PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
Actas do colóquio internacional organizado pelo Centro de Estudos de Direito da Universidade do Minho nos dias 26 e 27 de Outubro de 2006
Coordenado por Nuno Manuel Pinto Oliveira
Braga — 2016
ÍNDICE Nuno Manuel Pinto Oliveira O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO AMIGA UNIÃO EUROPEIA
DOS
ESTADOS-MEMBROS 1
DA
Kristina Riedl FROM PRIVATE INITIATIVES TO THE COMMON FRAME OF REFERENCE: A RETROSPECTIVE ON EUROPEAN CONTRACT LAW 17 Anthony Chamboredon THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS — JUDICIAL LEGITIMACY AND CONTRACT FRAGMENTATION 33 Jan Dirk Harke A CULPA IN CONTRAHENDO DEPOIS DA SUA CODIFICAÇÃO EM PORTUGAL, NA ALEMANHA E NO BRASIL 49 Eva Sónia Moreira da Silva A INFLUÊNCIA DA REVISÃO DO BGB NO DIREITO PORTUGUÊS: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O INSTITUTO DA CULPA IN CONTRAHENDO 65 Stathis Banakas LIABILITY FOR CONTRACTUAL NEGOTIATIONS LOOKING FOR THE LITMUS TEST
IN
ENGLISH LAW: 99
Eva Sónia Moreira da Silva A RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL POR INFORMAÇÕES E O REGIME DOS VÍCIOS DA VONTADE (ERRO E DOLO) NO DIREITO PRIVADO PORTUGUÊS: O CASO DA INDUÇÃO NEGLIGENTE EM ERRO 121 i
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Benedita MacCrorie O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS: AS DIRECTIVAS 2000/43/CE E 2004/113/CE 133 Gisela Kern A PROTECÇÃO CONTRA DISCRIMINAÇÕES NO DIREITO PRIVADO — A ESCOLHA DAS CARACTERÍSTICAS PROTEGIDAS 147 Heinrich Ewald Hörster IGNORARE LEGIS EST LATA CULPA. BREVES CONSIDERAÇÕES RESPEITO DA APLICAÇÃO DO ARTIGO 291.º DO CÓDIGO CIVIL 167 Assunção Cristas QUE DIREITO DO INCUMPRIMENTO?
A
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Judith Rochfeld LE PROJET DE RÉFORME DU DROIT FRANÇAIS DE L’INEXÉCUTION DES CONTRATS. VERS UN RAPPROCHEMENT DU DROIT FRANÇAIS ET DES DROIS EUROPÉENS? 279
O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO AMIGA DOS ESTADOS-MEMBROS DA UNIÃO EUROPEIA Nuno Manuel Pinto Oliveira
I. 1. MANUEL DE ANDRADE abre o seu ensaio sobre a teoria da interpretação acentuando o interesse de uma doutrina capaz de orientar o jurista, teórico ou prático, dizendo-lhe "qual seja, no seu tipo abstracto, o sentido legal prevalente — aquele com que deve aplicar-se a lei —, apontando-lhe os elementos a que para a sua determinação se há-de recorrer e discriminando-lhe, por último, o valor relativo de tais elementos" 1. Os princípios por si encontrados projectaram-se no texto do art. 9.º do Código Civil: o legislador contrapõe o elemento gramatical ("letra da lei") e o elemento lógico ("pensamento legislativo"); esclarece que o elemento lógico, ou "pensamento legislativo", deve determinar-se "tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada"; e recorre à presunção do legislador razoável para atenuar a controvérsia entre a teoria subjectivista e a teoria objectivista acerca das finalidades da interpretação 2 3. 1 Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, 2.ª ed., Arménio Amado, Coimbra, 1963, págs. 9-10. O autor acrescenta: "sem uma concepção firme neste domínio, não se pode ver claro e distinto, não se pode dar um passo afoito e seguro em qualquer matéria de direito" (pág. 10). 2 Cf. Noções elementares de processo civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1963, págs. 30-31: no quadro da teoria subjectivista, teria de jogar-se com a hipótese de um legislador razoável — de "um legislador que estatuiu as soluções mais justas e oportunas, e ao mesmo tempo um legislador que redigiu acertadamente os textos legais, exteriorizando com fidelidade o seu pensamento" —; no quadro da teoria objectivista, também: "[n]estes termos se deve[ria]
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2. O Código Civil português tem quase quarenta anos. O Estado português transformou-se entretanto: abriu-se à Europa e democratizou-se. FREITAS DO AMARAL propôs recentemente uma revisão dos arts. 1.º a 13.º do Código Civil, acusando-os de exprimirem uma concepção autoritária e corporativa da sociedade e do Estado; de olvidarem a integração do Estado português nas Comunidades Europeias e na União Europeia; e, sobretudo, de reflectirem, tãosó, o pensamento dos cultores do direito privado 4. O art. 9.º careceria de uma cuidada reformulação por, pelo menos, três razões: o n.º 1 esqueceria inexplicavelmente "aquele que sempre foi, e continua a ser, o elemento mais importante — e tantas vezes decisivo — da interpretação jurídica: o elemento teleológico, a finalidade da lei, a ratio legis" 5; o n.º 2 não poderia aplicar-se aos casos "mais complexos — e bem importantes para qualquer jurista" — de interpretação estensiva ou de intepretação restritiva 6. e, por último, o texto do art. 9.º deveria consagrar o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constitiuição, hoje amplamente reconhecido 7 8. conceber ainda o legislador hipotético com que [seria] necessário operar dento da posição objectivista". 3 MANUEL DE ANDRADE reconhecia a imprecisão das directivas de uma teoria da interpretação: "as posições aqui tomadas em face dos vários problemas de que, directa ou incidentalmente, nos ocupamos, não representam de nenhum modo convicções radicadas, assentes, inabaláveis, mas tão somente inclinações ou tendências, algumas delas bastante vagas" (Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, cit., pág. 105). 4 "Da necessidade de revisão dos arts. 1.º a 13.º do Código Civil", in: Themis, ano I (2000), n.º 1, págs. 9-20 (10): "se eles [scl.: os arts. 1.º a 13.º do Código Civil] contêm princípios gerais de direito, regras de direito comum, ou pelo menos normas e critérios aplicáveis não apenas ao direito privado, mas também ao direito público, os cultores deste último têm tanta legitimidade para se pronunciarem sobre os referidos artigos como os privatistas em geral, e os civilistas em particular". 5
"Da necessidade de revisão dos arts. 1.º a 13.º do Código Civil", cit., pág. 16.
Ob. cit., pág. 16: "nos casos mais complexos — e bem importantes para qualquer jurista — de interpretação extensiva ou restritiva [sacrifica-se] parcialmente o texto em homenagem ao espírito da lei, como que introduzindo alargamentos ou reduções que por definição não têm — não podem ter — qualquer correspondência verbal na letra da lei, na parte correspondente ao alargamento ou à restrição introduzidos". 6
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Ob. cit., pág. 17.
Embora não seja absolutamente necessário explicitá-lo para desenvolver o meu raciocínio, devo deixar claro que não concordo com as duas primeiras críticas dirigidas ao texto do art. 9.º do Código Civil. Em primeiro lugar, FREITAS DO AMARAL assinala ao art. 9.º a função de catalogar ou classificar os argumentos ou critérios relevantes. Não concordo. Não me parece que o legislador tenha procurado classificar os argumentos ou critérios de 8
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O estudo de FREITAS DO AMARAL omite qualquer alusão aos argumentos de direito comparado e ao princípio da interpretação do direito interno em conformidade com o direito comunitário. O autor reconhece que a adesão de Portugal às Comunidades Europeias (e à união Europeia) contribuiu para revolucionar o sistema de fontes do direito, "que já não podem confinar-se, como em 1966, ao direito interno, antes têm de abarcar, em primeira linha, o direito internacional e o direito comunitário" 9. O seu raciocínio fica, porém, a meio: o processo de integração europeia reclama a reapreciação de dois problemas — do problema das fontes do direito e do problema da interpretação das leis. O artigo de FREITAS DO AMARAL apreciou cuidadosamente o problema (do sistema) das fontes do direito; o presente ensaio procurará continuá-lo e, de alguma forma, desenvolvê-lo, concentrando-se no problema da interpretação das leis. 3. Entre os objectivos dos dois trabalhos existe contudo uma diferença de apreciável interesse: FREITAS DO AMARAL esforçase por adaptar ou corrigir os arts. 1.º a 13.º do Código Civil para os interpretação; e também não me parece que o legislador devesse fazê-lo. MANUEL DE ANDRADE explicava que o art. 9.º do Código Civil pretendia somente "firmar […] umas tantas posições que pareceram bastante seguras, deixando ainda vago um espaço considerável, para a livre incestigação dos doutos" ["Fontes de direito. Vigência, interpretação e aplicação da lei", in: Boletim do Ministério da Justiça, n.º 102 (Janeiro de 1961), págs. 141-152 (150)]: não pretendia "marcar uma atitude inteiramente definida quanto ao método de interpretação a seguir"; não pretendia, nem devia protender, definir todos os argumentos ou critérios de interpreteção; não procurava, nem devia procurar, hierarquizá-los. Em segundo lugar, não concordo com a afirmação de que o legislador esqueceu o argumento racional ou teleológico. O n.º 1 do art. 9.º do Código Civil alude ao "pensamento legislativo"; o n.º 3 contém a presunção de que o legislador "consagrou as soluções mais acertadas": Ou seja: o n.º 1 acolhe, implicitamente, os argumentos teleológico-subjectivos; o n.º 3, os argumentos teleológicoobjectivos. Em terceiro lugar, não subscrevo a afirmação de que o n.º 2 do art. 9.º é, tão só, o limite da interpretação declarativa. FREITAS DO AMARAL confunde a interpretação extensiva ou restritiva com o desenvolvimento do direito imanente à lei, através da extensão teleológica ou da redução teleológica: a interpretação extensiva ou restritiva conforma-se com os limites da letra, ou do texto, da lei; a extensão teleológica ou a redução teleológica excedem-nos ou transcendem-nos. O objectivo da interpretação extensiva e da interpretação restritiva é a coincidência entre a letra e o espírito da lei, entre o texto e o pensamento legislativo; o objetivo da extensão teleológica e da redução teleológica é a correcção do texto. Ou, para usarmos os termos, mais rigorosos, de CASTANHEIRA NEVES: na extensão teleológica e na redução teleológica, "trata-se […] de uma 'correcção do texto fundada teleologicamente' (LARENZ), prosseguindo, portanto, a interpretação para além dos possíveis sentidos do texto ou sacrificando o seu formal sentido impositivo" ["Interpretação jurídica", in: Polis — Enciclopédia da sociedade e do Estado, vol. III, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1985, cols. 651-707 (694)]. O n.º 2 do art. 9.º aplica-se, por isso, à interpretação extensiva e à interpretação restritiva; só não se aplica à extensão e à redução teleológicas. 9 "Da necessidade de revisão dos arts. 1.º a 13.º do Código Civil", cit., págs. 10-11.
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estender ao direito público. Eu não o pretendo. O direito privado e o direito público cumprem funções distintas: o direito privado disciplina essencialmente relações entre pessoas livres e iguais — relações dominadas pelas ideias da liberdade e da igualdade —; o direito público substitui a ideia da liberdade pela de realização da função cometida ao ente público, e a ideia de igualdade pela de subordinação (ou de autoridade). BOBBIO observa — acertadamente — que "a esfera do direito privado e a esfera do direito público estão dominadas por duas imagens diferentes a propósito do que é o direito". Os cultores do direito privado vêemno como "um conjunto de regras de convivência"; os cultores do direito público, como "um conjunto de regras que pretendem orientar acções de outro modo dispersas para um objectivo comum". O autor continua dizendo que "[o] contraste entre estas duas imagens do direito explica por que é que a procura de um critério de distinção entre direito público e direito privado é sempre tão difícil que parece quase desesperada" 10. O contraste entre as funções do direito público e do direito privado explicará e, porventura, justificará diferenças entre os princípios e regras de interpretação aplicáveis a cada um dos dois hemisférios do mundo jurídico. II. LARENZ/WOLF propõem dois critérios de interpretação das disposições de direito privado relacionadas com o processo de integração europeia. O primeiro é princípio da interpretação do direito interno em conformidade com o direito comunitário; o segundo é princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros das Comunidades e da União Europeia (mitgliedstaatsfreundliche Auslegung): os tribunais de cada Estado-membro devem preencher o espaço de discricionaridade deixado em aberto pelas disposições de direito interno de forma a evitar, sempre que possível, a contradição ou o conflito com o direito interno de outro Estado-membro 11. O princípio da interpretação do direito interno 10 NORBERTO BOBBIO, "La grande dicotomia", in Dalla strutura alla funzione, 2.ª ed., Edizioni di Comunità, Milano, 1984, págs. 145-163 (157). 11 Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 9.ª ed., C. H. Beck, München, 2004, págs. 92-93 (n. m. 76).
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em conformidade com o direito comunitário contém uma regra de precedência ou de prioridade — entre duas (ou mais) interpretações possíveis de uma disposição de direito interno, deve atribuir-se precedência ou prioridade àquela que concorda com o direito comunitário 12 —; o princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros da União Europeia contém duas regras: em primeiro lugar, aponta os argumentos relevantes para a interpretação das disposições de direito privado — diz-nos que o intérprete deve recorrer a argumentos de direito comparado extraídos da legislação e da jurisprudência Estados-membros da União Europeia —; e, em segundo lugar, indica a relação entre os argumentos ou critérios relevantes — diz-nos que o intérprete háde atribuir preferência ou prioridade às interpretações coerentes com a legislação e a jurisprudência dos demais Estados-membros 13. Ou, para adoptarmos os termos propostos por GÖTZ SCHULZE: há-de atribuir preferência ou prioridade a uma "interpretação do direito interno utilizável internacionalmente" (international brauchbaren Auslegung nationalen Rechts) 14. Enquanto o princípio da interpretação do direito interno em conformidade com o direito comunitário é (já) amplamente consensual, o princípio da interpretação "amiga" dos Estadosmembros da União Europeia é (ainda) controverso — pelo que me concentrarei nele.
12 O acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 3/2004, de 25 de Março de 2004 (relatado pelo Conselheiro ARAÚJO DE BARROS), acolhe-o explicitamente, como uma expressão do primado do direito comunitário: "[O] princípio estruturante do direito comunitário de interpretação conforme definido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, órgão máximo de interpretação do direito comunitário, princípio que deriva do primado do direito comunitário sobre a ordem jurídica estatal, que significa, para o Tribunal de Justiça, a obrigação de os juízes nacionais interpretarem o direito nacional de modo a harmonizá-lo com o direito originário e derivado de origem comunitária na medida do possível" [in: Scientia Juridica, Maio Agosto de 2004, págs. 369-391 — com anotação desfavorável de NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA nas págs. 392-405]. 13 KARL LARENZ/MANFRED WOLF, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, cit., págs. 9293 (n. m. 76). O princípio da interpretação "amiga" do direito interno dos Estados-membros da União Europeia contribuiria para aperfeiçoar os princípios e regras existentes, através do confronto diferentes experiências de concretização e de desenvolvimento de princípios comuns. 14 Cf. GÖTZ SCHULZE, "Grundfragen zum Umgang mit modernisierten Schuldrecht — Wandel oder Umbruch im Methodenverständnis", in: Jahrbuch Junger Zivilrechtswissenschaftler, 2001, 167-186 (175).
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O primeiro aspecto do princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros da União Europeia — a regra de inclusão dos argumentos extraídos da legislação e da jurisprudência dos Estados-membros — é tão só uma concretização ou explicitação das regras gerais: os argumentos em causa constituem argumentos de direito comparado e, por isso, a regra fundamental de inclusão ou de relevância autoriza o aplicador do direito a usálo na interpretação das leis 15. O segundo aspecto do princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros — a regra de precedência ou de prioridade das interpretações interpretações coerentes com a legislação e a jurisprudência dos demais Estadosmembros —, esse, exige uma análise mais cuidada e desenvolvida. O texto de LARENZ/WOLF pode interpretar-se de duas formas: (i) como enunciação de uma regra sobre o encargo ou ónus de argumentação ou (ii) como enunciação de uma (autêntica) regra de precedência ou de prioridade. Interpretado como uma (autêntica) regra de precedência ou de prioridade, o princípio da interpretação "amiga" colocar-nos-ia, pelo menos, dois problemas. O primeiro relaciona-se com o conflito dos argumentos extraídos dos direitos nacionais dos Estados-membros da União Europeia entre si: se, p. ex., o direito alemão, o direito francês e o direito italiano consagram regras diferentes para resolver o problema, deverá aplicar-se o princípio da interpretação "amiga"? O caso da redução da pena convencional desproporcionada ou excessiva 15 Independentemente da correcção ou incorrecção da tese da autonomia (relativa) do direito (privado) em relação ao político, o recurso aos argumentos de direito comparado retirados da legislação e da jurisprudência dos Estados-membros da União Europeia deve considerar-se admissível. HABERMAS reconhece que as decisões judiciais na "área cinzenta" entre legislação e aplicação carecem de uma fundamentação ou justificação diferente: "a formação quase-legislativa da opinião e da vontade precisa[ria] de um tipo de legitimação diferente da aplicação em sentido próprio" [Fatti e norme — Contributi a una teoria discorsiva del diritto e della democrazia (título original: Faktizität und Geltung — Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats), Guerini, Milano, 1996, pág. 521]. O juiz deveria apresentar uma fundamentação mais cuidada, ou mais desenvolvida, das decisões, "face a um alargado foro crítico da justiça" (ob. cit., pág. 521). Ora o princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros actua na "zona cinzenta" entre legislação e aplicação do direito descrita por HABERMAS e contribui para uma fundamentação/justificação reforçada das decisões judiciais, por cumprir, pelo menos, duas funções: por um lado, uma "função de inspiração", apresentando ao aplicador do direito a experiência da doutrina e da jurisprudência estrangeiras e, eventualmente, estendendo o elenco de interpretações possíveis; por outro lado, uma "função de controlo", "testando" as considerações desenvolvidas pelo juiz [cf. STEFAN GRUNDMANN/KARL RIESENHUBER, "Die Auslegung des Europäischen Privat- und Schuldvertragsrechts", in: Juristische Schulung (JuS), 2001, págs. 529-536 (533)].
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constitui um exemplo das dificuldades existentes: o art. 1152.º do Código Civil francês permite a redução oficiosa da pena, o § 343 do Código Civil alemão proíbe-a 16. Existindo — como aqui existe — um conflito entre o direito interno de dois (ou mais) Estados, como deve entender-se a regra de que os tribunais de cada Estadomembro devem preencher o espaço de discricionaridade deixado em aberto pelas disposições de direito interno de forma a evitar, sempre que possível, a contradição ou o conflito com o direito interno de outro Estado-membro? O segundo problema relacionase com o conflito entre os argumentos extraídos do direito nacional e os argumentos retirados do direito estrangeiro: quando haja um conflito entre os argumentos de direito comparado retirados da legislação e da jurisprudência dos Estados-membros da União Europeia e os argumentos sistemáticos e teleológicos, a regra de precedência ou de prioridade afigura-se-me consensual — os argumentos sistemáticos e teleológicos têm prioridade, pelo menos uma prioridade prima facie, sobre (todos) os argumentos de direito comparado 17 —; quando haja, p. ex., um conflito entre os argumentos de direito comparado retirados da legislação e da jurisprudência dos Estados-membros da União Europeia e os argumentos relativos a precedentes, a regra de prioridade afigurase-me mais controversa. Os dois problemas podem resolver-se através de uma reinterpretação do princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros da União Europeia, reconduzindoo a uma regra sobre o ónus da argumentação: quem pretenda desviar-se da legislação ou da jurisprudência de um dos Estadosmembros da União Europeia, há-de apresentar argumentos para fundamentar a sua decisão 18. O conflito entre os argumentos de direito comparado extraídos dos Estados-membros da União 16 Cf. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, "Em tema de redução oficiosa da pena convencional", in: Estudos em comemoração do 10.º aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Escola de Direito da Universidade do Minho/Livraria Almedina, Coimbra, 2003, págs. 729-763 (730); IDEM, Cláusulas acessórias ao contrato, Livraria Almedina, Coimbra, 2005, págs. 77-78. 17 KONRAD ZWEIGERT/HEIN KÖTZ deixam o caso em aberto [admitindo contudo que talvez o intérprete não deva afastar-se da conexão sistemática da sua ordem jurídica: Einführung in die Rechtswissenschaft, 3.ª ed., J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen, 1996, pág. 17 (§ 2, III)] 18 Cf. CHRISTIAN VON BAR, "Vereinheitlichung und Angleichung von Deliktsrecht in der Europäischen Union", in: Zeitschrift für Rechtsvergleichung, vol. 35 (1994), págs. 221 ss. (231) — apud KONRAD ZWEIGERT/HEIN KÖTZ, Einführung in die Rechtswissenschaft, cit., pág. 19(§ 2, III).
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Europeia e os argumentos relativos a precedentes, p. ex., deverá assim resolver-se sem o recurso a quaisquer regras de precedência ou de prioridade. III. O princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros da União Europeia pressupõe a autonomia (relativa) do direito (privado) em relação aos procedimentos e processos de decisão política e, por isso, a unidade dos princípios de direito privado de uma pluralidade de Estados 19. Os pressupostos da autonomia (relativa) e da unidade do direito (privado) devem em todo o caso demonstrar-se, por serem controversos. 1. JÜRGEN HABERMAS apresenta a conexão entre o direito — incluindo o direito privado — e os procedimentos e processos de deliberação de um Estado constitucional democrático como uma resposta às dificuldades enfrentadas pelos paradigmas do Estado de direito liberal e do Estado de direito social. O primeiro, o paradigma do Estado de direito liberal, assinalava ao direito privado a função de proteger a autonomia de cada indivíduo, através do contrato, da propriedade e das regras de responsabilidade civil; o segundo, o paradigma do Estado de direito social, estende-a, de forma a abranger a prossecução da justiça social 20. Explicando a mudança de paradigma do direito privado, HABERMAS escreve que o contexto social do "capitalismo organizado", caracterizado pela "crescente desigualdade nas posições económicas de poder" (sic) e pela intervenção do Estado na economia e na sociedade, reclama uma reconstrução do sistema de direitos subjectivos públicos (acrescentando-lhe a categoria dos direitos a prestações) e uma reinterpretação do sistema de direitos subjectivos privados — ou, em termos mais rigorosos, do sistema de princípios e regras de direito privado —, 19 O enlace entre a autonomia (relativa) do direito privado e o princípio da interpretação "amiga" esclarecer-se-á através de um exemplo. O art. 812.º do Código Civil português deixa em aberto o problema da admissibilidade, ou da inadmissibilidade, da redução oficiosa da pena convencional desproporcionada ou excessiva. O dever de considerar argumentos extraídos do direito alemão, do direito francês ou do direito italiano para o resolver pressupõe, p. ex., que o § 343 do Código Civil alemão, que o art. 1152.º do Código Civil francês, ou que os acórdãos da Corte di Cassazione italiana sobre o tema, constituem uma concretização de princípios, ou de valores, comuns. 20 Fatti e norme , cit., pág. 470.
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transformando as "esferas clássicas" do contrato e da propriedade: "[o] objectivo da justiça social exig[iria] uma interpretação diferenciada de relações jurídicas formalmente iguais mas materialmente diferentes, razão pela qual institutos jurídicos idênticos podem desempenhar funções sociais diversas" 21. Entre as consequências da reinterpretação dos institutos relacionados com "esferas clássicas" do direito privado, HABERMAS destaca duas: em primeiro lugar, o controlo da conclusão e/ou do conteúdo do contrato; e, em segundo lugar, o controlo do exercício do direito de propriedade, recorrendo-se, designadamente, à fórmula da "vinculação social" 22. O duplo controlo das liberdades atribuídas pelos princípios e regras de direito privado destinar-seia, em última instância, a "contrabalançar as assimétricas posições económicas de poder (sic) [existentes entre os cidadãos]" 23. O controlo do contrato e da propriedade projecta-se porém na redução da autonomia ou da liberdade do indivíduo: HABERMAS admite que a liberdade de acção do Estado é paga com a diminuição da autonomia dos indivíduos; reconhece que "tudo aquilo que acresce à […] capacidade de controlo do Estado deve ser subtraído à autonomia do indivíduo" 24; e, por isso, sustenta que "[u]m Estado-providência que atribui as oportunidades de vida […] e que concede a cada um o fundamento material de uma vida digna corre manifestamente o risco de comprometer a autonomia dos indivídicos com as suas medidas intrusivas" 25. Excluído o regresso ao direito privado de um Estado de direito liberal — com o argumento de que "a crítica justamente dirigida pelo paradigma do Estado social contra o direito formal burguês [nos impediria] de […] regressar ao paradigma liberal" 26 —, 21 Ob. cit., pág. 471. Os dois fenómenos — a ampliação das funções do direito público através dos direitos a prestações e a "materialização" (dos institutos) do direito privado — concretizariam o princípio fundamental da "igual distribuição de liberdades de acção juridicamente protegidas": a reinterpretação do sistema de direito privado apoiar-se-ia na constatação de que a liberdade jurídica (normativa) deve completar-se com a liberdade factual — i. e., "com a possibilidade efectiva de escolher aquilo que é permitido" —; a reconstrução do sistema de direitos (subjectivos) públicos basear-se-ia na constatação de que a liberdade factual dos cidadãos depende essencialmente da actividade do Estado (pág. 476). 22 Ob. cit., págs. 477 ss. 23
Ob. cit., pág. 478.
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Ob. cit., pág. 481.
25
Ob. e pág. cits. Ob. cit., pág. 482.
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HABERMAS propõe-se corrigir as deficiências dos dois paradigmas em confronto, deixando a descoberto a relação entre a autonomia privada e a autonomia pública e, por isso, "o sentido democrático da autoconstituição de uma comunidade jurídica" 27. O recurso ao direito privado para realizar um projecto de justiça social pressuporia uma legitimação democrática dos seus princípios e das suas regras: "[q]uanto mais o direito [fosse] usado como instrumento de controlo político e de planificação social, tanto maior se [tornaria] o ónus de legitimação a que a génese democrática do direito deve[ria] fazer frente" 28. O direito — todo o direito, incluindo assim o direito privado — só seria, por isso, direito legítimo se resultasse de um procedimento democrático de formação discursiva da opinião e da vontade de cidadãos "juridicamente equiparados" 29. 2. O "Manifesto para a justiça social no direito europeu dos contratos" acolhe a tese de HABERMAS, adaptando-a à "europeização" do direito privado: a determinação do conteúdo dos princípios e das regras de um direito europeu dos contratos deveria resultar de procedimentos e de processos políticos democráticos, abertos à participação consciente e responsável de todos os cidadãos. O direito dos contratos haveria de considerar o princípio da autonomia privada e o princípio da solidariedade social, de forma a alcançar critérios de decisão razoáveis: "balanceando", ou ponderando, os dois princípios em causa, "cada sistema de direito dos contratos exprime um conjunto de valores que procura ser coerente". Os cidadãos dos Estados-membros da União Europeia deveriam dispor de uma oportunidade razoável para participarem na discussão acerca das concepções de justiça social implícitas no direito europeu dos contratos, pronunciandose sobre a sua compatibilidade, ou incompatibilidade, com os valores fundamentais da comunidade política: "se não se iniciasse um processo mais democrático e transparente, haveria o perigo de que tais questões fundamentais nunca fosse abertamente tratadas 27
Ob. e pág. cits.
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Ob. cit., pág. 507.
Cf. CHRISTIAN JOERGES, "On the Legitimacy of Europeanising Europe's Private Law: Considerations on a Law of Justi(ce)-fication (justum facere) for the EU Multi-Level System", EUI Working Paper/ Law no. 2003/03, European University Institute, Firenze, pág. 36: a legitimidade da europeização do direito privado teria de resultar de procedimentos e de processos (democráticos). 29
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e correr-se-ia o risco de que poderosos grupos de interesse controlassem o processo tecnocrático, conseguindo proteger os seus interesses em prejuízo do bem-estar dos cidadãos comuns" 30. Face à conexão entre a autonomia privada e a autonomia pública, o pressuposto da unidade dos princípios de direito privado de uma pluralidade de Estados é, consequentemente, recusado: os sistemas jurídicos dos Estados-membros da União Europeia exprimiriam decisões políticas diferentes acerca de como conciliar os valores básicos da autonomia e da justiça (fairness) 31. 3. O percurso de JÜRGEN HABERMAS para criticar a tese da autonomia (relativa) do direito (privado) face aos procedimentos e aos processos de decisão política não é, em absoluto, convincente. Os princípios e as regras de direito privado devem considerar-se como o resultado de um processo de evolução, em que os princípios e as regras de direito privado apropriados à formação da ordem (espontânea) de uma economia e de uma sociedade de homens livres e iguais se consolidam, ou se devem consolidar, "por enunciarem as condições de uma prossecução eficaz de objectivos numerosos, variáveis, divergentes e imprevisíveis", e em que os princípios e regras inadequados desaparecem ou devem desaparecer: "a obediência a regras mal concebidas pode perfeitamente tornar-se a causa de uma desordem" 32. O legislador cumpre essencialmente a função de descobrir e de explicitar os princípios e regras constituídos através do costume e da experiência, enunciando padrões de conduta "não dirigid[os] a um fim", aplicáveis a um número indeterminado de casos futuros e capazes de assegurar a cada um a sua liberdade e a sua propriedade e de proporcionar a todos "a formação de uma ordem de actividades no interior da qual os indivíduos possam fazer planos realizáveis" 33.
30 STUDY GROUP ON SOCIAL JUSTICE IN EUROPEAN PRIVATE LAW, "Social Justice in European Contract Law: A Manifesto", in: European Law Journal, vol. 10 (2004), págs. 633674 (658). 31 STUDY GROUP ON SOCIAL JUSTICE IN EUROPEAN PRIVATE LAW, "Social Justice in European Contract Law: A Manifesto", cit., pág. 663. 32 FRIEDRICH A. HAYEK, Droit, législation et liberté (título original: Law, Legislation and Liberty), vol. I, Quadrige/Presses Universitaires de France, Paris, 1995, pág. 126. 33 Ob. cit., pág. 103.
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Enquanto explicitação das condições constitutivas de uma ordem económico-social espontânea assente na liberdade individual, o direito privado em geral e o direito civil em particular deve considerar-se como um direito autónomo em relação aos aos procedimentos e processos de decisão política. Excepto no caso de uma alteração radical das estruturas económicas e sociais, por que se convertesse uma economia e uma sociedade livres numa economia e numa sociedade planificadas, o conteúdo essencial dos princípios fundamentais do direito dos contratos e da responsabilidade civil deve conservar-se 34. O raciocínio é confirmado pela semelhança entre os conceitos, os princípios e as regras fundamentais do direito privado — designadamente, do direito dos contratos e do direito da responsabilidade civil — dos Estados-membros 35, reduzindo as diferenças existentes a "variações locais de um tema europeu" 36. IV.
34 O "Manifesto" pretende precisamente questionar a concepção da ordem económica como "ordem espontânea". O exemplo escolhido para confirmar a conveniência de procedimentos e de processos políticos de deliberação como condição de legitimidade da "europeização" do direito privado é exactamente o princípio da liberdade contratual: a Comissão Europeia integra-o entre os princípios estruturantes do "quadro comum de referência" do direito europeu dos contratos: a liberdade contratual deveria constituir a regra; as restrições à liberdade contratual deveriam constituir excepções, e só poderiam ser previstas aí onde tal pudesse ser justificado com boas razões. O "Manifesto" interroga-se: "Por que deveria o princípio da liberdade contratual assumir uma posição tão privilegiada que as propostas para a restringir tivessem de observar o pesado ónus de justificação, com boas razões? Por que não inverter esse ónus, colocando a cargo daqueles que pretendem desregular o mercado o ónus de explicar as potenciais vantagens da ausência de regras imperativas?" (STUDY GROUP ON SOCIAL JUSTICE IN EUROPEAN PRIVATE LAW, "Social Justice in European Contract Law: A Manifesto", cit., págs. 663-664). O excerto transcrito denuncia uma concepção estritamente economicista e, por isso, uma concepção redutora de contrato, esquecendo a sua função (essencial) de proteger a liberdade de cada indivíduo. O relatório preliminar sobre conceito e as funções de contrato apresentado por HANS SCHULTE-NÖLKE reconhece-o, ao definir o contrato como "um instrumento atribuído a todos os cidadãos para lhes permitir organizarem as suas vidas de forma auto-determinada". 35 Cf. REINHARD ZIMMERMANN, The Law of Obligations — Roman Foundations of the Civilian Tradition, Juta/Kluwer, Cape Town/Deventer/Boston, 1992 (reimpressão), págs. viixi; IDEM, "Europa und das römische Recht", in: Archiv für die civilistische Praxis, vol. 202 (2002), págs. 243-316 (248-249): "na Europa, o direito privado baseia-se nos conceitos, nos princípios e nas regras, […] nos argumentos e nos fundamentos sistemáticos, numa palavra: na experiência de uma multissecular ciência do direito privado." 36 HEIN KÖTZ, European Contract Law (título original: Europäisches Vertragsrecht), vol. I, Oxford University Press, Oxford, 1997, pág. v. O autor acrescenta: "tudo o que é necessário para construir um direito europeu dos contratos é reconhecê-lo".
O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO AMIGA
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Os critérios de interpretação propostos nos parágrafos precedentes constituem, de alguma forma, um regresso ao passado, por se aproximarem da interpretação dada pelos Estatutos da Universidade de 1722 às disposições sobre o direito subsidiário encerradas na Lei de 17 de Agosto de 1769 — conhecida como a "Lei da Boa Razão". A Lei de 17 de Agosto de 1769 distinguia duas formas de resolver os casos omissos: nas matérias civis, o aplicador do direito deveria aplicar o direito romano interpretando-o de acordo com a "boa razão; nas matérias económicas, mercantis ou marítimas, o aplicador do direito deveria recorrer às leis das "Nações Christãs, iluminadas a polidas" 37. O conceito de "boa razão" carecia de esclarecimento, por ser demasiado impreciso. Os Estatutos da Universidade concretizaram-no, relacionando-o como o "Uso Moderno das mesmas Leis Romanas entre as […] Nações que hoje habitam a Europa" 38. O art. 16.º do Código Civil de 1867 abandonou as regras da Lei da Boa Razão, afastando o recurso ao direito estrangeiro para integrar as lacunas da lei: "Se as questões sobre direitos e obrigações não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos, prevenidos em outras leis, serão decididos pelos princípios de direito natural, conforme as circunstâncias do caso". DIAS FERREIRA, comentando-o, explicava que "[o] pensamento fundamental do artigo [era] condenar o apelo ao direito estrangeiro nos casos omissos da nossa legislação, evitando assim a desordem (sic) criada pelo direito anterior, que mandava recorrer ao direito romano, quando fosse conforme à boa razão, e determinava para termómetro da boa razão o estarem adoptadas as disposições daquele direito nos códigos das nações cultas" 39. O Código Civil de 1966 não recuperou as disposições da Lei da Boa Razão sobre o recurso ao direito estrangeiro como direito 37 Cf. MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA,História do direito português, Livraria Almedina, Coimbra, 1989, pág. 361. 38
n.º 1.
Apud MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA,História do direito português, cit., pág. 361, nota
39 Código Civil portuguez annotado, vol. I, Imprensa Nacional, Lisboa, pág. 36. O autor informa-nos de que no projecto primitivo se dizia expressamente que era proibido recorrer a qualquer legislação estrangeira, "a não ser como testemunho de equidade, que por aquele projecto era o meio subsidiário em vez do direito natural".
