Presunção de Inocencia

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PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E EFETIVIDADE DA JUSTIÇA PUNITIVA NO BRASIL SHÉRIDA KEILA PACHECO TEIXEIRA

SUMÁRIO: I. Introdução. – II. Princípio da presunção de inocência: breve apanhado histórico. – III. O princípio da presunção de inocência na Constituição Federal de 1988. - IV. O caminho processual para a condenação penal no Brasil. – V. Princípio da presunção de inocência “versus” efetividade da Justiça. – VI. A inconstitucionalidade da execução provisória da pena - VII. Conclusão. - VIII. Referências I. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como finalidade fazer algumas considerações de forma sucinta a respeito do princípio constitucional da presunção de inocência em nosso ordenamento jurídico como um convite ao leitor para reflexão sobre as consequências práticas da aplicação de tal princípio na rotina forense e mesmo no cotidiano dos cidadãos brasileiros. De início será abordado o princípio da presunção de inocência na sua forma conceitual, com breve histórico e considerações acadêmicas. Em seguida, o trabalho receberá o enfoque prático sobre o caminho a ser trilhado pelo Estado para a condenação penal no Brasil. O cerne do trabalho será alcançado quando da abordagem do conflito entre a garantia constitucional da presunção de inocência e a falta de efetividade da Justiça. Casos práticos emblemáticos em que réus confessos condenados em primeira e segunda instâncias aguardam em liberdade o trânsito em julgado da sentença condenatória desafiam o entendimento popular sobre o que é Direito e o que é Justiça, colocando em xeque a capacidade estatal de punição num momento em que o Poder Judiciário é cobrado de forma histórica a dar respostas efetivas de sua missão constitucional na solução dos conflitos, principalmente após a Emenda Constitucional n. 45/2004, que consagrou o “princípio da celeridade processual”. Por outro lado, decisão recente do Supremo Tribunal Federal imprime força total ao princípio da presunção de inocência ao reafirmar que o réu não pode ser recolhido à prisão enquanto não houver o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ainda que condenado em primeira e segunda instâncias. É nessa esteira de raciocínio que se pretende discutir o tema, na busca do amadurecimento teórico e acadêmico para melhor compreensão da importância de tal princípio constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. 

Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Aluna do Curso de Especialização em Direito Processual Penal da Escola Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Pará em convênio com o Centro Universitário do Pará – CESUPA.

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II. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: BREVE APANHADO HISTÓRICO O princípio da inocência “É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre”.1 Antes mesmo de ser considerado um princípio, já se manifestava desde o direito romano a partir da máxima “in dubio pro reo”. O princípio da presunção de inocência aparece pela primeira vez na Carta Magna de 1215, que estabelecia que ninguém poderia ser preso nem tampouco sofrer qualquer procedimento outro enquanto não julgado por seus pares e em harmonia com a lei inglesa em vigor. O seu amplo conceito atual tem origem na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada logo após a Revolução Francesa de 1789, que estabelecia: “Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. Tal artigo da Declaração tem influência iluminista, principalmente de Montesquieu, que em sua obra mais importante, “O espírito das leis”, discute a respeito das instituições e das leis, e busca compreender a diversidade das legislações em diferentes épocas e lugares. Ao procurar descobrir as relações que as lei têm com a “natureza” e o “princípio” de cada governo, Montesquieu desenvolve a “teoria do governo” que alimenta as idéias do constitucionalismo, pelo qual se busca distribuir a autoridade por meios legais, de modo a evitar o arbítrio e a violência. Outro filósofo que contribuiu foi Rousseau, ao dizer que “o homem que surge da desigualdade é corrompido pelo poder e esmagado pela violência”. Isso significa que o princípio da presunção de inocência tem raízes no princípio da isonomia, na medida em que busca garantir que nenhum homem, independentemente de sua posição na sociedade, venha a ser punido antes de ser declarado culpado. Em 1948 o princípio da presunção de inocência foi proclamado no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada pela ONU (Organização das Nações Unidas): “Art. 11. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” Embora o assunto já tivesse sido objeto da Constituição Brasileira de 1924 que previa que “ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos 1

NEVES, A. Castanheira. Sumários de processo penal, Coimbra, 1967, p.26. In: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, 18.ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997, v.1, p. 63.

