da consciência. (O caso mais simples é que podemos nos tornar conscientes de excitações neurais como sensações.) Inversamente, sabemos que o conteúdo da consciência pode afetar o estado físico (p. ex., a partir de uma intenção consciente, os nervos podem ser excitados, os músculos movimentados, o batimento cardíaco alterado, juntamente com alterações na atividade glandular, na química do sangue, etc.). Essa conexão entre mente e corpo tem sido chamada de psicossomática (do grego psyche, que significa "mente" e soma que significa "corpo"). Porém, essa palavra geralmente é usada de tal modo que sugere que mente e corpo existem separados mas que estão ligados por algum tipo de interação. Tal significado não é compatível com a ordem implicada. Nesta, temos de dizer que a mente dobra em si a matéria em geral e, portanto, o corpo em particular. De maneira semelhante, o corpo dobra em si não apenas a mente mas também, em certo sentido, todo o universo material. (Da maneira como explicamos anteriormente nesta seção, tanto através dos sentidos como devido ao fato de que os átomos constituintes do corpo são, na verdade, estruturas que em princípio, se acham dobradas por toda a parte em todo o espaço.) De fato, já encontramos esse tipo de relação na seção 4, onde introduzimos a noção de uma realidade de dimensão mais elevada (higherdimensional) que se projeta em elementos de dimensão menos elevada (lower-dimensional) que possuem não apenas uma relação não-local e não-causal, mas também justamente o tipo de dobramento mútuo que sugerimos para a mente e para o corpo. Portanto, somos levados a propor, adicionalmente, que a realidade mais abrangente, profunda e intrínseca não é nem a mente nem o corpo, mas sim uma realidade de dimensão mais elevada, que é a base comum de ambos e cuja natureza está além de ambos. Cada um deles é então apenas uma subtotalidade relativamente independente, sendo queessa relativa independência deriva da base de dimensão mais elevada na qual a mente e o corpo são essencialmente um só (assim como verificamos que a relativa independência da ordem manifesta deriva da base da ordem implicada).Numa base de dimensão mais elevada, predomina a ordem implicada. Logo, nessa base, o que é é movimento representado no pensamento como a co-presença de muitas fases da ordem implicada. Como acontece com as formas mais simples da ordem implicada consideradas anteriormente, o estado de movimento num determinado momento desdobra-se mediante uma força de necessidade mais intrínseca, inerente a esse estado de coisas global, para dar origem a um novo estado de coisas no momento seguinte. As projeções da base de dimensão mais elevada, como o são a mente e o corpo, serão, no momento seguinte, ambas diferentes do que eram no momento anterior, embora essas diferenças, é claro, estejam relacionadas. Portanto, não dizemos que a mente e o corpo afetam de modo causal um ao outro, mas, sim, que os movimentos de ambos são o resultado de projeções relacionadas de uma base comum de dimensão mais elevada. É claro que até mesmo essa base da mente e do corpo é limitada. No mínimo, temos, evidentemente, de incluir a matéria além do corpo, se queremos dar uma explicação adequada do que efetivamente acontece, e isso deve incluir por fim outras pessoas, continuando até incluir a sociedade e a humanidade como um todo. Ao fazê-lo, porém, teremos de ser cuidadosos para não recairmos no erro de considerar os vários elementos de qualquer dada situação global tendo algo mais do que uma relativa independência. Num modo de pensar mais profundo e geralmente mais adequado, cada um desses elementos é uma projeção, numa subtotalidade de "dimensão" mais elevada. Desse modo será, em última instância, enganoso e sem dúvida errado supor, por exemplo, que cada ser humano é uma realidade independente que interage com outros seres humanos e com a natureza. Em vez disso todos esses são projeções de uma totalidade única. Quando um ser humano toma parte no processo dessa totalidade, ele é fundamentalmente transformado na própria atividade na qual seu objetivo é transformar a realidade que é o conteúdo de sua