14
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
subsidiário, pelo que há-de apreciar-se a compatibilidade entre o princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros da União e as regras sobre interpretação e integração de lacunas dos arts. 9.º e 10.º do Código Civil. Enquanto regra de inclusão de argumentos de direito comparado na actividade de interpretação das leis, o princípio da interpretação amiga dos Estados-membros da União Europeia concilia-se facilmente com as disposições legais em causa. Em primeiro lugar, o n.º 3 do art. 9.º contém, implicitamente, um apelo ao confronto entre as interpretações admissíveis de uma disposição de direito interno e o direito estrangeiro — se uma interpretação concorda com a legislação ou a jurisprudência dos Estados-membros, deve presumir-se razoável; se não, ela deve presumir-se desrazoável —; em segundo lugar, o n.º 3 do art. 10.º consagra o sistema do juiz-legislador: "[n]a falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema". ZWEIGERT/KÖTZ concluem daí que o intérprete há-de confrontarse com a seguinte questão: "[s]e o juiz deve decidir como se fosse legislador, então deve perguntar-se: como decide o legislador actual?" Os trabalhos preparatórios de todos, ou de quase todos, os diplomas estruturantes do direito privado português evidenciam o constante uso de argumentos de direito comparado 40, pelo que o n.º 3 do art. 10.º do Código Civil deverá interpretarse como expressão da abertura do direito privado português a uma interpretação e a uma integração de lacunas apoiadas na legislação, na doutrina e na jurisprudência estrangeiras 41. Enquanto regra sobre o ónus da argumentação, o princípio da interpretação "amiga" dos Estados-membros da União Europeia causará decerto mais graves dificuldades ao aplicador do direito, por não encontrar uma adequada correspondência nos textos legais. O ónus de argumentar para justificar as decisões 40
Einführung in die Rechtswissenschaft, cit., pág. 17 (§ 2, III).
O dever de "tomar em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo" consagrado no n.º 3 do art. 8.º pode, e porventura deve, estender-se aos casos apreciados pelos tribunais estrangeiros [defendendo uma aproximação do direito privado europeu fundada na comparação de casos, vide, p, ex., vide JAMES GORDLEY, "The Future of European Contract Law on the Basis of Europe's Heritage", in: European Review of Contract Law, vol. 1 (2005), págs. 163-183]. 41
O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO AMIGA
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dissonantes da legislação, da doutrina e da jurisprudência estrangeiras deverá em todo o caso defender-se, por constituir uma consequência do projecto de construção europeia: "o direito em vigor converter-se-ia em algo de anacrónico e correria o risco de não desempenhar a sua função económica e social se continuasse ineficazmente fragmentado, continuando desta forma a dividir, e mesmo a opor, os cidadãos que decidiram firmemente viver na unidade, 'falar a uma só voz e agir com coesão e solidariedade a fim de defender mais eficazmente os seus interesses comuns'" 42. O legislador deveria aliás consagrar expressamente uma tal regra de interpretação: e deveria fazê-lo aditando de imediato um artigo 10.º-A ao Código Civil, em que se dissesse que o intérprete há-de tomar em consideração as leis dos Estados-membros da União Europeia, a fim de obter uma aplicação uniforme dos princípios comuns de direito privado 43.
42 GIUSEPPE GANDOLFI, "Introduction", in: GIUSEPPE GANDOLFI (coord.), Code européen des contrats. Avant-projet, Giuffrè, Milano, 2004, LI-LVIII (LII). 43 O (eventual) art. 10.º-A do Código Civil deveria conter ainda um n.º 2 em que se esclarecesse que o direito interno deve interpretar-se de acordo com as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições (cf. art. 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).
FROM PRIVATE INITIATIVES TO THE COMMON FRAME OF REFERENCE: A RETROSPECTIVE ON EUROPEAN CONTRACT LAW Kristina Riedl
INTRODUCTION Drawing perspectives on European Contract Law demands to include the history of European Contract law. Consequently, this article provides a retrospective on the process of Europeanisation of contract law. This article does not only draw an historical perspective on contract law, but it also considers the evolution of European Contract Law from the perspective of legal scientists. Hence the article places the main focus on the role of legal science examining the way which legal scientists have contributed to the process of Europeanisation of Contract Law so far. To this end, various academic projects will be presented which have had significant imputs to the process of Europeanisation of contract law, such as the Lando Commission or the Study Group on a European Civil Code. Probably the most important effect of these “private” activities is the establishment of an academic “Network of Excellence” by the EC-Legislator in 2005 which aims at the elaboration of a Common Frame of Reference (CFR) for European Contract Law. Since the focus of this paper is on the (historical) role of legal science, when speaking of ‘European Contract law’, I do not refer to the ‘hard law’ of the EC directives or regulations; I rather 17
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
refer to the “soft law” which has been elaborated by private research groups such as statements of European Principles of Contract Law. This paper tries to be not very suggestive as to the direction the Common Frame of Reference project might take - on this Prof. Sinde Monteiro`s contribution will elaborate subsequently. I. THE RIDDLE OF HUMPTY DUMPTY Nearly every booklet on traditional english nursery rhymes contains the song of Humpty Dumpty. This is a very old riddle which asks who (or what) is Humpty Dumpty: ‘Humpty Dumpty sat on a wall Humpty Dumpty had a great fall All the king’s horses and all the king’s men Couldn’t put Humpty together again…’ For decades, not only children but also adults have been guessing who Humpty Dumpty might be. Probably the most famous interpretation provides Lewis Carroll in his famous tale 'Alice through the Looking Glass': In the wonderland of Alice, Humpty Dumpty is a large, round, egg-like person with arms and legs sitting on a wall and talking in a very sophisticated manner (just like grown up people love to talk like). Since Carroll, nearly every illustration in existence has presented Humpty Dumpty as a human-like egg. When reciting the rhyme, we realise there is nothing in the riddle to directly suggest an egg. As a matter of facts, one line only alludes to something breakable: "All the king's horses and all the king's men Couldn't put Humpty together again." Thus, Humpty Dumpty must be something difficult to reconstruct once it is broken (like an egg). Reconstructing a broken egg is indeed a difficult and laborious challenge - the pessimistic reader might claim that it is even impossible! But who says that Carroll`s answer is the right one? Who says that it can be nothing else than an egg? Dear reader, if you wonder: “What does all this have to do with European Contract Law?”, let me explain: The story of Humpty Dumpty is very useful in the context of this Conference
FROM PRIVATE INITIATIVES TO THE COMMON FRAME
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on Contract Law in order to illustrate the evolution of European Contract Law, since the Europeanisation of Contract Law is a laborious – some even say: an impossible – effort, too! II. THE IUS COMMUNE TRADITION In the history of European Contract Law, there was a period when — simply spoken — a common legal tradition sat above the European legal landscape — like Humpty Dumpty sitting on its wall. This was in the middle ages, when a true European legal science was developing and applying a common learned law: the medieval ius commune which is — essentially — Roman and Canon Law as it was interpreted and reshaped by medieval jurists. In other words, the ius commune was developed and applied all over Europe by learned men, the “doctores” (today we call them “legal scientists” „academics“). III. THE RISE OF NATIONAL CONTRACT LAWS However, after the rise of the European nation states, several national codifications were inforced, first in France (1804), then in Austria (1811), in Portugal (1821)1, Spain (1889) or Germany (1900)2. Parallel to the enforcement of these national Civil Codes, the ius commune tradition fell down splitting into various legal fragments: Some parts of the ius commune doctrines where absorbed and assimilated by national legal regimes, some were not. Legal scientists consequently restricted themselves to the development and the interpretation of “their” national contract laws which include national conflict of law rules that govern cross border relationships. This was the end of a true European legal science. 1 Prior to the approval of the current Civil Code in 1966, Portugal had an ancient legal system based on Roman law. There were several civil codes like the Civil Code (1778); the Civil Code and Commercial Law (1798); the New Civil Code or novo Codigo Civil e Criminal (1821) - with revisions in 1826, 1828 and 1835. During Spanish rule, some Spanish laws were incorporated into the ancient Civil Code. The first modern Civil Code came into effect in 1867, the current civil Code dates from 1966. 2
French Code Civil (1804), the Austrian ABGB (1811), the Portuguese Novo Codigo Civil e Criminal (1821), the Spanish Codigo Civil (1889), the German BGB (1900).
20
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS IV. RECONSTRUCTING HUMPTY DUMPTY: PRIVATE ACADEMIC INITIATIVES
In the 20th century several “heroes” from all over Europe began to reconstruct Humpty Dumpty on their own “private” initiatives. These “heroes” were no “king’s men” - they did not depend on any sovereign or authority. Rather, they are independent men, free academics, trying to materialise their personal ideas of a European Contract Law: 1. ERNST RABEL AND THE CISG The first private academic initiative was started by Ernst Rabel. He was a legal scientist and he was convinced that the conflict of law rules were only the second best solution to the needs of international trade. He therefore suggested the creation of a set of independend rules which should govern transnational contractual relationships. His comparative research was published in his famous book “Recht des Warenkaufs” (Law of Sales of Goods) in 1935 and 1955. Rabels ideas were adopted by the Unidroit Institute in Rome and finally resulted in the UNConvention of the International Sale of Goods. Since its coming into force in 1988, the UN-Convention on the Sales of Goods has proved to be one of the best working conventions ever. It goes back to the private initiative of one single academic: Ernst Rabel. 2. THE LANDO-COMMISSION In the early 1970, the Danish professor Ole Lando caught on Rabels idea to substitute conflict of law rules by a set of substantial rules for cross-border transactions. To this end, Lando founded the Commission on European Contract Law (also called Lando-Commission) in 19823. Lando convinced 20 academic colleagues from various European universities to join his project on drafting Europan Rules of General Contract Law. The first edition of these 3
See http://www.cbs.dk/departments/law/staff/ol/commission_on_ecl (04/2007).
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Principles of European Contract Law (PECL), they are also called “Lando-Principles”, was published in 19954, two other editions followed in 1999 and Part three in 20015. 3. ACADEMIE DES PRIVATISTES EUROPEENS Eight years after the formation of the Lando-Commission (in 1990), the Italian professor Giuseppe Gandolfi convinced 45 colleagues to establish the „Academy of European Private Lawyers” in order to design a uniform European Contract Code. The group based its work on the Italian Codice Civile and the socalled „McGregorCode“6 which is a model Contract Code from 1972 which inteds to bridge civil law and common law. The first draft of the Gandolfi-Contract-Code was published in the year 20007. 4. COMMON CORE PROJECT The Italian professors Ugo Mattei and Mauro Bussani are the founders of the Common Core Project.8 The first meeting took place in June 1994 in Trento. The project aims to design a legal roadmap of Europe in the area of contract and tort law by means of comparative studies. Many books have since been published, like on Good Faith in European Contract Law as well as on The Enforceability of Promises in European Contract Law. The 13th meeting of the group will take place in Turin in July 2007. 5. EUROPEAN GROUP ON TORT LAW In 1992 the Dutch professor Jaap Spier founded the “European Group on Tort Law“ which is coordinated by Helmuth 4
Ole Lando & Hugh Beale (eds.) Principles of European Contract Law, part 1, The Hague 1995.
5
Ole Lando & Hugh Beale (eds.) Principles of European Contract Law, part 1 and 2, The Hague 1999; Ole Lando, Eric Clive, André Prüm & Reinhard Zimmerman(eds.) Principles of European Contract Law, part 3, The Hague, 2003. 6
H. McGregor, Contract Code drawn up on behalf of the English Law Commission (Milan, 1993).
7
GIUSEPPE GANDOLFI, Code Européen des Contrats – Avant Projet, Mailand 2001. Code Europeen des Contrats, Avant-projet, coordinateur Giuseppe Gandolfi, vol. I, (Milan, 2000). 8
See http://www.jus.unitn.it/dsg/common-core/.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
Koziol at the European Center of Tort and Insurance Law (ECTIL) in Vienna9. The group is drafting European Principles of Tort Law meant as a counterpart of the Lando-Principles in the area of tort law. They are published in the world wide web since 2004, and they have been presented in a public conference in May 2005 in Vienna. In April 2007, the ECTIL organised an Annual Conference on European Tort Law in Vienna on the most significant recent developments in tort law within Europe. 6. STUDY GROUP ON A EUROPEAN CIVIL CODE - SGECC The German law professor Christian Von Bar is the coordinator of the largest research project10: the Study Group on a European Civil Code which was founded in 1998 on personal initiative of Arthur Hartkamp. The Study Group is the official successor to the Lando-Commission. However, it has a more farreaching focus in terms of subject matter: Its goal is the drafting of a complete European Civil Code including consumer law and special types of contracts that are relevant for the functioning of the common market. The Study Group consists of more than 80 professors and PhD students from 20 countries who do much of the comparative research. It is divided into several permanent working groups all over Europe. The drafts of the Study Group are published in the world wide web; in recent times, there are also books published. The latest publication of the Study Group is a book on Principles of European Law on Service Contracts from January 2007. The next meeting of the Study Group will take place in Budapest in June 2007. 7. EUROPEAN RESEARCH GROUP ON EXISTING EC PRIVATE LAW In 2002 the German professors Reiner Schulze and Hans Schulte-Nölke founded the “European Research Group on the Existing EC Private Law (Acquis Group).11 Currently the group consists of more than 40 legal scholars from nearly every 9
See http://www.egtl.org/.
10
See http://sgecc.net.
11
See http://www.acquis-group.org/.
FROM PRIVATE INITIATIVES TO THE COMMON FRAME
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European Member State. As a reaction to the pointillistic directives and regulations of the EC legislator in the field of European contract law, the Acquis Group aims to elaborate a systematic arrangement of existing Community Contract Law – namely of the acquis communautaire. To this end, the Acquis Group plans to publish "Principles of the Existing Community Contract Law". The next Acquis Group Plenary Meeting will take place in Cracow in October 2007. In May 2005 the Acquis Group and the Study Group of a European Civil Code became parts of the “Joint Network on European Private Law”12. This is an academic network which shall elaborate a Common Frame of Reference (CFR) under the mandate of the EC-Commission (for details see later). 8. THE SOCIAL JUSTICE GROUP Recently, the „Study Group on Social Justice in European Contract Law“ was founded. It is a collaboration of more than 20 law professors from several European memberstates13. The group is concerned with the risks and limits of unification of contract law. The Social Justice Group emphasises the social and political aspects of Europeanisation of contract law – aspects which have hitherto been neclected by the other academic groups. The Social Justice Group does not only publish critical papers and reports but it also tries to be a “critical voice” in the EC legislation process. V. ANALYSIS OF ACADEMIC PROJECTS – COMMON GROUNDS DIFFERENT APPROACHES
AND
Each of the projects presented is characterised by a very individual approach. Let me thus shortly compare them: what do they have in common? How do they differ? How do they relate? 1. WHAT DO THE ACADEMIC PROJECTS HAVE IN COMMON? They share a common origin: every project is originating from the personal initiative of legal scientists. Hence, the origin was not 12 13
See http://www.copecl.org/.
Brüggemeier/Ciacchi/Smith, Towards the Amsterdam Manifesto. Social Justice in European contract Law, 2003 (not pulished).
24
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
an official mandate of some “king” or legislator, but these groups originated from the ideas and the personal courage of one (sometimes two) academics. They are characterised by a common objective which is to provide for the foundations of a new European Contract Law – which shall be common to all European states There are also common characteristics in membership: All working groups consist of legal scientists from various European states (additionally some group members are practicioners – Lando for example is arbitrator – which adds some practical perspectives to the scientific work). 2. HOW DO THE ACADEMIC PROJECTS DIFFER? In detail, their strategies differ fundamentally, I will name just a few factors: Although sharing common objectives, they have different starting points: The Gandolfi Group started from the Italian Civil Code and the McGregor draft; the Lando Commission took as a starting point for their investigations the various domestic contract laws, the Acquis Group starts from the existing Community law, and the Study Group starts from the national private laws plus Community Law plus the Vienna Convention on Sales. Different working methods: The single research groups are using different working methods. For example: the LandoCommission`s working method was to nominate among their members some “reporters” who elaborated drafts on single topics such as on remedies. The Common Core Project uses questionaires sent to universities all over Europe to gather informations for their legal roadmap. The Group on Tort Law as well as the Study Group engage joung research assistants to elaborate country reports. The projects also differ in terms of group-composition: Some groups are rather small (the Lando-Group consisted of about 20 members) others are big (Study Group on a European Civil Code consists of over 80 researchers). Some groups are not really wellbalanced (in the Gandolfi group there was a majority of Romanists
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and of French and Italien nationals); others are better balanced (in the Study Group and in the Common Core Project, every European Member State is represented). The projects also differ in terms of their results: Some groups (like the Common Core Project) restrict themselves to systematically analysing the existing contract law rules of the Member States. The results are casebooks or restatements or synoptical collections of the existing law. Other groups, like the Lando Commission, the Gandolfi Group or the Study Group do not restrict themselves to comparative research, but elaborate on the formulation of new texts such as Principles or Draft Codes. 3. HOW DO THE ACADEMIC PROJECTS RELATE? Finally, if we investigate on “how do they relate” we remark that despite of the differences presented, most projects are consciously taking into account the work of the others. Cooperation is intended and vital. To state an example: The “Principles of Existing Community Contract Law“ of the AcquisGroup are intended to supplement the Lando-Principles. Furthermore, the Acquis Group seeks to provide other initiatives with its findings on the existing EC contract law. It’s a mutual give and take. VI. THE
ROLE OF PRIVATE ACADEMIC PROJECTS: DOING?
WHAT
ARE THEY
I do not want to restrict myself to the mere comparison of academic projects. Rather I investigate in their role and function within the process of Europeanisation of Contract Law. The Europeanisation of Contract Law has been explained by political scientists as a multi-level process. Because the European System is not a homogeneous legal system at only one level, but a multi-level-regime with many different actors at many different levels involved - such as the Community Legislator (producing Community Law), national legislators (producing national laws), the ECJ and the national judiciary (producing case law), nongovernmental organisations and practitioners (producing guidelines, codes of conduct, standard contract terms and clauses
26
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
like the famous INCOTERMs of the International Chamber of Commerce). All these actors are producing “law” on different levels: some is hard law from “above” (like EC-regulations) some is “soft law” “from below” (like guidelines, contract terms or clauses). All being part of the European multi-level system. Interestingly, the private academic projects have become “actors” in this system, too. At the beginning, the research groups were not conscious of the role they have been playing in the European multi-level system. Only today they realise that they have become a very important part of it. The reason why I call them European actors is that their work does not – and cannot – be restricted to pure scientific studies. It lies the nature of their objectives – which (in a nutshell) is the elaboration of the future contract law of Europe – that their projects have got a political dimension, too: because designing a new European contract law regime is not a mere scientific challenge but a political objective, too! Take as an example the Study Group on a European Civil Code persuing – as the name of the group implies - the elaboration of a “European Civil Code”. Since their work has strong political implications, research groups have been facing a deficiency; that’s why they have been fundamentally criticised in legal writings.14 The reason for the critique was the missing of political authorisation, the lack of legitimacy, the absence of a political mandate. As a reaction to this dilemma, some research groups proved to be very pragmatic: What did they do? They got in contact with the EC-authorities. VII.
THE MANDATE OF THE EC-LEGISLATOR
I do not have enough insight to tell how deep academics were actually involved, but in the end, Parliament and Commission acknowledged the need for a political mandate to legal research projects.
14 For example by Christian Joerges, Duncan Kennedy, by myself and others like M. Smits, The Good Samaritan in European Private Law: on the perils of principles without a programme and a programme for the future (Deventer, 2000).
FROM PRIVATE INITIATIVES TO THE COMMON FRAME
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1. 1999: THE SUMMIT OF TAMPERE At their 1999 summit in Tampere, the European heads of government gave a declarative statement that ‘…an overall study is requested on the need to approximate Member States’ legislation in civil matters …’. Suddenly (and we do not know how far academics had any conscious part), the wheels of motion had started on a political level. From then on a range of Parliament resolutions, Commission Communications, and positive statements from individual heads of government were formulated15. 2. 2003: ACTION PLAN CONTRACT LAW”
ON
“A MORE COHERENT EUROPEAN
The most important legal act in this respect was the Communication of the Commission on an Action Plan from 200316: For the first time, the Commission communicated its intention to elaborate a “Common Frame of Reference” which shall inter alia provide a basic structure for the creation of a nonsector specific set of rules and principles (which the Commission calls an “optional instrument”). Notably, it was already in this Action Plan, that the Commission explicitly referred to private academic initiatives. To state some examples — The Commisison announced that “the details of the CFR shall be decided in co-operation with legal science and economic operators”. — The Commission explicitly announced to involve and to finance the “ongoing research projects”. — The Commission concluded: “…It is essential that these research activities are continued and exploited to the full. Therefore, the main goal is to combine and co-
15 All of these documents concerning European contract law are available on the Commission’s Web site under: http://europe.eu.int/comm/consumers/cons_int/safe_shop/fair_bus_pract/cont_law/index_en.htm. 16
COM [2003] 68 final.
28
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS ordinate the ongoing research in order to place it wihtin a common framework” (Point 66).
It is remarkable that never before in the realm of European contract law has there been such an intense focus on research groups. This was the beginning of a new era in the process of Europeanisation of contract law. Many positive reactions followed from Community institutions, Member States, stakeholders and academics. 3. 2004: THE COMMISSION'S COMMUNICATION “THE WAY FORWARD” In October 2004 the Commission published a 2nd Communication on “The Way Forward”17, specifing inter alia the strategies for the elaboration of the CFR. Again, it adresses the need for participation of researchers and stakeholders in order to ensure that the CFR is of high quality.18 To support the researchers work, the Commision envisages inter alia several concrete measures, namely: — to finance three years of research under the Sixth Framework Programme for research and technological development. — to establish a network of stakeholder experts to ensure contribution and feedback to the researchers’ preparatory work — to
organise regular workshops in order to allow stakeholders and the Commission can follow the evolution of the research.
— to support the process by an internet site serving as a platform.
17
Communication from the Commission “European Contract Law and the revision of the acquis: the way forward'European Contract Law and the Revision of the Acquis: The Way Forward” (COM (2004) 651 Final) of 11 October 2004. 18
Cf. Point 3 “PREPARATION AND ELABORATION OF THE COMMON FRAME OF REFERENCE”.
FROM PRIVATE INITIATIVES TO THE COMMON FRAME
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— to establish guidelines for the operation, to ensure that researchers and stakeholders have a clear and shared understanding of the process. And finally: — to nominate a “Network of Excellence” which shall consist of several research groups to deliver a proposal for the "Common Frame of Reference" for European contract law. 4. JOINT NETWORK ON EUROPEAN PRIVATE LAW 2005 Actually, in May 2005, after several months of consultation, the Commission nominated the “Network of Excellence”, the coordinator of which is Professor Hans Schulte-Nölke of Bielefeld University19. This was the official mandate of the Community Legislator. The Network comprises several Universities and Institutions among them are: — The Study Group on a European Civil Code (Von Bar); — The Research Group on the Existing EC Private Law, or "Acquis Group" (Schulte-Nölke/Schulze); — The Common Core Group (Bussani/Mattei). The contract which was concluded between the researchers and the EC-Commission to establish the Network of Excellence dictates a tough timetable: By the end of 2008, the researchers are expected to deliver a final draft of the CFR (“Draft Version of the CFR” -DCFR). The final publication is envisaged in December 2008. VIII. EVALUATION: HOW
DID THE WORK OF RESEARCH GROUPS
EC-LEGISLATOR
CHANGE THE
I will not elaborate on the future of this process, I rather resume how the intervention of the Community Legislator has changed the world of research groups: As you imagine, this relationship is not unproblematic:
19
http://www.copecl.org/.
30
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS — It brings a loss of independence for academic projects because the Commisison is prescribing the agenda like dictating the direction and a tough timetable of the process. — Plus for the researchers it is difficult to operate within the uncertainties of the political process, take the question of what the CFR actually is and what the document to be published at the end of 2008 will contain. Probably the most teasing uncertainty is that the Commission has already declared itself “not bound by the researchers’ final report”.
Despite of these difficulties there are substantial advantages for the research groups, too: — Above all, there is an official mandate of the CommunityLegislator (which remedies the legitimacy deficiency); — There is an involvement of stakeholders; — There is considerable technical support (i.e. internet forum, workshops etc); — Last but not least: there is considerable financial support. IX. CONCLUSION To sum up, the academic projects have played an important role in the evolution of today`s contract law in Europe. On the one hand, these private initiatives have given the initiative impulse for further development in European contract law. One of the most important “achievements” is the action plan of the European Commission on the creation of a CRF which probably would have never been initiated without the previous work of the academic projects. On the second hand, all the positive aspects of the EC legislator`s intervention (like, for example, the action plan on European Contract Law) promote the creation of a true European legal science community. Furthermore, it is interesting to observe that each academic projects influences the Europeanisation of Contract Law in a
FROM PRIVATE INITIATIVES TO THE COMMON FRAME
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specific way: at the beginning, there was Ernst Rabel, who launched his important project on the unification of international law of sales, which is mailny a matter commercial law. Then, the PECL of the Lando Commission shiftet to general contract law – the PECL are designed to govern any contractual relationship. After the Lando Commission, several different projects emerged. These projects have thrown different perspectives on the Europeanisation of contract law, such as the codification idea (Gandolfi Group) or the landscape approach (Trento project). The aqcuis group added another perspectives: it involved the level of European Law (EC legislation and the jurisprudence of the ECJ) in its examinations. The Study Grop on a European Civil Code started to include consumer aspects in order to answer to the EC policies on consumer law. The Study Group was also the first group to elaborate on special types of contracts that are relevant for the functioning of the common market such as franchising contracts. Finally, the Social Justice Group is the first academic project which is considered by the social aspects concerned in the process of Europeanisation of Contract Law. If one analyses each group on its own, their approach may be criticised to be to restricted; limited or too specific. This is a reductionistic viewpoint since the project of harmonising or even unifying European contract law is to big to be handled by one project only. Rather the academic groups shall be considered as a joint effort of European legal science to further develop European contract law. This is what the EC Commission has done from the beginning: the Commission has realised that it would be reductionistic to give the mandate for the elaboration of the CFR to one single academic project. Instead, the Commission has given the mandate for the creation of the CFR to a team of several research groups which shall co-operate under the flag of the so called “network of excellence”. To conclude, I am confident that in total the joint effort of legal scientists and political stakeholders (especially by the European Commission) has added an important positive impulse to the process of Europeanisation of Contract Law. Well, making a round thing out of it is a laborious effort - but it is not an impossible effort at all. From this perspective I dare say that we are on the best way to put Humpty Dumpty together again.
THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS — JUDICIAL LEGITIMACY AND CONTRACT FRAGMENTATION Anthony Chamboredon
INTRODUCTION Since this morning, a nice and “harmonious” music is coming from the hills of Fiesole... I would like to thank Professor Nuno Manuel Pinto Oliveira for his invitation to this meeting, for the opportunity to meet again comrades and friends from the European University Institute of Florence, and eventually for being able to discover Portugal, beginning by the Bom Jesus of Braga. I have been asked to give some introductive remarks about the ongoing debate regarding contract law unification/globalisation processes; just back from a conference in Wuhan, China, where contract law is being completely reformed under the influence of occidental law, this topic appears indeed of an outmost interest. But what I am going to say might seem quite discouraging after the very optimistic presentations of my colleagues this morning. My point will be sceptical … - well, you may think that there is nothing less than surprising from a citizen of a country where the most important European legal endeavour was rejected in a shameful referendum… So I am going to talk about contracts, but contracts “without State”, contracts in a context of globalisation that does not rhyme with unification but with fragmentation. “Uncertainty and ambiguity (...) constitute a double reason to confer a real autonomy to the contractual relation that will make it escape the vagaries of ideology, politics and 33
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
history”(...). “In the middle of the constant transformations that we live in, the master task is to set oneself up as legislator in order “to make the contract stand on its own”. Achieving this task makes it necessary to have a precise analyse of the background of the transaction to forge a clear and exhaustive document that allows the contractual parties to live legitimately under the cover of cleavages between economic and judicial systems”1. Grounded on the observation of negotiated contracts developments, this plea in favour of a contractual autonomy is particularly meaningful for the contemporary evolution of contractual relations. Globalisation and growing autonomy of contracts characterise this evolution whose combination shape little by little what one would define as a new lex mercatoria. This phenomenon (Section I – Globalisation and growing autonomy of contractual norms) arouses the question of its judicial legitimacy (Section II – Legitimacy of an autonomous contractual formation). I. GLOBALISATION NORMS
AND
GROWING AUTONOMY
OF
CONTRACTUAL
The double phenomenon of globalisation and the increasing autonomy of contractual norms explain the development of a new lex mercatoria (§1 – The development of a new lex mercatoria). Can we define this set of norms as a ‘global law without State’? – The traditional judicial criteria to define this law seem to lead to a deadlock (§2 – The lex mercatoria: a “global contract without a State”?). 1. THE DEVELOPMENT OF A NEW LEX MERCATORIA The emergence of a new lex mercatoria is a correlation between globalisation phenomena (A) and the increasing autonomy of contractual norms (B). A.
THE EMERGENCE OF A GLOBALISATION OF CONTRACTUAL NORMS
1 PISAR, S., Négocier et rédiger un contrat international, BLANCO, D., Paris, Dunot, 3e éd. 2002, préface
THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS
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The globalisation of society changes the law as well as the economy. First it reveals oneself by intensifying international exchanges. The acceleration of the merging process of multinational firms, the increasing number of international cooperations contracts, are logically making partners to intervene in issues of different cultures and judicial orders. The law practiced here appears to be more and more transnational. Some internal judicial regimes, constituted within multinational firms, produce a system that one may call a “law without a State�. Thanks to worldwide coordination where State interventionism is less and less present, technical standardisations and professional regulations are better able to develop by their own. Fields in economic law such as commercial and industrial law, employment law or environmental law are globalising in a more and more autonomous way. A multitude of firms organised at national level are moving towards global ones. This evolution is continuing and dynamic; it is not uniform. So this is not about the emergence of a global society under the political inter-state politics (like the European construction could have been), but it is rather about very fragmented and contradictory processes in which Nation States are progressively loosing their part as leaders in the judicial norms production. One of the most significant symptoms of this evolution is the rapid development of international law firms. These multinationals are creating a law that appears less and less defined on the basis of the judicial models within national frontiers; this law seem less territorial or national and more divided in economic sectors. Some economic sectors and financial markets overtake territorial frontiers to create their own norms. The outcome is a new law of conflicts more private than public, which seems to regulate disputes between different economic and social sectors rather than national ones. National legislations appear less and less competent in the regulation of very technical and specialised economic sectors. In that way, globalisation couples with a growing autonomy of contractual norms production.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS B.
THE GROWING AUTONOMY CONTRACTUAL NORMS
IN THE
PRODUCTION
OF
To organise their transactions or solve their disputes, contractual parties choose rules, institutions or techniques in which the links with national states are less and less obvious. Contract law is no longer monopolised by a State regulator producing contractual justice with exclusivity, but seems rather to diffuse through the mediation of various national or international institutions in the form of industrial, commercial, bureaucratic, banking or insurance networks. The principle of legal unity, ideally dominant, symbol of national identity, seems to be outdated. Should we consider these phenomena as positive law or only as a set of social norms taking only a judicial form by the mediation of national or international decisions? – Is it a global contract without State?2 2. THE LEX MERCATORIA: A “GLOBAL CONTRACT WITHOUT STATE”?
A
Grounded on custom, international corporation or on the idea of a “Contract without law” (A), when we have to define this new lex mercatoria, every classical criterion of the judicial character of the contractual norm lead to a deadlock (B). A. A NEW GLOBAL JUDICIAL ORDER FOUNDED CORPORATIONS, WITHOUT A STATE ?
ON
CUSTOMS,
For some, this new lex mercatoria is a real global judicial order whose sources lay on the practice of global commerce, common economic directives, standardised contracts, on the activity of multinational industrial groups, the constitution of codes of good conduct or in the international tribunals sentences of arbitrage. Based on usage and custom, this law seems independent of national sovereignty. For some others, this new lex mercatoria is comparable to the law of the middle age, constituted as a very closed community
2 Cf. : TEUBNER, G., « Global Bukowina : Legal Pluralism in the World Society », in Teubner éd., Global law without a State, Aldershot : Dartmouth Gower, 1996.
THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS
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of merchants’ corporations, producing organisational sanctions and disciplinary codes. Another point of view developed the idea of a “contract without law”, which supposes to exist without national or international grounds. This appears incompatible with a definition founded on the theory of judicial sources. The principle of Nations-State sovereignty reduces this lex mercatoria to a “fictional law”. According to this principle, every judicial phenomenon is rooted in a national judicial order requiring a “minimal tie” with a national law. Therefore, commercial usages from a corporatist or not origin cannot themselves create autonomous law. These norms can only become the law by a formal act from the sovereign State; idem for standardised contracts which are subordinated to the control of national judicial orders. Without State acknowledgement, these norms have no obligatory force. At the end of the day, international arbitrage, can always be questioned by national tribunals or by an exequatur procedure. Therefore only the classical theory of the conflict of laws, of private international law, is capable of regulating these disputes efficiently. If globalisation is unavoidable, nothing can prevent from the application of the only legitimate sources that are the international treaties and conventions. The idea of a new lex mercatoria, based on a “contract without law”, breaks the taboo of the natural tie between the law and the State, and suggests the existence of “private” judicial orders considered as a lex illegitima. How a valid spontaneous law could emerge from transnational contexts without the authority of a State, without its power of sanction, without its political control, without the legitimacy of a democratic process of normative production? Where is the “Grundnorm” on the world scale? Where is the “rule of global recognition”? - Where does the genuine production of these norms come from? - National politics, international relations, national judicial procedures or economic and social processes on the global scale? - The development of an economic global law appears to shape simultaneously itself from several
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
dimensions; classical judicial criteria seem then to lead to a deadlock. B. THE DEADLOCK OF JUDICIAL CRITERIA
A
DEFINITION BASED
ON
CLASSICAL
The “sanction” has lost its place as a central concept in the definition of law. It becomes a normativity criterion among others. If the criterion of national tribunals sanction were used as an argument against the global character of this law, many regulations avoid this sanction. Therefore, although this criterion may be necessary, it is not however sufficient. The notion of “legal rule” has lost its strategic position as the central subject in the interpretation of law. The paradigmatic turn from “structure” to “procedure” has lead to consider statements, communicating events and acts that apply these rules as the central elements of the judicial order. This transformation cannot be characterised by the mere production of rules, but by their insertion in a context of speeches. The indecisiveness, the imprecision of rules produced by the lex mercatoria is a misleading criterion. The existence of a group of formal elaborated rules is not decisive. What should count is the process that organises the mutual constitution of judicial acts and structures. The contractual context of self-validation would be the privileged criterion of normativity, but this seems paradoxical. Only a contract by itself seems to have the power to overtake national frontiers and transform a traditionally national legal production into a global one. Only contracts that long for having a transnational validity manage to cut themselves off from their national roots. It is necessary therefore to observe again this contractual practice, and detect the requirements of lex mercatoria. If we ask ourselves the question of the foundation of the rules set down by these contracts, and if this question is asked in the manner of Durkheim: from where the non-contractual premises of a contract stem from - the only possible answer is to be found in contracts themselves; but again, we reach a dead end. The self-validation of a contract leads to a paradox that takes the following form- “we agree that our contract is valid or not valid”. It
THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS
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is pure tautology; it is a typical self-referring paradox, which leads to nothing more than a never-ending oscillation, valid/non-valid, non-valid/valid etc., which resumes itself in the impossibility of making a decision. Thus, if we cannot accept the idea of a selfvalid contract, the lex mercatoria has no judicial ground3. Practice is however more imaginative than theory. International negotiators have found means to avoid the self-validation paradox by elaborating a specific, and autonomous process for contracts formation. II. LEGITIMACY OF AN AUTONOMOUS CONTRACTUAL PRODUCTION Globalisation and growing autonomy of contractual norms production lead to a new representation of contract law. In the practice of international businesses, an autonomous process for the formation of contracts is elaborated. This process is to create through longer negotiations the required conditions for a selfvalid contract (§1 – Required conditions and effects of an autonomous contractual formation). However, the required conditions for the implementation of autonomous negotiated contracts are not without serious reserves and arouse again the question of their legitimacy (§2 – Problematic legitimacy of global autonomous negotiated contracts). 1.
