Revista Defensoria Publica de Sao Paulo 2

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REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA




Edição Especial Temática sobre PRINCÍPIOS E ATRIBUIÇÕES INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA

Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - EDEPE Rua Boa Vista, 103 - 13º andar CEP 01014-001 - São Paulo-SP Tel.: 11-3101-8455 e-mail: escola@dpesp.sp.gov.br

Revista da Defensoria Pública Ano 4 - n. 2 - jul./dez. 2011

Diretora da EDEPE:

Tiragem:

Elaine Moraes Ruas Souza

1.500 exemplares

Coordenação da Revista da Edepe

Produção Gráfica:

Carlos Eduardo Afonso Rodrigues,

Gráfica e Editora Viena

Daniel Guimaraes Zveibil, Luciana Jordão Da Motta Armiliato De Carvalho, Lucio Mota Do Nascimento, Marco Antonio Corrêa Monteiro, Marcus Vinicius Ribeiro, Tiago Fensterseifer, Bruno Shimizu Conselho Editorial Da Revista Da Edepe: Alvino Augusto De Sá, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Flávia Piovesan, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, Ingo Wolfgang Sarlet, Juliana Garcia Belloque, Lilia Moritz Schwarcz

A EDEPE, em suas revistas, respeita a liberdade intelectual dos autores e publica integralmente os originais que lhe são entregues, sem, com isso, concordar, necessariamente, com as opiniões expressas.


Sumário

Apresentação.......................................................................................................7 Assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes: modelos de organização e de prestação do serviço Roger Smith..........................................................................................................9 A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo Aluísio Lunes Monti Ruggeri Ré..........................................................................37 Mobilização jurídica versus mobilização social: uma abordagem a partir da justiça ambiental Élida Lauris..........................................................................................................55 A defensoria pública paulista: caminhando na contramão Eneida Gonçalves de Macedo Haddad...............................................................75 Educação republicana para os direitos humanos sua importância num estado democrático de direito Paulo Ferreira da Cunha.....................................................................................89 Educação em direitos e defensoria pública: reflexões a partir da lei complementar n.º 132/09 Gustavo Augusto Soares dos Reis.................................................................... 111 Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública Ada Pellegrini Grinover.....................................................................................143 Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/SP na prestação de assistência judiciária Virgílio Afonso Da Silva.....................................................................................167



Apresentação

Recomenda a prudência que, do ponto de vista institucional, nos períodos de maior crescimento e em meio à celebração de conquistas, não se percam de vista os fundamentos e princípios que nortearam a criação da Defensoria Paulista. É com base nesse pensamento que a EDEPE traz à luz, com muito orgulho, o terceiro volume da nossa revista. Este volume temático centra-se nos princípios e atribuições institucionais da Defensoria Pública, contendo trabalhos que trazem reflexões profundas sobre os tópicos centrais que informam a atuação do Defensor e sobre o espaço ocupado pela instituição na sociedade. O artigo que abre essa edição da revista, escrito por Roger Smith e traduzido pelo Defensor Público Cléber Francisco Alves, sistematiza e analisa os modelos de assistência jurídica no direito comparado, abordagem necessária para que nós pensemos o nosso próprio modelo, construindo uma argumentação coerente a favor da demanda pelo modelo público. O Defensor Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré, a seguir, analisa a atuação da Defensoria sob a óptica do neoconstitucionalismo, concentrando-se o texto sobre o papel central da instituição na efetivação dos direitos fundamentais, que deve sempre se recusar a enxergar na Constituição uma mera “carta de princípios”. Os textos da pesquisadora portuguesa Élida Lauris e da professora Eneida Gonçalves de Macedo Haddad versam cobre a interface necessária e sempre profícua com os movimentos sociais, reconhecendo-se que o operador do direito que restringe-se ao seu gabinete faz pouco mais que manter o “status quo”.


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Os textos do professor Paulo Ferreira da Cunha, catedrático da Universidade do Porto, e do Defensor Público Gustavo Augusto Soares dos Reis tratam da educação em direitos, dever da instituição e de cada Defensor Público. Por fim, a revista traz o parecer consultivo da lavra da professora Ada Pellegrini Grinover, sobre a atuação coletiva da Defensoria Pública, e o parecer do professor Virgílio Afonso da Silva, sobre o convênio firmado entre a Defensoria e a OAB/SP na prestação de assistência judiciária. Enfim, esses são apenas alguns temas que consideramos centrais no necessário debate sobre nossa atuação e sobre o lugar que ocupamos e desejamos ocupar na transformação da sociedade atual em uma sociedade mais livre, justa e solidária. Desejamos a todos e a todas boas leituras e reflexões! A Diretoria da EDEPE


ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA AOS HIPOSSUFICIENTES: MODELOS DE ORGANIZAÇÃO E DE PRESTAÇÃO DO SERVIÇO Roger Smith*

Diretor da ONG “JUSTICE”, entidade sediada na Inglaterra (Reino Unido) que se dedica ao estudo de reformas do Direito. Tradução: Cleber Francisco Alves* Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Católica de Petrópolis. Mestre e Doutor em Direito.

1. PRÓLOGO Este estudo1 analisa vários aspectos relativos aos modos de organização dos serviços de legal aid2 (assistência jurídica gratuita

* Para contato com o autor: rsmith@justice.org.uk. ** O trabalho de tradução contou com a colaboração de Marilyn Filpo, graduanda em Direito pela UCP. Para contato com o tradutor: calves@compuland.com.br. N. de T.: Este artigo foi escrito em 2002, para uma conferência sobre Assistência Jurídica Gratuita na Europa Central e Oriental, realizada em Budapeste de 05 a 07 de dezembro de 2002. Por conseguinte, não estão considerados as mudanças ocorridas nos respectivos cenários desde então, sendo certo que inevitavelmente está focado numa perspectiva europeia em que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos desempenha um importante papel na garantia da prestação desses serviços.

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N de T.: a expressão legal aid, que em Portugal costuma ser traduzida como “suporte legal”; na verdade não possui um tradução adequada no vernáculo; considerando o contexto jurídico do Brasil, preferimos traduzir tal expressão por “assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes custeada com recursos públicos”; todavia, para melhor fluidez do texto, em muitas passagens, optaremos por manter a expressão original em inglês: legal aid.


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aos hipossuficientes custeada com recursos públicos), tomando como referência a experiência verificada em diversos países. As premissas subjacentes ao desenvolvimento deste estudo são as de que os tópicos abaixo configuram perguntas-chave a serem respondidas por gestores públicos, na tarefa de avaliar os variados modelos de organização da assistência jurídica gratuita nas suas respectivas jurisdições. Eis, então, os tópicos a serem considerados: (a) Que tipos de serviços (e qual a respectiva abrangência) são reconhecidos como sendo de natureza obrigatória a serem prestados pelo poder público, em caráter gratuito, em seu país, tendo como base normativa: (i) A Convenção Europeia de Direitos Humanos. (ii) Provisões sobre questões de “assistência mútua” – no âmbito dos países membros – emanadas da União Europeia. (iii) As respectivas normas do direito público interno? (b) Que outros serviços, de caráter discricionário se desejam prestar? (c) Que serviços no âmbito de defesa criminal se desejam prestar? Particularmente, que serviços se pretendem prestar, em caráter preliminar, a um suspeito sendo formalmente indiciado/acusado ou quando de seu interrogatório pela polícia? (d) Em relação aos casos cíveis, que tipo de cobertura (abrangência) se deseja alcançar para questões no âmbito do direito de família, do direito privado, do direito público e do “direito da pobreza”3? (e) Como os serviços de assistência jurídica mantidos pelo poder público se inter-relacionam com outras formas de serviços mantidos por instituições privadas ou com outros sistemas alternativos de solução de conflitos? (f) Pretende-se que os serviços jurídicos sejam ampliados para além do patrocínio/representação de causas em Juízo e incluam também orientação e aconselhamento jurídico? (g) É reconhecida a necessidade de proporcionar informação e educação jurídica à comunidade? 3

N. de T.: no original consta a expressão poverty law que não encontra tradução precisa no vernáculo; trata-se do conjunto de normas jurídicas destinadas à proteção social das pessoas que se encontram em estado de pobreza, notadamente benefícios assistenciais e garantia de direitos sociais que integram o “mínimo existencial”.


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(h) Pretende-se destinar recursos para ações coletivas de interesse público e para serviços de assistência social? Em caso afirmativo, como? (i) Que tipos de critérios para definição de carência econômica são previstos para elegibilidade nos casos criminais? (j) Que tipos de critérios para definição de carência econômica são previstos para elegibilidade nos casos cíveis? (k) Quem controlará a observância dos critérios de carência econômica e a avaliação do mérito da questão jurídica para cuja solução/ esclarecimento se busca assistência jurídica gratuita? Os próprios prestadores dos serviços serão confiáveis para realizar tais controles ou tal certificação ficará sob o encargo de terceiros? (l) Como é prevista a prestação dos serviços na esfera criminal? A opção é por advogados privados, profissionais assalariados, alguma modalidade de organização de “defensoria pública” ou algum modelo misto/combinado de prestação dos serviços? Quais são as vantagens e desvantagens de cada sistema? (m) Quaisquer que sejam os métodos de prestação de serviços para casos criminais, eles reúnem os determinantes caracterizadores de bons serviços propostos no presente estudo? (n) Como é prevista a prestação dos serviços na esfera cível? A opção é por advogados privados, organismos jurídicos comunitários, alguma modalidade de agência ou instituição pública estatal4 ou algum outro modelo? (o) Que órgão estatal gerenciará/administrará os serviços jurídicos gratuitos financiados com dinheiro público? (p) Como serão definidas as responsabilidades por gerenciamento e fixação das linhas e diretrizes políticas? (q) Qual departamento/órgão governamental será responsável pela fixação das diretrizes políticas dos serviços de assistência jurídica e como se garantirá que tal organismo disporá de informações sobre a eficácia da implementação dessas diretrizes na efetiva prestação dos serviços ao público destinatário? 4

N. de T.: nesta categoria estaria inserida a instituição da Defensoria Pública (tal como concebida no Brasil), que certamente não foi mencionada expressamente pelo autor visto que, no ambiente cultural anglo-saxão, a concepção de Defensoria Pública normalmente está associada à defesa na esfera criminal.


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(r) Quais serão os mecanismos do órgão gestor para prestar contas à sociedade a respeito de sua atuação? (s) É considerada importante a cooperação dos integrantes das profissões jurídicas já existentes e, em caso afirmativo, como se obterá isso? (t) Que medidas são previstas para garantir a qualidade na prestação dos serviços de assistência jurídica? (u) Como se assegurará que as diretrizes políticas dos serviços de assistência jurídica estejam integradas em uma mais ampla política de acesso à justiça? (v) Qual o tamanho do orçamento disponível? E como se demonstrará que o custo-benefício do serviço está sendo adequado?

2. INTRODUÇÃO A organização dos serviços de assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes, custeados com recursos públicos, em diferentes países é influenciada pela cultura e pela história local. São bastante diversificados os modelos adotados em cada parte do mundo. Por exemplo, os Estados Unidos e o Reino Unido têm diferentes experiências apesar de ambos serem países integrantes do sistema denominado de commom law. Os Estados Unidos têm utilizado majoritariamente o modelo de advogados assalariados, com vínculo empregatício junto a organizações não estatais de assistência jurídica e organizações estatais de defensoria pública. No Reino Unido os serviços são prestados, predominantemente, por advogados privados. Nos Estados Unidos, os serviços de assistência jurídica na área cível têm sido vistos, pelo menos em parte, dentro de um contexto altamente politizado que, em contrapartida, é largamente ausente no Reino Unido. Tenho consciência de que, na Europa Central e Oriental, haverá diferentes tradições que ditam diferentes níveis de recursos disponíveis, diferentes prioridades na prestação dos serviços e diferentes preferências no tipo de serviços a serem prestados. Diferentes experiências geram diferentes preconceitos e, de certa forma, uma base de sustentação muito “paroquial” para o modelo local. Muitos países com sistemas bem desenvolvidos de serviços de assistência jurídica gratuita custeados com recursos públicos tendem a acreditar que eles têm o melhor modelo. Um certo número deles talvez até possa ter


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essa percepção com algum grau de razoabilidade – especialmente se eles dispõem de alguma folga de recursos destinados para tais despesas. Entre eles estariam a Holanda, os EUA, o Estado canadense de Ontário, a Escócia, a Inglaterra e o País de Gales, a Suécia e outros. Todavia, a prática é muito diferente nessas jurisdições. A lição que se pode extrair é que não há uma “resposta certa”, mas sim a possibilidade de maximização da relação de custo-benefício, dadas as circunstâncias peculiares à realidade de cada país. Pode-se dizer, porém, que há apenas uma constante: bons serviços de assistência jurídica gratuita públicos correspondem sempre a níveis altos de disponibilização de recursos financeiros. Isso é, infelizmente, impossível de se escapar. Nos anos de 1970, o Estado canadense de Quebec provavelmente tinha o melhor sistema de assistência jurídica gratuita do mundo.5 Por volta dos anos de 1990, os critérios de elegibilidade para o cidadão se valer de tais serviços e os recursos estatais disponíveis para seu custeio tinham caído tanto que a cobertura era relativamente mínima. Do mesmo modo, recursos têm sido radicalmente cortados na Austrália, reduzindo a prestação do serviço mesmo em estados que, outrora, eram considerados bem aquinhoados nesse aspecto, como era o caso de New South Wales e Victoria. Muitos, mesmo dentre os países que mantinham um bom nível de dotação de recursos para a assistência jurídica, tiveram de enfrentar a revolta de profissionais jurídicos prestadores dos serviços que reclamavam por considerarem que os níveis de sua remuneração tinham caído para níveis inaceitavelmente baixos. Advogados holandeses chegaram a entrar em greve; os advogados que atuam na assistência jurídica no Estado de Ontário (Canadá) têm estado recentemente em litígio com o governo por causa do problema da remuneração; advogados ingleses têm feito ameaças de não mais autuar nos serviços de legal aid, o que vem suscitando preocupação da entidade estatal responsável pelo gerenciamento do serviço – a LSC, ou seja, Legal Services Comission – circunstância que foi objeto de expressa referência em um de seus relatórios anuais, nos seguintes termos: Estamos colhendo informações (...) no sentido de que de cinquenta por cento dos escritórios de advocacia estão seriamente considerando a possibilidade de cessar ou de reduzir significativamente os serviços prestados para clientes beneficiários do legal aid (em que a remuneração 5

Ver: LEGAL ACTION GROUP, A strategy for Justice, 1992.


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devida a tais escritórios é feita com recursos públicos custeados pela LSC).6

O preço de manter bons serviços nesse campo é a eterna vigilância contra compreensíveis pressões do governo para reduzir ou manter custos.

3. ACESSO À JUSTIÇA Há ainda outro ponto preliminar a ser considerado. Esse evento7 tem como temática de fundo a ideia de “acesso à justiça”. É importante destacar que, originariamente, “acesso à justiça” foi desenvolvido como um conceito-chave no final dos anos de 1970 por aqueles que argumentaram que apenas destinar mais dinheiro para serviços de assistência jurídica seria uma resposta muito reducionista (estreita) para superação da injustiça. Dois deles escreveram o prefácio de um importante livro contendo um estudo de âmbito mundial a respeito da garantia do acesso à justiça explicando: “O enfoque do acesso à justiça busca enfrentar (...) barreiras de modo bastante amplo, suscitando questionamentos que atingem a completa gama de instituições, procedimentos e pessoas que caracterizam nosso sistemas judiciais”.8 A ideia de uma abordagem de acesso à justiça tem uma lição concreta em termos da missão própria conferida ao órgão estatal responsável pelos serviços de legal aid. Deve ter uma perspectiva suficientemente ampla para encorajar uma visão o mais abrangente possível dos serviços que deve prover. O não atendimento desse requisito foi, por muitos anos, uma deficiência no gerenciamento de serviço de legal aid que estava sob a responsabilidade da Law Society9 na Inglaterra e no País de Gales. Uma

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Cf. LEGALSERVICES COMMISSION. Annual Report 2001/2002. House of Commons 949, parágrafo 2.7.

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N. de T.: o autor está se referindo ao evento no âmbito do qual foi apresentada a palestra cujo teor corresponde ao presente texto.

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CAPPELLETTI & GARTH. Access to Justice: Volume 1. Sijthoff and Noordhof, 1978, p. 124.

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N. de T.: Durante muitos anos, não existia uma instituição estatal específica para gerenciar o sistema de legal aid na Inglaterra, ficando tal responsabilidade sob o encargo da Law Society, que é a entidade de classe dos advogados, mais ou menos correspondente à OAB no Brasil.


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importante fonte de referências comparativas quanto à prestação de outros serviços governamentais pode ser obtida com monitoramento desse tipo de assunto relativamente a casos de financiamento (dos serviços de legal aid) custeado pelos cofres públicos. A ênfase na perspectiva de garantia de efetivo acesso à justiça relativamente aos serviços de legal aid é um modo de se ter presente que estes devem ser considerados sempre em conjunto com a questão processual e, efetivamente, com o direito material. Por exemplo, uma das leis mais importantes do direito britânico em relação à justiça criminal foi a Lei de Provas Criminais e Policiais, do ano de 1984. Essa legislação regulamentou e delimitou os poderes da Polícia de manter preso um suspeito antes da instauração formal do processo penal; disciplinou ainda a realização de interrogatórios e o tratamento a ser dado aos suspeitos na fase pré-processual, por meio do estabelecimento de um “código de conduta” a ser observado pelos policiais; mudou as disposições administrativas dentro da delegacia de polícia; introduziu a obrigatoriedade de gravação das entrevistas para oitiva de pessoas (o que inicialmente sofreu oposição da polícia, mas posteriormente passou a ser positivamente apreciada); e também introduziu a obrigatoriedade de custeio de despesas com pagamento de advogados para prestar assistência jurídica aos indiciados nas delegacias de polícia na fase em que ainda não estivessem formalmente submetidos a processo judicial. Isto foi, na verdade, quase que um “manual” de legislação, que seguiu, de modo exemplar, a abordagem holística de “acesso à justiça” – embora, no momento em que foi editada, tenha suscitado ampla e intensa controvérsia (na opinião pública). 4. GERENCIANDO O SERVIÇO DE LEGAL AID: A IMPORTÂNCIADA EXISTÊNCIA DE UMA COMISSÃO/CONSELHO/INSTITUIÇÃO Muitos governos têm considerado útil estabelecer um órgão intermediário, estreitamente relacionado, mas formalmente independente do governo, para administrar os serviços de assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes custeados com recursos públicos. A vantagem de tal formato é que isso ajuda a preservar a independência da tomada de decisões nos casos individuais e assegura distanciamento do governo de ataques políticos em casos que são controversos, por exemplo, a concessão de assistência jurídica a uma pessoa acusada de uma série de assassinatos/crimes hediondos. A Holanda foi uma das últimas grandes


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jurisdições a criar Conselhos Regionais autônomos (para gerenciamento dos serviços) de legal aid, no ano de 1994. No Reino Unido, as três jurisdições nacionais internas (Inglaterra/País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte) estavam entre as primeiras a estabelecerem esquemas nacionais de legal aid logo depois da Segunda Guerra Mundial: eles eram inicialmente administrados pelas Law Societies (as corporações profissionais que congregam os profissionais da advocacia) que tinham concebido a ideia. Contudo, na Inglaterra, a Law Society foi substituída por um Conselho de Assistência Jurídica (Legal Aid Board) pela Lei de Assistência Jurídica do ano de 1988 pela qual se pretendia “alcançar um papel estratégico central para os serviços de legal aid”.10 Na composição do Conselho (Legal Aid Board) se incluíam assentos vinculados a várias categoriais diretamente envolvidas na atividade de assistência jurídica, particularmente, os órgãos de representação profissional (das carreiras jurídicas). Sucessivamente, o Conselho (Board) foi substituído pela Comissão de Serviços Jurídicos (Legal Services Commission) criada pela Lei de Acesso à Justiça do Ano de 1999. Uma comissão (Comission) ou conselho (Board) é um mecanismo largamente difundido para o gerenciamento dos serviços de legal aid. A Província canadense do Quebec tem sua “Comissão de Serviços Jurídicos” (Commission des Services Juridiques) que segue o modelo da Corporação de Serviços Jurídicos norte-americana – a Legal Services Corporation (embora esse organismo somente atue no custeio de assistência jurídica gratuita em matérias cíveis, ou melhor, não criminais). O Estado canadense de Ontário, onde o serviço de legal aid era gerenciado pela corporação profissional dos advogados até ser transferido para a entidade pública Legal Aid Ontário, por meio da Lei de Serviços de Assistência Jurídica do ano de 1998, pode ter sido o último a mudar. Muitas províncias no Canadá possuem dispositivos legais similares. O mesmo se dá na Austrália. A África do Sul possui um Conselho de Assistência Jurídica (Legal Aid Board). O “modelo de comissão” supõe a existência de: um departamento governamental (da administração direta) responsável pela destinação de 10

Ver Hansards, HL (House of Lords) Debates 15, December 1987, colection 607. (N. de T.: a referência do autor diz respeito aos debates ocorridos na “Casa dos Lordes”, do Parlamento Britânico, por ocasião da discussão do projeto de lei que criava o Legal Aid Board; o acesso ao conteúdo dos debates está disponível on-line, no seguinte endereço [consultado em 11 de janeiro de 2011]: http:// hansard.millbanksystems.com/lords/1987/dec/15/legal-aid-bill-hl.)


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recursos e definição das diretrizes políticas a serem seguidas; de uma comissão independente, embora nomeada pelo ente governamental, que fica responsável pela implementação dessa política em um âmbito de extensão maior ou menor conforme as circunstâncias locais; de profissionais (encarregados da prestação dos serviços propriamente ditos) os quais serão pagos, direta ou indiretamente, pela referida comissão. Os países que adotam esse modelo possuem diferentes visões sobre o modo a ser observado para nomeação dos membros da comissão ou do conselho respectivo. Alguns estabelecem assentos reservados para grupos vinculados às profissões jurídicas ou à clientela específica envolvidas na prestação do serviço, como foi o caso da Inglaterra, durante o período de existência do Legal Aid Board. Outros países adotam critérios mais discricionários. As regras estabelecidas na Lei inglesa de Acesso à Justiça, do ano de 1999 são bons exemplos de amplos poderes dados ao Ministro de Estado a quem compete a respectiva nomeação: A comissão deve ser composta de: (a) não menos que sete membros, e (b) não mais que doze membros; Mas o Lorde Chanceler [Ministro de Justiça] pode por ordem [mudar quaisquer desses números]. Os membros da Comissão serão nomeados pelo Lorde Chanceler; e o Lorde Chanceler nomeará um dos membros para presidir a Comissão. Ao nomear pessoas para serem membros da Comissão, o Lorde Chanceler deve ter em conta que é desejável que se assegure que a Comissão inclua membros que (dentre eles) tenham experiência em ou conhecimento a respeito de: (a) prestação dos serviços os quais cabe à Comissão custear como parte do Serviço Comunitário Jurídico [expressão que se refere especificamente à assistência jurídica em questões cíveis, ou seja, civil legal aid] e do Serviço de Defesa Criminal [que corresponde à assistência jurídica em questões criminais, ou seja, criminal legal aid]; (b) a atividade jurisdicional, prestada pelos tribunais; (c) questões e problemáticas relativas ao consumidor; (d) realidade das condições sociais; e (e) gerenciamento.


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O ponto de maior destaque quanto à representação direta de categorias diretamente envolvidas nos serviços de assistência jurídica provavelmente se deu nas Comissões de Legal Aid dos Estados australianos de New South Wales e Victória, em meados dos anos de 1990. Suas respectivas Constituições estabeleciam lugares para as corporações profissionais jurídicas, para organizações de defesa de consumidores, para centros comunitários de serviços jurídicos, etc. Ambas foram, contudo, suprimidas e foram substituídas por organismos menores, com membros nomeados pelo governo com menores restrições (quanto à vinculação a determinadas categorias). Uma abordagem mais estrita é evidente no Conselho Israelense da Defensoria Pública o qual tem cinco membros: o Ministro de Justiça, um Juiz aposentado da Suprema Corte, um advogado criminal selecionado pela Associação Nacional de Advogados; um advogado criminal nomeado pelo Ministro de Justiça com o consentimento do Presidente da Associação de Advogados e um professor universitário de direito criminal. Um modelo intermediário que conjuga a prerrogativa do poder executivo de nomeação (dos membros do conselho/comissão) com um certo grau de interveniência da entidade representativa dos profissionais jurídicos pode ser observado no caso do Conselho de Assistência Jurídica de Ontário, ou seja, o Legal Aid Ontario (a Law Society da região do Alto Canadá é a entidade representativa dos advogados da província de Ontario): O Conselho de diretores da entidade responsável pela Assistência Jurídica (na Província de Ontário) será composto de pessoas nomeadas pelo Vice-Governador em regime de compartilhamento, conforme segue: 1. Um dos membros, que será o presidente do conselho, será selecionado pelo Procurador Geral de Justiça (Attorney General) dentre uma lista de pessoas indicadas por um comitê instituído pelo Procurador Geral ou uma pessoa por ele(a) (livremente) designada; o Tesoureiro da Law Society ou uma pessoa por ele(a) (livremente) designada e mais uma terceira pessoa cujo nome será definido em consenso pelo Procurador Geral e pelo Tesoureiro da Law Society ou por pessoas por eles designadas para tal mister. 2. Cinco pessoas selecionadas pelo Procurador Geral de uma lista de pessoas indicadas pela Law Society. 3. Cinco pessoas indicadas (livremente) pelo Procurador Geral.


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5. MEMBRO (DO CONSELHO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA) SEM DIREITO A VOTO: O presidente do respectivo colegiado (Comissão ou Conselho de Assistência Jurídica) normalmente não terá direito a voto. O “modelo de (gerenciamento da assistência jurídica por meio de) comissão” funciona relativamente bem. Há duas áreas potenciais de atrito. Primeiramente, pode haver circunstâncias quando os membros da comissão não tenham sido nomeados pela legislatura ou pelo governo vigente e isso pode gerar divergências. Houve um momento difícil nos Estados Unidos quando os membros da Legal Services Corporation (que é responsável, em nível nacional pelos serviços de assistência jurídica na área cível) tinham sido nomeados pela administração do Presidente Clinton, mas tiveram que enfrentar o antagonismo do legislativo (que não comungava das diretrizes políticas do Presidente). Em segundo lugar, qualquer que seja o arranjo institucional de divisão de poderes entre o departamento governamental a que esteja vinculada a comissão/ conselho (e que seja responsável pelo repasse das verbas orçamentárias respectivas), pode haver um grau de rivalidade entre eles. A comissão sempre tem a vantagem de estar perto dos avanços e demandas da área específica da assistência jurídica gratuita porque é um sistema de microgerenciamento. O departamento governamental (Ministério ou Secretaria de Estado) tem uma visão ampla dos objetivos do governo, mas menos conhecimento das especificidades da área. Tem havido, ao longo do tempo, uma certa “rivalidade” na Inglaterra entre a Comissão/ Conselho de Assistência Jurídica (ou seja, a Legal Services Comission/ Legal Aid Board) a qual realmente tem atuado como verdadeiro motor para o desenvolvimento/aprimoramento da política de assistência jurídica ao invés do Ministério da Justiça. Tal “rivalidade”, porém, nunca chegou a atingir um nível tal em que não se pudesse legitimamente considerar como uma (saudável) tensão, genuinamente criativa. Pode haver países onde seja considerado útil manter o envolvimento da entidade representativa dos profissionais jurídicos (especificamente a corporação dos advogados) no gerenciamento dos serviços de assistência jurídica, apesar da recente tendência que se verifica nos países que contam com sistemas considerados mais bem desenvolvidos de serviços legal aid no sentido de superação/rejeição desse modelo. O engajamento da entidade representativa dos advogados tem, por exemplo, ajudado muito na implantação, pelo menos, de uma forma elementar de serviço de assistência


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jurídica num país em desenvolvimento como é o caso de Bangladesh. Tal entidade tem encorajado os advogados a prestarem serviços (de assistência jurídica aos hipossuficientes) a um preço bastante baixo, concebendo-os como uma espécie de dever moral dos advogados; não fosse assim, eles talvez não estivessem preparados para fazê-lo.

6. ASSISTÊNCIA JURÍDICA: A QUE MINISTÉRIO/DEPARTAMENTO GOVERNAMENTAL VINCULÁ-LA? Esse é um dos pontos que suscita preocupação nos governos, sendo certo que há uma variedade de arranjos institucionais relativamente à definição quanto a qual departamento governamental deve ter a seu encargo a responsabilidade de definição das diretrizes políticas para os serviços de assistência jurídica (legal aid). Na Inglaterra e no País de Gales, é a Chancelaria da Justiça (Lord Chancellor´s Department); na província de Ontário e no governo federal canadense, a Procuradoria-Geral de Justiça (Ministry of the Attorney-General), ambos são aproximadamente equivalentes ao Ministério de Justiça. Nos Estados Unidos, o quadro é diferente. Por exemplo, responsabilidade para serviços de assistência jurídica na área criminal não se encaixa facilmente na doutrina de separação de poderes dentro do Legislativo, Executivo e Judiciário e há alguma variação de prática. Por exemplo, no Estado de Oregon, a questão fica na esfera do Judiciário. Em outros Estados, como aquela que vigora em Seattle, no Estado de Washington, tal encargo (inclusive com autonomia financeira) fica sob a responsabilidade da Defensoria Pública (Office of the Public Defense) vinculado ao Poder Executivo. Países que adotam o regime federativo, como Canadá e Austrália, enfrentam mais problemas relativamente a tais arranjos institucionais em virtude da divisão entre a esfera de responsabilidade pelo custeio orçamentário-financeiro e a esfera de responsabilidade pela definição das diretrizes políticas.

7. RESPONSABILIDADES GOVERNAMENTAIS (QUANTO À ASSISTÊNCIA JURÍDICA) DETERMINADAS PELA CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS A prestação de serviços de assistência jurídica em matérias criminais e em matérias cíveis costuma suscitar diferenciadas questões de ordem


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política. Nos Estados Unidos, tais serviços geralmente são prestados de maneira completamente distinta e separada.11 No Reino Unido, a diferença é indicada pela, ainda que imaginária, criação de um Serviço de Defensoria Criminal separado e um Serviço Legal Comunitário (Community Legal Service). Todos os países europeus que são signatários da Convenção Europeia de Direitos Humanos terão de respeitar e fazer cumprir, pelo menos em teoria, as exigências do seu Artigo 6(3) e, particularmente, do item 6(3)(c), que assim dispõem: Todos os (que forem formalmente) acusados pela prática de crimes têm os seguintes direitos mínimos: defender-se pessoalmente ou através de assistência de advogado de sua própria escolha ou, se a pessoa não tiver meios suficientes de pagar por tal assistência, a que lhe seja dada gratuitamente quando os interesses de justiça assim o indicarem.

Destarte, todos os países europeus devem ter sistemas de assistência jurídica gratuita para casos criminais. Não há dispositivo equivalente, na Convenção, para casos cíveis, embora isso tenha sido reconhecido como implícito pela Corte Europeia de Direitos Humanos, que já decidiu nesse sentido: nos casos em que a assistência de um advogado seja “indispensável para o efetivo acesso à prestação jurisdicional”, quer por se tratar de caso em que a representação por advogado seja considerada compulsória (em que não se atribua à parte leiga capacidade postulatória) ou em razão da “complexidade do procedimento ou do caso”12. Pode ser oportuno esclarecer as implicações dessa análise da Convenção Europeia: (a) Assistência Jurídica Gratuita Criminal deve estar disponível para a defesa de todas as infrações penais qualificadas efetivamente como crimes. (b) Admite-se que haja uma verificação de efetiva situação de carência de recursos para dispor de assistência jurídica gratuita criminal,

11

N. de T.: para melhor compreensão dessa dicotomia do modelo americano, o leitor poderá consultar a obra “Justiça para todos! - A assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil”, de autoria de Cleber Francisco Alves, publicada pela Editora Lumen Juris.

12

STARMER, Keir. European Human Rights Law. Legal Action Group, 1999, p. 365; AIREY v. IRELAND (1979-1980) 2 EHRR 305 (N. de T.: sobre o célebre caso Airey, indica-se ao leitor o artigo “Estudo de Caso: a decisão ‘Airey v. Ireland’ e sua importância na afirmação do Direito de Acesso à Justiça no continente europeu”, de autoria de Cleber Francisco Alves, publicado na Revista de Direito da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (Ano 19, Número 20, 2006)).


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de modo que é possível a recusa se um réu possuir meios econômicos suficientes. (c) Um réu que não possuir meios suficientes receberá assistência jurídica criminal gratuitamente e sem pagamento de quaisquer espécies de contribuições (havia uma prática inglesa que foi, até recentemente, uma violação a esse preceito). (d) Deve haver assistência jurídica gratuita em casos cíveis nos casos em que seja efetivamente indispensável, admitindo-se uma avaliação tanto de carência de recursos quanto a respeito do mérito (análise da viabilidade da pretensão jurídica do interessado em obter a assistência jurídica). 8. ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA CRIMINAL: COMO PRESTAR ESSE SERVIÇO Serviços de assistência jurídica gratuita custeados com recursos públicos, em questões criminais, podem ser prestados de diferentes formas, de acordo com as realidades e especificidades culturais de cada país e disponibilidade de recursos. As principais alternativas são: (a) advogados privados – empregados na modalidade “caso a caso” e frequentemente conhecidos pela expressão norte-americana “judicare”; (b) advogados assalariados empregados pela autoridade/comissão/ entidade encarregada de prestar os serviços de legal aid, frequentemente referido como “advogado interno” (ou in-house duty counsel); (c) profissionais empregados por uma organização independente de prestação de serviços de assistência jurídica gratuita, chamada de Defensoria Pública que pode, ou não, ser ela mesma a responsável pelo custeio do serviço (com recursos provenientes diretamente dos cofres públicos), modelo que é conhecido como staff model. Há, entretanto, inúmeras variações e combinações nesses três modelos. Historicamente, os que estudam esse tema têm dividido os modos de prestação dos serviços nessas três tradicionais modalidades: staff model, advogados assalariados e judicare. Todavia, crescentemente, isto vem se tornando mais complicado por duas razões específicas. Primeiro, países com avançados sistemas de legal aid, como Canadá e Inglaterra/Gales, têm sido atraídos para um “modelo misto” de prestação


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dos serviços incorporando elementos de mais de um ou de todos os três (modelos tradicionais). Segundo, tem havido um crescente interesse em um modelo de contratação de serviços com uma variedade de diferentes entes prestadores. Isso começou nos Estados Unidos que eram frequentemente (embora não sempre) criticados pelo fornecimento de serviços em um esquema de “baixo custo/baixa qualidade”. Contudo, o modelo de contratação tem sido desenvolvido pela Comissão de serviços de assistência jurídica – Legal Services Commission – na Inglaterra e no País de Gales, mais precisamente como forma de aumentar a qualidade por incorporar critérios de garantia de qualidade nos respectivos contrato. O fato é que não há uma, digamos, “resposta certa” para a questão relativa ao modo de prestação desses serviços. Efetivamente, a Comissão Inglesa de serviços de assistência jurídica gratuita custeados com recursos públicos se vale de uma variedade de mecanismos de prestação de serviços na área de casos cíveis (não criminais). 9. DIFERENTES MODELOS DE PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS: PRÓS E CONTRAS Cada modelo de prestação dos serviços de legal aid tem suas vantagens e, adicionalmente, há desvantagens em um modelo misto. Isso dá aos governantes (especialmente legisladores) uma oportunidade de fazer uma checagem, contrapondo custos e benefícios (quanto à efetividade). Isso também propicia elemento de competição entre prestadores do serviço. Nos locais onde o judicare (serviço prestado por advogados particulares) é bem estabelecido/consolidado a tentativa de implementação de outras formas de provimento do serviço pode ser politicamente conflituosa. (Apesar disso) tanto a Escócia quanto a Inglaterra, recentemente, implementaram um projeto piloto de organização de Defensoria Pública. Estas se estruturam em pequenos grupos de advogados assalariados, de dedicação integral, empregados diretamente pela Legal Services Commission (no caso da Inglaterra) ou pelo Legal Aid Board (no caso da Escócia). Em ambas as jurisdições, os escritórios de defensores públicos receberam apenas uma pequena porção dos casos (por se tratar de projeto experimental). Nessas duas jurisdições, tal iniciativa foi recebida com algum desdém e muita suspeita por parte dos advogados privados (que antes prestavam com exclusividade o serviço) relativamente a prestação dos serviços por defensores públicos.


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As vantagens e desvantagens de diferentes tipos de provimento do serviço incluem: (a) JUDICARE Definição – o serviço é prestado por advogados privados (remunerados), na base em caso a caso, sendo que frequentemente se emite (pelo órgão gestor dos serviços) uma espécie de certificado (atestando que o cliente faz jus à assistência jurídica gratuita) e mediante o qual se assegura ao advogado o direito de receber sua remuneração (junto ao órgão gestor respectivo) pelo serviço prestado. Vantagens – a outorga do “benefício” (com a assunção da respectiva responsabilidade pelo custeio das despesas por parte do órgão gestor) é feita na base do caso a caso, o que permite um controle mais estrito (desses gastos); tende a demandar uma grande burocracia para os procedimentos de aprovação e emissão dos certificados;13 efetivamente suscita maior envolvimento dos advogados privados no sistema de justiça criminal; desse modo, reforça sua preocupação com as liberdades civis básicas e direitos humanos; pode viabilizar o direito de os réus escolherem seus próprios advogados e gerir a disponibilidade de representação. Desvantagens – pode haver problemas de controle de qualidade se isso for deixado ao critério exclusivo dos advogados privados prestadores dos serviços; é geralmente a forma mais cara de prestação do serviço; pode ser difícil de controlar os custos. (b) ADVOGADO INTERNO (In-house duty counsel) Definição – advogados integrantes de um staff, diretamente empregados pelo órgão gestor dos serviços de legal aid, os quais assumem o encargo de representação. Vantagens – pode ser de bom “custo-benefício” nos casos em que um advogado possa ser designado para responder por um número significativo de casos de uma vez (em conjunto), por exemplo, encarregando-o de responder por um plantão junto a determinado

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N. de T.: parece que tal característica representa, na realidade, uma desvantagem.


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órgão jurisdicional onde haja uma sobrecarga (de casos patrocinados em regime de assistência jurídica gratuita). Desvantagens – pode suscitar problemas de qualidade por causa do “baixo status” e pouco interesse por esse tipo de trabalho (ou seja, contratação para atuar em regime de “plantão”); pode suscitar dificuldades para os clientes em virtude de acarretar segmentação da representação entre diferentes advogados. (c) DEFENSORES PÚBLICOS Definição – a prestação de serviços é feita por advogados assalariados, empregados pelo órgão gestor dos serviços de legal aid ou por outras agências/instituições (governamentais) os quais ficam incumbidos da representação completa/integral dos acusados.14 Vantagens – pode ser vantajoso, em termos de “custo-benefício”, relativamente ao judicare; é capaz de desenvolver um elevado “estado de espírito” (N. de T.: uma espécie de “idealismo institucional”) e assegurar a prestação de excelentes serviços que vão além da dimensão estritamente judicial. Desvantagens – pode suscitar sentimento de baixa autoestima na atividade profissional; pode ficar sujeito a destinação muito baixa de recursos financeiros; pode levar à representação “rotineira” (ou seja, a uma postura burocrática, de modo repetitivo e acomodado) em lugar de uma representação de “alta qualidade” (ou seja, a uma postura combativa e criativa); raramente atrai as verdadeiras “estrelas” (ou seja, os profissionais de maior brilho/projeção) que atuam na área da defesa criminal os quais preferem trabalhar fora do ambiente burocrático (estatal); talvez não seja tão mais barato que o modelo do judicare se for devidamente financiado; é difícil a atribuição de incentivos para rapidez e eficiência. (d) SERVIÇOS CONTRATADOS Definição – serviços prestados por profissionais advogados ou por organizações empregando advogados sob regime de contrato com 14

N. de T.: conforme esclarecido na N. de T. 4 supra, no contexto jurídico anglo-saxão a ideia de Defensoria Pública costuma sempre estar associada estritamente á defesa criminal.


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a entidade oficial/governamental responsável pelos serviços de assistência jurídica, isto é, qualquer dos três modelos acima. Vantagens – tem sido usado para aumentar a qualidade, mas precisa explicitar critérios de garantia de qualidade; torna o controle de custo mais fácil; dá ao prestador de serviço alguma certeza de remuneração; pode ser usado para fomentar serviços que, de outro modo, estariam indisponíveis. Desvantagens – pode ser usado para abaixar os custos; pode levar a baixa qualidade; pode encorajar representação “rotineira” (ou seja, a uma postura acomodada/repetitiva). O importante critério determinante de como prestar os serviços (de legal AID) é o contexto cultural local. Alguns modelos de prestação dos serviços são mais aceitos em um país do que em outro. Serviços de defesa criminal na Inglaterra e no País de Gales são agora15 prestados pela forma de contrato com escritórios de advocacia e outros prestadores de serviços de qualidade aprovada, mas baseado em um orçamento aberto e sem restrição quanto aos números. Esse modelo faz sentido para Inglaterra, que tem uma longa história de compromisso com assistência jurídica gratuita aos hipossuficientes prestada por um grande número de advogados privados. Isso provavelmente parece muito complicado para um país que esteja começando a desenvolver esse tipo de prestação de serviços. Contudo, pode ser interessante atentar para as áreas nas quais a comissão inglesa de serviços de assistência jurídica (a Legal Services Comission) tem desenvolvido critérios de controle de qualidade. Aqueles países que estão estabelecendo um novo sistema interno de assistência jurídica na área criminal, ou revivendo um antigo, podem cogitar empregar advogados privados ou advogados assalariados. Estes últimos são geralmente mais baratos, se computado o custo por caso, exceto talvez em áreas rurais onde o número de casos seja relativamente baixo. Advogados assalariados, em geral, são mais convenientes para executar relativamente casos rotineiros/repetitivos ou previsíveis porque podem lidar melhor dentro da burocracia. O grande número de casos de transação penal (plea bargains) nos Estados Unidos em comparação

15

N. de T.: atente-se para o fato de que este texto foi originariamente escrito em 2002; desde então, o sistema inglês vem sofrendo ajustes e modificações.


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com o Reino Unido parece ser uma razão pela qual as organizações de defensoria pública têm prosperado nos Estados Unidos, mas só recentemente têm sido experimentadas no Reino Unido (embora uma outra razão seja a relativa predominância da atuação dos advogados privados no serviço de legal aid inglês). Pode haver, contudo, alguma vantagem na utilização do trabalho prestado por advogados privados com o propósito de obter deles cooperação e apoio para esse serviço. Uma certa cautela é necessária para o sentido da expressão “defensor público”. Pode significar coisas diferentes. Em Israel, a instituição denominada Defensoria Pública contrata os serviços de advogados privados. Na Inglaterra e na Escócia, escritórios de defensoria pública são pequenos grupos experimentais de advogados assalariados empregados pelo Legal Aid Board (Escócia) e pela Legal Services Commission (Inglaterra). Eles têm sido concebidos para ser um método de prestação dos serviços totalmente diferente do que era feito pelos advogados privados (no regime judicare). Em São Francisco (EUA), o defensor público é eleito pelo povo. Em New South Wales (Austrália), tal cargo é bastante prestigiado correspondendo apenas com a advocacia de mais alto nível. Em muitos Estados norte-americanos e no âmbito federal nos Estados Unidos, a agência denominada Defensoria Pública geralmente significa uma organização dotada de autonomia/ independência que emprega advogados criminalistas em regime assalariado (e de dedicação integral).