consciência. Deixar de levar isso em consideração deve, inevitavelmente, levar aquele que o deixa a uma confusão séria e persistente em tudo o que faz. Em relação à mente, também podemos ver que é necessário prosseguir em direção a uma base mais inclusiva. Assim, como já vimos, o conteúdo explícito facilmente acessível da consciência está incluído num background implícito (ou implicado) muito maior. Este, por sua vez, evidentemente tem de estar contido num background ainda maior, que pode incluir não somente processos neurofisiológicos em níveis dos quais não somos em geral, conscientes, mas também um background ainda maior de profundidades desconhecidas (e, de fato, em última instância, incognoscíveis) em sua natureza interior, que pode ser análogo ao "mar" de energia que preenche o espaço "vazio" sensorialmente percebido. (20) Qualquer que seja a natureza dessas profundezas internas da consciência, elas são a própria base, tanto do conteúdo explícito como daquele que geralmente é chamado de implícito. Embora essa base possa não aparecer na consciência ordinária, ela pode, no entanto, estar presente de alguma maneira. Assim como o vasto "mar" de energia no espaço está presente para a nossa percepção como uma sensação de vazio ou nada, o vasto background "inconsciente" da consciência explícita, com todas as suas implicações, está presente de maneira semelhante. Isto é, ele pode ser percebido como um vazio, um nada, dentro do qual o conteúdo usual da consciência é apenas um conjunto de facetas desvanecentemente pequeno. Consideremos agora, brevemente, o que pode ser dito sobre o tempo nessa ordem total de matéria e consciência. Em primeiro lugar, sabe-se bem que, conforme diretamente percebido e experimentado na consciência, o tempo é altamente variável e relativo às condições (p. ex., pessoas diferentes, ou até um mesmo indivíduo, podem ter a impressão de que um dado período de tempo é curto ou longo, de acordo com os interesses envolvidos). Por outro lado, na experiência comum parece que o tempo físico é absoluto e não depende de condições. No entanto, uma das implicações mais importantes da teoria da relatividade é que o tempo físico é de fato relativo, no sentido de que pode variar de acordo com a velocidade do observador. (Todavia, essa variação só é significativa à medida que nos aproximamos da velocidade da luz, sendo praticamente desprezível no domínio da experiência ordinária.) O que é crucial no presente contexto é que, de acordo com a teoria da relatividade, não se pode manter uma distinção bem-definida entre espaço e tempo (exceto como uma aproximação, válida apenas para velocidades pequenas em comparação com a da luz). Assim, uma vez que a teoria quântica implica que elementos separados no espaço são, em geral, projeções de uma realidade de dimensão mais elevada, relacionadas de um modo não-causal e não-local, segue-se que momentos separados no tempo são também tais projeções dessa realidade. É evidente que isso leva a uma noção fundamentalmente nova do significado de tempo. Tanto na experiência comum como na física, o tempo geralmente tem sido considerado uma ordem primária, independente e universalmente aplicável, talvez a ordem mais fundamental conhecida por nós. Ora, temos sido levados a propor que ele é secundário e que, assim como o espaço (veja seção 5), deve ser derivado de uma base de dimensão mais elevada, como uma ordem particular. De fato, pode-se ainda dizer que muitas dessas ordens temporais particulares e inter-relacionadas podem ser derivadas para diferentes conjuntos de sequências de momentos, correspondentes a sistemas materiais que se deslocam a diferentes velocidades. Entretanto, estes são todos dependentes de uma realidade multidimensional que não pode ser compreendida plenamente em termos de qualquer ordem temporal, ou de qualquer conjunto de tais ordens. De maneira semelhante, somos levados a propor que essa realidade multidimensional pode projetar-se em muitas ordens de sequências de momentos na consciência. Temos em mente aqui não apenas a relatividade do tempo psicológico acima discutido mas também implicações muito mais sutis.