REQUIRED CONDITIONS OF CONTRACTUAL FORMATION
AN
AUTONOMOUS
International negotiators set themselves through long negotiations the rules that will frame and organise their relationships within the foreseen contractual operation. The formation of these negotiated contracts organises not only the commercial or industrial transaction but establishes also within the form of contractual standards, a system of legal regulation of private order. Therefore, besides classical rules of contract formation, conventional clauses may set up competence of either arbitrage tribunals or private institutions that “legislate” themselves on the contractual model, by a higher level of negotiation and deliberation? The implementation of this
3 Cf. : TEUBNER, G., « Global Bukowina : Legal Pluralism in the World Society », in Teubner éd., Global law without a State, Aldershot : Dartmouth Gower, 1996
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
formation requires some conditions characterised in doctrine4 by a hierarchy (A) and externalisation (B) and temporization of the rules in negotiated contracts (C). A. THE REQUIRED HIERARCHY The autonomous formation of negotiated contracts requires an internal hierarchy within the contractual rules. Negotiators have not only to set some “primary rules” that foresee the future parties behaviour, but they also have to set “secondary rules” that regulate the recognition of the primary rules, their identification, their interpretation and also the procedure for the conflicts resolution. The paradox of the self-validation is not excluded, but it is concealed by a distinction of the various levels of hierarchy between primary and secondary rules that constitute the formation of the contracts. Even if they remain of contractual origin, secondary rules appear to be the most autonomous. B. THE REQUIRED EXTERNALISATION Negotiated contracts have to externalise themselves; they have to be subjected to the conditions of validity, to the regulations of non-contractual and contractual institutions since they are produced by the contract itself. For example, the sentences of a tribunal such as the International Chamber of Commerce of Paris, and every other international legal or economic institution grounded on contractual terms. This practice creates therefore, ex-nihilo, an institutional triangle combining legal, judicial and conventional rules. The process of externalisation makes easier the interaction between official and non-official legal orders. The production of a contractual law organised spontaneously, creating a functional equivalent of state law, distinct from a purely national form of some contracts. Moreover, this practice transforms the part played by international contracts; although arbitration and standardised contracts are themselves founded on a contract, they transform contractual formation into “non-official” law, controlled by “nonCf. : TEUBNER, G., « The King's Many Bodies: The Self-Deconstruction of Law's Hierarchy », Law & Society Review, Vol. 31, No. 4 (1997), pp. 763-788 4
THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS
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official” law set up by official and non official, public or private authorities5. C. THE REQUIRED TEMPORISATION The implementation of this autonomous formation of negotiated contracts, combining hierarchisation and externalisation processes operates necessarily within time duration. The self-validation of contractual rules cannot be understood outside the duration of their formation. This time duration is the result of an interactive process of legal acts and structures. Logically, the formation of a contract extends into the past and the future; negotiated contract refers itself to pre-existent standardisation of rules, and projects itself into the future by the elaboration of clauses that foresee their regulation. In that way, negotiated contracts create themselves in a progressive and continuous formation, a self-production in which each act generates other acts. Requirements of a self-validation of a contractual production are therefore gathered within a system set up by a hierarchy of standards and by organisational authorities shaped in a long term. This has nothing to do with customary law founded on traditional practices labelled “opinio juris”. Commercial customs only play a limited role. In the same way, professional organisations are not formally organised business communities, which produce their own law. The formal source of validity of these contracts is structurally different from professional organisation. Finally, this is no longer about a “contract without law”, since it remains linked, indirectly, by an institutional network in which Nation State standards are presented6. However, the legal and political legitimacy of such autonomous contracts remain a problem. 2.
PROBLEMATIC
LEGITIMACY OF GLOBAL AUTONOMOUS NEGOTIATED CONTRACTS
5 Cf. : TEUBNER, G., « Global Bukowina : Legal Pluralism in the World Society », in Teubner éd., Global law without a State, Aldershot : Dartmouth Gower, 1996. 6ibidem
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
The presuppositions based on the implementation of an autonomous contract raise a vital debate. In a straightforward way, the debate traditionally opposes those who see, in the dawn of the role of the State (supposed to be the only producer of contractual standards) the risk of an increasingly impersonal and corporate society (B), and those who, on the contrary, consider that economic world requires more freedom and flexibility to guarantee a maximum of efficacy in commercial and industrial exchanges for the development of wealth (A). The lawyer has to find a way between the economic legitimacy and the social illegitimacy of the new lex mercatoria. A. THE ECONOMIC LEGITIMACY OF NEGOTIATED CONTRACTS
OF AN
AUTONOMOUS FORMATION
It is clear that to choose a law outside the existing national regulations does not mean that a new law is created outside national legal orders. The legitimacy of this autonomous contract will always be questioned in the context of its link with national laws. Even if this link is very weak, from the moment where a national rule of recognition is enshrined within the hierarchical network formed by the negotiated contracts, the link does exist and set the obligatory or non-obligatory legal character of the contract. This type of contract is to being legally sanctioned. However, ‘rules of recognition’ are not always produced by a public legal order; they may be the outcome of private contractual arrangements. In this case, one is more in the context of self-validation comparable to genuine revolution; however like every laws founded on some revolutionary acts, except by violence, autonomous contracts require a recognition by other legal orders. The issue of judicial legitimacy appears then unavoidable – but is it not secondary? Does legal legitimacy of a contract need necessarily a pre-existence of a legal order? Is lex mercatoria logically inferior to national law? Will the autonomous contract not continue to develop and evolve at the global stage according to the requirements of economic transactions and organisations rather than according to the recognition of national legal orders? These complex agreements like investment projects in developing
THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS
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countries, constitutive of a medley of sophisticated legal regimes, having an effect on the economy of entire countries or regions - do not they set up their validity by themselves? Are they not legitimate only by the fact that they are economically efficient? Is the legitimacy that grounds them not guaranteed in a more direct way by private groups in charge of their constitution, by the creation of standards and techniques, far from the formal requirements of a national law7? Some people oppose that the combination of these general principles and varied standards whose interpretation can change from case to case, gives to their normative substance, and therefore their contractual legitimacy, an extremely indeterminate character. On the contrary, some others consider that this conventional character gives a larger margin for manoeuvre to the negotiators. The flexibility that characterises these contracts would give then a greater capacity to adapt the contract to the change of circumstances. This flexibility would appear then more legitimate, at least in the eyes of their users, because it would produce more stability than national legal rules subjected to constant reforms according to changing social or economic contexts. The stability created by these negotiated contracts, in the long term, synonymous with economic efficiency, would appear therefore to be a sufficient condition to their legitimacy and enforceability. The multiple sources and the diversity of legal orders in charge of the control of the negotiated contracts, is also considered as a guaranty of a better contractual justice. Global competition between legal or not legal sources, between various State based or not, professional or institutional, regional, national or international judicial organs, would appear to be preferred by contractors8. However, this conception is far from being unanimous. On the contrary, there is a particular scepticism with regards to this model of the self-valid contract. The autonomous contract would
7 Cf. : TEUBNER, G., « Global Bukowina : Legal Pluralism in the World Society », in Teubner éd., Global law without a State, Aldershot : Dartmouth Gower, 1996. 8 COLLINS,H., Contracting…
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
not only be legally illegitimate, but would also represent a social danger. B. THE SOCIAL ILLEGITIMACY OF NEGOTIATED CONTRACTS The greater scepticism comes firstly from legal sociologists who, according to Durkheim, have always objected the idea of “autonomous contractualism”, asserting very strongly that contract enforceability should always be rooted in a broader social context than the one of the contract (1). The development of autonomous contracts would risk then to end up with what some call a “new feudalisation of contractual relationships” (2). 1.
A
SOCIOLOGICAL CRITIQUE CONTRACTUALISM”
OF
“AUTONOMOUS
To understand this critique, one has to read again “La Division du travail”9. Durkheim compares the two fundamental states of societies. In archaic societies, the core of the social structure is solidarity of a mechanistic type, a “solidarity by similarity” that binds the individuals. As they are all similar, they share the same beliefs, have the same feelings, and are orientated by the same values. In archaic societies, collective conscious is strong and widespread. The law is above all of a repressive nature. On the contrary, in organic societies, the cement of the social organisation is the complementary nature of the roles and functions exercised by individuals, which produces an organic solidarity, based on differentiation. This type of solidarity assumes a law of retributive nature, sanctioning all sorts of activities that prevent its good functioning. This is what gives rise to other diverse branches of law (commercial law, tax law…) These two types of solidarity constitute two poles, between which societies evolve. The passage from one to another operates not as economists seem to believe – that individuals have found advantages in the division of tasks to increase productivity, but because the extension and the more and more dense character of theses societies (concentration of individuals as well as the increase of their communications and exchanges between them) 9 DURKHEIM, De la division du travail social (1894), Paris : Puf, Quadrige, 2e éd. 1991, chap. 7.
THE AUTONOMY OF GLOBAL CONTRACTS
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have paradoxically removed their similarities, and increased their differentiation. In order for these individuals to sustain the need to share the tasks, there must already exist between them a conscious knowledge of their individualities, a conscious knowledge, which could not result without the division of work. When there is a passage of a type of division of work to another, this passage is translated by the decreasing proportion of repressive laws to the extent of the increasing density of societies. The growing interdependence between the various social activities does not necessarily accompany the dependence of everyone between them to a group of common rules. This is one of the numerous consequences of the division of work, in modern societies. This set of rules may exist in professional areas without being found in other areas like those of everyday life for example. In such a way that in slackening, moral constraints, which allow individuals to feel bound by an organic solidarity in the society, progressively empty itself of its substance. This emptiness is above all observed in some specialised activities; the co-operation characterising the relationships of work in traditional societies is replaced by an unbridled competition, sharpened in periods of transitional crisis. Durkheim refers to this state of a society in crisis as an anomic one. When the division of work is anomic, this means that individuals are no longer complying with the rules imposed from the exterior by the society because the society is no longer organized in such a way that it may impose on individuals rules maintaining social harmony. It is hence, clear, that for Durkheim, it is within the structure of constraints imposed by societies, the structure imposed in general by the society, by the professional milieu in particular, and only within that structure, that contractual freedom may be performed. The autonomy of will is only possible because it is accepted by a social context that authorizes it. Based on this consideration, some others build a general critique of the phenomenon of the society “contractualisation�. One critique, justly doubts the true autonomous character of the process of contractual negotiation, which is at the end, always put under constraints either by the State, by individuals, or by arbitration : “The experience between the States, in a society
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
deprived of a central regulatory power, shows that negotiation may only operate correctly within a margin between the threat of the use of force and the necessity of a consensus on the rules of the game (…)”. “It is illusion to think that negotiations can make the economy of the force, that the intervention of arbitration can bring the opponent back to easy-going. The “internal” negotiations do not escape these constraints. Many dealings during which protagonists pretend to confront without mercy take actually place under the protecting wing of a regulating power that patiently wait his time to give his arbitrage”10. It is the reason why the idea of raising to the rank of model of normative production the practice of contractual negotiations would become not only technically wrong, but above all, socially dangerous. The development of such an autonomous contract, producer of a “global law without a state”, would the sign of disintegration of society. “The fact that the rallying (to the procedure of negotiation) would operate in favour of the international model, and not the opposite, would tend to prove that societies are threatened by the risks of internal dislocation rather than by the irresistible movement of integration on a worldwide scale. The spectacle of international “disorder”, progressively encroaches on terrain attributed in the past to internal “order” would only delight those who see in the decline of State-Nation the necessary and sufficient condition for the restructuration of an international society on entirely new bases”11. The development of these autonomous contracts would also push towards a new feudalisation of contractual relationships. 2.
THE RISK OF A NEW “FEUDALISATION” OF CONTRACTUAL RELATIONSHIPS
“Historically, negotiation appeared as a palliative, aimed at compensating for failure of the authority in charge of saying the law and applying it; the favour which the negotiations enjoys nowadays, is it not the image of the decline of the authority and a sign of the rise of new powers who claim their sovereignty and 10 MERLE, P., « De la Négociation » in, La négociation, Ardant, P., Dupuis, G., Parodi, J.L. ed., La Revue Pouvoir, Vol. 15, 1981, p. 26 11 CROZIER M., L'acteur et le système, Paris : Seuil, 1977, p. 366
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do not accept to yield to rules before having debated to accept them”? We consider that “it is neither the weak, the have-nots, nor the dropout, who are admitted to negotiate, but those who already dispose, by their power or by their strategic position they occupy in the circuit of production or on the social ladder, of what should well be called the bargaining power. The right to negotiate is only recognized to those who already have the force and who are capable to use it: we negotiate with the unions, but not with the unemployed, the retired, the handicapped or the immigrant workers”12. If some could dream of contractualisation in all sectors of social, political, economic and cultural life, synonym with “the general triumph of the proudhonian idea according to which “the social contract must be liberally debated, individually consented to, signed manu propria by all who participates”. On the other hand though, some others consider that “the topography of negotiation that is actually used touches the contours of relationships of pre-established and consolidated forces. In other terms, the substitution of negotiation to an injunction marks most often a return to the idea of integration at the profit of reconstitution, in a socially allegedly liberal, of political feudality and of socio-economic corporations13. What is then, the position the lawyer interpret of this process of negotiated formation of contracts, who cannot be satisfied by a critique and who has to decide? C. THE CHALLENGE OF A LAWYER: A RESEARCH RATIONALISATION IN THE NEGOTIATION PROCESS
FOR
At this stage, if we retain the plea of the international negotiator for more contractual autonomy, we agree on the findings that the ambiguity and the growing unpredictability of solutions given by the traditional organs of justice have three main causes: - an insufficiently specified interpretation by national law by the fact that there is a very huge gap between classic rules of 12 MERLE, P., « De la Négociation » in, La négociation, Ardant, P., Dupuis, G., Parodi, J.L. ed., La Revue Pouvoir, Vol. 15, 1981, p. 26 13 SUPIOT, A. : Bibliography in, Le travail en perspectives, Paris : L.G.D.J., 1998, See also, Au-delà de l'emploi, Paris : Flammarion, 1999
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
contract and the particular context of international transactions; the risk of being confronted to concepts or usages issued from systems or unknown judicial cultures; - finally, the lack of knowledge, not to say the ignorance of our traditional jurisdictions regarding other organs of contractual justice. From these findings, resulting from the experience of a genuine practice of negotiated contracts, the first qualities required is accuracy, so that contract law appears less ambiguous, more predictable and hence more reliable. The model of interpretation to be defined has to firstly, guarantee the conditions for a more accurate interpretation that can gibe an account of the “transaction environment”. To this end, it has to better contextualise contractual relationships. The list of clauses or the formal documents do not suffice to interpret the contract in the most adequate way. Only a contextual interpretation of the negotiation, allows a better understanding of what is at stake and what are its constraints. Furthermore, the model to come up with “has to define in minute details the rights and obligations that each of the parties are responsible for, by way of reducing, not eliminating, the intrusion of often exotic or singular concepts or customs”14. Only a comparative interpretation may define the contractual concepts common to different judicial systems. Finally, it has to facilitate traditional jurisdictions the recognition of other contractual organs of justice. The only a model of interpretation capable of this methodology is characterised by a certain openness. The response to this new challenge appears quite simple: the law must guarantee the autonomy of contractors. If this solution seems simple, its actual application is not. Can we avoid the dissolution of law, and the fragmentation of its sources? – If one of the essential reasons push the contractors to turn towards other forms of justices, supposedly more adapted to their context, is explained by a need greater than autonomy. We must imagine how the law can constitute these conditions and exercise this contractual autonomy. 14 PISAR, S., Négocier et rédiger un contrat international, BLANCO, D., Paris, Dunot, 3e éd. 2002, in préface
A CULPA IN CONTRAHENDO DEPOIS DA SUA CODIFICAÇÃO EM PORTUGAL, NA ALEMANHA E NO BRASIL Jan Dirk Harke
I. UM
CONCEITO COMUM CONTRATUAL?
DE
RESPONSABILIDADE
PRÉ-
Em 2002 e 2003, com o intervalo de apenas um ano, entraram em vigor tanto na Alemanha como no Brasil, novos regimes do direito das obrigações que compreendem preceitos sobre a responsabilidade pré-contratual, antes não mencionada nos códigos civis desses dois países. Esta coincidência cria a impressão de que a responsabilidade por culpa in contrahendo se tornou um instituto comum a todos os ordenamentos jurídicos baseados no direito romano. Esta observação só é correcta no tocante à existência, em qualquer desses ordenamentos, de uma ampla protecção das partes na fase pré-contratual. É, porém, injustificada quanto à dedução da responsabilidade précontratual. Enquanto na Alemanha a obrigação resultante da culpa in contrahendo tem uma natureza jurídica bem difícil de se determinar, no Brasil ela é claramente extracontratual. A. O MODELO BRASILEIRO E DO JUSNATURALISMO: CULPA IN
CONTRAHENDO COMO BASE DA RESPONSABILIDADE DELITUAL O novo art. 422 do Código Civil brasileiro1, que obriga as partes a guardar os princípios de probidade e boa fé tanto na execução como na conclusão do contrato, foi concebido ao modelo 1 “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. “
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do art. 1337 do Codice civile italiano.2 Tem também um antecessor longínquo no § 1.5.284 do Código Prussiano de 1794,3 a primeira das codificações inspiradas pelas idéias do jusnaturalismo. O característico desse código e das codificações seguintes, como o Code civil des Français de 1804 e o código austríaco de 1811, é um amplo regime da responsabilidade extracontratual que, ao contrário do direito romano, estende-se também aos danos puramente patrimoniais sem pressupor a violação dum direito absoluto ou o dolo do lesante. Semelhante cláusula geral da responsabilidade delictual encontra-se também no direito brasileiro, particularmente no art. 186 do novo Código Civil4, equivalente ao art. 159 do código anterior de 19165. Os seus pressupostos, nomeadamente um ato ilícito, um dano causado e a culpa do lesante, encontram-se também facilmente nos casos da falta de consideração para com um futuro contratante. Por isso, a doutrina brasileira6 e os tribunais, especialmente os do Rio Grande do Sul7 e do Rio de Janeiro8, tinham observado uma responsabilidade por culpa in contrahendo já antes de o novo código entrar em vigor.9 A introdução do art. 422 do novo Código Civil não mudou a natureza jurídica da responsabilidade pré-contratual, que continua a ser delictual.10 Pelo recurso à execução do contrato 2 Cfr. Sílvio de Salvo Venosa, Direito civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, 2a ed., São Paulo 2002, p. 479. 3 Vide Jan Dirk Harke, Rechtsgeschäftsähnliche Schuldverhältnisse, em: HistorischKritischer Kommentar zum BGB, vol. 2, Tübingen 2007, § 311 Abs. 2, 3, n.° 7. 4 “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.“ 5 “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. ... “ 6 Cfr. Orlando Gomes, Contratos, 24a ed., Rio de Janeiro 2001, n.° 36, 45, p. 61 e 62, 67. 7 Vide, por exemplo, TJRS (1a cam. civ.) 11.11.1986 – 586046377, TJRS (5a cam. civ.) 6.6.1991 – 591028295, TJRS (16a cam. civ.) 19.8.1998 – 598209179, TJRS (2a cam. civ.) 20.12.2000 – 599418266, TJRS (6a cam civ) 31.10.2001 – 70002240216. 8 Vide, por exemplo, TJRJ (5a cam. civ.) 17.9.2002 – 2002.001.18860, TJRJ (6a cam. civ.) 16.12.1992 – 1992.001.04801. 9 Vide, também, Dário Manuel Lentz de Moura Vicente, A responsabilidade précontratual no Código Civil brasileiro de 2002, RCEJ, n.° 25, p. 37. 10 Cfr. Judith Martins-Costa, Comentários ao novo Código Civil, vol. 5, t. 2, Rio de Janeiro 2003, p. 117, Salvo Venosa, Direito civil (n. 2) p. 477, Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro: Teoria das Obrigações, 18a ed, São Paulo, 2003, p. 47. Uma ‚zona cinzenta’ observa, todavia, Moura Vicente, A responsabilidade pré-contratual no Código Civil brasileiro de 2002, RCEJ, n.° 25, p. 39.
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parece, porém, aproximá-la à responsabilidade contratual e, assim, fundamentar a aplicação do respectivo regime. Se as regras da responsabilidade contratual fossem empregadas, a obrigação a indemnizar seria dependente da capacidade negocial do lesante (art. 104 inc. I CC), enquanto que a responsabilidade por facto ilícito pode também competir aos incapazes (art. 928 CC). Mais importante é a distribuição do ónus da prova no tocante à culpa, que no campo da responsabilidade delitual incumbe ao lesado e é invertido quanto à responsabilidade contratual (art. 393 CC). E há uma diferença entre os prazos da prescrição que compreendem dez anos no caso da responsabilidade contratual (art. 205) e só tres anos no caso da responsabilidade civil (art. 206 § 3 inc. V). A escolha entre o regime contratual e o delitual depende da classificação da assim chamada "violação positiva do contrato". É a ela que se refere o recurso à execução do contrato no art. 422 e a quem, assim, compete o papel de decidir sobre o regime da responsabilização. Ainda que na doutrina brasileira encontre-se regularmente a convicção de que a violação positiva do contrato faz parte do conceito do inadimplemento da obrigação,11 os casos a que se relaciona esta observação são os de cumprimento defeituoso.12 Estas constelações eram bem consideradas como violações positivas do contrato, mas apenas pelo fato de que as sanções por vícios redibitórios não eram, antigamente, integradas na noção do não cumprimento. Após o alargamento do conceito do inadimplemento, que hoje compreende também o cumprimento defeituoso, a noção da violação positiva do contrato deve ser reduzida à infracção do dever lateral das contratantes de proteger a contra-parte.13 Este dever lateral é bem diferente do dever de prestação. Ele é destinado a proteger bens e interesses fora da prestação e, por isto, ao contrário da obrigação de prestação, não susceptível da realização coactiva, mas só produz efeitos jurídicos pela sua violação. Por consequência, o regime do não cumprimento é inadequado para sancionar a infracção dum 11
Cfr. Martins-Costa (n. 10), p. 150 e segs.
Vide, por exemplo, Orlando Gomes, Obrigações, 15a ed., Rio de Janeiro 2001, n.° 129, p. 174 e 175, Gustavo Tepedino/Heloisa Helena Barboza/Maria Celina Bodin de Moraes, Código Civil interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro 2004, art. 389 n.° 2. 12
13 Que a figura da violação positiva do contrato é supérflua para a sanção do cumprimento defeituoso entende também Pedro Romano Martinez, Cumprimento defeituoso, Coimbra 2000, p. 65 e 66.
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dever de protecção. Este deve ser integrado no conceito da responsabilidade por factos ilícitos que é igualmente destinada a tutelar os bens e interesses fora da expectativa da prestação estipulada. Uma vez que a violação positiva do contrato pertence ao campo da responsabilidade delitual, no caso da culpa in contrahendo devem, por maioria de razão, ser empregadas as respectivas regras.14 B. O
MODELO ROMANO-ALEMÃO: CULPA IN CONTRAHENDO COMO VIOLAÇÃO DUM DEVER LATERAL DO CONTRATO
Na Alemanha, a responsabilidade pré-contratual tem natureza dupla: Enquanto a sua função é a mesma como no Brasil e por isso extracontratual, ela é, em termos de técnica jurídica, contratual.15 Esta divergência entre função e meio resulta das limitações do regime alemão à responsabilidade extracontratual. Antigamente, elas eram mais rigorosas do que hoje: sob o regime do Código de 1900, a responsabilidade por factos ilícitos prescrevia num décimo do tempo do que a responsabilidade contratual, cujo prazo de prescrição era de 30 anos. E um empregador só era responsável por um acto dum empregado se ao empregá-lo tivesse faltado com a diligência necessária na escolha. Hoje, essas duas limitações não existem mais: desde a reforma do direito das obrigações, que também trouxe consigo a codificação da culpa in contrahendo, o período para a prescrição da acção por facto ilícito é o mesmo da responsabilidade contratual. Antes disso, porém, a limitação da responsabilidade dum empregador pelos delictos dos seus empregados já fora praticamente abolida pela jurisprudência, a qual na presença de um acto ilícito dum empregado presume ter sido resultado duma culpa própria do empregador ao organizar a sua empresa. A restrição da responsabilidade extracontratual que sobreviveu é a que procede do direito romano e já deu origem à invenção da culpa in contrahendo por Jhering16 no século XIX.17 É a exclusão dos 14 No sentido contrário, quanto à inversão do ônus da prova, Moura Vicente, A responsabilidade pré-contratual no Código Civil brasileiro de 2002, RCEJ, n.° 25, p. 38. 15
Vide Harke, Rechtsgeschäftsähnliche Schuldverhältnisse (n. 3) n.° 31.
Rudolf v. Jhering, Culpa in contrahendo oder Schadensersatz bei nichtigen oder nicht zur Perfection gelangten Verträgen, JhJb 4 (1861) p. 1, 25. 17 Vide Harke, Rechtsgeschäftsähnliche Schuldverhältnisse (n. 3) n.° 8. 16
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danos puramente patrimoniais que não resultam duma violação dum direito absoluto (§ 823 n.° 1 BGB18) ou da infracção duma disposição legal (§ 823 n.° 2 BGB19) que, em regra, só proíbe uma conduta propositada ou pelo menos deliberada como, por exemplo, o preceito contra fraude no Código Penal alemão (§ 263 StGB). Fora dos actos intencionados, a indemnização por um mero dano só pode ser verificada entre contratantes que, uma vez vinculados pela promessa duma prestação, são sujeitos a um dever de não criar impedimentos a esta prestação e, por consequência, respondem pela impossibilidade do cumprimento causada por negligência deles próprios. Este dever é o modelo para a criação dum dever geral de proteger os bens e interesses da contra-parte, que obriga os contratantes a omitir tudo que pode ser danoso para a outra parte e de agir numa maneira que impeça qualquer prejuízo dela. A falta de observância desse dever de proteção, antigamente denominada violação positiva do contrato, é, desde a reforma de 2002, sancionada por uma responsabilidade nos termos dos §§ 241 n.o 2 e 280 do Código civil alemão. Enquanto o primeiro preceito estabelece o dever lateral de proteger os bens e interesses do contratante,20 o segundo contém a cláusula geral da responsabilidade contratual ao fixar que cada violação culposa dum dever contratual resulta na obrigação de indemnizar.21 Esta cláusula não só se refere ao dever de prestação em casos da mora do devedor ou da impossibilidade do cumprimento, mas abrange 18 “Wer vorsätzlich oder fahrlässig das Leben, den Körper, die Gesundheit, die Freiheit, das Eigentum oder ein sonstiges Recht eines anderen widerrechtlich verletzt, ist dem anderen zum Ersatz des daraus entstehenden Schadens verpflichtet.“ (Quem, de propósito ou por negligência, viola ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou um outro direito de outrem é obrigado a indenizar o lesado pelos danos daí resultantes.) 19 “Die gleiche Verpflichtung trifft denjenigen, welcher gegen ein den Schutz eines anderen bezweckendes Gesetz verstößt. ... “ (A mesma obrigação tem quem viola uma disposição legal destinada à proteção de outrem.) 20 “Das Schuldverhältnis kann nach seinem Inhalt jeden Teil zur Rücksicht auf die Rechte, Rechtsgüter und Interessen des anderen Teils verpflichten.“ (A relação obrigacional pode, conforme o seu conteúdo, vincular qualquer das partes a consideração pelos direitos, bens jurídicos e interesses da outra.) 21 “Verletzt der Schuldner eine Pflicht aus dem Schuldverhältnis, so kann der Gläubiger Ersatz des hierdurch entstehenden Schadens verlangen. Dies gilt nicht, wenn der Schuldner die Pflichtverletzung nicht zu vertreten hat.“ (Quando o devedor viola um dever resultado da relação obrigacional, o credor pode exigir a indenização do dano daí resultante. Esta regra não se aplica quando a violação do dever não é imputável ao devedor.)
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também o dever de protecção que, ao contrário do dever de prestação, não pode ser realizada coactivamente, mas só se verifica nessa responsabilidade.22 Resta claro que esse dever de protecção não pode depender da celebração do contrato, cujo único conteúdo é, na verdade, a prestação estipulada e cujo efeito, assim, limita-se a criar a obrigação correspondente da prestação. Quanto ao dever de protecção, a conclusão do contrato não poderia marcar o princípio da relação obrigacional, mas seria um critério puramente aleatório. Por consequência, o dever de protecção e a responsabilidade correspondente têm de começar já no período pré-contratual e também no caso em que as partes não chegam à conclusão dum contrato válido. A respectiva fórmula que se encontra no novo § 311 n.o 2 do Código Civil alemão é que o dever de protecção, como estabelecido no art. 241 n.° 2, resulta também da assunção de negociações, da preparação dum contrato quando uma parte pode influenciar os bens ou interesses da outra ou de contactos semelhantes.23 Mais importante do que esta fórmula bem ampla é o seguinte preceito do § 311 n.° 3 BGB que trata da responsabilidade de um terceiro que não é o contratante.24 Este pode estar sujeito a 22 Isto não exclui uma acção de abstenção em analogia com a defesa da propriedade contra pertubadores; vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, Inexigibilidade judicial do cumprimento de deveres acessórios de conduta?, Scientia Iuridica 2002, p. 295, 300 e segs.
23 “Ein Schuldverhältnis mit Pflichten nach § 241 Abs. 2 entsteht auch durch 1. die Aufnahme von Vertragsverhandlungen, 2. die Anbahnung eines Vertrags, bei welcher der eine Teil im Hinblick auf eine etwaige rechtsgeschäftliche Beziehung dem anderen Teil die Möglichkeit zur Einwirkung auf seine Rechte, Rechtsgüter und Interessen gewährt oder ihm diese anvertraut, oder 3. ähnliche geschäftliche Kontakte.“ (Uma relação obrigacional com deveres nos termos do § 241/2 surge também por meio de: 1. a assunção de negociações contratuais ou 2. a preparação de um contrato onde uma parte, com vista a uma eventual relação negocial, conceda à outra parte a possibilidade de influenciar os seus direitos, bens jurídicos ou interesses, ou os confie a ela, ou 3. semelhantes contactos negociais). 24 “Ein Schuldverhältnis mit Pflichten nach § 241 Abs. 2 kann auch zu Personen entstehen, die nicht selbst Vertragspartei werden sollen. Ein solches Schuldverhältnis entsteht insbesondere, wenn der Dritte in besonderem Maße Vertrauen für sich in Anspruch nimmt und dadurch die Vertragsverhandlungen oder den Vertragsschluss erheblich beeinflusst.“ (Uma relação obrigacional com deveres nos termos do § 241/2 pode surgir também com terceiros que não deverão ser parte do contrato. Semelhante relação surge especialmente, quando o terceiro exige, em alto grau, confiança, e assim influencia consideravelmente as negociações ou a conclusão de um contrato.)
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um dever de protecção nos termos do § 241 n.° 2, caso ele influencie as negociações ou a conclusão dum contrato pela confiança que ele exige dum dos contratantes. Esta fórmula é também bastante ampla, mas contém uma afirmação muito importante: A responsabilidade por culpa in contrahendo não depende do facto de o lesado ter realmente confiado no lesante. É suficiente que esse último tenha requerido a confiança do lesado, quer dizer, que ele tenha se colocado numa posição que cria normalmente a confiança dos outros nele.25 Assim se concretiza o pressuposto básico da relação pré-contratual. É, no entanto, oposta à teoria dominante das décadas de 70 e 80, que deduziu a responsabilidade por culpa in contrahendo da confiança positiva do lesado no lesante26 e , por consequência, negou a responsabilidade quando o lesado teve dúvida na lealdade da outra parte. Já no fim da década de 70, esse conceito foi abandonado pela jurisprudência nos casos da responsabilidade pelas indicações no prospecto duma emissão (Prospekthaftung).27 O Supremo Tribunal Federal julgou que o direito do investidor a indemnização pelos investimentos perdidos não pressupõe a sua confiança positiva nas pessoas responsáveis pela emissão, mas basta uma confiança potencial que resulta já do facto de que essas pessoas pertencem a um grupo, em cujos membros um investidor normal confia regularmente.28 A renúncia da teoria da confiança que se verificou primeiro pela jurisprudência e agora pela lei é justificada por duas razões: Visto que a função do instituto da culpa in contrahendo é a proteção de bens e interesses fora do direito à prestação estipulada, a confiança positiva do lesado não pode ter um papel diferente do que no regime da responsabilidade por actos ilícitos, a qual não pressupõe uma confiança do lesado no lesante. O 25
Vide Harke, Rechtsgeschäftsähnliche Schuldverhältnisse (n. 3) n.° 31.
Vide sobretudo Canaris, Ansprüche wegen „positiver Vertragsverletzung“ und „Schutzwirkung für Dritte“ bei nichtigen Verträgen, JZ 1965, 475 ff. 26
27 Vide na doutrina a respeito da crítica a Johannes Köndgen, Selbstbindung ohne Vertrag, Tübingen 1981, p. 83, Christian v. Bar, Vertrauenshaftung ohne Vertrauen, ZGR 1983, p. 476 e segs., 488 e 489 und Eduard Picker, Forderungsverletzung und culpa in contrahendo, AcP 183 (1983) 368 e segs., 421, 427. 28 Cfr. BGH 24. 4. 1978 – II ZR 172/76, NJW 1978, p. 1625, BGH 16. 11. 1978 – II ZR 94/77, NJW 1979, p. 718, BGH 6.10.1980 – II ZR 60/80, NJW 1981, p. 1449, 1450, BGH 22.03.1982 – II ZR 114/81, NJW 1982, p. 1514, 1515.
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mesmo ocorre na responsabilidade contratual, à qual o conceito da culpa in contrahendo é integrado tecnicamente: Depois da celebração dum contrato, os contratantes têm o direito de exigir da outra parte a prestação estipulada e a proteção dos seus bens e interesses sem ter de confiar nela. Tanto na responsabilidade contratual como na responsabilidade por factos ilícitos, a falta de confiança positiva pode bem constituir uma culpa concorrente do lesado, mas não afecta a base da responsabilidade. Isto já foi observado por Jhering, criador do instituto de culpa in contrahendo. Ele negou que a confiança pode fundamentar uma responsabilidade pré-contratual e deduziu-a duma garantia imposta às partes duma negociação pelo ordenamento jurídico que as obriga a observar a diligência necessária na execução do contrato no período pré-contratual.29 Infelizmente, esta idéia de Jhering foi esquecida pela doutrina alemã do século XX e, para o seu renascimento, precisou da ajuda da jurisprudência e da reforma do direito das obrigações.30 C. O CONCEITO PORTUGUÊS Para a classificação do conceito da culpa in contrahendo que o Código Civil português adoptou, não basta a observação de que o respectivo art. 227 foi, assim como o novo art. 422 do código brasileiro, também concebido ao modelo do art. 1337 do código italiano.31 Mais importante é a estrutura da responsabilidade delictual: Ainda que ela, na prática, cubra talvez um campo mais extenso do que no direito alemão, ela tem o mesmo conceito fundamental:32 Nos termos do art. 483, a obrigação de indemnizar depende da violação dum direito absoluto33 ou da infracção duma disposição destinada à proteção do lesado. Por consequênçia, danos puramente patrimoniais senão causados de propósito ou deliberadamente são em regra excluídos da tutela da responsabilidade delictual e sujeitos à tutela por deveres laterais 29
Jhering, Culpa in contrahendo (n. 16) p. 41 e 42.