10. SERVIÇOS DE DEFESA CRIMINAL: INDICADORES DE QUALIDADE, QUALQUER QUE SEJA O SISTEMA DE PRESTAÇÃO ADOTADO Qualquer que seja o sistema de prestação de serviços utilizado, os seguintes critérios determinantes para configuração do que possa ser considerado bons serviços de defesa criminal podem ser deduzidos de uma observação dos diversos modelos adotados: (a) alta qualidade de serviços tem como pressuposto um alto nível de disponibilidade de recursos (ver acima); (b) a opção pelo regime de contrato de prestação de serviços é mais conveniente para dar conta de casos rotineiros/repetitivos e apresenta a tendência de que os serviços sejam prestados quase que “mecanicamente”;


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(c) os melhores sistemas incorporam “mecanismos de escape” para viabilizar o atendimento (com qualidade adequada) nos momentos em que se enfrente sobrecarga de trabalho; (d) desembolsos relativos a outras despesas e honorários de especialistas/peritos devem ser custeados por um fundo de financiamento distinto/separado daquele utilizado para custeio das despesas de com remuneração dos advogados; (e) os melhores resultados requerem um ambiente cooperativo entre a agência estatal responsável pelo custeio dos serviços e os respectivos profissionais com o encargo de prestá-lo; (f) deve haver padrões objetivos de controle de qualidade e, talvez, delimitação de volume máximo de casos (sob o encargo de um determinado prestador de serviço, compatível com suas possibilidades de responder pelo trabalho respectivo); (g) deve-se tomar cuidado para evitar/resolver situações relativas a possíveis conflitos/colidências de interesse (entre os acusados defendidos pelo mesmo prestador de serviços); (h) igualmente, deve-se tomar cuidado para proteger os profissionais prestadores dos serviços de indevida interferência política ou exposição perante a mídia; (i) existem diferentes visões/perspectivas sobre os direitos dos clientes de escolher seu advogado; (j) um forte apoio dos operadores jurídicos é indispensável para defender serviços de assistência jurídica gratuita contra cortes em recursos orçamentários/financeiros e contra indevida ingerência política. Essas são lições tiradas especialmente de um estudo de alguns sistemas de assistência jurídica na área criminal na América do Norte no final dos anos de 1990.16

11. CIVIL Os sistemas de assistência jurídica na área cível tendem a oferecer cobertura, em particular, para atendimentos nas seguintes áreas: 16

SMITH, Roger. Legal Aid Contracting:lessons from North America. Legal Aid Group, 1998.


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(a) família, incluindo divórcio e violência doméstica; (b) questões/reclamações em matérias de direito público, por exemplo, a garantia de observância dos direitos assegurados pela Convenção Europeia de Direitos Humanos; (c) questões/reclamações em matérias de direito privado, por exemplo, para reparação de danos pessoais; (d) questões em matérias do chamado “direito da pobreza” (literalmente poverty law), de “direito administrativo” e de “direito do bem estar social”.17 Uma questão peculiar emerge relativamente aos processos judiciais de “interesse público” (‘public interest’ litigation), isto é, certas situações pelas quais se toma um determinado caso individual (leading case) para criar um precedente de interpretação de determinadas normas jurídicas, ou até para sua mudança, com intuito de trazer benefícios especificamente para os mais pobres. Nos Estados Unidos, por causa da história de serviços de legal aid nos anos 1960, essa estratégia tem sido considerada, pelo menos até recentemente, como a função mais importante dos serviços de assistência jurídica na área cível (apesar de que tal postura tenha causado intenso e feroz debate político sobre o papel do Estado no financiamento desse tipo de causas). No Reino Unido, historicamente não havia financiamento público para custeio de assistência jurídica para esse tipo de processos de “interesse público” – embora houvesse a possibilidade de um litigante individual ter um caso particular de significativo interesse público (com forte impacto/repercussão de ordem coletiva). A Inglaterra agora possui regras que permitem a concessão de assistência jurídica especificamente voltada para casos de alto interesse público (questões de direito coletivo); há um comitê especial da Legal Services Commission, encarregado de deliberar sobre pedidos de assistência jurídica especificamente para esse tipo de processos, cujas decisões são publicadas no site da comissão.

17

N. de T.: não temos, no Brasil, expressões equivalentes para designar tais “áreas” do direito, especialmente o chamado “direito da pobreza”; uma definição do que seria o chamado “poverty law” pode ser encontrada no site da Faculdade de Direito da Universidade Georgetown (www. ll.georgetown.edu/guides/poverty.cfm) nos seguintes termos: “the legal statutes, regulations and cases that apply particularly to the financially poor in this or her day-to-day life” (ou seja, o conjunto de leis, regulamentos e casos judiciais que se aplicam particularmente aos financeiramente pobres, na sua vida cotidiana). Nesse “ramo” estariam abrangidas questões jurídicas relativas a benefícios assistenciais e sociais na área da saúde, habitação, educação, direito do idoso, da infância e da juventude, questões trabalhistas, seguridade social, etc.


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Uma forma muito eficiente de propiciar recursos financeiros para custear ações judiciais de interesse público (tutela coletiva) nos locais onde seja escassa a disponibilidade de fundos seria a destinação de tais recursos para determinada agência/entidade de significativa importância (key agency) que ficaria encarregada de desincumbir-se dessa função. Isto é o que ocorre, por exemplo, no Conselho de Assistência Jurídica da África do Sul (South African Legal Aid Board) que repassa recursos financeiros para a ONG “Centro de Recursos Legais” (Legal Resources Centre), uma das mais impressionantes organizações não governamentais especializadas nesse tipo de advocacia do mundo. A necessidade por assistência jurídica relativamente a tais categorias será bem diversificada conforme as realidades locais e as circunstâncias do momento histórico. Tradicionalmente, os serviços de assistência jurídica na Inglaterra eram focados em questões de direito privado e de família. Contudo, nos últimos tempos, estão se reorientando em direção aos casos relativos a questões de benefícios sociais e direito público. Outros sistemas, particularmente aqueles em que o serviço é prestado prioritariamente em centros jurídicos comunitários (community legal centres) de uma forma ou outra, costuma-se dar mais atenção ao casos ligados aos direitos do bemestar social (social welfare law). Assim, esse tem sido o caso na Holanda, Austrália e na província canadense de Ontário. Os tipos de casos judiciais de direito de família em que é exigida a representação das partes por advogado variam de acordo com a lei e com procedimentos locais18 Assim, na Inglaterra e no País de Gales foi suprimida a assistência jurídica gratuita para os casos de divórcio no final dos anos de 1970, apesar de continuar sendo concedida para partes que estejam litigando sobre questões como guarda de menores e pensão alimentícia. Alguns países podem exigir a representação por advogado para um processo judicial de divórcio: outros não. Em quase todos os países, será difícil denegar representação legal, prestada por advogado, para casos de violência doméstica, embora alguns tenham tentado transferir tais litígios (da jurisdição cível) para a jurisdição criminal, convertendo esse tipo de casos em hipóteses de ação penal pública (mandatory prosecution).

18

N. de T.: o que o autor parece querer indicar aqui é que, nos casos em que for dispensável a assistência por advogado, poderá ser também dispensável a garantia de assistência jurídica gratuita, custeada pelo poder público.


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Em alguns países se permite que os advogados particulares adotem o regime de contingency fee (espécie de “cláusula de quota litis” ou variações delas), pela qual se ajusta que os honorários somente serão pagos em caso de êxito na causa. Isso permite que – nas causas em que haja expectativa de retorno financeiro – as pessoas pobres, sem recursos para contratar um advogado, tenham acesso ao Judiciário por meio de advogados particulares que se disponham a atuar sob esse regime. Isso é muito comum nos Estados Unidos para causas judiciais em que haja perspectiva de condenação em dinheiro. Na Inglaterra, esse tipo de cláusula de fixação de honorários era, até recentemente, proibido. Além disso, (diferentemente dos Estados Unidos) na Inglaterra se adota o sistema de imposição ao perdedor dos ônus sucumbenciais (ou seja, a parte que perde a causa tem que pagar ao vencedor todas as despesas gastas com o processo), circunstância que desestimula/inviabiliza a utilização do sistema de contingency fee.19 De qualquer modo, é permitido na Inglaterra o regime de “cláusula de sucesso” (em que o advogado estabelece com o cliente que, em caso de êxito, terá direito a um percentual mais elevado do valor da causa a título de honorários). Como resultado, tem-se uma combinação dessa sistemática de “cláusula de sucesso” com a possibilidade de contratação de uma espécie de “seguro jurídico” pelo qual um litigante pode contratar a cobertura de potenciais despesas que venha a ter que arcar em decorrência de sucumbência em processo judicial (e em alguns casos abrange também a cobertura de despesas processuais e advocatícias custeadas pelo próprio contratante do seguro). Essa nova conjuntura tem se tornado mais frequente e são agora uma importante fonte de renda para advogados particulares, por exemplo, em casos que envolvam danos pessoais. Um aspecto em que os casos cíveis se diferem bastante dos casos criminais é a circunstância de que um cidadão enfrentará maiores dificuldades para identificar/se dar conta de que tem direitos a serem efetivados/garantidos. Por isso, há necessidade de se assegurar a prestação de serviços de informação e aconselhamento jurídicos além de representação/patrocínio em Juízo. Os diversos países possuem diferentes formas de lidar com essa questão. Alguns têm 19

N. de T.: nos Estados Unidos, em geral, não se impõe ao perdedor a obrigação de pagar ao vencedor as despesas que tenham sido gastas no processo; assim, os “riscos” de litigar são menores, visto que a parte que tiver ajustado com seu advogado a cláusula de contingency fee, se não obtiver o êxito esperado, não terá que fazer qualquer desembolso financeiro.


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investido considerável volume de recursos em programas de educação jurídica para o público em geral. Um destaque nessa área tem sido a província canadense de British Columbia onde existe uma entidade – denominada Law Courts Education Society – que tem como missão divulgar a atividade dos tribunais; outra entidade – denominada People Law´s School (uma espécie de escola jurídica popular) – que é uma organização educacional independente; além da Legal Services Society (que é a agência estatal responsável pelos serviços de assistência jurídica gratuita aos necessitados) que investe recursos financeiros em programas próprios de educação em direitos (public legal education) apesar de, recentemente, ter enfrentado cortes orçamentários para custeio desses programas.20 Inglaterra e País de Gales apenas tardiamente se deram conta da necessidade desse tipo de atividade. Uma tendência interessante, de grande potencial para o futuro, é a utilização da internet para que o público possa se informar sobre onde encontrar os prestadores de serviços de assistência jurídica gratuita e bem assim para obtenção de informações jurídicas preliminares básicas (para esclarecimento de dúvidas). A missão legalmente estabelecida para a agência pública inglesa que é responsável pelos serviços de assistência jurídica (a Legal Services Commission) vai muito além da mera garantia de assistência judiciária (patrocínio e representação dos necessitados em Juízo) e deixa patente a amplitude das tarefas cujo cumprimento é desejável. A referida “comissão” deve propiciar: (a) o provimento de informações gerais sobre os direitos e sobre o sistema jurídico e a disponibilidade de serviços de assistência judiciária gratuita; (b) o provimento de auxílio/assistência fornecendo serviços de aconselhamento e orientação jurídica em certas circunstâncias; (c) o provimento de auxílio/assistência para prevenção, composição ou qualquer outro mecanismo de resolução de litígios e conflitos sobre direitos e obrigações; (d) o provimento de auxílio/assistência no efetivo cumprimento de decisões pelas quais tais conflitos tenham sido resolvidos; e

20

Ver, sobre esse assunto, o artigo “Pioneers in public legal education”, escrito por Gordon Hardy, publicado no livro “Shaping the Future: new directions in legal services”, de autoria de Roger Smith, publicado pelo Legal Action Group, no ano de 1995.


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(e) o provimento de auxílio/assistência inclusive em relação aos procedimentos jurídicos não litigiosos (assistência jurídica extrajudicial).21 Além disso, a entidade tem poder de planejar ou coordenar serviços sob seu encargo e estabelecer padrões (a serem observados pelos prestadores dos respectivos serviços). Um sistema de serviços de legal aid na área cível, diferentemente da assistência jurídica na área criminal, precisa se ocupar de aferir a presença de dois pressupostos: carência de recursos e mérito22 da causa. Em muitos países há concordância de que um serviço básico de aconselhamento jurídico deve ser gratuito para que se possa aferir o atendimento de ambos os pressupostos acima – é o caso, por exemplo, da Holanda, onde é assegurado a qualquer pessoa o direito de uma consulta jurídica gratuita de até meia hora. Além disso, o pressuposto de carência de recursos econômicos varia em cada local, de acordo com a realidade específica de disponibilidade de recursos e necessidades a serem atendidas. O pressuposto relativo ao mérito da causa tem sido apurado com certa “sofisticação” na Inglaterra, medindo-se a porcentagem da probabilidade de sucesso em comparação com a estimativa de custo. Contudo, esse tipo de aferição seria provavelmente bastante complicado para muitos países da Europa Central e Oriental. O critério utilizado no passado era o “private paying client test” – ou seja, fazia-se uma avaliação em que se considerava se naquele tipo de causa a questão seria proposta por um cliente não carente de recursos o qual tivesse que arcar, com seu patrimônio pessoal, com o custeio de todas as despesas. Nos casos em que há um exame de carência de recursos em casos criminais, então o tribunal pode apresentar um bom órgão para assumir a responsabilidade na medida em que tem um interesse em minimizar a demora. Em relação aos casos cíveis, o órgão responsável pela gestão dos serviços de legal aid tem o encargo de prover o mecanismo apropriado para aferição dos pressupostos de carência de recursos e de mérito da causa. Se há um grau de confiança nos próprios prestadores de serviços, então essa aferição poderá ficar sob o encargo deles. Muitos países consideram que as pessoas que estejam recebendo algum tipo de benefício assistencial público devem ser dispensadas de

21

Tais encargos estão definidos na “Lei do Acesso a Justiça” (Access to Justice Act), do ano de 1999.

22

N. de T.: ou seja, a plausibilidade da pretensão a ser submetida ao Judiciário.


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comprovação de carência de recursos quando pleiteiam assistência jurídica gratuita, particularmente nos locais em que tais serviços são prestados em núcleos de atendimento jurídico comunitário ou em “clínicas” jurídicas (law clinics), como ocorre na África do Sul, Austrália ou em Ontário. O pagamento pelos serviços prestados não é compatível com a filosofia que rege esse tipo de clínicas ou centros comunitários. Um número de países/estados tem considerado que núcleos jurídicos comunitários (como no Reino Unido), clínicas jurídicas (Ontário) ou centros de serviços jurídicos (Austrália) prestam um bom modelo de assistência jurídica para causas cíveis. Suas grandes vantagens na perspectiva das entidades responsáveis pelo financiamento desses serviços é que eles são custeados por subsídios previamente fixados e limitados (e assim as despesas são previsíveis e ficam dentro dos limites orçamentários). Com a participação de representantes da própria comunidade na direção ou gerenciamento dos serviços, estes são compatibilizados com as (efetivas) necessidades de suas comunidades e maximizando-se o uso de seus recursos. Adicionalmente, eles podem operar como uma espécie de ímã para atrair recursos provenientes de outras fontes ou até mesmo para trabalho voluntário que possa ser prestado por advogados privados (que se disponham a atuar em regime caritativo ou pro bono).

12. CONCLUSÃO De tudo o que foi exposto acima, emerge um número de questões a serem respondidas por qualquer pessoa que pretenda criar/implantar um sistema de legal aid em um determinado país/região o que pode ser útil para explicitar (uma visão de conjunto) porque esse processo fomentará um debate. Esses foram os pontos inicialmente delineados no prólogo que se encontra no início deste estudo. As pressões contraditórias da realidade contemporânea na Europa, suscitam reflexão sobre o sentido dos serviços de legal aid, como em qualquer outro lugar. A União Europeia vem estabelecendo exigências cada vez maiores para assistência jurídica estatal para representação e defesa em casos envolvendo situações transnacionais (cross-boarder cases) ou casos criminais em que a implementação de um Mandado de Prisão Europeia supõe o reconhecimento mútuo de procedimentos e, assim, concordância quanto à observância de padrões mínimos (de


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garantias de direitos). Por outro lado, todos os países são atingidos pela pressão (escassez) em seus recursos. Todos os países europeus precisam de sistemas efetivos de legal aid. A forma pela qual podem atender essa exigência variará consideravelmente. A má notícia é que a história mostra que estados, como Quebec (no Canadá), que estavam em certo momento bem à frente no que se refere à estrutura de efetiva prestação de serviços de assistência jurídica podem sofrer deterioração de seus serviços de tal forma que eles caiam significantemente, sendo passados para trás, em comparação com aqueles outros relativamente aos quais estavam na dianteira. A boa notícia é que o contrário (também) pode acontecer. Como disse Bob Dylan: those that are last will later be first, for the times they are a ‘changing’ (os últimos serão os primeiros, porque os tempos são de “mudanças”).



A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA SOB O PRISMA DO NEOCONSTITUCIONALISMO Aluísio Lunes Monti Ruggeri Ré,

Defensor Público do Estado de São Paulo, mestrando em Direito pela UNAERP.

1. INTRODUÇÃO E O NEOCONSTITUCIONALISMO A Defensoria Pública é a Instituição Democrática mais próxima da população, principalmente dos setores mais vulneráveis da sociedade, as chamadas “minorias”, que estão inseridas em contextos sociais, econômicos e jurídicos de contradições e demagogia. Realmente, temos uma Constituição Federal “modelo”, que prevê um Estado Democrático e Social de Direito, mas que ainda carece de concretização e a devida força normativa. De fato, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, CF): “erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (III); promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (IV)”. Ocorre que, por outro lado, há uma sociedade carente de políticas públicas adequadas e efetivas, de planejamento social, de justiça, enfim, de uma estrutura socioeconômica viável para seu progresso e desenvolvimento. Se atualmente observamos um momento de êxito econômico brasileiro, ainda que o mundo atravesse momento de crise econômica, o mesmo não tem ocorrido no âmbito social. Nossos


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governantes não têm conseguido converter o progresso tecnológico em qualidade de vida, gerando ainda mais concentração de riquezas e desigualdades sociais. A Defensoria Pública, por sua vez, com sua missão constitucional de prestar assistência jurídica aos necessitados1, assiste a essa triste realidade de total exclusão social, mas não se rende ao sistema posto/ imposto e tem promovido, na medida de suas possibilidades, a inclusão jurídica2 daqueles marginalizados pelo sistema, no sentido de concretizar os direitos fundamentais e fazer da nossa Constituição Federal (CF) um modelo não tão utópico como a realidade tem indicado. Nesse diapasão, o Neoconstitucionalismo3, tido como fenômeno mundial de valorização das Constituições Estatais, com a atribuição de efetiva força normativa aos seus dispositivos e colocação dos direitos fundamentais no topo do sistema jurídico, é um importante instrumento e fundamento indispensável à atuação da Defensoria Pública no cumprimento de sua nobre missão, mormente quando se leva em consideração o dilema socioeconômico acima exposto. De fato, a doutrina neoconstitucional prega, além de outros aspectos, a potencialização e efetivação dos direitos fundamentais, partindo do destaque destes direitos nas Constituições dos Estados Ocidentais. Aliás, não é por acaso que a previsão de direitos e garantias fundamentais passa a integrar a parte inaugural da Constituição Federal de 1988 e não mais os dispositivos finais como ocorria nas Constituições anteriores.

1

Art. 134 da Constituição Federal.

2

Não podemos olvidar que a inclusão jurídica acarreta a inclusão social/psicossocial e econômica. De fato, a solução de um problema jurídico daquela pessoa que procura pelos serviços da Defensoria Pública acaba repercutindo na sua vida como um todo, seja no aspecto social, psicológico e econômico. Por exemplo, um cidadão que tem seu nome negativado, em razão de cobrança indevida, não consegue se empregar com facilidade, em razão da recorrente consulta aos cadastros de inadimplentes feita pelos potenciais empregadores. Nesse caso, a declaração judicial de inexistência daquele débito, terá como efeito imediato a retirado de seu nome dos cadastros de proteção ao crédito, mas também o efeito mediato de viabilizar a obtenção do tão almejado vínculo empregatício.

3

Segundo o Professor Luís Roberto Barroso, “o marco filosófico do fenômeno em questão é ’o pós-positivismo’, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética” (Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. São Paulo, 2005. P 04).


A atuação da defensoria pública sob o prisma do neoconstitucionalismo

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Em termos históricos, podemos estabelecer como marco internacional o período pós-guerra, cujo ideal humanitário renascia após tamanhas atrocidades e da grave banalização dos direitos humanos. Aliás, tal momento coincide com o fenômeno da internacionalização dos direitos humanos, bem como da consagração de novos paradigmas de análise desses direitos, quais sejam, a universalidade, a indivisibilidade, a interdependência e a transnacionalidade, mormente com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. No âmbito nacional, podemos estabelecer, como divisor de águas do Neoconstitucionalismo, a promulgação da Constituição Federal de 1988, com o estabelecimento da dignidade da pessoa humana como valor base de todo ordenamento jurídico, após um período político de ditadura, não democrático, com graves limitações aos direitos do homem. Teoricamente, o Neoconstitucionalismo tem como pressuposto a superação do Positivismo, da concepção puramente científica do Direito, colocado em posição de indiferença aos valores e à ética. Assim, o PósPositivismo apresenta-se como pressuposto para a efetivação dos direitos fundamentais, ditando uma análise mais axiológica e menos matemática do fenômeno jurídico.4 O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem compartilhar beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explicita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução de seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da solidariedade e da reserva da justiça.5

4

Neste contexto, o pós-positivismo representa a reaproximação entre Direito e o valor Justiça, sendo que os valores são resgatados como fatores de interpretação e aplicação da norma, cuja análise se faz por juízos de ponderação e razoabilidade, e não com simples subsunção do caso à lei estrita e fechada.

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BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasilei-


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Aliás, em termos gerais, a própria Defensoria Pública é um fato neoconstitucional, na medida em que viabiliza a defesa jurídica daquela parcela da população menos favorecida, assegurando a aplicação e concretização dos direitos fundamentais.

2. A DEFENSORIA PÚBLICA A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV.6 Ela representa a forma pela qual o Estado Democrático de Direito promove a ação afirmativa, ou discriminação positiva, visando à inclusão jurídica daqueles econômica e culturalmente hipossuficientes, em observância ao disposto no artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal, que prevê o direito fundamental à assistência jurídica, cujos titulares são aqueles que comprovarem insuficiência de recursos, na forma prevista na Lei n.º 1060/50, que estabelece o conceito jurídico de “necessitado”. Portanto, não se pode olvidar que a Defensoria Pública, como instrumento de ação afirmativa, visa à concretização do princípio da isonomia ou igualdade, na medida em que o Estado, por meio dela, trata desigualmente os desiguais (necessitados), almejando à igualdade de condições. Nas palavras da professora Carmen Lúcia Antunes Rocha, a definição jurídica objetiva e racional de desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como forma de promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante da sociedade. Por esta desigualação positiva promove a igualação jurídica efetiva; por ela afirmase uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política e econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa

ro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: A nova interpretação constitucional. São Paulo: Renovar, 2008. 6

CF, artigo 134. O artigo 1º da Lei Complementar n.º 80/94 assim dispõe: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe prestar assistência jurídica, judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma da lei.”


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é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias.7

Em outras palavras, a Defensoria Pública é o instrumento pelo qual se garante o acesso à Justiça aos necessitados, desprovidos de recursos financeiros, para custear os serviços prestados por um Advogado particular. De fato, não se adentram as portas do Judiciário sem o cumprimento de ritos e a obediência a procedimentos. Entre estes está a necessidade de defesa por profissionais especializados – os Advogados. Ora, o acesso aos advogados, por sua vez, depende de recursos que na maior parte das vezes os mais carentes não possuem. Assim, para que a desigualdade social não produza efeitos desastrosos sobre a titularidade de diretos, foi concebido um serviço de assistência jurídica gratuita – a Defensoria Pública.8

Entretanto, a Defensoria Pública não é apenas um órgão patrocinador de causas judiciais. É muito mais. É a Instituição Democrática que promove a inclusão social, cultural e jurídica das classes historicamente marginalizadas, visando à concretização e a efetivação dos direitos humanos, no âmbito nacional e internacional, à prevenção dos conflitos, em busca de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, com a erradicação da pobreza e da marginalização, em atendimento aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no artigo 3º da Constituição Federal.9 Realmente, nas palavras de Marcio Thomaz Bastos10, as instituições sólidas são os instrumentos que as democracias têm para se realizar enquanto tais. E as democracias, para abandonarem o

7

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Ação afirmativa – O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de Direito Público, n º 15/85.

8

SADEK, Maria Tereza. Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.

9

Aliás, o artigo 3º da Lei Complementar Estadual n.º 988/06 dispõe que “A Defensoria Pública do Estado, no desempenho de suas funções, terá como fundamentos de atuação a prevenção de conflitos e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalidade, e a redução das desigualdades sociais e regionais.”

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II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil promovido pelo Ministério da Justiça e pelo Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento, em 2006.


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rótulo de democracias formais, se tornando verdadeiras democracias de massas, devem construir instituições que consigam garantir a todos, sem discriminações, os direitos previstos nas constituições democraticamente escritas. (...) Não mais podemos nos preocupar só com o Estado Julgador e com o Estado Acusador, em detrimento do Estado Defensor.

Outrossim, a atuação da Defensoria Pública se torna ainda mais relevante em um Estado como o Brasil, que possui uma Carta Magna de caráter social, mas que carece de efetividade e concretude, em razão das forças neoliberais, que fazem dos princípios constitucionais dispositivos meramente programáticos, despidos de normatividade. De fato, a herança do neoliberalismo é uma sociedade profundamente desagregada e distorcida, com gravíssimas dificuldades em se construir, do ponto de vista da integração social, e com uma agressão permanente ao conceito e prática da cidadania. Talvez, a Defensoria Pública tenha vindo para ”organizar esta cidadania”.11

Segundo pondera o Ministro Celso de Mello, vê-se, portanto, de um lado, a enorme relevância da Defensoria Pública, enquanto Instituição permanente da República e organismo essencial à função jurisdicional do Estado, e, de outro, o papel de grande responsabilidade do Defensor Público, em sua condição de agente incumbido de viabilizar o acesso dos necessitados à ordem jurídica justa, capaz de propiciar-lhes, mediante adequado patrocínio técnico, o gozo – pleno e efetivo – de seus direitos, superando-se, desse modo, a situação de injusta desigualdade sócio-econômica a que se acham lamentavelmente expostos largos segmentos de nossa sociedade.12

3. A MISSÃO E OS OBSTÁCULOS No entanto, por mais bela que pareça a atuação da Defensoria Pública, segundo a arquitetura teórica acima exposta, sua atuação

11

BORÓN, Atílio. In: GALLIEZ, Paulo. A Defensoria Pública. O estado e a cidadania. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmem Júris, 2006.

12

STF, ADI nº 2903.


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prática é sobremodo complexa e exige elevado grau de compreensão e criatividade. De fato, o atendimento diário submete o Defensor Público aos mais variados problemas jurídicos, cujas soluções, muitas vezes, não decorrem de simples aplicação de subsunção da lei ao caso concreto, mas exige certo trabalho hermenêutico. Aliás, o grau de complexidade das demandas deve-se a variados fatores, de naturezas diversas, que fazem com que o sujeito se submeta a caminhos jurídicos simples, moderados, complexos ou impossíveis. Em geral, a população mais carente torna-se mais vulnerável às agressões aos seus direitos, cujas soluções administrativas mostram-se cada vez mais distantes. A burocracia, a desinformação e a inexperiência são fatores que submetem o indivíduo a situações juridicamente delicadas e até de impossível solução. Como se não bastasse, diferentemente do que ocorre nos países europeus, no Brasil a Instância Administrativa é quase nula, fazendo da via judicial a via única a ser obrigatoriamente percorrida, sob pena de perecimento do direito subjetivo violado. Além disso, o Brasil ainda sofre do que a doutrina chama de síndrome da ineficácia das normas constitucionais. Em muitos casos, utilizando de interpretações distorcidas e pretensiosas de princípios como o da separação dos poderes, da reserva do possível, da discricionariedade administrativa, o Poder Público acaba se omitindo e negligenciando na execução dos direitos fundamentais como o direito à saúde, à educação de qualidade, à moradia digna, dentre outros. Outro grave equívoco cometido por parcela da doutrina que trata do tema é taxar de meramente programáticas as normas constitucionais de direitos sociais. Ora, negar eficácia às regras que consagram direitos humanos é negar a própria essência da Constituição Federal de 1988, cujo âmago nucelar13 é composto pelo valor da dignidade da pessoa humana. Não se pode olvidar da concreta força normativa da Constituição, sob pena de corrompermos todo um sistema desenhado e lapidado após período histórico de extrema violência, autoritarismo e omissão estatal. Negar eficácia aos direitos fundamentais é negar a própria Constituição, é negar nossa história.

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Utilizamos da expressão “âmago nuclear”, embora pleonástica, mas propositadamente, para transmitirmos a ideia de absoluta primazia da dignidade humana.


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Somando a todo esse preocupante quadro, acrescentaríamos que a falta de informação da população mais carente e sua relativa inexperiência, diante das mais complexas relações jurídicas que vêm se desenvolvendo na atualidade, acaba elevando ainda mais essa vulnerabilidade. Contratos de adesão, contratos virtuais e serviços de televendas são apenas alguns exemplos que representam o risco da atual conjuntura comercial e obrigacional. Muitas vezes, até os mais protecionistas microssistemas jurídicos, como o implementado pelo Código de Defesa do Consumidor, não são capazes de fornecer soluções às demandas apresentadas ao Defensor Público, exigindo elevado grau de atenção e criação. A atenção e a vontade de ouvir são importantes virtudes para a colheita do maior número de peculiaridades do caso concreto, sendo que a criatividade deverá incidir sobre o contexto fático para a adoção da medida mais adequada e satisfatória para a questão, ainda que, em um primeiro momento, pareça ela não solucionável. Diante desse contexto socioeconômico e jurídico, sob o prisma do Neoconstitucionalismo, propomos uma atuação de potencialização dos direitos fundamentais à Defensoria Pública, para o bem cumprimento de seu mister institucional.

4. A APLICAÇÃO PRÁTICA E POTENCIALIZADA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: A FÓRMULA Em primeiro lugar, cumpre advertirmos que a grande diversidade de casos submetidos ao crivo do Defensor Público torna quase inviável a elaboração de uma fórmula ou modelo padrão de atendimento, mas não afasta a possível elaboração de um caminho útil na condução dos trabalhos. Pois bem. Uma vez superada a fase de avaliação financeira, com a concessão do benefício da assistência jurídica, o Defensor Público passa a análise técnica da questão, para, ao final, diante de todas as possibilidades jurídicas levantadas, adotar aquela que melhor se adéqua aos fatos narrados. Ocorre, porém, que o arrolamento dessas possibilidades, muitas vezes, pode não ser tarefa simples, exigindo do profissional muita criatividade e visão construtiva, cujos critérios e fatores relevantes de análise passaremos a colocar sob a forma de uma fórmula que, vale repetir, apenas auxiliará a análise da questão e a adoção da solução adequada.


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Chamaremos de índice de possibilidades (IP) o número de alternativas possíveis, que será diretamente proporcional ao número de peculiaridades do caso concreto (PCC) e ao nível valorativo do direito violado (NVD). Em outras palavras, quanto mais rico em peculiaridades for o caso em questão e mais nobre for o direito ameaçado, maior deve ser o “cardápio” de possibilidades jurídicas, exigindo do Defensor Público alto grau exegético e de construção técnica. É dizer, a violação aos direitos fundamentais exige que o Defensor Público se transforme em verdadeiro engenheiro ou arquiteto jurídico na elaboração de todas as alternativas possíveis e na escolha daquela que melhor satisfaça os interesses do sujeito atendido. Se pudéssemos reduzir este raciocínio em simples fórmula matemática, teríamos a presente equação: IP = PCC x NVD. No plano cartográfico, teríamos uma reta oblíqua crescente que representa o desenvolvimento do índice de possibilidades (IP). No plano vertical teríamos a variante representante do nível de valoração do direito violado (NVD) e, no plano horizontal, a variante das peculiaridades do caso concreto (PCC). Tal fórmula nos leva a uma série de conclusões e ditames para o bom desempenho da função da Defensoria Pública, no contexto do Neoconstitucionalismo, quando do atendimento aos necessitados e desenvolvimento dos seus trabalhos: é preciso alto grau de sensibilidade para a valoração do interesse supostamente violado ou ameaçado; exigese atenção e paciência na colheita do maior número de dados conexos ao problema apresentado e; por derradeiro, tem o Defensor Público a responsabilidade de criar, desenvolver e operacionalizar as mais variadas medidas jurídicas adequadas à satisfatória solução da questão ao seu crivo submetida. Isso não significa, e aqui vale uma ressalva, que a Defensoria Pública não deve se empenhar na defesa efetiva de direitos não fundamentais. Direitos são direitos que carecem de proteção, pois possuem titulares/ sujeitos, objeto e uma função orgânica no sistema jurídico como um todo. Uma vez presentes as condições da ação e os pressupostos processuais, ao titular de um direito devem ser fornecidos todos os meios para sua adequada tutela judicial ou extrajudicial. Agora o que não podemos negar é que a Defensoria Pública no Brasil ainda encontra-se em fase de construção e não dispõe de estrutura e pessoal suficientes para um atendimento ideal a qualquer tipo de direitos/interesses e a definição de prioridades passa a ser fase obrigatória na fixação de suas metas e de


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seu plano de atuação. Aliás, a própria definição de metas, no sentido de priorizar a defesa dos direitos humanos, decorre do próprio conceito de ação afirmativa ou do conteúdo material do princípio da igualdade, mormente no Brasil, cujos direitos fundamentais carecem da necessária efetividade e concretude.

5. EXEMPLOS PRÁTICOS Parece uma utopia a idealização e aplicação de uma fórmula quase que matemática para a potencialização dos direitos fundamentais na seara de atuação da Defensoria Pública. Porém, a exposição de alguns casos práticos indica a possibilidade de se pensar uma forma concreta de efetiva concretização desses direitos no âmbito dessa Instituição Democrática e quebrar velhos e obsoletos conceitos e preconceitos do modelo de subsunção da modernidade, no caminho da aplicação do direito sob a óptica pós-moderna. Como acima colocado, o Defensor Público depara-se diariamente com as mais variadas e complexas questões jurídicas ou lides. Alguns exemplos práticos por nós atendidos podem ilustrar o presente estudo. O primeiro caso que merece destaque ocorreu quando fazíamos o procedimento de avaliação financeira e análise inicial dos problemas, em meados do ano passado.14 A atendida Marina nos apresentou sua questão que, em um primeiro momento, parecia de difícil ou de controvertida solução. Segundo nos relatou, há meses não quitava as contas de água e coleta de esgoto por total impossibilidade financeira e estava com o respectivo fornecimento do serviço interrompido. Em tese, ainda que não admitamos o corte aos serviços públicos essenciais,15 muitos juízes e 14

Para fins de preservar a intimidade das pessoas atendidas na Defensoria Pública do Estado, Regional de Ribeirão Preto, optamos por citar apenas o prenome, sem referências aos sobrenomes.

15

Segundo entendemos, o arcabouço jurídico de tutela do consumidor impossibilita a interrupção à serviço público essencial. O Código de Defesa do Consumidor veda a cobrança vexatória e humilhante (art. 42) e prevê expressamente o princípio da continuidade do fornecimento de serviço público essencial (art. 22: “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”). É bem verdade que o Código de Defesa do Consumidor não cuidou de elencar quais são os serviços considerados essenciais, no entanto, tal rol pode ser encontrado na Lei de Greve (Lei n.º 7.783/89), que estabeleceu quais os serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Nesse


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tribunais têm aceitado a interrupção sob argumento de que a inadimplência coloca em risco a continuidade do fornecimento à coletividade.16 Diante disso, a primeira saída seria a propositura de uma precária e malfadada ao malogro ação de obrigação de fazer, com pedido de antecipação de tutela. Notem que, inicialmente, a questão envolve apenas direitos do consumidor e direitos civis obrigacionais. Entretanto, com base na tese ora proposta, na ocasião ainda despida de contornos mais precisos, questionamos se sua residência abrigava alguém portadora de alguma enfermidade, cuja ausência da água potável prejudicaria seu tratamento ou sua cura. Vejam que elevamos as peculiaridades do caso concreto (PCC) para fins de aumentarmos o índice de possibilidades (IP). Além disso, pensávamos em elevar a nobreza do direito violado (NDV) com o deslocamento da questão dos direito das obrigações para o direito fundamental à vida e à saúde para também aumentar as alternativas jurídicas. E foi exatamente o que ocorreu. Marina nos informou que possuía uma filha, Ester, portadora de insuficiência renal crônica, cujo tratamento exigia a realização de, pelo menos, três sessões de hemodiálise por semana, sendo a limpeza e higienização da fístula,17 com água potável, indispensável para o sucesso do tratamento. Diante dessas circunstâncias, com a elevação das peculiaridades e do nível valorativo dos direitos envolvidos, as possibilidades jurídicas se expandiram. Propusemos uma ação de obrigação de fazer, com tutela antecipada, em face da concessionária do serviço público (DAERP – Departamento de água e esgoto de Ribeirão Preto), cumulada com ação condenatória em face do Município de Ribeirão Preto, para que fosse obrigado a custear aquele serviço àquela unidade consumidora, até que se realizasse o transplante de rim na paciente com sua consequente cura, uma vez que ao Estado se atribuiu constitucionalmente e legalmente a obrigação de garantir o direito à saúde dos cidadãos.18 sentido dispõe o artigo 10 da mencionada lei: “São considerados serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; (...)”. Em suma, defendemos a impossibilidade do corte aos serviços públicos essenciais. 16

Aliás, a Lei n.º 8987/95, que regulamenta a concessão e permissão da prestação de serviço público, em seu artigo 6º, §3º, admite a interrupção em casos de inadimplemento.

17

A fístula é o orifício por onde entra o tubo do aparelho de filtragem sanguínea.

18

O direito à saúde, nos termos do artigo 196 da Constituição Federal de 1988, revela-se como direito público subjetivo dos cidadãos, os quais, inclusive, são legitimados a demandarem, inclusive judi-


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Na citada ação interposta, o juiz a quo não concedeu a tutela antecipada, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de Agravo de Instrumento, cujo Desembargador Relator atribuiu efeito ativo ao recurso, reconheceu presentes os pressupostas para a antecipação da tutela, determinando o imediato restabelecimento do fornecimento de água e coleta de esgoto à unidade consumidora em questão, custeado pelo Poder Público Municipal até a cura da paciente com o futuro e eventual transplante de renal. Outro exemplo prático que ilustra a “atuação neoconstitucional” da Defensoria Pública e a necessária atitude criativa/empreendedora, no sentido técnico-jurídico, do Defensor Público, em caso que também envolvia o direito à saúde e à sadia qualidade de vida, ocorreu quando atendemos um cidadão enfermo, Roselino, cuja doença progredia rapidamente, mas cujo medicamento prescrito pelo seu médico não gozava de eficácia científica comprovada, mas, segundo o profissional, era a única droga que poderia conter a doença. Diante disso, propusemos uma ação de obrigação de fazer, em face do Poder Público, para o fornecimento do remédio, com pedido de antecipação de tutela, cujo deferimento fora negado pelo juízo a quo, sob argumento de que aquela substância não possuía eficácia comprovada para tratamento daquela enfermidade. Cientificado da decisão, sabíamos das dificuldades na obtenção daquela tutela, pois, além de obstáculos

cialmente, face o Estado, providências hábeis a concretizá-los. Ainda sob a égide constitucional, o direito à saúde adquire contornos de aplicabilidade imediata e eficácia plena (art.5°, §1° da CF/88). A legislação infraconstitucional aponta no mesmo sentido, conforme disposição do art. 2° da Lei n°8.080/90 ao impor que “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. A administração da saúde, como direito subjetivo dos cidadãos, conforme disposição constitucional (art. 23, inciso II da CF/88), é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, criando uma espécie de obrigação solidária. No entendimento jurisprudencial: “MEDICAMENTOS – Fornecimento pelo Estado – Prestação de serviço público – Obrigação de Fazer – Pedido de medicamentos e insumos para tratamento de patologia que padece – Diabetes Mellitus tipo II – Extinção do feito sem exame de mérito em relação à Municipalidade de São Paulo – inadmissibilidade – Competência delineada na Lei n.8.080/90 que atribui competência à União, Estados, Municípios e Distrito Federal – Direito à saúde, à vida e à dignidade da pessoa humana que não pode ser relegado à mercê de toda sorte de inconvenientes provocados pelo Poder Público – Responsabilidade solidária entre Estado e Município para cumprimento da obrigação, cujos órgãos deverão se interagir para entendimento de determinação – Recurso provido” (Apelação Cível com Revisão n° 523.335-5/0 – São Paulo - 7ª Câmara de Direito Público – Relator Coimbra Schimidt – 23.7.2007 – M.V. – Voto n.8.548).


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como o princípio da discricionariedade da Administração e o princípio da reserva do possível, ainda tínhamos em nosso desfavor a questão da dúvida científica acerca da eficácia da droga. Mas, conscientes da nobreza do interesse envolvido, tínhamos a responsabilidade de bem fundamentar o recurso para reverter aquela situação jurídica totalmente desfavorável à autora. E assim fizemos, trazendo para o âmbito da saúde o princípio da precaução do direito ambiental, segundo o qual a não comprovação científica não pode ser óbice à concretização de direitos fundamentais como o direito ao meio ambiente sadio19 e, no nosso caso, o direito à saúde. Assim, com a ampliação das possibilidades e da consistência na fundamentação do recurso de agravo de instrumento20, foi-lhe concedido efeito ativo pelo Desembargador Relator, o Ministro Gama Pellegrini, no sentido de conceder a tutela antecipada pleiteada para o imediato fornecimento da droga indicada. Por derradeiro, o terceiro exemplo prático se deu quando atendemos um cidadão, Edvaldo, inadimplente nas suas últimas contas de energia elétrica, cujo fornecimento havia sido interrompido. Ainda que defendêssemos a impossibilidade do corte a serviço público essencial, conforme acima exposto, o débito era realmente devido e a reversão daquele quadro seria sobremodo trabalhoso, ao menos em tutela liminar, ainda que o devedor se dispusesse a quitar em parcelas o total da dívida, cujo fracionamento fora negado pela empresa concessionária. Porém, resolvemos apurar o que realmente teria ocorrido naquele caso, que justificasse a inadimplência, e outras peculiaridades que continha. Descobrimos que o inadimplemento decorreu de séria dificuldade financeira do usuário do serviço, em razão de problemas de saúde do filho do casal, cujos gastos se elevaram com medicamentos e consultas médicas inesperadas.

19

O princípio da precaução, já consolidado no Direito Ambiental, visa a evitar a ocorrência de danos, no sentido de prevenir, não apenas o dano que irá inevitavelmente ocorrer, mas também aquele do qual não há prova irrefutável de que ocorrerá. Verifica-se, no princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro em Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Ou seja, a dúvida científica não impede a tutela preventiva do meio ambiente.

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TJ/SP, Agravo de Instrumento n.º 916.468.5/7, 1º Grupo de Câmaras de Direito Público.