Assim, por exemplo, pessoas que se conhecem bem uma à outra podem ficar separadas por um longo intervalo de tempo (conforme medido pela sequência de momentos registrados por um relógio) e mesmo assim ainda ser, com frequência, capazes de "recomeçar de onde tinham parado", como se nenhum tempo tivesse passado. O que estamos propondo aqui é que sequências de momentos que "pulam" intervalos intermediários são formas de tempo tão admissíveis quanto aquelas que parecem contínuas. (21) A lei fundamental, portanto, é aquela da imensa base multidimensional; e as projeções a partir dessa base determinam quaisquer ordens de tempos que possam haver. ? claro que essa lei pode ser tal que, em certos casos limites, a ordem de momentos correspondem aproximadamente àquela que seria determinada por uma simples lei causal. Ou, num diferente caso limite, a ordem seria complexa e de um alto grau, e, como foi indicado no Capítulo 5, ela se aproximaria daquilo que geralmente é chamado de ordem aleatória. Essas duas alternativas abrangemo que acontece na maioria dos casos no domínio da experiência ordinária, bem como no da física clássica. Não obstante, no domínio quântico, assim como em relação à consciência e, provavelmente, ao entendimento da essência mais profunda e mais interna da vida, tais aproximações comprovar-se-ão inadequadas. Deve-se então prosseguir no sentido de uma abordagem que considere o tempo como uma projeção de uma realidade multidimensional numa sequência de momentos. Essa projeção pode ser descrita como criativa em vez de mecânica, pois por criatividade entende-se justamente a iniciação de um novo conteúdo, que se desdobra numa sequência de momentos que não é completamente derivável do que veio antes nessa sequência ou conjunto de tais sequências. O que estamos dizendo, então, é que o movimento é basicamente essa iniciação criativa de um novo conteúdo, conforme é projetado da base multidimensional. Ao contrário, o que é mecânico é uma subtotalidade relativamente autônoma que pode ser abstraída daquilo que é basicamente um movimento criativo de desdobramento. Então, de que maneira devemos considerar a evolução da vida, como é geralmente formulada na biologia? Primeiro, é preciso assinalar que a própria palavra "evolução" (cujo significado literal é "desenrolamento") é demasiado mecanicista em sua conotação para servir adequadamente a este contexto. Em vez disso, como já apontamos acima, devíamos dizer que várias formas de vida sucessivas desdobram-se criativamente. Membros posteriores não são completamente deriváveis do que veio antes, por meio de um processo em que o efeito surge da causa (embora, em alguma aproximação, esse processo causal possa explicar certos aspectos limitados da sequência). A lei desse desdobramento não pode ser entendida adequadamente sem se considerar a imensa realidade multidimensional da qual ela é uma projeção (exceto na aproximação grosseira em que as implicações da teoria quântica e do que está além dessa teoria podem ser desprezadas).Nossa abordagem global reuniu assim questões sobre a natureza do cosmo, sobre a matéria em geral, sobre a vida e sobre a consciência. Todas elas foram consideradas como projeções de uma base comum. Podemos chamá-la de a base de tudo o que é, pelo menos na medida em que pode ser percebida e conhecida por nós, em nossa atual fase de desdobramento da consciência. Apesar de não termos percepção ou conhecimento detalhados dessa base, num certo sentido ela ainda se acha dobrada em nossa consciência, da maneira como delineamos, bem como, talvez, de outras maneiras que ainda estão para ser descobertas. Essa base é o fim absoluto de tudo? Nas concepções que propusemos, relativos à natureza geral da "totalidade de tudo o que é", consideramos até mesmo essa base como um mero estágio, no sentido de que poderia haver, em princípio, uma infinidade de desenvolvimentos ulteriores além dela. Em qualquer determinado instante nesse desenvolvimento, cada conjunto de concepções que possa surgir constituirá, no máximo, uma proposta. Não deve ser tomado como uma premissa sobre o que se julga ser a verdade final, e menos ainda como uma conclusão que diga respeito à natureza dessa verdade. Em vez disso, essa proposta torna-se ela mesma um fator ativo na totalidade da existência, que inclui a nós mesmos, bem como os objetos de nossos pensamentos e de nossas investigações experimentais. Quaisquer outras propostas sobre esse processo, como aquelas já feitas, terão de ser viáveis. Isto é, será exigido delas umaautoconsistência geral, assim como uma consistência no que delas flui na vida como um todo. Pela força de uma necessidade ainda mais profunda e mais interna nessa totalidade, alguns novos estados de coisas poderão emergir, nos quais o mundo como o conhecemos e também nossas ideias a respeito dele sofrerão, talvez, um processo interminável de mudanças ulteriores. Com isso, naturalmente interrompemos a apresentação de nossa cosmologia e de nossas noções gerais sobre a natureza da totalidade (embora, é claro, apenas temporariamente). Daqui para a frente, podemos ainda explorá-la como um todo e, talvez, inserir alguns detalhes que ficaram de fora neste tratamento necessariamente incompleto, antes de prosseguirmos em direção a novos desenvolvimentos, como os que foram assinalados acima.