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Vide Harke, Rechtsgeschäftsähnliche Schuldverhältnisse (n. 3) n.° 9, 30.
João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. 1, 10a ed, Coimbra 2000, n.° 69, pág. 269. 31
32 Vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, Deveres de protecção em relações obrigacionais, Scientia Iuridica 2003, p. 495, 519 e segs. 33 Antunes Varela, Das Obrigações (n. 31) n.° 152, p. 533 e segs.
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de proteção que acompanham a obrigação contratual de prestação.34 Ao instituto da culpa in contrahendo compete, então, o mesmo papel que no direito alemão: Enquanto que a sua função é extracontratual, ele é tecnicamente contratual e está, com exceção à prescrição expressamente ajustada às regras da responsabilidade delictual nos termos do art. 227 n.° 2 CC,35 sujeitado ao regime contratual.36 A posição do lesado é pois por um lado facilitada pela inversão do ónus da prova quanto à culpa do lesante segundo o art. 799 n.° 1 CC37 e pela responsabilidade por quaisquer auxiliares nos termos do art. 800 n.° 1 CC que, ao contrário da responsabilidade delitual, não depende duma comissão (art. 500 n.° 1 CC)38.39 Por outro lado, é dificultada pelo pressuposto da capacidade (art. 129 CC) que não existe quanto à responsabilidade por factos ilícitos (art. 488 CC). Felizmente, o Código Civil português não faz referência à teoria da confiança ou à idéia de que a responsabilidade précontratual depende da confiança positiva do lesado no lesante. Ainda que na doutrina portuguesa40 (e também na brasileira41) 34 Assim Carlos Alberto Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Coimbra 1982 (reimpressão), p. 338 e segs., 402 e segs., João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. 2, 7a ed., Coimbra 2001n.° 322 e 323, p. 130 e 131, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4a ed., Coimbra 1984, no. 94.4, p. 744, RP 16.5.1991, CJ 1991, III, p. 231. 35 Que esta referência não indica a qualificação da responsabilidade por culpa in contrahendo observa bem Almeida Costa, Responsabilidade civil por ruptura das negociações, RLJ n.° 116, p. 255. 36 Assim Vaz Serra, RLJ n.° 113, p. 47, Mota Pinto, Cessão (n. 34) p. 350 e segs., STJ 4.7.1991, BMJ n.° 409, p. 743, RE 14.10.1999, BMJ n.° 490, p. 332, RL 23.3.2004 – 514/2004-1. Que a relação causando uma responsabilidade por culpa in contrahendo é mais próxima à relação contratual entende Antunes Varela, Das obrigações I (n. 31), n.° 69, p. 271. No sentido contrario Almeida Costa, Responsabilidade civil por ruptura das negociações, RLJ n.° 116, p. 278 e Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Coimbra 1992, n.° 788 e 789. Inexplorado é STJ 18.11.2004 – 04 B 2992. 37 Cfr. Mota Pinto, Cessão (n. 34) p. 351, António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Lisboa 1984, vol. 1, p. 585, STJ 4.7.1991, BMJ n.° 409, p. 743, STJ 9.2.1993, BMJ n.° 424, p. 607. 38
Cfr. Mota Pinto, Cessão (n. 34) p. 352.
No sentido contrário, Almeida Costa, Responsabilidade civil por ruptura das negociações, RLJ n.° 116, p. 276 e 277. 39
40 Vide, particularmente, Mota Pinto, Cessão (n. 34) p. 350, Almeida Costa, Responsabilidade civil por ruptura das negociações, RLJ n.° 116, p. 152, Menezes Cordeiro, Da boa fé (n. 37) vol. 1, p. 583, Ana Prata, Notas sobre a responsabilidade pré-contratual, Revista da Banca, n.º 16, 1990, p. 93. 41 Ver Martins-Costa, Comentários (n. 10) p. 109 e segs.
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seja costume dizer que a responsabilidade por culpa in contrahendo resulta da quebra de confiança,42 isto parece ser apenas um reflexo da doutrina antigamente dominante na Alemanha e não pode ser empregada para mais do que motivar a existência do regime legal da culpa in contrahendo. Visto que ela é, como no Brasil, dependente da violação das regras da boa fé num sentido objectivo, não pode entrar em dúvida que não é a esperança individual que causa a responsabilidade, mas a expectativa da comunidade quanto à lealdade necessária em negociações. Assim, estabelecem-se normas objetivas cuja violação resulta numa responsabilidade que a falta de confiança só pode atingir no aspecto de concorrência de culpas. II. RUPTURA DE NEGOCIAÇÕES E ABUSO DO DIREITO
Ainda que, por causa da referência à boa fé, o regulamento da culpa in contrahendo nos códigos da língua portuguesa pareça superior ao da codificação alemã, é duvidosa, tanto em Portugal como no Brasil, a dedução da responsabilidade nos casos da ruptura de negociações. A. UM PRODUTO ACIDENTAL NA JURISPRUDÊNCIA ALEMÃ Na Alemanha, o abandono imotivado do contacto negocial é só uma entre várias constelações em que se verifica a responsabilidade pré-contratual. Não é muito importante na prática que se ocupa regularmente com a violação de deveres de informação. A origem da responsabilidade por ruptura de negociações é um julgamento do Supremo Tribunal Imperial de 193143 onde o tribunal observou que, no caso revisto, o réu tinha tido uma boa razão para abster-se das negociações com o requerente. Pela inversão desse argumento, os tribunais alemães resolveram que a ruptura irrazoável de negociações pode fundamentar uma responsabilidade por culpa in contrahendo.44
42 Neste sentido também STJ 22.5.1996, BMJ n.° 457, p. 308, STJ 28.2.2002 – 02 B 56, STJ 14.1.2003 – 02 A 4257, RP 23.6.2005 – 0532425. 43 RG 24.2.1931 – III 131/30, RGZ vol. 132, p. 26, 28 e 29. 44 Vide por exemplo BGH 12.6.1975 – X 25/73, NJW 1975, p. 1774, BGH v. 7.2.1980 – III 23/78, BGHZ vol. 76, p. 343, 349.
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Este teorema é não só um produto accidental, mas também errado, porque a simples ruptura de negociações não viola um dever existente entre as suas partes . Visto que os contratantes são livres na decisão se e a quem eles se vinculam, podem sempre abster-se de negociações sem infracção a algum direito da outra parte. O que pode causar a responsabilidade pré-contratual nos casos do abandono de negociações é apenas a falta de informação sobre o fato de que a conclusão do contrato não é mais intencionada ou provável. E o efeito desta falta de informação pode apenas ser um direito a compensar o assim chamado “interesse negativo”, que não compreende os benefícios resultantes do contrato frustrado, mas consiste nas despesas incorridas para as negociações e os lucros cessantes por causa das oportunidades omitidas. Uma ruptura imotivada das negociações pode implicar semelhante falta e constituir a base para a presunção de que quem suspendeu as negociações violou também o seu dever de informação. A simples ruptura não é, porém, o próprio fundamento da responsabilidade. A jurisprudência alemã que não se ocupa muito dessa questão descobrirá o seu próprio erro ao tentar subsumir a ruptura de negociações sob a fórmula dos novos art. 241 e 280 BGB. Se por um lado a argumentação era relativamente livre enquanto a culpa in contrahendo era um instituto extralegal, os tribunais, no futuro, terão que conceituar o dever cuja violação resulta na obrigação de indemnização. Como não há um dever de contratar, estará sujeito ao fracasso a tentativa de se constatar a infracção duma obrigação sob fundamento da simples ruptura de negociações.45 B. O ABUSO DO DIREITO COMO VIOLAÇÃO DA BOA FÉ: A SITUAÇÃO EM PORTUGAL Em Portugal, semelhante solução encontra mais dificuldades. Aqui, a ruptura de negociações não é só uma entre várias constelações em que se verifica a responsabilidade por culpa in contrahendo. É aparentemente o caso dominante relativo à culpa in contrahendo,46 como têm existido, desde as primeiras 45
Vide Harke, Rechtsgeschäftsähnliche Schuldverhältnisse (n. 3) n.° 29.
Vide STJ 9.2.1999, CJ/STJ 1999, I, p. 84 e Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6a ed., Coimbra 1989, n.° 26, p. 65. 46
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decisões do Tribunal da Relação do Porto47 e do Supremo Tribunal da Justiça48 em 1980 e 1981, vários acórdãos49 que tratam da responsabilidade por ruptura de negociações. O seu efeito não é sempre considerado a mera compensação do interesse negativo.50 Às vítimas duma ruptura de negociações é frequentemente adjudicado o seu interesse positivo51 incluindo todos os benefícios que fluiriam do contrato frustrado. Tal responsabilidade pressupõe como sua causa não a falta de informação sobre a diminuição das chances da conclusão de contrato, mas a própria não-conclusão. Segundo a teoria de diferença (art. 562 e 563 CC), a violação do dever de informação só pode gerar uma compensação do interesse negativo, pois caso o lesante tivesse agido de acordo com o seu dever, também não se verificaria a conclusão do contrato, mas as preparações para o contrato terminariam mais cedo do que na verdade acabaram. A compensação é medida pela hipótese de que, sem a lesão, haveria uma válida celebração e execução do contrato apenas em base da suposição que a própria não-conclusão seja ilícita. Mas como chegar a este resultado sem violar o princípio da liberdade contratual? A compensação do interesse positivo não pressupõe um dever de contratar que estaria em oposição a esse princípio? Para evitar o conflito entre a responsabilidade por culpa in contrahendo e a liberdade de contratar, a doutrina52 e a 47
RP 26.2.1980, CJ 1980, p. 58.
STJ 5.2.1981, RLJ n.° 116, p. 81; cfr. também Menezes Cordeiro, Da boa fé (n. 37) vol. 1, p. 578, Almeida Costa, RLJ n.° 116, p. 84 e segs. 48
49 STJ 14.1.1998, STJ 9.2.1999, CJ/STJ 1999, I, p. 84, STJ 28.2.2002 – 02 B 56, STJ 14.1.2003 – 02 A 4257, STJ 4.4.2006 – 06 A 222, RP 15.12.1994, CJ 1994, V, 235, RP 27.2.2003 – 0330561, RL 29.10.1998, CJ 1998, IV, p. 132, RL 3.7.2001 – 0026047, RL 20.1.2004 – 9856/2003-1, RL 23.3.2004 – 514/2004-1, RL 21.4.2005 – 2219/2004-6, RE 11.11.1999, CJ 1999, V, p. 262. 50 Neste sentido porém Almeida Costa, Responsabilidade civil por ruptura das negociações, RLJ n.° 116, p. 206 e segs., Galvão Telles, Obrigações (n. 46) n.° 26, p. 65, STJ 9.2.1999, CJ/STJ 1999, I, p. 84, STJ 22.5.2003 – 03 B 1334, RP 27.2.2003 – 0330561, RC, CJ 1991, I, p. 72. 51 Vaz Serra, RLJ n.° 110, p. 276, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. 1, 4a ed., Coimbra 1987, art. 227, n.° 3, STJ 5.2.1981, RLJ n.° 116, p. 81, STJ 28.2.2002 – 02 B 56, STJ 4.4.2006 – 06 A 222, RP 26.2.1980, CJ 1980, p. 58, RL 29.10.1998, CJ 1998, IV, p. 132, RL 3.7.2001 – 0026047, RL 20.1.2004 – 9856/2003-1, RL 23.3.2004 – 514/2004-1, RE 11.11.1999, CJ 1999, V, p. 262. 52 Cfr. Vaz Serra, RLJ n.° 111, p. 215, Galvão Telles, Obrigações (n. 46) n.° 26, p. 65 e CJ 1986, III, p. 25. A origem parece ser um estudo monográfico de Mota Pinto ao Código Civil anterior, ver Almeida Costa, RLJ n.° 116, p. 147.
CULPA IN CONTRAHENDO
61
jurisprudência53 portuguesa recorrem a uma figura que é ligada à responsabilidade pré-contratual pelo conceito da boa fé. Esta não só fundamenta os deveres pré-contratuais, mas também é um dos critérios para determinar o abuso do direito nos termos do art. 334 CC. Para empregar essa figura no campo da responsabilidade pré-contratual é preciso apenas aplicá-la à liberdade contratual. Assim, se a liberdade contratual for um direito, a violação das regras da boa fé será considerada um abuso, e esta violação não será apenas ilegítima nos termos do art. 334 CC, mas de acordo com o art. 227 CC também resultará numa responsabilidade por culpa in contrahendo. O problema do recurso à figura do abuso do direito é que assim se misturam dois conceitos inteiramente diferentes:54 O art. 334 CC segue o modelo do art. 281 do Código Civil grego que de sua parte é um fruto da doutrina alemã.55 Esta, por sua vez, simplesmente adoptou o princípio romano de que uma posição jurídica formalmente legítima não merece tutela quando for usada contrariamente à boa fé. Tanto no direito romano como no direito alemão, esse princípio era e é empregado apenas para a inversão dos efeitos normais duma conduta abusiva: Um acto abusivo é considerado como não ocorrido e, por consequência, ineficaz. A omissão abusiva, por sua vez, é tratada como se o acto ocorrera. No caso da ruptura das negociações, isto significa que, sob fundamento do conceito do abuso do direito, a não-conclusão do contrato, quando for considerada abusiva, deve ser substituída pelo acto contrário, nomeadamente pela declaração de vontade que dá origem ao contrato válido. O resultado não deve, pois, ser uma responsabilidade por culpa in contrahendo, mas que a parte que há rompido as negociações seja vinculada por um contrato válido e obrigada à prestação. Se esta coacção directa parece inoportuna em frente ao princípio da liberdade contratual será também inoportuna56 uma 53 STJ 9.2.1999, CJ/STJ 1999, I, p. 84, STJ 28.2.2002 – 02 B 56, STJ 14.1.2003 – 02 A 4257, STJ 4.4.2006 – 06 A 222, RP 26.2.1980, CJ 1980, p. 58, RP 27.2.2003 – 0330561, RC 14.12.1993, CJ 1993, V, p. 48. 54 Também neste sentido, mas com outra orientação, Antunes Varela, RLJ n.°123, p. 336, STJ 4.4.2006 – 06 A 222, RP 15.12.1994, CJ 1994, V, 235. 55 56
Vide Menezes Cordeiro, Da boa fé (n. 37) vol. 2, p. 711 e segs. Isso admite também Antunes Varela, Das obrigações I (n. 31), n.° 69, p. 270.
62
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
coacção indirecta por meio da responsabilidade pré-contratual que é destinada a compensar o interesse positivo e, por isso, equivalente à responsabilidade contratual. Tal obrigação précontratual não pode ser admitida sem reconhecer um dever a contratar, mas semelhante dever não existe, nem como obrigação de prestação nem como obrigação de proteção. A figura de abuso do direito só poderia ser invocada se o direito de abster-se da conclusão do contrato fosse em oposição dum direito à contratação. Mas a liberdade contratual não é um simples direito que concorre com o direito complementar a contratar. É um poder sem contrapartida e, por isso, não susceptível da sua inversão por meio da figura do abuso do direito.57 Tanto em Portugal como na Alemanha, a responsabilidade no caso da ruptura das negociações deve então, como o Supremo Tribunal da Justiça português já observou,58 partir da falta de informação sobre a diminuição das chances para a conclusão de contrato59 e não da própria ruptura60. Esta só pode embasar a presunção de semelhante infracção do dever de informação e assim fundamentar uma obrigação a compensar o interesse negativo. C. O ABUSO BRASIL
DE
DIREITO
COMO
FACTO ILÍCITO: A SITUAÇÃO
NO
Nesse ponto, o direito brasileiro difere do direito português. O recurso à figura do abuso do direito que é também invocado pela doutrina61 e jurisprudência62 brasileira no caso de ruptura de negociações63 tem fundamento no art. 187 do novo código 57 No mesmo sentido Hörster, Parte Geral (n. 36) n.° 463 e 464 que também opõe-se ao emprego da figura do abuso do direito para fundamentar a responsabilidade por danos puramente patrimoniais, que não podem ser compensados nos termos do art. 483 CC como foi proposto por Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Coimbra 1989, p. 547 e segs. 58 STJ 7.11.1989, BMJ n.° 391, p. 550. 59 Esse dever é mencionada por Almeida Costa, Responsabilidade civil por ruptura das negociações, RLJ n.° 116, p. 175. 60
Assim também Hörster, A Parte Geral (n. 36) n.° 787
61
Vide Orlando Gomes, Contratos (n. 6), n.° 36, p. 61.
62
Cfr. TJRJ (5a cam. civ.) 17.9.2002 - 2002.001.18860.
Com este caso também se ocupa- TJRS (1a cam. civ.) 11.11.1986 – 586046377, TJRS (5a cam. civ.) 6.6.1991 – 591028295, TJRS (16a cam. civ.) 19.8.1998 – 598209179, TJRS (2a cam. civ.) 20.12.2000 – 599418266. 63
CULPA IN CONTRAHENDO
63
brasileiro64. Este preceito qualifica como ato ilícito o exercício dum direito que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé. À primeira vista, é simplesmente a inversão da regra do art. 160 inc. 1 do código anterior que exceptuava da responsabilidade delictual o exercício regular dum direito.65 Desta regra, a doutrina deduziu que o exercício irregular dum direito gerava uma responsabilidade delictual.66 Este raciocínio não era consistente porque o recurso ao exercício regular dum direito era só um meio a defender-se contra um direito a compensação nos termos do antigo art. 159 CC. Esta responsabilidade pressupunha constatar a violação dum direito, independente de eventual abuso do mesmo e, por consequência, a suposição da existência dum dever de contratar. Como em Portugal também no Brasil, a simples figura do abuso do direito não era capaz de fundamentar uma responsabilidade no regime do código civil anterior. Como o art. 187 do novo código brasileiro estabelece expressamente semelhante responsabilidade, parece que hoje a interpretação infundada do código antigo tem sido adoptada pela lei e que o abuso da liberdade de contratar resulta numa responsabilidade civil.67 Mas esta conclusão é precipitada. Tendo presente a relação entre o novo preceito sobre abuso do direito e a cláusula geral da responsabilidade civil no artigo precedente, poder-se-á igualmente extrair que o art. 187 só trata dos casos em que se verificam os pressupostos regulares da responsabilidade civil, podendo o lesante no entanto defender-se pela invocação dum direito próprio. Com base nesse entendimento, o conceito legal não foi mudado e a simples ruptura de negociações ainda não pode causar uma responsabilidade, porque falta um respectivo dever de contratar, cuja infracção poderia constituir uma violação do direito. 64 “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.“ 65 “Não constituem atos ilícitos: … os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; ... “ 66 Cf. Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil: Parte Geral, 2a ed., São Paulo 2002, p. 576 e segs., e Teoria Geral (n. 2) p. 477 e segs. Tepedino/Barboza/Bodin de Moraes, Código Civil (n. 12) art.° 187 n.° 1. Para o direito português neste sentido também Antunes Varela, Obrigações (n. 31) n.° 156, p. 544 e segs. 67 Assim Moura Vicente, A responsabilidade pré-contratual no Código Civil brasileiro de 2002, RCEJ n.° 25, p. 37.
64
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
De acordo com esta interpretação do Código Civil brasileiro, é o conceito do regime da defesa dos consumidores que excepcionalmente prescreve uma coacção a contratar:68 O art. 39 inc. 2 do Código Brasileiro da Defesa do Consumidor veda ao fornecedor a recusa do atendimento às demandas dos consumidores caso sejam susceptíveis de cumprimento nos trâmites normais. A sanção deste preceito que, à primeira vista, constitui uma obrigação de contratar encontra-se no art. 35 do mesmo código, que concede ao consumidor o direito ao cumprimento forçado e à indemnização do seu interesse positivo. O direito à realização coactiva indica que a recusa abusiva é substituída pela válida celebração dum contrato imposto pela lei.69 Isto mostra que tanto no Brasil como em Portugal e na Alemanha, o abuso do direito só efectua a inversão dos resultados normais duma conduta70 e que, até no campo da tutela do consumidor, não serve como base duma responsabilidade pré-contratual.
68 Salvo Venosa, Teoria Geral (n. 66) p. 478 quer alargar esse regime aos contratos regulares. 69 Ver Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4a ed., São Paulo 2002, p. 225, 634. 70 A falta desta regra no Código Civil sentem Tepedino/Barboza/Bodin de Moraes, Código Civil (n. 12) art.° 187 n.° 1, enquanto que Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil (n. 66) p. 582 elogia o novo ordenamento.
A INFLUÊNCIA DA REVISÃO DO BGB NO DIREITO PORTUGUÊS: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O INSTITUTO DA CULPA IN CONTRAHENDO Eva Sónia Moreira da Silva
I. ALGUMAS NOTAS SOBRE A REFORMA DO BGB NO ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL: O § 311 1. A REFORMA DO BGB Em 1 de Janeiro de 2002, através da Lei de Modernização do Direito das Obrigações1, entrou em vigor uma reforma do BGB que, na verdade, já começara a ser preparada nos anos oitenta do século passado2. A comissão encarregada do projecto publicaria o seu relatório em 19923 mas decorreria ainda um considerável lapso de tempo até, finalmente, o projecto se transformar em lei. Através desta, o legislador alterou em profundidade o texto do BGB em alguns parágrafos – relativos a institutos tão nobres como a prescrição e a impossibilidade –, transpôs directivas comunitárias, tornou parte integrante do próprio BGB diversas leis avulsas sobre a protecção dos consumidores4 e incluiu no 1 Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts, publicada no Bundesgesetzblatt I, n.º 61, de 29 de Novembro de 2001, pp. 3138 a 3218. 2 Para uma visão breve deste processo, v., por todos, António Menezes CORDEIRO, «A modernização do direito das obrigações», ROA, Ano 62, Janeiro de 2002, pp. 91 a 99 e António Menezes CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português I Parte Geral, Tomo I, Introdução Doutrina Geral Negócio Jurídico, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, pp. 96 a 108. 3 Bundesminister der Justiz (org.), Abschlußbericht der Komission zur Überarbeitung des Schuldrechts, Köln, Bundesanzeiger, 1992. 4 Nomeadamente, a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, a Lei das Vendas a Domicílio e a Lei das Vendas à Distância. Além disso, acrescentou normas relativas ao comércio electrónico.
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66
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
código institutos que anteriormente, embora reconhecidos e desenvolvidos pela jurisprudência e pela doutrina, não tinham consagração legal. É o caso da responsabilidade pré-contratual ou culpa in contrahendo, que agora integra o mais importante diploma do direito civil alemão. a. CONSAGRAÇÃO BGB
DA
RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
NO
A codificação do instituto da culpa in contrahendo veio tornar o direito mais transparente mas não veio alterar o regime que a jurisprudência já tinha desenvolvido a partir de várias normas dispersas no ordenamento jurídico alemão5, como era o caso do § 11, n.º 7 da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, que pressupunha a existência do instituto mas não regulamentava o seu conteúdo6. CANARIS refere que se tratou apenas da tentativa de acolher no BGB institutos jurídicos “não escritos” e de reproduzir a situação jurídica praticada pela jurisprudência7, algo nada fácil atendendo ao facto de se tratar aqui de cláusulas gerais muito vagas e abertas8. Na verdade, a fundamentação da proposta de lei 5 Trata-se dos antigos §§ 122, 149, 179, 307 – por remissão do 309. A doutrina encontrava o seu fundamento no § 242, relativo ao princípio da boa fé. Karl LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, (Allgemeiner Teil), 14ª ed. München, C. H. Beck, 1987, pp. 107 a 109. MEDICUS explica que a doutrina generalizou, destas normas, as seguintes regras: a entrada nas negociações contratuais fundamenta elevados deveres de cuidado para os participantes; cria, então, uma ligação especial. Através da violação culposa destes deveres, é-se obrigado a indemnizar; havendo culpa de auxiliares, responde-se nos termos do § 278. Dieter MEDICUS, Schuldrecht – Allgemeiner Teil, Vol. I, 13ª ed., München, C. H. Beck, 2002, p. 58, n. m. 103. O autor acrescenta que a anterior doutrina, vigente através do direito consuetudinário, é agora reconhecida na lei. Dieter MEDICUS, Allgemeiner Teil des BGB, 8ª ed., Heidelberg, C.F. Müller, 2002, p. 177, n. m. 444. No mesmo sentido, HEINRICHS, Helmut, anotação ao § 311 do BGB, in Palandt, Bürgerliches Gesetzbuch, 61ª ed., München, C. H. Beck, 2002, p. 165. 6 Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf – Entwurf eines Gesetzes zur Modernisierung des Schuldrechts, Drucksache 14/6040, 14.05.2001, p. 161. 7 Neste sentido, SCHLECHTRIEM diz-nos que a regulamentação da culpa in contrahendo foi feita através do estabelecimento de deveres de protecção, nos termos do § 241, n.º 2, sendo que o preenchimento deste conceito deverá continuar a fazer-se de acordo com a jurisprudência e doutrina que anteriormente concretizavam as suas regras. O autor considera que a nova regulamentação legal não conduz necessariamente a resultados divergentes, nem criou um novo fundamento de constituição para as soluções até agora encontradas. Peter SCHLECHTRIEM, Schuldrecht – Allgemeiner Teil, 5ª ed., Tübingen, Mohr Siebeck, 2003, p. 15, n. m. 22. 8 Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform des Rechts der Leistungsstörungen», JZ 10/2001, p. 519, 1ª col.
A INFLUÊNCIA DA REVISÃO DO BGB
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diz claramente que, apesar dos esforços da doutrina e da jurisprudência para qualificar deveres já existentes no estádio précontratual e para concretizar grupos de casos de forma a tornar mais segura a aplicação da responsabilidade pré-contratual, não existia no ordenamento anterior à reforma do BGB um cânone seguro e definitivo. A culpa in contrahendo apresentava, assim, uma grande flexibilidade9, tendo-se tornado num dos institutos jurídicos centrais do direito civil alemão. Daí que fizesse todo o sentido que os seus princípios encontrassem expressão no código civil alemão, tornando mais fácil àquele que estuda este ordenamento entender o reconhecimento e consagração do instituto em causa10. O projecto entendeu por bem não regular todos os pormenores do instituto da culpa in contrahendo. Tal não seria possível – atendendo à multiplicidade de deveres a considerar e às diferenças nos interesses protegidos por estes – nem desejável. Assim, optou por uma regulamentação abstracta, susceptível de diferenciação e desenvolvimento através da jurisprudência11. Deste modo, foi criada apenas uma previsão normativa base e conscientemente renunciou-se à diferenciação de um programa de deveres ligado ao instituto da culpa in contrahendo e à concretização em grupos de casos12. b. O § 311, N.º 2 Foi no § 311, n.º 2 e n.º 3, que o projecto do Governo consagrou o instituto da culpa in contrahendo. Esta norma inserese na Secção 3. do Livro II do BGB, que trata das “Relações obrigacionais provenientes de contratos; Título 1. Constituição, conteúdo e extinção; Subtítulo 1. Constituição”. Esta inserção deve-se às seguintes considerações: por um lado, já antes da conclusão do contrato pode nascer entre os “participantes”13 uma relação obrigacional legal14 que, nos termos 9
Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 161. Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 162.
10 11
Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 162.
12
Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 519, 2ª col.
Não se pode ainda falar de contraentes, e, por vezes, nem sequer de pessoas que se encontram em efectivas negociações, daí a escolha cuidadosa da designação dos eventuais sujeitos da relação em causa. 13
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
do projecto, justifica a sua sujeição a uma responsabilidade semelhante à contratual; assim, surgindo esta relação no “précampo” ou fase prévia de um contrato, fazia sentido colocar sistematicamente este instituto “imediatamente a seguir ao princípio contratual”15, ou seja, no n.º 2 deste parágrafo. A epígrafe da norma é bastante abrangente, de forma a incluir tanto as situações do n.º 1, como as do n.º 2. Vejamos: § 311 Relações obrigacionais negociais e semelhantes a negociais (1) Para o estabelecimento de uma relação obrigacional através de negócio jurídico, assim como para a alteração do conteúdo de uma relação obrigacional, é necessário [a conclusão de] um contrato entre os participantes, desde que a lei não prescreva outra coisa. (2) Uma relação obrigacional com deveres nos termos do § 241, n.º 2, nasce também através 1.
do início de negociações contratuais,
2. da preparação de um contrato, através do qual uma das partes, com vista a um eventual relacionamento negocial, concede à outra parte a possibilidade de actuar sobre os seus direitos, bens jurídicos e interesses, ou confia-lhe os mesmos, ou 3. de contactos negociais análogos. (3) Uma relação obrigacional com deveres nos termos do § 241, n.º 2, pode também nascer em relação a pessoas que não devam tornar-se (elas próprias) partes do contrato. Uma tal relação obrigacional nasce, nomeadamente, quando o terceiro reivindica para si [uma] especial (medida de) confiança e, por meio dela, influencia consideravelmente as negociações contratuais ou a conclusão do contrato 16 17. 14 Trata-se de uma relação obrigacional legal sem deveres primários de prestação mas possuindo outro tipo de deveres, chamados pela doutrina de deveres de consideração (Rücksichtnahmepflichten). Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 9ª ed., München, C.H. Beck, 2004, p. 593, n. m. 3. 15
Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 161 e 162.
N.T. : o texto entre parênteses rectos refere-se a expressões que não existem no texto original mas que nele estão subentendidas. Encontram-se aqui para permitir uma melhor compreensão. É a chamada técnica do “enchimento”. O texto que se encontra dentro de parênteses curvos existe na versão original mas será dispensável numa correcta tradução para a língua portuguesa. 16
17 Na versão original : § 311 Rechtsgeschäftliche und rechtsgeschäftsähnliche Schuldverhältnisse
(1) (2)
Zur Begründung eines Schuldverhältnisses durch Rechtsgeschäft sowie zur Änderung des Inhalts eines Schuldverhältnisses ist ein Vertrag zwischen den Beteiligten erforderlich, soweit nicht das Gesetz ein anderes vorschreibt. Ein Schuldverhältnis mit Pflichten nach § 241 Abs. 2 entsteht auch durch
A INFLUÊNCIA DA REVISÃO DO BGB
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Como vemos, a seguir ao princípio do contrato do n.º 1, encontramos, no n.º 2, os pressupostos que podem fazer nascer uma relação obrigacional análoga às relações contratuais, ainda que não exista um contrato propriamente dito. O conteúdo de tal relação obrigacional não é aqui tratado. Na verdade, a norma remete para o § 241, n.º 2, onde se encontram regulados estes deveres18. O esquema é simples: através do preenchimento de algum dos pressupostos do § 311, n.º 2, nasce uma relação obrigacional legal. Nos termos do § 241, n.º 2, esta “pode, segundo o seu conteúdo, obrigar cada parte a respeitar os direitos, bens jurídicos e interesses da outra (parte)”. Assim, a violação destes deveres conduzirá o devedor à obrigação de indemnizar, com base nos §§ 28019 20 e seguintes.
1. 2.
die Aufnahme von Vertragsverhandlungen, die Anbahnung eines Vertrags, bei welcher der eine Teil im Hinblick auf eine etwaige rechtsgeschäftliche Beziehung dem anderen Teil die Möglichkeit zur Einwirkung auf seine Rechte, Rechtsgüter und Interessen gewährt oder ihm diese anvertraut, oder 3. ähnliche geschäftliche Kontakte. (3) Ein Schuldverhältnis mit Pflichten nach § 241 Abs. 2 kann auch zu Personen entstehen, die nicht selbst Vertragspartei werden sollen. Ein solches Schuldverhältnis entsteht insbesondere, wenn der Dritte in besonderem Ma e Vertrauen für sich in Anspruch nimmt und dadurch die Vertragsverhandlungen oder den Vertragsschluss erheblich beeinflusst. 18 Segundo SCHLECHTRIEM, a remissão para o § 242, n.º 2, significa que a relação obrigacional legal do § 311, n.º 2 e n.º 3, apenas faz nascer deveres de protecção. Contudo, isso não impede que o obrigado aos deveres de protecção tenha de agir de determinada forma ou omitir determinado comportamento, com vista a evitar danos ao “protegido”, nomeadamente, a prestação de informações, a manutenção de uma certa situação no seu espaço, etc. O “protegido” não terá direito a uma prestação mas, no caso da violação destes deveres de protecção, terá direito a ser indemnizado. Peter SCHLECHTRIEM, Schuldrecht – Allgemeiner Teil, cit., pp. 22 e 23, n. m. 33. 19 Cuja epígrafe é, precisamente, “Indemnização com fundamento na violação de dever”. Esta norma e as seguintes tratam o regime geral da responsabilidade contratual. 20 Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 162. A fundamentação do projecto refere, ainda, que a relação entre os deveres pré-contratuais e os deveres primários referentes ao cumprimento do contrato, muitas vezes é difícil de clarificar. Assim, a culpa in contrahendo abrange casos em que o contrato não chega a ser realizado e, igualmente, casos em que, devido ao comportamento culposo nas negociações, se celebra um contrato válido mas desvantajoso para uma das partes – situação vulgar em casos de violação de deveres précontratuais de informação. O projecto considerou inconveniente separar estes domínios de modo técnico-legislativo. De qualquer forma, sempre existirá obrigação de indemnizar com base no § 280. Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 162 e 163.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
Vamos, agora, debruçar-nos sobre cada um destes pressupostos. i.
O INÍCIO DAS NEGOCIAÇÕES
Trata-se da situação mais óbvia relativamente à possibilidade de constituição de uma relação obrigacional legal, sem deveres primários de prestação, como é o caso da culpa in contrahendo. A “relação jurídica das negociações” (nos termos de STOLL) começa com o início das negociações21. Verhandlungen em sentido estrito22, pois a lei alemã distinguiu outras formas de constituição desta relação. Assim, quando as partes iniciam negociações propriamente ditas com vista à conclusão de um contrato, segundo a fundamentação do projecto, estabelece-se entre elas uma relação de confiança análoga à contratual. Esta relação termina com a interrupção definitiva das negociações ou com a conclusão do contrato, a partir do qual os deveres em causa passam a ser contratuais23. Enquanto perdura, no entanto, obriga as partes a deveres de consideração, assistência e lealdade, deveres estes consagrados no § 241, n.º 2. O alcance destes deveres, contudo, não está legalmente estabelecido24. A fundamentação do projecto defende que tal se determina em função das circunstâncias do caso concreto25 e, por 21
HEINRICHS, Helmut, anotação ao § 311 do BGB, in Palandt, cit., p. 166.
Segundo LARENZ /WOLF, o início de negociações contratuais acontece com o contacto que alguém faz para com outrem com a finalidade de uma eventual conclusão de um contrato. Assim, basta uma qualquer exteriorização intelectual, seja por meio oral, escrito, electrónico ou através de comportamentos tácitos. Não tem de tratar-se de uma declaração negocial. Por outro lado, a publicidade unilateral, pura e simples, e o convite a contratar – por exemplo, através da exposição em montras – não chegam. É que as negociações referem-se a contratos concretos e previsíveis, com pessoas individuais. Não existem negociações com um público indefinido. Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 595, n. m. 9. 22
23
Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 163.