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Portanto, diante de um contexto de inadimplência justificada, que demonstra boa-fé do devedor, e do desejo no parcelamento da dívida, mas com resistência do credor, resolvemos defender a existência de um verdadeiro direito material ao pagamento parcelado, cuja tese fora exposta no VII Congresso Nacional dos Defensores Públicos, na cidade de Cuiabá, Estado do Mato Grosso, em outubro de 2008, a qual foi aprovada e concedida menção honrosa pela banca examinadora. No caso prático, por sua vez, em tutela antecipada, o juízo a quo acolheu a fundamentação exposta na petição inicial e autorizou o pagamento do débito em parcelas, independentemente da anuência do credor.21 Observam que somente encontramos este caminho, quando saímos da relação obrigacional limitada entre credor e devedor e adentramos na seara constitucional que abarca princípios como o da dignidade da pessoa humana e da eticidade nas relações entre particulares. Em outras palavras, ampliamos o leque de possibilidades ao passarmos do direito Segundo defendemos, “o artigo 745-A do Código de Processo Civil, introduzido pela Lei nº 11.382/06, autoriza o devedor executado, no prazo para os embargos à execução, reconhecendo o crédito e depositando a quantia inicial de 30% do valor executado, incluindo as custas e honorários advocatícios, a pagar o restante do débito em 6 (seis) parcelas mensais, com correção monetária e juros de 1% ao mês. Tal proposta será apreciada pelo juiz que poderá deferi-la ou indeferi-la (§ 1º). O não pagamento das prestações implicará em vencimento antecipado do débito, incidindo multa de 10% sobre as prestações não pagas, vedada a apresentação de embargos (§ 2º). Nestes termos, o legislador criou um verdadeiro direito subjetivo do devedor ao pagamento parcelado, cujo exercício independe da anuência do credor. Ao juiz, por sua vez, somente lhe cabe averiguar se presentes estão os requisitos ao exercício dessa faculdade, não podendo indeferi-la injustificadamente. (...) Requer também, como corolário da boa-fé objetiva, uma justificativa plausível acerca do não adimplemento da prestação no momento adequado, pois, caso contrário, estaríamos admitindo a má-fé e legitimando o “direito ao calote”. Portanto, o devedor, ao apresentar a proposta de parcelamento deve justificar os motivos do não pagamento no tempo inicialmente fixado pelas partes, cabendo ao magistrado apreciar o pleito, segundo os critérios da razoabilidade e verossimilhança das alegações, juízo semelhante ao realizado pelo juiz na execução de prestações alimentícias regida pelo rito do artigo 733 do Código de Processo Civil, após a defesa do executado alimentante. (...) Como dissemos acima, o direito ao pagamento parcelado pode ser exercido nas seguintes hipóteses: no prazo para embargos no bojo da ação de execução de título extrajudicial ou no prazo para impugnação na fase de cumprimento de sentença; em ação própria de consignação em pagamento (artigos 891 e seguintes do CPC); em defesa na ação de despejo por falta de pagamento nas locações urbanas, visando o locatário devedor à manutenção do contrato (artigo 62, II, da Lei nº 8.245/91); e em defesa na ação de busca e apreensão nos contratos de alienação fiduciária, com o fim de evitar que o credor fiduciário consolide sua propriedade sobre o bem, objeto da avença” (artigo 3º, § 2º, do Decreto-lei nº 911/69).” (RÉ, Aluísio Iunes Monti Ruggeri, BAQUETA, Daniela Furquim. Artigo: O direito material ao pagamento parcelado. In: Revista de Processo, n.º 166, dezembro/2008, RT)

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civil do credor de ter satisfeito seu crédito para o direito fundamental a uma vida digna ao devedor e à sua família. Em suma, tais exemplos práticos ilustram o presente estudo, na medida em que demonstram que as possibilidades jurídicas se estendem na mesma proporção que elevamos a nobreza e a relevância dos direitos/ interesses ameaçados/violados, autorizando o Defensor Público a adotar uma postura criativa e inovadora diante dos mais variados casos e problemas jurídicos a ele diariamente submetidos.

6. CONCLUSÃO A título de arremate, concluímos que a Defensoria Pública, como fato neoconstitucional e também instrumento de sua efetivação, tem um importante papel a ser desenvolvido em nosso país, mormente na luta pela efetivação e concretização dos direitos fundamentais, ainda que o arcabouço jurídico se mostre arcaico e obsoleto na previsão satisfatória de tutelas, tendo em vista a grande variedade de direitos e relações jurídicas que se transformam com velocidade não absorvida pelo sistema jurídico posto, e muito menos pela ciência e consciência cidadã da grande parcela economicamente hipossuficiente da sociedade brasileira, exigindo do Defensor Público uma postura de criatividade/inovação para a inclusão e transformação social.

REFERÊNCIAS ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 1972. BARROSO, Luis Roberto. A proteção coletiva dos direitos no Brasil e alguns aspectos da Class Action Norte-Americana. São Paulo: RT, 2005, Revista de Processo, v 130. ______________________. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. ______________________. (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. São Paulo: Renovar, 2008.


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MOBILIZAÇÃO JURÍDICA VERSUS MOBILIZAÇÃO SOCIAL: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA JUSTIÇA AMBIENTAL Élida Lauris Pesquisadora da Universidade de Coimbra

1. INTRODUÇÃO Neste artigo, pretendo investigar a utilização de ferramentas jurídicas como estratégia de luta dos movimentos sociais. Para tanto, concentrei-me na análise do aparato jurídico-institucional e de acção colectiva disponível aos movimentos ambientalistas presentes no estado português e brasileiro. A escolha do ambientalismo deve-se a razões específicas. O meio ambiente representa em si um desafio para proteção e concretização por parte Estado, dependendo em grande medida da acção social coletiva e de iniciativa por parte da política pública. Do ponto de vista da acção colectiva, o ambientalismo enquanto movimento social enquadra-se em um novo paradigma, não só identitário, como também de intervenção, dados os recursos que os atores sociais têm mobilizado em sua luta pela defesa do meio ambiente. Proponho-me, inicialmente a apresentar a mudança de paradigma da atuação dos tribunais e dos movimentos sociais. Em seguida, tento indicar as peculiaridades que individualizam a questão ambiental e a justiça ambiental como desafio ao jurídico e à ação dos movimentos sociais. De seguida, apresento as soluções institucionais e organizações de defesa do meio ambiente existentes no Brasil e em Portugal para, no fim, apresentar as diferentes facetas da relação entre mobilização jurídica e mobilização social.


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2. PODER JUDICIÁRIO E MOVIMENTOS SOCIAIS: UMA MUDANÇA DE PARADIGMA No Estado Moderno, o poder judiciário é concebido dentro de uma estrutura legal-racional típica do período liberal. Nesse esquema são valorizadas a separação de poderes, a ideia de representação política e a submissão do Estado à lei, de modo que as ações do Estado são legitimadas por meio do voto, da previsão de mecanismos de controlo entre os diferentes poderes do estado e, ainda, se estiverem de acordo com os procedimentos legais previamente estabelecidos. Em uma concepção liberal de Estado e de direito, o judiciário desempenharia seu papel em uma sociedade separada do Estado, cabendo-lhe, portanto, uma atuação retrospectiva, no sentido de restaurar a ordem violada, garantindo, quando acionado, um conjunto de direitos individuais contra o Estado ou em detrimento de outros cidadãos. A neutralidade política do juiz residiria em sua passividade, pois atua apenas quando provocado, e adstrito à lei, a qual aplica silogisticamente aos fatos. Como não cabe ao judiciário dizer o que é melhor para a sociedade ou qual a melhor sociedade, este modelo implica uma neutralidade axiológica dos operadores do direito face aos problemas políticos e sociais. Essa estrutura e cultura jurídicas, contudo, mostraram-se ineficazes para lidar com a crescente complexificação das sociedades. Neste contexto, o esgotamento dos mecanismos tradicionais de representação política, o aparecimento de novas situações conflitivas, em especial conflitos coletivos, associados às dificuldades do Estado em institucionalizar as demandas sociais e o correlato desgaste da legitimidade dos mecanismos de distribuição de recursos do sistema político passaram a desafiar os tribunais a uma reformulação da função que tinham estado a desempenhar. Inicialmente, influenciada pela ascensão do operariado e pelas reivindicações de expansão da cidadania interclasses, a questão social enfatizava o papel da administração executiva na cobertura dos direitos económicos e sociais. As crises do sistema capitalista exasperaram a incapacidade de incorporação das demandas sociais por meio de políticas de promoção do Estado, transferindo para arena judicial demandas antes negociadas com a administração pública. Nos países periféricos, como é o caso brasileiro, a crise do desenvolvimentista coincidiu com o processo de democratização, o que levou às portas do judiciário conflitos inéditos em conteúdo e forma de manifestação.1 O judiciário passa então a conjugar o legado da concepção 1

Cf. RIBEIRO, Hélcio. Justiça e Democracia: Judicialização da Política e Controle Externo da Magistratura. Porto Alegre: Síntese, 2001, p. 25-57.


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liberal de direito com um novo padrão de intervenção que lhe é requerido face às novas demandas sociais emergentes. Enquanto o modelo liberal é marcado pelo isolamento dos tribunais em relação à sociedade e aos demais poderes do Estado, este novo contexto de consagração dos direitos convive com a intensa acção coletiva por parte da sociedade civil, denunciando não só as consequências da exploração de classes como também os diferentes contextos de opressão vividos pelas populações à margem do contrato social. Consequentemente, a consciência de direitos é ampliada numa consciência complexa em que a liberdade e a igualdade não são prerrogativas formais exercidas apenas individual e autonomamente, passando a ser reivindicadas como direitos materiais a serem garantidos pelo Estado. Trata-se não só de direitos individuais como de direitos colectivos e difusos, não só de direito à igualdade como de direito à diferença. O Judiciário, por sua vez, enfrenta as expectativas de assumir uma maior responsabilidade social, sob pena de colocar em causa a legitimidade do sistema jurídico e ainda tornar-se social e politicamente irrelevante. Corresponder às expectativas, por sua vez, acarretará uma maior controvérsia política entre os diferentes poderes do Estado, uma vez que, ao decidir sobre a garantia direitos não instrumentalizados pela política pública, os tribunais facilmente entram em choque com as esferas de influência do executivo e legislativo. Esse padrão de intervenção judicial, em um quadro em que o raciocínio lógico de aplicação do direito, segundo a ideia de igualdade formal, é substituído pela máxima da justiça distributiva e do direito à diferença, reivindica um desempenho funcional distinto. Como afirma Santos,2 a ampliação das esferas de atuação do direito também refletiu no alargamento dos campos de litigação e da procura judiciária desembocando em uma consequente explosão de litigiosidade. A exigência de novos direitos, em sua maior parte não regulamentados e dependentes de políticas públicas, impulsionou as decisões das cortes a interferir sobre suas condições de efetividade. Note-se aqui uma atuação prospectiva contrária à prevista na concepção liberal que se limitava à restauração da ordem violada. Já a ampliação da titularidade dos direitos e dos efeitos das decisões, agora de caráter coletivo, conduziu a uma atitude pró-ativa 2

SANTOS, Boaventura, et al. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português. Porto: Afrontamento, 1996, p. 25-27.


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dos tribunais no controle do acesso à justiça e na solicitação da tutela de interesses coletivos e difusos. Essa “explosão de litigiosidade”, alargamento dos campos de litigação e demanda por um novo papel a ser cumprido pelos tribunais também podem ser explicados com a mudança de paradigma dos movimentos sociais e dos recursos dos quais lançam mão para a ação coletiva. O paradigma marxista deixa de ser a principal inspiração das formas de ação coletiva a partir da década de 1970, como nota Gohn: Categorias que ficaram por duas décadas congeladas, por pertencerem ao corpo teórico funcionalista – tais como raça, cor, nacionalidade, língua, vizinhança etc., que eram utilizadas como atributos básicos explicativos da ação dos indivíduos e grupos – foram retomadas de forma totalmente nova, em esquemas que privilegiam a heterogeneidade sócio-econômica em detrimento da homogeneidade económica dada pela classe.3

De acordo, com Duarte,4 esses movimentos, que deixam o adjetivo classista para nominarem-se transclassistas, reúnem as seguintes características: 1) A política tem uma centralidade na sua constituição epistemológica. O poder deixa de ser visto apenas como componente da esfera do Estado e passa a ser visto como componente da esfera pública da sociedade civil. De tal modo que campos antes considerados despolitizados (relações de género, defesa do ambiente) são politizados. 2)

Os participantes da ação coletiva são vistos como atores sociais – substitui-se o padrão de um sujeito histórico determinado pelas condições do capitalismo por um novo sujeito difuso, não hierarquizado, empenhado em ampliar o grau de acesso aos bens da humanidade mas também extremamente crítico em relação a seus efeitos.

3)

Cria-se uma nova identidade coletiva que não se baseia mais nos códigos políticos binários tradicionais (direita/

3

GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos, São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 121.

4

DUARTE, Madalena. Novas e Velhas formas de protesto: o potencial emancipatório da lei nas lutas dos movimentos sociais, Oficina do Centro de Estudos Sociais, Julho de 2004, p. 2-3.


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esquerda, liberal/conservador) ou baseado em categorias socioeconômicas (operariado/burguesia, pobre/rico, população urbana/rural). Assim, se formas de ação direta, espontâneas, não burocráticas ainda são vistas como atrativas, a verdade é que a expansão e aumento de força política dos movimentos, a afirmação de suas lideranças, a estruturação dos seus programas de orientação ideológica e a sedimentação de sua base organizativa tendem a influenciar o aprimoramento da componente formal, conduzindo-os para uma progressiva cooptação e enquadramento institucional. De tal modo que, várias ONGs e associações vêm substituindo ações mais radicais ou alternativas pelo recurso, por exemplo, à ciência e ao direito.5 O raio de ação desses movimentos tanto vai ser maior quanto mais as diversas dimensões de direitos humanos estiverem compreendidas pelo ordenamento jurídico estatal. Assim, a tendência de constitucionalização e criação de mecanismos processuais para a proteção não só de direitos individuais como também de direitos coletivos e difusos traz uma nova agenda de reivindicações possíveis dos movimentos sociais junto ao Estado e é uma das razões para o aumento da procura dos tribunais. Nesse conjunto de direitos, a questão ambiental traz, em si, complexidade para o arcabouço jurídico institucional do Estado. Como demonstra Ascerald6 a construção de um conceito de justiça ambiental aumenta essa dificuldade, pois envolve igualmente a consideração de direitos civis (como igualdade) exigindo atenção para as políticas oficiais de distribuição dos riscos e dos danos ambientais. No próximo item, desenvolvo as características da questão ambiental e do conceito de justiça ambiental bem como suas implicações para a ação do Estado e dos movimentos sociais.

3. AMBIENTALISMO E JUSTIÇA AMBIENTAL O meio ambiente como objeto a ser tutelado pelo direito traz consigo a predominância de interesses coletivos e difusos intergeracionais, além de conviver com a realidade de dispersão normativa dos diplomas que 5

DUARTE, Madalena. Ibid., p. 7.

6

ACSERALD, Henry. Justiça ambiental: novas articulações entre meio ambiente e democracia, p. 2/3


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se encarregam de discipliná-lo. Essas características do direito ambiental impedem que as decisões judiciais nessa matéria sejam absolutamente neutras e técnicas, pois se afasta daquele ideal civilista de aplicação de um código para solucionar um conflito entre partes individualmente consideradas. Além de afastar o debate do terreno atomizado e estritamente formal, dada a multiplicidade dos interesses envolvidos e as pressões sociais,7 deve-se ter ainda em mente que o direito ambiental é um campo do conhecimento jurídico atravessado por diversos outros saberes (antropologia, biologia, economia, sociologia, entre outros). Não à toa, esse tema convoca a necessidade de acção transdisciplinar, como se vê nos estudos de impactos ambiental e nas considerações sobre desenvolvimento sustentável, o que torna raro que a solução de demandas de alta repercussão nessa área se operacionalize sob um ponto de vista estritamente jurídico.8 O papel do direito ambiental na instrumentalização de um meio ambiente ecologicamente equilibrado implica as tarefas de defesa (frear efeitos contrários ao meio ambiente e preservá-lo da degradação) e promoção ambiental.9 Para a defesa ambiental atuam os princípios como da correção na fonte, do poluidor pagador e da prevenção; a promoção ambiental, por sua vez, conta com o princípio da precaução ambiental. A defesa do meio ambiente requer não só uma atitude preventiva, dever de impedir a efetivação de danos certos e definidos ao meio ambiente, obstando-os em sua origem (correção na fonte), como também uma atitude reparadora, procurando responsabilizar aquele que degrada o meio ambiente pelo ônus de sua atividade e pelos custos destinados a impedir a agressão e repará-la (poluidor-pagador). A promoção ambiental envolve uma ação acauteladora, no sentido de rechaçar a ação em que há dúvida sobre a potencialidade agressiva. Nesse caso, impera o entendimento de que, na incerteza sobre a lesividade do empreendimento, decide-se a favor do meio ambiente, in dubio pro ambiente.10 Além da precaução, a promoção do meio ambiente 7

A multiplicidade de interesses em torno das questões ambientais é ainda reforçada pelo direito com a atuação dos princípios da informação e da participação comunitária

8

Cf. COSTA, Flávio Dino Castro e. Autogoverno e Controle do Judiciário no Brasil: A proposta do Conselho Nacional de Justiça. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 37

9

Cf. FRAGA, Jesús Jordano. La Protección del derecho a un Medio Ambiente Adecuado. Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1995, pp. 121-155.

10

COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção Jurídica do meio ambiente. Belo Horizonte: Del


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exige a efetivação de políticas ambientais, ações afirmativas do Estado no sentido de implementar um ambiente ecologicamente equilibrado, o que se afina, entre outras, com as diretrizes previstas no art. 225 da Constituição Federal brasileira para o poder público: (1) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (2) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético; (3) definir espaços territoriais a serem protegidas; (4) promover a educação ambiental; (5) proteger fauna e flora. O sistema jurídico e judicial está mais afeito a garantir a reparação ambiental, responsabilizando as partes e exigindo o ressarcimento do dano. No mesmo sentido, tem condições de concretizar o princípio da prevenção uma vez que tem poderes para frear a ação danosa ao meio ambiente. Contudo, as políticas de promoção do meio ambiente dependem da ação voluntária de outros poderes do Estado, leia-se Legislativo e Executivo. Face os limites da sua capacidade operativa, a interferência do judiciário na promoção e execução de políticas públicas é altamente controversa. Daí que a promoção de políticas públicas em prol do meio ambiente, quando não executada voluntariamente pelo poder político, vai depender muito mais da ação política e reivindicação dos movimentos sociais. Nos casos em que há uma discrepância entre o quadro jurídicoinstitucional (leis, órgãos administrativo encarregados da defesa do meio ambiente) e a realização efetiva de políticas ambientais e não se conta com uma última instância de força no quadro jurídico estatal para alcançar a promoção do meio ambiente, há um papel particular a ser desenvolvido pelas organizações de defesa ambiental. Uma noção mais alargada de justiça ambiental implica uma maior agenda de encargos para a ação e articulação política dos movimentos sociais. De acordo com Acserald,11 o movimento de justiça ambiental constitui-se a partir de uma interação criativa entre lutas de caráter social, territorial, ambiental e de direitos civis. O movimento constitui-se nos EUA a partir de reivindicações como a de equidade geográfica: configuração espacial e locacional de comunidades Rey, pp. 121-155. 11

ACSERALD, Henry. Justiça ambiental: novas articulações entre meio ambiente e democracia, p. 2-3.


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em sua proximidade a fontes de contaminação ambiental, instalações perigosas, usos do solo localmente indesejáveis como depósitos de lixo tóxico, incineradores, estações de tratamento de esgoto, refinarias, etc. Estudos apontavam, por exemplo, a existência de uma distribuição espacialmente desigual da poluição segundo a etinicidade das populações a elas mais expostas. Um outro exemplo de luta do movimento de justiça ambiental, nos anos de 1970, foi a reunião de reivindicações relacionadas a questões ambientais urbanas entre sindicatos preocupados com saúde ocupacional, grupos ambientalistas e organizações de minorias étnicas. Na mesma direção, entre 1976 e 1977, foram feitas negociações destinadas a fazer entrar na pauta das associações ambientalistas tradicionais o combate à localização do lixo tóxico e perigoso predominantemente em áreas de concentração residencial da população negra. O movimento por justiça ambiental contrapõe-se à visão hegemónica de modernização ecológica. Assim, recusa a ideia que a superação da crise ambiental pode ser feita utilizando as instituições da modernidade e sem abandonar o padrão de modernização ou o modo de produção capitalista em geral. A denúncia do movimento, na verdade, evidencia que o padrão de modernização ecológica encobre existência de uma tendência da lógica política a orientar uma distribuição desigual dos danos ambientais, existindo uma articulação perversa entre degradação ambiental e injustiça social. A ação do movimento, ao revelar que há um caráter socialmente desigual nas condições de acesso à proteção ambiental, criou uma concepção particular de bem público e ganhou força simbólica em suas ações por sua capacidade de: (a) estender a matriz dos direitos civis ao campo do meio ambiente, fundando a noção de justiça ambiental como alternativa à oposição homem-natureza; (b) politizar, nacionalizar e unificar uma multiplicidade de embates localizados; (c) elaborar apropriadamente uma classificação dos grupos sociais compatível com a posição diferencial dos indivíduos no espaço social.12 Esse padrão de intervenção vem sendo apontado como aquele que possivelmente virá a liderar um novo ciclo de embate por transformação social, o que resulta da capacidade que tem demonstrado em influenciar a agenda política, quer por meio de estratégias de ação como a utilização de recursos multidisciplinares para fortalecer seus argumentos, quer por 12

ACSERALD, Henry. Justiça ambiental: novas articulações entre meio ambiente e democracia, p. 12


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meio do recurso à solidariedade interlocal, de modo a evitar a exportação de injustiça ambiental para áreas com menor capacidade de organização e resistência. Nesse sentido, o movimento procurou internacionalizarse para construir uma oposição global às dimensões mundiais de reestruturação espacial da poluição.13 O movimento por justiça ambiental interessa aqui por sua ação em criar estratégias argumentativas que defendam a promoção ambiental contra as políticas oficiais de proteção do meio ambiente. A atividade do movimento em alterar a pauta política de proteção do meio ambiente revelando suas iniquidades mostra que uma proteção ambiental alargada associada a outros direitos exige não só a proteção institucional, tampouco apenas a ação coletiva institucionalmente arquitetada, mas também a ação coletiva contra a política oficial das instituições. A seguir, faço um breve esboço dos arranjos institucionais e da acção social de defesa do meio ambiente em Portugal e no Brasil.

4. PORTUGAL E BRASIL: ARRANJOS INSTITUCIONAIS E ORGANIZAÇÕES DE DEFESA DO MEIO AMBIENTE O 25 de Abril de 1974 pode ser considerado um divisor de águas na organização institucional portuguesa sobre meio ambiente. Antes dessa data, a única instituição estatal com destaque é a Comissão Nacional do Ambiente, criada em 1971.14 Pós-25 de Abril, a referência imediata é a Constituição da República Portuguesa de 1976 que traz o direito ao ambiente como um direito fundamental estabelecendo também deveres do Estado com a proteção ambiental. Na década de 1980, são criadas a Reserva Agrícola Nacional e a Reserva Ecológica Nacional instrumentos jurídicos que só receberam regulamentação em 1989. Até a primeira metade da década de 1980, o cenário português de proteção jurídica do meio ambiente é marcado por um certo vazio institucional. Os marcos fundamentais de mudança na política oficial portuguesa do meio ambiente são lançados nos anos de 1986/87. Em

13

ACSERALD, Henry. Justiça ambiental e construção social do risco, p. 9

14

Cf. RODRIGUES, Maria Eugénia. Globalização e Ambientalismo: atores e processos no caso da indineradora de Estarreja, Universidade de Coimbra: Dissertação de Mestrado em Sociologia, pp. 52-77.


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1986, Portugal adere à então chamada Comunidade Económica Europeia e vê-se condicionado a consolidar as estruturas institucionais do Estado e proceder a harmonização de seu ordenamento jurídico com as diretivas europeias. 1987 é o ano europeu do ambiente. Esse conjunto de fatores conduziu à promulgação da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87) e da Lei das Associações de Defesa do Ambiente (Lei n.º 10/87). Logo a seguir às leis, é criado o Instituto Nacional do Ambiente encarregado da gestão dos fundos financeiros das organizações não governamentais de defesa do meio ambiente. Essas iniciativas mostram o peso das questões ambientais no âmbito do governo, ao menos formalmente. Em 1990 cria-se o Ministério do Ambiente e Recursos Naturais. O auge do processo de consolidação jurídico-institucional da proteção ambiental dá-se com a criação do Ministério do Ambiente e do Ordenamento Territorial. A criação desse órgão é promissora pela concentração de competências face o anacronismo da separação administrativa das questões ambientais e territoriais. A evolução de um arranjo institucional, por si, como já foi dito acima, não é uma garantia plena da proteção do bem ambiental. De maneira geral, o funcionamento das instituições pode garantir eficácia em ações de controle e prevenção de danos ao meio ambiente, mas as políticas públicas referentes à questão ambiental ficam a cargo da boa vontade política dos governantes. Como expliquei acima, o entendimento geral é da incompetência do judiciário para interferir em matérias dessa natureza. Em Rodrigues (ano, p. 61), vê-se a seguinte avaliação a política ambiental do Estado Português: O desenvolvimento da política de ambiente do Estado Português, no que respeita à sua lentidão, às suas ambiguidades, e por vezes à clara contradição entre o campo das propostas e das iniciativas legaisinstitucionais, por um lado, e a eficácia das medidas de prevenção e controlo, por outro, evidenciam em alguns dos seus traços, a própria natureza contraditória dual e heterogénea do estado português

Usando os termos apresentados na citação acima, é na cobrança por medidas de prevenção e controlo e na tentativa de superar o fosso entre iniciativas legais-institucionais e propostas que está o campo de ação dos movimentos e organizações de defesa do meio ambiente. A questão que fica por responder é como essa dualidade e heterogeneidade da ação estatal portuguesa reflete-se na atuação das organizações ambientais.


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As organizações tendem para o recurso a formas mais imediatas de mobilização? A maior institucionalização da questão ambiental em Portugal provoca um maior grau de institucionalização da ação das organizações ambientais? A dualidade da ação do Estado gera dualidade na ação das organizações que intercalam medidas diretas com medidas institucionais? É no período pós-25 de Abril que aparecem as primeiras organizações de defesa do meio ambiente. Nesse contexto, havia uma tendência de integração das questões ecológicas à problemática mais ampla do movimento social popular. Assim, a mais destacada associação ambiental do período, o Movimento Ecológico Português, unia em sua plataforma a preocupação ecológica e a causa política e social. Já no final da década de 1970 e início da década de 1980 ganham importância os movimentos de defesa das energias alternativas contra os projetos de instalação de centrais nucleares em Portugal, assim como o movimento pacifista de desarmamento. A luta antinuclear foi um importante eixo de contestação que reuniu setores e militantes, de tal modo que o mais forte protesto popular ocorreu em torno da luta antinuclear em Ferrel. Em meados dos anos de 1980, inicia-se uma nova fase em torno da organização e autonomização de um movimento associativo que tivesse o problema do ambiente como central. Nesse sentido, a Associação Nacional de Conservação da Natureza – Quercus adquiriu maior projeção na luta contra as indústrias de celulose. A partir da década de 1980, duas vertentes têm impacto na atuação e identificação do movimento ambientalista português: (a) o contato internacional, nomeadamente após o ingresso de Portugal na União Europeia; (b) a institucionalização pelo Estado da questão ambiental. O impacto desta última em algumas associações representou o maior pragmatismo e ruptura com posições ideológicas mais radicais. De maneira geral, é comum uma descrença no uso do direito como uma estratégia exitosa para a ação dos movimentos sociais. Assim, alguns autores da corrente Critical Legal Studies argumentam que os tribunais como instrumentos hegemónicos não podem interferir significativamente em prol da transformação social. Duarte15 enumera as principais vertentes desses argumentos:

15

DUARTE, Madalena. Novas e Velhas formas de protesto: o potencial emancipatório da lei nas lutas dos movimentos sociais, Oficina do Centro de Estudos Sociais, Julho de 2004, p. 8-9.


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(1)

A justiça falha na sua componente redistributiva. Os tribunais têm limites operacionais, de modo que não têm capacidade operativa para fazer valer por si o enunciado de suas decisões.

(2)

O restrito acesso ou mesmo negação da justiça aos grupos minoritários é um fator de desmobilização legal. De outro modo, nem todos os grupos minoritários são tratados de forma idêntica pelas decisões judiciais.

(3) Dado o grau de abertura do direito, os direitos podem ser manipuláveis e utilizados para garantir qualquer tipo de decisão judicial. (4) A estratégia judicial pode levar a que o Estado condicione a ação do movimento.

A refutação desses argumentos depende da crença de que o uso do direito pode ser emancipatório, o que pode ser defendido por meio das seguintes hipóteses: (a)

O uso dos tribunais representa uma forma de exercício de democracia e cidadania, indicando a consciência da existência de um direito e a afirmação da capacidade de reivindicá-lo.

(b) Para algumas minorias, o recurso aos tribunais pode criar ou reforçar a ideia de identidade coletiva.

16

(c)

Os tribunais têm uma função simbólica e, independentemente da eficácia de suas decisões, enraízam concepções de justiça redistributiva e distributiva, para além de emprestarem notoriedade à causa.16

No caso brasileiro, maior preocupação institucional com meio ambiente surge a partir da Constituição de 1988. A Constituição declara o meio ambiente como bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à comunidade o dever de protegê-los. O sistema institucional de proteção do meio ambiente espraia-se na estrutura administrativa do Estado, cabendo ao executivo o papel de polícia ambiental através de órgãos como o Instituto Brasileiro

DUARTE, Madalena. Op. cit., p. 10-11.


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de Meio Ambiente (IBAMA), além de delegacias de meio ambiente estaduais. Nesse sistema, o Ministério Público e o judiciário têm um importante papel especialmente face à possibilidade de protecção do meio ambiente por meio de Ação Civil Pública.

Furriela17 indica nove tipos de ambientalismo que têm se desenvolvido no Brasil ao longo das décadas de 1980/1990:

(a)

Ambientalismo governamental: profissionais que assumiram um compromisso com os valores e práticas do ambientalismo e foram atuar na área governamental. Sua prática expressa-se em canais governamentais em vários níveis e limitações.

(b) Ambientalismo dos cientistas: aqueles que se dirigem à opinião pública enquanto cientistas para fazer denúncias, alertas, pressionarem por mudanças, sem necessariamente aderirem ao movimento ecológico. (c)

Ambientalismo das ONGs de desenvolvimento social: entidades que trabalham com o desenvolvimento social e acabam por adotar preocupações ambientais.

(d)

Ambientalismo das religiões: no discurso de respeito ao meio ambiente presente nas várias religiões.

(e)

Ambientalismo dos políticos profissionais: políticos que passaram a ser eleitos com discursos ambientalistas.

(f)

Ambientalismo dos educadores: professores de escolas que passaram a trabalhar com a questão ambiental.

(g) Ambientalismo dos artistas: artistas preocupados em produzir obras com consciência ambientalista. (h) Ambientalismo dos empresários: expressa-se em propagandas ou em empresário que por valores próprios tentam desenvolver tecnologias ambientalmente adequadas. (i)

17

Ao se analisar mais detidamente o funcionamento da

FURRIELA, Rachel Biderman. Democracia, cidadania e proteção do meio ambiente. São Paulo: Fapesp, AnnaBlume, 1999, p. 154-155.


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proteção judicial brasileira, ver-se-á que o aparato jurídicoinstitucional construído tem maior eficácia no binómio prevenção-controle, mas não conta com mecanismos que garantam a promoção ambiental por meio de políticas públicas. Veja-se exemplificativamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEI ORGÂNICA MUNICIPAL. MEIO AMBIENTE. EXIGÊNCIA DE CRIAÇÃO DE POSTOS DE CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DE TRANSPORTES DE CARGAS TÓXICAS NO MUNICÍPIO. NORMA DE EFICÁCIA REDUZIDA. INÉRCIA DO MUNICÍPIO. INEXISTÊNCIA DE DANO AO MEIO AMBIENTE. DESCABIMENTO DA AÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. A ação civil pública não é o meio processual adequado para constranger o Município a criar postos avançados de controle e fiscalização de transporte de cargas tóxicas. A ação não se presta a compelir a Municipalidade a regulamentar a norma genérica e de eficácia contida presente na Lei Orgânica do Município, até em razão da previsão de despesas que devem ser dimensionadas na legislação reguladora. Inexistência, ainda, de prova de efetivo dano ao meio ambiente, pressuposto para a condenação do poluidor. Improcedência da ação. APELAÇÃO PROVIDA. (APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO N.º 70005972914, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: HENRIQUE OSVALDO POETA ROENICK, JULGADO EM 12/11/2003) EMENTA: ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO AMBIENTE. REALIZAÇÃO DE FATOS CONCRETOS. POLÍTICAS PÚBLICAS. 1. A realização de fatos concretos pela Administração, com a finalidade de despoluir bacias hidrográficas, subordina-se à prévia previsão orçamentária, ou seja, ao princípio da realidade, não cabendo ao órgão judiciário estabelecer prioridades e ordenar obras, provado que a pessoa jurídica de direito público tudo faz ao seu alcance para proteger o meio ambiente e desenvolve políticas públicas concretas e objetivas com tal finalidade. Precedente do STJ. No entanto, cabe ordenar o exercício do poder de polícia, com o fito de impedir que os particulares continuem com atividades poluidoras. 2. APELAÇÃO PROVIDA EM PARTE. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70006898332, QUARTA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ARAKEN DE ASSIS, JULGADO EM 08/10/2003)


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É na decisão sobre a promoção do meio ambiente pelo poder público que o judiciário encontra seu grande desafio, pois, ao sair da esfera de decisão sobre a defesa ambiental – em que lhe compete apenas evitar os danos certos e definidos, avaliá-los, condenar os responsáveis ou confrontar-se com o Executivo para evitar a atividade administrativa danosa – e, empenhar-se em ampliar sua atuação para fazer cumprir ações afirmativas de promoção ambiental, o judiciário arrisca-se a ter esse protagonismo questionado quanto à legitimidade, capacidade e independência. De acordo com Santos,18 na dimensão da legitimidade, os tribunais são questionados quanto ao conteúdo democrático de suas decisões. Como, em grande parte do mundo, os juízes não são eleitos pergunta-se: como pode se sustentar uma decisão judicial que contraria a maioria política ao interferir na atuação do Executivo ou do Legislativo, ambos eleitos democraticamente? O questionamento quanto à capacidade dos tribunais, por sua vez, diz respeito aos limites estruturais para a efetivação das decisões judiciais. O judiciário depende da atuação de outros ramos do Estado para executar suas decisões. O desempenho judicial arrisca-se a uma perda de credibilidade em conflitos judiciais de grande repercussão cuja resolução fique pendente por não falta de execução. A independência é questionada pelo próprio judiciário pois, por estar vinculado financeiramente ao executivo e ao legislativo, pode a qualquer momento sofrer retaliações que atentem contra sua independência, prejudicando seu desempenho funcional. A restrição da esfera de atuação do sistema judicial ainda pode implicar o risco de os tribunais tornarem-se socialmente irrelevantes, isso porque as decisões dos tribunais teriam maior impacto social se envolvessem a efetividade da promoção de políticas públicas em prol do meio ambiente. Neste cenário, com a existência de outro órgão institucional que pode resolver extrajudicialmente conflitos relativos à defesa do meio ambiente e de forma mais célere, como, por exemplo, o Ministério Público, é legítimo sustentar a hipótese de que a via judicial como alternativa para a solução de contendas envolvendo matéria ambiental seria automaticamente relegada para segundo plano. Ainda no âmbito desta hipótese, a despeito da eficiência do Ministério Público em solucionar não judicialmente as demandas de defesa do meio 18

SANTOS, Boaventura, et al. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português. Porto: Afrontamento, 1996, p. 25-27.


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ambiente, casos existiriam em que a promoção ambiental dependeria de atuação concreta e voluntária das partes envolvidas. Vejam-se, a título de exemplo, dois Procedimentos Administrativos de Inquérito instaurados pela Promotoria de Meio Ambiental da Comarca de Belém, Ministério Público do Pará, no período de 2000 a 2003. ACONDICIONAMENTO DE GÁS NO MUNICÍPIO DE BELÉM A fiscalização da regularidade do acondicionamento de gás na cidade interessa pela possibilidade de dano ambiental em depósitos clandestinos, onde o gás é acomodado de forma inadequada. Em audiência foi aventada a possibilidade de atuação conjunta da Delegacia de Meio Ambiente e a Funverde no sentido de obrigar ao licenciamento as atividades de depósito e comercialização do gás de cozinha, o impasse para a solução da questão reside na restrição da Funverde em assumir a atividade de licenciamento já que sua responsabilidade só se impõe em caso de vazamento significativo e constante que alterem as condições físico-químicas do ar e, no período de carga e descarga de botijões, se os ruídos provocarem poluição sonora. GESTÃO COMPARTILHADA DAS ÁREAS LIMÍTROFES ENTRE OS MUNICÍPIOS DE BELÉM, ANANINDEUA, BENEVIDES, SANTA BÁRBARA E MARITUBA NO TRATO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS Como o trato de resíduos sólidos se dá em área compartilhada por diversas municipalidades, o primeiro impasse a ser resolvido para solucionar a questão estaria na fixação das obrigações de fazer de cada Município, após uma audiência pública para tratar do assunto, a busca da solução vem sido obstada pela ausência das partes envolvidas nas audiências marcadas.

Estes dois exemplos interessam por demonstrarem empiricamente que, ainda que exista um órgão ativo na defesa de direitos, a própria engenharia constitucional e os limites operacionais de cada organismo estatal servem de obstáculos para que os direitos sejam assegurados institucionalmente em sua plenitude. Nesse sentido, ainda que se verifique nalguns casos maior eficiência do Ministério Público no processamento das demandas relacionadas ao meio ambiente sobressaltando esse órgão para a solução de conflitos ambientais em detrimento do poder judiciário, em determinados momentos, a atuação do órgãos de administração da


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justiça paralisa-se, dependendo da ação voluntária dos responsáveis pela política pública. Essa situação indica um cúmulo, porque se for transferida ao judiciário, esse poder também se debateria com o limite de sua competência previsto no esquema de separação de poderes para forçar o poder público a solucionar problema. Basta pensar nos casos exemplificados, em que a solução depende ou de políticas públicas ou da delimitação de competências entre os executivos municipais, campos em que o poder executivo tem constitucionalmente salvaguardado sua autonomia de ação. Retoma-se aqui a antiga discussão sobre os limites para que o direito possa ser utilizado como instrumento de emancipação social. Dadas as restrições de atuação dos órgãos jurídicos para a garantia de direitos, pode o direito ser usado como meio eficaz para luta dos movimentos sociais?

5. MOBILIZAÇÃO JURÍDICA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL Adiscussão em torno do potencial emancipador do uso de instrumentos jurídicos para a obtenção de direitos remonta à década de 1980 com a avaliação feita por académicos americanos sobre o movimento de direitos civis. Basicamente, o debate está contido em duas posições, uma mais radical e outra moderada.19 Para aqueles que defendem a ineficácia do uso do direito para a luta dos movimentos sociais, sobreleva-se o caráter individualista do direito e, portanto, a ineficácia da resposta do direito no plano colectivo. Nesse sentido, o recurso ao direito, nomeadamente o recurso judicial, teria o condão de trivializar e individualizar as demandas, debilitando a luta contra-hegemônica dos movimentos sociais. De outro lado, há os que veem que, ainda que persista no direito uma tendência à dominação, pode também haver caminhos de resistência que favoreçam os movimentos sociais e, nesse sentido, podem ser citadas leis e a consagração jurídica de direitos das minorias, por exemplo: direito à igualdade para as mulheres, legislação social para os trabalhadores, leis de assistência social para os pobres, entre outros.

19

UPRIMNY, Rodrigo. GARCIA-VILLEGAS, Maurício. Tribunal constitucional e emancipação social na Colômbia. In SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Porto: Afrontamento, p. 253-254.


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Já desde a década de 1990, vem se consolidando nos críticos a visão de que a eficácia ou ineficácia do instrumental jurídico é um fenómeno complexo não passível de generalizações; as reformas jurídico-legais tanto podem reforçar o status quo quanto virem a contribuir para a luta política por transformação social. Trata-se, portanto, de um campo aberto à investigação. A análise feita neste artigo indicia que, mesmo com uma legislação favorável à proteção do meio ambiente e a atuação positiva por parte de alguns órgãos responsáveis pela administração da justiça, não há cobertura institucional plena para todos os casos que afetam a questão ambiental; ou seja, mesmo um instrumental jurídico progressista encontra limites operacionais. Dessa forma, é possível reformular o debate em torno da mobilização legal: no lugar da pergunta sobre a contribuição do direito para a implementação e progresso da luta dos movimentos sociais, deve-se indagar sobre a importância da luta dos movimentos sociais para a implementação e progresso do próprio direito. Defendo, portanto, que é a mobilização social a mola propulsora da aproximação do fosso abissal que acaba por existir entre o que a sociologia do direito convencionou chamar: law in books e law in action. Nesse processo, os mecanismos à disposição dos movimentos sociais são heterogéneos, podendo lançar mão de manifestações mais diretas a manifestações mais institucionalizadas. O feixe de opções liga-se às alternativas construídas no âmbito de cada movimento e intermovimento, bem como as articulações com a legalidade em suas diferentes escalas. Isso remete às organizações de defesa ambiental portuguesas que têm que lidar com a eficácia da ação do Estado em algumas dimensões e a inércia em outras, muitas vezes utilizando como vantagem o contexto europeu de aplicação do direito. A acção colectiva liga-se, assim, à realidade dos poderes e dos discursos dos locais e translocais em que os movimentos estão inseridos e, ainda, à sua capacidade de incorporar, traduzir, ressignificar, subverter e contrariar esta realidade. 6. CONCLUSÃO Neste artigo, propus-me a refletir sobre os mecanismos jurídicoinstitucionais colocados à disposição dos movimentos sociais, seu sentido, alcance e eficácia. Para tanto, analisei a construção de alternativas jurídicas e institucionais e o ambientalismo em Portugal e Brasil. Em


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Portugal, a presença de um Estado dual e heterogéneo dá aos movimentos ambientalistas duas margens: a inércia e a eficácia estatal. No percurso de uma margem para outra, os movimentos podem lançar mão de um conjunto de estratégias de ação que vão, desde a ação direta, até a ação mais institucionalizada, como, por exemplo, uma ação judicial. No caso brasileiro, a análise da atuação jurisdicional das demandas ambientais dá sinal de um vazio institucional nas políticas públicas afirmativas em prol do meio ambiente, o que destaca a importância dos atores coletivos para remediar o fosso existentes entre law in books X law in action. A efetiva proteção de direitos depende de um amálgama complexo de soluções institucionais e mobilização social, esses dois polos devem fortalecer-se reciprocamente, seus limites ou fraqueza podem por em risco a acção colectiva agindo como obstáculos às lutas por efectividade dos direitos.

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A DEFENSORIA PÚBLICA PAULISTA: CAMINHANDO NA CONTRAMÃO1 Eneida Gonçalves de Macedo Haddad

Mestre em Antropologia Social e Doutora em Sociologia/USP, docente e pesquisadora/UNINOVE enhaddad@uol.com.br

1. INTRODUÇÃO “Não haverá justiça mais próxima dos cidadãos, se os cidadãos não se sentirem mais próximos da justiça.” (Boaventura de Sousa Santos) Na década de 1980, antes e durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte convocada em 1987, a garantia do acesso à justiça já constava da pauta de reivindicações dos movimentos organizados da sociedade civil. Atendendo a essa necessidade, a Constituição, promulgada em 05 de outubro de 1988, dispôs no Art. 5º LXXIV que “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. O Art. 134 da Constituição consolida a responsabilidade do Estado: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.

1

Este artigo corresponde a alguns resultados de uma investigação cujo objetivo é resgatar a história da Defensoria Pública no Estado de São Paulo. A coleta de dados, realizada por quatro pesquisadoras, docentes do curso de direito da Universidade Nove de Julho, foi iniciada em agosto de 2007 e concluída em julho de 2009. Atualmente, os dados estão sendo analisados e interpretados para posterior publicação. Além da autora deste artigo, compõem a equipe as Professoras Andréa Cristina Oliveira Gozetto, Cibele Cristina Baldassa Muniz e Thaís Aparecida Soares.


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Ao iniciar o século XXI, o Estado de São Paulo ainda não havia cumprido essa obrigação constitucional. Buscando alterar a cadência lenta da história, em 2002, nas dependências da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, foi oficializado o Movimento pela Defensoria Pública/ MDPESP, contando com o apoio de centenas de entidades. Deflagrado um amplo debate pela criação em São Paulo de uma defensoria democrática e independente, o Movimento, organizado por alguns membros da Procuradoria Geral do Estado/PGE, enfrentou as injunções políticas resistentes à existência dessa instituição. Em 9 de janeiro de 2006, foi sancionada a Lei Complementar n.º 988 que criou a Defensoria Pública paulista. Acrescente-se ainda que a reforma constitucional do judiciário reconheceu a relevância das defensorias públicas, de sorte que a Emenda n.º 45/2004 garantiu a autonomia funcional, administrativa e financeira das defensorias públicas estatais. A Defensoria Pública da União2 e a do Distrito Federal subordinam-se ao Poder Executivo.

2. O MOVIMENTO POR UMA INSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA Além do descompromisso do Poder Executivo com os segmentos socioeconomicamente desfavorecidos, a PGE e a seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB eram contrárias à criação de uma instituição que substituísse os serviços prestados pela Procuradoria da Assistência Judiciária (PAJ) e pelos advogados dativos. Somente flexibilizaram suas posições quando o MDPESP ganhou força. Criada em 1947, a PAJ teve uma longa vida, extinguindo-se após a criação da Defensoria Pública. Os crescentes impasses gerados pela impossibilidade de conciliação das funções exercidas pela PAJ – defensora dos direitos da população desprovida de recursos – com as da PGE – defensora do Estado – anunciavam a necessidade de uma solução. Em entrevista concedida em 2008, uma defensora pública que atuava como procuradora da assistência judiciária referiu-se a diversas situações paradoxais, dentre as quais o episódio da vídeoconferência:

2

Criada e organizada pela Lei Complementar n.º 80 de 1994 e implantada com a Lei n.º 9020 de 30/03/1995.