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declarados na Lei”, foi na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LVII, que o princípio da presunção de inocência foi consagrado em nossa legislação tal qual previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem. “Art. 5º. omissis LVII. ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.” Embora somente explícito na Constituição Federal de 1988, o Princípio já era tratado pela doutrina e jurisprudência brasileiras desde a adesão do Brasil à Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948 e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969, que também tratou da matéria em seu art. 8º., inciso 2: “Art. 8º. omissis 1. omissis 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.”

III. O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Conforme já mencionado, tal princípio está expresso no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988. É também denominado como “princípio do estado de inocência” e “princípio da não-culpabilidade”. O objetivo é garantir que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa e é consequência direta dos princípios do devido processo legal (art. 5º, LIV), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV). Conforme nossa ordem constitucional, quando a ação penal é do tipo pública cabe ao Estado por intermédio do Ministério Público comprovar que o indivíduo presumidamente inocente é o culpado pela prática de um crime. Quando a ação penal é do tipo privada essa tarefa cabe ao ofendido. Assim, o acusado pode se utilizar de meios de prova para corroborar sua inocência, mas não é obrigado a assumir uma postura probatória ativa e mesmo a sua inércia não tem o condão de causar prejuízo, pois o ônus da prova é da acusação e o réu pode permanecer, inclusive, em silêncio sem que isso seja interpretado em seu desfavor. Como bem ressalta Mirabete (2002, p. 42), a presunção de inocência é relativa e não absoluta, pois a partir do devido processo legal e após a produção de provas suficientes à luz do contraditório e da ampla defesa, pode ser desconstituída após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Podese dizer, então, que durante o processo existe um estado de inocência do qual goza o acusado até que o Estado prove a sua culpabilidade, daí serem usadas também as nomenclaturas de “princípio do estado de inocência” e “princípio da não-culpabilidade”. Ultrapassada a fase probatória, o Estado-juiz somente poderá prolatar sentença condenatória se houver elementos suficientes para tornar o magistrado 3


convicto de que o acusado é o responsável pelo delito, bastando para a absolvição a dúvida a respeito da sua culpa, quando então deverá ser aplicado o princípio “in dubio pro reo”. Nucci (2008, p. 82) chega a afirmar que o princípio da presunção de inocência se integra ao princípio da prevalência do interesse do réu, garantindo que em caso de dúvida deve sempre prevalecer o estado de inocência, absolvendo-se o acusado. Importante salientar que o texto da Constituição Federal reza que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença, o que não significa que ninguém poderá ser preso antes disso ou que não poderão ser tomadas medidas coercitivas contra o acusado. A própria Constituição permite outros tipos de prisão além da decorrente da condenação, ou seja, prisão em flagrante e por mandado judicial – prisões preventiva e temporária (art. 5º, LXI) as quais tem como pressuposto acautelar a ultimação do processo, bem como o meio social. Da mesma forma, permite a prática de medidas cautelares como busca e apreensão, sequestro, exame de insanidade mental etc. Por outro ângulo, o princípio da presunção de inocência confirma a excepcionalidade de tais medidas cautelares de prisão e incidentes processuais, já que indivíduos livres somente podem ser levados ao cárcere e ter direitos restringidos quando for realmente necessário à instrução processual e à ordem pública. IV. O CAMINHO PROCESSUAL PARA A CONDENAÇÃO PENAL NO BRASIL Todo o processo penal no Brasil está pautado em normas constitucionais e infraconstitucionais que visam assegurar o amplo direito de defesa do acusado, desde o oferecimento da denúncia ou queixa até a eventual execução da pena em caso de condenação, ressaltando que tal caminho é permeado por várias possibilidades recursais e de remédios constitucionais. A Constituição Federal consagrou tais direitos e garantias no art. 5º, incisos LIV e LV, que se referem ao princípio do devido processo legal. O primeiro passo é zelar para que sejam observados os princípios do juiz natural e do promotor natural. Trata-se de uma garantia de que não haverá tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII). Para instauração da ação penal é necessária a existência de justa causa e a peça inicial acusatória – denúncia ou queixa- deve preencher requisitos legais, tais como, narração do fato tido como criminoso com todas as suas circunstâncias e qualificação do acusado e individualização da conduta de cada um deles no caso de co-réus. Tudo com vistas a proporcionar que o acusado possa se defender dos fatos que lhe são imputados, bem como, delimitar o alcance da decisão judicial, já que ninguém poderá ser julgado por fatos não postos à apreciação do Poder Judiciário, ou seja, “extra petita”. Uma vez instaurada a ação penal, a produção das provas deve obedecer ao que dispõe o art. 5º, LVI, o qual dispõe serem inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. O acusado tem ao seu alcance todos os meios de defesa assegurados em lei e não é obrigado a produzir prova contra si, podendo se