SCHLECHTRIEM considera que nem todos os interesses das partes gozam de protecção. Contudo, inclui no âmbito de protecção não só os direitos absolutos e os bens jurídicos protegidos através do direito delitual (propriedade, corpo, vida e saúde) como o interesse da parte em evitar despesas inúteis devido à não realizaçao do contrato e o interesse em que a execução do contrato corresponda às expectativas e que o objecto seja adequado ao seu fim (podendo a violação dos deveres em causa conduzir à obrigação de indemnizar o interesse positivo). Peter SCHLECHTRIEM, Schuldrecht – Allgemeiner Teil, cit., p. 22, n. m. 32. 24
25 No mesmo sentido, parece-nos, SCHLECHTRIEM. Na verdade, o autor considera que os deveres de consideração a respeito de propriedade alheia, bem como a respeito dos bens jurídicos pessoais (corpo, vida e saúde) já existem como deveres gerais do tráfico e serão ou não concretizados e agravados quando as partes se encontram na preparação de um contrato
A INFLUÊNCIA DA REVISÃO DO BGB
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isso, o seu desenvolvimento deve ser deixado à jurisprudência. Além disso, e na sequência da ideia de que o regime encontrado no texto do BGB pretendeu apenas consagrar um instituto já existente e não criar um novo, a fundamentação do projecto acrescenta que a jurisprudência anterior à reforma do BGB é válida para a regulamentação entretanto estabelecida, devendo a ela recorrer-se como até então. O mesmo raciocínio vale para as consequências jurídicas da violação destes deveres, agora previstas no § 28026. ii.
A PREPARAÇÃO DE UM CONTRATO
Segundo a jurisprudência e a doutrina alemãs, este é também um caso típico de culpa in contrahendo. Ainda não existem negociações propriamente ditas, as partes ainda não se encontram a negociar a conclusão de um contrato concreto. No entanto, encontram-se obrigadas a deveres de cuidado para com a outra parte, desde que exista um potencial relacionamento jurídico-negocial que faça com que uma das partes tenha a possibilidade de actuar sobre os direitos, bens jurídicos e interesses da outra. Nestes termos, uma relação obrigacional com deveres nos termos do § 241, n.º 2, nasce já antes do início das negociações27. É o caso do rolo de linóleo28. Neste tipo de casos, uma das partes mantém aberto um espaço negocial e, por isso, é obrigada a mantê-lo em perfeitas condições de segurança, higiene, etc., de forma a proteger a integridade física, a vida29 ou até o ou apenas negocialmente em contacto, de acordo com as circunstâncias especiais do caso, como, por exemplo, os riscos que o comportamento de uma parte traz, bem como da sua empresa ou organização. Peter SCHLECHTRIEM, Schuldrecht – Allgemeiner Teil, cit., p. 21, n. m. 31. 26 Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 163. Na verdade, a fundamentação do projecto chega a dizer que não se pretende uma alteração à anterior jurisprudência relativamente aos grupos de casos imagináveis, por exemplo, à ruptura injustificada das negociações contratuais. Ibidem. 27
HEINRICHS, Helmut, anotação ao § 311 do BGB, in Palandt, cit., p. 166.
Uma senhora entrou numa loja com o seu filho para comprar tapetes de linóleo. Dois destes estavam mal colocados pelo empregado da loja, pelo que se soltaram e atingiram a senhora e o filho. O dono da loja foi responsabilizado pré-contratualmente pelo Tribunal Supremo do Reich. RG 7- Dez.- 1911, RGZ 78 (1912), pp. 239 a 241 apud António MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no Direito Civil, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1984, p. 547. 28
29 MEDICUS refere que, relativamente a estes bens jurídicos, já protegidos pela responsabilidade extracontratual, a aceitação de uma ligação especial deve, em primeira linha, evitar determinadas fraquezas desta tutela, sobretudo a possibilidade de exoneração nos termos do § 831, n.º 1, frase 2. Assim, diz-nos que a aplicação da doutrina da culpa in
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património da outra parte. Ao abrir um local de negócio ao tráfico, é-se responsável pelas lesões culposas que decorram da violação destes deveres, seja pelo próprio, seja pelos seus auxiliares. No entanto, é necessário que exista um potencial relacionamento negocial em vista: é o caso do eventual cliente que entra na loja para comprar algo e escorrega no chão molhado, mas já não é o caso de uma pessoa que apenas tem em vista apropriar-se de algum objecto, ou de alguém que pretende apenas abrigar-se da chuva. Decisiva é, assim, a existência de uma “preparação” do contrato. Apesar de não existirem negociações em sentido estrito, é com vista nelas que tudo se processa30. Segundo LARENZ/WOLF, não é necessária a entrada numa esfera de influência espacial. Há outras possibilidades de influenciar que são igualmente válidas, como a utilização de panfletos, ou através do telefone ou da internet31. Segundo os autores, a ligação especial existente em caso de culpa in contrahendo começa com o nascimento da possibilidade de influenciar. Tal não acontece apenas no âmbito de um espaço físico. Por exemplo, uma agência seguradora faz reclame com a sua experiência relativamente a todas as questões sobre seguros e indica um número de telefone para informações e quem telefona, numa conversa publicitária, é aconselhado a rescindir os contratos de seguro que possui, o que lhe vem a trazer mais tarde prejuízos. Este lesado pode exigir uma indemnização com base no § 311, n.º 2, em ligação com o § 241, n.º 2 e com o § 280 ou o § 28232. O ponto 2. do n.º 2 do § 311 refere “a possibilidade de actuar sobre os seus direitos, bens jurídicos e interesses”. Segundo a fundamentação do projecto, com “direitos” e “bens jurídicos” pretende abranger-se aqueles mencionados pelo § 823, n.º 1, portanto os mesmos que em sede de responsabilidade civil contrahendo torna-se dispensável quando as fraquezas da responsabilidade extracontratual são remediáveis, o que já aconteceu para uma boa parte de situações em que a jurisprudência dificultou a exoneração da responsabilidade nos termos do § 831, n.º 1, frase 2, e da aceitação de deveres de organização. Dieter MEDICUS, Allgemeiner Teil, cit., p. 178, n. m. 446. V. ainda Dieter MEDICUS, Schuldrecht, cit., pp. 59 e 60, n. m. 104. 30 Neste sentido, Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, 29ª ed. München, C.H. Beck, 2003, p. 62, n. m. 6. 31 32
Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 596, n. m. 11. Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 597, n. m. 13.
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extracontratual já se encontrariam protegidos33. Quando se refere a “interesses”, considera especialmente os interesses patrimoniais34 da outra parte mas abrange, igualmente, a título de exemplo, outros interesses como a liberdade de decisão35. CANARIS expõe exactamente o mesmo, embora referindo-se aos “direitos, bens jurídicos e interesses da outra parte” do § 241, n.º 2, considerando a sua ligação com o § 311, n.º 236. A fundamentação do projecto acrescenta que, encontrando-se preenchido o pressuposto do n.º 2, ponto 2., serão de aplicar igualmente as consequências jurídicas do § 280. iii.
CONTACTOS NEGOCIAIS ANÁLOGOS
33 É de referir que o regime extracontratual de responsabilidade alemão difere do contratual, sendo este último de preferir em algumas situações, o que fez com que a doutrina e a jurisprudência tivessem considerado a aplicação do regime da responsabilidade contratual aos casos de culpa in contrahendo, precisamente para permitir uma melhor protecção do lesado. Foi o que aconteceu no caso do rolo de linóleo, referido supra, na nota (28). Caso tivesse sido aplicado o regime da responsabilidade extracontratual, o dono da loja teria podido exonerar-se, com fundamento no § 831, n.º 1, frase 2, ou seja, provando que fora diligente na escolha do empregado que provocara o dano. 34 Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 163. Neste sentido, o projecto de lei estabelece que os danos puramente patrimoniais são indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual. MEDICUS explica que o direito delitual apenas concede direito de indemnização relativamente a este tipo de danos quando o dano resultou da violação de uma disposição de protecção (§ 831, n.º 2) ou que contraria dolosamente os bons costumes. No entanto, como normalmente o dolo não é demonstrável, a indemnização terá de ser fundamentada no “direito da ligação especial”. Dieter MEDICUS, Schuldrecht, cit., pp. 60 e 61, n. m. 105. CANARIS diz claramente que é de esclarecer que já no estádio da “preparação” a protecção do património existe. Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 519, 2ª col. Como exemplo, BROX/WALKER apresentam a seguinte situação: K quer comprar a V um automóvel e, para isso, faz uma viagem de teste. Por culpa de V, no meio da viagem, o automóvel fica parado numa região solitária e K tem de voltar de táxi e pagar os respectivos custos. Pode K obrigar V a indemnizar estes custos? Não se trata de uma lesão a um direito ou bem jurídico nos termos do § 823 (nem estão em causa os bons costumes do § 826), ou seja, estamos perante um dano puramente patrimonial. No entanto, os autores entendem que é contrário à natureza das coisas considerar que V seria obrigado a pagar estes custos caso já houvesse contrato, devido à violação de deveres de protecção no âmbito contratual, e não considerar da mesma forma no momento em que ainda não há contrato, uma vez que a situação é idêntica em tudo o mais. Assim, defendem que os deveres de protecção mencionados se enquadram no § 241, n.º 2, (que refere a consideração dos bens jurídicos, direitos e interesses da outra parte) e, por isso, também valem na fase pré-contratual. Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, cit., p. 59, n. m. 1 e p. 60, n. m. 2. 35 A referência à protecção de interesses como a liberdade de decisão vai de encontro à possibilidade referida infra de desvinculação do contrato celebrado com violação de deveres pré-contratuais de informação, válido mas desvantajoso, através de restauração natural. 36 Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 519, 2ª col.
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É bastante difícil definir em termos precisos este terceiro ponto. Desde logo, trata-se de uma cláusula aberta que pretende deixar espaço à jurisprudência para se desenvolver para além dos limites do restante texto e tratar como casos de responsabilidade pré-contratual situações que, à primeira vista, não caberiam neste instituto. Na verdade, segundo SCHWAB, trata-se de uma norma com uma função de recurso, subsidiária, que pretende abranger os casos em que os pressupostos dos pontos 1. e 2. não estão preenchidos mas em que, apesar disso, é criada uma relação de proximidade com fundamento em contactos para fins negociais37. A fundamentação do projecto refere explicitamente que a própria jurisprudência anterior já reconhecia que os direitos provenientes da culpa in contrahendo não só nascem de negociações contratuais ou da preparação de contratos como também de contactos negociais análogos. Segundo a fundamentação do projecto, trata-se de um contacto através do qual ainda não se prepara nenhum contrato (no sentido do ponto 2.: “Anbahnung”) mas em que tal contrato deve ser “vorbereitet”. A diferença entre os dois conceitos é, como diz SCHWAB, pouco inteligível38, pelo que o ponto 3. ganha ou perde significado e alcance conforme se considere o alcance e o significado do ponto 2.39 Assim, podemos concluir que, no ponto 3., estamos num estádio anterior ao do ponto 2. Segundo BROX/WALKER, basta que, através do início de contactos com o fim de eventualmente concluir um contrato ou uma relação negocial, se tenha aberto uma elevada possibilidade de influência nos bens jurídicos, direitos e interesses da outra parte40. Os autores apresentam como 37
Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 442, n. m. 956.
Os conceitos de Anbahnung e de Vorbereitung são muito próximos. Na verdade, pode traduzir-se Anbahnung por “preparação” e Vorbereitung, curiosamente, também. Daí que a distinção entre os dois conceitos e, consequentemente, dos dois pontos da norma, se torne muito difícil. Uma solução seria considerar que todos os casos de preparação deviam caber no ponto 2. e que no ponto 3. caberiam apenas outras situações como as mencionadas a seguir no corpo do texto, mas parece-nos não ter sido essa a vontade da lei, atendendo à fundamentação do projecto. No entanto, parece ser a opinião de WOLF. O autor considera que a entrada numa loja para uma pessoa se informar do preço dos objectos cabe no ponto 2. (Anbahnung). Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 597, n. m. 12. 38
39 40
Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., idem. Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, cit., p. 62, n. m. 7.
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exemplo, o caso de K, que se desloca com o seu filho menor, M, a uma loja para ver os artigos. K escorrega no chão, que não se encontrava em ordem, e lesiona-se. O dono da loja terá de pagar uma indemnização pois para estes autores é insignificante se mais tarde se iria realizar um contrato de compra e venda entre ambos. O potencial cliente não precisa sequer de ter uma intenção concreta de concluir um contrato quando entra na loja. Para existir um contacto negocial nos termos do ponto 3. basta que o eventual cliente tenha entrado na loja para se informar dos preços41. WOLF tem aqui uma posição algo diferente. Por um lado, parece considerar o ponto 2. mais abrangente que o referido acima, pois inclui neste grupo de casos o caso supramencionado da entrada num local para inquirição dos preços. O mesmo parece pensar CANARIS42. Por outro lado, refere que, ao contrário do ponto 1. e do ponto 2., os contactos negociais análogos não pressupõem nenhuma referência para um contrato, pois não se fala no ponto 3. de relações jurídico-negociais43. Além disso, como o ponto 3. é uma norma subsidiária para colmatar as falhas dos pontos 1. e 2., pode abranger configurações de casos de preparação de um contrato sem que os pressupostos do ponto 2. estejam preenchidos. O autor inclui, ainda, no âmbito desta norma, casos em que se afaste a conclusão de um contrato, negócios jurídicos unilaterais e actos negociais. Considera que estes contactos negociais análogos podem mesmo surgir no quadro de relações de favor com carácter semelhante ao jurídico-negocial sem deveres primários de prestação, considerando o papel que estas relações desempenham, sobretudo no âmbito de determinados casos de
41 Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, cit., p. 59, n. m. 1 e pp. 62 e 63, n. m. 7. 42 O autor diz que não basta um “mero contacto social” e que é necessário existir alguma conexão com uma eventual conclusão do contrato, ainda que se tenha, por exemplo, ido a uma loja para ver as mercadorias, não tendo nenhuma intenção concreta de comprar, mas inclui esta situação no ponto 2. do n.º 2 do § 311. Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 520, 1ª col. 43 Assim, considera que bastam contactos no sentido mais amplo, o que significa que se incluem aqui não só contactos de natureza contratual ou jurídico-negocial, como também contactos de espécie meramente real. Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 597, n. m. 14.
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informações44. Naturalmente, afirma que não basta, apesar de tudo, qualquer mero contacto social. Aliás, como refere CANARIS, tal seria irreconciliavelmente contraditório com a decisão inequívoca do ponto 2. que determina o contrário, sendo igualmente incompatível com a palavra “negocial” 45. LARENZ/WOLF, contudo, afirmam que é suficiente que o contacto mostre uma relação negocial para uma das partes46. Como exemplo apontam o caso de A, que interpelou B ao cumprimento de uma dívida que A devia saber não existir por ter fundamento num contrato nulo. B, sem aconselhamento jurídico, não se deu conta deste facto e, para pagar a pretensa dívida, contraiu um empréstimo a juros. Esta interpelação não é um negócio jurídico mas um acto quase-negocial; sendo o contrato nulo, não há qualquer relação contratual nem é de esperar que ela se constitua entretanto. Existe, apenas, um contacto negocial entre A e B, por causa do qual A é obrigado a indemnizar B pelos danos que lhe causou negligentemente47. Para além disso, é necessário não esquecermos que a epígrafe do § 311 se refere a relações obrigacionais negociais e semelhantes a negociais, portanto, não se referindo exclusivamente à culpa in contrahendo, podendo incluir outras
44 Outros exemplos serão a disponibilização gratuita de espaços, ou até mesmo o dar boleia a outrem no automóvel, desde que não sejam meras relações de favor e venham enquadradas, por exemplo em anteriores relações contratuais… 45 46
Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 520, 1ª col. Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 597, n. m. 14 e p. 598.
47 Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 598, n. m. 15. Encontramos, ainda, outros exemplos: G aconselha H, com quem mantém relações negociais ocasionais, a desistir de um contrato com V porque quer, ele próprio, efectuar o tal contrato – mais favorável – com V. H afasta-se e acaba por ter de comprar sensivelmente mais caro. Aqui, G viola os deveres de consideração do § 241, n.º 2, nos termos do § 311, n.º 2, embora a indemnização a pagar possa ser reduzida por uma concorrência de culpas de H, nos termos do § 254.
E pede aconselhamento sem compromisso a F, mostrando-lhe para tal documentos negociais que F aproveita para fotocopiar e transmitir aos concorrentes de E. Entre E e F existe um contacto negocial através do qual E pode pedir uma indemnização a F pelos danos por este provocados neste âmbito. Os autores consideram, ainda, que em vez da construção de contratos de informação fictícios, podem nascer deveres de cuidado com fundamento em informação efectiva, existindo aqui um contacto negocial.
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relações obrigacionais sem deveres primários de prestação48. Outros institutos como a figura dos “contratos com eficácia de protecção para terceiros” também podem incluir-se, nesta lógica, aqui. Na verdade, a fundamentação do projecto refere que, em princípio, um dos pressupostos para que haja responsabilidade é que se esteja perante os participantes do eventual contrato. Terceiros que se encontrem numa relação de proximidade com uma das eventuais partes do contrato não são abrangidos sem mais. Contudo, estes terceiros devem ser protegidos quando se encontram abrangidos no âmbito de protecção da relação obrigacional, nos termos dos princípios sobre o contrato com eficácia de protecção a favor de terceiros. É que o projecto entende que estes princípios são de aplicar também a relações obrigacionais pré-contratuais49. A fundamentação do projecto é, assim, bastante explícita e acaba por aliar as figuras da culpa in contrahendo e dos contratos com eficácia de protecção para terceiros, incluindo-as no ponto 3. do n.º 2 do § 31150. No entanto, esta última figura enquadra-se de forma mais directa no teor da norma do n.º 3 do § 31151, que analisaremos em seguida. c. O N.º 3 DO § 311 O n.º 3 do § 311 divide-se em duas frases. A primeira é uma cláusula geral que determina que também pode nascer uma relação obrigacional semelhante à contratual entre um participante que deverá tornar-se parte no contrato e pessoas que não irão, em princípio, fazê-lo. A fundamentação do projecto refere que estes casos são, em especial, os casos de
Por exemplo, a assim designada por SINDE MONTEIRO “ligação permanente de negócios”. Jorge Ferreira SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Coimbra, Almedina, 1989, p. 514 e segs. 48
49
Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 163.
Igualmente CANARIS considera que o ponto 3. oferece também a possibilidade de abranger a eficácia de protecção a favor de terceiros no quadro da culpa in contrahendo, a não ser que estes casos caiam na alçada no n.º 3, frase 1, do § 311. Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 520, 1ª col. 50
51 Apesar de se poder duvidar que era essa a intenção do legislador, considerando as explicações dadas pela fundamentação do projecto e já mencionadas supra. Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, cit., p. 64, n. m. 13.
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responsabilidade própria do representante52 ou dos auxiliares nas negociações mas não exclui outros casos. Na verdade, considera que a responsabilidade de terceiros por culpa in contrahendo é um instituto que continua em evolução, pelo que a lei o regulamenta de forma a permitir a continuação deste desenvolvimento através da prática jurídica e da ciência53. Apesar de a fundamentação do projecto ser omissa a este respeito54, esta frase permite, tal como dizemos supra, considerar a existência de deveres de protecção a favor de terceiros. Ou seja, a norma foi construída de forma ambivalente: a relação obrigacional semelhante à negocial que pode surgir com terceiros, tanto pode tornar o terceiro responsável por culpa in contrahendo perante uma das partes, como pode tornar responsável uma das partes perante um terceiro. Como diz CANARIS, a frase 1 é tão aberta que não se lhe pode subsumir apenas a legitimidade passiva como também a activa55. Cabem, portanto, de forma directa no teor desta norma, os casos de “eficácia de protecção para terceiros” no âmbito pré-contratual. SCHWAB refere que a segunda frase desta norma indica um exemplo de casos em que pode constituir-se uma relação obrigacional entre pessoas que não devem tornar-se partes no contrato, ou seja, indica “especialmente” o caso em que o terceiro reivindica para si confiança em especial medida e, através disso, influencia consideravelmente as negociações ou a conclusão do contrato. Contudo, a norma não estabelece em geral quais os 52 No âmbito da ordem jurídica portuguesa, não existe uma norma no âmbito do instituto jurídico da procuração que expressamente determine a responsabilidade do representante sem poderes perante a contraparte. No entanto, a doutrina defende a aplicação do regime da culpa in contrahendo (art. 227º). V. por todos Raúl GUICHARD ALVES, «Notas sobre a falta e limites do poder de representação», Revista de Direito e de Estudos Sociais, 1995, ano XXXVII, nºs 1-2-3, p. 22; IDEM, «O Instituto da Representação Voluntária no Código Civil de 1966», Revista Direito e Justiça, 2004, XVIII, Tomo I, pp. 206 e 207; no mesmo sentido, MOTA PINTO apresenta o caso do falsus procurator. O representante sem poderes é responsável por culpa in contrahendo perante a contraparte, caso não haja ratificação do representado e, por isso, o contrato permaneça ineficaz. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. (actualizada por António PINTO MONTEIRO e Paulo MOTA PINTO), Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 549. 53 Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 163. 54 Por este motivo, segundo SCHWAB, na linha de pensamento de BROX/WALKER, pode duvidar-se da inclusão destes casos no § 311, n.º 3, segundo a vontade do legislador. Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 444, n. m. 962. 55 Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform» cit., p. 520, 1ª col.
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pressupostos que podem fazer surgir este tipo de relações. Limitase a expor a possibilidade da sua constituição e a dar um exemplo, onde consta o pressuposto da “confiança reivindicada em especial medida”, pelo que se torna muito confusa. O autor refere, por exemplo, que é especialmente duvidoso se a regra do § 311, n.º 3, deve ser tomada como uma regra de ligação para o § 311, n.º 2, pressupondo uma relação de preparação de contrato ou de contactos negociais análogos, ou se ela pode ser aplicada isoladamente do § 311, n.º 256. É possível, portanto, a nosso ver, considerar a existência de casos em que o pressuposto mencionado na segunda frase do § 311, n.º 3, não exista57. Terão de ser a doutrina e a jurisprudência a colmatar as dúvidas que se levantam a este respeito58. O certo é que, como já dissemos, podem existir dois grupos de casos, aliás já desenvolvidos pela jurisprudência anterior à modernização do direito das obrigações59: 1) a responsabilidade própria do representante (§ 164) ou auxiliar nas negociações por comportamento contrário ao dever, no âmbito de negociações conduzidas para outra pessoa60; 2) os casos de eficácia de protecção a favor de terceiros. 1) O representante (ou o auxiliar nas negociações) está vinculado aos deveres de consideração do § 241, n.º 2, tal como estaria a própria parte do negócio que representa, pelo que a sua violação conduz à responsabilidade pré-contratual do representado, do mesmo modo que se imputam ao representado os efeitos jurídicos do contrato celebrado através do representante. O representado responde com base no § 278, frase 1. O representante só responderia directamente perante a outra 56
Dieter SCHWAB, Einführung cit., p. 444, n. m. 961.
MEDICUS refere precisamente que a frase 2 do § 311, n.º 3, é apenas uma regra-exemplo, pelo que há a considerar ainda outros grupos de casos. Acrescenta que há a necessidade de reserva no que toca à adopção de uma responsabilidade própria do terceiro por culpa nas negociações contratuais e aponta outras formas de responsabilização. Dieter MEDICUS, Schuldrecht, cit., p. 66, n. m. 111. 57
58 De facto, a jurisprudência já estabelecia uma hipótese: a do interesse próprio nas negociações que vamos explorar em seguida. 59 Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 444, n. m. 962. 60 SCHWAB considera que o exemplo do § 311, n.º 3, frase 2, se refere a este grupo de casos. Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 444, n. m. 962.
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parte das negociações através de responsabilidade extracontratual, visto não estar sequer em vias de existir uma relação obrigacional entre ambos. A responsabilidade própria pré-contratual do representante (ou do auxiliar) é, assim, excepcional e foi desenvolvida pela jurisprudência em casos muito específicos, com pressupostos próprios. Deste modo, exige-se que haja um interesse económico próprio na conclusão do contrato61 por parte do representante62 ou do auxiliar, ou que estes tenham reivindicado confiança especial pessoal, influenciando através disso as negociações ou a própria realização do contrato63. O § 311, n.º 3, frase 2, consagra, a 61 CANARIS refere que o “interesse próprio do terceiro” teve na jurisprudência e doutrina apenas um papel como segundo critério. Chegou existir uma proposta do competente grupo de trabalho que colocava os casos nos quais os terceiros “influenciam decisivamente as negociações contratuais ou a conclusão do contrato e têm um interesse próprio predominante na conclusão do contrato” ao lado dos casos de responsabilidade pela confiança. No entanto, a comissão que elaborou o projecto não aceitou esta proposta. Na verdade, segundo este autor, fazê-lo seria consagrar uma solução já abandonada pela jurisprudência actual do BGH. Este tinha renunciado expressamente à sua anterior jurisprudência sobre a relevância do interesse próprio no quadro da culpa in contrahendo. No entanto, é um critério que parece poder caber no § 311, n.º 3, frase 1, (visto esta norma deixar o problema em aberto) mas terá de estar em causa um interesse próprio “predominante”. Aparentemente, só se justificará este critério em casos extremos, como aquele que serviu de base à decisão de partida do Tribunal do Reich, onde o terceiro tinha uma posição de procurator in rem suam. Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 520, 2ª col. 62 BROX/WALKER apresentam como caso de interesse próprio do terceiro o caso de V que negoceia como representante de K com o proprietário, E, sobre a compra de um terreno. Com base em falsas informações, leva E a vender abaixo do valor, porque fizera anteriormente um contrato com K, que lhe permitia adquirir o imóvel logo a seguir, por este mesmo preço. Ou seja, o preço que negoceia em nome de K interessa-lhe igualmente, como se fosse parte no contrato! Os autores entendem que este caso não cabe no não taxativo § 311, n.º 3, frase 2, mas na ratio do § 311, n.º 3, frase 1. Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, cit., p. 59, n. m. 1 e p. 64, n. m. 12. 63 Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 444, n. m. 963 e p. 445. O autor continua com o exemplo em que X, procurador de E arrenda a Y um apartamento junto ao rio. Y tinha inquirido X sobre o barulho que seria de esperar à noite do rio e X, que afirmara ter grande experiência em arrendamentos (vinte anos) e conhecer a cidade por fora e por dentro, disse negligentemente, sem se informar, que seria divinalmente calmo. O certo é que desde há algum tempo que barcos de excursões ancoram nas margens à noite e deixam os motores ligados, fazendo um barulho considerável. Y, pouco depois da mudança, decide revogar o arrendamento e procurar outro apartamento. Y pode pedir a indemnização dos custos pela nova mudança a E, com fundamento nos §§ 311, n.º 2, 241, n.º 2, 280, n.º 1 e 278, frase 1. Contudo, também pode fazê-lo relativamente a X, se se entender ser de aplicar o § 311, n.º 3, frase 1, que colocaria X sob os deveres de consideração do § 241, n.º 2, apesar de este não dever tornar-se ele próprio parte no contrato. O autor considerou que este poderia ser um dos casos do § 311, n.º 3, frase 2, visto que X afirmou ser experiente, deixou reconhecer que ele podia julgar a situação por ter conhecimento profissional próprio, ou seja, chamou a si confiança em especial medida, influenciando a conclusão do contrato (Y não arrendaria se
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título de exemplo, o caso em que alguém reivindica para si próprio especial confiança, no que o projecto considera ser o grupo de casos mais importante. Com este pressuposto, pretende-se que o terceiro reivindique a confiança para a sua própria pessoa e não para o potencial parceiro contratual para quem ele age, como por exemplo o representado, ou seja, pretende-se que ele ultrapasse o seu papel como auxiliar nas negociações, representante, agente, etc. e assuma uma função autónoma64. Neste sentido, a fundamentação do projecto indica que a “especial confiança”65 deve ultrapassar a confiança normal que é devida nas negociações, ou seja, não basta que alguém se refira à sua própria experiência ou seja um porta-voz ou representante. Contudo, pode bastar que declare responsabilizar-se pelo parceiro nas negociações ou algo semelhante66. Neste grupo de casos pode caber, em algumas situações, a “responsabilidade do encarregado de cuidar de interesses patrimoniais alheios” (Sachwalterhaftung67). Nos termos da fundamentação do projecto, caso se verifique o pressuposto do § 311, n.º 3, frase 2, estes casos poderão ser tratados através da culpa in contrahendo. Serão casos em que não há um interesse próprio na conclusão do contrato mas, porque as pessoas são peritos ou outras “pessoas de informações”, influenciam decisivamente a conclusão do contrato e dos seus termos, através da sua opinião, porque uma das partes nas negociações confiou na sua objectividade e neutralidade68. tivesse um correcto conhecimento da situação). Logo, responde nos termos dos §§ 241, n.º 2 , (violação de deveres de consideração), 311, n.º 3, frases 1 e 2 e 280, n.º 1, frase 1. 64
Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 521, 1ª col.
CANARIS acrescenta que o BGH apenas considera existir uma reivindicação por parte do terceiro de uma confiança “em especial medida”, por via de regra, quando o terceiro assumiu uma garantia adicional que parte dele próprio. A sua declaração ou comportamento está ligado a um certo elemento de garantia. Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 521, 1ª col. 65
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Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 163.
Ou seja, responsabilidade por parte de uma “pessoa que trata dos assuntos de outrem”. O conceito de Sachwalter é de difícil tradução. Não se encontra em português uma palavra que lhe sirva de sinónimo. 67
68 BROX/WALKER apresentam o seguinte exemplo: O vendedor encarrega um perito da avaliação do seu terreno. O parecer negligente do perito parte de um valor demasiado elevado, o que induz o comprador a uma conclusão do contrato de compra e venda desfavorável. Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, cit., p. 59, n. m. 1. Segundo estes
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
Segundo a fundamentação do projecto, este tipo de casos normalmente não é tratado como um caso de culpa in contrahendo – é mais habitual aplicar-se a responsabilidade contratual, através da existência de um contrato de informações ou aconselhamento entre o perito (ou a pessoa que presta informações) e a parte ou as partes do negócio, por vezes celebrado de forma tácita. No entanto, tais contratos podem não existir ou pode não ser fácil provar a sua existência, pelo que o projecto deixa à jurisprudência a possibilidade de resolver o problema através da aplicação do instituto da responsabilidade pré-contratual, que não pressupõe uma ligação contratual. Decisivo é saber se foi reivindicada confiança em especial medida por parte do perito ou daquele que presta informações69. O Bundestag, pronunciando-se sobre este tema do projecto70, veio ainda acrescentar que o § 311, n.º 3, não vinha criar uma outra possibilidade de responsabilidade: a dos advogados. Estes, por pareceres emitidos para os seus clientes, segundo o direito anterior à Lei de Modernização do Direito das Obrigações, apenas respondiam perante estes e não perante um terceiro com quem os clientes negoceiam. O n.º 3 do § 311 não pretende alterar este regime, pois o advogado só reivindica confiança especial dos seus clientes e não dos parceiros contratuais destes. A situação é diferente (aliás já o era à luz do direito anterior à modernização do direito das obrigações) quando existe uma “third party legal opinion”, destinada a ser apresentada ao terceiro e na qual este deve poder basear a sua decisão sobre uma eventual conclusão do contrato. Aqui é de aplicar a responsabilidade pré-contratual de terceiro. Já o advogado só responderá por culpa in contrahendo perante um terceiro se autores, entre o perito e o comprador não existe um contrato mas existe uma relação obrigacional porque o comprador se deixou influenciar decisivamente pelo parecer inexacto do perito no âmbito da conclusão do contrato com o vendedor. Tendo prestado informações falsas de forma culposa, o perito violou deveres de consideração provenientes do § 241, n.º 2, pelo que o comprador tem direito a ser indemnizado com base nos §§ 280, n.º1, 311, n.º 3 e 241, n.º 2. Os autores acrescentam ainda que a mesma solução podia, em parte, atingir-se através das regras do contrato entre o perito e o vendedor com eficácia de protecção a favor do terceiro (o comprador). Hans BROX/ Wolf-Dietrich WALKER, Allgemeines Schuldrecht, cit., p. 64, n. m. 11. 69 Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 163. 70 Deutscher Bundestag, Beschlussempfehlung und Bericht des Rechtsausschusses zu dem Gesetzentwurf (…), Drucksache 14/7052, 09.10.2001, p. 190.
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preencher o pressuposto do § 311, n.º 3, frase 2, relativamente a este terceiro, ou seja, se tiver reivindicado especial confiança perante este71. 2) Como foi dito supra, a jurisprudência já reconhece há muito os casos em que um terceiro, porque se encontra próximo da relação de negociações, se vê abrangido pelo âmbito de protecção dos deveres que incumbem aos participantes. O caso da folha de hortaliça é um exemplo paradigmático: uma senhora entra num supermercado para fazer compras e leva uma criança. A criança escorrega numa folha de hortaliça que se encontra no chão e magoa-se. Entre a criança e o dono do supermercado não há negociações (nem uma relação nascida do ponto 2. do § 311, n.º 2, ou seja, uma preparação do contrato, como momento anterior às negociações) mas a jurisprudência considerou que esta podia exigir uma indemnização com fundamento em violação de deveres de protecção (agora consagrados no § 241, n.º 2). Assim, entendeu-se que se estendiam a este terceiro os deveres de protecção provenientes da relação pré-contratual com a mãe. A semelhança com as situações de contratos com eficácia de protecção a favor de terceiros72 é evidente: o que as distingue é o facto de ainda não estar concluído um contrato. O projecto, como já dissemos, aceita explicitamente que os terceiros possam ser protegidos nos mesmos termos, ainda na fase pré-contratual. 71 Segundo a anterior jurisprudência, tal verifica-se apenas no caso do perito oferecer ao terceiro uma garantia pessoal para a correcção do seu parecer. Deutscher Bundestag, Beschlussempfehlung, cit., p. 190. 72 A doutrina do contrato com eficácia de protecção a favor de terceiros foi desenvolvida para conceder a terceiros próximos da relação contratual um direito próprio. Nos termos do direito alemão, caso, por exemplo, o auxiliar do senhorio – que deveria manter o imóvel em condições adequadas – não tenha arranjado um corrimão defeituoso, apesar dos pedidos do inquilino, tendo a mulher do inquilino vindo a cair das escadas e a partir uma perna, a mulher do inquilino pode pedir uma indemnização ao senhorio com base na responsabilidade extracontratual (§ 823, n.º 1 ou n.º 2, em ligação com o § 229 do Código Penal). Porém, o senhorio pode escusar-se se, nos termos do § 823, n.º 1, frase 2, tiver observado o cuidado exigível no tráfico na escolha e vigilância do seu auxiliar. Ora, se a mulher do inquilino puder ser protegida com base na responsabilidade contratual, já o senhorio não poderá escusar-se e ser-lhe-á imputada a conduta do auxiliar, nos termos do § 278. A forma de o fazer é através do contrato com eficácia de protecção a favor de terceiros, abrangendo alguém que não é parte no contrato nos deveres de protecção de uma das partes contratuais (o inquilino) pela força do acordo tácito entre aqueles que concluem o contrato. Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 446, n. m. 965. Para uma visão da evolução desta doutrina alemã, veja-se Jorge Ferreira SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Coimbra, Almedina, 1989, p. 74 e segs.
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O exemplo de SCHWAB é bastante elucidativo: quando o senhor S, com vista ao arrendamento de um apartamento do senhor Z, inspecciona o referido apartamento acompanhado da sua mulher (que, contudo, não deverá tornar-se parte no arrendamento), o corrimão defeituoso da escada parte-se, a senhora S cai e parte uma perna. Como a lesão ocorre já no estádio da preparação do contrato, as doutrinas da culpa in contrahendo e do contrato com eficácia de protecção a favor de terceiros podem ser combinadas de forma a garantir um direito próprio de indemnização à senhora S73. É que Z (ainda que através do seu auxiliar, E) era obrigado a manter a casa segura para o tráfego. Com a entrada na casa dos senhores S, nasce uma relação jurídica obrigacional com o senhor Z, nos termos dos §§ 311, n.º 2 e 241, n.º 2, sendo que os deveres de protecção do senhorio podem também nascer perante uma pessoa que não deve tornar-se parte no contrato (§ 311, n.º 3, frase 1), ou seja, perante a senhora S (ainda que fosse o auxiliar ou o administrador da casa, E, quem omitiu a reparação devida do corrimão). O seu direito de indemnização baseia-se, então, no § 280, n.º 1, em ligação com os §§ 311, n.º 2 e n.º 3, frase 1, 241, n.º 2, e 278, frase 174. Encontram-se, aliás, preenchidos – com as devidas adaptações – os pressupostos que a jurisprudência desenvolveu para incluir uma pessoa no âmbito de protecção dos deveres de consideração contratuais: a) que o terceiro se encontrasse tipicamente na proximidade da prestação (é o caso da senhora S que quer, compreensivelmente, inspeccionar o apartamento em que irá viver); b) que a parte contratual, do lado da qual ele se encontra, tenha um interesse considerável na sua inclusão nos deveres de protecção da outra parte contratual (este pressuposto também se encontra preenchido: ao senhor S interessa que a sua mulher seja incluída nos deveres de cuidado análogos aos contratuais do senhorio); c) que este facto seja reconhecível para a outra parte contratual (também se verifica, pois ao senhorio isto é reconhecível).