Notas Capítulo l 1. Ver, por exemplo, J. Krishnamurti, Freedom from the Knoivn, Gollancz, Londres, 1969. Capítulo 2 1. Na verdade, a raiz latina videre, na palavra "dividir", não significa "ver", mas sim "p?r de lado". Isso parece ter ocorrido por coincidência. Porém, os objetivos do reomodo são muito melhor satisfeitos quando se tira vantagem dessa coincidência, e se considera a divisão primariamente como um ato de percepção em vez de um ato físico de separação. 2. Toda vez que uma palavra for obtida de uma forma com um prefixo, tal como di-, co-, con-, etc., no verbo radical do reomodo, esse prefixo será separado do verbo principal por um hífen, a fim de indicar como o verbo foi construído dessa maneira. 3. Observe que, de agora em diante, a bem da brevidade, geralmente não daremos uma descrição tão completa do significado da forma radical como temos feito até aqui. Capítulo 3 1. A.N. Whitehead, Process and Reality, Macmillan, Nova York, 1933. 2. H.C. Wyld, The Universal Dictionary of the English Language, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1960. 3. J. Piaget, The Origin of Intelligence in the Child, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1953. Capítulo 4 1. D. Bohm, Causality and Chance in Modern Physics, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1957. 2. Ver J. von Neumann, Mathematical Foundations of the Quantum Theory, Princeton University Press, 1955; W. Heisenberg, The Physical Prindpks of the Quantum Theory, University of Chicago Press, 1930; P. Dirac, The Principies of Quantum Mechanics, Oxford University Press,m#E?II n nin1947; P.A., Schilp (org.), Albert Einstein, Philosopher'Scientist, Tudor Press, Nova York, 1957, especialmente o Capítulo 7, para uma discussão sobre o ponto de vista de Bohr. :


3. Ibid. 4. von Neumann, op. cit. 5. A. Einstein, N. Rosen e B. Podolsky, Phys. Réu., vol. 47, 1935, p. 777. 6. D. Bohm, Quantum Theory, Prentice-Hall, Nova York, 1951. 7. Para uma discussão sobre o ponto de vista de Bohr, ver Schilp, op. cit., cap. 7. 8. D. Bohm, Phys. Rev., vol. 85, 1952, pp. 166, 180. 9. L. de Broglie, Compt, rena., vol. 183, 1926, p. 447 e vol. 185, 1927, p. 380; Revolution in Modern Physics, Routledge & Kegan Paul, Londres,1954. 10. D. Bohm e J.V. Vigier, Phys. Rev., vol. 96, 1954, p. 208. 11. Para uma discussão mais detalhada, ver Bohm, Causality and Chance in Modern Physics, cap. 4. 12. Bohm e Vigier, op. cit.; Bohm, Causality and Chance in Modern Physics. 13. Bohm, Phys. Rev., vol. 85, 1952, pp. 166, 180; Bohm e Vigier, op. cit.; Bohm, Causality and Chance in Modern Physics. 14. Bohm e Vigier, op. cit. 15. Bohm, Phys. Rev., vol. 85, 1952, pp. 166, 180; Bohm e Vigier, op. cit.; Bohm, Causality and Chance in Modern Physics. 16. G. Kallen, Physica, vol. 19, 1953, p. 850; Kgl Danske Videnskab. Selskab, Matfys. Medd., vol. 27, n? 12, 1953; Nuovo Cimento, vol. 12, 1954, p. 217; A.S. Wightman, Phys. Rev., vol. 98, 1955, p. 812; L. van Hove, Physica, vol. 18, 1952, p. 145. 17. Md. 18. Comunicações pessoais. 19. Comunicações pessoais. 20. Van Hove, op. cit.; comunicações pessoais. 