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manter calado no interrogatório e se recusar de participar de reconstituição do crime, por exemplo. Quando da prolatação da sentença a menor dúvida deve levar o julgador a absolver o acusado, como corolário do princípio “in dubio pro reo” e, uma vez condenado, a execução da pena deve se dar de forma individualizada, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII), observando-se que cada acusado tem características próprias quanto aos antecedentes, participação maior ou menor no crime, dentre outras circunstâncias judiciais que definirão, entre outras coisas, o regime de cumprimento da pena aplicada. Nessa caminhada processual destaca-se o princípio do “favor rei”, que segundo BETTIOL, citado por TOURINHO FILHO2: “[...] deve constituir um princípio inspirador da interpretação. Isto significa que, nos casos em que não for possível uma interpretação unívoca, mas se conclua pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma norma legal (antinomia interpretativa), a obrigação é de escolher a interpretação mais favorável ao réu.’

Por consistir em uma forma de interpretação favorável ao acusado, quer material, quer processualmente, o princípio do “favor rei” se manifesta de várias formas no processo penal brasileiro, por exemplo, a absolvição por insuficiência de provas; a proibição da “reformatio in pejus” nos recursos; a revisão criminal como direito exclusivo do réu; a prevalência da decisão mais favorável ao réu em caso de empate no julgamento de recurso (art. 615, § 1º, do CPP); o outrora vigente recurso de protesto por novo júri e, por fim, como coroamento desse princípio, o da presunção de inocência, erigido à categoria de dogma constitucional. No processo penal o acusado tem à sua disposição vários tipos de recursos (recurso em sentido estrito, apelação, embargos de declaração, embargos infringentes e de nulidade, carta testemunhável, correição parcial, agravo regimental, recurso extraordinário, recurso especial, recurso ordinário constitucional e embargos de divergência), além da ação de revisão criminal e os remédios constitucionais do “habeas corpus” e do mandado de segurança. A diversidade de recursos está também à disposição da acusação, mas em menor número, pois alguns são exclusivos da defesa. Com tamanha gama de recursos, mesmo após a instrução processual e a formação da culpa em primeira instância, em caso de condenação o acusado terá, ainda, direito ao duplo grau de jurisdição, o qual também foi coroado como princípio. Diante de tantos direitos e garantias constitucionais e processuais, ressaltese que o acusado necessitará ter defesa técnica por advogado para exercitá-los, cuja função é essencial à Administração da Justiça (art. 133, CF), sendo que, 2

BETTIOL, Giuseppe. Instituições de direito e processo penal. Trad. Miguel da Costa Trindade. Coimbra Ed., 1974. In: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, 18.ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997, V.1, p. 73.