73 O autor é de opinião que este caso pode ser tratado nos termos do § 311, n.º3, frase 1, em ligação com o § 311, n.º 2 e as suas exigências. Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 446, n. m. 966 e p. 447. 74 Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht, cit., p. 446, n. m. 965 e p. 447, n. m. 966.
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2. CONCLUSÃO Em suma, encontramos, agora, no código civil alemão uma norma que consagra expressamente a responsabilidade précontratual. Fá-lo de uma forma interessante: não se limita a uma cláusula geral, estabelecendo antes várias possibilidades de constituição da relação pré-contratual, de âmbito razoavelmente aberto, deixando, assim, à jurisprudência e à doutrina, a possibilidade de continuar a desenvolver este instituto. II.
A INFLUÊNCIA DA CONSAGRAÇÃO DO RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL PORTUGUÊS: ALGUMAS QUESTÕES
INSTITUTO DA NO DIREITO
1. A CONSAGRAÇÃO DO INSTITUTO NO BGB Uma vez que, nos termos da fundamentação da proposta de lei, se deixa bem claro que não se pretendeu alterar o regime da culpa in contrahendo desenvolvido pela jurisprudência e pela doutrina alemãs, poderíamos pensar que o seu impacto é limitado pela falta de novidade. Não nos parece que assim seja. Na verdade, como bem diz a referida fundamentação, torna-se mais fácil entender a consagração e o funcionamento deste instituto, bem como o seu papel central no direito alemão. A comparação entre o sistema alemão e as restantes ordens jurídicas passa a ser menos árdua. Não é pretensão deste trabalho fazer uma análise exaustiva do regime alemão em comparação com o português. Limitar-nosemos a expor apenas algumas questões que nos mereceram destaque, tentando apreciar a considerável ajuda que as soluções germânicas podem revelar no tratamento de alguns problemas que também se levantam na nossa ordem jurídica. 2. O ART.º 227 DO CÓDIGO CIVIL DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS 2.1.
E O SEU
CONGÉNERE ALEMÃO:
A FORMA UTILIZADA PARA CONSAGRAR CULPA IN CONTRAHENDO
O
INSTITUTO
DA
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
Em primeiro lugar, convém apontar a diferente forma como o instituto aparece previsto nos dois ordenamentos jurídicos em causa. No nosso art. 227º, encontramos uma cláusula geral que recorre ao conceito de boa fé para sujeitar “[q]uem negoceia com outrem para conclusão de um contrato” a uma série de deveres, deveres esses que a lei não especifica. A doutrina portuguesa, contudo, considera que “negociar de boa fé” implica respeitar deveres de informação, de lealdade, de sigilo75. Obviamente, não se considera que os deveres emanados do princípio da boa fé se esgotem nos referidos. O caso concreto irá ditar, em face das circunstâncias, se o comportamento das partes foi digno e honesto, ou seja, se o princípio da boa fé foi respeitado. Portanto, a primeira conclusão a retirar é a da abertura da norma portuguesa, fruto da consagração de uma cláusula geral como a da boa fé. A fundamentação da proposta de lei que consagra a culpa in contrahendo no BGB refere, igualmente, a necessidade de manter a flexibilidade que sempre caracterizou o instituto no direito alemão. Tal como dizemos supra, renunciou à diferenciação de um programa de deveres e à concretização de grupos de casos. Daí que o § 311º, n.º 2 e n.º 3, nada refiram a este respeito. Contudo, nos termos do direito alemão, a responsabilidade pré-contratual surge devido à necessidade de tratar da mesma forma situações que ainda não são do foro contratual mas que se encontram na fase prévia do contrato, consubstanciando já uma relação obrigacional, embora legal. Assim, o § 311º, n.º 2 e n.º 3, remete para os deveres consagrados no § 241, n.º 2. Este parágrafo, relativo à responsabilidade contratual, tem como epígrafe “[d]everes provenientes das relações obrigacionais” e estabelece no n.º 2 que “[a] relação obrigacional pode, segundo o seu conteúdo, obrigar cada parte a respeitar os direitos, bens jurídicos e interesses da outra (parte)”. 75 V. por todos, Carlos FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos, I, Conceito. Fontes. Formação, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 175 e sgs. Os deveres referidos costumam ser mencionados conforme três casos-padrão de violação da boa fé contratual: casos em que o contrato não chega a ser concluído por ruptura das negociações (violação do dever de lealdade); casos em que o contrato é inválido ou ineficaz (seja por violação de deveres de lealdade ou de informação; casos em que o contrato é válido e eficaz (mas traz danos à contraparte por violação de deveres de informação).
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É difícil dizer, neste aspecto, qual dos dois regimes é mais abrangente. Na verdade, à semelhança do direito português, tal como já vimos supra, considera-se que o § 241, n.º 2, consagra deveres de consideração, assistência e lealdade, cujo alcance deve ser esclarecido em função do caso concreto. Podemos, contudo, dizer que o sistema alemão, apesar da enorme amplitude dos deveres “obrigacionais” que consagra através da remissão para o § 241, n.º 2, consegue alguma determinação do seu conteúdo. Desde logo, a menção aos “direitos, bens jurídicos e interesses” da outra parte deixa claro que a tutela pré-contratual alemã engloba no seu âmbito de protecção os direitos absolutos e os bens jurídicos normalmente adstritos à tutela delitual, como é o caso da propriedade, corpo, vida e saúde. Era já, aliás, esta a posição da doutrina e da jurisprudência alemãs antes da consagração legal do instituto e que se pretende manter. Para que não haja dúvidas, é o próprio § 311, n.º 2, ponto 2., que refere a possibilidade de uma das partes actuar sobre os “direitos, bens jurídicos e interesses” da outra; é igualmente a própria fundamentação do projecto a referir que estes serão aqueles que já se encontram protegidos em sede extracontratual. Não é de estranhar: como sabemos, o direito alemão desenvolveu estes mecanismos de protecção précontratual para colmatar falhas do seu próprio direito delitual. No célebre caso do linóleo, o tribunal aplicou o regime da responsabilidade contratual (que é mais gravoso para o lesante), considerando estar perante um caso de culpa in contrahendo. De outra forma, pela aplicação do regime de responsabilidade extracontratual, o lesado ficaria desprotegido porque o dono da loja ter-se-ia exonerado de responsabilidade, provando a sua diligência na escolha do empregado que provocara o dano. É discutível que o mesmo possa ser dito relativamente ao direito português. É certo que o nosso art. 227º, ao recorrer à fórmula abrangente que o caracteriza, não afasta esta solução. Mas também é certo que a tutela conferida pela consagração de deveres de protecção no âmbito pré-contratual já está assegurada pelo nosso sistema delitual, que não sofre das restrições do sistema
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alemão76. Este será o sistema a utilizar em princípio. Contudo, em caso de se detectar uma falha, não se vê porque não se possa lançar mão deste recurso, à semelhança do que faz o direito alemão. Na verdade, imaginemos a seguinte situação: A dirige-se à loja de B para adquirir um televisor. O empregado de B, C, atendeo. Após a conclusão do contrato, quando C se prepara para entregar a A o televisor, este cai em cima de um pé de A, fracturando-o, em virtude de se encontrar mal acomodado no balcão. Aqui, temos a violação de um direito absoluto de A – direito à integridade física – e, igualmente, a violação de um dever lateral de cuidado com a pessoa da outra parte, ou seja, encontrase violado um dever de protecção. O empregado devia ter mantido o televisor acomodado de forma adequada a evitar qualquer tipo de danos a A. Podemos discorrer sobre a existência de concurso de responsabilidades (contratual e extracontratual) e sobre qual o regime a aplicar e de que forma. Mas não é isso que nos interessa de momento mas sim a seguinte questão: a situação é substancialmente diferente caso o contrato ainda não estivesse concluído mas A e C já se encontrassem em negociações e, portanto, já vinculados a uma relação (legal) pré-contratual? Não nos parece… Em segundo lugar, notamos outra diferença relativamente à técnica utilizada pela lei alemã no § 311. Este artigo determina, no seu n.º 2, várias formas através das quais pode surgir uma “relação obrigacional com deveres nos termos do § 242, n.º 2”, para além do tradicional contrato, ou seja, estabelece as várias formas de estabelecimento da relação pré-contratual. Já analisámos os três pontos do n.º 2 do § 311: 1. O início de negociações contratuais; 2. Os casos de preparação de um contrato; 3. Contactos semelhantes a negociais. O ponto 1. não traz especiais questões. É a situação mais comum e reconhecida de responsabilidade pré-contratual. Cabe 76 FERREIRA DE ALMEIDA é de opinião de que no direito português não se justifica a autonomia destes deveres de protecção e segurança no âmbito da responsabilidade précontratual, por se tratar de situações que se enquadram melhor “ em soluções de direito estrito, por via de subsunção na ampla cláusula geral de responsabilidade civil extracontratual”. Carlos FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos, cit., p. 176.
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inteiramente na letra do nosso art. 227º. Já os pontos 2. e 3. são mais controversos. A nossa lei não prevê expressamente a possibilidade de alguém vir a ser responsabilizado pré-contratualmente fora da hipótese legal prevista no art. 227º: a das negociações77. A letra da lei é clara: “Quem negoceia com outrem”… Ora, nos casos de preparação de um contrato, como já vimos, não existem ainda negociações e há autores que incluem neste grupo de situações até mesmo os casos em que nem sequer há a intenção de vir a celebrar um contrato (o entrar simplesmente numa loja para se informar dos preços, por exemplo). Mais uma vez esta solução germânica explica-se pela conformação do regime da responsabilidade extracontratual. Como vimos, o § 831 do BGB, relativamente à responsabilidade do auxiliar, permite uma exoneração que não é prevista pelo nosso art. 500º. À partida, o nosso sistema não necessita da previsão de deveres de protecção. No entanto, como dissemos já, em caso de ser descoberta uma lacuna na regulamentação portuguesa, poderia justificar-se a defesa da aplicação ao caso concreto de deveres de protecção. Contudo, esta solução parece contrariar a letra do art. 227º. Considerar a existência de deveres de protecção já na fase précontratual é defensável, desde que mantenhamos bem definidos os limites a partir dos quais estamos realmente na fase précontratual. Isto é o mesmo que dizer que – nos termos da letra da lei – a fase pré-contratual implica que se tenham encetado já as negociações. Não bastará, como acontece no ordenamento alemão, ter-se entrado na área de influência (espacial ou não) de outra pessoa78. 77 Igualmente neste sentido, Nuno Manuel PINTO OLIVEIRA, Direito das Obrigações, Vol. I, Conceito, estrutura e função das relações obrigacionais; Elementos das relações obrigacionais; Direitos de crédito e direitos reais, Coimbra, Almedina, 2005, p. 88. O autor, ao comparar o âmbito de aplicação do § 311, n.º 2 do BGB com o do art. 227º do nosso Código Civil, conclui que “[o] n.º 1 do art. 227º do Código Civil português acolhe uma concepção […] mais restrita –, circunscrevendo a relação jurídica pré-contratual aos casos de assunção de negociações para a conclusão de um contrato”. 78 Eventualmente, poderia ainda defender-se a aplicação do regime da culpa in contrahendo por analogia aos casos de preparação do contrato. Na verdade, pode defender-se que o art. 227º trata de apenas um dos casos em que se verifica uma “ligação especial” (a ligação especial por excelência, a seguir ao contrato, que é a relação jurídica das negociações),
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Esta parece ser a solução de iure constituto. Não quer dizer que, numa futura revisão da nossa lei, não se justifique alargar o âmbito de aplicação do instituto da responsabilidade précontratual das negociações para a fase anterior, a da preparação do contrato. Não porque a previsão de deveres de protecção relativamente a danos surgidos em direitos absolutos seja essencial no nosso ordenamento jurídico, visto o nosso regime da responsabilidade pré-contratual aparentemente ser suficiente. Mas porque há outras situações que podem merecer tutela jurídica: falamos de danos puramente patrimoniais. À luz do direito português, estes são indemnizáveis na fase pré-contratual mas não na fase da preparação do contrato, antes de existirem negociações propriamente ditas. Talvez já estejamos aqui a falar das situações denominadas “contactos negociais análogos”. Como mencionámos atrás, há autores alemães que fazem caber nesta categoria o nascimento de deveres de cuidado com fundamento na transmissão de informação, por existir aqui um contacto negocial (ainda que não existam propriamente negociações), em vez da utilização de artifícios como a construção de contratos de informação fictícios79. Em suma, a consagração na letra da lei alemã de três formas distintas de fazer surgir a relação pré-contratual não encontra correspondente na lei portuguesa. Apenas a primeira forma é admitida sem mais na nossa legislação. 2.2.
CULPA IN CONTRAHENDO E TERCEIROS
O n.º 3 do § 311 do BGB deixa claro que a responsabilidade pré-contratual pode surgir, igualmente, entre pessoas que não irão ser partes no contrato a celebrar. Tal como já mencionámos, a letra desta norma é suficientemente abrangente para incluir os casos de legitimidade activa e os casos de legitimidade passiva: o terceiro em causa pode ser o titular do direito de indemnização ou o obrigado a indemnizar.
sendo que os restantes casos – sendo igualmente casos de “ligações especiais” – deveriam ser igualmente incluídos no âmbito de aplicação da norma, através da sua aplicação analógica. No entanto, temos algumas dúvidas quanto a esta solução. Uma outra solução será a apontada por Carneiro da Frada ver resp. confiança?? 79 Karl LARENZ/ Manfred WOLF, Allgemeiner Teil, cit., p. 598, n. m. 15.
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O primeiro caso, segundo a fundamentação do projecto, cabe igualmente no ponto 3. do n.º 2 do § 311: estamos perante uma relação obrigacional sem deveres primários de prestação – o caso dos contratos com eficácia de protecção a favor de terceiros. Segundo a fundamentação do projecto, como vimos, os princípios destes contratos são de aplicar também na fase pré-contratual. Esta solução parece-nos meritória. Na verdade, apesar de a letra do art. 227º nada referir a este respeito, os interesses em causa não são substancialmente diferentes daqueles que encontramos quando o contrato já está concluído. Desde que exista já uma negociação em curso – desde que estejamos já na fase pré-contratual – não vemos porque não possa também na ordem jurídica portuguesa aliar-se a figura da responsabilidade pré-contratual à figura dos contratos com eficácia de protecção para terceiros80, à semelhança do que acontece no direito alemão. Poderíamos colocar, no entanto, uma ressalva: se o caso em análise encontrasse solução no regime geral da responsabilidade extracontratual, não seria necessário utilizar uma solução tão complexa como a mencionada. Contudo, cremos que, se for esse o caso, então estaremos perante um concurso de normas: tanto estarão preenchidos os pressupostos de aplicação da responsabilidade extracontratual como os da responsabilidade 80 A doutrina alemã dos contratos com eficácia de protecção para terceiros é aceite sem dificuldades pela doutrina portuguesa. Desde logo pelo acerto das suas soluções e pela sua razoabilidade: estando um terceiro na proximidade da prestação contratual em causa, como acontece em relação à esposa do inquilino num contrato de arrendamento, faz sentido aplicarlhe o regime da responsabilidade contratual porque se entende que o senhorio, por força do contrato de arrendamento, se obrigou não só aos deveres de prestar a coisa arrendada como a deveres laterais de cuidado, não apenas em relação ao inquilino, mas também em relação aos familiares que com ele moram. Não são quaisquer terceiros que se vêem incluídos no âmbito de protecção de um contrato: apenas aqueles que se encontram de tal forma próximos da prestação que é reconhecível para o devedor que o credor, de acordo com o princípio da boa fé, conta com a inclusão destes terceiros no âmbito dos deveres de protecção. Esta doutrina, portanto, ganhou força com o reconhecimento das relações obrigacionais como relações complexas, “com projecção para o exterior, e não apenas como vínculo singular entre devedor e credor. O surgimento de deveres secundários de prestação (deveres de indemnização) entre o devedor e certos e determinados terceiros, não participantes no contrato, é uma extensão para terceiros da relação contratual, extensão limitada apenas aos chamados «deveres de comportamento», «deveres de protecção» ou deveres laterais»», visto que os referidos terceiros não estão legitimados para reclamar do devedor a prestação”. Carlos Alberto da MOTA PINTO, Cessão da posição contratual, reimp., Coimbra, Almedina, 1982, p. 419 e segs., em especial, p. 425. MENEZES CORDEIRO aponta, também, como fundamento da eficácia protectora de terceiros, a boa fé. António Manuel da Rocha e MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1984, p. 624.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
pré-contratual (aliada aos princípios dos contratos com eficácia de protecção para terceiros). O lesado deverá poder lançar mão dos dois regimes: esta solução é preferível à de se excluir um deles. No segundo caso, estamos perante um terceiro que não irá tornar-se parte no contrato mas que, ainda assim, pode vir a ser responsabilizado pré-contratualmente. Como já vimos, o legislador alemão pretendeu deixar clara a responsabilidade própria do representante ou auxiliar nas negociações e, ainda, deixar espaço para um eventual desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial nesta área. No âmbito do direito português também se reconhece desde longa data a possibilidade de fazer responder précontratualmente o representante, apesar de o art. 227º não o dizer de forma explícita. Contudo, é inegável que o representante é aquele que negoceia em nome de outrem, pelo que cabe perfeitamente na expressão “[q]uem negoceia com outrem para conclusão de um contrato”. A lei não especifica se o faz em nome próprio ou não. A dúvida está em acolher ou não a solução germânica no que toca a fazer responder outros terceiros. O § 311, n.º 3, 2ª parte, refere o caso especial daqueles que reivindicam para si uma especial medida de confiança e, através disso, influenciam consideravelmente as negociações ou a conclusão do contrato81. Se se trata de peritos ou outras “pessoas de informações” é legítimo confiar na objectividade e neutralidade dos seus pareceres ou opiniões. Se estes forem errados e o terceiro que prestou a informação tiver culpa na má formação do parecer que transmitiu, a lei alemã admite a utilização do instituto da culpa in contrahendo para fazer responder este terceiro, desde que este tenha reivindicado confiança em especial medida. É uma forma encontrada para permitir a responsabilização deste terceiro quando não existe um contrato de informações ou de aconselhamento ou quando não seja possível provar a sua existência.
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A fundamentação do projecto faz caber nesta categoria os chamados “Sachwalter”.
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Não nos parece que seja possível enquadrar esta situação sem mais no regime português da responsabilidade précontratual. A letra do art. 227º, mais uma vez, é bastante clara: “[q]uem negoceia com outrem”… Só aqueles que são partes nas negociações podem vir a ser responsabilizados nos termos do art. 227º. Um perito não toma parte nas negociações. É certo que as pode influenciar decisivamente e deve poder ser responsabilizado por isso mas o enquadramento legal será outro. Sinde Monteiro apresenta, relativamente ao nosso ordenamento jurídico, ao estudar o caso do art. 485º do Código Civil, como forma de responsabilizar, perante um terceiro, o perito que presta informações, os contratos com eficácia de protecção para terceiros. O dever de indemnizar o terceiro por parte do perito provém do facto de este ter violado os seus deveres laterais de cuidado e de protecção que se estendem a este terceiro, por ser uma pessoa que será influenciada pela sua informação82. Pensamos que será a melhor solução face ao direito constituído português. O que não implica que de iure constituendo não se venha a consagrar uma solução próxima da alemã para colmatar eventuais falhas, como as mencionadas no projecto (a dificuldade de prova ou a inexistência de um contrato de informações ou aconselhamento entre o perito e uma das partes, de cuja eficácia de protecção para terceiros beneficiaria a outra parte nas negociações…). O que é certo é que, à luz do direito vigente, parece excessivo defender-se a responsabilidade pré-contratual de um terceiro, sem outra fundamentação legal83. 82 SINDE MONTEIRO, «Responsabilidade por informações face a terceiros», separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXXIII, Coimbra, 1997, p. 35 e segs., em especial, p. 45 e segs. 83 No entanto, CARNEIRO DA FRADA aponta esta possibilidade. Considera que “a culpa prénegocial realiza e concretiza princípios fundamentais da ordem jurídica” sobre os quais, através do princípio da boa fé, “se moldam depois os concretos deveres impostos aos sujeitos”. Deste modo, apesar da estreiteza da letra da lei, o autor diz que não se entende que o legislador tenha pretendido limitar o âmbito de aplicação desses princípios. Embora não possa incluir-se a responsabilidade de terceiros na letra da lei por via de uma interpretação extensiva, será defensável um desenvolvimento do Direito para além da letra do art. 227º, coerentemente com as exigências destes princípios. O autor aponta duas vias: caso se considere a confiança como fundamento da culpa in contrahendo, justifica-se uma responsabilidade pré-contratual própria do terceiro porque, nas palavras do autor, “se o terceiro acabou também por suscitar confiança em si mesmo, nenhuma razão haverá para o considerar mero participante em ilícito alheio e não responsável pessoalmente pela confiança
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS 3. O CASO CONTRATO
DA
ADMISSIBILIDADE
DA
DESVINCULAÇÃO
DO
Há um caso específico que nos mereceu destaque. Trata-se da questão da admissibilidade da desvinculação do contrato. Tal como no direito português, a ordem jurídica alemã reconhece a culpa in contrahendo não só em caso de ruptura ilegítima de negociações, como nos casos de celebração de contratos, sejam estes válidos ou inválidos. Aqui, vamos debruçarnos sobre o caso da celebração de um contrato válido mas que é desvantajoso para uma das partes, em virtude da violação de deveres de pré-contratuais de informação pela outra parte. O esquema de funcionamento da responsabilidade précontratual funciona, como já vimos, da seguinte forma: caso surja uma relação obrigacional legal nos termos do § 311, n.º 2, e uma das partes viole os “direitos, bens jurídicos ou interesses da outra” consagrados no § 241, n.º 2, será obrigada a indemnizá-la segundo os §§ 280 e seguintes, ou seja, nos termos da responsabilidade contratual84. No caso da celebração de um contrato válido mas desvantajoso, o dano a indemnizar será, na realidade, a vinculação a um contrato não desejado, um contrato que não se teria concluído caso os deveres de informação tivessem sido respeitados85. É a própria fundamentação do projecto que refere, como vimos atrás, que o § 311º, n.º 2, ponto 2., ao consagrar como dignos de tutela os “interesses” da outra parte, pretende incluir não só interesses patrimoniais como outros interesses, dos quais que convocou para ele próprio”. Será assim no caso de terceiros que, em razão da sua qualificação técnica ou profissional, tenham a possibilidade de influenciar (muitas vezes decisivamente) as negociações. Nessa medida, se actuam de forma livre e independente, devem ser considerados “sujeitos autónomos da relação de negociações”. Caso se considere outro o fundamento da responsabilidade pré-contratual, ainda assim é defensável esta ideia através de argumentos mais “objectivos”: o poder destes terceiros deverá ser compensado, vinculando-os aos deveres pré-contratuais, de forma a salvaguardar as partes que se lhe encontram sujeitas. Manuel António de Castro Portugal CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 154 a 159. 84
Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 162.
Neste sentido, encontramos GRIGOLEIT. Este autor considera que a vinculação a um contrato não desejado devido a uma perturbação no processo formativo da vontade deve ser qualificada como um dano (ainda que não patrimonial) indemnizável. Hans-Cristoph GRIGOLEIT, «Neuere Tendenzen zur schadensrechtlichen Vertragsaufhebung», NJW, 1999, pp. 900 a 904. 85
A INFLUÊNCIA DA REVISÃO DO BGB
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se destaca o interesse da “liberdade de decisão”. Canaris retira a mesma conclusão, embora directamente do § 241, n.º 2. O autor entende, portanto, que deste modo a culpa in contrahendo é um meio de protecção adequado contra contratos indesejados86. Independentemente da fundamentação legal utilizada, não há dúvidas quanto à protecção concedida pela nova lei alemã relativamente ao interesse da liberdade de decisão. A parte que, devido à violação de deveres pré-contratuais de informação, se vê vinculada a um contrato que não desejaria concluir, viu o seu processo de formação da vontade adulterado e terá direito a ser indemnizada. Curioso é o facto de, já desde 1962, a jurisprudência87 e parte da doutrina – embora de forma não pacífica – defenderem a desvinculação do contrato com fundamento na culpa in contrahendo e no princípio da reconstituição natural do § 249 do BGB88. Agora parece não existir dúvidas: com a consagração dos §§ 241º, n.º 2, e 311, n.º 2, ficou bem clara a opção do legislador. Na verdade, é a própria fundamentação do projecto que o diz explicitamente: sob a aplicação do § 249, o lesado poderá pedir a desvinculação do contrato, como restauração natural89. 86
Claus-Wilhelm CANARIS, «Die Reform», cit., p. 519, 2ª col.
O primeiro caso decidido pelo Supremo Tribunal Federal Alemão (BGH) neste sentido encontra-se publicado em NJW, 1962, pp. 1196 a 1198. 87
88 No sentido de permitir a desvinculação do contrato validamente concluído mas sofrendo da violação de deveres de revelação, Dieter SCHWAB, Einführung in das Zivilrecht – Einschließlich BGB – Allgemeiner Teil, 15ª ed., Heidelberg, C.F. Müller, 2002, p. 443, n. m. 960. O autor cita várias decisões do BGH neste sentido: BGH, NJW 1990, p. 1669; 1991, p. 1673; 1992, p. 230; 1993, p. 1703; 2001, pp. 2163, 2165. Por outro lado, MEDICUS levanta sérias objecções a esta possibilidade: a relação com o regime de anulação por dolo; a delimitação perante a responsabilidade pelos vícios da coisa, especialmente na compra; a extensão do dever pré-contratual. Dieter MEDICUS, Schuldrecht, cit., pp. 64 e 65, n. m. 109. Relativamente a este problema, v. Eva Sónia MOREIRA DA SILVA, Da responsabilidade précontratual por violação dos deveres de informação, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 87 a 89 e 230 a 236. 89 A fundamentação do projecto acrescenta que, sob a aplicação do § 249, como restauração natural, o lesado poderá exigir a desvinculação do contrato e que, quanto ao caso de saber se é possível uma modificação das obrigações contratuais contraídas, tal deverá ser deixado em aberto para futura concretização pela jurisprudência. Deutscher Bundestag, Gesetzentwurf, cit., p. 162 e 163. Neste sentido, v. também Dieter MEDICUS, Allgemeiner Teil, cit., p. 178, n. m. 447. O autor acrescenta que a jurisprudência desenvolveu um direito à escolha da redução do preço em vez da desvinculação do contrato.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
Pensamos que a opção da nova lei alemã é realmente importante e pode ser vista como modelo a seguir. Na verdade, considerando a forma como o instituto da responsabilidade précontratual se encontra consagrado no nosso código civil, o direito português pode também beneficiar deste desenvolvimento jurídico. No entanto, esta solução não é a única. É preciso considerar o seguinte: os casos em questão serão casos em que a violação de deveres pré-contratuais de informação não terá conduzido à celebração de um contrato anulável por dolo ou erro, pelo que o contrato será válido. De outra forma, a possibilidade de desvinculação por via indemnizatória seria desnecessária. Serão, em princípio, casos de indução negligente em erro. Contudo, se à primeira vista estes são casos que escapam ao regime do dolo e do erro, uma segunda aproximação ao problema pode levantar dúvidas pertinentes. A doutrina estrangeira apresenta como soluções90 o alargamento do regime do erro ou do dolo – através de argumentos que aqui não cabe desenvolver – de forma a tornar estes contratos inválidos. Este tipo de soluções pode mostrar-se razoável e dispensar a solução da desvinculação por via indemnizatória. Contudo, de momento, vamos apenas apreciar a possibilidade da utilização, no nosso sistema jurídico, da solução consagrada pela lei alemã de modernização do direito das obrigações. Em primeiro lugar, está de acordo com um dos princípios ordenadores do nosso direito civil: o princípio da autonomia privada, mais propriamente, com um dos seus corolários, o princípio da liberdade contratual. Ninguém deve ser obrigado a manter-se vinculado a um contrato que não desejou, ou melhor, que não desejaria caso o processo formativo da sua vontade tivesse ocorrido sem a violação de deveres pré-contratuais de informação. Por outro lado, o nosso direito vigente possui uma norma em muito semelhante ao § 249 do BGB e que é o art. 562º do Código Civil. Ambas as normas determinam que o lesante deve repor a situação que existiria caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Esta reconstituição natural, no 90 Para uma visão muito breve das diferentes possibilidades de resolução da questão da indução negligente em erro, veja-se Nuno Manuel PINTO OLIVEIRA, cit., pp. 93 a 95.
A INFLUÊNCIA DA REVISÃO DO BGB
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caso em discussão, implica a desvinculação do contrato: caso não se tivesse verificado a violação de deveres pré-contratuais de informação, o lesado não teria celebrado o contrato. Logo, a única forma91 de repor a situação que existiria sem a violação destes deveres será permitir que o contrato desapareça da realidade jurídica. No BGB, o fundamento jurídico para esta desvinculação encontra-se no regime da culpa in contrahendo, mais propriamente na previsão de que há “interesses” como o da liberdade de decisão que devem ser tutelados. O nosso art. 227º não tutela expressamente estes interesses. No entanto, esta é a vantagem de possuirmos uma cláusula geral como o princípio da boa fé: a densificação deste princípio pode sempre evoluir com o desenvolvimento exigido pela ordem jurídica… Cremos que é possível uma interpretação do art. 227º consentânea com a protecção do interesse da liberdade de decisão, da mesma forma como a doutrina e a jurisprudência portuguesas reconhecem há muito a existência de deveres pré-contratuais de informação, sem que estes se encontrem expressamente previstos na letra da lei. III. CONCLUSÃO A reforma do BGB, no que toca ao instituto da responsabilidade pré-contratual, veio tornar claro um regime que se desenvolveu ao longo do tempo através da jurisprudência e da doutrina e que, por isso mesmo, se manteve em constante evolução. Desta forma, é agora mais simples entender o regime alemão da culpa in contrahendo. O sistema alemão estabelece várias formas através das quais pode surgir uma relação obrigacional legal sem deveres primários de prestação: através das negociações, da preparação de um contrato, de contactos semelhantes a negociais. Chegámos à conclusão que, de iure constituto, não pode defender-se o mesmo para o direito português: a letra da lei não o permite. Para além disso, em princípio, o sistema português é mais previdente no que toca à protecção delitual, pelo que não deixa a descoberto direitos 91 Será apenas a única forma caso não se tenha lançado mão das soluções atrás mencionadas, no sentido de tornar o contrato inválido. Nestas situações, a forma de repor a situação será, obviamente, a anulação do contrato.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
absolutos e bens jurídicos que venham depois necessitar de uma protecção adicional por via pré-contratual. Relativamente à possibilidade que a lei alemã consagra de fazer responder terceiros pré-contratualmente, o sistema português da responsabilidade pré-contratual só a reconhece no caso específico da responsabilidade do representante, que negoceia em nome de outrem e, por isso, toma parte nas negociações, apesar de não vir a tornar-se parte do contrato negociado. Quanto a outros terceiros, embora tenhamos de reconhecer a utilidade da solução alemã, não podemos defender a sua aplicação sem a ajuda de outra fundamentação legal, como a aplicação do regime dos contratos com eficácia de protecção para terceiros. De iure constituendo, esta pode vir a ser uma área a desenvolver no nosso direito. Finalmente, quanto à questão da admissibilidade da desvinculação de um contrato válido, celebrado apenas graças à violação de deveres pré-contratuais de informação, parece-nos que a solução alemã também é de aceitar. O nosso art. 562º permite considerar que a desvinculação do contrato seja uma das formas de restaurar a situação que existiria caso não se verificasse a violação; o dano será a vinculação a um contrato indesejado, sendo que o interesse na formação livre da vontade contratual é um interesse que a nossa ordem jurídica tutela, não só através do regime dos vícios da vontade, como através da consagração do princípio da autonomia privada e da liberdade contratual. Esta visão da nossa ordem jurídica como um todo permite-nos justificar a interpretação do conceito de boa fé do art. 227º de forma a abranger a protecção deste interesse jurídico. Não há motivo para negar a possibilidade de uma das partes pedir, como restauração natural, a desvinculação de um contrato válido que celebrou em virtude da violação de deveres pré-contratuais de informação.
LIABILITY FOR CONTRACTUAL NEGOTIATIONS IN ENGLISH LAW: LOOKING FOR THE LITMUS TEST Stathis Banakas
This paper aims at taking a critical look at the current state of English law on liability for contractual negotiations1, illustrating the extent to which English law is substantially different than other European legal systems in this respect, and also the extent to which this contrasts with current projects or existing texts of European or International harmonization of Contract law, namely, the EU Commission’s Common Frame of Reference (CFR)2, the Principles of European Contract Law
1 From the recent literature see: Alan Schwartz & Robert E. Scott, ‘Precontractual Liability and Preliminary Agreements’, 120 HARVARD LAW REVIEW 661 (2007); Shy Jackson , ‘Precontractual Negotiations: Recent Trends in the Interpretation of Contracts’, 23 CONSTRUCTION LAW JOURNAL 268-275 (2007); Daniel Markovits , ‘Contract and Collaboration’, 113 YALE L.J. 1417 (2004); Lucian Arye Bebchuk and Omri Ben-Shahar, ‘Precontractual Reliance’, JOURNAL OF LEGAL STUDIES, vol. XXX (2001), 423; Ofer Grosskopf and Barak Medina, ‘Regulating Contract Formation: Precontractual Reliance, Sunk Costs, and Market Structure’, (2006), THE BERKELEY ELECTRONIC PRESS (BEPRESS), available online at http://law.bepress.com/expresso/eps/949 (last viewed 13 May 2008); Edwin Peel, ‘Precontractual liability in Property Law: A Contradiction in Terms?’, available online at http://ssrn.com/abstract=1011685 (last viewed 13 May 2008); Norma J. Hird, ‘Utmost Good Faith: Forward to the Past’, (2005) JOURNAL OF BUSINESS LAW 257; Paula Giliker, PRECONTRACTUAL LIABILITY IN ENGLISH AND FRENCH LAW, KLUWER 2002 2 A full ‘academic’ draft of which has just been published and is available online: PRINCIPLES, DEFINITIONS AND MODEL RULES OF EUROPEAN PRIVATE LAW, DRAFT COMMON FRAME OF REFERENCE (DCFR), INERIM OUTLINE EDITION available online at http://webh01.ua.ac.be/storme/DCFRInterim.pdf (last visited 25.5.2008). See generally on European Private law on pre-contractual liability Geraint Howells, Andre Janssen and Reiner Schulze (eds), INFORMATION RIGHTS AND OBLIGATIONS: A CHALLENGE FOR PARTY AUTONOMY AND TRANSACTIONAL FAIRNESS, LONDON 2005; on the UN Convention on the Law of International Sales of Goods (CISG) see Diane Madeline Goderre, ‘International
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(PECL), the UNIDROIT Principles of Contract law and the UN Convention on the Law of International Sales of Goods (CISG). A very important basic distinction must be made between the case where no Contract results from contractual negotiations and the case where the contractual negotiations result in the formation of a prima facie valid agreement between the parties, or an agreement that is avoided. This paper will concentrate on the former case, which is more interesting as English law is this case still not settled, after a very brief look at the law applicable in the two latter cases. I. WHEN NEGOTIATIONS RESULT IN A CONTRACT BETWEEN THE
PARTIES When negotiations result in the formation of a valid contract, English courts have developed a series of techniques intended to deal with the parties’ behaviour during the negotiating stage as behaviour bearing on the formation and content of the Contract. What is said or done, therefore, by the now contractual parties at the stage of negotiations, can have an impact on the construction and the validity of the Contract; i.e. defining the contractual terms, or whether mistake or misrepresentation has affected the parties’ expression of their contractual intentions or have caused the parties wrongful loss, whether disclosure duties arising out of the special nature of the contract have been breached, or consent to enter into a Contract is vitiated by precontractual behaviour that is dishonest, threatening or implies undue influence in a fiduciary relationship. Thus, and against the background of the more conservative approach of the House of Lords in Investors Compensation Scheme Ltd v West Bromwich Building Society (No.1) summed up by Lord Hoffman as "the law excludes from the admissible background the previous negotiations of the parties and their declarations of subjective intent” 3,
Negotiations Gone Sour: Precontractual Liability under the United Nations Sales Convention’, in 66 U. CINCINNATI LAW REVIEW 258 (1997) 3 [1998] 1 W.L.R. 896 at p.913.