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Sempre houve, de uma forma mais ou menos intensa, uma dicotomia dentro da PGE porque, para fazer valer o direito dos cidadãos, a PAJ acionava o Estado. Foi o caso do episódio da vídeo-conferência que, no aspecto penal e processual penal, é de flagrante inconstitucionalidade. Entretanto, havia um parecer da PGE autorizando o governo do Estado a instalar e a implementar o sistema de vídeo-conferência. Quer dizer, nós, procuradores da PAJ, participávamos de audiência, cuja defesa dos hipossuficientes do processo criminal exigia que nos manifestássemos contra a vídeo-conferência, recusando, inclusive, o parecer da PGE. Eram funções que não podiam estar dentro de uma mesma instituição pela própria essência, pela própria natureza da atividade.3

Alguns procuradores estavam conscientes de que a assistência à população socioeconomicamente desfavorecida não poderia continuar sendo realizada por um braço da PGE, exigindo a criação da Defensoria Pública e, por consequência, a revisão da situação profissional dos que atuavam na PAJ. O estranho hibridismo de funções no interior da PGE não era recente; arrastou-se ao longo das décadas, desde a criação da PAJ, em 1947. Mas, por que o conflito se manifestou tão tarde? Nos limites dessas reflexões acerca da problemática, compreende-se que às condições históricas favoráveis – dentre as quais se destacam o dispositivo constitucional, o anseio popular pelo acesso à justiça,4 a existência de defensorias públicas na grande maioria dos estados brasileiros – somou-se o “despertar” dos dois principais articuladores do MDPESP, Vitore André Zílio Maximiano e Antonio José Maffezoli Leite, profissionais da PAJ cujas biografias tinham sido enriquecidas com a atuação no Centro de Integração da Cidadania/ CIC5 em funcionamento 3

Arquivo das autoras.

4

Têm sido importantes as contribuições acerca da da situação das classes sociais desfavorecidas. Dentre elas: MARTINS, José de Sousa. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

5

Os Centros de Integração da Cidadania/CIC foram idealizados por um grupo de operadores da justiça da cidade de São Paulo, no início de 1990. O primeiro CIC foi implantado no distrito de Itaim Paulista, em 1996. Atualmente, essa política pública funciona em várias regiões do município de São Paulo e do Estado de São Paulo e em outros estados brasileiros, fazendo parte do Plano de Segurança Nacional da Secretaria Nacional de Segurança Pública/SENASP. O projeto que levou à criação dos CIC é expressão de um novo paradigma de justiça e segurança fundado na bus-


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no Itaim Paulista e no Centro de Referência e Apoio à Vítima (CRAVI),6 políticas sociais alternativas que começaram a ser implementadas na década de 1990. Não bastasse, foram eleitos para os cargos de presidente e de secretário-geral no Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo/Sindiproesp, o que exigiu a ampliação dos contatos com defensores públicos de outros estados e com as entidades organizadas da sociedade civil. Portanto, atribuir unicamente à solução de problemas institucionais a iniciativa de procuradores da PAJ de organizar o MDPESP é desconsiderar suas percepções de justiça e de “direito” e seus compromissos democráticos com a população que atendiam e com os movimentos sociais, cuja participação tem sido significativa na construção de políticas públicas voltadas à ampliação do acesso à justiça.7 Concorda-se que, em relação ao judiciário, podem ser identificados dois grandes campos. Se, de um lado, o campo hegemônico reclama

ca da concretização dos direitos humanos. A respeito, consultar: HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline; PIETROCOLLA, Luci Gati. Justiça e Segurança na periferia de São Paulo: os centros de integração da cidadania. São Paulo: IBCCRIM, 2003; HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline; ALMEIDA, Frederico de; PAULA, Liana de. Centros Integrados de Cidadania. Desenho e Implantação da Política Pública (2003-2005). SÃO PAULO: IBCCRIM, 2006; SINHORETTO, Jacqueline. Ir aonde o povo está: etnografia de uma reforma da justiça. Tese de Doutoramento. Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2006. MIMEO. 6

Em 1998, a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo criou o programa Centro de Referência e Apoio à Vítima/CRAVI para atender as vítimas diretas e indiretas de violência contra a vida na Região Metropolitana de São Paulo. Advogados, psicólogos e assistentes sociais compõem a equipe de atendimento, buscando uma abordagem integrada do problema. O trabalho tem parceria com o Instituto São Paulo Contra a Violência, Instituto Therapon Adolescência, Secretaria de Estado de Direitos Humanos da Presidência da República e Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo. Dentre seus objetivos, destacam-se: “dar visibilidade à questão dos homicídios nos centros urbanos e às suas vítimas indiretas, garantindo-lhes o direito de serem ouvidas; reposicionar socialmente as vítimas de violência, oferecendo-lhe os instrumentos necessários para o exercício político da cidadania e transformando-as em sujeito de deveres e direitos; proporcionar, às vítimas, condições para que identifiquem e impeçam novas situações de violência” (Cf. http://www.forumseguranca.org.br/ praticas/cravi-centro-de-referencia-e-apoio-a-vitima. Acesso em 21 de setembro de 2009).

7

A respeito, ALVARENGA, Ana Maria; TEODORO, António. A “Lenda” ou história da borboleta: os movimentos sociais e a educação - o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e a educação do Campo. In: São Paulo: ECCOS - Revista Científica. v. 11, nº 1, p. 193-207, jan/ jun.2009.


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por “um sistema judiciário eficiente, rápido, um sistema que permita, efectivamente, a previsibilidade dos negócios, dê segurança jurídica e garanta a salvaguarda dos direitos de propriedade” (SANTOS, 2008, p. 23), por outro, o campo contra-hegemônico é o campo dos cidadãos que tomaram consciência de que os processos de mudança constitucional lhes deram direitos significativos – direitos sociais e econômicos – e que, por isso, vêem no direito e nos tribunais um instrumento importante para reivindicar os seus direitos e as suas justas aspirações e serem incluídos no contrato social. (SANTOS, 2008: 29)

Assim, é inegável o significado dos movimentos sociais no processo democrático. Maria da Glória Gohn classifica os movimentos sociais em movimentos identitários (os que lutam por direitos sociais, econômicos, políticos e culturais, nos quais podem ser incluídas as lutas das mulheres, dos idosos, dos afrodescendentes, dentre outros); movimentos voltados à melhoria das condições de vida e de trabalho, no meio urbano ou rural, “que demandam acesso e condições para terra, moradia, alimentação, educação, saúde, transportes, lazer, emprego, salário etc.” e, finalmente, movimentos globais ou globalizantes. Neste último, estão incluídas as “lutas que atuam em redes sociopolíticas e culturais, via fóruns, plenárias, colegiados, conselhos etc.”. Essa subdivisão, explica a autora, “não tem a pretensão de criar uma tipologia de formas únicas e excludentes, até porque, na prática, algumas vezes elas se misturam, e alguns movimentos assumem mais de uma frente de ação” (GOHN, 2008, p. 439-440). A organização do MDPESP, isto é, a luta pelo direito da população historicamente desfavorecida contar com uma instituição a lhe garantir uma assistência jurídica de qualidade, foi possível devido à parceria com diferentes movimentos sociais e entidades organizadas da sociedade civil. Os serviços oferecidos pela Defensoria Pública paulista refletem a presença e o peso dos movimentos sociais identitários e daqueles que lutam por melhores condições de vida – mulheres, idosos, moradia, direitos humanos, dentre outros, desde o anteprojeto de lei de sua criação. Inicialmente elaborado pelo Sindiproesp, o anteprojeto foi aprimorado por entidades da sociedade civil organizada, em encontros promovidos pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa


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Humana (Condepe) e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (CTV).8 Cabe observar a composição do comitê organizado quando da deflagração do MDPESP: Comitê de Organização: Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CONDEPE; Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos – CTV; Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo – SINDIPROESP; Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP; Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM-Brasil; Fala Preta Organização das Mulheres Negras e Centro de Direitos Humanos do Sapopemba – CDHS. (BOLETIM ELETRÔNICO, n.º 1)

O MDPESP congregou as demandas dos sujeitos coletivos articulando-as em torno de um interesse comum: a criação de um órgão

Vale registrar as principais características da Defensoria Pública a ser criada, propostas pelo anteprojeto. 1 – Prestar, de forma descentralizada, assistência jurídica integral às pessoas carentes, no campo judicial e extrajudicial. 2 - Defender os interesses difusos e coletivos das pessoas carentes. 3 - Assessorar juridicamente, por meio de núcleos especializados, grupos, entidades e organizações não governamentais, especialmente aquelas de defesa dos direitos humanos, do direito das vítimas de violência, das crianças e adolescentes, das mulheres, dos idosos, das pessoas portadoras de deficiência, dos povos indígenas, da raça negra, das minorias sexuais e de luta pela moradia e pela terra. 4 - Prestar atendimento interdisciplinar realizado por defensores, psicólogos e assistentes sociais. Esses profissionais também devem ser responsáveis pelo assessoramento técnico aos defensores, bem como pelo acompanhamento jurídico e psicossocial das vítimas de violência. 5 - Promover a difusão do conhecimento sobre os direitos humanos, a cidadania e o ordenamento jurídico. 6 - Promover a participação da sociedade civil na formulação do seu Plano Anual de Atuação, por meio de conferências abertas à participação de todas as pessoas. 7 - Implantar Ouvidoria independente, com representação no Conselho Superior, como mecanismo de controle e participação da sociedade civil na gestão da Instituição. 8 - Estabelecer critérios que, no concurso de ingresso e no treinamento dos defensores, realizado durante todo o estágio confirmatório, garantam a seleção de profissionais vocacionados para o atendimento qualificado às pessoas carentes. 9 - Ter autonomia administrativa, com a eleição do Defensor Público Geral para mandato por tempo determinado. 10 - Ter autonomia orçamentária e financeira, utilizando-se dos recursos do FAJ. Cf. Boletim eletrônico n° 1, divulgado pelo Movimento, em julho de 2002. Arquivo da autora

8


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público voltado à defesa do acesso à justiça.9 A citação abaixo corresponde a um trecho do documento divulgado quando da oficialização do MDPESP, em 2002, nas dependências da Faculdade de Direito da USP: Após as falas iniciais e a leitura do Manifesto do Movimento foi entregue ao Procurador Geral do Estado o anteprojeto para a criação da Defensoria Pública, que foi elaborado em reuniões abertas com intensa participação da sociedade civil. Esse anteprojeto possui importantes características para que, uma vez criada, a Defensoria Pública funcione como efetivo instrumento de acesso à Justiça, atuando de forma ampla e organizada. Por isso o Movimento espera que ele seja usado pelo Governo Estadual como subsídio para a elaboração de um eventual projeto de Defensoria Pública para o Estado, que só pode ser enviado à Assembléia por iniciativa do Governador Geraldo Alckmin. (BOLETIM ELETRÔNICO n.º1)

A Defensoria Pública paulista nasceu como uma instituição democrática. Sua criação teve impacto inegável no sistema de justiça. Criando espaços de participação da sociedade civil na sua gestão e fiscalização, é um modelo a ser seguido pela administração pública. Em 07 de outubro de 2009, foi sancionada a Lei Complementar n.º 132 que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e territórios e a Defensoria Pública dos estados.10 Garantindo assistência jurídica a todos os cidadãos que recebem até três salários mínimos, esse novo dispositivo legal contemplará 78% dos brasileiros. Segundo o Art. 1º desse dispositivo legal, A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção 9

Conforme Maria da Glória Gohn, “há diferentes paradigmas teóricos na atualidade para o estudo da ação dos sujeitos coletivos que produzem e reproduzem as demandas, ações, inovações ou até mesmo retrocesso nas ações coletivas organizadas. (…) Como há diversidade entre os sujeitos, as redes poderão estar mais ou menos institucionalizadas, segundo a sua composição, com alguma forma de juridização que normatiza suas ações. Isso não significa que sejam redes estatais ou governamentais, porque essa qualificação incorreria num erro de confusão entre estado, governo e instituição de qualquer natureza, operando na sociedade civil, com ou sem algum tipo de articulação ou parceria com os órgãos governamentais” (GOHN, 2008, p. 439-440).

10

Altera dispositivos da Lei Complementar n.º 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e da Lei n.º 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, e dá outras providências.


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dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.

Merecem destaque dois outros artigos. O Art 4º,II, reza que as defensorias públicas deverão promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos.

O Art. 105-A determina que as defensorias públicas deverão ter como órgão auxiliar a Ouvidoria-Geral, canal de participação da sociedade na fiscalização do órgão. O ouvidor, escolhido pelo Conselho Superior dentre cidadãos de reputação ilibada a partir de uma lista tríplice apresentada pela sociedade civil, não poderá ser um integrante dos quadros da Defensoria. Cabe destacar que a Defensoria Pública paulista já vinha realizando as atividades de solução extrajudicial dos litígios e foi o primeiro órgão jurídico do Brasil a ter um cargo de ouvidor ocupado por um membro fora da carreira, indicado por entidades de direitos humanos. Ante o exposto, pode-se concluir que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo é modelo para as defensorias públicas do país.

3. CAMINHANDO NA CONTRAMÃO Alguns obstáculos vêm impedindo a extensão a todas as comarcas dos serviços já implantados na Grande São Paulo e a criação de novas formas de atendimento que garantam a passagem da assistência judiciária para a assistência jurídica, cuja implementação exige uma gama de serviços, inexistentes quando a finalidade é unicamente a litigância. Com a assistência jurídica há uma evidente transmutação. Passa-se da idéia de assistência judiciária para o de acesso à justiça; de assistencialismo público para serviço público essencial; de extensão da Advocacia privada aos financeiramente carentes à promoção dos direitos humanos; de mera promoção judicial de


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demandas privadas à identificação dos direitos fundamentais da população e sua instrumentalização, eventualmente pela via judicial. Daí porque é essencial a compreensão da natureza distinta das defensorias públicas, em comparação com os serviços de assistência judiciária antes existentes (ainda que nomeados defensorias públicas), a fim de que se organize o novo serviço público em razão de sua real finalidade, constitucionalmente desenhada. (WEIS, 2002, p. 5)

É significativo o papel desempenhado pela Defensoria Pública paulista. Além de prestar assistência em todas as áreas do Direito de competência da Justiça Estadual, incluindo a atuação nos tribunais superiores, promove a cidadania por meio da educação em direitos, soluções alternativas de conflitos, intervenção multidisciplinar, mediação de conflitos e nas demandas sociais coletivas. Apresentando uma concepção moderna de administração pública, possui canais de participação popular – a Ouvidoria-Geral11, as PréConferências Regionais12, a Conferência Estadual13 e o Momento

11

Cf Art. 36 da Legislação da Defensoria Pública, “a Ouvidoria-Geral é órgão superior da Defensoria Pública do Estado, devendo participar da gestão e fiscalização da instituição e de seu membros e servidores”. O Art. 39 reza que “O Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral, composto por 11 (onze) membros e presidido pelo Ouvidor-Geral, terá como finalidades precípuas acompanhar os trabalhos do órgão e formular críticas e sugestões para o aprimoramento de seus serviços, constituindo canal permanente de comunicação com a sociedade civil”. Legislação da Defensoria Pública. São Paulo, 2007.

“A Conferência Estadual e as pré-conferências regionais poderão desenvolver-se sob a forma de palestras, painéis, debates e grupos de trabalho que permitam a formulação de propostas pelos delegados, observadores e convidados e deverão abordar os seguintes temas e subtemas a serem discutidos: I. Prioridades no desempenho das atribuições institucionais da Defensoria Pública; II. Direito das pessoas que buscam a Defensoria Pública e definição das propostas e melhorias no atendimento; III. Atuação da Defensoria Pública com vistas à garantoia, promoção, prot´ção e prevenção dos direitos (…)”. (Capítulo IV. Da Organização e Desenvolvimento. Legislação da Defensoria Pública. São Paulo, 2007).

12

13

“A Conferência Estadual deverá garantir ampla participação popular, em especial de representantes de todos os conselhos estaduais, municipais e comunitários, de entidades, organizações não-governamentais e movimentos populares, eleitos nas pré-conferências regionais. Terá a participação de delegados eleitos nas pré-conferências regionais, com 60% de representantes da sociedade civil (totalizando 300) e 40% indicados por membros da área pública (totalizando200)” (Capítulo V, Artigos 25 e 26. Legislação da Defensoria Pública, São Paulo, 2007).


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Aberto nas reuniões do Conselho Superior da Defensoria Pública14 – que viabilizam a participação da sociedade civil na elaboração do seu Plano Anual de Atuação. Acrescente-se, ainda, a importância que vêm assumindo os núcleos especializados por receberem as reivindicações das comunidades. Assim, quando ocorre a violação de direitos, têm sido propostas ações civis públicas. No momento, estão em funcionamento os seguintes núcleos: Direitos Humanos e Cidadania, Infância e Juventude, Habitação e Urbanismo, Segunda Instância e Tribunais Superiores, Situação Carcerária e Direito do Consumidor. O modelo de Defensoria construído para São Paulo conta ainda com a Escola da Defensoria (EDEPE), a Ouvidoria15 e a Corregedoria.16 Todavia, atualmente, há menos de 400 defensores para atender às necessidades da população socioeconomicamente desfavorecida. Assim sendo, a grande maioria daqueles que não dispõem de recursos e informações continua recebendo apenas assistência judiciária, prestada por entidades conveniadas dentre as quais, e majoritariamente, pela OAB. Não bastasse o pequeno número de defensores e da precária infraestrutura, outro entrave para que a Defensoria paulista atinja seu objetivo – prestar assistência jurídica à população desfavorecida – é a remuneração da carreira, muito inferior às demais carreiras jurídicas com o mesmo status constitucional, quais sejam o Ministério Público e a Magistratura. Daí a Defensoria estar sendo apontada como uma “carreira de passagem”. Cabe observar que, em outubro de 2009, a Defensoria Pública paulista estava atendendo a capital e mais 25 comarcas da Grande São 14

O Conselho Superior é o órgão deliberativo máximo da Defensoria Pública, uma espécie de Poder Legislativo interno. O Momento Aberto ocorre em todas as sessões. Qualquer pessoa pode se dirigir livremente aos conselheiros para expor um assunto que julgue relevante para a instituição (Artigo 29, parágrafo 4º, Lei nº 988/2006).

15

Deve participar da gestão e fiscalização da instituição e de seus membros e servidores. O ouvidor-geral é nomeado pelo Governador do Estado, dentre os indicados em lista tríplice organizada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da pessoa Humana - CONDEPE, para mandato de dois anos, permitida a recondução (Capítulo I, Subseção VII. Legislação da Defensoria Pública. São Paulo, 2007).

16

A Corregedoria-Geral é órgão da administração superior encarregado da orientação e fiscalização da atividade funcional e da conduta pública dos membros da instituição, bem como da regularidade do serviço (Capítulo I, Subseção VI. Legislação da Defensoria Pública. São Paulo, 2007)


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Paulo e interior, o que representa menos de 10% das comarcas do estado. Lamentavelmente, São Paulo está assistindo à terceirização da prestação jurisdicional. Os defensores públicos paulistas realizam em média 850 mil atendimentos por ano sendo que, em 2008, participaram de 180 mil audiências, atuaram em 50 mil ações cíveis e impetraram 14 mil habeas corpus. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), 73% dos pedidos de habeas corpus ajuizados pelos defensores paulistas foram concedidos. (APADEP, out. 2009)

Assim, a experiência de São Paulo, de um lado, permite apreender os limites do acesso à justiça impostos pela forma como a sociedade está organizada. Concebendo e conservando a cidadania como privilégio de classe, a classe dominante regula seu exercício pelas demais classes sociais. Contudo, de outro lado, a experiência de São Paulo aponta o significado histórico do modelo singular da Defensoria Pública paulista na defesa dos direitos da população socioeconomicamente desfavorecida. O exemplo que segue é emblemático. Em 8 de setembro de 2009, o ouvidorgeral da Defensoria Pública de São Paulo, Willian Fernandes, reuniu-se com representantes da Frente Nacional de Movimentos Urbanos, da qual fazem parte entidades de 11 estados brasileiros. A reunião objetivou levantar as demandas do Movimento e identificar aquelas em que a Defensoria Pública pode atuar, promovendo uma aproximação com a instituição. (…) Diante do que foi exposto na reunião, o Ouvidor fez diversas proposições às lideranças, entre elas a elaboração de um documento que contenha os principais problemas, questões e dificuldades vivenciadas pelos integrantes do referido movimento social, e propostas de ações às Defensorias Públicas, para servir de subsídio aos militantes no diálogo com a Instituição. (BOLETIM DA OUVIDORIA, 2009, p. 11)

Conforme Boaventura de Sousa Santos, amparadas na Constituição, as classes populares estão aprendendo a utilizar o direito e os tribunais como arma (SANTOS, 2008, p. 31). De fato, a Constituição de 1988 é responsável pela ampliação dos direitos civis, políticos, sociais, culturais e difusos e coletivos. Florestan Fernandes, ao fazer um balanço das dificuldades vividas nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) em decorrência do poder exercido pelas forças reacionárias e conservadoras, anunciava,


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ao findar a década de 1980, as possibilidades abertas pela Constituição então promulgada: A Constituição está aí, de pé – e não se afirma como uma peça conservadora, obscurantista ou reacionária. Ao revés, abre múltiplos caminhos, que conferem peso e voz ao trabalhador na sociedade civil e contém uma promessa clara de que, nos próximos anos, as reformas estruturais reprimidas serão soltas. (FERNANDES, 1989, p. 361)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, fundada em outra concepção de justiça, abre espaço para o questionamento do padrão homogêneo do aparato de justiça construído no passado e reatualizado ao longo da história brasileira. O perfil diferenciado de administração da justiça – expresso nos instrumentos de acesso ao direito e à justiça por ela implementados – anuncia a possibilidade de construção de uma cultura jurídica democrática que poderá se tornar ainda mais sólida se vencer os impasses que lhe vêm sendo postos. Contudo, apesar do número insuficiente de defensores públicos para atender às demandas de todas as comarcas, dos baixos salários que recebem e da pequenez de sua infraestrutura, continua seu percurso, sempre na contramão. As formas alternativas de práticas democráticas da Defensoria Pública paulista, os mecanismos de participação da sociedade civil na sua gestão e fiscalização, inovadores no cenário jurídico, vêm desafiando a cultura jurídica dominante – normativista, elitista e tecnoburocrática.

Fontes APADEP-Imprensa- www.apadep.org.br. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2009. Entrevista com defensor público: arquivo da autora. Lei Complementar nº 132, de 7 de outubro de 2009 Legislação da Defensoria Pública, São Paulo: Escola da Defensoria Pública do Estado, 2007.


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Referências ALVARENGA, Ana Maria e TEODORO, António. A “Lenda” ou história da borboleta: os movimentos sociais e a educação- o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e a educação do Campo. In: São Paulo: ECCOS- Revista Científica. V. 11, nº 1, p. 193-207, jan/jun.2009. ASSOCIAÇÃO PAULISTA DOS DEFENSORES PÚBLICOS. Disponível em: <http://www.apadep.org.br./. Acesso em 09 out. 2009. BOLETIM DA OUVIDORIA GERAL DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Ano 1, n.º 10, 1º de agosto a 15 de setembro de 2009. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/.../Boletim%20 da%20Ouvidoria%20nº%2010 .pdf>. Acesso em 21 set. 2009. FERNANDES, Florestan. A Constituição inacabada. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/praticas/cravi-centro-de-referencia-eapoio-a-vitima>. Acesso em 21 set. 2009. GOHN, Maria da Glória. Abordagens teóricas no estudo dos movimentos sociais na América Latina. Cadernos CRH (online). V. 21, nº 54. p. 439455, 2008. HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline e PIETROCOLLA, Luci Gati. Justiça e Segurança na periferia de São Paulo: os centros de integração da cidadania. São Paulo: IBCCRIM, 2003. HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo; SINHORETTO, Jacqueline; ALMEIDA, Frederico de; PAULA, Liana de. Centros Integrados de Cidadania. Desenho e Implantação da Política Pública (2003-2005). SÃO PAULO: IBCCRIM, 2006. MARTINS, José de Sousa. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. SINHORETTO, Jacqueline. Ir aonde o povo está: etnografia de uma reforma da justiça. Tese de Doutoramento. Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2006. MIMEO. WEIS, Carlos. Direitos humanos e defensoria pública. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.10, n.115, p. 5-6, jun. 2002.



EDUCAÇÃO REPUBLICANA PARA OS DIREITOS HUMANOS SUA IMPORTÂNCIA NUM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO1 Paulo Ferreira da Cunha

Professor Catedrático de Direito Constitucional e Filosofia do Direito e Diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Catedrático convidado de Estudos Brasileiros da Universidade Lusófona do Porto, Associado ao Departamento de Direito e Justiça da Universidade Laurentienne, Doutor em Direito das Universidades de Coimbra e Paris II, Agregado em Ciências Jurídicas Públicas.

1. MAGISTÉRIO E MAGISTRATURA Estou feliz de estar hoje entre Magistrados da Defensoria Pública, nova Magistratura utilíssima e nobilíssima. Estou, na verdade, se me permitem, entre colegas, porque, além de jurista de formação académica, a minha profissão é a de professor de Direito, ou seja, exerço o magistério. Magistério e Magistratura são palavras com a mesma raiz. Professores e Magistrados judiciais de todos os tipos detêm uma 1

O presente texto, preparado para servir de base escrita a uma conferência na Defensoria Pública de São Paulo, em 7 de Abril de 2010, no âmbito do I Curso de Educação em Direitos Humanos, contém em palimpsesto ecos de vários outros, sobretudo de artigos publicados na nossa coluna “M@ils do meu Moinho”, e cruza-se com matérias dos nossos livros Constituição, Crise e Cidadania (Porto Alegre, Livraria do Advogado), Direito Constitucional Aplicado, Pensar o Estado, Filosofia Jurídica Prática (todos editados em Lisboa, pela Quid Juris e o último também em Belo Horizonte, pela Forum), etc., para que remetemos, para maiores desenvolvimentos. Contudo, além de materiais novos que obviamente convoca, este estudo parece-nos importar sobretudo pelo reunir dos fios dispersos e apontar caminhos a partir dessa unificação e síntese de dados e reflexões.


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legitimidade social especial, que infelizmente nem sempre é entendida em sociedades sem cultura política e jurídica. Tal como os Magistrados judiciais, os Professores têm a autoridade (auctoritas) de quem detém saber, e, por isso, têm obrigação de o transmitir, cultivar e mesmo venerar, como sacerdotes. Que os juristas eram sacerdotes da Justiça, já o diziam os Romanos. Uns e outros não são entre nós eleitos, mas isso – como deveria ser óbvio – em nada colide com a democracia, que não vive sem elites dela amigas. O jacobinismo guilhotinou Lavoisier, afirmando não precisar da revolução de cientistas. Do mesmo modo, a Comuna de Paris proclamaria o fim dos advogados. Shakespeare coloca na boca de um tirano inglês: “A primeira coisa a fazer é matar todos os causídicos”. Um autocrata espanhol deploraria: “Todo o mal nos vem dos togados”. Contudo, Juristas e Professores também já foram prestigiados, obreiros de património simbólico, condutores dos destinos dos países. Esse é aliás o seu grande crime aos olhos de alguns… Na oficina preparadora da cultura, a Escola, e na da alta cultura, a Universidade, assim como no domínio da chamada “medicina da cultura”, o Direito, reina a demagogia. Se não tivermos uma escola capaz de formar e magistraturas de contribuir eficazmente para que se faça justiça, que será de nós? E se não prezamos e acarinhamos quem ensina e quem faz justiça, até quando resistirá o sentido de dever de quem se não vê valorizado? Com Professores e Juristas sem prestígio e consideração social, sem respeito e sem admiração, acabarão por só ir para essas profissões precisamente aqueles que lá nunca deveriam estar. Muito do mal de hoje já vem do enviesamento das vocações.

2. CRISE DA JUSTIÇA E CULTURA DOS JURISTAS O nosso tema de hoje é a Educação Republicana para os Direitos Humanos. Ela só é possível se fizermos, antes de mais, um diagnóstico sobre a própria crise dos formadores nessa educação, que seriam, que deveriam ser, os juristas. Temos, pois, que começar por falar da crise da justiça. A tão falada crise da justiça não é apenas uma crise de instituições. É, antes de mais, uma crise dos próprios juristas. Os juristas, como se diria


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da tradição, começam a não ser já o que eram. A tribo dos juristas não aguenta o teste do espelho: como vermo-nos sem de nós nos rirmos ou sobre nós chorarmos? Evitamos ver-nos. Enleamo-nos frequentemente em charadas extrínsecas a nós e ao Direito. Têm-se verificado mudanças preocupantes no recrutamento dos juristas. E isso reflecte-se no seu comportamento, e este na sua imagem e consideração sociais. De vez em quando, figuras das Ordens dos Advogados lançam o alerta, até para a falta de conhecimentos da língua de candidatos a advogados. E é apenas um exemplo. Está a começar a haver o que antes seria uma contradição nos próprios termos: juristas incultos. A autossuficiência pedante e triunfante desses juristas incultos (ou ignorantes, como lhes chamaria já Tomás de Aquino – em um tempo em que, todavia, sabiam bem mais do que mais importa) mata por um lado o seu prestígio junto das gentes de cultura, e, por outro, faz definhar o Direito enquanto filosofia prática (como lhe chamavam os Romanos). Mas mais, e pior, torna o Direito aquela matéria entediante, maçadora, sem alma e qualidade – coisa de mangas-dealpaca. Já o grande jurista alemão Rudolf von Jhering (1818-1892) se queixava amargamente deste perder de qualidade e de qualidades do Direito. Hoje deve revolver-se na tumba. A falta de cultura (assim como a falta de educação) navegam no oceano da indiferença. Só o interesse pela cultura redimirá o direito. Porque o interesse pela cultura é sinal do interesse pelo Homem. Só a Cultura – obviamente em uma dimensão interdisciplinar, como o programa deste I Curso de Educação em Direitos Humanos o é, e magnificamente – poderá ser a base de uma Educação para os Direitos Humanos. Desde logo, pelo conhecimento histórico e sociológico da injustiça, e o conhecimento, dessas áreas e também, por exemplo, o saber filosófico, das lutas pela liberdade, pela igualdade, pela fraternidade. Que não são palavras vãs, embalsamadas na História, de uma longínqua revolução, em um reino cuja rainha, ao dizerem-lhe que o povo não comia pão recomendou (cremos que sem ironia) que nesse caso comesse brioche... Não são palavras no passado. São vectores incumpridos (como sublinha, por exemplo, Eligio Resta), para fazer o nosso futuro. O jurista como simples burocrata da coacção, mero verbo de aluguer, especialista em uma técnica e não mais que em uma técnica, subordinado ao poder e aos poderes, aos interesses, enfim, o detentor apenas de um saber-fazer, deixa de estar vocacionado para comandar Homens, porque


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não mais os compreendendo pelo seu universalismo (como salientava o romanista Sebastião Cruz, como exaltava o jurisfilósofo Francisco Puy), e máquinas também nunca saberá dominar... Logo, o jurista de hoje acaba por ser pouco prestável para múltiplas tarefas de outrora. Mas no cerne das suas funções, que são de defender os fracos, os injustiçados, os humilhados, os oprimidos (de todas as classes, mas principalmente, por natureza, das menos favorecidas) contra a injustiça, esse papel ainda o faz bem? Infelizmente nem sempre. Porque nem sempre interessado pela sua própria ética e deontologia em colocar a defesa da justiça acima dos seus próprios interesses pessoais. E mesmo porque nem sempre dotado de conhecimentos e de sabedoria (desde logo sabedoria da vida e dos homens – elementos fulcrais de Prudentia!). Conta-se uma história de um juiz novato que nunca tinha visto uma galinha e o primeiro caso que teve foi precisamente, numa comarca do interior mais profundo, julgar um grupo de rapazotes que furtaram as galinhas da capoeira do padre da terra... Asneou, naturalmente. E muito. Contam-se até as duas versões alternativas do seu erro: em um caso, por rigorismo, em outro por laxismo. Essas situações revelam uma décalage significativa entre a sociedade e o direito – com regras que não são mutuamente compreendidas. Por exemplo, o ignorantia legis non excusat é totalmente contrário ao senso comum e aos valores comuns. Mas mesmo que se reconheça que sem esse princípio seria o caos processual, a verdade é que grandes autores, como Michel Bastit, já o ousaram colocar em causa. Responsável por essa situação de aprofundado divórcio é a presente sociedade de cretinismo tecnológico, de que falava Duvigneau, e de barbárie civilizada, como sublinhou Paolo Ottonello, em que o sucesso se mede pela conta bancária e pelos cadáveres dos adversários como troféus de caça. Responsável é uma Universidade que, pelo mundo fora, fascinada com os ganhos da sua ligação com o mundo empresarial, esqueça, subalternize e discrimine tudo o que não seja rentável e passível de ser adquirível pelas empresas, as quais, como é óbvio, jamais oferecem “almoços grátis”, preferindo adquirir alta tecnologia e alta ciência ao preço barato que os apesar de tudo sempre um tanto distraídos “cientistas” estão ávidos por lhe oferecer. É a moda e é a necessidade. A Universidade, porém, tem de ir à frente das empresas, não atrás. E o Estado deve dotar as suas universidades de meios para que não estejam dependentes do


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capitalismo e dos seus interesses. Será que, nesse contexto, não se compreende que não há mesmo “almoços grátis”, nem mesmo para as venerandas e beneméritas Universidades? Responsável é, finalmente, pelo mundo fora, a governação de timbre anarco-capitalista (ou neoliberal), que se demite das funções de qualquer Estado e sistematicamente desinveste na Educação, e mais ainda na Educação para o Ser e não para o ter, que se ri das Humanidades e puxa logo da calculadora quando ouve falar de cultura. Responsável é, na Europa, uma errónea visão tecnocrática do processo de Bolonha, pretendendo fazer de todas as cadeiras cursos breves e transformar as licenciaturas em cursos profissionalizantes, minicursos, para que o Estado pague menos, redundando em que a Universidade seja, de novo, apenas para uns tantos, com posses para tal. Hoje (vemos isso em alguns filmes – na vida real é mais preocupante ainda) o decorador de leis, ou o especialista em chicana, o serial killer do direito, sempre de faca nos dentes, pronto a apunhalar o vizinho, que desconhece as coisas mais elementares, que se ri de quem leu um romance, que de cinema conhece os enlatados com muito sangue e barulho, que nunca entendeu para que servia a filosofia do Direito e outras matérias jurídico-humanísticas, esse vero primitivo actual a quem pode ser dada licença para andar à solta a discutir da fazenda, da liberdade, da vida e da honra das pessoas, para ganhar dinheiro com o seu infortúnio, acha-se um Senhor. E despreza do alto da sua ignorância todos os que não inveja. E apenas inveja os de sucesso: os que ganham mais que ele, que têm carro melhor, etc. Para esses, o Direito tem tudo a ver com coacção, e da Justiça relembram vagamente uma estátua vendada. Além do mais, a proliferação de cursos de Direito fez com que, pelo menos em alguns lugares do mundo, menos bons juristas conseguissem chegar até à docência. E aí se regalarem, colocando títulos pomposos nos cartões de visita… Do mesmo modo, tornou-se fácil como nunca, com a globalização, desde logo, o acesso a um diploma de pós-graduação, mestrado e até doutoramento. Maus doutores baptizarão novos doutores péssimos: a reprodução da má qualidade faz-se em progressão geométrica. E nem sempre as famas das universidades correspondem ao valor real de todos os seus diplomados. Pobre Direito se não souber defender-se desse tropel de bárbaros que entram pela porta grande, primeiro, e depois pelas janelas e telhados…


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Várias crises, assim, se imbricam e se implicam em cadeia. A montante, a crise da educação e da cultura em geral – onde toda a questão começa. Mais especificamente, a degradação e deriva tecnocrática da aprendizagem do Direito e da formação cultural dos juristas. E, na decorrência destas, a crise das instituições jurídicas. Porque, se não pode haver Justiça sem homens justos (como, entre outros, sublinharia Santo Agostinho), sendo o Direito autêntica “medicina da cultura”, não pode haver bom Direito, Direito de qualidade, sem agentes jurídicos cultos. Se os próprios juristas se converterem à superficialidade, quem segurará as águas do dique? Se os juristas se alhearem dos direitos humanos, como poderão ser seus paladinos e promover a sua educação? Se ignorarem os princípios de imparcialidade, de severidade mesmo para consigo mesmo, que foram apanágio das nossas Repúblicas velhas, e que hoje deveríamos reviver, adaptando à pós-modernidade, não grassará o laxismo, o “jeitinho”, a corrupção? Em Portugal fala-se agora de considerar como sendo corrupção presentear-se qualquer funcionário público – desde a faxineira ao Presidente da república. Querem saber? Acho muito bem. Além de me eximir de escolher a caixa de bombons que sempre envio para a festa de fim de ano dos professores e funcionários, a que não vou, porém, porque não me sinto bem com almoços grátis de entidades públicas, mesmo no Natal… Os juristas têm que estar na primeira linha do combate pela justiça, e da educação republicana para os direitos do homem. Esss duas tarefas exigem sobretudo têmpera e preparação ética, cultural e jurídica. Se a Democracia não conseguir dotar-se de uma escola para a Cidadania e os Direitos Humanos em todos os seus sentidos – e desde logo o mais elementar, que é o de uma Escola de ordem, sentido do mundo, inserção social, e compreensão do universo nos seus dados mais elementares – terá falhado, e certamente perecerá às mãos dos seus contrários, que sempre pegaram na pistola contra a cultura, e sempre a acharam um luxo para os comuns mortais.

3. CRISE E IMPORTÂNCIA DO ESTADO É um lugar comum falar-se na Crise do Estado, como se fala em crise da razão, da civilização, etc. A crise e a crítica andam de par, e já compreendemos o que é estar em crise permanente. A habitualidade da


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crise leva ao instalarmo-nos nela, ao ponto de perguntarmos primeiro, e proclamarmos depois: “Crise, quelle crise? Vive la crise!”. Apercebemonos também de que crises são janelas de oportunidade para novos desenvolvimentos, rupturas que se podem revelar redentoras. E contudo os juspublicitas, e os constitucionalistas em especial, talvez façam mal em se preocuparem em excesso com a sua bela criação, o Estado. Jacob Burckardt chamou-lhe obra de arte. Assim se tivesse mantido, com o necessário engenho. Mas, como se sabe, nem o Estado é a única forma ou sociedade política, nem existiu sempre. E está a colocarse muito em dúvida se é sempre pessoa de bem. Deus nos livre de dizer mal do Estado, que é o que nos tem separado da barbárie dos gangs e da barbárie dos trusts – enquanto for ainda regulador e defensor do interesse público. Mas há que reconhecer que o Estado, aqui e ali, claudica. Não age, mesmo, permite que as silvas da desordem e da desigualdade enlacem o belo castelo da princesa Aurora. Mas por quê? Porque no castelo do Estado muita gente dorme... E há mais vida, além do Castelo. É um problema não só de actualidade, como de deontologia: a política (e os saberes sobre ela) não deve centrar-se no Estado, mas no Cidadão. O Estado, o Império, a Polis, qualquer a forma política, deve estar ao serviço das Pessoas, e não o contrário. Estamos muito longe, sabemos, dessa alteração de paradigma. O cidadão é ainda encarado como passivo, dócil, domesticado, pagador, contribuinte, e destinatário do Poder. Não seu obreiro, seu participe de pleno direito. Importa mudar, com uma profunda reforma de mentalidades, que nos permita a todos ser sujeitos activos, protagonistas da governação (que se faz a tantos níveis já: desde o local territorial à escola; até, por vezes, à empresa), tomando nas nossas mãos os nossos destinos. O que não implica o individualismo feroz e a privatização em massa em prol de uns tantos hoje já mais aptos a agir, mas um lento e profundo trabalho de alargamento da cidadania real: que passa por uma outra atitude do Estado e por um profundo investimento na Educação, que deve preparar Mulheres e Homens livres, e não bons robots, acríticos ou críticos, só até ao ponto permitido pelas cartilhas críticas toleradas. Mas sob a capa de modernização – nunca são de mais os gritos de alerta – a escola, por todo o mundo, parece, está a transformar professores e alunos em cobaias amestradas, gente dócil, sem tempo, com medo. É a formação não para


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o empreendimento, não para a liberdade, mas para o trabalho servil, sem direitos, para a mobilidade laboral, para a indiferenciação. Nunca como agora sentimos tanto o peso da ameaça da fome pelo desemprego, nunca a subserviência foi tão grande no mundo laboral, com medo da perda do lugar. E, pela técnica do choque, todos os dias a comunicação social, mensageira permanente de péssimas notícias, nos prepara para uma nova catástrofe. Já se comparou essa forma de tratamento a choques eléctricos. Sim, as cobaias não têm descanso. E a par disso, os escândalos... Que vão até embotando e cauterizando as consciências. Já nos habituamos à miséria, à exploração, à corrupção? São normais? Nenhuma comunidade política pode subsistir sem que a sociedade recobre o respeito por si mesma e a atenção vigilante pelos poderes instituídos, sem subserviência e com sentido crítico construtivo, única forma de a cidadania activa e responsável poder corresponder uma autoridade das instituições, não simplesmente fundada na coercibilidade, mas na legitimidade de exercício do poder. Por isso são preocupantes alguns sinais de debilidade dos poderes públicos e de crescente incumprimento do Direito, como sucede em países muito diferentes, em diversos continentes. E longe de pensar que a solução se encontra em medidas autoritárias e voluntaristas, cremos urgente reforçar a confiança dos cidadãos nas instituições: pela eticização da política geral, pela acção justa e oportuna dos tribunais, pela intervenção protectora da polícia, pela desburocratização da administração pública, pela facilitação da vida a quem pretende trabalhar honestamente ou empreender para o benefício social. Reforma dos sistemas políticos pela sua abertura, pela sua permeabilização aos temas e aos especialistas das sociedade civil, pela desburocratização, a descentralização e até, quando pertinente, a federalização e a regionalização, o aprofundamento da responsabilidade dos titulares dos cargos políticos e a limitação da duração de todos os mandatos, uma vigilância sem tréguas à corrupção, etc., são rumos desejáveis e possíveis. Mas não tenhamos ilusões quanto a medidas já muito apregoadas. Exige-se mais imaginação. E mais concretização do que é consabido, mas não praticado. Todos estaremos de acordo que política deve responder muito mais directamente aos problemas reais das Pessoas; mas a acção não


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se justifica a si própria, antes se baseia em ideias e ideais. E quando se proclama, quer de forma intelectual quer agressiva, o fim da política, ou o mal da política, e o fim das ideologias – são maus ventos para a democracia que se conjuram. Além de tal vaticínio constituir nada mais do que uma péssima análise. O Direito, por seu turno, e muito em particular o Direito Constitucional, dificilmente contém em si (só por si) os vectores de dinamismo suficientes para as grandes mudanças. O mais normal é as grandes reformas ficarem no papel, como essa letra morta que só pode mesmo matar. A falta de força normativa de um preceito constitucional inefectivo (como diria Jean Cabonnier) põe em perigo o todo da Constituição. Mesmo soluções hermenêuticas temerárias (e a que não deveríamos ter pejo de considerar, apesar de todo o “pluralismo”, “erradas”) fazem perigar a dignidade da reputação constitucional. Aquando das últimas eleições presidenciais, fomos um dos promotores de uma iniciativa inédita em Portugal: um movimento para dar a conhecer a Constituição, que consistiu em convidar cidadãos, do político ao homem da rua, a transcreverem artigos da nossa Constituição. A adesão foi muito animada. Mas alguns dos participantes, que visivelmente nunca tinham lido o texto constitucional, maravilharam-se e escandalizaram-se como era possível terem no papel tantos direitos, de que efectivamente se viam privados na prática… E a ideia de que a Constituição é uma cornucópia de promessas não cumpridas (errada interpretação, apesar de tudo) pode pôr em perigo a sua sacralidade de Bíblia da República. Contudo, este choque por estranhamento pode ser o principium sapientiae para uma frutuosa discussão e para incentivar o conhecimento cidadão das Constitituições e dos Direitos que reconhecem.

4. EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS A solução das angústias jurídico-políticas do presente pode implicar, naturalmente implicará, nova legislação. Mas ela será liminarmente inconcebível se não repensarmos a nossa vida, a nossa existência colectiva, a nossa situação de homens e mulheres no Mundo. Assim, se quisermos viver em um Mundo mais respirável, teremos de pensar quais os valores, princípios, convicções que queremos ter como mínimo denominador comum.


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E antes de irmos ao mínimo denominador internacional, comecemos pelo nacional. As nossas sociedades pluralistas estão longe de ter chegado a acordos básicos. Alguns pensam que as Constituições deveriam teoricamente sê-lo. Mas não têm conseguido desempenhar esse papel, sendo duvidoso que caiba a um instrumento jurídico fazer muitos dos consensos. A tese da procura dos consensos é estigmatizada, com clamor e escândalo, pelos que proclamam, sinceramente ou não, que uma espécie de mão invisível democrática da anarquia cultural e espiritual de uma comunidade política faria nascer, como por milagre, a comunhão e a harmonia. Professa-se como garantia da total liberdade a demissão completa do Estado enquanto educador político (mesmo a formação para a Cidadania e os Direitos Humanos é quase nula, em países democráticos – pelo menos é muito menor do que deveria ser), com a preocupação, reconhecidamente saudável, de não doutrinar. É o espectro totalitário, que dá receios destes, sabemos bem… Mas este laissez faire tem tido o catastrófico resultado de que a democracia, os valores democráticos, a cidadania democrática, estarem ao Deus-dará da sorte, para mais caluniadas pelas desventuras que a “República real” causa à República dos sonhos (diríamos, recordando Álvaro Ribeiro). O laxismo vai em cadeia: ninguém já se sente com autoridade para corrigir ninguém. Mesmo as normas da mais elementar urbanidade e civilidade deixam de ser óbvias e necessárias: como responder a uma carta, ou cumprimentar na rua um colega… O debate faz-se cada vez mais entre tribos. Os estudantes adolescentes tribalizam-se de forma jamais vista. E mesmo a sociedade toda se tribaliza. Sempre foi tribalista o círculo elegante e snob. A senha e contrassenha dos nomes de família. Mas eram, apesar de tudo, legíveis no contexto social. Hoje há cada vez mais grupos que criam os seus próprios guetos. Tudo isso é muito interessante para o colorido de um mundo visto da estrela Sirius, mas problemática no mundo sublunar... Só se tivéssemos uma linguagem comum de racionalidade e de civismo é que poderíamos realmente dialogar. Todos somos vítimas dessa sedimentação de irracionalidades e sentimentos. E como o Esperanto foi em geral um fracasso (apesar de algumas bolsas de resistência),


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presumimos que as dificuldades de conotação e denotação, expressão e sentido nos acompanharão irremediavelmente, até que a alma nos seja trocada por um sistema de algoritmos. E não será para as próximas gerações, certamente. O grave é que, sem um espaço de comunidade de convicções, estritamente pensadas naquilo que convier à nossa índole, e para nossa utilidade espiritual, cultural e material, jamais a Lei poderá deixar de ser simplesmente a expressão do mais forte – pelos votos, pelo dinheiro ou pela convicção, ditada pelo temor reverencial face a quem sobre si manda de facto, pela força ou pela sedução. O Estado tem de defender os cidadãos contra a ignorância e a colonização de ideias de grupos activistas – quer os arautos miúdos do politicamente correcto, quer as grandes máquinas de marketing, que inventam o que for preciso, mesmo ideologia, para vender. Nesse particular é perigosíssima a concentração capitalista das empresas de cultura, designadamente a criação de grandes monopólios e monopsónios (ou oligopólios e oligopsónios, se quisermos ser mais exactos) do livro – que, no limite, fazem com que só seja publicado e só seja consumido pouco mais que o lixo dos enlatados sensacionalistas... É a degradação da cultura e o espezinhamento do nosso comum direito à cultura pelo interesse do lucro, baseado em uma péssima imagem do consumidor corrente. Aquilo a que o grande jornalista de cultura Bernard Pivot chamou o recua até à doméstica de 40 anos – seria ela o alvo da televisão, e, em geral, da massa da propaganda. Se de um lado a escola não eleva o nível da doméstica de 40 anos, não serão os media a fazê-lo. E todos nós teremos que consumir os produtos que os grandes técnicos de marketing acham que ela vai comprar... E o curioso é que a democracia global também serve para adormecer iniciativas alternativas. Quando tínhamos ditadura, circulava literatura clandestina... Agora, achamos que há democracia, e que o triste panorama das nossas livrarias decorre de falta de autores. Não é verdade. Há muito quem queira (e mereça) um lugar ao sol e não o consegue. Mas também é certo o círculo vicioso: um dia o pintor converte-se a contabilista, o compositor passa a dar lições de piano a crianças ricas, para sobreviver, o romancista que escreve para a gaveta decide escrever um blog... mas encontrar um ganha-pão entediante que lhe pague as contas. É uma decadência, com consequências de falta de tubos de escape sociais, de insatisfação geral, uma nuvem sobre a sociedade.


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Ora a única forma de o travar e inverter é uma revolução mental, na própria concepção do Estado de Direito Democrático. É o assumir-se ele como Estado de Educação para a Liberdade. Ou, se preferirmos, para os Direitos Humanos, que são a sua tradução actual. Mas deixar de o fazer platonicamente, e fazê-lo activamente. De todas as vozes, a voz da democracia, da liberdade, da autonomia, parece ser a que mais teme exprimir-se. Os inimigos da liberdade devem ter liberdade, sem dúvida – ao contrário do que dizia Lenine. Mas os amigos da liberdade, para mais arcando com o ónus de gerir um Estado democrático, têm direito e têm obrigação de fazer cultura e educação de Liberdade. Contudo, com Lenine devemos aprender que os inimigos da liberdade tudo farão, usando-a, para a tirar aos demais... E as democracias têm que não ser ingénuas. Desde logo, educando na democracia e sublinhando a excelência da democracia, que nada tem a ver com facilidade, com anarquia, etc. Mas requer muito rigor. Montesquieu disse tudo: o princípio da democracia é a virtude. Sem a virtude republicana, a democracia degenera, e a termo será substituída por uma autocracia. Outrora esta regra era clara: vinha um ditador que duramente reclamava a ordem perdida. Hoje a situação é mais subtil: pode haver mil e um ditadores a nível local, que procuram fazer mais duramente ainda que um mais distante déspota. E sem que deixe de haver eleições para os órgãos de democracia superficial geral, pode a sociedade ser minada por esses espíritos tacanhos, mesquinhos, que, de posse de um grão de poder, o fazem multiplicar por milhares, como no tabuleiro de xadrez do grão-vizir. Levemos a sério a Educação, que está na base de tudo. Não basta uma disciplina escolar de educação cívica. Toda a educação deve prosseguir esse fim. O que implica ainda o fim dos mitos tecnicistas. É preciso saber técnicas, mais e melhor: mas subordinadas às Humanidades, como as mãos à cabeça. Stupid scientists são ainda piores que ignorantes. E fáceis adeptos de ditaduras, que lhes parecem mais eficientes, e mais “matemáticas”… Logo, o melhor dos mundos. E, pelo contrário, seriam precisamente o melhor dos mundos às avessas: pura distopia. Os juristas, e em especial os constitucionalistas, têm a grave responsabilidade de dar alma e ser sinal de alarme num momento de viragem como o presente. Podem tranquilamente deixar-se na sua posição confortável de áugures das crises políticas e elaboradores de pareceres a pedido, representantes dignos do direito nos livros. Ou podem


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ser principais obreiros do direito em acção, explicando, antes de mais, que a Democracia e os Direitos Humanos não são dados adquiridos, mas conquistas quotidianas, que passam pela adesão das gerações mais novas, que já não conheceram o que é viver em ditadura. A televisão portuguesa tinha, nos seus primeiros anos, uma “mira” para os casos de avaria. Era de fundo negro, nada atractiva, simplicíssima, e dizia apenas: “Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos”. Inspirados nesse texto, após a revolução dos cravos, os sempre argutos anarquistas pintaram nos muros do País este alerta que deveríamos considerar sempre: “Pedimos desculpa por esta Democracia, a Ditadura segue dentro de momentos”. Esperemos que jamais. Mas temos que fazer por isso. Ninguém o fará por nós. E se pode ocorrer um apagão geral na democracia, o certo é que também pode ela entrar em degenerescência pela falta de ética republicana. Ora é imperioso saber educar – multidimensionalmente – para a ética republicana. Ela é pressuposto da educação para os direitos humanos e pode identificar-se com a educação para a cidadania. Como se sabe, a ética republicana tem uma dimensão objectiva, a dos valores, que começam nos valores políticos da Liberdade, Igualdade e Justiça, a caminho da Fraternidade, e a das virtudes, mais difíceis de sistematizar, mas que, além das clássicas virtudes ditas cardeais, e sobre o seu legado, acrescenta virtudes tipicamente políticas. Em síntese, as virtudes republicanas poderiam enumerar-se num breve decálogo: I. Serve dedicadamente a Coisa Pública. II. Sê no serviço público frugal, comedido, despojado, rigoroso. III. Pratica a Constância, mas adapta-te de forma inteligente e coerente. IV. Respeita às leis como garantes da liberdade e dos direitos, e usa-as sempre para a Justiça e não para a burocracia V. Contra a licenciosidade, cultiva a Delicadeza, a Atenção e a Solidariedade. VI. Contra o Privilégio, prativa o Amor à Racionalidade e à Ordem, à Imparcialidade e à Equidade.


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VII. Contra o abuso do poder e a corrupção, eleva o amor ao diálogo, ao pluralismo, à transparência, ao rigor, e aplica o controlo e separação dos poderes. VIII. Aprende o bom uso da lentidão, mas age depressa e bem quando for mesmo urgente. IX. Contra os Lobos e as Raposas da Política e do Direito, cria Pombas-Serpentes X. Age sempre segundo uma consciência bem formada.

5. DEFESA DA DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO “Quem seus inimigos poupa, às suas mãos morre”. Terrível máxima. Infelizmente muito verdadeira. Será que a democracia tem inimigos? Será que deveria liquidar os seus inimigos, antes de ser ela mesma exterminada? Uma clássica resposta, mas totalitária, é a de Lenine: “Nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade”. Rosa Luxemburgo replicou: “A liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de maneira diferente” (cito ambos de cor). Deverá então a democracia cruzar os braços face às agressões e sedições dos que a querem perder? A democracia não se identifica, obviamente, com todos os que se dizem democratas. Sendo um ideal, a democracia tem inimigos-ideias. Deve garantir a todos a liberdade, mas tem de combater os seus inimigos ideológicos: não só ditaduras de figurino, como mais subtis amarras que prendem as consciências e enleiam os espíritos. Ingénua e enredada nas suas estafadas guerrilhas internas, a democracia ainda não entendeu. A ditadura, e o obscurantismo que com ela sempre vem (com sorriso de veludo ou mão de ferro), espreita sempre à esquina do descuido democrático. Professa-se a demissão completa do Estado enquanto educador político (formação para a Cidadania e Direitos Humanos é quase nula). Confundindo-se uma opção de silêncio suicida com a saudável preocupação de não doutrinar. Compreende-se que é o espectro ditatorial e totalitário que dá receios destes. Mas um tal laissez faire tem tido o catastrófico resultado


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de os valores democráticos estarem ao Deus-dará da sorte, para mais caluniados pelas desventuras que a “República real” sempre causa à República dos sonhos. É óbvio que a democracia real tem sempre dificuldades: desde logo, percorre inevitavelmente o caminho mais longo e difícil. Onde o ditador dá uma ordem, prontamente obedecida por sequazes acríticos e temida por multidões sufocadas, a democracia tem de empreender um desgastante trabalho de estudo, avaliação dos problemas, consulta dos interessados, discussão pública, convocação de peritos, elaboração das propostas, etc.: procedimentos legislativo ou administrativo, devido processo legal (due processo of law), que configura – além de outras – uma legitimação pelo procedimento (Legitimation duerch Verfaheren). O caminho da vontade do ditador, muitas vezes caprichosa, desde que nasceu no seu coração até à prática, é curto, e as possibilidades de refrangência escassas, pelo temor da punição sem freio da parte dos súbditos. E súbditos são já o ajudante de campo, o lugar-tenente, o vice-rei. O caminho das decisões democráticas é, pelo contrário, complexo, e sempre sujeito às subtis deformações dos diversos intervenientes, que não temem normalmente um Estado em que, se as garantias protegem até criminosos, como não hão-de acautelar servidores públicos? E o saudável pluralismo tem o seu preço. Em sociedades sem comunidade de convicções (cada um pensa como mais julga convir à sua índole ou utilidade), a Lei parece votada a ser expressão da pura vontade do mais forte – pelos votos, pelo dinheiro, ou pela convicção, ditada pelo temor reverencial face a quem manda de facto, pela força, preconceito, ou sedução. O Estado tem de defender os cidadãos contra a ignorância e a colonização de ideias atiçadas por grupos activistas – arautos miúdos do politicamente correcto, ou grandes máquinas de poder e marketing, que inventam o que for preciso, mesmo ideologia. A única forma de o fazer é uma alteração na própria concepção do Estado. É o assumir-se ele como Estado de Educação para os Direitos Humanos. Impossível a sobrevivência do Estado democrático sem tal dimensão formativa. De todas as vozes, a voz da democracia, da liberdade, da autonomia, parece ser a que mais receia exprimir-se. Liberdade para quem pensa de forma diferente? Sem dúvida. Mas os amigos da liberdade têm direito e obrigação de promover Educação de Liberdade.


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Levemos a sério a educação. Não bastaria uma única disciplina escolar, votada a tão decorativa e maltratada como a clássica “Moral”. Toda a educação, formal e informal, toda a sociedade, deve prosseguir esse fim. Quando perderão os democratas os seus complexos e entenderão que, quando há ditadura, é esta, pela sua própria existência, a ensinar (dolorosamente e por contraste) o valor da liberdade; mas quando se vive em democracia, é preciso recordar e formar - explicitamente? Para que não ocorra como com a saúde, que tantos só estimam quando perdem.

6. EDUCAÇÃO PARA O DIREITO E PARA A JUSTIÇA Há uma mania pedagogista em expansão de que tudo se resolveria na escola e na sociedade com melhores classificações (não se diz que com melhor aprendizagem) na língua materna, na matemática, e agora também com o ensino da língua franca, o inglês. É na verdade muito pouco. Precisamos de todas as disciplinas. A nossa responsabilidade ambiental obriga-nos a saber as ciências da vida e da terra, além das físico-químicas, a prevenção da doença, as ciências biológicas e médicas, a nossa localização no espaço impõe a geografia, o conhecimento da experiência anterior, a história... tudo é imprescindível. Tomemos uma disciplina ainda menos prezada: a Filosofia. O papel da Filosofia para um jurista é essencial. Não compreendemos que hoje seja possível o acesso ao curso de Direito sem um profundo conhecimento curricular da Filosofia. O resultado é sempre o mesmo: uma incompreensão profunda das coisas essenciais, o substituir do conhecimento sapiente, saboreado, da sapida scientia, por um saber decorado que nem sequer é feito com o coração. Sem Filosofia, que é do conhecimento formalizado, abstracto mas discursivo ainda, do conhecimento histórico-filosófico das correntes de pensamento, do treino dialéctico, da capacidade reflexiva, da perspectivação e ponderação hermenêutica, etc., etc.? A Filosofia tem de preparar para o Direito ensinando o amor à Verdade, o amor ao Bem, e o próprio amor à Justiça. Falta uma educação para a Justiça. De pequenos ensinam-nos hoje a avidez, o egoísmo, o prazer hedonístico e a competitividade. Não nos ensinam a ponderação, a imparcialidade, a capacidade de decidir pelo


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bem comum. Não falámos já no altruísmo… Há hoje uma persistente e bastarda ideia de que a justiça é uma espécie de permanente “venha a nós”. Antigamente, nos Liceus de França, por exemplo, havia difíceis e argutas dissertações sobre a Justiça e seus temas... Agora, a própria literatura se rebaixa ao não literário, ao casual, ao banal... Os exemplos deixam de existir, as crianças, os adolescentes e os jovens (assim como os adultos, de resto) não têm a quem tomar por modelos. Tomam-nos nas revistas mundanas, nos tops da música, nos programas de TV cada vez de pior qualidade... Já nem o comum dos políticos consegue qualquer popularidade real... E demasiadas vezes se verifica que quem suscita entusiasmo passa a gerar desilusão depois de eleito: e nem sempre por sua culpa. O “sistema” enreda, enleia, manieta… Falta educação para a Justiça porque falta educação em geral e educação ética, estética, cívica... Os Estados, vacinados em excesso pelas doutrinações nazis, fascistas, comunistas, acharam por bem demitirse de formar, de educar... Limitam-se a informar, a ocupar os estudantes, a deixar rédea livre a quem os queira intoxicar de correcção política... mas com o pretexto da sua neutralidade demitiram-se de educar. O resultado são gerações perdidas... na droga, no desespero, no sem sentido do mundo... O Estado tem de voltar a não ter complexos e educar, sem ideologismos, sem dogmatismos, mas para aquele núcleo de valores e adquiridos comuns sobre que há até socialmente (ainda) largo consenso. E dizemos ainda porque a escalada avalorativa e antivalorativa poderá subverter as coisas no futuro... Mas não é só o Estado como grande máquina, como um todo, movendo-se portanto lentamente, com o peso da sua enorme burocracia. Cada magistrado, cada um que exerce o magistério, deveria sentir-se investido (e não desautorizado depois) dessa função de educar, mesmo civicamente, os seus concidadãos. E tem de acabar a mania de cada “señorito”, como diria Ortega Y Gassett, de achar que já sabe tudo – recusando e até ofendendo-se quando alguém lhe diz umas verdades. E esse alguém pode ser apenas quem sabe mais. Porque saber, independentemente do poder, é um posto. O dito amargo de Heródoto não pode valer em uma democracia, e menos ainda se optarmos pelo modelo da democracia dialogante, deliberativa. Heródoto, como sabemos, queixava-se de se ter saber sobre muito, mas poder sobre nada. Saber deveria ser poder, mas, pelo menos, é autoridade. Resta saber como quem sabe, em uma sociedade que promove a ignorância,


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vai fazer valer o seu título. Mas enquanto não se resolver essa questão, muito difícil será resolver o resto. Nas escolas começa a fazer-se sentir uma educação para os Direitos Humanos, e, timidamente embora, reabilitam-se as ideias de educação cívica. Mas é preciso encarar a questão com frontalidade e sem complexos. A manutenção da teoria da neutralidade absoluta é incompatível já com essas reticentes abordagens. E a educação para os Direitos Humanos, que é vital para a formação integral, e deve contribuir e colher contributos da para e da Filosofia e do Direito, deve integrar-se em uma mais geral Educação para a Justiça. Toda a Justiça: quer o suum cuique, o dar o seu a seu dono, como a justiça social ou política. A Educação para a Justiça não consome toda a Educação. Há muito mais coisas a ensinar. Mas é uma vertente a não descurar. E nela plenamente se harmonizarão os contributos propriamente jurídicos e os propriamente filosóficos, que farão ainda apelo a outros: literários, históricos, etc... Tal como a educação artística, a educação para a Justiça necessita de diuturno contacto com as obras de arte do sector – as obras da justiça. Contacto com exemplos de leis, decisões, sentenças justas. Como aquele operário referido nos Propos de Alain, que ia todos os dias ao Museu do Louvre para se embriagar de arte e aprender a sua essência. Infelizmente, se podemos ir facilmente à Avenida Paulista e tomar banho diário de arte no MASP (Museu de Arte de São Paulo), nem sempre a Justiça está assim tão disponível para que a possamos mostrar, viva ainda que emoldurada, aos nossos estudantes. Mas há que fazer um esforço...

7. VENCER OS OBSTÁCULOS Falávamos de inimigos da democracia. Também poderíamos falar de inimigos da república. Mas ao falar-se de “inimigos da República” nem sequer se está, aqui, a falar de pessoas em concreto. Mas, como é óbvio, de posições, perspectivas e de realidades que a contrariam. Estamos persuadido de que, como nós próprio, a grande maioria dos republicanos (para não ousar dizer a totalidade) poderia subscrever estas palavras que Albert Camus dirigiu a François Mauriac:


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Je n’ai aucun goût pour la haine. La seule idée d’avoir des ennemis me paraît la chose la plus lassante du monde, et il nous a fallu, mes camarades et moi, le plus grand effort pour supporter d’en avoir.2

A sociedade contemporânea tem ainda não poucos inimigos da República. Apesar do consensualismo, embora não militante, do ideal republicano. Mas não há, hoje como ontem, nenhum inimigo invencível, porque nela se encontram as forças para os vencer ou ir vencendo. A verdade é que não se deve pensar que haja, como dizem os aliás muito belos versos da Internacional, uma “luta final”. A luta contra o obscurantismo, o privilégio, a servidão, o preconceito, são lutas de todos os dias. E quando esperávamos que estivesse ganha, de novo rola a pedra para o sopé da montanha da História, a fim de que o Sísifo republicano volte à luta, à escalada.3 O historiador António Reis enuncia não inimigos, mas perigos para os valores republicanos. Com a devida vénia, é importante citá-lo mais detidamente: A educação para a cidadania é tanto mais urgente quanto sabemos os perigos que hoje ameaçam os valores republicanos. Sem procurarmos ser exaustivos, elenquemos alguns deles: 1. A cultura do individualismo egotista e dos valores do sucesso pessoal, do dinheiro fácil, em clara oposição ao sentimento comunitário da “res publica” e ao sentido individual da honradez e do mérito pelo trabalho. 2. O corporativismo, o lobiismo e o populismo, em oposição a uma cultura de interesse público e nacional. 3. O laxismo, em oposição ao corajoso exercício da autoridade democrática. 4. A desvalorização da cultura de serviço público e do papel do Estado, com as consequências negativas que tal acarreta para o valor da igualdade e da justiça. 5. A homogeneização cultural da globalização, com a sua ameaça à identidade cultural nacional.

2

CAMUS, Albert — Artigo em « Combat », 11 de Janeiro de 1945, in Oeuvres, Essais, col. La Plêiade, Paris, Gallimard, 1965, p. 286.

3

CAMUS, Albert — Le mythe de Sisyphe, in Oeuvres, Essais, col. La Plêiade, Paris, Gallimard, 1965, p. 89 ss.


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6. A xenofobia e o racismo, em oposição ao sentido universal da Humanidade. 7. O indiferentismo ou mesmo o desprezo pela política e pelos políticos, com a concomitante exaltação do económico, em oposição à cidadania participativa. 8. A pseudodemocracia de opinião ou teledemocracia, com o privilégio concedido à opinião espontânea e individual, através de sondagens ou depoimentos, facilmente confundida com a totalidade da opinião, e que ignora a necessidade das mediações da participação organizada em instituições, prejudicando o debate, a reflexão pessoal e o exercício do espírito crítico. (...)4.

A partir desses tópicos, não custará enunciar, em síntese, os antídotos necessários, alguns dos quais podem mesmo ser hauridos dos respectivos valores romanos : a) Honor et Labor. Honradez e do mérito pelo trabalho – de novo a dignitas, a industria... b) Patria, Res Publica – cultura de interesse público e nacional, procurando reforçar a identidade cultural nacional, com uma cultura de serviço público e de (sentido de) Estado. Sem prejuízo, obviamente, do salutar internacionalismo… c) Firmitas - autoridade democrática – não só auctoritas, mas uma potestas actuante, vinculada à auctoritas. E desta dependente. d) Um tanto menos romanos, certamente, são os não pouco importantes e necessários tópicos valorativos do Universalismo, da Cidadania participativa5 e da Democracia não populista e não mediática. Todos esses vectores têm de ser enquadrados e promovidos por uma educação para a cidadania, para os Direitos Humanos, e mesmo uma muito alargada educação jurídica, não para fazer de cada cidadão um caricatural aprendiz de jurista, nem para formatar cidadãos obedientes às leis (ninguém obecede por conhecer apenas – embora algum conhecimento, ou pseudoconhecimento, possa funcionar como discurso 4

REIS, António — Os Valores Republicanos Ontem e Hoje, in A República Ontem e Hoje, org. de António Reis, II Curso Livre de História Contemporânea, Lisboa, Colibri, 2002, p. 28.

5

Cf., porém, v.g., SHERWIN-WHITE, A. N. — The Roman Citizenship, 2.ª ed., reimp., Oxford, Oxford University Press, 2001.


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legitimador), mas sobretudo para os fazer conscientes dos seus direitos e deveres e da sua íntima interligação. Um autor como Norberto Bobbio já se dava conta de que as democracias poderão vir a pagar o preço de não educarem (suficientemente, convenientemente)... Como se vê, as ideias republicanas não pactuam com o laxismo institucional e legal, nem com o desmantelamento neoliberal do Estado, antes querem um Estado vigoroso (ainda que flexível e naturalmente democrático, de direito e de cultura), capaz de assumir a plenitude das suas funções. Todas as suas funções. E um dos instrumentos essenciais dessa renovação do Estado (não estatalista nem estadualizante, não totalitária nem colectivista – como é óbvio) é precisamente a explicação da sua importância, pela Educação. Sem ela, cresce uma mentalidade passiva, para a qual o Estado, tal como o inferno de Sartre, « são os outros », em relação ao qual e aos quais se não reconhece nem afinidade nem deveres. Essa mentalidade redunda no parasitismo e no assistencialismo, que clama sempre subsídios e benesses do Estado, sem nada dar em troca. E são esses parasitismo e assistencialismo que colocam em risco – caricaturados e agigantados pelo teólogos do mercado, apostados no desmantelamento do Estado e avessos a todas as políticas sociais – o Estado social,6 que, com o Estado de cultura e de Educação,7 e, já antes, o Estado de democrático de Direito, são pilares da República. Há por vezes atavismos em certas sociedades que se tornam especialmente prejudiciais à República. Em outros casos, são males mais recentes, da sociedade de massas e de deseducação, que se lhe opõem. Mas que soluções propomos, afinal? Elas já foram sendo esboçadas, ao longo da nossa exposição. E não sã milagrosas. Não vemos como sem a assunção clara da democracia, da república e dos direitos humanos se consigam defendê-los. Não vemos que essa defesa se faça sem pena e sem luta, desde logo jurídica. Não vemos que nada se consiga mudar sem mudar as mentalidades. E para que estas mudem, é preciso que mudemos nós, cada um de nós, para uma 6

Sobre o Estado Social e a Constituição Social, v. por todos, FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Geografia Constitucional. Sistemas Juspolíticos e Globalização, Lisboa, Quid Juris, 2009, p. 55 ss.

7

Desenvolvendo a fulcral importância da educação para a República, cf. Idem — Pedagogia, Poder e Direito, in Direito Universitário e Educação Contemporânea, coord. de André Trindade, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2009, p. 85 ss. = Idem — Filosofia Jurídica Prática, pp. 425-507


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atitude de maior militância democrática, antropodikeia e republicana. E pelo nosso exemplo, mas também pela descomplexada educação formal, consigamos educar para a cidadania e para os Direitos Humanos. É um Direito e é, para nós, professores e magistrados um Dever.

REFERÊNCIAS CAMUS, Albert — Artigo em «Combat», 11 de Janeiro de 1945, in Oeuvres, Essais, col. La Plêiade, Paris, Gallimard, 1965, p. 286. CAMUS, Albert. Le mythe de Sisyphe, in Oeuvres, Essais, col. La Plêiade, Paris, Gallimard, 1965. FERREIRA DA CUNHA, Paulo — Geografia Constitucional. Sistemas Juspolíticos e Globalização, Lisboa, Quid Juris, 2009. REIS, António. Os Valores Republicanos Ontem e Hoje, in A República Ontem e Hoje, org. de António Reis, II Curso Livre de História Contemporânea, Lisboa, Colibri, 2002. SHERWIN-WHITE, A. N. — The Roman Citizenship, 2.ª ed., reimp., Oxford, Oxford University Press, 2001. Pedagogia, Poder e Direito, in Direito Universitário e Educação Contemporânea, coord. de André Trindade, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2009.


EDUCAÇÃO EM DIREITOS E DEFENSORIA PÚBLICA: REFLEXÕES A PARTIR DA LEI COMPLEMENTAR N.º 132/09 Gustavo Augusto Soares dos Reis

Defensor Público do Estado de São Paulo. Assistente de Direção da Escola da Defensoria Pública para a área de Educação em Direitos.

Nem todo homem tem direito a conhecer os seus direitos. Carlos Drummond de Andrade1

1. INTRODUÇÃO Em 7 de outubro de 2009 foi aprovada a Lei Complementar n.º 132, que altera consideravelmente o regime jurídico nacional da Defensoria Pública. As alterações vão desde aspectos ligados à nomenclatura (por exemplo, os antes defensores públicos da União agora se denominam defensores públicos federais – art. 5º, II, ”a”) até aqueles atrelados à própria substância do que é e do que deve ser a Defensoria Pública (por exemplo, no altiplano dos Estados a Ouvidoria externa passa a ser uma exigência mínima – art. 105-A;2 a lei explicitou a legitimidade da Defensoria Pública

1 2

O Avesso das Coisas [aforismos], 5ª edição, Record: Rio de Janeiro, 2007, p. 65.

A experiência de a instituição contar com uma Ouvidoria externa foi inaugurada pelo Estado de São Paulo. Nesse Estado a Defensoria Pública foi criada apenas no ano de 2006 (o que se deu pela Lei Complementar n.º 988) após intensa mobilização social. Dessa gênese democrática culminou uma lei moderna que prevê importantes mecanismos de participação social, de que é exemplo a ouvidoria externa. Agora, a LC 80/94 traz normas gerais voltadas aos Estados que determinam que as respectivas Defensorias contem com uma Ouvidoria externa (infelizmente, essa exigência não vinculou a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Distrito Federal e Territórios). Deve-se enfatizar que, nesse ponto, a LC 132 disse o mínimo, nada obstando, assim, que os


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para propor ação civil pública3, além de estabelecer a necessidade de que o manejo desse importante instrumento de concretização de direitos humanos seja submetido a audiências públicas – art. 4º, VII c/c XXII). Além dessas e de outras substanciais modificações, a nova lei de regência da Instituição Defensoria Pública deu nova disciplina à educação em direitos. E o tema de nosso artigo é este: analisar quais foram as mudanças na nova lei no que tange a educação em direitos.

2. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS4 EM OUTROS PLANOS, OU DOS PORQUÊS DE A DEFENSORIA PÚBLICA TER DE APRENDER A INSPIRAR A SUA IMPORTÂNCIA Um pouco mais a frente exporemos nosso pensamento que entende a educação em direitos como uma das perspectivas do direito de acesso à justiça. Já neste tópico nossas atenções serão voltadas para o seguinte: a educação em direitos, inclusive na sua versão emancipadora, não surge em diplomas relacionados à atuação da Defensoria Pública. Na verdade, a Defensoria Pública, por ser uma instituição nova no Brasil e na América Latina, talvez seja uma das pioneiras5 a consagrar normativamente a Estados democratizem ainda mais a sua Ouvidoria. 3

O que era de todo prescindível, ao menos se almejamos levar a sério a expressão “assistência jurídica integral” (art. 5º, LXXIV, CF88). Sobre o assunto: Eurico Ferraresi (Ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo, Forense, Rio de Janeiro, 2009, sobretudo p. 205-210), Tiago Fensterseifer (Direitos fundamentais e proteção do ambiente, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008, sobretudo p. 108-10), Fredie Didier Jr e Hermes Zaneti Jr. (Curso de direito processual civil, vol. 4, 3ª edição), JusPodivm (Bahia, 2008, sobretudo p. 236-239 ) e José Augusto Garcia de Sousa (org.) (A Defensoria Pública e os processos coletivos, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008).

4

A educação em direitos (que às vezes se apresenta com o nome educação jurídica popular ou educação em direitos humanos) é uma modalidade de educação popular, que consiste em “um modelo de intervenção educativa heterogêneo, que se constitui como um movimento pedagógico e social ao estabelecer um horizonte utópico e formular um imperativo ético: ou se educa a favor dos setores populares e da transformação social, ou se educa contra os setores populares e para perpetuar sistemas de opressão” (Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe, Coord. Emir Sader e Ivana Jinkings, Boitempo, Rio de Janeiro, 2006, p. 449, verbete: educação popular).

5

Observe-se que dissemos “consagrar normativamente”, haja vista que a educação em direitos há muito vem sendo praticada no Brasil e na América Latina. A educação em direitos, a propósito, nasce da prática, e é por isso que a Defensoria Pública, que agora assume tal compromisso, jamais poderá ousar realizar uma educação em direitos não emancipadora (expressão esta, a nosso sentir, contraditória). E certamente o movimento feminista da América Latina é dos mais relevantes


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educação em direitos como uma atividade inerente ao ideal de justiça social. Há documentos internacionais de meados do século XX que já propugnavam pela educação em direitos humanos, sobretudo após as atrocidades da Segunda Guerra6. Mas, para os fins deste trabalho, faremos referência a documentos mais recentes. Após a Guerra Fria a educação em direitos humanos tem merecido atenção da ONU. Assim, em dezembro de 1994 a Assembleia Geral da ONU proclamou 1995-2005 como a Década das Nações Unidas para a Educação em Direitos Humanos7. Trazendo a discussão para o plano nacional, em 10 de dezembro de 2006 foi anunciado o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, documento subscrito pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação e Ministério da Justiça8. O Plano traz inúmeras metas que giram em torno da importância da educação em direitos humanos para o Estado Democrático de Direito e direciona a sua execução em cinco esferas: educação básica; educação superior; educação não formal; educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança e, por fim, educação e mídia.

quando o assunto é educação popular em direitos. Nas obras que tratam de experiências concretas de educação jurídica popular raramente não é feita menção a algum exemplo de curso sobre a questão de gênero. Sobre essa temática, vale consultar a obra Quando o direito encontra a rua: o curso de formação de Promotoras Legais Populares, de Fernanda Castro Fernandes (Luminária Academia, São Paulo, 2009). 6

Eric Hobsbawn, o maior historiador do séc. XX, expõe com profundas palavras aquilo que nunca devemos esquecer. Em passagem em que se refere à catástrofe humana que foi a Segunda Guerra, diz: “Suas perdas são literalmente incalculáveis, e mesmo estimativas aproximadas se mostram impossíveis, pois a guerra (ao contrário da Primeira Guerra) matou prontamente civis quanto pessoas de uniforme, e grande parte da pior matança se deu em regiões, ou momentos, em que não havia ninguém a postos para contar, ou se importar. As mortes diretamente causadas por essa guerra foram estimadas entre três e quatro vezes o número (estimado) da Primeira Guerra Mundial (...) e, em outros termos, entre 10% e 20% da população total da URSS, Polônia e Iugoslávia; e entre 4% e 6% da Alemanha, Itália, Áustria, Hungria, Japão e China (...). Mesmo assim, são palpites (...). De qualquer modo, que significa exatidão estatística com ordens de grandeza tão astronômicas?” (Era dos extremos – o breve século XX, Cia. das Letras, São Paulo, 1995, p. 50).

7

Um respeitável livro que trata da educação em direitos humanos (não apenas a educação não formal voltada à população) deve ser consultado: Educação em direitos humanos para o século XXI (Orgs.: Richard P. Claude e George Andreopoulos, Edusp, São Paulo, 2009).

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O documento pode ser obtido no site www.planalto.gov.br/sedh.


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Embora tanto Defensoria Pública como Ministério Público estejam elencados no rol de parceiros para a implementação do Plano9, infelizmente, no ano de 2009, quando se discutia o projeto de lei complementar10 que culminou na LC 132/09 e em uma época em que já tanto se falava em máxima efetividade dos direitos humanos, o Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG) enviou um estudo11 acerca do referido projeto de lei complementar e que foi entregue aos senadores quando lá se passou a discutir o projeto recentemente aprovado na Câmara dos Deputados. Inúmeros pontos do projeto de lei foram desafiados pelo CNPG, todos eles supostamente em nome da defesa dos direitos humanos, quando, em verdade, tratava-se de uma postura visando ao monopólio da defesa dos direitos humanos. Certamente essa postura do Ministério Público foi infeliz e deve ser superada, pois, quando a Constituição Federal de 1988 (CF/88) imputou à Defensoria Pública e ao Ministério Público (além de outros entes) o caráter de funções essenciais à justiça, é porque essas instituições – que, ao contrário da Advocacia Pública, defendem o interesse público primário – têm de atuar conjuntamente. De qualquer forma, em um dos pontos combatidos estava o inconformismo quanto ao art. 4º, III, que posteriormente passou a viger na LC 132/09, onde o estudo afirmou, inacreditavelmente, que “(...) a promoção, a difusão e a conscientização dos direitos humanos não é atribuição constitucional da Defensoria Pública e, assim, não tem amparo nos arts. 5º, LXXIV e 134, ambos da CF/88”.12 (!) 9

Por tratar-se de um Plano nacional, é feita referência à Defensoria Pública da União e ao Ministério Público da União, o que, certamente, não impede (como impõe) parcerias com tais entidades das esferas estaduais.

10

Trata-se do PLC 137/07.

11

O mencionado estudo, como já dito, foi entregue aos senadores por volta do mês de setembro de 2009 e, curiosamente, nele não consta o timbre da respeitável instituição e nem sequer a assinatura de seu presidente. Isso dá a entender que nem mesmo o CNPG acredita piamente no que lá estava escrito, o que é bom, pois sugere que, no fundo, Defensoria Pública e Ministério Público devem trabalhar juntos.

12

O maior problema dessa monopolização da educação em direitos pelo Ministério Público é que, convenhamos, ele não vem dando cumprimento a isso (e, quando o faz, isso se dá por meio do voluntarismo de alguns de seus membros e por meio de entidades associativas como o Ministério Público Democrático – este sim um compromissado pela educação jurídica popular). Assim, se (i) por um lado há elevado número de pobres no Brasil, e se (ii) o Ministério Público (que se proclama o educador em direitos humanos) não vem realizando essa tarefa, há uma única conclusão: (iii)


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Tudo isso demonstra que a Defensoria Pública ainda está na fase de refletir sobre a educação jurídica popular, sem, é claro, deixar de colocá-la em prática. A educação em direitos não é uma invenção sua e, dada a sua importância, não pode ser deixada no plano do voluntarismo do defensor público.

3. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS EM ANÁLISE COMPARATIVA: A LC 80/94 ANTES E DEPOIS DA ALTERAÇÃO PELA LC 132/09 A fim de construir o nosso raciocínio e de talvez chegar a algumas conclusões, mostra-se imprescindível apontar os principais dispositivos da LC 80/94 que tratavam e que agora tratam da educação em direitos. No regime jurídico anterior, o art. 4º consagrava onze atribuições institucionais da Defensoria Pública.13 Já após a LC 132/09 o rol de atribuições quase dobrou (os incisos XII e XII foram vetados), passando a perfazer vinte missões republicanas.14 De qualquer sorte, o caput é

“que se fodam os de sempre”, na expressão de Eduardo Galeano (De pernas pro ar – a escola do mundo ao avesso, 8ª edição, L&PM, Porto Alegre, 1999, p. 222). Assim dispunha o antigo art. 4º: Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: I - promover, extrajudicialmente, a conciliação entre as partes em conflito de interesses; II - patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública; III - patrocinar ação civil; IV - patrocinar defesa em ação penal; V - patrocinar defesa em ação civil e reconvir; VI - atuar como Curador Especial, nos casos previstos em lei; VII - exercer a defesa da criança e do adolescente; VIII - atuar junto aos estabelecimentos policiais e penitenciários, visando assegurar à pessoa, sob quaisquer circunstâncias, o exercício dos direitos e garantias individuais; IX - assegurar aos seus assistidos, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com recursos e meios a ela inerentes; X - atuar junto aos Juizados Especiais de Pequenas Causas; XI - patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado;

13

E assim dispõe a LC 80/94 pós LC 132/09: Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus; II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos; III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento

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explícito ao dizer que esse rol não obsta o reconhecimento de outras atribuições. Essa cláusula aberta é salutar, mas talvez fosse prescindível,

jurídico; IV – prestar atendimento interdisciplinar, por meio de órgãos ou de servidores de suas Carreiras de apoio para o exercício de suas atribuições; V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses; VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos; VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal; IX – impetrar habeas corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução; X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; XII – (vetado) XIII – (vetado) XIV – acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado; XV – patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública; XVI – exercer a curadoria especial nos casos previstos em lei; XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais; XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas; XIX – atuar nos Juizados Especiais; XX – participar, quando tiver assento, dos conselhos federais, estaduais e municipais afetos às funções institucionais da Defensoria Pública, respeitadas as atribuições de seus ramos; XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores; XXII – convocar audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais.


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pois se o art. 1º da lei consagra a Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático, todas as situações não previstas no art. 4º que restem desafiadas pelo princípio do art. 1º haverão de ser tuteladas pela Defensoria Pública. A propósito, esse raciocínio de máxima efetividade dos direitos humanos encontra guarida na própria lei e no alto do pódio: o art. 3º, que traça as normas-objetivo da Defensoria. Para as finalidades deste texto, o importante a apontar é que, ao menos explicitamente, a LC 80/94 não consagrava a ideia da educação em direitos como expressão do acesso à justiça, diversamente do que prevê a atual lei no art. 4º, III. Do ponto de vista da literalidade legislativa – o que para alguns “intérpretes” se afigura uma mudança copernicana15 – a nova normatização é que consagra nacionalmente a educação em direitos como expressão16 do acesso à justiça, até porque o art. 134 da Constituição Federal já incumbia à Defensoria Pública a tarefa da orientação jurídica. Assim, se o art. 1º da nova lei – que, diferentemente do regramento pretérito, também explicita o dever da orientação jurídica – possui alguma relevância, essa relevância é a de ter instado o intérprete da lei a diferençar orientação jurídica de educação em direitos, distinção que tentaremos trabalhar logo adiante. Sim, porque, para início de conversa, é no mínimo mais poético falar em difusão e conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico do que falar em orientação jurídica. A despeito das considerações acima expendidas – que aparentam falta de euforia com as mudanças ocorridas ex lege –, na verdade a consagração da educação em direitos nos primeiros, principais e principiais artigos da lei há de ser ovacionada. Isso porque, no mínimo, guia a Defensoria Pública nacionalmente considerada para um norte de

15

Embora trate da situação inversa, ou seja, da revogação de lei, esse apego exacerbado à lei é mais ou menos parecido com famosa frase de Kirchmann: “três palavras retificadoras do legislador são suficientes para converter bibliotecas inteiras em tiras de papel” (apud, Luiz Sérgio Fernandes de Souza, O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no direito, RT, São Paulo, 1993, p. 67, nota 14).

16

Como já mencionado, o art. 1º da nova lei consagra a Defensoria Pública como expressão e como instrumento do regime democrático. A palavra “expressão”, segundo o dicionário Aurélio, possui como um de seus significados “representação, manifestação”, ou seja, assim como a Defensoria Pública é uma manifestação da Democracia, a educação em direitos se afigura como uma manifestação do acesso à justiça. Isso será melhor desenvolvido em breve.


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diálogo, de caminhos comuns que devem ser percorridos por todas as Defensorias do Brasil17. Realmente, até essa modificação legislativa a lei era omissa quanto ao dever de educação em direitos. Assim, a educação em direitos – que, ressalte-se, difere da orientação jurídica – consubstanciava algo acidental nas realidades das diversas Defensorias, e, consequentemente, ela era vista pelo defensor público como algo caritativo. Agora, porém, o olhar caritativo pelo defensor público pode até ser elogiado em algum plano ético, filosófico ou religioso, mas no contexto da lei ele se entremostra uma afronta a sua missão republicana. O Defensor Público (as iniciais maiúsculas são propositais) jamais deve assumir-se como um agente público que promove o assistencialismo.18 Seu ideal deve ser dar voz a quem não costuma ter19 e sua meta deve ser a transformação social, o que enseja consequências práticas consideráveis20. 17

E talvez isso já tenha começado a render frutos, pois no VIII Congresso Nacional dos Defensores Públicos realizado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 2009, promovido pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), houve a destinação de uma mesa para discutir a atuação do defensor público na educação em direitos.