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àqueles que comprovarem insuficiência de recursos, o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV). Conforme se constata, o caminho processual a ser trilhado até que se alcance a condenação penal no Brasil de modo a se obter o título judicial com trânsito em julgado apto à execução da pena, é longo. Essa característica, por si só, já é causa de muitas discussões e tem, ainda, como aliada a lentidão, via de regra, em razão das condições de trabalho e insuficiente estrutura do Poder Judiciário. É nesse contexto que às vezes se afirma que as garantias constitucionais do acusado passam a colidir com o direito da sociedade de ter uma Justiça efetiva. V. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA “VERSUS” EFETIVIDADE DA JUSTIÇA A sociedade é regida por um conjunto de leis. Ao mesmo tempo em que o cidadão deve a elas obedecer e se submeter, esta é também a sua garantia de que estará protegido contra os atos de outros cidadãos e do arbítrio do próprio Estado. É o que Rousseau preconizou em sua obra “O contrato social”, pois pelo pacto o homem abdica de sua liberdade, mas sendo ele próprio integrante da sociedade, ao obedecer à lei, obedece a si mesmo e, portanto, é livre. Assim, ao cumprir as regras legais e sociais, o cidadão quer ver o pacto cumprido pelo outro, por isso cobra do Estado que os descumpridores sejam punidos. Daí nascem o direito e a expectativa de a sociedade ver punidos os criminosos culpados. Para assegurar o cumprimento do pacto a Constituição Federal prevê a existência de órgãos estatais (Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) e mesmo a participação de entes privados (advogados, por serem essenciais à administração da Justiça), bem como reza em seu art. 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito”. Com o passar do tempo, o aumento da demanda processual e a complexidade dos crimes tornaram tais garantias insuficientes para dar a resposta esperada no combate à criminalidade e à impunidade, aumentando também a cobrança da sociedade quanto às respostas estatais, exigindo retorno não apenas quantitativa, mas qualitativamente. E foi na esteira dessas mudanças sociais que a Constituição Federal de 1988 sofreu a Emenda Constitucional 45/2004, que dentre outras alterações, introduziu no art. 5º o inciso LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Destarte, o direito à celeridade processual passou a ter status constitucional. Então seria ela também uma garantia fundamental? A resposta é afirmativa segundo Zeno Veloso (2005, p.1), que assim esclarece sobre o tema ao tratar do Princípio da Celeridade Processual, introduzido pela EC/45, também conhecida como a Reforma do Judiciário: “Primeira pergunta a ser feita é se Emenda Constitucional poderia acrescentar de forma expressa uma garantia 6


fundamental. A resposta é afirmativa, pois o § 2º do art. 5º da Carta Magna já tratou de elucidar que o rol de direitos e garantias fundamentais previstos no referido artigo, por ocasião da promulgação de 1988, não é exaustivo, do que se deflui que existem outros sensíveis, os quais devem ser obedecidos e que podem ser incorporados ao texto constitucional de forma expressa. “ Tem-se em questão, portanto, dois princípios constitucionais asseguradores de direitos fundamentais: o princípio da presunção de inocência, assegurado ao acusado, e o princípio da celeridade processual, assegurado à vítima e à sociedade como um todo. O que se percebe atualmente é que tais princípios estão em conflito, pelo menos aparente, pois o primeiro parece vir se sobrepondo em detrimento do segundo, de modo que, os direitos do acusado viriam tendo prioridade em relação ao direito que a vítima tem de ver o criminoso punido em curto espaço de tempo. Como dito alhures, a diversidade de recursos à disposição da defesa e a lentidão do Poder Judiciário por falta de estrutura necessária para abarcar toda a demanda processual vem dando “sobrevida” à inocência do acusado, mesmo quando já condenado em primeira e segunda instâncias, ou seja, pelo juízo monocrático e pelo tribunal de apelação, causando questionamentos sobre a efetividade da Justiça, pois o acusado não será recolhido à prisão enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, o que pode levar anos. Assim, ainda que confesso, ainda que todas as provas corroborem a confissão, o acusado continuará em liberdade. De vez em quando a mídia apresenta ao público casos que despertam na população o sentimento de impunidade e de injustiça. Sensacionalismo e análise leiga à parte, alguns deles, quando submetidos a uma análise jurídica, fazem concluir que há, realmente, “abuso do direito de defesa” de acusados, que muitas vezes lançam mão de recursos meramente protelatórios. Um exemplo usado em larga escala é o do jornalista que assassinou a namorada no ano de 2000. Embora seja réu confesso, condenado pelo Tribunal do Júri, com sentença confirmada pelo respectivo Tribunal de Justiça, até hoje permanece em liberdade enquanto aguarda o julgamento de recursos interpostos no STJ e no STF. Neste caso, a verdade real já foi alcançada, até mesmo em razão da confissão do acusado, e o que o mantém em liberdade é a ficção jurídica de que é inocente enquanto não transitar em julgado a sentença, o que vai depender de discussões de cunho eminentemente processual e não mais material. Contudo, juridicamente o jornalista é inocente e, não havendo nenhum motivo autorizador da prisão preventiva, teve o direito de sair do Tribunal do Júri livre, embora condenado. Saliente-se que dependendo da quantidade de pena prevista não raro a pretensão punitiva do Estado é alcançada pela prescrição, instituto que coroa a inefetividade da jurisdição penal. Além disso, a fuga é considerada direito subjetivo do réu, sendo da natureza humana que após o trânsito em julgado da sentença