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it was recently confirmed in the Court of Appeal that use of materials in pre-contractual negotiations are allowed in the construction of the contractual terms, if not excluded by the parties4. Any mis-statements made in the course of negotiations can result in liability for any loss after the contract is formed, or, if they have induced the contract they can, under certain conditions, give to the other party the right to rescind a particular term or the whole agreement5. If the contract is one of utmost faith6 (uberrimae fidei), then disclosure duties exist during the negotiation stage which, if breached, may give the other party the right to ask for the contract to be avoided7. Additionally, it should be noted that the UK has duly implemented the entire consumer law acquis of the EU that does, of course, introduce a special regime of fair dealing for consumer Contracts, and which I have recently discussed elsewhere8. The parties’ conduct during negotiations is also taken into account in apportioning liability for a Contract that is void or voidable. Thus, there is statutory liability under the Misrepresentation Act 1967 for intentional, negligent and even innocent misstatements. The party at fault may be faced with a demand for a rescission of the Contract and a claim for damages for any losses caused by such statements. Additionally, there can be liability in Tort for Negligence in common law. Such liability may arise especially by virtue of the reasonable reliance of the 4 In ProForce Recruit Ltd v Rugby Group Ltd [2006] EWCA Civ 69 (CA); see also Chartbrook Ltd v Persimmon Homes Ltd [2007] EWHC 409 (Ch); see Shy Jackson., ‘PreContractual negotiations: Recent Trends in the Interpretation of Contracts’, CONST. L.J. 2007, 23(4), 268-275 who concludes, however, that ‘..the extent to which pre-contractual negotiations can be used to interpret contracts remains unclear, especially in relation to undefined terms. Questions of interpretation come before the courts regularly and it is to be hoped that further guidance will be given on this point’. 5
Misrepresentation Act 1967
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E.g. Insurance contracts, marine insurance, motor insurance and reinsurance.
See Smith v Hughes (1871) LR QB 597; MARINE INSURANCE ACT 1906 s.17, s.18; Drake Insurance Plc (In Provisional Liquidation) v Provident Insurance Plc [2003] EWCA Civ 1834; [2004] Q.B. 601 (CA (Civ Div); Brotherton v Aseguradora Colseguros SA (No.2) [2003] EWCA Civ 705; [2003] 2 All E.R. (Comm) 298 (CA (Civ Div)); WISE Underwriting Agency Ltd v Grupo Nacional Provincial SA [2004] EWCA Civ 962; [2004] 2 All E.R. (Comm) 613 (CA (Civ Div)); see also Norma J. Hird, ‘Utmost Good Faith: Forward to the Past’, JOURNAL OF BUSINESS LAW 2005, 257-264 7
8 Stathis Banakas, ‘Harmonization of European Contract Law and General Principles of Contracts: A Common lawyer’s look into the future’, in Emanuela Navarretta (ed), IL DIRITTO EUROPEO DEI CONTRATTI, 2008, 539-559 (forthcoming)
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
parties on each other during negotiations and of any evidence of an assumption of responsibility for statements made during negotiations, if a contract has resulted9. If the contract is avoided, any benefits conferred during the negotiations can be recovered under principles of the Law of Restitution10. II. WHEN NEGOTIATIONS BREAK UP WITHOUT AN AGREEMENT
A. NO SPECIAL RULE OF PRE-CONTRACTUAL LIABILITY WHEN CONTRACT RESULTS
NO
Unlike in German or Italian law, and like in French law, no special rule of pre-contractual liability (culpa in contrahendo) exists in English law when no Contract results. It should also be pointed out from the outset that, unlike in all of these other major European Legal systems, contractual liability in English law is narrowed down by the need for a contract to be founded on an exchange of benefits/detriments in order to be binding (the doctrine of consideration), unless it is an agreement made under seal. This makes it harder for any acts or statements in the precontractual stage to have any binding effect in law, if no contract is finally made as a result; only equitable remedies or Tort liability remain as a possibility in such a case. B. IS THERE A DUTY TO NEGOTIATE IN GOOD FAITH IN ENGLISH LAW11? 9 More in my article ‘Liability for Incorrect Financial Information: Theory and Practice in a General Clause System and in a Protected Interests System’, in 7 EUROPEAN REVIEW OF PRIVATE LAW 261-286, (1999); see also ‘Tender is the Night: Economic Loss-the Issues’, in Banakas (ed), CIVIL LIABILITY FOR PURE ECONOMIC LOSS, Kluwer Law International 1996, 1-26. 10 After Lipkin Gorman v Karpnale Ltd [1991] 2 AC 548, (affirmed in subsequent decisions: see, e.g. Woolwich Equitable Building Society v IRC [1992] 3 All ER 737; Westdeutsche Landesbank
Girozentrale v Islington London Borough Council [1996] AC 669; Kleinwort Benson Ltd v Glasgow City Council [1998] 1 AC 153), where the House of Lords acknowledged for the first time the existence of an autonomous cause of action in unjust enrichment, the Law of Restitution has become the new panacea in cases of disputed entitlement. See Graham Virgo, THE PRINCIPLES OF THE LAW OF RESTITUTION, Oxford UP, 2d ed. 2006. 11 From a vast literature on Good Faith in English Contract law see: Stephanos Mouzas & Michael Furmston, ‘From Contract to Umbrella Agreement’, CAMBRIDGE LAW JOURNAL, 67(1), 2008, pp. 37–50; William Tetley, ‘Good Faith in Contract Particularly in the Contracts of Arbitration and Chartering’, (2004) 35 JMLC 561-616; J. Beatson and D. Friedmann, (eds.) GOOD FAITH AND FAULT IN CONTRACT LAW (Oxford 2002); H O Hunter, "The Duty of Good Faith and Security of Performance" (1993) JNL OF CONTRACT LAW 19; C J Goetz and R E Scott,
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Good faith in Consumer Contracts is as much part of English law today, as it is of EU Consumer law; the Unfair Contract Terms Directive, and all the rest of the acquis communautaire in Consumer Protection law, has been duly integrated into national UK law. But the issue of the place of good faith in English law remains controversial in the wider context of commercial and other business to business contracts, and this controversy has a direct impact on the law of pre-contractual negotiations, as any requirement of good faith in such negotiations to enter into a contract would not be possible if a similar requirement is not present in the performance of a valid contract12. Writing in 1766, the great reformer judge Lord Mansfield sought to import good faith into English law as "the governing principle . . . applicable to all contracts and dealings" 13.
But he failed to achieve this, as, indeed, several other of his inspired reforms of English Contract law. The classical theory of English Contract law was perceived as promoting pragmatism, predictability and certainty14.
"Principles of Relational Contracts" (1981) 67 VIRGINIA L R 1089; H K Lücke, "Good Faith and Contractual Performance" in P Finn (ed) ESSAYS ON CONTRACT (1987; The Hon Mr Justice T R H Cole, "Law - All in Good Faith" (1994) 10 BUILDING AND CONSTRUCTION LAW 18; V L Taylor, "Contracts with the Lot: Franchises, Good Faith and Contract Regulation" [1997] NZLAW REV 459; D Goddard, "Long-Term Contracts: A Law and Economics Perspective" [1997] NZLAW REV 423; I B Stewart, "Good Faith in Contractual Performance and in Negotiation" (1998) 72 ALJ 370; J Cheyne and P Taylor, "Commercial Good Faith" [2001] NZLJ 245, E Webb, "The scope of the implied duty of good faith - lessons from commercial and retail leasing cases" (2001) 9 AUSTRALIAN PROPERTY LAW Journal 1; M. Clarke, “The Common Law of Contract in 1993: Is There a General Doctrine of Good Faith?” (1993) 23 HONG KONG L.J. 318 12 [T]he “foundations of a general rule of good faith can be discerned in the common law dust”! As said by M. Clarke, “The Common Law of Contract in 1993: Is There a General Doctrine of Good Faith?” (1993) 23 HONG KONG L.J. 318 13
See Carter v Boehm (1766) 97 ER 1162 at p 1164
But see A F Mason, "Contract, Good Faith and Equitable Standards in Fair Dealing" (2000) 116 LQR 66 at p 70: "it later emerged, as is the case with many legal concepts rooted in formalism, that the element of certainty was illusory." 14
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Good faith is of course a paramount consideration in Civil law systems15, running through the entire Law of Obligations. More prominently so in German law, where, as is well known, the general clause of paragraph 9 of the AGB-Gesetz, declares nonoperative (“Unwirksam”) against the consumer stipulations contrary to Treu und Glauben, after a long period in which German courts already applied the principle of good faith to such stipulations, under paragraph 242 BGB. Treu und Glauben is in this context determined on objective criteria, with basic fundamental rights (Grundrechte-through Drittwirkung) and good market morals (Verkehrssitten) playing an important part. The difficulty for English judges lies in the fact that the approach of English law to basic rights, and the political ideology of the common law, is different than those of German law. The only equivalent to Grundrechte that English judges can turn to is the European Convention of Human Rights, incorporated into English domestic law as recently as the year 2000. Although English judges show respect, and are often inspired, by the Convention in developing the common law, there is no indication of anyone suggesting that the European Convention can be allowed a Drittwirkung in private law, and this is not the right time to open that particular Pandora’s Box. As far as good market morals are concerned, the common law always had an eye for good market practices and the like, but only to the extent that this helped to import realism and considerations of market efficiency and common sense into judicial reasoning. It is difficult to think of any concept similar to Verkehrssitten that an English judge could work out and use. Nevertheless, on the other side of the Atlantic, the US Uniform Commercial Code made the concept of good faith its “overriding and eminent principle”, by expressly using it in about fifty of its four hundred sections and implying it in many others. Section 1-203 of the UCC states that “every contract or duty within this Act imposes an obligation of good faith in its performance or
15 See R. Zimmermann and S. Whittaker, (eds.), GOOD FAITH IN EUROPEAN CONTRACT LAW (Cambridge 2000)
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enforcement”16. This obligation is jus cogens and cannot be contracted out. Section 1-201 UCC defines good faith as “honesty in fact in the conduct or the transaction concerned”. However, and for all intends and purposes, this has been understood by American lawyers as meaning very little more than procedural fairness, i.e. absence of fraud or other dishonesty, misrepresentation and the like. The American Restatement (Second) of Contracts17 has adopted a much broader concept of good faith; examples of bad faith given in paragraph. 205 of the Restatement include “evasion of the spirit of bargain, lack of diligence and slacking off, wilful rendering of imperfect performance, abuse of the power to specify terms, interference with the other party’s performance or failure to co-operate”. The debate is still going on as to whether it is appropriate to understand good faith as an objective standard and not simply the subjective state of mind of the contractual party. Some American scholars, known as “Communitarians”, are arguing in favour of judges applying objective “community standards” of fairness and decency to contractual bargains, whereas other object strongly to this as being dangerous for commercial life. An English judge looking for enlightenment would find the American scene both confused and confusing. In my view the crux of the matter for English law is: when is a contractual term that works in the market place unfair? For, if a term does not work, it will be wiped out from market practice; and the courts already know how to protect consumers from unworkable terms, by using well-known techniques of implying other terms, and construing a contract in a way as to give it “business efficacy”. To be sure, “Good Faith” as a principle to guide formation and execution of contracts visited the merry island of England in the Middle Ages under the influence of canon law. But by the 19th century, and at least as far the common law was concerned (as opposed to Equity), the commercial hyperactivity of English 16 THE AMERICAN LAW INSTITUTE AND THE NATIONAL CONFERENCE OF COMMISSIONERS ON UNIFORM STATE LAWS, UNIFORM COMMERCIAL CODE, available online at Cornell University http://www.law.cornell.edu/ucc/1/overview.html. (last visited 25.5.2008) 17
at
AMERICAN LAW INSTITUTE, RESTATEMENT OF THE LAW SECOND, CONTRACTS 2D, (adopted
Washington, D.C. on May 17, 1979), St. Paul, Minn.: AMERICAN LAW INSTITUTE PUBLISHERS, 1981.
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merchants and the prevailing liberal attitude in the jurisprudence of the courts narrowed down its significance for the law of Contract to a so-called rule of, clearly subjective, “good faith purchase”. This was a rule concerning purchase of property or commercial title and was nicely expressed in 1801, in the case of Lawson v Weston18 as the principle of “pure heart and empty head”. Any old influence of the Roman concept of objective bona fides through Canon law died a natural death in the 19th century. All this means that procedural, rather than substantive, fairness has been the main concern of English law. Unlike American courts, English courts will still, even today, not look into the “adequacy of the consideration”, and a gross imbalance in contractual obligations is something that the common law can still do nothing about. The ideological pedigree of English Contract law today is still that of post-Benthamite Utilitarianism, and even enlightened English scholars like Atiyah are impressed by Hayek’s neo-liberalism. If good faith requires an examination of the substantive, rather than procedural, fairness of the bargain, is this not simply part of a rather suspect general move away from the free market, in search for what Hayek calls the “mirage of social justice”19? To be fair to Atiyah, he himself rejects the extreme view that substantive fairness is impossible to achieve. Only, however, because he strongly believes that procedural fairness, on which English Contract Law has always been strong, leads to substantive fairness. A very influential, and I dare say, enlightened English judge, raised as a lawyer in the mixed legal tradition of South Africa exposed to Roman-Dutch law, Lord Steyn, has repeatedly commented on the issue of the place of good faith in English Contract law. In an important study he noted that the emphasis of English law on an objective approach to contractual issues tends 18
4 Espinasse, 56.
Any EU ambitions for ‘social justice’ have always been seen as abhorrent in British politics, likely to damage the market, the economy, and cause unemployment and so on. But even in the wider EU environment social justice does not appear to influence greatly the projected codification of Contract law principles in the forthcoming Common Frame of Reference (supra): see ‘Social Justice in European Contract Law: a Manifesto’, (2004) 10 EUROPEAN LAW JOURNAL 653-674, signed by a group of European academics opposed to the purely technical approach of the EU Commission’s Contract law initiatives that perpetuates old social and economic models of laissez-faire free market ideologies of the past. 19
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to make England somewhat infertile soil for the development of a generalized duty of good faith in the performance of contracts20. As succinctly put by the New Zealand Court of Appeal: ‘Classical contract law is based on certain implicit paradigm cases, the most common of which is the contract for an identified commodity between two strangers operating in a perfect spot market. Contractual principles provide a relatively rigid offer and acceptance format and are intolerant of such issues as indefiniteness, agreement to agree, and agreements to negotiate in good faith. Principles of classical contract law like the bargain theory of consideration, the objective theory of interpretation, and the rule that silence is not acceptance are particularly apt for contracts of this kind’21.
In a later paper, however, Lord Steyn pointed out that this formalistic approach was overtaken by the good sense of some of the judges who recognized that the function of the law of contract is to provide an effective and fair framework for contractual dealings based on achieving the reasonable expectation of the parties; and he added: “there is not a world of difference between the objective requirement of good faith and the reasonable expectations of parties”22.
The New Zealand Court of Appeal, often commended for its progressive take on the future of English law that sometimes leads the way also for English courts, recently agreed: ‘Despite its tradition, however, the law of England… could not forever ignore the fundamental weakness of the classical conception of contract law. .. The fundamental flaw of the classical conception of contract law was its empirical premise that most contracts are discrete. That premise is false. Most commercial contracts are in fact relational contracts. The great bulk of contracts either create or reflect relationships. It is discrete contracts that are unusual, not relational contracts’23
20 The Hon Mr Justice Steyn, "The Role of Good Faith and Fair Dealing in Contract Law: A Hair-Shirt Philosophy?" [1991] DENNING LJ 131 at p 132. 21
In Bobux Marketing Ltd v Raynor Marketing Ltd [2002] 1 NZLR 506, at [33]
J Steyn, "Contract Law: Fulfilling the Reasonable Expectations of Honest Men" (1997) 113 LQR 433 at p 434 23 Op.cit., supra, at [35]. 22
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
But the somewhat older dictum of another influential judge, Lord Wilberforce, still holds true for the reality of English contract law today: "English law, having committed itself to a rather technical and schematic doctrine of contract, in application takes a practical approach, often at the cost of forcing the facts to fit uneasily into the marked slots of offer, acceptance and consideration."24
It is, therefore, still the case that no general duties of good faith, disclosure, confidentiality25 or collaboration exist in English law today in the course of contractual negotiations, when no contract results; important exceptions do apply, however, as we shall now see in some more detail. C. THE SPECIAL CASE OF ‘LOCK-OUT’ AGREEMENTS A leading modern authority in this area is the decision of the House of Lords in the case of Walford v Miles, [1992] 2 AC 128. The defendants had agreed that, while they negotiated with the claimants for the sale of their business and property, they would not enter into negotiations with any third party. This agreement is known as a “lock-out” agreement. The defendants had, in fact, negotiated with a third party. After they had informed the claimants that they were breaking off negotiations with them, they then entered into an agreement to sell to that third party. The claimants sued on two grounds: breach of the ‘lock out’ agreement and misrepresentation. The House of Lords held that an agreement whereby one party agrees for consideration and for a specified period of time not to negotiate with anyone else in relation to a sale of property can be enforceable, but an agreement that is open-ended in terms of time is not enforceable. The House of Lords accepted that a "lock-out" agreement could be enforceable but held that the agreement in this case could not be binding as it amounted to an agreement to negotiate for an unspecified period. The defendant-vendor was not obliged to conclude the contract and would not know when he was 24
New Zealand Shipping Co Ltd v A M Satterthwaite & Co Ltd [1975] AC 154 at p 167
But there may be liability in Tort, for Breach of Confidence: see Douglas and another and others v Hello! Limited and others [2007] UKHL 21, in which it is made obvious that the tort is intended primarily to protect commercial confidence. 25
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entitled to withdraw from negotiations. Moreover, the House of Lords pointed out that the courts could not be expected to decide subjectively whether a proper reason for ending negotiations existed26. But in his more far-reaching judgment, one of the Law Lords, Lord Ackner, made a number of important general statements on the modern English law of pre-contractual liability. Referring, first, to the issue of a duty to negotiate, which in English law may arise out of a specific agreement between two parties to negotiate only with each other (the ‘lock-in’ agreement), he said: ‘..The reason why an agreement to negotiate, like an agreement to agree, is unenforceable is simply because it lacks the necessary certainty. The same does not apply to an agreement to use best endeavours27. This uncertainty is demonstrated in the instant case by the provision which it is said has to be implied in the agreement for the determination of the negotiations. How can a court be expected to decide whether, subjectively, a proper reason existed for the termination of negotiations? The answer suggested depends upon whether the negotiations have been determined ‘in good faith’.
Lord Ackner also said: “while negotiations are in existence either party is entitled to withdraw from these negotiations, at any time and for any reason.”28
This is a rather uncompromising statement of principle that makes agreements to negotiate practically useless, as any damages for breach for such an agreement could be only nominal, if damages are assessed with reference to the “expectation” or “performance” interest of the other party. Then Lord Ackner turned his attention to the notion of good faith itself: ‘..However, the concept of a duty to carry on negotiations in good faith is inherently repugnant to the adversarial position of the parties when involved in negotiations. Each party to the negotiations is entitled to pursue his (or her) own interest, so long as he avoids making 26 Courtney & Fairbairn Ltd v Tolaini Brothers (Hotels) Ltd [1975] 1 W.L.R. 297 CA (Civ Div) was cited with approval. 27 28
See infra. At p. 138
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS misrepresentations. To advance that interest he must be entitled, if he thinks it appropriate, to threaten to withdraw from further negotiations or to withdraw in fact in the hope that the opposite party may seek to reopen the negotiations by offering him improved terms. Mr Naughton29 of course, accepts that the agreement upon which he relies does not contain a duty to complete the negotiations. But that still leaves the vital question: how is a vendor ever to know that he is entitled to withdraw from further negotiations? How is the court to police such an ‘agreement’? A duty to negotiate in good faith is as unworkable in practice as it is inherently inconsistent with the position of a negotiating party. It is here that the uncertainty lies. In my judgment, while negotiations are in existence either party is entitled to withdraw from these negotiations, at any time and for any reason. There can be thus no obligation to continue to negotiate until there is a ‘proper reason’ to withdraw. Accordingly, a bare agreement to negotiate has no legal Content.’
Still, it was held in Walford v Miles that the claimant could be awarded damages for expenditure based on a reliance not on the performance of the agreement to negotiate (any such reliance could be easily shown by the defendants to have caused no more expenditure than the claimant would have occurred even if that agreement had been performed, resulting in no contract) but on a misrepresentation by the defendants of their state of mind when entering the lock-out agreement, i.e. that they had at that time no intention to negotiate with a third party, which could be seen as a false, even dishonest (therefore possibly fraudulent), statement of fact30. Indeed, as noted by another judge: 29
Counsel for claimants.
The present status of Walford v Miles in English law has been summarized as follows in the leading textbook TREITEL ON CONTRACT, 12TH ED., PARA. 2-116: 30
“[In] Walford v Miles…the defendants had agreed subject to contract to sell a property to the purchasers for £2 million and had (in breach of the ineffective “lock-out” agreement) sold it to a third party for exactly that sum, and the purchasers then claimed damages of £1 million on the basis that the property was (by reason of facts known to them but not the defendants) worth £3 million. If a duty to negotiate in good faith exists, it must be equally incumbent on both parties, so that it can hardly require a vendor to agree to sell a valuable property for only two-thirds of its true value when the facts affecting that value are known to the purchaser and not disclosed (as good faith would seem to require) to the vendor. The actual result in Walford v Miles (in which the purchasers recovered the sum of £700 in respect of their wasted expenses as damages for misrepresentation, [1992] 2 A.C. 128 at 136, but not the £1 million which they claimed as damages for breach of contract ibid. at 135) seems with respect, to be entirely appropriate on the facts, especially because the vendors reasonably believed themselves to be protected from liability in the principal negotiation by the phrase “subject to contract”.
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‘Under English law there is no general duty to negotiate in good faith, but there are plenty of other ways of dealing with particular problems of unacceptable conduct occurring in the course of negotiations without unduly hampering the ability of the parties to negotiate their own bargains without the intervention of the courts’31.
Moreover, there is no reason why a ‘lock out’ agreement during contractual negotiations could not be enforceable when, as in the case of Global Container Lines Ltd v Black Sea Shipping Co32 , the obligation not to negotiate with anybody else was supported by consideration , unless it is void for uncertainty33. Such uncertainty would be only present if the ‘lock out’ agreement contained nothing which enabled the court to determine the duration of the obligation. But commercial contracts, supported by consideration but without any agreement as to the time when the contract is terminable, are subject to an implied term that the contract is terminable on reasonable notice; and consideration may sometimes be something feather light and not difficult to find in the slightest benefit/detriment for either party34. Both of these facts do not help legal certainty, and allow a lot of actual discretion to the courts in deciding the binding effect of ‘lock out’ agreements on a case-to-case basis. D. AGREEMENTS TO USE “BEST ENDEAVOURS”, OR TO ACHIEVE FAIR PRICE OR COST
Agreements to use ‘best endeavours’ are generally treated as any other agreement to negotiate. There is a solid amount of judicial decisions to the effect that an express agreement to use best or reasonable endeavours to agree on the terms of a contract is no more than an agreement to negotiate, and is not 31 Cobbe v Yeoman’s Row Management Ltd [2006] EWCA Civ 1139; [2006] 1 WLR 2964, by Mummery LJ (At [4]) 32
(Ch D) Chancery Division [1997] C.L.Y. 4535
In Pitt v PHH Asset Management Ltd (CA (Civ Div)) Court of Appeal (Civil Division) [1994] 1 W.L.R. 327, the Court of Appeal held that this was consistent with the reasoning of the House of Lords in Walford v Miles. 33
34 The somewhat illusory nature of the doctrine of consideration is well exposed in P.S. Atiyah, “Consideration: A Restatement”, in P.S. Atiyah, ESSAYS ON CONTRACT (Oxford: Clarendon Press, 1986), p. 179 et seq.
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enforceable35. But if there is sufficient evidence of an intention of the parties to use best endeavours in order to advance the process of making the contract possible by taking necessary concrete steps, rather than a mere intention to fairly negotiate the substance of the contract, this may make such an agreement enforceable. As Millett LJ put it36: ‘..An undertaking to use one’s best endeavours to obtain planning permission or an export licence is sufficiently certain and is capable of being enforced: an undertaking to use one’s best endeavours to agree, however, is no different from an undertaking to agree, to try to agree, or to negotiate with a view to reaching agreement; all are equally uncertain and incapable of giving rise to an enforceable obligation’.
Again in the benchmark case of Walford v Miles, Lord Ackner did seem to allow some room for certain negotiation agreements, such as agreements to use “best endeavours”, to be binding. So they should be, of course, if limited in time and supported by consideration. This is, however, bound to be true with any agreements to negotiate, including agreements to negotiate in good faith, provided they were made clearly limited in time and backed by consideration. It is not, therefore, the notion of negotiating in good faith that is so unacceptable to English law, but that of negotiating in good faith without consideration. That does exclude an automatic implication ex lege of such a duty37, but 35 Little v Courage (1995) 70 P & CR 469; London & Regional Investments Ltd v TBI plc Belfast International Airport Ltd [2002] EWCA Civ 355 at [39]; Multiplex Constructions UK Ltd v Cleveland Bridge UK Ltd [2006] EWHC 1341 (TCC) 36 Little v Courage (1995) 70 P & CR 469, at 475; accordingly, in Multiplex Constructions UK Ltd v Cleveland Bridge UK Ltd [2006] EWHC 1341 (TCC), a case that arose from the long delayed construction of the new Wembley Stadium in London, Jackson J. held unenforceable a provision in an interim settlement agreement that ‘..the parties shall use reasonable endeavours to agree to re-programme the completion of the subcontract works and to agree a fixed lump sum and/or reimbursable subcontract sum for the completion of subcontract works…’ 37 As provided in both the PECL and the UNIDROIT principles; when either of these principles apply, violation of the good faith requirement in the stage of contractual negotiations is, according to the ECJ, a matter of Tort liability for the purposes of article 5 (3) of the Brussels Convention: ECJ Case C-334/00, 17/09/2002 (Tacconi), where the European Court of Justice decided that in the light of ‘.. the absence of obligations freely assumed by one party towards another on the occasion of negotiations with a view to the formation of a contract and by a possible breach of rules of law, in particular the rule which requires the parties to act in good faith in such negotiations, an action founded on the pre-contractual liability of the defendant is a matter relating to tort, delict or quasi-delict within the meaning of Article 5(3) of the Brussels Convention’.
LIABILITY FOR CONTRACTUAL NEGOTIATIONS
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things should be different if the duty to negotiate in good faith has been agreed by the parties. Indeed, if the duty to negotiate in good faith is agreed as reciprocal this would offer enough consideration for both parties to one another, the only remaining issues being that the agreement to negotiate must have a clearly agreed duration, and that the parties must have agreed some basic aspects of the good faith they would be expected to show (a ‘lockout’ agreement would be a good example). This possibility is illustrated by the analysis by Longmore LJ in the Petromec case38.Speaking obiter the judge accepted that a provision in an agreement for the upgrade of a vessel, in which the parties agreed to “negotiate in good faith”, any extra costs of such an upgrade was enforceable, as it was a provision referring to a specific and determined obligation and the agreement was not, therefore, a “bare agreement to negotiate”. The judge accepted that in using that phrase in Walford v Miles, Lord Ackner did not exclude the possibility that a pre-contractual agreement to negotiate may contain an agreement on all essential points showing the parties’ intention to be legally bound, although leaving some other points open. In such cases, a term that the parties must negotiate in good faith in order to agree details to be incorporated in the full terms of the future contract between them may be implied by the court39 and any express term to negotiate in good faith40 may also be enforceable. Longmore LJ in Petromec even appeared to suggest that the House of Lords might want to review the benchmark decision in Walford v Miles, to the extent that it was based on the difficulty of assessing the loss caused by an agreement to negotiate: as said above, an assessment based on the reliance interest of the other party is not possible, and one based on the expectation interest
38 Petromec Inc v Petroleo Brasileiro SA Petrobras (No.3) (CA (Civ Div)) Court of Appeal (Civil Division) [2005] EWCA Civ 891 39 As in the case of Donwin Productions Ltd v EMI Films Ltd, THE TIMES, March 9, 1984 (not cited in Walford v Miles). 40 E.g. that the contract will be fixed at a ‘fair price’ or cost. In Perry v Suffields Ltd [1916] 2 Ch 187, a contract for the sale of land was held enforceable despite the fact that the parties had only agreed the bare essentials, through implication of the duty of good faith as to the fairness of the price.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
uncertain. Quite rightly41, Longmore LJ drew an analogy with claims for loss of a chance42. Even as things stand, with Walford v Miles still in place, judges do not apply Walford v Miles to deny enforcement of a good faith clause, when such a clause refers to a specific mechanism or procedure of future contractual negotiations, especially, if it provides that the parties have a duty to conduct negotiations reasonably, but still deny the existence of a general duty to negotiate in good faith43. Thus, in Tramtrack Croydon Ltd v London Bus Services Ltd44 , Tramtrack held the concession to run the Croydon Tramlink. Under clause 23 of the amended concession agreement between Tramlink and the defendant London Bus Services, Tramlink had to accept certain tickets and passes as valid on the Tramlink and also such additional tickets and passes as were specified by the regulator from time to time. In respect of such tickets or passes the clause provided that the parties should in good faith agree, acting reasonably, the financial arrangements to be put in place to compensate Tramlink for their introduction. The judge, Christopher Clarke J, held that the good faith clause was not devoid of legal content, having duly considered Walford v Miles. The parties did not limit their agreement to a ‘bare’ obligation to act in good faith. They agreed to act reasonably in agreeing and that any failure to agree should be referred to expert determination. In those circumstances the court could decide, in the case of dispute, at least what they, and 41 See, however, the objections in this respect of Edwin Peel, ‘Pre-contractual liability in Property Law: A Contradiction in Terms ?’, at p. 11. 42 Well-recognised by English law in cases of breach of contract: see Chaplin v Hicks [1911] 2 KB 786. In Harrison v Bloom Camillin (No.2) [2000] Lloyd’s Rep PN 89. compensating the claim for loss of a chance involved assessing whether a claim against a third party would have succeeded had it not failed as a result of the defendant’s breach of contract. 43 See, e.g., Bernhard Schulte GmbH & Co KG v Nile Holdings Ltd (QBD (Comm)) Queen's Bench Division (Commercial Court [2004] EWHC 977 (Comm), applying Walford v Miles.; Abbale (t/a GFA) v Alstom UK Ltd (No.2) 2000 WL 989503 (QBD (TCC)) Queen's Bench Division (Technology & Construction Court), where it was held that if the parties had expressly agreed a co-operation clause then it would be wrong, with the benefit of hindsight, to imply an additional term of good faith. Such a term would have been superfluous since the kind of agreement which included a cooperation clause, necessarily anticipated a relationship of mutual trust and confidence. But if no such co-operation clause had been agreed, then a term of good faith could not be implied by virtue of the reasons in Walford v Miles. 44 (QBD (Comm)) Queen's Bench Division (Commercial Court) [2007] EWHC 107 (Comm)
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the expert, acting reasonably, were bound to take into account or ignore. Reasonableness was a criterion on which the court, and the expert, could make a judgment and, if the parties could not agree whether it would be unreasonable to take into account, or to exclude, a particular consideration, the court could determine the question. To be sure, English courts feel much more comfortable with the notion of reasonableness, embedded for a long time in English law and closely linked to ideas of objective interpretation of agreements and business efficacy, than the notion of good faith. E. NEGOTIATING PARTNERSHIP AGREEMENTS In Conlon v Simms45, the Chancery Court affirmed that partners have a duty to negotiate partnership agreements in good faith46, and of disclosure of all material facts, owed not only to existing partners but also prospective partners who are negotiating entry into the partnership. F. FIDUCIARY RELATIONSHIPS- PROPRIETARY ESTOPPEL Exceptionally in cases of contracts for the sale of land, equity has developed a doctrine that protects reliance in good faith of a party on the other party’s actions during contractual negotiations, known as proprietary estoppel. A good definition of the doctrine of proprietary estoppel is the following: ‘Proprietary estoppel exists to adjust the prevailing balance of property between claimant and defendant when the claimant has formed the relevant kind of expectation, and has acted detrimentally in reliance on it, and these occurrences are ascribable to the defendant (via his encouragement of or acquiescence in them), so that it would be unconscionable for him to insist on the status quo’47.
An illustration of the operation of this very important doctrine can be seen in the recent case of Yeoman’s Row Management v Cobbe48 . The claimant, Mr Cobbe had agreed in 45
[2006] EWHC 401 (Ch)
See also Partnership Act 1890, s. 28: ‘Partners are bound to render true accounts and full information of all things affecting the partnership to any partner or his legal representatives’. 46
47 Gardner, ‘The Remedial Discretion in Proprietary Estoppel’ , (1999)122 LAW QUARTERLY REVIEW 492, at p 508. 48
[2006] EWCA Cov 1139 (CA)
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principle with the defendants Yeoman’s Row Management (YRM), to buy property from them, on the basis of an expectation of acquiring from them for re-development the property, for which he had been encouraged by them to apply for, and obtain, detailed planning permission, in the belief that YRM would not withdraw from a promise to sell the property to him on agreed terms. In all this Mr Cobbe had been encouraged and induced to act by the conduct of the controlling director of YRM. As soon as permission was obtained, the YRM walked out of the agreement in principle and demanded a big increase in the price, from £12m to £20m. Further negotiations between the parties then broke down. The first instance judge granted equitable relief by concluding that this was a case of proprietary estoppel. The relief took the form of a share, secured on the property by a lien and calculated by reference to the amount by which the planning permission obtained by the claimant had increased the value of YRM's property as at the date when YRM withdrew from the promised contract. Before the Court of Appeal, the defendants’ lawyer argued that there “was nothing unconscionable in withdrawing from a promise where the party to whom the promise was made was not entitled to rely on it in the first place.”49 But Mummery LJ agreed with the trial judge that: ‘..proprietary estoppel could be established even where the parties anticipated that a legally binding contract would not come into existence until after planning permission had been obtained, further terms discussed and agreed and formal written contracts exchanged…[e]ven the use of the expression “subject to contract” would not, however, necessarily preclude proprietary estoppel if the claimant established that the defendant had subsequently made a representation and had encouraged on the part of the claimant a belief or expectation that he would not withdraw from the “subject to contract” agreement or rely on the “subject to contract” qualification’50.