18

O Defensor Público carioca Cléber Francisco Alves, um dos maiores estudiosos brasileiros do tema acesso à justiça e Defensoria Pública, traz as seguintes palavras, com a qual concordamos: “O futuro da Defensoria Pública depende, em grande medida, da conscientização dos próprios membros da carreira, no sentido de que a eles cabe uma responsabilidade decisiva na edificação permanente da instituição” (Justiça para todos! – assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 261).

19

Sobre o papel do defensor público, poderia citar aqui belos trechos de grandes pensadores como José Afonso da Silva, Boaventura de Sousa Santos ou Paulo Galliez. Mas prefiro citar um trecho de uma entrevista concedida por um grande Defensor Público paulista, Rafael de Morais Português, que, ao lado de outros combativos Defensores e em um momento de tensão vivido em um despejo coletivo, espontaneamente soltou o seguinte pensamento: “Não sou teórico, intelectual, nem bem defino conceitos de esquerda e direita. Sou Tribuno da Plebe, minha missão constitucional é defender o cidadão pobre e garantir a afirmação de seus direitos contra toda a violação injusta, inclusive aquelas decorrentes de uma ação do Estado” (Justiça para quem precisa, Revista do Brasil, n. 38, agosto, 2009, p. 20).

Desenvolveremos melhor essa ligação entre educação em direitos e transformação social um pouco mais a frente, mas podemos dizer – e tais palavras representam opiniões pessoais – que só se pode interpretar o direito na linha da transformação social se o defensor público for educado a se despir do dogmatismo jurídico a que foi submetido na faculdade de direito. Assim, vemos como fundamental a existência de uma escola (sem querer discutir aqui qual o melhor regime jurídico) destinada aos defensores públicos que zele pelo olhar crítico e multidisciplinar do mundo (nessa linha dispõem os atuais arts. 26-A e 112-A da LC 80/04). Ademais disso, a educação em direitos não deve se limitar a

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Deve-se destacar que a Constituição Federal previu a Defensoria Pública como instituição una, mas, no plano da organização administrativa, consagrou em seu art. 24, XIII que a legislação sobre defensoria pública e assistência jurídica compete à União no que atina às normas gerais, cabendo aos Estados legislar concorrentemente a partir delas. Pois bem. No plano nacional nada se previa em tema de educação em direitos, mas isso não obstava que os Estados normatizassem à luz de suas realidades e vontades de Defensoria Pública. Assim, e sem querer cometer injustiças, vale citar que alguns Estados se anteciparam ao regramento nacional e incumbiram as suas Defensorias na missão da educação em direitos. As Defensorias do Rio de Janeiro, Ceará, Sergipe, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Alagoas e Espírito Santo não têm dispositivo similar no que atina à educação em direitos (este artigo está sendo escrito no final do ano de 2009). Em outros Estados, porém, a educação em direitos não passou despercebida. Por exemplo, na Defensoria Pública do Estado do Pará o inciso XII do art. 6º da Lei Complementar n.º 54/06 estabelece como função institucional a de manter ações preventivas e educacionais visando à conscientização dos direitos e deveres da pessoa humana. Assim também ocorre com a Defensoria Pública da Bahia, onde o inciso III do art. 7º da Lei Complementar n.º 26/06 estabelece a promoção da difusão e da conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico (e, ao que tudo indica, foram estas as palavras que inspiraram o legislador da LC 132/09. Se resolveram plagiar, dessa vez isso está perdoado, pois, como já dito, essa é uma das poéticas atribuições institucionais do art. 4º). A Defensoria Pública do Piauí também determina como função institucional a de “informar, conscientizar e motivar a população carente, ter conteúdo de exposição literal da Constituição e das leis para o conhecimento da população, ainda que isso seja feito mediante uma linguagem adequada. Quando a lei for injusta ou mesmo conservadora, cabe ao defensor público refletir junto à população se não seria o caso de revê-la, seja no plano político ou judicial, ou seja, mobilização social que se vale das regras do jogo democrático. Educar em direitos significa educar as pessoas para que saibam e tentem resolver racionalmente seus conflitos, inclusive em situações de violação de direitos humanos, evitando-se a justiça com as próprias mãos. Para um exemplo do que não é lutar pela justiça social mediante o uso do direito, vale a pena ver o filme V de Vingança (que exorta uma “solução” para os problemas da democracia representativa). E, como contraponto seu, vale assistir ao documentário Viva Zapatero!.


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inclusive por intermédio dos diferentes meios de comunicação a respeito de seus direitos e garantias” (art. 5º, inciso II da Lei Complementar n.º 59/05). Por fim, não podemos deixar de citar a Defensoria Pública de São Paulo, onde o art. 5º da Lei Complementar n.º 988/06 foi elogiosamente pleonástico. Com efeito, o mencionado dispositivo prevê em seu inciso I caber à instituição prestar aos necessitados orientação permanente sobre seus direitos e garantias, ao passo que o inciso II diz competir-lhe informar, conscientizar e motivar a população carente, inclusive por intermédio dos diferentes meios de comunicação, a respeito de seus direitos e garantias fundamentais.21 Em síntese: agora – isto é, deixando de lado que sua fundamentação é constitucional, como veremos em breve – a educação em direitos consubstancia norma geral, competindo a todas as Defensorias Públicas colocá-la em prática, embora seus métodos e seus conteúdos sejam assuntos a serem tratados localmente. Por fim, e embora essa novidade que é a educação em direitos exija reflexões sobre vários aspectos e até mesmo sobre o peso que deve possuir em uma política institucional de atuação, que fique claro que ela é tão atribuição ordinária quanto o é o dever de propor ação e fazer defesa. Tudo isso é atribuição ordinária e o é para que a atuação da Defensoria seja extraordinária, inovadora. O que está em jogo é o acesso à justiça universal e transformador. 4. DISTINÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO EM DIREITOS E ORIENTAÇÃO JURÍDICA ”Não se presumem, na lei, palavras inúteis”,22 costuma-se ensinar nos cursos de direito. Conquanto concordemos que a tradição não deve

21

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo possui uma peculiaridade, talvez existente em outras Defensorias. É que o art. 65 da LC 988/06 prevê que cabe à Coordenadoria de Comunicação auxiliar a Escola da Defensoria Pública na realização da educação em direitos e orientação jurídica, ou seja, a lei definiu (talvez o mínimo) a quem cabe realizar a educação em direitos. A vantagem desse modelo é que, sendo órgãos da instituição, recursos públicos devem ser-lhes destinados, o que possibilita pôr em prática o cumprimento de seu dever-poder (no caso, a educação em direitos). Ou seja, a educação em direitos passa a ser algo a ser considerado no planejamento orçamentário da instituição e, pois, dos órgãos.

22

Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 12ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1992, p. 250.


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significar o governo dos vivos pelos mortos (Rui Barbosa), a distinção entre orientação jurídica e educação em direitos partirá dessa premissa. Para tanto, utilizaremos como esteio de argumentação apenas o regramento contido na LC 80/94 (pós-LC 132/09), deixando de lado qualquer menção às normatizações estaduais. Ao final, porém, tentaremos proceder a uma fundamentação de ordem material. Analisando a LC80/94, vemos que já em seu início ela se vale de expressões diferentes para indicar uma nova atribuição institucional da Defensoria Pública. No art. 1º faz-se referência como missão da Defensoria a ”orientação jurídica”. Não trabalharemos aqui eventual relação entre a educação em direitos e a expressão “promoção dos direitos humanos”, também contida nesse dispositivo. De qualquer forma, educar as pessoas em seus direitos é promover os direitos humanos23 e, nesse sentido, já no art. 1º encontraríamos a distinção formal entre orientação jurídica e educação em direitos. Mas é no art. 4º que a distinção formal fica mais visível. Enquanto o inciso I diz caber à Defensoria prestar orientação jurídica, o inciso III lhe atribui a missão de promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico. Portanto, negar a existência de uma diferença entre orientação jurídica e educação em direitos – qualquer que seja ela – é ter de enfrentar o ônus de assumir que a lei contém palavras inúteis24. 23

Esse é o ensinamento de Flávia Schilling quando trata do assunto educação em direitos humanos: “A primeira constatação a ser feita é a de que a educação é um direito humano. É um direito humano em si e, como tal, fundamental para a realização de uma outra série de direitos” (O direito à educação: um longo caminho, In Educação e metodologia para os direitos humanos, Coord. Eduardo Bittar, Quartier Latin, São Paulo, 2008, p. 273). Note-se que podemos chegar a essa conclusão até mesmo com uma simples leitura da CF88, que em seu art. 205 estabelece que a educação deve possuir como uma de suas metas a de preparar para o exercício da cidadania.

24

E já antecipamos que essa postura teria a solidariedade de um dos maiores juristas brasileiros da atualidade: Celso Antônio Bandeira de Mello. No ponto, o insigne doutrinador critica o parágrafo 8º do art. 37 da CF que, dentre outras coisas, prevê a possibilidade de realização de contratos entre órgãos da Administração Pública. Para ele, essa prática contratual seria fática e juridicamente impossível. Os argumentos vão desde o fato de os órgãos não possuírem autonomia (e um contrato não poderia ampliá-la) até a inexequibilidade dos referidos contratos, pois os órgãos são apenas repartições internas de competência do Estado, ou seja, são o próprio Estado. E sendo o próprio Estado, o contrato entre os órgãos seria um contrato consigo mesmo, configurando, assim, uma ilogicidade jurídica. Ante tais reflexões sobre o art. 37, parágrafo 8º da CF, o jurista lança a sua opinião sobre a existência de palavras inúteis no direito positivo com os seguintes dizeres: “Assim, tal dispositivo constitucional – no que concerne a contratos entre órgãos – haverá de ser conside-


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Desse modo, se orientação jurídica e educação em direitos são fenômenos diferentes – e cabe a todas as Defensorias Públicas admitir essa norma geral – devemos agora explorar qual seria essa diferença. De antemão, que fique claro que as conclusões a seguir não têm a pretensão de impor qualquer verdade, mas apenas estimular um debate. A orientação jurídica é um discurso que enfatiza a dogmática, em que o defensor atua como agente de aconselhamento jurídico e como técnico para a solução de controvérsia. Aqui, assim, cabe ao defensor agir como um profissional que, diante de uma situação-problema (que não necessariamente seja um litígio), esclarece para a pessoa (o assistido) a melhor solução jurídica para o seu caso. Como leciona o Defensor Público carioca Rogério Nunes de Oliveira, quando a Constituição de 1988 alterou a expressão “assistência judiciária” pela expressão “assistência jurídica”, talvez o primeiro intento do constituinte “foi o de tornar os mais amplos possíveis os serviços de assistência jurídica gratuita, que vão desde a orientação jurídica – inclusive aconselhamento voltado à consecução de acordos entre potenciais litigantes para prevenir ou excluir uma demanda – até a defesa em juízo do cidadão hipossuficiente...”.25 Observe-se que o inciso II do art. 4º - como decorrência direta do ideal de assistência jurídica integral – exorta a Defensoria Pública a assumir o seu papel de indutora de solução extrajudicial dos conflitos. Ora, para que a composição pacífica, que pressupõe o diálogo, seja eficaz, o mínimo que se requer é que as partes tenham algum conhecimento acerca do papel socializador do direito. Se o conhecimento dos direitos não é uma condição absoluta para a solução pacífica do litígio, ao menos ele é um detalhe que, como todo detalhe, é pequeno mas relevante. A orientação jurídica, assim, é casuística – pois que abordada em um contexto de situação-problema – e possui tripla função: prevenir conflitos ou solucioná-los pacificamente, ou encorajar o litígio mediante a jurisdição. Nos três casos isso só é possível devido ao esclarecimento (orientação jurídica), pois, como já ensinavam Mauro Cappelletti e Bryant Garth, rado como não escrito e tido como um momento de supina infelicidade em nossa história jurídica, pela vergonha que atrai sobre nossa cultura, pois não há acrobacia exegética que permita salvá-lo e lhe atribuir um sentido compatível com o que está na própria essência do Direito e das relações jurídicas”. Curso de Direito Administrativo, 20ª edição, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 216-7. 25

Assistência jurídica gratuita. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 74.


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num primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é especialmente séria para os despossuídos, mas não afeta apenas os pobres (...). Mesmo consumidores bem informados, por exemplo, só raramente se dão conta de que sua assinatura num contrato não significa que precisem, obrigatoriamente, sujeitarse a seus termos, em quaisquer circunstâncias. Falta-lhes o conhecimento jurídico básico não apenas para fazer objeção a esses contratos, mas até mesmo para perceber que sejam passíveis de objeção.26

Há ainda outro aspecto a considerar sobre a orientação jurídica e que a difere da educação em direitos. É que na orientação jurídica o defensor público é um ator passivo, no sentido de que é a pessoa atendida pela Defensoria que traz o problema a ser esclarecido. E nem poderia ser diferente, pois, segundo pensamos, o conteúdo da orientação jurídica é essencialmente casuístico, isto é, carrega consigo um caso concreto que já é ou potencializa um litígio. Aliás, esse conteúdo da orientação jurídica é que nos faz entender o quão relevante é a educação em direitos para o próprio acesso à justiça na perspectiva da orientação jurídica. Com efeito – e permitimo-nos antecipar algo que será dito em breve –, o direito de acesso à justiça necessita ser estudado com o auxílio do direito comparado, como o faz Cléber Francisco Alves de forma distinta, mas, no Brasil, seu conteúdo deve ser refletido e projetado a partir da realidade brasileira. No Brasil o acesso à informação de qualidade e útil (como as noções sobre os direitos) é extremamente debilitado – razões de ordem neoliberal explicam melhor o porquê disso27 – e isso gera uma consequência: por 26

Acesso à justiça. Trad.: Ellen Gracie Northfleet, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1988, p. 22-23.

27

Uma das explicações é que vivemos em uma sociedade de consumo, e “a cultura da sociedade de consumo envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado” (Zygmunt Bauman, Globalização – as consequências humanas, Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 1999, p. 90). Mais enfático é o escritor estadunidense Benjamin Barber: “para o capitalismo de consumo prevalecer, é preciso tornar as crianças consumidores e tornar os consumidores crianças” (Consumido – como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos, Record, Rio de Janeiro, 2009, p. 32). Para ilustrar isso, vale assistir ao filme de comédia Idiocracy, que faz uma crítica à sociedade imaginária do ano de 2505, a qual se encontraria excessivamente burra devido à ideologia do consumo e à manipulação pelos meios de comunicação de massa. Quanto à fome pelo lucro desmesurado, em


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vezes as pessoas só podem usufruir de seus direitos se souberem que os possuem, de tal sorte que a orientação jurídica por vezes só será exigida da Defensoria Pública se a pessoa tiver um mínimo de noção a respeito disso. É por isso que um dos mais respeitáveis historiadores brasileiros, José Murilo de Carvalho, sentencia que “o acesso à justiça é limitado a pequena parcela da população. A maioria ou desconhece seus direitos, ou, se os conhece, não tem condições de os fazer valer” – e, no que toca a esta última consideração, logo adiante o intelectual critica o insuficiente número de defensores públicos mesmo após o mandamento da Constituição de 1988.28 Por fim, e sem querer chegar a conclusões, dado que esse assunto merece um estudo mais aprofundado, mas talvez haja outra distinção a ser notada entre a orientação jurídica e a educação em direitos. É que enquanto aquela se atrelaria mais aos assuntos privados, esta teria como meta o espaço público.29 Em outras palavras, a primeira contribui para que as pessoas saibam cuidar de seu jardim, ao passo que a segunda ensina-lhes a importância de cuidar da praça, para usar o título de uma obra de Nelson Saldanha.30 Apenas para exemplificar, é comum as Defensorias Públicas do Brasil periodicamente se dirigirem a locais onde não existem instalações da instituição e, mediante a utilização de espaços de alta visibilidade (como barracas em ruas movimentadas), um grupo de defensores tira dúvidas jurídicas pessoais da população. Quando se fala em educação em direitos, porém, os principais livros

vários momentos mostra-se alguém idiotizado que manifesta a célebre frase: “eu gosto de dinheiro”. O contexto em que a frase é dita leva o telespectador mais atento a enxergar verdadeira crítica à prática do lucro excessivo. 28

Cidadania no Brasil – o longo caminho. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006, p. 214-215. Diga-se de passagem, o livro certamente é uma leitura obrigatória para o defensor público.

29

Nesse ponto, o culto filósofo Renato Janine Ribeiro sugere a reflexão sobre alguns problemas dos direitos humanos para a democracia: “Nas raras democracias e repúblicas da Antigüidade, o estatuto de cidadão estava ligado à disposição de colocar o bem comum à frente do privado. A modernidade, quando revive a democracia, constata que, se for essa a exigência para ter cidadãos, não os terá, porque pouquíssimos – basicamente, só os militantes de partidos – estarão dispostos a tanto” (Os direitos humanos poderão ameaçar a democracia?, In: Educação em direitos humanos – discursos críticos contemporâneos, Org: Theophilos Rifiotis e Tiago Hyra Rodrigues, UFSC, Florianópolis, 2008, p. 22, nota 1).

30

O jardim e a praça – ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social e histórica. Sérgio Fabris editor, Porto Alegre, 1986.


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sobre o assunto demonstram que não é esse discurso que está em jogo. O que está em jogo é a educação para a ação, que visa a contribuir para que as pessoas se sintam cidadãs e, com isso, assumam-se como um ser social, responsável pela sociedade. Note-se: para isso o conteúdo da educação em direitos é diverso, pois nem mesmo visa apenas a apresentar as leis para as pessoas,31 e sim por vezes ajudá-las a entender as razões do surgimento da lei32 e até mesmo colocá-la em questão.33 Como ensinava Paulo Freire, “Pobre do 31

O que, por si só, já seria transformador, dado que “as pessoas, que têm consciência dos seus direitos, ao verem colocadas em causa as políticas sociais ou de desenvolvimento do Estado, recorrem aos tribunais para as protegerem ou exigirem a sua efectiva execução” (Boaventura de Sousa Santos, Para uma revolução democrática da justiça, Cortez, São Paulo, 2007, p. 19).

32

Por exemplo, desde a sua edição a Lei n.º 11340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, tem enfrentado muita resistência pelos próprios profissionais do direito na sua aplicação, às vezes sob o argumento da inconstitucionalidade por ofensa à isonomia e às vezes por simples descumprimento (como quando se aplicam institutos benéficos ao agressor contra a literalidade da lei). Tanto num como noutro caso a não aplicação da lei decorre do desconhecimento que “de cada 100 mulheres assassinadas no Brasil, 70 o são em relações domésticas, sendo 66% dos autores parceiros delas. Ademais, estima-se que, em 1990, nenhum dos dois mil casos do RJ terminou com a punição dos acusados”, segundo constatação da Human Rights Watch (In Flávia Piovesan, Temas de Direitos Humanos, 3ª edição, Saraiva, 2009, p. 228).

33

Assim, por vezes o defensor público – que não é dono da verdade, diga-se de passagem – pode e deve refletir com a população carente se estar em liberdade é somente não estar em um presídio (sobre essa reflexão acerca do direito à liberdade, vale a leitura de ao menos dois livros: O que é liberdade – capitalismo X socialismo, de Caio Prado Jr. [15ª edição, Brasiliense, São Paulo, 1994] e O horror econômico, de Viviane Forrester [Unesp, tradução de Álvaro Lorencini, São Paulo, 1997], além do filme italiano Onde está a Liberdade?). Ou se perguntar por que milhares de seres humanos morrem de fome todos os dias se as forças produtivas agrícolas modernas são capazes de alimentar o dobro da população do planeta (sobre isso, vide Carlos Walter Porto-Gonçalves, A globalização da natureza e a natureza da globalização, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006, sobretudo a Parte IV). Contudo, a mais instigante indagação a respeito disso tenha sido feita por Josué de Castro: “Será a calamidade da fome um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem?” (Geopolítica da fome, 5ª edição, 1º vol., Brasiliense, São Paulo, 1959, p. 45). Ou se a população urbana não possui moradia devido à falta de locais habitáveis nos centros urbanos (sobre isso, Ermínia Maricato, As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias, In A cidade do pensamento único, 4ª edição, Vozes, Rio de Janeiro, 2007). Ou se a população carente não lê livros porque não quer ou se não o faz devido à falta de políticas públicas (sobre um exitoso exemplo de Ribeirão Preto, São Paulo: Galeno Amorim, Livros para todos, In Práticas de cidadania, Org. Jaime Pinski, Contexto, São Paulo, 2004). Por fim, posto que a lista seria imensa, se a atuação do defensor público na área criminal corresponde à preocupação com os direitos humanos ou se, como nos dizem os sensacionalistas da grande mídia, isso seria “direito de bandidos” (sobre isso, a sugestão é de filmes, que, se não são profundos como os livros, certamente têm mais poder de sensibilização do que eles: Assassinato em primeiro grau; Ônibus 174; O Expresso da Meia-Noite; Injustiçados;


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povo que aceita, passivamente, sem o mais mínimo sinal de inquietação, a notícia segundo a qual, em defesa de seus interesses, ‘fica decretado que, nas terças-feiras, se começa a dizer boa-noite a partir das duas horas da tarde’”.34 Para finalizar esse raciocínio, é imperioso transcrever o seguinte pensamento do saudoso Geraldo Ataliba: Se é verdade que os princípios fundamentais têm da comunidade nacional razoável adesão – embora não explícita, nem consciente –, como é o caso da república, federação, autonomia municipal, tripartição do poder e legalidade, as regras, entretanto, que lhes asseguram a eficácia são ignoradas, desprezadas, mal-cumpridas. E isto com a aquiescência de uns, a indiferença de outros, a complacência de muitos; com a acomodação dos órgãos de promoção do Direito e a preocupação de poucos. Este é um problema cultural. (...) Mas a responsabilidade maior cabe aos homens do Direito (...). A nós incumbe a responsabilidade de ensinar as virtudes do Direito e as vantagens de sua observância.

Citando S. Dória: “o serviço mais prestante que pode um cidadão prestar (...) à sua Pátria é contribuir para que tenham seus concidadãos idéias claras das instituições políticas, espalhadas pelo mundo, e sob algumas das quais vivem, ou terão de viver”. E esta ensinança é tarefa que não se esgota num gesto, nem numa pregação. É um múnus constante, diuturno, incessante, que será tanto mais eficaz quanto mais traduzido em comportamentos exemplares.35.

Tendo sido feitas as definições acerca do que seria a orientação jurídica, urge agora debruçarmo-nos sobre o conteúdo e a abrangência da educação em direitos. E, ao longo desse discurso, demonstraremos que a educação em direitos possui uma fundamentação constitucional e, desse ponto de vista, a normatização atual da LC 80/94 não se mostra tão

O Processo; O Quarto Poder; 12 Homens e uma Sentença; A Outra História Americana; Inspeção Geral; Vive-se uma só vez; Justiça; Zona do Crime, etc). 34

A importância do ato de ler, 34ª edição, Cortez, São Paulo, 1997, p. 40.

35

República e constituição, 2ª edição, Malheiros, São Paulo, 2007, p. 17. A atualização da obra coube a Rosolea Miranda Folgosi.


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revolucionária – o que não nega a sua importância simbólica e até mesmo jurídica.

5. EDUCAÇÃO EM DIREITOS COMO DECORRÊNCIA DO ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: A FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS É inquestionável que a Constituição Federal de 1988 trouxe inúmeros avanços no Brasil, e já em seu nascimento se lhe atribuía a designação de “Constituição-Cidadã”, não apenas devido à intensa participação popular em sua gênese,36 mas também por causa do enaltecimento dos direitos fundamentais ao longo de todo o texto.37 Diante desse contexto, Luís Roberto Barroso diz que sob a Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Em seguida, pela circunstância de haver o texto constitucional criado novos direitos, introduzido novas ações e ampliado a legitimação ativa para a tutela de interesses...38

Linhas atrás dissemos que as inovações trazidas pela LC 132/09 hão de ser louvadas, embora não mereçam ser concebidas como algo novo na missão da Defensoria Pública quanto ao direito de acesso à justiça. Essas proposições que fazemos têm a ousadia de sugerir uma

36

Comparando a constituinte de 1987 com as constituintes pretéritas da história constitucional do Brasil, Paulo Bonavides e Paes de Andrade dizem que “(...) foi a de 1987 a que obteve maior participação popular. Pode-se afirmar que essa participação não resultou em adoção de propostas populares, mas o fato é que as sugestões e emendas com milhões de assinaturas chegaram ao Congresso (...), permitindo aos indicados pelos subscritores das mesmas, o direito de palavra no plenário”. História constitucional do Brasil, 3ª edição, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1991, p. 475.

37

Após elogiar o fato de a CF88 ter dado aos direitos fundamentais o tratamento merecido, Ingo Wolfgang Sarlet destaca que “três características consensualmente atribuídas à Constituição de 1988 podem ser consideradas (ao menos em parte) como extensiva ao título dos direitos fundamentais, nomeadamente seu caráter analítico, seu pluralismo e seu forte cunho programático e dirigente”. A eficácia dos direito fundamentais, 8º edição, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2007, p. 77.

38

Curso de direito constitucional contemporâneo,Saraiva, São Paulo, 2009, p. 383.


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fundamentação constitucional da educação em direitos ao menos quando se trata de Defensoria Pública. Como é sabido, fundamentar constitucionalmente alguma coisa é muito mais do que reconhecer o seu estar no mundo do jurídico; é conferirlhe supremacia. E atribuir o status de supremacia constitucional à educação em direitos pela Defensoria Pública é reconhecer (i) que, no fundo, a LC 80/94 não precisava explicitá-la como uma atribuição constitucional sua, além de (ii) isso impedir que a referida lei seja pontualmente revogada visando retirar-lhe tal mister, pois que no mínimo isso afrontaria a cláusula da vedação ao retrocesso. Evidentemente, para concluirmos que eventual simples revogação da lei incorreria em retrocesso social, temos de partir da seguinte premissa: o direito de acesso à justiça até pode figurar como um direito de primeira dimensão, mas a inovação da CF88, qual seja, a tutela da população carente por meio de um órgão público (Defensoria Pública), se nos afigura um direito de cunho prestacional, e, pois, sujeito à cláusula da vedação ao retrocesso. Segundo Canotilho, a cláusula da vedação ao retrocesso social, também denominada por ele de contrarrevolução social ou vedação à evolução reacionária, significa que “(...) os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência39, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo”, o que “(...) limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (...)”.40E a prova de que

39

E possivelmente o autor inclui na expressão “direito à assistência” o direito à assistência jurídica. Isso porque quando trata do direito de acesso à justiça (que denomina acesso aos tribunais) o jurista lança as seguintes considerações: “Desta imbricação entre o direito de acesso aos tribunais e direitos fundamentais resultam dimensões inelimináveis do núcleo essencial da garantia institucional da via judiciária. A garantia institucional conexiona-se com o dever de uma garantia jurisdicional a cargo do Estado. Este dever resulta não apenas do texto da constituição, mas também de um ´princípio geral (‘de direito’, das ‘nações civilizadas’) que impõe um dever de protecção através dos tribunais como um corolário lógico: (1) do monopólio de coacção física legítima por parte do Estado; (2) do dever de manutenção da paz jurídica num determinado território; (3) da proibição de autodefesa a não ser em circunstâncias excepcionais definidas na Constituição e na lei (...).” (Direito constitucional e teoria da constituição, 7ª edição, Almedina, Coimbra, Portugal, 2003, p. 497). No mesmo sentido é o pensamento de Ana Paula de Barcellos, que encara o direito de acesso à justiça como um mínimo existencial capaz de otimizar a concretização de direito: A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – o princípio da dignidade da pessoa humana, 2ª edição, Renovar, Rio de Janeiro, 2008, p. 325-33.

40

Op. Cit., p. 339.


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a educação em direitos encontra arrimo constitucional está exposta já no art. 3º da Carta, que traça objetivos da República41. Apenas para expor a argumentação, basta mencionar que o inciso III do mencionado artigo determina a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação. À vista disso, como imaginar a realização da meta do art. 3º, III, sem que o Estado difunda junto à sociedade as noções básicas de sociabilidade por meio do direito?42 Por se nos afigurar clara essa imbricação, sugerimos ao leitor o belíssimo e inspirador filme Escritores da Liberdade, que se baseia em fatos reais ocorridos nos EUA. Em suma, uma certa localidade daquele país sofria com altíssimo índice de tensão étnico-racial, até mesmo em uma escola. Até que uma professora abnegada (Erin Gruwell, representada pela premiada Hilary Swank) faz seus alunos compreenderem o significado da tolerância e da recusa à justiça com as próprias mãos. E já que é notório que a população, sobretudo a pobre, carece de saber seus direitos, urge sintetizarmos nossa ideia no seguinte raciocínio: educação em direitos + objetivos da República + Defensoria Pública + Assistência jurídica integral = acesso à justiça. Uma coisa é certa: se por um lado a CF88, diferentemente da LC 80/94, não definiu quem, embora sem qualquer exclusividade, deveria incumbir-se do mister da educação em direitos, por outro lado, a exigência, por parte do poder público, da educação em direitos decorre não apenas do art. 3º como do art. 205 da Constituição.

41

Cabe a nós, profissionais do direito, procurarmos manifestações de aplicação do art. 3º da CF88, pois, como adverte José Afonso da Silva, “é a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro” (Curso de direito constitucional positivo, 27ª edição, Malheiros, São Paulo, 2006, p. 105). E assim já ensinava Konrad Hesse: “(...) a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)” (A força normativa da constituição, trad.: Gilmar Ferreira Mendes, Sérgio Fabris editor, Porto Alegre, 1991, p. 19).

42

“O direito à educação para todos – mulheres e homens – tem sido crescentemente reconhecido pela comunidade internacional como uma questão estratégica para a consecução da igualdade, do desenvolvimento e da paz” (Silvia Pimentel, Educação, Igualdade e Cidadania – a contribuição da Convenção Cedaw/Onu, In: Igualdade, diferença e direitos humanos, Daniel Sarmento, Daniel Ikawa e Flávia Piovesan (orgs.), Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, p. 311).


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No que toca ao art. 205, norma-matriz do direito educacional constitucional, ele consigna que a educação, que é direito de todos e dever do Estado e da família, terá como uma de suas metas o preparo das pessoas para a cidadania. Como se vê, enquanto o detentor do direito subjetivo constitucional é universal (todos), o correlato sujeito a quem cabe o dever é definido: essa missão cabe não apenas ao Estado, mas à família. Quanto ao Estado, é de uma obviedade agressiva que a educação para a cidadania, que exige a educação em direitos, passa pela educação formal, isto é, os bancos escolares. Mas a educação certamente não se esgota no plano formal e, nessa medida, a educação não formal também se impõe.43 Pois bem. Conquanto não se lhes afigure um monopólio, por que não exigir que as instituições do sistema de justiça, que detêm o monopólio de um dos poderes do Estado (o Judiciário), assumam a sua responsabilidade de educar as pessoas nas noções jurídicas básicas, como pregava Geraldo Ataliba, já citado anteriormente? A jurista Ana Paula de Barcellos vê o esclarecimento da população quanto aos direitos como conditio sine qua non para o efetivo acesso à justiça, e exorta as instituições jurídicas a terem essa compreensão. Vale transcrever um trecho: O segundo obstáculo fático que se identifica no caminho do acesso à justiça é a questão da informação (...). A médio e longo prazo, a generalização do ensino fundamental por toda a população brasileira e a inclusão em seu conteúdo curricular de noções sobre o Judiciário e seu papel, o acesso à justiça e os mecanismos postos à disposição do cidadão (...). Enquanto isso, cabe a toda a sociedade e às instituições diretamente envolvidas – como o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Poder Judiciário, as Faculdades de Direito – promoverem a informação acerca de suas atividades em especial, e da estrutura do acesso à justiça em geral, em um esforço de esclarecimento da população, especialmente a de mais baixa renda e escolaridade (...).

43

Aliás, no que toca à educação para a cidadania, muitos estudiosos-ativistas veem inúmeras vantagens da educação não formal sobre a formal. Nesse sentido, ver Vera Candau (Educação em direitos humanos: questões pedagógicas, In: Educação e metodologia para os direitos humanos, Coord. Eduardo Bittar, Quartier Latin, São Paulo, 2008, p. 291), Garth Meintjes (Educação em direitos humanos para o pleno exercício para a cidadania, In: Educação em direitos humanos para o século XXI, Op. Cit., p. 135, onde o autor elenca cinco vantagens).


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Neste ponto, campanhas de divulgação implementadas voluntariamente pelas instituições referidas serão muito mais eficientes na construção desse aspecto da dignidade humana (...).44

Note-se, no entanto, que a respeitável jurista atrela essa iniciativa por parte dos membros das instituições jurídicas como algo atinente ao mundo do voluntarismo, da caridade. O único problema desse entendimento é que caridade é uma noção antitética à de direito (subjetivo),45 como já anotara Norberto Bobbio.46 No que tange à Defensoria Pública, porém, vemos que a educação em direitos, tal como a orientação jurídica, já encontrou a resposta na CF88, que alterou a antiga expressão assistência judiciária pela expressão assistência jurídica integral e gratuita. Assim, em face dessa nova instituição não se há de excogitar de voluntarismos ou caridades, e sim de dever republicano. Isso deve estar no espírito de todo o defensor público. Por fim, a educação para a cidadania – que, reitere-se, pressupõe a educação em direitos – também cabe à família. E se cabe à família, urge fazermos a seguinte indagação: se (i) a educação formal no Brasil não garante o ensinamento das noções básicas acerca do Direito (e de sua função socializadora); se (ii), inconstitucionalmente, raríssimas

44

Barcellos, 2008, p. 333.

45

E esse é o motivo de o saudoso, ou melhor, saudosíssimo, pensador-humanista Milton Santos enxergar no Estado, e não no Terceiro Setor, uma condição para uma outra globalização, a globalização da cidadania. Sobre isso, ver Por uma outra globalização, 13ª edição, Record, Rio de Janeiro, 2006, p. 67, bem como exortamos que o leitor deve assistir ao documentário Encontro com Milton Santos, dirigido pelo cineasta Silvio Tendler. Assim também Paulo Freire, tratando especificamente da educação fulcrada na pedagogia do oprimido: “As massas (...) descobrem que a educação lhes abre uma perspectiva (...). Começam a exigir e a criar problemas para as elites. Estas agem torpemente, esmagando as massas e acusando-as de comunismo. As massas querem participar mais na sociedade. As elites acham que isto é um absurdo e criam instituições de assistência social para domesticá-las. Não prestam serviços, atuam paternalisticamente, o que é uma forma de colonialismo. Procura-se tratá-las como crianças para que continuem sendo crianças” (Educação e mudança, 30ª edição, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 2007, p. 37).

46

“Um ordenamento normativo em que não houvesse nunca a necessidade de recorrer à sanção e fosse sempre seguido espontaneamente, seria tão diferente dos ordenamentos históricos que costumamos chamar de jurídicos que ninguém ousaria ver ali realizada a idéia de direito: sinal evidente que a adesão espontânea acompanha a formação e a perduração de um ordenamento jurídico, mas não o caracteriza” (Teoria da norma jurídica, 2ª edição, Edipro, São Paulo, 2003, p. 164).


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são as vezes em que os meios de comunicação dão cumprimento ao disposto no art. 221 da CF/88;47 se (iii), para terem acesso à informação sobre seus direitos, as pessoas, para não ingressarem na faculdade de direito, têm de ter acesso à internet ou aos livros (algo que não corresponde à realidade da imensa população pobre), pergunta-se: como exigir, de forma legítima, que a família se incumba de educar para a cidadania? Portanto, o art. 205 também casa com o dever estatal de promover a educação em direitos. E se a família está imbuída no dever de educar para a cidadania, cabe ao Estado (por exemplo, por meio da Defensoria Pública) educar tais educadores. Felizmente a LC 132/09 captou essa mensagem constitucional, e é isso que gradativamente vem legitimando a Defensoria Pública perante a sociedade. Assim, cabe aos defensores públicos se inspirarem nesse abençoado fardo que lhe impôs a CF88. Não compreender isso significará para a Instituição o início do fim.

6. PARA QUÊ A EDUCAÇÃO EM DIREITOS? A indagação “para quê a educação em direitos?” consegue ser ao mesmo tempo ofensiva e necessária. Ofensiva porque qualquer resposta é suficiente com a simples indagação ”por que não se educar para os direitos humanos?”. Necessária porque “a história nada ensina, apenas castiga quem não aprende suas lições”.48 Assim, basta assistir ao brilhante documentário brasileiro Utopia e Barbárie49 para concluir que a história exige a linguagem dos direitos humanos, ou ainda porque a televisão (a grande mídia) continua

47

Feliz e profundo é o pensamento de Luís Fernando Veríssimo: “Vivemos num tempo maluco em que a informação é tão rápida que exige explicação instantânea e tão superficial que qualquer explicação serve” (apud Jornalismo em tempo real, Sylvia Moretzsohn, Revan, Rio de Janeiro, 2002, p. 119). Pierre Bourdieu chega a constatar que a televisão tem o poder de, “paradoxalmente, ocultar mostrando” (Sobre e televisão, Zahar editor, Rio de Janeiro, 1997, p. 24). Três filmes ilustram muito bem esse poder que detêm os meios de comunicação: 1984 (da obra de George Orwell), Olhar estrangeiro sobre o Brasil e o famoso Cidadão Kane.

48

Frase de Vladimir Smelev e Nicolai Popov (apud O capitalismo do século XXI, Robert Heilbroner, Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 1994, p. 9).

49

O documentário foi lançado no final do ano de 2009 e é dirigido pelo cineasta-sonhador Silvio Tendler.


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mascarando inúmeras violações de direitos humanos e isso às vezes nos faz enxergar as coisas como algo normal.50 Podemos nos indagar quais são os motivos de educar a população carente para os direitos humanos. A resposta é simples. Primeiro, porque os direitos e a justiça social surgem de baixo pra cima, e não de cima pra baixo.51 Segundo, porque, como decorrência do primeiro – e esse é um diferencial da Defensoria, que diariamente convive com a pobreza e, por isso, gradativamente aprende a entender as principais necessidades da população, que é algo relevante para a própria interpretação do direito –, é no espírito de solidariedade e de vontade de mudança vistos na população carente que entendemos a importância de que ela possua o conhecimento mínimo de seus direitos.52 Assim sendo, a Defensoria Pública – que, segundo pensamos, só poderá crescer e realizar um efetivo e diferençado acesso à justiça se mantiver o espírito de participação social – possui o dever de contribuir para que a população saiba de seus direitos e, mais que isso, para que saiba lutar pelos direitos, pois direito é conquista, e não um dado. A Defensoria Pública deve contribuir para que a população aprenda a se defender com ela, e não apenas que seja defendida por ela (que consubstancia uma

50

“Quando o escravo era acorrentado com grilhões de ferro era fácil perceber a escravidão. Quando agora desfila acorrentado a algemas semânticas torna-se difícil perceber a escravidão do homem”, já advertiu o pensador Albert Camus (apud Carlos Roberto Siqueira Castro, 20 anos da Constituição democrática de 1988, In Vinte Anos da Constituição Federal de 1988, Cooord. Cláudio Pereira de Souza Neto e outros, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2009, p. 23).

51

Milton Santos, que era daqueles intelectuais sonhadores que fazem falta nos dias atuais e que servem de referência para os jovens, já averberou: “Uma coisa parece certa: as mudanças a serem introduzidas, no sentido de alcançarmos uma outra globalização, não virão do centro do sistema, como em outras fases de ruptura na marcha do capitalismo. As mudanças sairão dos países subdesenvolvidos” (Por uma outra globalização, Op.Cit., p. 153-154). A propósito, reiteramos valer a pena ver o documentário Encontro com Milton Santos – o mundo global visto do lado de cá, também dirigido pelo premiado cineasta Silvio Tendler.

52

Em um livro-testamento destinado aos jovens, Ernesto Sabato – que abandonou uma renomada vida científica para viver na árdua simplicidade da luta pelos direitos humanos – lançou as seguintes palavras a fim de demonstrar por que ainda temos de acreditar em algo: “E não só por meio das inocentes criaturas da natureza, mas também encarnada em heróis anônimos, como aquele pobre homem que, no incêndio de uma favela, entrou três vezes no barraco de chapas de metal onde umas crianças estavam trancadas – ali deixadas pelos pais, que haviam ido trabalhar –, até morrer, na última tentativa. Mostrando-nos que nem tudo é miserável, sórdido e sujo nesta vida, e que este pobre ser anônimo, como aquelas florezinhas, é uma prova do Absoluto” (Antes do fim – memórias, Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p. 12).


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visão paternalista e, pois, historicamente questionável do ponto de vista da justiça social).53

7. OS CONTEÚDOS DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS Optamos por falar em “conteúdos” (plural) da educação em direitos, e não em “conteúdo” (singular), para que fique nítido que tudo o que disser respeito à educação em direitos não deve ousar ser definitivo.54 A educação em direitos, tanto no conteúdo como no método ou no destinatário, deve ser pensada a partir da criatividade.55 Isso, porém, não impede que alguns nortes sejam estabelecidos. O importante é o constante diálogo entre as Defensorias. Antes de tudo, o papel da Defensoria Pública é a educação em direitos, isto é, a educação jurídica popular. Assim, o defensor público deve ser estimulado a protagonizar com mais intensidade as aulas jurídicas, o que certamente não impede a abordagem crítica.

53

De abril a novembro de 2009 a Defensoria Pública do Estado de São Paulo realizou, por meio de sua Escola, um curso de educação em direitos denominado Curso de Defensores Populares, nome este criado a partir da inspiração do curso de Promotoras Legais Populares. Conquanto os recursos públicos para a realização do curso tenham cabido à Escola da Defensoria Pública de São Paulo, sua realização só foi possível devido à coordenação conjunta com outros parceiros da sociedade civil e um ente público: União dos Movimentos de Moradia (UMM), Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns (PUC-SP), Associação Paulista dos Defensores Públicos (APADEP), Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e Defensoria Pública da União em São Paulo. Diga-se de passagem, a ideia de realização do curso não partiu da Defensoria de São Paulo, mas da sociedade civil, mais especificamente da UMM, na época representada pelo inspirador ativista Benedito Barbosa, o “Dito”. O Curso de Defensores Populares teve o êxito de formar cerca de 50 pessoas ligadas a movimentos sociais e possuía uma grade curricular que enfatizava a educação em direitos em sua perspectiva freireana. As aulas (quinze ao todo) foram quinzenais e aos sábados de manhã (das 9h às 13h), posto que esse horário era condizente com as possibilidades da população. Para mais informações, cf. www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Materia/MaterialMostra. aspx?idItem=4575&idModulo=5278, Acesso em 30 nov. 2009.

54

“(...) a EDH [educação em direitos humanos] não deve jamais ser um conjunto estático de determinados conhecimentos de enunciados de direitos, mas deve preservar sempre um envolvimento dinâmico com esses conhecimentos” (Upendra Baxi, Educação em direitos humanos: promessa do terceiro milênio?, In: Educação em direitos humanos para o século XXI, Op.Cit., p. 236).

55

Por exemplo, promover cursos mais longos ou mais curtos; utilizar ou não recursos audiovisuais (como o cinema) ou grupos teatrais (como o Teatro do Oprimido); definir o grau de participação dos alunos; realizar curso voltado para certo perfil de aluno (mulher, criança, idoso, pessoa com deficiência) ou mesclar os perfis; tornar o curso mais jurídico ou, por meio de parcerias com outros atores, deixá-lo multidisciplinar; centralizar a atuação junto à educação formal ou informal, etc.


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Não basta, porém, a mera apresentação das leis, embora seja o mínimo exigível (e note-se que o art. 4º, III, da lei diz caber à Defensoria a promoção da difusão do ordenamento jurídico).56 Aliás, a abordagem puramente jurídica – como se isso fosse possível... – não deveria jamais ser o cerne dos cursos de direito, como têm advertido inúmeros estudiosos. No que tange à apresentação das leis, é imprescindível o estímulo à leitura da Constituição, e o estímulo passa por vezes por fornecer um exemplar do texto para cada aluno. Fazer isso é fazer cumprir a Constituição ao menos no que atina ao art. 64 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que de transitório nada pode ter.57 A linguagem deve ser adequada, além de não precisar se preocupar em focar demasiadamente os termos técnicos. Como diz o maior historiador do século XX, Eric Hobsbawm, citando Rutherford acerca de outra área do conhecimento, “nenhuma física podia ser boa se não pudesse ser explicada a uma garçonete de bar”.58 O mesmo se dá com a educação jurídica popular, que não deve se ocupar com 56

“La historia de los derechos humanos es la historia de los esfuerzos que se han hecho para definir la dignidad y valor básicos del ser humano y sus derechos más fundamentales. Esos esfuerzos prosiguen em la actualidad. Conviene que el profesor incluya uma exposición de esa historia como parte esencial de la enseñanza de los derechos humanos, que puede ir haciéndose más detallada em los grados superiores” (La enseñanza de los derechos humanos – actividades prácticas para escuelas primarias y secundarias, Naciones Unidas, Nueva York y Ginebra, 2004, p. 19).