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condenatória o acusado não fique em casa aguardando o cumprimento do mandado de prisão, evadindo-se, frustrando assim, a aplicação da lei penal. VI. A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA Para enfrentar a questão, indaga-se se seria possível, então, a execução provisória da pena sem afronta à Constituição Federal. Na tradição do direito brasileiro os recursos interpostos aos Tribunais Superiores, por exemplo, o recurso especial ao STJ e recurso extraordinário ao STF (art. 637 do CPP), não possuem efeito suspensivo, ao contrário da apelação (art. 597 do CPP), possibilitando, desde logo, a execução provisória do julgado objeto do recurso, e no processo penal significaria que após uma condenação em segundo grau de jurisdição o mandado de prisão poderia ser expedido independentemente de interposição de recurso especial ou extraordinário, pois já teria sido observado o princípio do duplo grau de jurisdição. Não obstante, tal tradição não foi recepcionada pela nova ordem constitucional e a regra é a de que o acusado permaneça em liberdade até o trânsito em julgado da sentença, cabendo ao juiz motivar o que impede o réu de apelar em liberdade, ou seja, a existência de elementos para a prisão preventiva, pelo menos foi o que decidiu o STF no dia 05 de fevereiro de 2009, ao julgar o “Habeas Corpus no 84.078/MG”. Por sete votos a quatro os ministros entenderam que a execução provisória da pena não pode acontecer enquanto houver recursos pendentes. O voto do relator Ministro Eros Grau, em favor do réu, foi baseado no princípio da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal), sendo acompanhado pelos Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Carlos Britto, Cezar Peluso, Ricardo Lewandoski e Gilmar Mendes. Em seu voto, o relator destacou os seguintes argumentos:  A Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84) condicionou a execução da pena ao trânsito em julgado da sentença (art. 105), estando adequada à ordem constitucional, de modo que se sobrepõe temporal e materialmente ao disposto no art. 637 do CPP (Decreto-lei n. 3.689/1941), que dispõe que o recurso extraordinário não possui efeito suspensivo.  No que concerne à pena restritiva de direitos (art. 147, LEP) ambas as Turmas do STF vêm interpretando que a execução da sentença deve ocorrer após o trânsito em julgado da sentença, logo, com maior razão deve ser aplicada a mesma interpretação à pena privativa de liberdade, por ser mais grave.  A prisão antes do trânsito em julgado somente pode ser decretada em caráter cautelar.  A ampla defesa engloba a fase recursal.  A previsão contida na Lei 8.038/90 de que os recursos especial e extraordinário não terão efeito suspensivo expressa uma política criminal vigorosamente repressiva e é tão casuísta quanto à Lei dos