21. Obtém-se um resultado semelhante quando se consideram as propriedades em grande escala de um agregado contendo um grande número de partículas interagentes. São obtidas propriedades coletivas (p. ex., oscilações) que determinam a si próprias quase que independentemente dos detalhes dos movimentos das partículas individuais. Ver D. Bohm e D. Pines, Phys. Rev., vol. 85, 1953, p. 338 e vol. 92, 1953, p.609. 22. Essa analogia foi mostrada, pela primeira vez por F?rth, para o caso do movimento browniano de uma partícula. Ver Bohm, Causality and Chance in Modern Physics, cap. 4. 23. Bohm e Pines, op. cit. 24. M. Born, Mechanics of the Aíom, Bell, Londres, 1927; H. Golstein, Clássica/ Mechanics, Addison-Wesley, Cambridge, Mass., 1953. 25. Ibid. 26. Born, op. cit. 27. Comunicação pessoal. 28. Por exemplo, um motor elétrico síncrono tende a funcionar em fase com a corrente alternada que vem do gerador. Há inúmeros exemplos como esse na teoria das oscilações não-lineares. Uma discussão mais completa sobre as oscilações não-lineares encontra-se em H. Jehle e J. Cahn, Am. J. Phys., vol. 21, 1953, p. 526. 29. Born, op. cit. 30. Combinações lineares um pouco mais gerais podem ser consideradas, mas elas servem apenas para complicar as expressões sem mudar os aspectos básicos do problema. 31. D. Bohm e Y. Aharonov, Phys. Rev., vol. 108, 1957, p. 1070. Capítulo 5 1. Essa noção de ordem me foi primeiramente sugerida numa comunicação pessoal por um conhecido artista, C. Biederman. Para uma apresentação de suas concepções, ver C. Biederman, Art as the Evolution of Visual Knowkdge, Red Wing, Minnesota, 1948. 2. M. Born e N. Wiener, /. Math. Phys., vol. 5, 1926, pp. 84-98; N. Wiener e A. Siegel, Phys. Rev., vol. 91, 1953, p. 1551. 3. Essa noção foi discutida nos capítulos l e 3 a partir de um outro ponto de vista. 4. Para uma discussão sobre esse ponto, ver D. Bohm, Quantum Theory, Prentice Hall, Nova York, 1951. 5. Para uma discussão ampla sobre esse efeito, ver ibid., cap. 22; para um ponto de vista mais recente sobre esse assunto, ver J. S. Bell, Rev. Mod. Phys., vol. 38, 1966, p. 447. 6. N. Bohr, Atomic Theory and the Description of Nature, Cambridge University Press, 1934. 7. J. von Neumann, Mathematical Foundation of Quantum Mechanics, Princeton University Press, 1955. Capítulo 6 1. Para uma apresentação muito clara dessa visão, ver T. Kuhn, The Nature of Scientific Revolutions, University of Chicago Press, 1955. 2. J. Piaget, The Origin of Intelligence in the Child, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1956. 3. Ver D. Bohm, B. Hiley e A. Stuart, Progr. Theoret. Phys., vol. 3, 1970,p. 171, onde essa descrição de um conteúdo percebido considerado como a intersecção de duas ordens é tratado num contexto diferente. 4. Ver, por exemplo, D. F. Littlewood, The Skeleton Key of Mathematics, Hutchinson, Londres, 1960. 5. Ver, por exemplo, ibid. Capítulo 7 1. Ver Re-Vision, vol. 3, na 4, 1978, para um tratamento diferente desse assunto. (Editado em 20 Longfellow Road, Cambridge, Mass. 02148, USA.) 2. Ver D. Bohm, Causality and Chance in Modern Physics, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1957, cap. 2, para uma discussão ulterior sobre essa questão. 