57

O mencionado dispositivo diz que “A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da Administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta a disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”. Para alguns doutrinadores não se deve interpretar o dispositivo como disposição transitória. Confira-se Rodrigo Costa Vidal Rangel, Educação constitucional, cidadania e estado democrático de direito, Nuria Fabris, Porto Alegre, 2008. O autor toma essa posição e cita o mesmo entendimento de José Afonso da Silva (p. 96).

58

Era dos extremos – o breve século XX, Op.Cit., p. 519. E como conhecimento é poder e o direito não deixa de ser uma tecnologia (cf. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao estudo do direito, Atlas, São Paulo, 1989, p. 87), neste capítulo do imprescindível livro, em que o historiador aborda a ciência no (breve) século XX, urge transcrever a seguinte passagem: “O problema dessas tecnologias é que se baseavam em descobertas e teorias tão distantes do mundo do cidadão comum, mesmo nos países desenvolvidos mais sofisticados, que só algumas dezenas ou, no máximo, algumas centenas de pessoas no mundo podiam captar inicialmente que elas tinham implicações práticas” (p. 507).


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“vícios redibitórios”, “lucros cessantes”, “arguição de descumprimento de preceito fundamental”, “intervenção de terceiros”, e por aí vai59. Mas há outro ponto a destacar, e felizmente o discurso abaixo pode partir da comodidade da dogmática jurídica. Segundo o art. 4º, III, da LC 80/94, deve a Defensoria preocuparse em “promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”. Diante disso, e para tanto nos valeremos das lições da pedagoga Vera Candau, é possível (e recomendável) concluir que a educação em direitos possui três metas:60 1ª) Formação de sujeitos de direito: pois a maior parte dos cidadãos não tem consciência de seus direitos e “consideram que os direitos são dádivas de determinados políticos ou governos”. 2ª) Favorecer o processo de empoderamento: aqui, o foco da EDH deve ser principalmente aos atores sociais que tiveram menos poder na sociedade.61 3ª) Processos de transformação necessários para a construção de sociedades verdadeiramente democráticas e humanas: “educar para o nunca mais”, para resgatar a memória, romper a cultura do silêncio e da impunidade. Como se vê, a educação em direitos, tal como toda e qualquer educação, deve visar à ação, à transformação social. E esse assunto não 59

O carioca Nei Lopes resume essa necessidade em um samba engraçado e que tem tudo a ver com o papel do defensor público no que toca à linguagem. Aliás, na letra é feita referência a um “defensor”, e possivelmente o compositor se referia ao defensor público, ao mesmo tempo em que se menciona “desembargador” em um contexto que deixa entender tratar-se de uma crítica ao tradicional formalismo do Judiciário. Confira-se um trecho: “Felicidade passou no vestibular/E agora tá ruim de aturar/Mudou-se pra Faculdade de Direito/E só fala com a gente de um jeito/Cheio de preliminar (é de amargar)/Casal abriu, ela diz que é divórcio/Parceria é litisconsórcio/Sacanagem é libidinagem e atentado ao pudor/Só fala cheia de subterfúgios/Nego morreu, ela diz que é “de cujus”/Não agüento mais essa Felicidade/Doutor defensor/(só mesmo um Desembargador)...”. O nome da música é Justiça Gratuita.

60

Educação em direitos humanos: questões pedagógicas, Op. Cit., p. 289-290.

61

Nessa linha, é necessário que a educação em direitos se preocupe que essa camada social entenda minimamente os porquês da opressão. Um exemplo pode ser ilustrado na letra ‘Saudosa Maloca’, de Adoniran Barbosa: “Mais, um dia/nois nem pode se alembrá/Veio os home cas ferramentas/O dono mandô derrubá/Peguemos tudo as nossas coisa/E fumos pro meio da rua/Preciá a demolição/ Que tristeza que nóis sentia/Cada táuba que caía/Duia no coração/Mato Grosso quis gritá/Mas em cima eu falei:/Os homi tá cá razão/Nós arranja outro lugá/Só se conformemos quando o Joca falou:/”Deus dá o frio conforme o cobertô”.


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pode ser abordado deixando de lado o seu maior expoente, Paulo Freire. Nas lições do Mestre, É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação (...). A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de psico-análise histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida.62

O mais curioso é que o exemplo de Humanista que foi não impediu Paulo Freire de exortar um direito que talvez falte nas Constituições mundiais: o direito à raiva. O mais fantástico é que ele nos convence, nem poderia ser diferente. Após visitar um certo local do Nordeste, Paulo Freire ouviu de um morador o seguinte: “Os moradores de toda esta redondeza ‘pesquisam’ no lixo o que comer, o que vestir, o que os mantenha vivos”. E refletiu: “Foi desse horrendo aterro que há dois anos uma família retirou de lixo hospitalar pedaços de seio amputado com que preparou seu almoço domingueiro”, e por isso pregou: Tenho direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga (...). Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no discurso cínico e ”morno”, que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim.63

Para finalizar este tópico, nada melhor do que citar dois pensamentos que bem resumem a necessidade da educação em direitos humanos: “No primeiro dia do novo ano letivo, todos os professores de uma escola particular receberam uma nota do diretor.” “Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem devera ver; Câmaras de gás construídas por engenheiros formados; Crianças envenenadas por médicos diplomados.

62

Pedagogia da indignação – cartas pedagógicas e outros escritos, Unesp, São Paulo, 2000, p. 84-5.

63

Idem, p. 78-9.


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Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados em colégios e universidades. Assim, tenho minhas dúvidas a respeito da Educação. Meu pedido é este: ajudem seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados. Aprender a ler, a escrever, aprender aritmética só são importantes quando servem para fazer nossos jovens mais humanos’”.64 Por fim, vale citar o belo pensamento de Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem aprender a amar”.65 Portanto, em um tempo em que inúmeros documentos nacionais e internacionais consagram a tutela dos direitos humanos e que ainda assim não obstam a sua violação, urge que as instituições jurídicas assumam o seu papel de agentes de transformação social. E esse papel compete, sobretudo, à Defensoria Pública, que pioneiramente foi agraciada com imposições legislativas que explicitam esse dever-poder e que possui contato diário com a população carente. Nesse aspecto a LC 80/94, com sua redação pós-LC 132/09, deve ser concebida como algo inovador posto que escancara algo que decorre de uma leitura progressista da Constituição. Cabe agora às Defensorias Públicas dar cumprimento a esse mandamento, assim como cabe aos defensores públicos inspirar sua Profissão como algo além dos gabinetes e dos processos judiciais, até porque isso até hoje não favoreceu qualquer mudança social considerável.

8. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES A educação em direitos, sobretudo em um país tão desigual como o nosso, figura como condição de um efetivo e transformador acesso à

64

Haim Ginott, O professor e a Criança, Bloch Editores, 1973, p. 215. É importante dizer que o livro é de autoria de um psicólogo e traz relatos de professores, ou seja, todas as situações de fato ocorreram.

65

Essa frase foi extraída de um documentário denominado Diversidade religiosa e direitos humanos, realizado no ano de 2006 pelo Centro Popular de Formação da Juventude, com apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Para mais informações, consulte www.entec.com.br.


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justiça, e por isso ele deve ser encarado pela Defensoria Pública como uma atribuição ordinária sua, e não como algo sujeito ao voluntarismo. Nessa perspectiva, a Lei Complementar Nacional n.º 132/09 merece elogios, posto que reconhece cabalmente esse instrumento de afirmação republicana da Defensoria Pública, além de ter o condão de explicitar tal tarefa como norma geral vinculante para todas as Defensorias. Além disso, a lei consagra uma distinção entre orientação jurídica e educação em direitos, distinção esta que também decorre de uma vontade constitucional de acesso à justiça. Assim, a fundamentação da educação em direitos é de ordem constitucional. Cabe agora às Defensorias assumir essa tarefa, e embora a educação em direitos seja alçada ao plano de dever jurídico do defensor público, esse mister só será eficazmente cumprido se o defensor compreender a importância da educação em direitos. Portanto, pensar em cumprir o dever de educar em direitos educando os defensores é dar um grande passo. Mais uma vez citando Eric Hobsbawm, não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e (...) por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.66

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Era dos extremos – o breve século XX, Op.Cit., p. 562


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Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública Ada Pellegrini Grinover

Professora Titular da Universidade de São Paulo

A CONSULTA Honram-me os ilustres advogados, Doutores Pierpaolo Cruz Bottini e Igor Tamasauskas, formulando consulta, com pedido de parecer, em nome da Associação Nacional de Defensores Públicos – ANADEP, a respeito da arguição de inconstitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação dada pela Lei n.º 11.488/2007, que conferiu legitimação ampla à Defensoria Pública para ajuizar a demanda, em discussão na Ação Direta de Inconstitucionalidade promovida pela Associação Nacional dos Membros do Ministério PúblicoCONAMP (ADIN n. 3943, Relatora Ministra Cármen Lúcia). Das cópias do processo encaminhadas pela Consulente, verifica-se que a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público-CONAMP ajuizou ação direta de inconstitucionalidade em relação ao inciso II do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação dada pela Lei n.º 11.488/2007, que conferiu legitimação ampla à Defensoria Pública para ajuizar a demanda, alegando violação aos artigos 5º, inciso LXXIV, e 134, caput, da Constituição Federal. Alega a Associação requerente que a norma impugnada, ao atribuir legitimação à Defensoria Pública para a ação civil pública, afetaria a atribuição do Ministério Público, impedindo-lhe de exercer plenamente as atividades que a Constituição lhe confere. Afirma, ainda, que a Defensoria Pública tem como objetivo institucional atender aos necessitados que comprovem, individualmente, carência financeira.


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Requer, consequentemente, a CONAMP a declaração da inconstitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei n.º 7.347/85, na redação da Lei n.º 11.488/07, ou, alternativamente, sua interpretação conforme a Constituição, para que, sem redução do texto, seja excluída da referida legitimação a tutela dos interesses ou direitos difusos, uma vez que, por disposição legal, seus titulares são pessoas indeterminadas, cuja individualização e identificação é impossível, impossibilitando a aferição de sua carência financeira. A Associação Nacional de Defensores Públicos – ANADEP – ingressou no processo como amicus curiae, manifestando-se pela constitucionalidade do inciso II do artigo 5º da Lei n.º 7.347/85, na redação da Lei n.º 11.488/07 e defendendo a legitimação irrestrita da Defensoria Pública à ação civil pública. Também obteve sua participação no processo como amicus curiae, esposando a mesma tese a favor da legitimação irrestrita da Defensoria Pública à ação civil pública, a Associação Nacional de Defensores Públicos da União – ANDPU. O Congresso Nacional, ao prestar suas informações, suscitou, preliminarmente, a ausência de pertinência temática em relação à requerente, defendendo a legitimação irrestrita da Defensoria Pública. O Presidente da República destacou, em suas informações, inexistir no bojo da lei hostilizada ofensa às atribuições do Ministério Público, afirmando que a adequada exegese do art. 134 da CF deve ser pautada pela assistência incondicional aos necessitados, ainda que, de forma indireta e eventual, essa atuação promova a defesa de direitos de indivíduos bem estabelecidos. Manifestaram-se a seguir a Advocacia do Senado Federal, que também se refere à ausência de pertinência temática em relação à requerente, bem como a Advocacia Geral da União – AGU, sendo que ambas opinaram, no mérito, pela constitucionalidade do dispositivo guerreado e pela legitimação irrestrita da Defensoria. No mesmo diapasão, a manifestação do Advogado Geral da União, quer em relação à ausência de pertinência temática em relação à requerente, quer no que toca ao mérito, pela constitucionalidade do dispositivo guerreado e pela legitimação irrestrita da Defensoria. Foram juntadas razões e documentos e, finalmente, o Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP – também requereu o ingresso no processo como amicus curiae, secundando as razões da Defensoria Pública.


Parecer sobre a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública 145

Finalmente, a Consulente apresenta os seguintes quesitos. QUESITOS 1 – A legitimação do Ministério Público à ação civil pública é exclusiva, nos termos da Constituição e da lei? 2 – A legitimação da Defensoria Pública para a ação civil pública afeta as atribuições do Ministério Público? 3 – A abertura da legitimação às ações coletivas significa um maior acesso à Justiça? 4 – Como deve ser interpretado o artigo 134 da CF, que atribui à Defensoria Pública a assistência jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados? 5 – Ainda que, ad argumentandum, se entenda que necessitados são apenas os economicamente carentes, a função precípua da Defensoria Pública impede que, de forma indireta e eventual, sua atuação se estenda à defesa de direitos de indivíduos bem estabelecidos? 6 – Qual o histórico da atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses ou direitos difusos? 7 – Infringe a Constituição o inciso II do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação dada pela Lei n.º 11.488/2007, que conferiu legitimação à Defensoria Pública? 8 – Deve-se dar ao dispositivo interpretação conforme a Constituição, para que seja excluída da referida legitimação a tutela dos interesses ou direitos difusos? Bem examinados os documentos encaminhados e analisada a questão submetida à minha apreciação, passo a proferir meu parecer. PARECER

1. RETROSPECTO HISTÓRICO Nos anos de 1970, a doutrina jurídica italiana introduzia no mundo de civil law a preocupação com a conceituação e a defesa dos direitos difusos, com um amplo debate sobre sua tutela processual, que empenhou


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autores como Mauro Cappelletti, Andrea Proto Pisani, Vittorio Denti, Vincenzo Vigoriti, Nicolò Trocker. Os primeiros estudos publicados no Brasil sobre a matéria foram os de José Carlos Barbosa Moreira (A ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos, 1977), Waldemar Mariz de Oliveira Junior (“Tutela jurisdicional dos interesses coletivos”, 1978) e Ada Pellegrini Grinover (“A tutela jurisdicional dos interesses difusos”, 1979). Esses estudos motivaram o debate que se instaurou no Brasil sobre a tutelabilidade judicial dos interesses supraindividuais, centrado sobretudo no problema da titularidade da ação, tendo sido apresentadas propostas concretas capazes de superar os esquemas rígidos da legitimação para agir, fixados pelo artigo 6º do CPC. Também se começou a entender que a indivisibilidade do objeto dos interesses difusos permitiria o acesso à justiça, sobretudo por parte do membro do grupo. Em 1982, realizou-se na Faculdade de Direito da USP o primeiro seminário sobre a tutela dos interesses difusos, coordenado por Ada Pellegrini Grinover. No encerramento, o desembargador Weiss de Andrade propôs, em nome da Associação Paulista de Magistrados, que os juristas ali reunidos formasse um grupo de estudos objetivando a apresentação de um anteprojeto de lei relativo à matéria. O grupo, formado por Ada Pellegrini Grinover, Cândido Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Junior, preparou um anteprojeto que, depois de apresentado à APAMAGIS, foi discutido em vários congressos e seminários jurídicos, ao longo do ano de 1983. No início de 1984, o Projeto foi levado ao Congresso Nacional pelo Deputado Flávio Bierrenbach, do PMDB paulista, acompanhado de uma justificativa assinada pelos próprios autores do anteprojeto. O projeto de lei tomou, no Congresso Nacional, o n.º 3.034/84. Paralelamente, integrantes do Ministério Público também discutiam o assunto. No XI Seminário Jurídico dos Grupos do Ministério Público de Estado de São Paulo, realizado em 1983 em São Lourenço, foi aprovada a proposta, formulada por A. M. de Camargo Ferraz, Edis Milaré e Nelson Nery Junior, no sentido da elaboração de uma proposta de lei sobre a ação civil pública. Embora os autores tenham declaradamente tomado como ponto de partida o anteprojeto do grupo constituído pela APAMAGIS, o resultado foi uma proposta que resultava no fortalecimento do MP (à


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época, parte integrante do Poder Executivo), em detrimento da sociedade civil.1 Em junho de 1984, o Procurador Geral da Justiça de São Paulo, Paulo Salvador Frontini, encaminhou o projeto elaborado pelo MP ao Presidente da Confederação Nacional do Ministério Público, Luiz Antonio Fleury Filho, para encaminhamento ao Congresso Nacional. Dada a ligação do MP com o executivo, à época, Fleury encaminhou o projeto ao Ministro da Justiça do Governo Figueiredo, Ibrahim Abi-Ackel que, após alguns estudos, enviou o projeto ao Congresso Nacional, com mensagem do Executivo. O projeto do Executivo, apesar de ter chegado ao Congresso depois, andou mais rapidamente do que o do Deputado Flávio Bierrenbach, tendo sido aprovado em meados de 1985, transformando-se na Lei n.º 7347/85, sancionada em julho pelo Presidente Sarney, sendo que o veto presidencial recaiu sobre a proteção de “qualquer outro interesse difuso”, contida no projeto do MP. Segundo afirmação constante de Edis Milaré, a lei aprovada manteve 90% do anteprojeto elaborado pelo grupo de trabalho da APAMAGIS. Vale a pena lembrar que, antes da promulgação da Lei n.º 7347/85, viera a lume a Lei n.º 6938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, prevendo o monopólio do MP para a ação de responsabilidade civil e criminal. Logo após, a Lei Complementar n.º 40 definiu como uma das funções institucionais do MP “promover a ação civil pública, nos termos da lei”, sendo seguida pela Lei Orgânica do Ministério Público estadual n.º 304, de 1982, que ampliou significativamente o leque de direitos difusos passíveis de defesa pela instituição. Mas, antes da Lei n.º 7347/85, não havia regras sobre o regime processual da “ação civil pública” – privativa do MP – nem tratamento da legitimação concorrente, da coisa julgada, dos controles sobre o exercício da ação. O minissistema brasileiro de processos coletivos, assim, foi moldado pela Lei n.º 7347/85, complementada pelo Código de Defesa do Consumidor.

1

Assim, expressamente, Rogério Bastos Arantes (Ministério Público e Política no Brasil. Editora Sumaré-IDESP-EDUC, 2002, p. 51-76,) analisa as posições do MP paulista, inicialmente pleiteando a titularidade exclusiva da ACP; depois, pela influência de Nelson Nery Junior, admitindo a cotitularidade das associações, mas ampliando o requisito da pré-constituição de seis meses (projeto original) para um ano; retirando a titularidade de outros entes públicos, prevista no projeto original, depois reintroduzida pelo Ministério da Justiça; criando o inquérito civil, exclusivo do MP, com poderes de requisição de certidões, informações, exames e perícias de qualquer organismo público ou particular, bem como prevendo a tipificação do crime consistente na recusa, retardamento ou omissão de dados técnicos requisitados pelo MP.


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Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, o então Presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, Flávio Bierrenbach, constituiu comissão, no âmbito do referido Conselho, com o objetivo de apresentar Anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor, previsto, com essa denominação, pelos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. A Comissão foi composta pelos seguintes juristas: Ada Pellegrini Grinover (coordenadora), Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe e Zelmo Denari. Durante os trabalhos de elaboração do anteprojeto, a coordenação foi dividida com José Geraldo Brito Filomeno, e a comissão contou com a assessoria de Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Eliana Cáceres, Marcelo Gomes Sodré, Mariângela Sarrubo, Nelson Nery Júnior e Régis Rodrigues Bonvicino. Também contribuíram com valiosos diversos promotores de Justiça de São Paulo. A comissão ainda levou em consideração trabalhos anteriores do CNDC, que havia contado com a colaboração de Fábio Konder Comparato, Waldemar Mariz de Oliveira Junior e Cândido Dinamarco. Finalmente a comissão apresentou ao ministro Paulo Brossard o primeiro anteprojeto, que foi amplamente divulgado e debatido em diversas capitais, recebendo críticas e sugestões. Desse trabalho conjunto, longo e ponderado, resultou a reformulação do anteprojeto, que veio a ser publicado no Diário Oficial (DO) de 4 de janeiro de 1989, acompanhado do parecer da comissão, justificando o acolhimento ou a rejeição das propostas recebidas. Nesse ínterim, diversos projetos legislativos haviam sido apresentados por vários parlamentares – aliás, já a partir da publicação da primeira proposta, em 1989, espelhando as diversas fases de amadurecimento pelas quais passou o trabalho. O projeto final foi finalmente apresentado, a pedido da comissão, pelo Deputado Michel Temer (Projeto de Lei n.º 1330/88). Ainda em 1988, o Deputado Geraldo Alkmin apresentou um substitutivo a um seu primeiro Projeto, que trazia algumas novidades com relação ao trabalho da comissão. Foi então que o Congresso Nacional, com fundamento no art. 48 do Ato das Disposições Transitórias, constituiu Comissão Mista destinada a elaborar Projeto do Código do Consumidor. Presidiu a Comissão Mista o Senador José Agripino Maia, sendo seu VicePresidente o Senador Carlos Patrocínio e Relator o Deputado Joaci Góes. Distinguindo com sua confiança os membros da Comissão do CNDC, por intermédio de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamin e Nelson Nery Júnior, o relator da comissão


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incumbiu-os de preparar uma consolidação dos trabalhos legislativos existentes, a partir do quadro comparativo organizado pela PRODASEN. Verificados, assim, os pontos de convergência, pudemos preparar um novo texto consolidado, que tomou essencialmente por base o Projeto Michel Temer – que espelhava a fase mais adiantada dos trabalhos da comissão – e o Substitutivo Alkmin, que oferecia algumas novidades interessantes. Para debate dos pontos polêmicos do Código e apresentação de sugestões, a Comissão Mista realizou ampla audiência pública, colhendo o depoimento e as sugestões de representantes dos mais variados segmentos da sociedade: indústria, comércio, serviços, governo, consumidores, cidadãos. Finalmente, o Projeto da Comissão Mista, publicado a 4 de dezembro de 1989, recebeu novas emendas, até ser aprovado pela própria comissão e, a seguir, pelo Plenário durante a convocação extraordinária do Congresso, no recesso de julho de 1990. O Projeto acabou sendo sancionado, com vetos parciais, e publicado a 12 de setembro de 1990, como Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990. Foi assim que o Código de Defesa do Consumidor veio coroar o trabalho legislativo, ampliando o âmbito de incidência da Lei da Ação Civil Pública, ao determinar sua aplicação a todos os interesses difusos e coletivos, e criando uma nova categoria de direitos ou interesses, individuais por natureza e tradicionalmente tratados apenas a título pessoal, mas conduzíveis coletivamente perante a justiça civil, em função de sua homogeneidade e da origem comum, que denominou direitos individuais homogêneos.

2. A POSTURA DO MP: DO MONOPÓLIO DA ACÃO CIVIL PÚBLICA À SUPRESSÃO DA LEGITIMAÇÃO DE OUTROS ÓRGÃOS PÚBLICOS Conforme visto na nota n.º 1 supra, Rogério Bastos Arantes2 descreve minuciosamente, com o apoio de documentos, a postura do MP 2

ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e Política no Brasil. Editora Sumaré-IDESP-EDUC, 2002, p. 51-76.


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paulista quando da preparação do projeto de lei ministerial que resultaria na promulgação da Lei n.º 7.347/75. Ouça-se o autor: O processo que levou à promulgação da Lei da ação civil pública em 1985, que descreveremos a seguir, mostra claramente que o Ministério Público estava disposto a se transformar no defensor desses novos direitos, nem que para isso tivesse que afastar a própria sociedade civil.3 (grifei)

E o autor relata4: Nos documentos de apresentação e justificativa dos respectivos projetos é possível perceber as diferentes intenções quanto à regulamentação da defesa dos direitos coletivos. Enquanto os juristas salientavam que “a crescente conscientização quanto à necessária tutela jurisdicional dos interesses difusos tem estimulado diversas iniciativas, quase todas no sentido de atribuir-se legitimação extraordinária às associações, para a defesa dos interesses coletivos”, a carta de Fleury ao ministro da Justiça afirmava que, caso o projeto viesse a ser convertido em lei, “viria coroar as recentes conquistas alcançadas pelo Parquet com a edição da Lei Complementar 40, de 14 de dezembro de 1981, que mais reafirma o seu papel de legítimo tutor dos interesses indisponíveis da sociedade”.

E mais: Segundo Fiorillo5, citando documentos do arquivo pessoal de Nelson Nery Jr. (integrante do Ministério Público paulista e um dos autores do anteprojeto), “em 5 de setembro de 1984 o prof. Nelson Nery Jr. teve a oportunidade de, em documento encaminhado ao DAL (Departamento de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça), fazer algumas observações visando ao aprimoramento do anteprojeto revisto e adaptado pelo Ministério da Justiça, considerações estas que, conforme se verá, foram incorporadas à Lei 7.347/85”. (.......................................................................................) Uma outra passagem importante do documento, descrita por Fiorillo, menciona a ocorrência de uma reunião em Brasília, na qual os

3

ARANTES, op. cit., p. 54.

4

ARANTES, op. cit., p. 59-63.

5

FIORILLO, op. cit., p.197.


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participantes teriam retirado do projeto um dos pontos mais caros aos juristas, introduzido para incentivar a participação das associações civis na defesa judicial de direitos difusos e coletivos. Corrigindo-se a tempo, Nery Jr. evitou o que seria uma afronta aos defensores da proposta associativista, maior do que a que ocorreu depois da votação da lei no Congresso (veremos esse ponto adiante). (–grifei)

E finalmente, com relação à retirada de legitimação de outros órgãos públicos, complementa Rogério Bastos Arantes6: O Ministério Público foi audacioso também ao propor a retirada da legitimação para agir da União, estados, municípios, autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista, mas o Ministério da Justiça tratou de reincorporá-los ao projeto que foi encaminhado ao Congresso Nacional. É provável que aqui tenha pesado, da parte do Ministério Público, o receio da concorrência com outras entidades públicas. Como o projeto da comissão de juristas vinculava a participação desses órgãos à existência de finalidade institucional específica, pode-se afirmar que a intenção era abrir terreno para organismos estatais especializados na defesa de certos direitos difusos, na linha do que preconizava Mauro Cappelletti em seu famoso artigo. Evidentemente, num contexto em que soluções como a do Ombudsman sueco ganhavam cada vez mais simpatia, pode-se imaginar que a criação desses organismos públicos altamente especializados introduziria uma indesejável concorrência para o Ministério Público, ameaçando sua posição de poder duramente conquistada ao longo dos anos. Ao contrário, o Parquet se constituiria no único órgão público capaz de ajuizar ações coletivas se a legitimidade de agir fosse estendida apenas às associações civis, tal como constava do seu anteprojeto de lei. No final, o Ministério da Justiça fez retomar ao projeto os legitimados que o Ministério Público havia suprimido, contrariando sua intenção de ser o único órgão estatal a ter legitimidade para usar a ação civil pública. (grifei)

Fica claro, assim, que o verdadeiro intuito da requerente, ao propor a presente ADIN, é simplesmente o de evitar a concorrência da Defensoria

6

ARANTES, op. cit., p. 71.


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Pública, como se no manejo de tão importante instrumento de acesso à justiça e de exercício da cidadania pudesse haver reserva de mercado. 3. A LEGITIMAÇÃO CONCORRENTE DO MP À AÇÃO CIVIL PÚBLICA A Constituição Federal não prevê exclusividade do Ministério Público para a propositura da ação civil pública. Após enumerar, no art. 129, as funções institucionais do MP – dentre as quais a de “promover (...) a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (inc. III) – o legislador constitucional teve o cuidado de destacar expressamente, no par. 1º do mesmo artigo: Par. 1º: A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, segundo o disposto nesta Constituição e na lei. (grifei)

E a lei – exatamente a Lei n.º 7.347/85 – legitimou à ação civil pública a União, o Estado, o Distrito Federal e o Município, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações (art. 5º, caput), e agora, pela Lei n.º 11.488/2007, a Defensoria Pública. A essa lista ainda adiciona-se a legitimidade da Ordem dos Advogados do Brasil, a teor da Lei n. 8.906/94 (art. 54, inc. XIV). Assim sendo, a legitimação do MP não é exclusiva, mas concorrente e autônoma, no sentido de que cada órgão ou entidade legitimados podem mover a demanda coletiva, independentemente da ordem de indicação. Por outro lado, não se percebe como essa legitimação, concorrente e autônoma, poderia afetar aquela do MP, impedindo ao parquet exercer plenamente suas atividades, conforme alega a requerente em relação à Defensoria Pública. A inclusão desta no rol dos diversos legitimados em nada interfere com o pleno exercício das atribuições do MP, que continua a detê-las. E tanto assim é que diversos órgãos públicos que se manifestaram sobre essa demanda chegam à conclusão de falta de pertinência temática em relação à requerente. A nova norma legal permite, simplesmente, que a Defensoria Pública venha somar esforços na conquista dos interesses ou direitos difusos,


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coletivos e individuais homogêneos da sociedade, podendo inclusive agir em litisconsórcio com o Ministério Público. Por outro lado, a ampliação da legitimação à ação civil pública representa poderoso instrumento de acesso à justiça, sendo louvável que a iniciativa das demandas que objetivam tutelar interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos seja ampliada ao maior número possível de legitimados, a fim de que os chamados direitos fundamentais de terceira geração – os direitos de solidariedade – recebam efetiva e adequada tutela. Lembre-se, a propósito, do que já vinha estampado na Exposição de Motivos anexada à Mensagem n.º 123, de 25/02/85, encaminhando o Projeto de Lei que resultaria na Lei n.º 7.347/85: A ação civil pública para defesa de interesses coletivos encontra-se regulada apenas na Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que disciplinou a política nacional do meio ambiente (art. 14, par. 1º). A lei, porém, só regulamenta a proteção jurisdicional do meio ambiente, deixando de lado os demais interesses difusos, e concedendo exclusividade ao Ministério Público como titular da ação. Estendendo-se a legitimação a outras entidades, aqueles interesses serão defendidos com a eficácia exigida pela sua importância. Parece não haver discrepância em torno dessa exigência. (grifei)

Acesso à justiça: este é o fundamento para uma legitimação ampla, articulada, composta para as ações em defesa de interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Não se pode olvidar, aqui, a lição clássica de Mauro Cappelletti, referência obrigatória na matéria, que inseriu a defesa dos direitos difusos na segunda onda renovatória do acesso à justiça7. E é oportuno lembrar as palavras de processualistas contemporâneos, como Carlos Alberto de Salles, advertindo sobre a dispersão e a tendência à sub-representação dos interesses difusos e coletivos: As opções relativas à legitimidade para defesa dos interesses difusos e coletivos devem ter por norte a maior ampliação possível do acesso à 7

- CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet, Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 31


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justiça. Deve-se ter em mente que, tendo em vista a anatomia social dos interesses em questão, o problema será sempre de sub-representação, não o de um número exacerbado de litígios jurisdicionalizados. Cabe, dessa forma, ampliar ao máximo a porta de acesso desses interesses à justiça e, ainda, criar mecanismos de incentivo para sua defesa judicial.8 (grifei)

4. AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA. ECONOMICAMENTE NECESSITADOS E NECESSITADOS DO PONTO DE VISTA ORGANIZACIONAL O art. 134 da CF não coloca limites às atribuições da Defensoria Pública. O legislador constitucional não usou o termo exclusivamente, como fez, por exemplo, quando atribuiu ao Ministério Público a função institucional de “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” (art. 129, inc. I). Desse modo, as atribuições da Defensoria podem ser ampliadas por lei, como, aliás, já ocorreu com o exercício da curadoria especial, mesmo em relação a pessoas não economicamente necessitadas (art. 4º, inc. VI, da Lei Complementar n.º 80/94). O que o art. 134 da CF indica, portanto, é a incumbência necessária e precípua da Defensoria Pública, consistente na orientação jurídica e na defesa, em todos os graus, dos necessitados, e não sua tarefa exclusiva. Mas, mesmo que se pretenda ver nas atribuições da Defensoria Pública tarefas exclusivas – o que se diz apenas para argumentar -, ainda será preciso interpretar o termo necessitados, utilizado pela Constituição. Já tive oportunidade de escrever, em sede doutrinária, a respeito da assistência judiciária (na terminologia da Constituição de 1988, defesa) aos necessitados: Pois é nesse amplo quadro, delineado pela necessidade de o Estado propiciar condições, a todos, de amplo acesso à justiça que eu vejo situada a garantia da assistência judiciária. E ela também toma uma dimensão mais ampla, que transcende o seu sentido primeiro, clássico e tradicional. Quando se pensa em assistência judiciária, logo se pensa na assistência aos necessitados, aos economicamente fracos, aos “minus habentes”. 8

- SALLES, Carlos Alberto. Políticas Públicas e legitimidade para defesa de interesses difusos e coletivos, Revista de Processo, n. 121, mar. 2006, p. 50


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É este, sem dúvida, o primeiro aspecto da assistência judiciária: o mais premente, talvez, mas não o único.9 (grifei)

Isso porque existem os que são necessitados no plano econômico, mas também existem os necessitados do ponto de vista organizacional. Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores, os usuários de serviços públicos, os usuários de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente, etc. E tanto assim é que se afirmava, no mesmo estudo, que a assistência judiciária deve compreender a defesa penal, em que o Estado é tido a assegurar a todos o contraditório e a ampla defesa, quer se trate de economicamente necessitados, quer não. O acusado está sempre em uma posição de vulnerabilidade frente à acusação. Dizia eu: Não cabe ao Estado indagar se há ricos ou pobres, porque o que existe são acusados que, não dispondo de advogados, ainda que ricos sejam, não poderão ser condenados sem uma defesa efetiva. Surge, assim, mais uma faceta da assistência judiciária, assistência aos necessitados, não no sentido econômico, mas no sentido de que o Estado lhes deve assegurar as garantias do contraditório e da ampla defesa.10 (grifei)

Em estudo posterior, ainda afirmei surgir, em razão da própria estruturação da sociedade de massa, uma nova categoria de hipossuficientes, ou seja, a dos carentes organizacionais, a que se referiu Mauro Cappelletti, ligada à questão da vulnerabilidade das pessoas em face das relações sociojurídicas existentes na sociedade contemporânea.11 Da mesma maneira deve ser interpretado o inc. LXXIV do art. 5º da CF: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (grifei). A exegese do termo constitucional não deve limitar-se aos recursos econômicos, abrangendo recursos organizacionais, culturais, sociais. 9

GRINOVER, Ada Pellegrini. Assistência Judiciária e Acesso à Justiça, in Novas Tendências do Direito Processual, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2ª ed., 1990, p. 245.

10

GRINOVER, op. cit., p. 246.

11

GRINOVER, Ada Pellegrini, Acesso à justiça e o Código de Defesa do Consumidor, in O Processo em Evolução, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 116-117.


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Saliente-se, ainda, que a necessidade de comprovação da insuficiência de recursos se aplica exclusivamente às demandas individuais, porquanto, nas ações coletivas, esse requisito resultará naturalmente do objeto da demanda – o pedido formulado. Bastará que haja indícios de que parte ou boa parte dos assistidos sejam necessitados. E, conforme já decidiu o TRF da 2ª Região, nada há nos artigos 5º, LXXIV e 134 da CF que indique que a defesa dos necessitados só possa ser individual12. Seria até mesmo um contrassenso a existência de um órgão que só pudesse defender necessitados individualmente, deixando à margem a defesa de lesões coletivas, socialmente muito mais graves. Conforme bem observou Boaventura de Souza Santos, daí surge “a necessidade de a Defensoria Pública, cada vez mais, desprender-se de um modelo marcadamente individualista de atuação”.13 Assim, mesmo que se queira enquadrar as funções da Defensoria Pública no campo da defesa dos necessitados e dos que comprovarem insuficiência de recursos, os conceitos indeterminados da Constituição autorizam o entendimento – aderente à ideia generosa do amplo acesso à justiça – de que compete à instituição a defesa dos necessitados do ponto de vista organizacional, abrangendo portanto os componentes de grupos, categorias ou classes de pessoas na tutela de seus interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

5. A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA TUTELA DOS INTERESSES OU DIREITOS DIFUSOS Mesmo antes da edição da Lei n.º 11.488/07, que atribuiu expressamente legitimação à Defensoria Pública para a ação civil pública (inciso II do artigo 5º da Lei n.º 7.347/85), a Defensoria Pública vinha ajuizando demandas coletivas, com fundamento no art. 82, III, do Código de Defesa do Consumidor, c/c o art. 21 da Lei da Ação Civil Pública. Com efeito, o inciso III do art. 82 do CDC, inserido em seu Título III, confere legitimação para agir às entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, que 12

Apelação cível n. 2004.32.00.005202-7/AM.

13

SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à sociologia da administração da justiça, Revista de Processo, São Paulo, n. 37, jan-mar. 1985, p. 150.


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incluam entre seus fins a defesa de interesses e direitos protegidos por este Código. E, por sua vez, o art. 21 da LACP prescreve: Art. 21: Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. (grifei)

Assim, a Defensoria Pública ajuizou diversas demandas coletivas, sendo sua legitimação reconhecida pelos tribunais. Citem-se as seguintes decisões: PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSE COLETIVO DOS CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA. 1 – A Defensoria tem legitimidade, a teor do art. 82, III, da Lei 8.078/90 (Cód. de Defesa do Consumidor), para propor ação coletiva visando à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores necessitados.14 AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DEFENSORIA PÚBLICA – LEGITIMIDADE ATIVA – CRÉDITO EDUCATIVO. Agravo de Instrumento. Ação Civil Pública. Crédito Educativo. Legitimidade ativa da Defensoria Pública para propô-la. Como órgão essencial à função jurisdicional do Estado, sendo, pois, integrante da Administração Pública, tem a Assistência Judiciária legitimidade autônoma e concorrente para propor ação civil pública, em prol dos estudantes carentes, beneficiados pelo Programa do Crédito Educativo.15

Aliás, o próprio Ministério Público já defendeu a legitimação da Defensoria Pública às ações coletivas: assim o fez o Ministério Público Federal, no RESP 555.111, Rel. Min. Castro Filho, julgado em 20/04/2006. E, no Agravo de Instrumento n.º 2006.01.00.038978-5, julgado pelo TRF da 1ª Região, julgado aos 6/07/2006, nos termos do parecer favorável do MP, in verbis: Ora, sendo a Defensoria Pública o órgão estatal destinado à promoção do direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV) em

14

TJRS, Acórdão n. 70014401784/2006, Apel. Cível, 4a Câm., relator Araken de Assis, j.12.04.06.

15

- TJRJ – AI 3274/96 – Vassouras – 2ª Câm., relator Luiz Odilon Bandeira, j. 25.02.97.


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relação aos necessitados (CF, art. 5º, LXXIV, c/c art. 134), certamente a ela é permitido valer-se de quaisquer medidas judiciais adequadas à defesa dos direitos metaindividuais das pessoas carentes, podendo, assim, dispor da ação civil pública como legítimo instrumento de atuação. (grifei)

O Superior Tribunal de Justiça manifestou-se no mesmo sentido: O NUDECON, órgão especializado, vinculado à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, tem legitimidade ativa para propor ação civil pública objetivando a defesa dos interesses da coletividade de consumidores que assumiram contratos de arrendamento mercantil, com cláusula de indexação monetária atrelada à variação cambial.16

Outro precedente do STJ diz respeito à legitimação da Procuradoria de Assistência Judiciária do Estado de São Paulo, que então exercia as funções de Defensoria Pública, criada só em 200617. E a Ministra Nancy Andrighi, em voto proferido no Recurso Especial n.º 555.111, havia afirmado: De fato, se a Constituição impõe, por um lado, ao Estado o dever de promover a defesa dos consumidores (art. 5º, LXXIV) e de prestar assistência jurídica integral (e aqui repiso o integral) aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV) e, por outro, que a execução de tal tarefa cabe à Defensoria Pública (cfr. Art. 134 da CF c/c o art. 4º, inciso XI, da Lei Complementar n. 80/94), o âmbito de atuação desta não pode ficar restrito, pela vedação ao manejo de tão importante instrumento de tutela do direito do consumidor e de fortalecimento da democracia e da cidadania como a ação civil pública, sob pena de não se dar máxima efetividade aos referidos preceitos constitucionais. (O itálico é do texto; os grifos são nossos).

Finalmente, o Supremo Tribunal Federal, na ADIN n.º 558/RJ, proposta contra a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, destacou, pelo voto do Min. Sepúlveda Pertence:

16 17

STJ, REsp. 555.111/RJ, 3ª Turma, rel. Castro Filho, j.06/09/06.

STJ, REsp. 181.580/SP, 3ª Turma, rel. Castro Filho, j.09/12/03.


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(...) a própria Constituição da República giza o raio de atuação institucional da Defensoria Pública, incumbindo-a da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos necessitados. Daí, contudo, não se segue a vedação de que o âmbito da assistência judiciária da Defensoria Pública se estenda aos patrocínio dos ‘direitos e interesses (...) coletivos dos necessitados, a que alude o art. 176 da Constituição do Estado: é óbvio que o serem direitos e interesses coletivos não afasta, por si só, que sejam necessitados os membros da coletividade. Daí decorre a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o impedimento a que os seus serviços se estendam ao patrocínio de outras iniciativas processuais em que se vislumbre interesse social que justifique esse subsídio estatal.” (grifei).

Observe-se, ainda, que a atuação da Defensoria Pública tem sido intensa no campo da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Selecionamos algumas ações civis públicas para a tutela de interesses difusos promovidas pela Defensoria Pública:18 Processo n° 2006.61.00.027802-9, da 7ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos do Ministério Público da União. Na ação civil pública ajuizada pela DPU, foi parcialmente concedida a liminar, sendo posteriormente suspensa sua execução pela Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Processo n.° 2007.61.00.000433-5, da 23ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos do Agência Nacional de Saúde Suplementar. Na ação civil pública ajuizada pela DPU, foi concedida a liminar, havendo notícias, inclusive de que inúmeros candidatos conseguiram inscrever-se graças à liminar obtida. Processo n.° 2007.61.00.001723-8, da 7ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão

18

Isso porque, conforme se viu, o pedido alternativo da requerente refere-se à exclusão da tutela dos interesses ou direitos difusos da legitimação da Defensoria Pública.


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de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos do Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Na ação civil pública ajuizada pela DPU, foi concedida a liminar, sendo posteriormente suspensa sua execução pela Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Processo n.° 2007.61.00.001722-6, da 10ª Vara.Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos da Câmara dos Deputados. Pedido liminar indeferido. Processo n.° 2007.61.00.03010-3, da 25ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos da Agência Nacional de Aviação Civil. O juízo entendeu que o pedido liminar perdeu o objeto. Processo n.° 2007.61.00.002795-5, da 1ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, que analisa a ausência de previsão de isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para provimento de cargos da Câmara dos Deputados. Pedido liminar indeferido. Processo n.° 2007.61.00.010539-5, da 13ª Vara Federal Cível Subseção Judiciária de São Paulo, mandado de segurança coletivo em que se pleiteia a isenção da taxa de expedição do Registro Nacional de Estrangeiro para os hipossuficientes. O pedido liminar foi deferido. Processo n.° 2007.61.00.011093-7, da 15ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de São Paulo, sobre os expurgos inflacionários do Plano Bresser. O pedido liminar foi deferido, com efeitos em todo o território nacional, visando a impedir que os bancos se desfaçam dos documentos comprobatórios dos valores depositados pelos consumidores entre junho/ julho 1987. Processo n.º 2007.51.01.017691-7, da 11ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, visando à isenção de taxa de inscrição para hipossuficientes no concurso público para Procurador da Fazenda Nacional. Liminar parcialmente deferida. Processo n.º 2007.51.01.020475-5, da 9ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, em que se pleiteia leite materno para as pessoas hipossuficientes.