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Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90), estando englobadas pela produção legislativa penal e processual penal dos anos 90, a qual é francamente reacionária, na medida em que cede aos anseios populares, buscando soluções severas e imediatas, em detrimento da ampla defesa e seus consectários.  Não se pode generalizar o entendimento de que todos os recursos especiais e extraordinários são meramente protelatórios. Tal argumento não será relevante no plano normativo enquanto não houver uma reforma processual. Após discorrer longamente em seu voto sobre a presunção de inocência, o relator arrebatou afirmando que nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito: “23. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual.” O Ministro Menezes Direito, um dos votos vencidos, por sua vez, sustentou que a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) não assegura direito irrestrito de recorrer em liberdade, muito menos até a quarta instância, como ocorre no Brasil. Foi acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa, Carmem Lúcia e Ellen Gracie. Para o Ministro Joaquim Barbosa, o Brasil é um dos mais generosos nas garantias do réu e a prisão já poderia ser decretada com a condenação nas duas instâncias ordinárias. O Supremo Tribunal Federal decidiu, pois, por maioria, que a execução provisória da pena afronta a Constituição da República.

VII. CONCLUSÃO Diante do que foi exposto se conclui que o conflito entre o princípio da presunção de inocência e o princípio da celeridade processual é apenas aparente, não havendo incompatibilidade em suas essências. Isso porque é perfeitamente conciliável que o acusado tenha amplo direito de defesa e goze do estado de inocência enquanto dura o processo, ao mesmo tempo em que pode ser impingida a celeridade processual no julgamento da ação penal. Um princípio não afasta o outro. O conflito aparente se instala em razão de alguns fatores, tais como: excesso de recursos no ordenamento jurídico pátrio, abuso do direito de defesa com interposição de recursos protelatórios e demora nos julgamentos em razão da estrutura deficitária do Poder Judiciário para atender toda a demanda, 9


principalmente nos Tribunais Superiores, onde ocorre um “afunilamento” por agregar causas do país inteiro. Em razão de tais fatores legais e estruturais, por via oblíqua o princípio da presunção de inocência acaba sendo evocado para adiar a condenação definitiva do acusado, provocando em muitos casos a impunidade, o que causa descrédito do Poder Judiciário perante a sociedade. Não obstante, isso não pode se tornar um discurso para mitigar a aplicação de tal princípio, por representar uma proteção que o cidadão possui contra um Estado ávido por dar respostas e recuperar sua imagem e credibilidade junto à população. Vale lembrar as considerações do Ministro Eros Grau, acima mencionadas, sobre as soluções severas e imediatas adotadas pelo Poder Legislativo de forma casuística. O tão-só endurecimento das penas – expediente geralmente utilizado na atividade legislativa – não tem o condão de resolver a problemática da criminalidade e da falta de credibilidade das instituições estatais em matéria de efetividade punitiva. O que desencoraja a prática de crimes não é a quantidade de pena, mas a certeza da punição. Melhor resultado seria alcançado com uma reforma processual que diminuísse a quantidade de recursos, bem como, com uma política estatal de melhor aparelhamento do Poder Judiciário, garantindo assim, um julgamento célere sem olvidar de todos os direitos do acusado inerentes à ampla defesa. Seria a perfeita integração entre os princípios constitucionais da “presunção de inocência” e da “celeridade processual”. Enquanto isso não acontece, apresenta-se mais prudente dar prevalência ao princípio da presunção de inocência. Lançando mão de máximas jurídicas, pode-se afirmar que justiça lenta não é justiça, como já dizia Rui Barbosa, mas é melhor absolver um culpado do que condenar um inocente.

VIII. REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Moderna, 1993. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 84078. Impetrante: Omar Coelho Vitor. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 05 de fevereiro de 2009. Diário da Justiça de 18 de fevereiro de 2009. disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=84078& classe=HC&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M, acessado em 04 de março de 2009. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 13.ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2002. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5. ed., rev., atual.e ampliada de acordo com a reforma do CPP. São Paulo: RT, 2008. 10


TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997, v.1. VADE MECUM Profissional & Acadêmico, superatualizado, prático e organizado. 5. ed. atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2008. VELOSO, Zeno; SALGADO, Gustavo Vaz (coords.). Reforma do judiciário comentada. São Paulo: Saraiva, 2005.

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