3. Para uma discussão mais detalhada sobre esse ponto, por exemplo, D. Bohm e B. Hiley, Foundation of Physics, vol. 5, 1975, p. 93. 4. Para uma discussão detalhada sobre esse experimento, ver D. Bohm, Quantum Theory, Prentice Hall, Nova York, 1951, cap. 22. 5. Ver D. Bohm, Causality and Chance in Modern Physics, cap. 2, para uma discussão sobre esse aspecto do "mecanismo indeterminista". 6. Ver D. Bohm e B. Hiley, Foundations of Physics, vol. 5, 1975, p.93, e D. Bohm, Quantum Theory, Prentice Hall, Nova York, 1951, para um tratamento mais detalhado desse aspecto da teoria quântica. 7. Matematicamente, todas as propriedades do sistema são derivadas de uma "função de onda" 3N-dimensional (onde N é o número de partículas) que não pode ser representada apenas no espaço tridimensional. Pode-se, de fato, constatar fisicamente a relação não-local e não-


causal entre elementos distantes, o que corresponde muito bem ao resultado que decorre das equações matemáticas. 8. Notavelmente aqueles em que a "função de onda" do sistema combinado pode ser fatorada aproximadamente em duas funções de onda tridimensionais separadas (como é mostrado em Bohm e Hiley, op. cit.). 9. Isto é apenas um exemplo da combinação de propriedades ondulatórias e particuladas da matéria, descritas na seção 2. 10. Esse tipo de cálculo é sugerido em D. Bohm, Causality and Chance in Modern Physics, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1957, p. 163. 11. Na Seção 8, veremos que o tempo, assim como o espaço, podem ser dobrados dessa maneira. 12. Comparar com a ideia de subsistema, sistema e supersistema, sugerida em Bohm e Hiley, op. cit. 13. Essa noção já foi sugerida preliminarmente no Capítulo 3. 14. Ver Karl Pribram, Languages of the Brain, C. Globus et ai. (orgs.),1971; Consciousness and the Brain, Plenum, Nova York, 1976. 15. Por exemplo, como mostramos na seção 3, gotículas linearmente ordenadas podem ser conjuntamente dobradas, de tal modo que essa ordem é ainda sutilmente mantida em todo o conjunto de ensembles de partículas de tinta. 16. Como é mostrado no apêndice ao Capítulo 6, na ordem implicada o algoritmo básico é uma álgebra e não o cálculo.17. Para uma discussão mais detalhada, ver D. Bohm, The Special Theory of Relativity, Benjamin, Nova York, 1965, Apêndice. 18. Ver ibid. 19. Essa ilusão é, essencialmente, aquela discutida nos Capítulos l e 2, na qual o todo da existência é visto como constituído de fragmentos basicamente estáticos.20. Em alguns aspectos essa ideia de um background "inconsciente" é semelhante à de Freud. No entanto, do ponto de vista de Freud o inconsciente possui um tipo de conteúdo razoavelmente definido e limitado e, portanto, não é comparável à imensidade do background que estamos propondo. Talvez o "sentimento oceânico" de Freud esteja mais próximo deste último do que o está sua noção de inconsciente. 21. Isso corresponde à exigência teórica quântica de que os elétrons possam ir de um estado para outro no espaço sem passar por estados intermediários. http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros http://groups-beta.google.com/group/digitalsource


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