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Processo n.º 2007.51.01.0171051, da 8ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Rio de Janeiro, visando ao conserto de aparelhos em hospitais públicos. Processo n.º 2007.34.00.003387-9, da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, sobre a correção das provas de redação de todos os candidatos às vagas reservadas a deficientes fisicos no 4° concurso para provimento de cargos para o Tribunal Regional Federal e Justiça Federal da 1ª Região. Muitas outras demandas existem, intentadas pela Defensoria Pública, em defesa de interesses difusos.19 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ Licenciamento ambiental: Pedido principal: declaração de nulidade do licenciamento ambiental para construção da termelétrica a carvão mineral MPX no complexo do Pecém. Pedido liminar: obrigação de que a empresa requerida se abstenha de dar início às obras até o desfecho da causa (liminar concedida). Juízo: comarca de São Gonçalo do Amarante-CE. Fornecimento de medicamentos: Pedido: fornecimento de medicamento para tratamento de insuficiência pulmonar a todos os pacientes que necessitem desta medicação. Concessão de tutela antecipada Juízo: comarca de Crato-CE. Observação: ação proposta, conjuntamente, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Estado do Ceará. Idem: Pedido: obrigação de fornecer medicamentos relativos ao mal de Alzheimer a todos os cidadãos residentes em Tabuleiro do Norte-CE, especialmente o remédio Excelon 1.5 mg (com pedido de antecipação de tutela). Juízo: comarca de Tabuleiro do Norte-CE. Requeridos: Município de Tabuleiro do Norte e estado do Ceará. Observação: ação proposta, em conjunto, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Estado do Ceará. Acesso aos deficientes físicos no sistema de transporte público: Pedido: obrigação das empresas de transporte de garantir acesso livre e irrestrito, sem cobrança de tarifa, aos deficientes físicos (com pedido liminar). Juízo: comarca de Fortaleza-Ceará. Requerido: prefeitura municipal de Fortaleza e empresas Concessionárias e/ou permissionárias de serviço de transporte urbano coletivo de Fortaleza. Pedido: previsão de verba orçamentária para criação e manutenção de um abrigo para crianças e adolescentes em situação de risco no município, que não conta com estabelecimento desta natureza. Juízo: comarca de Tianguá-CE. Requerida: Prefeitura do Município de Tianguá. Alimentação de menores: Pedido: obrigação ao município de prestação do serviço de abrigo domiciliar, com fornecimento de alimentos e aquisição de infra-estrutura adequada para o acolhimento de crianças e adolescentes que necessitem do serviço (com pedido liminar). Juízo: comarca de Iguatu-CE. Requerido: Município de Iguatu. Ilegalidade de cobrança de tarifa de coleta de esgoto: Pedido: obrigação de não fazer, consistente na abstenção de cobrança de tarifa irregular pela coleta e tratamento de esgoto domiciliar, industrial, hospitalar ou similar. Juízo: comarca de Fortaleza. Requerida: Cia. de Água e Esgoto do Ceará. Regularização do fornecimento de água: Pedido: obrigação de realizar a captação da água fornecida à população em mananciais adequados, devidamente isolados de toda atividade que possa contaminar a água, tornando-a inadequado ao uso humano, realizar a adução da água por adutoras tecnicamente adequadas; construir uma estação de tratamento de água e construir reservatórios de água. Juízo: comarca de Icapui-CE. Requerido: serviço autônomo de água e esgoto – autarquia municipal – e Município de Icapui. Observação: ação proposta, em conjunto, pela Defensoria 19


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Pública e pelo Ministério Público do Estado do Ceará. Interdição de cadeia pública: Pedido: interdição da cadeia pública de Tianguá-CE até a realização de reforma que permita a sua utilização de forma compatível com a finalidade a que se destina, garantindo-se a segurança e a integridade física dos presos e policiais militares. Juízo: comarca de Tianguá-CE. Requerido: Estado do Ceará. Corte do fornecimento de energia elétrica: Pedido: declarar a ilegalidade do corte de energia, em caso de acusação unilateral de fraude pela concessionária; declarar a inexistência de dívida em caso de não comprovação da existência ou autoria da fraude, de aferição unilateral da fraude e de uso dos critérios de cálculos ilegais previstos na Resolução 456/00 da ANEEL; declarar a nulidade dos termos de confissão de dívida assinados pelos consumidores nessas condições e contemplá-los com a devolução em dobro dos valores eventualmente pagos (art. 42, CDC); condenar a concessionária à utilização dos critérios delineados na petição inicial para o cálculo da dívida pertinente ao período de consumo irregular, em substituição aos previstos na Resolução ANEEL 456/00, sob pena de multa diária. Juízo: 29ª Vara Cível de Fortaleza. Requerido: COELCE – Companhia Energética do Ceará. Meio ambiente: Termo de ajustamento de conduta entre a Defensoria Pública e o Ministério Público e a empresa Cialne (Companhia de Alimentos do Nordeste) através do qual a empresa assumiu a obrigação de desenvolver projeto técnico para tratamento de resíduos denominados “cama de frango” visando à eliminação de odores e a não contaminação do solo e água. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO Meio ambiente. Pedido: obrigação de fazer consistente em não construir um cemitério em área de preservação permanente (APP); anulação do licenciamento ambiental realizado junto à CETESB. Juízo: Vara da Fazenda Pública da comarca de São Paulo-SP. Requeridos: Companhia de Tecnologia Ambiental – CETESB e particulares Idem: Cultivo de eucaliptos pelas empresas de papel e celulose e meio ambiente: Pedido: obrigação das empresas de reflorestamento ambiental demandadas de confeccionarem estudos de impacto ambiental, com relatórios de impacto ambiental (EIA/RIMA) e audiências públicas, para os plantios já consumados e para os projetos a serem implantados; obrigação de cortarem todas as árvores exóticas plantadas em áreas de preservação permanente – APPs ou em áreas de preservação ambiental – APAs; recomposição da floresta nativa atingida pela expansão da monocultura de eucalipto; condenação do município de Paraitinga de instituição de zoneamento agroflorestal (dentre outros). Liminar concedida e mantida pelo Tribunal de Justiça. Direito à moradia: Pedido: obrigação de construir unidades de habitação de Interesse Social – HIS no Jardim Edith, assegurando-se o reassentamento definitivo das famílias atingidas por obras (complexo viário) previstas para o local (liminar concedida). Observação: ação proposta em conjunto com a Associação de Moradores do Jardim Edith. Coleta seletiva de lixo: obrigação à Prefeitura de prestar assistência jurídica, administrativa e operacional para a constituição de associações de catadores de material reciclável não organizadas regularmente em cooperativas; criar um plano de implementação progressiva de coleta seletiva de resíduos sólidos (dentre outros). Liminar concedida e confirmada pelo Tribunal de Justiça. Observação: ação proposta em conjunto com o Instituto GEA – Ética e Meio Ambiente, PÓLIS – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais e Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos Regularização fundiária e urbanística: edição de normas simplificadas e especiais da ZEIS em que a Favela o Tanque está inserida (140 famílias); proceder a concessão especial de uso individual ou coletiva em favor dos ocupantes do imóvel (liminar concedida e juntada, confirmação do Tribunal). Financiamento público: Pedido: Inscrição dos ocupantes do imóvel em linhas de financiamento


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público para aquisição de imóveis que se possam caracterizar como de interesse social. Defensoria Pública de Jundiaí: pedido de não interrupção do fornecimento de água de esgoto no condomínio de baixa renda denominado Morada das Vinhas. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Meio ambiente e direito a saúde: derramamento de óleo: Pedido: obrigação da empresa de arcar com os procedimentos necessários para o restabelecimento da saúde das vítimas; pagamento de pensão para a garantia da sobrevivência. Juízo: comarca de Itaboraí. Requerida: Ferrovia Centro Atlântica S.A.. Observação: ação proposta em conjunto com a Associação de Moradores do Porto de Caxias Vítimas dos danos causados por derramamento de óleo da empresa Ferrovia Centro Atlântico S.A.. Idem: Poluição de rio: objetivo de conter as enchentes do rio Pavuninha, evitando a exposição dos moradores da região a doenças e contaminações. Pedido: reassentamento das famílias que se encontram em situação de risco (casas construídas sobre o rio e na sua margem); realização de dragagem no rio; desenvolvimento de programas de conscientização da população para não jogarem lixo no rio, instalação de rede de esgoto. Juízo: comarca da capital. Requeridos: Município e Estado do Rio de Janeiro. Observação: ação proposta em conjunto com a Associação dos Sofredores do Loteamento de Curicica Direitos sociais: saúde e assistência a autistas: Pedido: criação pelo Estado de unidades especializadas para tratamento de saúde, educacional e assistencial aos autistas; Juízo: Vara da Fazenda Pública da capital; Requerido: Estado do Rio de Janeiro; Observação: ação proposta em conjunto com a Associação de Pais e Amigos de Pessoas Autistas – Mão Amiga. Direito à saúde: epidemia de dengue: Contratação de agentes de endemia até o fim da epidemia de dengue no município do Rio de Janeiro; intensificação da política de controle da dengue; eliminação dos focos da dengue; fornecimento de repelentes à população nos postos de saúde; realização de exame de sorologia nos pacientes da rede pública e privada. Juízo: Vara da Fazenda Pública da Capital. Requeridos: Estado e Município do Rio de Janeiro. Igualdade de condições em concurso público: Pedido: realização de novo teste de aptidão física às candidatas reprovadas na respectiva etapa do concurso do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro com aplicação de índices e tempos específicos para o sexo feminino, garantindo-se a igualdade substancial entre homens e mulheres (pedido liminar); declaração de inconstitucionalidade de item do edital do concurso que previa iguais exigências físicas para homens e mulheres. Juízo: Vara da Fazenda Pública da Capital. Requeridos: Estado do Rio de Janeiro e FUNRIO. Fornecimento de água e esgoto: Pedido: individualização da cobrança dos serviços prestados com a instalação de hidrômetros individuais nas casas da comunidade pobre identificada, mantendo-se o serviço público essencial de forma adequada, eficiente, segura e contínua. Juízo: Vara empresarial da comarca da capital. Requerida: Companhia estadual de águas e esgotos – CEDAE. Fornecimento de energia elétrica: Pedido: declaração de ilegalidade de norma regulamentar que autoriza a suspensão do fornecimento de energia elétrica como forma de compelir o usuário no pagamento de dívidas, assim como da que autoriza o cálculo da dívida dos consumidores com base em estimativa de consumo e período retroativo em até 24 meses. Juízo: comarca da capital. Requeridos: Light Serviço de Eletricidade S.A. e CERJ – Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro. DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO Direito à saúde: abertura dos postos de saúde nos fins de semana: Pedido: abertura dos Postos de Assistência Médica – PAM e dos postos de saúde municipais nos fins de semana, com funciona-


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Importante ressaltar que em nenhuma dessas ações o Poder Judiciário se manifestou pela ilegitimidade da Defensoria Pública. Conclui-se, assim, que a atuação da instituição na defesa de interesses difusos tem sido de grande relevância, contribuindo para ampliar consideravelmente o acesso à justiça e para a maior efetividade das normas constitucionais. Assim examinadas as questões submetidas à consulta, passo a responder aos quesitos oferecidos pela Consulente.

RESPOSTA AOS QUESITOS 1 – A legitimação do Ministério Público à ação civil pública é exclusiva, nos termos da Constituição e da lei? R. Não. Conforme visto no parecer, é ela concorrente e autônoma. 2 – A legitimação da Defensoria Pública para a ação civil pública afeta as atribuições do Ministério Público? R. De modo algum. Como se disse no parecer, a legitimação da Defensoria Pública em nada altera o pleno exercício das atribuições do MP. Por essa razão, aliás, foi levantada no processo a questão de falta de pertinência temática em relação à requerente. 3 – A abertura da legitimação às ações coletivas significa um maior acesso à Justiça? R. Sim, conforme visto no parecer. 4 – Como deve ser interpretado o art. 134 da CF, que atribui à Defensoria Pública a assistência jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados?

mento 24 horas, para o atendimento dos pacientes vítimas da dengue enquanto perdurar a epidemia com o objetivo de se minimizar as longas filas para atendimento nos hospitais públicos (antecipação de tutela concedida). Juízo: vara federal cível da capital. Requeridos: Estado e Município do Rio de Janeiro. Direito à segurança: Pedido: retirada das tropas do exército do morro da Providência na cidade do Rio de Janeiro, devendo a segurança pública ser efetuada pela Polícia Militar (antecipação da tutela concedida). Juízo: vara federal cível da capital. Requerido: União. Direitos sociais: Pedido: expedição gratuita das vias da carteira do Registro Nacional de Estrangeiro em todo o território nacional, desde que se trate de pessoa pobre, nos termos da lei (liminar concedida). Juízo: vara federal cível da capital.Requerida: União.


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R. A exegese do texto constitucional, que adota um conceito jurídico indeterminado, autoriza o entendimento de que o termo necessitados abrange não apenas os economicamente necessitados, mas também os necessitados do ponto de vista organizacional, ou seja, os socialmente vulneráveis. 5 – Ainda que, ad argumentandum, se entenda que necessitados são apenas os economicamente carentes, a função precípua da Defensoria Pública impede que, de forma indireta e eventual, sua atuação se estenda à defesa de direitos de indivíduos bem estabelecidos? R. Não. Ainda que se entenda que função obrigatória e precípua da Defensoria Pública seja a defesa dos economicamente carentes, o texto constitucional não impede que a Defensoria Pública exerça outras funções, ligadas ao procuratório, estabelecidas em lei. 6 – Qual o histórico da atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses ou direitos difusos? R. A atuação da Defensoria Pública na defesa dos interesses ou direitos difusos tem sido intensa, significando, de um lado, ampliar o acesso à justiça e, de outro, contribuir para a máxima eficácia das normas constitucionais. 7 – Infringe a Constituição o inciso II do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85 -, com a redação dada pela Lei n.º 11.488/2007, que conferiu legitimação à Defensoria Pública? R. Não, conforme exposto no parecer. 8 – Deve-se dar ao dispositivo interpretação conforme a Constituição, para que seja excluída da referida legitimação a tutela dos interesses ou direitos difusos? R. Não, conforme exposto no parecer. É o parecer. São Paulo, 16 de setembro de 2008 Ada Pellegrini Grinover Professora Titular da Universidade de São Paulo



Parecer sobre o convênio entre a Defensoria Pública do Estado e a OAB/ SP na prestação de assistência judiciária Virgílio Afonso Da Silva

Professor titular de direito constitucional da USP

A CONSULTA A Conectas Direitos Humanos, associação civil sem fins lucrativos, que se manifestou na qualidade de amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4163, proposta pelo Procurador Geral da República, elaborou consulta acerca do objeto da referida ação, a inconstitucionalidade de expressões do art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e do art. 234, e parágrafos, da Lei Complementar Estadual 988/2006SP. No entendimento da consulente e de diversas outras associações civis também signatárias do amicus curiae, os referidos artigos, que dispõem sobre a Defensoria Pública e convênios com a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OABSP), violam os arts. 5°, LXXIV, 134 e 135 da Constituição Federal de 1988, que dispõem sobre o direito fundamental à assistência jurídica gratuita aos necessitados e sobre a autonomia funcional e administrativa das defensorias públicas. Diante dessa situação, e no intuito de fortalecer os argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal, a Conectas Direitos Humanos formula a presente consulta, mediante a apresentação dos seguintes quesitos: 1. O art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo é constitucional?


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2. O art. 234 da Lei Complementar estadual n. 988/06 (Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo) é constitucional? 3. No modelo de assistência jurídica gratuita desenhado na Constituição Federal precisamente nos arts. 5º, inciso LXXIV, e 134 é cabível a celebração de convênios pelo Estado com particulares para o estabelecimento de sistemas alternativos para a prestação do serviço público em relevo? A resposta sintética, ao final, a esses quesitos exige, dentre outras, considerações acerca do conceito de autonomia das defensorias públicas e da ideia de liberdade que subjaz ao conceito de convênio, envolvido na questão, além de uma breve análise acerca da eficácia e da restrição a direitos fundamentais. É o que será feito a seguir.

1. INTRODUÇÃO Embora a ideia de assistência jurídica aos necessitados esteja presente, no Brasil, desde o Império, quando a Lei Imperial 261/1841 estabeleceu a possibilidade de isenção de custas processuais, é só a partir do início do século XX que essa ideia desenvolve-se na direção da necessidade de uma instituição responsável por essa assistência. No início, foram alguns setores da sociedade civil que, em grande parte, assumiram essa tarefa, sendo pioneiro o trabalho do Departamento Jurídico XI de Agosto, criado em 1919 e mantido pelos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pouco depois, o Estado de São Paulo passa a se preocupar também com a questão, acrescentando a possibilidade de designação de advogado ex officio à já existente possibilidade de isenção de custas.1 Durante todo o século XX, diversas foram as leis e constituições que reforçaram a necessidade da prestação do serviço de assistência jurídica gratuita, tendo a Constituição de 1934 transformado esse serviço em um direito fundamental (arts. 113, 32). Não é a intenção deste parecer fazer um histórico dos antecedentes da criação da Defensoria Pública no Brasil.2 Mas ressalte-se, nesta 1

Cf. art. 2° da Lei Estadual 1763/1920.

2

Para um histórico dessa evolução, especialmente no Estado de São Paulo, cf. Cássio Schubsky (coord.), Advocacia pública, São Paulo: CEPGE/Imprensa Oficial, 2008, p. 104 e ss. Cf. também o tópico II do amicus curiae proposto pela consulente.


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introdução, que a Constituição de 1988, especialmente com as mudanças introduzidas pela EC 45/2004, operou mudança substancial no conceito de assistência jurídica aos necessitados, ao estabelecer a criação de defensorias públicas autônomas.

2. A AUTONOMIA DAS DEFENSORIAS PÚBLICAS ESTADUAIS A Constituição Federal, em seu art. 134, § 2°, garante autonomia funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais. Como se verá ao longo deste parecer, a precisa compreensão desse conceito tem reflexos importantes na análise da constitucionalidade do art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e do art. 234 da Lei Complementar Estadual 988/2006SP. Ao comentar o mencionado § 2° do art. 134 da Constituição Federal, José Afonso da Silva aponta que, enquanto instituição autônoma, essencial à função jurisdicional, a Defensoria Pública “não pode ser órgão subordinado, ou parte de outra instituição, que não ao próprio Estado”.3 Especificamente sobre a autonomia funcional e administrativa, são os seguintes os comentários do autor: autonomia funcional significa “o exercício de suas funções livre de ingerência”;4 autonomia administrativa significa “que cabe à Instituição organizar sua administração, suas unidades administrativas, praticar atos de gestão, decidir sobre a situação funcional de seu pessoal [...] estabelecer a política remuneratória [...]”.5 O que se pretenderá demonstrar neste parecer é, em primeiro lugar, que o art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e o art. 234 da Lei Complementar Estadual 988/2006SP são incompatíveis com essa previsão constitucional de autonomia das defensorias públicas. Além disso, em um segundo momento, será demonstrado que esses artigos, para além de seus efeitos inconstitucionais na autonomia das defensorias públicas, têm efeitos inconstitucionais também na realização do direito fundamental à assistência jurídica gratuita aos necessitados (art. 5°, LXXIV). Os textos dos artigos impugnados são os seguintes: 3

SILVA, José Afonso da, Comentário contextual à Constituição, 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 615.

4

Idem.

5

Idem, p. 616.


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Constituição do Estado de São Paulo: Art. 109. Para efeito do disposto no art. 3º desta Constituição, o Poder Executivo manterá quadros fixos de defensores públicos em cada juizado e, quando necessário, advogados designados pela Ordem dos Advogados do Brasil SP, mediante convênio.

Lei Complementar Estadual 988/2006SP: Art. 234. A Defensoria Pública do Estado manterá convênio com a Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, visando implementar, de forma suplementar, as atribuições institucionais definidas no artigo 5º desta lei. § 1º. A Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, em função do convênio previsto neste artigo, deverá: 1. manter nas suas Subsecções postos de atendimento aos cidadãos que pretendam utilizar dos serviços objeto do convênio, devendo analisar o preenchimento das condições de carência exigidas para obtenção dos serviços, definidas no convênio, bem como a designação do advogado que prestará a respectiva assistência; 2. credenciar os advogados participantes do convênio, definindo as condições para seu credenciamento, e observando as respectivas Comarcas e especialidades de atuação, podendo o advogado constar em mais de uma área de atuação; 3. manter rodízio nas nomeações entre os advogados inscritos no convênio, salvo quando a natureza do feito requerer a atuação do mesmo profissional. § 2º. A remuneração dos advogados credenciados na forma deste artigo, custeada com as receitas previstas no artigo 8º, será definida pela Defensoria Pública do Estado e pela Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. § 3º. A Defensoria Pública do Estado promoverá o ressarcimento à Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil das despesas e dos investimentos necessários à efetivação de sua atuação no convênio, mediante prestação de contas apresentada trimestralmente.

Nos próximos tópicos (3 a 5), será demonstrada a incompatibilidade desses dispositivos com o art. 134, § 2°, da Constituição Federal. No


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tópico seguinte (6), será demonstrada a sua incompatibilidade com o art. 5°, LXXIV, também da Constituição Federal.

3. A ATUAL SITUAÇÃO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA NO ESTADO DE SÃO PAULO Conforme se pode perceber a partir do quadro apresentado no texto do amicus curiae ao qual esse parecer diz respeito,6 estima-se que mais de 70% da população economicamente ativa no Brasil sejam potenciais usuários dos serviços das defensorias públicas nos estados da federação. Isso significa, em números absolutos, algo em torno de 130 milhões de pessoas.7 A criação de uma estrutura capaz de dar conta dessa demanda não é possível no curto ou no médio prazo. No Estado de São Paulo, atualmente são apenas 400 defensores públicos para atender a mais de 20 milhões de pessoas. Por razões que não precisam ser abordadas neste parecer, o aumento do efetivo de defensores públicos, com a criação de novos cargos, tem sido mais lento do que deveria. Mas, mesmo que esse ritmo possa (e deva) ser acelerado nos próximos anos, não há como se imaginar, nem no curto nem no médio prazo, um cenário em que toda a população-alvo possa ser atendida por defensores públicos de carreira. Como se sabe, essa é a razão pela qual a Constituição do Estado de São Paulo previu a possibilidade de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil, para atuar de forma complementar na prestação desse serviço público. A manutenção desse convênio, no entanto, mostra-se cada vez mais insustentável, dados os seus elevados custos. Ao contrário do que ocorre com os defensores públicos, que têm remuneração mensal fixa, os advogados que prestam serviço por meio do convênio com a OAB recebem por processo ou audiência. Em razão dessa disparidade, dentre outras, são gastos hoje8 no Estado de São Paulo quase 4 vezes mais com o convênio com a OAB (R$ 272 milhões) do que com toda a infraestrutura (e não apenas os salários) da Defensoria Pública (R$ 75 milhões). 6

Cf. amicus curiae, pp. 17 e ss.

7

Idem, p. 18.

8

Dados de 2007. Cf. amicus curiae, p. 26.


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A associação das duas variáveis apontadas acima, (1) impossibilidade de, no curto e no médio prazo, a defensoria dar conta da demanda pelo serviço de assistência judiciária, e (2) a situação cada vez mais insustentável do convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil, exigiria, para o bem da prestação desse serviço público e, sobretudo, para a maior eficácia na realização do direito fundamental previsto no art. 5°, LXXIV (“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”), que outra solução fosse encontrada. A busca por outra solução, contudo, esbarra no texto do art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo e no art. 234 e §§ da Lei Complementar 988/2006SP. Esse é, portanto, um primeiro argumento, de caráter substancial, para a inconstitucionalidade de ambos os dispositivos. Se, dadas as situações fáticas existentes, as exigências desses artigos (exclusividade de convênio com a OAB) impedem ou dificultam sobremaneira a realização de um direito fundamental sem que haja motivo relevante ou proporcional para tanto parece claro que não há como aceitar a sua constitucionalidade. Para tentar sair desse impasse, em julho de 2008, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo editou o ato normativo DPG 10/2008, que dispunha sobre novas regras gerais de prestação de assistência judiciária complementar no Estado, e no qual se fazia uma chamada aos advogados de São Paulo para se cadastrar diretamente para a prestação desse serviço. Esse ato normativo foi uma reação da Defensoria em face das dificuldades financeiras na renovação do convênio com a OABSP. No mesmo mês, a OABSP ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra esse ato, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Essa ação e seus argumentos serão analisados a seguir.

4. A AÇÃO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO O interesse dessa ação para o presente parecer é sobretudo o de tornar claros os argumentos que, segundo a Secção São Paulo da OAB, embasam a constitucionalidade do art. 109 da Constituição Estadual, que disciplina o convênio entre Defensoria e Ordem dos Advogados do Brasil. Como se perceberá mais adiante, nenhum desses argumentos, que são pouquíssimos, resiste a um escrutínio mais detalhado. E é justamente a negação desses argumentos, um a um, que constitui um dos alicerces da


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tese oposta, ou seja, a da inconstitucionalidade da exigência de convênio exclusivo com a OAB. Na mencionada ação, todas as justificativas invocadas são ou baseadas em legislação infraconstitucional ou na própria Constituição do Estado de São Paulo. O primeiro argumento invoca o próprio art. 109, da Constituição do Estado de São Paulo, e o art. 234, da Lei Complementar 988/2006SP. Como esses são justamente os dispositivos que estão sendo impugnados na ADI 4163, esse argumento de nada serve, por ser circular. Mas a ação faz também referência à legislação ordinária para sustentar a constitucionalidade do convênio exclusivo (ou, na verdade, para sustentar a inconstitucionalidade da convocação direta pretendida pela Defensoria Pública). É possível identificar três grupos argumentos: (1) aqueles baseados na competência privativa da OAB para fixar tabelas de honorários advocatícios (arts. 22 e 58, V, ambos da Lei 8906/1994, e arts. 39, 40 e 41, do Código de Ética e Disciplina); (2) aqueles que fazem referência à exclusividade da OAB na promoção da representação dos advogados no Brasil (art. 44, também da Lei 8906/1994); e (3) aqueles baseados em precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. Passo a analisar esses três grupos de argumentos a seguir. 4.1 A fixação de tabelas de honorários No que diz respeito à competência exclusiva para a fixação da tabela de honorários, a ação ajuizada pela OAB faz menção aos seguintes dispositivos: arts. 22 e 58, V, ambos da Lei 8906/1994, e arts. 39, 40 e 41, do Código de Ética e Disciplina. Contudo, a leitura conjunta desses dispositivos parece apontar em direção diversa daquela pretendida pela Secção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, segundo a qual a competência para fixar honorários conferiria à OAB a palavra final sobre as condições do convênio e impediria qualquer acordo acerca desses honorários que não respeitasse essas condições. Ainda que o art. 22 estipule, como regra geral, que os honorários serão baseados em tabela organizada pela OAB e que o art. 58, V disponha que é o Conselho Seccional o órgão competente para tanto, o art. 41 do Código de Ética e Disciplina claramente faz menção a “motivo plenamente justificável” como fundamento da possibilidade de fixação de valores diversos daqueles pretendidos pela OAB. Parece ser difícil encontrar motivo mais justificado do que a efetiva realização de um direito fundamental, como é o caso em questão.


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Além disso, imaginar que a aceitação de outra tabela de honorários, na forma proposta pela Defensoria Pública, seria uma forma de captação de clientes ou causa, como quer fazer crer a OAB, é simplesmente querer fechar os olhos para a realidade. Por duas razões. Em primeiro lugar, porque é difícil (pode-se dizer, impossível) imaginar a captação de clientes de baixíssima renda (para outras causas que não aquela para a qual o advogado já foi designado como substituto do defensor público), porque quem ganha menos de três salários mínimos não só não tem condições de pagar um advogado, como não tem motivos para fazê-lo, já que pode sempre procurar a defensoria pública. Em segundo lugar, porque todos os advogados inscritos na OAB podem se apresentar para a prestação de serviços de defensoria pública, e essa prestação, no modelo desejado pela Defensoria, seria em forma de rodízio. Que captação desleal poderia ser essa que está aberta a todos, em regime de rodízio?

4.2. A OAB e o exercício da advocacia A OAB alega que a contratação direta de advogados, pretendida pela Defensoria Pública, violaria também o disposto no art. 44, II, da Lei 8906/1994, que confere à Ordem dos Advogados do Brasil a exclusividade de representação dos advogados em todo o território nacional. Ora, em nenhum momento a Defensoria Pública pretendeu representar os advogados. O que ela pretende é, pura e simplesmente, selecioná-los diretamente. Os advogados selecionados deverão ser, por razões óbvias, advogados inscritos na OAB e se submetem, também por razões óbvias, à disciplina desse órgão de classe. O Estado não pretende burlar isso. Neste ponto como em tantos outros a tese da OAB não parece fazer nenhum sentido.

4.3 A decisão no RMS 4884: um falso precedente A ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo, apoia-se ainda em um suposto precedente do Supremo Tribunal Federal, que demonstraria a impossibilidade de que a Defensoria Pública selecione advogados por conta própria. Cumpre ressaltar, em primeiro lugar,


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que o precedente (RMS 4884) não é do STF, mas do Superior Tribunal de Justiça. Independentemente disso, no entanto, o que importa é que ele não se presta a sustentar os argumentos da OAB. Diz a ementa da decisão: Processual civil. Assistência judiciária gratuita. Delegação do Estado. Advogados designados pela OAB. Observância da lista elaborada. Tendo a legislação do Estado de São Paulo cometido ao Poder Executivo o encargo de oferecer profissionais da advocacia para os pobres e revéis, que, por sua vez, delegou essa incumbência à OAB, é a esta que compete, enquanto perdurar tal delegação, a indicação dos advogados dativos, sendo ofensivo ao seu direito líquido e certo a indicação, pelo juiz, de outros profissionais fora da lista indicada pela OAB. Recursos providos.9

Aqui, de novo, o argumento da OAB é circular. Ao usar a decisão mencionada, o que a OAB pode afirmar é, no máximo, que a delegação é constitucional porque essa delegação está em vigor, e que ela está em vigor porque é constitucional. Uma leitura atenta da decisão demonstra que o Superior Tribunal de Justiça foi mais cuidadoso. Ele afirma, em primeiro lugar, que, enquanto perdurar a delegação, ela deve ser respeitada. Ora, é justamente a possibilidade de que essa delegação perdure o que está aqui em jogo. Usá-la para defender a ela própria é, como já se afirmou acima, um raciocínio circular. Em segundo lugar, e isso desmistifica ainda mais o precedente como argumento, a decisão faz menção à impossibilidade de que o juiz indique profissionais de fora da lista. Como não é essa a possibilidade que aqui se discute, o argumento, que já era circular e, por isso, sem valor, cai definitivamente por terra.

5. O CONCEITO DE CONVÊNIO Como já afirmava o Min. Rafael Mayer, do Supremo Tribunal Federal, “convênio não é palavra de sentido unívoco no campo do Direito Administrativo”.10

9

STJ, RMS 48845, DJU de 19.06.1995.

10

RDA 140 (1980), p. 67 [Rep. 1024].


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Há uma série de debates que aqui interessam pouco, como, por exemplo, aquele que diz respeito à possibilidade ou impossibilidade, nos casos de convênio, de existência de interesses divergentes e opostos, típicos dos contratos de direito privado.11 Mas, embora não seja a intenção aqui, neste parecer, fazer uma espécie de “doutrina do convênio”, ou seja, embora não interessem aqui todas as possíveis distinções conceituais que cercam esse termo, parece ser necessária uma breve digressão sobre alguns aspectos desse conceito. O que interessa aqui, em suma, neste tópico, é identificar uma característica acerca da qual todos parecem estar de acordo quando se fala em convênio no âmbito da Administração Pública. Para tanto, utilizarei a conceituação mais difundida nesse âmbito, a de Hely Lopes Meirelles. Segundo ele, “[d]iante [da] igualdade jurídica de todos os signatários do convênio e da ausência de vinculação contratual entre eles, qualquer partícipe pode denunciá-lo e retirar sua cooperação quando o desejar”.12 Ainda mais importante, especialmente para o argumento aqui desenvolvido, são as consequências que Hely Lopes Meirelles tira da característica mencionada acima. Assim, segundo ele, “[a] liberdade de ingresso e retirada dos partícipes do convênio é traço característico dessa cooperação associativa, e, por isso mesmo, não admite cláusula obrigatória [de] permanência”.13 É claro que, neste ponto, alguém poderia contestar e afirmar que o art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo é compatível com essa conceituação, já que não contém nenhuma cláusula obrigatória de permanência. A Administração Pública, ainda segundo essa interpretação, estaria inteiramente livre para fazer ou não o convênio com a OAB. É isso, aliás, o que a própria OAB argumenta. Essa é, contudo, uma equivocada interpretação das condições fáticas e jurídicas que subjazem à interpretação desse dispositivo da constituição estadual. A simples leitura de um texto não é suficiente para compreender a norma que ele contém. Em outras palavras: a permissão 11

Para uma análise mais aprofundada desse e de outros debates conceituais em torno do conceito de convênio, cf, por todos, Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 8. ed., São Paulo: RT, 2004, pp. 270 e ss.

12

MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 24. ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 361.

13

Op. cit., p. 362.


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constitucional estadual para se celebrar ou não um convênio só é uma permissão real se essa liberdade puder ser, de fato, exercida. Ora, como se viu, por mais que não haja cláusula formal que exija a permanência no convênio, a previsão constitucional estadual de que o convênio possa ser feito única e exclusivamente com a OAB e a impossibilidade fática de que a Defensoria Pública dê conta sozinha da demanda por assistência jurídica gratuita tem como consequência exatamente essa: um convênio em que há, sim, uma exigência de permanência. E se há exigência fática de celebração de convênio, não parece ser possível não concluir pela incompatibilidade do art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo com os ditames da Constituição Federal. Como foi visto logo no início deste parecer, a Constituição Federal, ao criar e definir as bases gerais das defensorias estaduais, determinou: “Art. 134, §2°. Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa [...]”. Já foi visto, também no início deste parecer, o que isso significa. Mas não custa retomar a questão aqui. Em primeiro lugar, o status de instituição autônoma significaria que ela “não pode ser órgão subordinado, ou parte de outra instituição, que não ao próprio Estado”.14 Na medida em que à Defensoria Pública do Estado de São Paulo não é garantida uma real autonomia para definir quem, e sob que condições, desempenhará as atividades supletivas de defesa judicial dos necessitados, já que é a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo, que detém a última palavra a esse respeito, parece não haver outra alternativa que não a de concluir que essa Defensoria não é, de fato, autônoma. Em suma, na medida em que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo não tem a real faculdade de denunciar o convênio a qualquer tempo,15 pois, como o art. 109 da Constituição Estadual não permite que ela celebre convênio com outras instituições que não a OAB, isso implicaria uma paralisação de um serviço que tem como finalidade realizar um direito fundamental, conclui-se, então, que, nesse aspecto, o mencionado art.

14

José Afonso da Silva, Comentário contextual à Constituição, p. 615.

15

Cf., no sentido de que essa é uma característica essencial do conceito de convênio, Carlos Ari Sundfeld, Licitação e contrato administrativo, São Paulo: Malheiros, 1994, p. 198-199: “Denominase convênio o ato bilateral por meio do qual pessoas de direito público ou privado ajustam a conjugação de esforços para o atingimento de objetivo comum, como a prestação de certo serviço ou a execução de obra, facultada a denúncia unilateral a qualquer tempo”.


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109 coloca a Defensoria Pública em uma posição de clara submissão à Ordem dos Advogados do Brasil, o que é incompatível com a autonomia constitucional garantida às defensorias.

6 A LIBERDADE NA CONFIGURAÇÃO DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA E A GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS A realização dos direitos fundamentais pode sofrer dois tipos de condicionantes principais: jurídicas e fáticas.16 As condicionantes jurídicas dizem respeito sobretudo às colisões entre direitos fundamentais. As condicionantes fáticas referem-se às medidas existentes para a realização desses direitos. Nesse sentido, especialmente no caso dos direitos que exigem uma ação estatal para a sua realização, uma condicionante fática relevante pode ser a insuficiência de recursos para realizar esse direito fundamental na medida ideal. Assim, a realização do direito fundamental garantido pelo art. 5°, LXXIV, da Constituição Federal (assistência jurídica aos necessitados) seria tão mais efetiva quanto maior fosse a dotação orçamentária destinada às defensorias públicas. No caso de São Paulo, sabendo de antemão da impossibilidade de uma organização ideal da Defensoria Pública, e na esteira da experiência anterior à própria Constituição Federal de 1988, a Constituição Estadual previu, como já se repetiu várias vezes ao longo deste parecer, a possibilidade de que o serviço público17 de assistência jurídica pudesse ser realizado por meio de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo. Mas, ainda que essa alternativa possa ter funcionado a contento durante as últimas décadas, o seu custo cada vez mais elevado demonstrou que a realização mais eficiente do 16

Sobre isso, cf., por todos, Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 2. ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 75 [há tradução brasileira, publicada pela editora Malheiros] e Virgílio Afonso da Silva, Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 46.

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Em diversos momentos deste parecer, fala-se em serviço público de assistência jurídica. Com isso, quer-se fazer referência à assistência jurídica prestada pelas defensorias públicas e, ao mesmo tempo, salientar que essa assistência pode também ser realizada fora desse âmbito. Toda forma de acordo entre as defensorias públicas e outras entidades, mesmo que privadas, inserem-se nesse conceito de serviço público. Fora desse âmbito encontram-se outras iniciativas de assistência jurídica, como, por exemplo, a advocacia probono, que, a despeito de desempenhar importante atividade social, não ocorre por meio de acordos ou convênios com órgãos estatais.


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direito fundamental à assistência jurídica poderia ocorrer por meio de outras formas de cooperação da Defensoria Pública e atores de sociedade civil. Na definição do modelo desejável de cooperação, dois são os parâmetros constitucionais mais importantes, já mencionados ao longo do texto. O primeiro é o direito fundamental do art. 5°, LXXIV, que garante essa assistência aos que comprovarem insuficiência de recursos; o segundo, a garantia de autonomia para as defensorias públicas, prevista no art. 134, § 2°. Diante desses parâmetros claros, o modelo ideal é aquele que (1) confira às defensorias autonomia e liberdade não apenas na organização de sua estrutura interna, como também na definição dos termos de eventuais convênios com particulares (indivíduos ou associações) para o estabelecimento de sistemas alternativos para a prestação desse serviço público; e, sobretudo, que (2) garanta o maior grau de realização do direito fundamental em questão. A experiência demonstrou que a possibilidade de convênio com apenas uma única instituição (a Ordem dos Advogados do Brasil), a despeito de todos os bons serviços por ela prestados nessa área desde antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, não é a forma mais eficiente de realização do serviço. Não por outra razão, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do já mencionado ato normativo DPG 10/2008, procurou dispor sobre novas regras gerais de prestação de assistência judiciária complementar no Estado, fazendo uma chamada aos advogados de São Paulo para se cadastrar diretamente na Defensoria Pública para a prestação desse serviço.18 Ora, se direitos fundamentais devem ser realizados na maior medida possível, sofrendo apenas as restrições estritamente necessárias dos pontos de vista fático e jurídico, e se não há nenhum fundamento plausível para a exigência de convênio exclusivo com a OAB, prevista pelo art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo, então este artigo constitucional impõe restrições fáticas e jurídicas desproporcionais,19 sendo, portanto, inconstitucional. As exigências 18

O convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil baseava-se, em seu início, na Lei Estadual 4476/84 e no Decreto Estadual 23.703/85.

19

Desproporcionais porque há formas mais eficientes de realização desse direito e que implicam menos restrições à autonomia da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.


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de garantia de autonomia das defensorias, de um lado, e de máxima realização possível do direito fundamental à assistência jurídica aos necessitados, de outro, podem ser combinadas de várias formas. As únicas que, com certeza, não atendem a essas exigências são aquelas baseadas em modelos rígidos e exclusivistas. Quanto mais as formas públicas e privadas de prestação desse serviço puderem ser combinadas de forma eficiente e garantidora de autonomia para as defensorias públicas, mais as exigências constitucionais poderão ser atendidas com eficiência. Nesse sentido, é precisa a conclusão a que os autores do amicus curiae chegam: O modelo público de assistência jurídica gratuita pode ser complementado com iniciativas privadas de assistência jurídica, como iniciativas pro bono. No entanto, a Defensoria deve ter autonomia para escolher como e com quem conveniar, em respeito ao modelo constitucional elaborado.20

Quem ganha com isso são os destinatários do serviço: os necessitados.

7. SÍNTESE DOS ARGUMENTOS Antes de responder aos quesitos formulados, é importante retomar os argumentos desenvolvidos ao longo deste parecer, que pretendeu demonstrar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais e constitucionais estaduais que exigem que qualquer forma de contratação de serviços suplementares de assistência jurídica aos necessitados seja feita por meio de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo. Os argumentos aqui defendidos basearam-se nos dois seguintes pilares: (1) O conceito de autonomia não é compatível com uma situação em que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo não apenas está compelida a se conveniar com a OAB, mas também com uma situação na qual a última palavra sobre os termos dos convênios, especialmente os honorários, é exclusivamente desta última.

20

Amicus curiae, p. 14.


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(2) O direito fundamental à assistência jurídica gratuita aos necessitados deve ser realizado da forma mais ampla possível, diante das condições fáticas e jurídicas existentes. A exigência de convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil é uma forma menos eficiente (em razão dos atuais custos) de realizar esse direito e não há nenhuma justificativa para que essa opção de convênio exclusivo seja preferida às outras. Além disso, este parecer demonstrou que a Defensoria Pública, ao pretender selecionar diretamente os advogados dispostos a prestar o serviço complementar de assistência jurídica aos necessitados, não viola nenhum dos dispositivos do estatuto da advocacia, porque a Defensoria não pretende, por razões óbvias, selecionar profissionais não inscritos na OAB, e porque não pretende burlar a regra geral que determina que a tabela de honorários em cada estado da federação seja definida pelo conselho seccional. Como o próprio Código de Ética da Advocacia estabelece, a fixação de valores diversos daqueles pretendidos pela OAB pode ocorrer se houver “motivo plenamente justificável”. Parece ser difícil encontrar motivo mais justificado do que a efetiva realização de um direito fundamental, como é o caso em questão.

8. RESPOSTA AOS QUESITOS À vista de todo o exposto, passo agora a responder sinteticamente aos quesitos da consulta. Ao 1º quesito O artigo 109 da Constituição do Estado de São Paulo é constitucional? Não. Como se percebeu, diante das condições fáticas existentes, não existe nenhuma possibilidade de que, no curto e no médio prazo, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo possa, sozinha, dar conta de prover todo o serviço de defesa e orientação aos necessitados. O art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo limita a ação da Defensoria Pública a uma alternativa binária: ou não celebra convênio nenhum, ou o faz com a OAB. Como a primeira opção é faticamente impossível, o que o art. 109 realmente prevê é a imposição de um convênio com uma determinada instituição (a Ordem dos Advogados do Brasil). Isso, como se demonstrou ao longo deste parecer, não apenas é incompatível com a garantia constitucional de autonomia para as defensorias públicas,


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como também implica a realização menos eficiente do serviço público de assistência jurídica gratuita. A imposição, por parte da OAB, de condições irrealizáveis (em razão de seus custos) faz com que a implementação desse direito fundamental seja restringida, sem que haja motivo relevante ou proporcional para tanto. Isso reforça ainda mais o caráter inconstitucional do art. 109 da Constituição do Estado de São Paulo. Ao 2º quesito O artigo 234 da Lei Complementar Estadual n. 988/06 (Lei Orgânica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo) é constitucional? Na medida em que o art. 234 da Lei Complementar estadual 988/06 é uma espécie de regulamentação do art. 109 da Constituição Estadual, a constitucionalidade deste último atinge também o primeiro. Some-se a isso o fato de que o mencionado art. 234 é ainda mais explícito na imposição do convênio, ao exigir que a Defensoria Pública do Estado mantenha convênio com a OAB (“Art. 234. A Defensoria Pública do Estado manterá convênio com a Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil”). Ao 3º quesito No modelo de assistência jurídica gratuita desenhado na Constituição Federal precisamente nos arts. 5º, inciso LXXIV, e 134 é cabível a celebração de convênios pelo Estado com particulares para o estabelecimento de sistemas alternativos para a prestação do serviço público em relevo? Sim. Embora seja desejável que o serviço público de assistência jurídica gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, exercido pelas defensorias públicas, seja realizado por profissionais dos quadros de carreira dessas instituições, nada impede, dada a real impossibilidade de que isso ocorra no curto ou médio prazo, que elas procurem as alternativas que forem mais eficientes em cada situação concreta. A única exigência é a de que os profissionais que prestarem esse serviço sejam advogados regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, que tem a exclusividade na representação dos advogados em todo o território nacional.


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É o meu parecer. São Paulo, 30 de abril de 2009 Virgílio Afonso da Silva Professor Titular de Direito Constitucional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo O conteúdo e as conclusões aqui apresentados são de exclusiva responsabilidade do autor e não refletem necessariamente as opiniões da Universidade de São Paulo.


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