G. CONSTRUCTIVE TRUSTS51 Identified by Lord Browne-Wilkinson52 as a trust
49
Supra, [2006] EWCA Cov 1139 (CA), at PARA [53].
50
At [57]. See John McGhee, ed., SNELL’S EQUITY, 31st Edition plus Supplement, London 2004
51
LIABILITY FOR CONTRACTUAL NEGOTIATIONS
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‘..which the law imposed on [the trustee] by reason of his unconscionable conduct’
the constructive trust, especially the common intention constructive trust is fascinatingly close to proprietary estoppel53, may, indeed, be seen as underpinning it. A full account of the mechanics and uses of constructive trusts is well beyond the scope of this paper, but it should be pointed out that they can be used to imply duties of good faith and fair dealing in many situations where there is evidence of unconscionable conduct and the relationship of the parties is of a fiduciary character. H. RESTITUTION FAIL
OF
UNJUST ENRICHMENT
WHEN NEGOTIATIONS
As already mentioned, English law has relatively recently embraced a general principle of restitution of unjust enrichment54. Cases in which a party to failed negotiations has claimed restitution of the unjust enrichment of the other party as a result of the failure to make a contract include William Lacey (Hounslow) Ltd v Davis55 , in which the claimants were builders that made costly preparations for rebuilding premises that they were negotiating to take over for reconstruction from the owners, who, however, sold the premises to a third party instead of going ahead with the reconstruction. The court held that the claimants were entitled to an award quantum meruit for the work they had done. But, as shown by the failure of the claimants in the case of Regalian Properties Plc v London Docklands Development Corporation56, quantum meruit compensation of work done during contractual negotiations can only be claimed if the work in question has clearly benefited financially the other party, who 52 In Westdeutsche Landesbank Girozentrale v Islington London Borough Council [1996] AC 669, 705; (1996) 112 LQR 521 (Cape); [1996] CLJ 432 (Jones); [1997] LMCLQ 441 (Stevens). 53
Nield, S. ‘Constructive trusts and estoppel’, (2003) LEGAL STUDIES, 23, (2), 311-331
54
Lipkin Gorman v Karpnale Ltd [1991] 2 AC 548, see supra, note 11.
55
[1957] 1 WLR 932. [1995] 1 WLR 212.
56
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
broke the negotiations. This is in accordance with the restitutionary nature of this special liability during the stage of contractual negotiations. III. CONCLUSIONS
English law presents the viewer in the area of liability for pre-contractual negotiations with a familiar landscape. No structured system of principles, rules and exceptions, but a historically and systematically fragmented sanction of special instances of wrong or unconscionable conduct, with remedies drawn from equity, tort and restitution. Unless, that is, an agreement is reached by the parties at the end of the negotiating stage, when any such conduct may be sanctioned in relation to its effect on the validity of the agreement and the determination of its valid terms, and liability (contractual and also, potentially, tortious) may be imposed. Despite several critical views to the contrary, English law still refuses to imply general duties of good faith, fair dealing, disclosure and confidentiality at the negotiating stage57. In this, it still offers a clear alternative to EU Commission’s Common Frame of Reference58, the Principles of European Contract Law59, the 57 However, and under the influence of one of its most eminent Law Commissioners and long-standing supporter of the Principles of European Contract Law (of which he was a principal co-author), Professor Hugh Beale, and prompted by another eminent ‘pro European’ English academic lawyer, Professor Sir Roy Goode, the U.K. Law Commission announced in 1999 that it was contemplating a commercial code for England and Wales, which would not contain detailed rules, but general underlying principles, similar to those found in the Principles of European Contract Law and the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. See Law Commission Report No. 259, “The Law Commission Seventh Programme of Law Reform”, published June 15, 1999, section 1.14, available on line at http://www.lawcom.gov.uk/docs/lc259.pdf (last visited 25.5.2008). This tentative announcement has had no sequel, as the Law Commission had made it clear that they would be involved in this only after obtaining the approval of the Lord Chancellor, which has not been granted so far. 58 PRINCIPLES, DEFINITIONS AND MODEL RULES OF EUROPEAN PRIVATE LAW, DRAFT COMMON FRAME OF REFERENCE (DCFR), INERIM OUTLINE EDITION available online at http://webh01.ua.ac.be/storme/DCFRInterim.pdf (last visited 25.5.2008). The draft provides for an extensive list of good faith duties, including information and confidentiality duties. 59 The Principles of European Contract Law, available online at http://frontpage.cbs.dk/law/commission_on_european_contract_law/PECL%20engelsk/en gelsk_partI_og_II.htm (last visited 25.5.2008), provide comprehensive provisions of good faith before and during a contractual relationship.. Article 1:201, entitled ‘Good Faith and Fair Dealing’, states that:
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UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts60 , and the UN Convention on the Law of International Sales of Goods61, all of which endorse broadly similar versions of a general ‘(1) Each party must act in accordance with good faith and fair dealing’, and ‘(2) The parties may not exclude or limit this duty’. Article 1:202, entitled ‘ Duty to Co-operate’, states that ‘Each party owes to the other a duty to co-operate in order to give full effect to the contract’. Section 3, entitled ‘ Liability for negotiations’, contains two articles. Article 2:301, entitled ‘Negotiations Contrary to Good Faith’ states that ‘(1) A party is free to negotiate and is not liable for failure to reach an agreement. (2) However, a party who has negotiated or broken off negotiations contrary to good faith and fair dealing is liable for the losses caused to the other party. (3) It is contrary to good faith and fair dealing, in particular, for a party to enter into or continue negotiations with no real intention of reaching an agreement with the other party. And Article 2:302, entitled ‘Breach of Confidentiality’, states that ‘If confidential information is given by one party in the course of negotiations, the other party is under a duty not to disclose that information or use it for its own purposes whether or not a contract is subsequently concluded. The remedy for breach of this duty may include compensation for loss suffered and restitution of the benefit received by the other party’. 60 The UNIDROIT Principles 1994 with commentaries are available online at: http://www.unidroit.org/english/principles/contracts/main.htm (last visited 25.5.2008). Article 1.7(1) states that “each party must act in accordance with good faith and fair dealing in international
Trade; art. 1.7(2) states that the parties may not exclude or limit this duty. E.A. Farnsworth, “Duties of Good Faith and Fair Dealing Under the UNIDROIT Principles, Relevant International Conventions, and National Laws” (1995) 3 TUL. J. INT'L & COMP. L. 47 at p. 49, gives an account of various other provisions of the UNIDROIT Principles which refer to good or bad faith or fair dealing. 61 UNITED NATIONS CONVENTION ON CONTRACTS FOR THE INTERNATIONAL SALE OF GOODS, adopted at Vienna, April 11, 1980 and in force January 1, 1988, available online at Pace University School of Law, Institute of International Commercial Law:
http://www.cisg.law.pace.edu/cisg/text/treaty.html (last visited 25.5.2008). For states that have adhered to the convention see the United Nations website "List of Multilateral Treaties deposited with the Secretary General", available online at http://untreaty.un.org/ENGLISH/bible/englishinternetbible/partI/chapterX/treaty20.asp. (last visited 25.6.2008). Article 7(1) states that “In the interpretation of this Convention, regard is to be had to its international character and to the need to promote uniformity in its application and the observance of good faith in international trade.” Commentators seem to agree generally that there is little point in confining this article, on a narrow interpretation, to the interpretation of the provisions of the Convention itself and not extending its application to the conduct of contracting parties, as a broader interpretation would suggest: see William Tetley, ‘Good Faith in Contract Particularly in the Contracts of Arbitration and Chartering’, (2004) 35 JMLC 561, under IX, 1. See also U. Magnus, “Remarks on good faith: The United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods and the UNIDROIT Principles of the International Commercial Contracts”, Pace University School of Law, available online at: http://cisgw3.law.pace.edu/cisg/principles/uni7.html#um. A further argument in favor of the broader interpretation is that the Vienna Convention was actually modeled on the UNIDROIT principles that explicitly endorse a duty of good faith of contracting parties during negotiations: see supra.
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duty of good faith and fair dealing in negotiating contracts. The perceived practical advantage of this is that English law retains its special distinctive identity and style as a competitor in the International market of choice of law-shopping, even offering a sharper practical conservatism than its greatest common law rival, the New York contract law62. Whatever the merits or otherwise of such conservatism from the point of view of general market efficiency63, and arguments that it goes against an emerging trend of adherence to good faith principles in International Contracts practice and International Arbitration practice64 notwithstanding, this conservatism has served well English law and its international ambitions, by offering a reassurance, if not a reality65, of practical certainty and making it, therefore, attractive to international negotiating parties as their law of choice. It remains, however, a significant thorn on the side of any broader66 European harmonisation project in the field of pre-contractual negotiations.
62 Which evolves in a more positive, albeit often confusing, environment for ideas of good faith, influenced by the UCC and the RESTATEMENT OF CONTRACTS (see supra, notes 17, 18), and the broader approach to promissory estoppel of American law. On American law generally, see recently Alan Schwartz & Robert E. Scott, ‘Precontractual Liability and Preliminary Agreements’, (2007)120 HARVARD LAW REVIEW, 661 at p. 662: ‘For decades, there has been substantial uncertainty regarding when the law will impose precontractual liability. The confusion is partly due to scholars’ failure to recover the law in action governing precontractual liability issues… no liability attaches for representations made during preliminary negotiations. Courts have divided, however, over the question of liability when parties make reliance investments following a “preliminary agreement.” A number of modern courts impose a duty to bargain in good faith on the party wishing to exit such an agreement. Substantial uncertainty remains, however, regarding when this duty attaches and what the duty entails.’ 63 See Ejan Mackaay and Violette Leblanc, ‘The Law and Economics of Good Faith in the Civil law of Contract’, paper prepared for the 2003 CONFERENCE OF THE EUROPEAN ASSOCIATION OF LAW AND ECONOMICS, at Nancy, France, 18-20 September 2003, available online at: http://hdl.handle.net/1866/125 (last visited 25.5.2008); Ofer Grosskopf and Barak Medina, ‘Regulating Contract Formation: Precontractual Reliance, Sunk Costs, and Market Structure’, THE BERKELEY ELECTRONIC PRESS (BEPRESS), YEAR 2006, PAPER 949, at http://law.bepress.com/expresso/eps/949 (last visited 25.5.208); Daniel Markovits, ‘Contract and Collaboration’, (2004) 113 YALE L.J. 1417 64 See William Tetley, ‘Good Faith in Contract Particularly in the Contracts of Arbitration and Chartering’, (2004) 35 JMLC 561. 65 66
See A F Mason, op. cit., supra, note 15. I.e. beyond business- to- consumer pre-contractual relations.
A RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL POR INFORMAÇÕES E O REGIME DOS VÍCIOS DA VONTADE (ERRO E DOLO) NO DIREITO PRIVADO PORTUGUÊS: O CASO DA INDUÇÃO NEGLIGENTE EM ERRO Eva Sónia Moreira da Silva
Pretendemos tratar o tema das relações entre dois institutos jurídicos: a responsabilidade pré-contratual e os vícios da vontade, mais especificamente, o dolo e o erro. Na verdade, o que procuramos é a solução jurídica para um problema muito específico: o problema da indução negligente em erro. Para tanto, pretendemos proceder à seguinte exposição: 1) Demonstrar a relação existente entre estes dois institutos no que toca ao caso da indução negligente em erro; 2) Explicar o problema que se levanta para a determinação do regime da indução negligente em erro: irrelevância ou lacuna? 3) Expor a incoerência da ideia da irrelevância; 4) Apresentar uma tentativa de solução: a amputação do regime da cic como resultado não razoável; 5) Concluir pelo reconhecimento da existência de uma lacuna; 6) Colocar alguns problemas relativos ao preenchimento da lacuna.
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Quando falamos de indução em erro, necessariamente, estamos a falar de um comportamento que ocorre durante as negociações para a conclusão de um contrato (ou, de forma mais abrangente, de um negócio jurídico). Sendo este comportamento censurável – havendo culpa – o instituto da responsabilidade précontratual é chamado à colação. Evidentemente, não basta a culpa: este comportamento terá de ser ilícito. Na verdade, terá de tratar-se de um caso de violação de deveres pré-contratuais de informação1: uma das partes nas negociações engana a outra – intencionalmente ou não – ao transmitir-lhe informações incorrectas, ou ao não cumprir um dever de esclarecimento, omitindo informações essenciais à sua decisão contratual. Daí que, uma situação como a da indução em erro parece poder ser enquadrada na hipótese legal dos dois institutos jurídicos cuja relação nos propomos tratar. Contudo, se não há dúvidas quanto à indução dolosa – que denominamos de dolo – há muitas relativamente à indução negligente. Como sabemos, na nossa ordem jurídica, o erro sobre os motivos que afecte a declaração negocial pode constituir fundamento de anulação de acordo com os arts. 252º e 251º (nos termos do art. 247º, 2ª parte). A regra é a da irrelevância. Contudo, excepcionalmente, a lei permite a anulação de um contrato quando o errans vê a sua vontade viciada por uma representação errada relativamente à pessoa do declaratário, ao objecto do negócio ou relativamente a um outro motivo cuja 1 É necessário clarificar estes conceitos: no âmbito deste trabalho, entendemos a noção de dever pré-contratual de informação de forma ampla, ou seja, abrangendo o dever de transmitir os factos essenciais à decisão de contratar, quando tenham sido colocadas questões neste sentido pela outra parte (dever de informação em sentido restrito) e o dever de transmitir, de forma espontânea, informações que a outra parte desconhece (dever de esclarecimento). Para além disso, as partes estão, naturalmente, obrigadas a omitir a transmissão de informações erradas (no fundo, trata-se aqui do respeito pelo dever de verdade). De facto, quando as partes se encontram em negociações, devem poder legitimamente confiar que a outra parte não as engana, não lhes mente, não lhes transmite informações incorrectas. A boa fé pré-contratual a tanto obriga. Daí que, tendo nascido um dever de informação, as partes, para o cumprir, tenham de respeitar o dever de verdade. Contudo, também pode existir um dever de verdade sem que exista um dever de informação: se a parte, embora não obrigada a isso, tiver por sua iniciativa transmitido certas informações, estas deverão ser verdadeiras. Haverá aqui, igualmente, uma violação de deveres précontratuais que justifica a aplicação do instituto da culpa in contrahendo, ainda que não se trate de verdadeira responsabilidade pré-contratual por violação de deveres de informação. Sobre estes conceitos, v. Eva Sónia MOREIRA DA SILVA, Da responsabilidade pré-contratual por violação de deveres de informação, reimp., Coimbra, Almedina, 2006, pp. 67 a 73.
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essencialidade foi reconhecida por acordo das partes. Não fora o erro, o declarante nunca teria celebrado o contrato ou nunca o teria feito nos termos em que o fez2. Caso o erro em causa seja já um erro qualificado porque provocado dolosamente pelo declaratário, a anulabilidade encontra o seu fundamento nos arts. 253º e 254º. Nos casos de dolo, já não é necessário preencher os requisitos que tornam o erro sobre os motivos anulável. O facto de estarmos perante um erro provocado dolosamente pela outra parte3 torna a declaração sempre anulável mesmo que o erro verse sobre meros motivos sobre os quais o declarante fundou a sua decisão de contratar (e em que termos). O ponto essencial aqui é, portanto, a indução em erro. Contudo, a mera indução em erro não basta para que possamos anular o contrato com base no art. 253º4. É necessário o dolo ilícito da contraparte. O declaratário engana o declarante e tem consciência de que é por virtude deste engano que este faz a declaração. O erro é determinado intencionalmente pelo declaratário5. Que acontece, então, face à nossa ordem jurídica, quando o declaratário induz o declarante em erro sem intenção de o fazer? Se se trata de uma situação em que o erro diz respeito à pessoa do declaratário, ao objecto do negócio ou a um motivo reconhecido como essencial pelas partes, a declaração é anulável nos termos dos arts. 252º, 251º e 247º. Contudo, se se trata de um mero erro sobre os motivos que não recaia sobre aqueles aos quais a lei atribui – excepcionalmente – relevância, o seu regime geral é o da 2 Segundo alguns autores, é ainda possível anular um contrato quando está em causa um erro sobre a base do negócio, enquanto outros autores entendem que a remissão feita pelo art. 252º, n.º 2, se refere à estatuição do art. 437º, pelo que será de lhe aplicar o regime da alteração das circunstâncias que constituem a base do negócio. Quanto à primeira posição, v. por todos, Carlos Alberto da MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. (por António PINTO MONTEIRO e Paulo MOTA PINTO), Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 514 a 516; quanto à segunda, v. Heinrich Ewald HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 576 e segs. 3 Relevando, também, apesar de dentro de pressupostos mais apertados, o erro provocado através de dolo de terceiro, nos termos do art. 254º, n.º 2. 4 Neste sentido, é-nos dito que não constitui dolo “qualquer erro causado pela outra parte” (sem intenção ou a consciência de enganar) mas apenas aquele em que uma destas exista. Carlos Alberto da MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 522 e p. 522, n 717. 5 Neste sentido, Heinrich Ewald HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit., pp. 583 e 584.
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irrelevância, como determina o art. 252º, nº 1. Sendo um erro irrelevante, o negócio também não pode ser anulado com base no regime do erro. Imaginemos, para tornar mais perceptível a questão, que A e B negoceiam com vista à celebração de um contrato de compra e venda de uma máquina, que A pretende instalar na sua oficina6. A interroga B sobre se a referida máquina caberá no local que lhe é destinado, ao que B responde afirmativamente, embora não se tenha lembrado que a máquina necessita, para além do espaço que ocupa, relativo às suas próprias dimensões, de mais espaço para que ocorra circulação do ar (necessita de “espaço para respirar”). B nunca teve a intenção de enganar A, mas verifica-se mais tarde que a máquina, afinal, não pode funcionar no local que lhe estava destinado. A só a comprou por estar convencido do contrário e o erro em que incorreu, sem culpa nenhuma, foi provocado por B, culposamente. Devido a este facto, a máquina e, portanto, o respectivo contrato de compra e venda tornam-se completamente inúteis. Como poderá A desvincular-se deste contrato indesejado? Estamos perante um mero erro sobre os motivos7, não qualificado como dolo pela ausência da intenção de enganar. Uma vez que não se encontra preenchida nenhuma das excepções previstas pelo art. 252º, n.º 1, o regime a aplicar parece ser o regime–regra: o da irrelevância. Contudo, estaremos realmente perante um caso de erro sobre os motivos? Repare-se que aqui existe algo que o regime do art. 252º não pretende abranger: a 6 Exemplo adaptado do caso fundamental da “serra circular” (“Kreissäge-Entscheidung”), onde o problema da indução negligente em erro é tratado pela primeira vez de forma evidente na jurisprudência alemã, numa decisão do Supremo Tribunal Federal Alemão (BGH) de 1962, publicada em NJW, 1962, pp. 1196 a 1198. Este exemplo é exposto por Jorge Ferreira SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra, Almedina, 1989, p. 370, n. 100. 7 Poderia considerar-se a possibilidade de este caso se tratar de um caso de erro sobre a base do negócio, nos termos do art. 252º, n.º 2, uma vez que se trata de um erro em que incorrem ambas as partes sobre uma circunstância essencial ao contrato. No entanto, não nos parece que exista aqui uma pressuposição comum: note-se que uma das partes nem se lembrou do facto, tendo em seguida induzido a outra em erro – como podia ter partido de um pressuposto se nem se lembrou dele? Além disso, a circunstância em questão cai na esfera de risco própria do contrato – e, portanto, a cargo das partes –, não se tratando de uma circunstância anómala e imprevisível, no sentido que é atribuído pela lei à base negocial e que se destaca na remissão feita para o regime da alteração das circunstâncias. Considerar que nos encontramos aqui perante um erro sobre a base do negócio, seria tornar relevante praticamente qualquer erro sobre os motivos. O que não cairia neste regime? A insegurança jurídica seria intolerável.
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indução em erro. Nos casos de mero erro sobre os motivos, é o próprio declarante que cai em erro, sem que exista uma perturbação externa da sua vontade. Daí que possamos qualificar o erro sobre os motivos como um vício endógeno da vontade, ou seja, como um vício que ocorre na esfera do declarante8. Contudo, nos casos de indução em erro, a vontade encontra-se viciada por factores externos ao declarante pelo que podemos qualificar esta situação como um caso de vício exógeno. Não há dificuldades em encontrar o regime jurídico para a indução dolosa em erro – ou dolo – no art. 253º e 254º. Contudo, a nossa lei não prevê o caso da indução meramente negligente, como faz relativamente ao dolo. Significará isso que lhe é de aplicar o regime do erro sobre os motivos? É discutível. Porque, como já deixámos entrever, este caso não se assemelha aos casos típicos de mero erro sobre os motivos, onde o que existe é uma falta de “liberdade interior”9 por parte do declarante. Será um caso atípico? Certo é que a situação se assemelha muito mais aos casos de dolo, exceptuando-se a ausência de intencionalidade. Uma vez que se trata de um caso de indução em erro, poderá, como defendem alguns autores10, aplicar-se-lhe o regime do dolo, desde que a indução em erro seja culposa, ao menos nos casos de negligência consciente11? 8 Manuel de ANDRADE distinguia desde logo os conceitos de erro e de dolo considerando que o primeiro se tratava de um “erro espontâneo”, enquanto o segundo se tratava de um “erro provocado”. Manuel A. Domingues de ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, v. II, Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, reimp., Coimbra, 1998, p. 256. No mesmo sentido, por exemplo, José de OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil - Teoria Geral, v. I, Acções e Factos Jurídicos, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 117. 9 Heinrich Ewald HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit., p. 567 e segs. O autor considera que no caso do erro sobre os motivos se está perante uma vontade mal esclarecida, enquanto no dolo (e na coacção moral) a vontade se encontra sem “liberdade exterior”. 10 É o caso de Luís Manuel Teles de MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, v. III, Coimbra, Almedina, p. 116. Também MENEZES CORDEIRO, embora a propósito da venda de bens alheios, que considera que, neste âmbito, a lei utiliza a expressão “dolo” para designar a má fé, no sentido do conceito do art. 253º. Deste modo, para o autor, está de má fé não só aquele que conhece a alienidade da coisa como também aquele que a desconhece negligentemente. António Manuel da Rocha e MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, v. I, Coimbra, Almedina, 1997 (reimp.), pp. 497 e ss., especialmente p. 503. 11 A questão está no conceito de dolo que adoptarmos. A letra do art. 253º, n.º 1, parece deixar lugar a algo mais do que a intencionalidade, quando refere “a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro”; a forma como interpretarmos esta expressão é decisiva. Seguramente, abrange os casos de dolo eventual mas poderá entender-se que também aqui
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Como vemos, perante um caso de indução negligente em erro o nosso Código Civil – aparentemente – não apresenta solução. Isto pode significar que há uma lacuna da lei ou que, simplesmente, o legislador optou por não dar relevância a este erro, por se tratar de um mero erro sobre os motivos, ainda que tenha sido provocado pelo declaratário. No último caso, o significado é simples: a entender-se que estamos perante um erro sobre os motivos – embora atípico – prevalece o princípio da sua irrelevância. Não é possível anular o contrato que tenha sido celebrado desta forma, apesar de ter existido uma perturbação na formação da vontade do declarante, porque a letra da lei – aparentemente – não prevê, para estes casos, essa possibilidade. No entanto, é certo que existe culpa – embora mera culpa – por parte do declaratário, que – embora sem intenção – conduz à conclusão de um contrato que não se teria celebrado, ou não se teria celebrado naqueles termos, se não fosse o erro em que induz o declarante. Se existe culpa na formação do contrato, necessariamente há responsabilidade pré-contratual do indutor em erro, nos termos do art. 227º12 13. Contudo, se defendemos a tese de que a (mera) indução negligente em erro apenas releva em termos indemnizatórios, em breve nos vemos a braços com alguns problemas. Falamos apenas de uma indemnização em dinheiro? É que, no caso em apreço, o dano em causa é provavelmente – apenas ou maioritariamente – o dano da celebração de um contrato indesejado, seja nos termos em que o foi, seja na totalidade da sua celebração. Isto significa que, à cabem os casos de negligência consciente? Neste sentido, Nuno Manuel PINTO OLIVEIRA, «Sobre o conceito de dolo dos artigos 892º e 908º do Código Civil», 12 Este terá violado culposamente o dever pré-contratual de informação: tendo-lhe sido colocada uma questão que sabia ser de importância crucial para a decisão do comprador, transmitiu uma informação errada. Colocando de parte as questões que se levantam relativamente aos pressupostos do dever de informação, visto que já não cabem no âmbito deste trabalho, sabemos que, existindo um dever de informar, este deve ser observado com verdade, ainda que implique que a parte se tenha de informar para poder informar. O que não pode é responder de forma errada, ainda que não intencionalmente. 13 Parece ser esta a posição de a posição de Mota Pinto, Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, ao dizer que se o “erro [é] provocado por informações inexactas, sem intenção ou consciência do engano, embora com negligência (…) erro a que os ingleses chamaram «misrepresentation»”, não é dolo, mas “pode fundamentar uma obrigação de indemnizar a cargo de quem provocou o erro (art. 227º, n.º 1). Carlos Alberto da MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 522, n. 717.
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semelhança do que faz a jurisprudência alemã desde 196214, aplicando-se o princípio da restauração natural do art. 562º, deve repor-se a situação que existiria se não fosse o dano, ou seja, deve “destratar-se” o contrato, ou por outros termos, as partes devem ser indemnizatoriamente desvinculadas do contrato, no caso de o dano ser a própria celebração do contrato; no caso de o dano consistir na celebração do contrato em termos menos favoráveis do que o seria sem a indução em erro, a solução indemnizatória conduz a uma adaptação do contrato para os termos que teria, caso não tivesse existido o erro em causa15. No entanto, se é verdade que a lei exclui a anulação com base em indução negligente em erro, que sentido faz admitir agora um resultado tão semelhante como o da desvinculação do contrato por via indemnizatória? Não é incoerente? Não estaremos a deixar entrar pela janela aquilo que fizemos sair pela porta? Contudo, a mera aplicação da letra da lei, parece fazer caber ao instituto da cic a solução para este problema. Seguindo esta via, optando pela tese da irrelevância da indução negligente em erro ao considerar que esta foi uma opção da lei, concluímos que não há qualquer lacuna, concluímos que a ordem jurídica não considera que semelhantes casos possam ser anulados. No entanto, mesmo que consideremos que o tratamento de tais casos encontra a sua sede no instituto da responsabilidade pré-contratual – e não no campo dos vícios da vontade – e que, portanto, não há lacuna, porque a lei proporciona uma (outra?) solução jurídica, vemo-nos a braços com a 14 Trata-se da “Kreissäge-Entscheidung” que já referimos atrás. O BGH reconheceu à parte contratual induzida em erro o direito de exigir uma desvinculação do contrato por via da restauração natural (§ 249 S. 1 do BGB) como consequência jurídica de uma violação de dever de informação, mesmo tendo esta sido cometida apenas negligentemente. Segundo o BGH, este direito à desvinculação com fundamento em culpa in contrahendo não deveria ser influenciado pela regulamentação da anulação dos §§ 123 e segs. do BGB. Desde esta data, embora com alterações nos fundamentos apresentados devido à consideração de objecções colocadas pela doutrina, o BGH tem concedido este direito continuamente, independentemente dos pressupostos dos §§ 123 e segs., ou seja, independentemente da existência de dolo (da intenção de enganar). Hans Cristoph GRIGOLEIT, Vorvertragliche Informationshaftung – Vorsatzdogma, Rechtsfolgen, Shranken, München, Beck, 1997, pp. 12 e segs. 15 É certo que pode discutir-se a possibilidade da desvinculação por via indemnizatória, tal como faz parte da doutrina alemã. Desde logo, pôr em causa a noção de “dano ressarcível”. Se entendermos que a celebração de um contrato indesejado não cabe nesta categoria, não será possível uma restituição natural nos termos descritos no corpo do texto. Estas questões, no entanto, atendendo à minúcia com que teriam de ser debatidas, já não cabem no âmbito desta exposição.
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possibilidade de desvinculação indemnizatória, em tanto semelhante à solução anulatória… Ora, se a lei optou por afastar a anulação, como pode permitir – ainda que por outra via e perfeitamente a coberto da sua letra! – que se atinja um resultado praticamente idêntico? A ordem jurídica deve ser um todo coerente. A contradição de valorações apresentada acima não pode persistir. Podemos eliminá-la por duas vias: ou admitimos que a desvinculação indemnizatória deve ser excluída em prol da conformidade com a – suposta – decisão legislativa da irrelevância da indução negligente em erro; ou admitimos que o legislador nunca quis excluir a relevância da indução negligente em erro – nunca pretendeu que os casos de indução negligente em erro fossem considerados como casos de mero erro sobre os motivos – e, simplesmente, não os previu, incorrendo numa lacuna. Se optarmos pela primeira hipótese, ou seja, se considerarmos que a indução negligente em erro só releva nos termos do instituto da culpa in contrahendo mas que terá de se excluir a desvinculação indemnizatória, devemos tomar consciência de que a ideia de simplicidade é enganosa. É que, para perseguir a coerência do sistema, teríamos de excluir não só a possibilidade de uma desvinculação indemnizatória como também a possibilidade de uma indemnização em dinheiro. Não faz sentido eliminar a possibilidade de restauração natural e deixar incólume a indemnização em dinheiro, sabendo nós que a primeira é aquela que o nosso Código Civil considera como preferencial. A indemnização deve fazer-se apenas em dinheiro quando não é possível repor a situação que existiria se não fosse o dano. É certo que se pode argumentar que, apesar de não existir nestes casos uma impossibilidade física da restauração natural, pode considerar-se a existência de uma impossibilidade legal16. 16 No sentido de que a restauração natural pode ser afastada tanto por uma impossibilidade de facto como por uma impossibilidade jurídica, v. por exemplo, TEICHMANN, anotação ao § 251 do BGB in Jauernig Bürgerliches Gesetzbuch, 10ª ed., München, C. H. Beck, 2003, p. 209, n. m. 3, onde o autor, após a admissão da impossibilidade legal da restauração natural, remete para o regime da exclusão do dever de prestação do § 275 do BGB, que expõe a impossibilidade legal da prestação. A este respeito, v. VOLLKOMMER, anotação ao § 275 de BGB in Jauernig Bürgerliches Gesetzbuch, cit., pp. 243 e segs., n. m. 15.
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Tendo a lei feito uma opção pela irrelevância dos casos de indução negligente em erro no campo dos vícios da vontade, afastando uma eventual anulabilidade, o art. 252º, n.º 1, tornar-se-ia um obstáculo legal à restauração natural com fundamento no art. 227: a indemnização teria de restringir-se, assim, à indemnização em dinheiro. E parece que, nestes termos, em alguns casos, há coerência da solução com as valorações feitas pela lei: quando a lei defende um princípio da conservação dos negócios jurídicos17, dando corpo a institutos como a redução e a conversão dos negócios jurídicos; quando a lei opta pelo respeito pelo princípio do pacta sunt servanda, mesmo nos casos de erro incidental, só permitindo anular parcialmente o contrato… A tendência vai no sentido de não ser permitida uma desvinculação indemnizatória. Mas esta solução só faz sentido nos casos em que a indução em erro não conduz a um contrato inútil para o induzido em erro. Se o contrato é perfeitamente inútil, assemelha-se mais aos casos de erro essencial, onde a anulabilidade é total; a eliminação da restauração natural por impossibilidade legal só faz sentido se o contrato é parcialmente útil, porque aqui só se justifica uma adaptação indemnizatória do contrato mas já não uma desvinculação. Ora, se o contrato se torna inútil seria meramente formalista e muitíssimo injusto amputar-se o regime da responsabilidade pré-contratual. Aqui não pode defender-se uma restrição deste regime à possibilidade de indemnização em dinheiro por meio da ideia da existência de impossibilidade legal porque a opção da lei não abrange estes casos. Nestes casos, o regime da responsabilidade pré-contratual tem de aplicar-se de acordo com as regras gerais da responsabilidade: uma vez que é física e legalmente possível a restituição da situação àquela que existiria se não fosse o dano, é esta que deve prevalecer – a desvinculação indemnizatória. Assim, se queremos excluir a desvinculação indemnizatória para evitar incoerências na ordem jurídica, no seguimento do exposto supra, parece que teremos de excluir também a indemnização em dinheiro. Ou seja, se considerarmos que a lei optou por consagrar a irrelevância da indução negligente em erro nos termos do art. 252º, n.º 1, teremos de entender que esta 17
Heinrich Ewald HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, cit., pp. 595 e segs.
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irrelevância não se fica pelo regime dos vícios da vontade mas que abrange também o instituto da responsabilidade pré-contratual – apesar de caber formalmente na sua letra. Ora, este resultado significa amputar o instituto da culpa in contrahendo para além do razoável. A nossa ordem jurídica – à semelhança das ordens jurídicas estrangeiras mais próximas da nossa – tem vindo a evoluir no sentido do reconhecimento de deveres de informação pré-contratuais, de deveres de cuidado com o património da outra parte, do reconhecimento da relevância jurídica de condutas censuráveis a nível informativo. Para além disso, a nossa ordem jurídica é muito clara quando não distingue no campo da responsabilidade civil em geral – e no campo da responsabilidade pré-contratual em especial – a censurabilidade da conduta dolosa, por um lado, e a censurabilidade da conduta negligente, por outro lado. O art. 483º refere expressamente “dolo ou mera culpa”; os arts. 798º e 227º não distinguem qualquer grau de culpa, utilizando o conceito de forma ampla para abranger as duas situações. No caso em análise, isto significa que a responsabilidade pré-contratual é de aplicar de forma perfeitamente legítima a um comportamento negligente na formação de um contrato. Não é possível duvidar-se de que o caso específico da indução negligente em erro cabe no âmbito de aplicação deste instituto, da mesma forma que acontece com o caso da indução dolosa em erro. A redução do âmbito de aplicação da norma, relativamente aos casos de indução negligente em erro, será um resultado aceitável? E, por outro lado, será coerente, considerando a evolução legislativa a que assistimos, o surto de normas que obrigam à prestação de informações na fase précontratual? Não, esta solução não parece aceitável nos casos de indução negligente em erro como aquele que apresentámos como exemplo: o declarante, sem culpa alguma, é induzido em erro pelo declaratário, que age com culpa, sendo certo que o contrato, tal como é celebrado (e é-o apenas em virtude da indução em erro), é inútil ao declarante. Se se tratasse de um caso de indução em erro em que, apesar da culpa do vendedor, existisse simultaneamente culpa do comprador – que teria tido a obrigação de se informar e deste modo escapar ao erro – o resultado já não nos pareceria tão fora das valorações feitas pela lei. O declarante induzido em erro
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já não mereceria a mesma protecção. Mesmo assim, parece-nos justo que, conforme a medida das culpas dos intervenientes, pudesse, eventualmente, exigir uma indemnização em dinheiro. A completa irrelevância da indução em erro, portanto, afigura-senos injusta, mesmo nestes casos. Mesmo não se admitindo aqui uma desvinculação do contrato – que não é justificável – sempre deverá relevar a culpa na formação do contrato. Será sempre necessário ponderar a medida das culpas e o dano causado pela celebração do contrato (que pode necessitar apenas de uma mera adaptação). Contudo, nos casos de indução em erro que queremos apresentar como paradigma, o declarante é induzido culposamente em erro e não tem qualquer culpa: merece protecção, de acordo com os princípios de responsabilidade por informações que vemos desabrochar actualmente na ordem jurídica. E esta protecção significa a possibilidade de se desvincular do contrato. Posto isto, parece mais lógico assumir que o legislador não previu a hipótese da indução negligente em erro, ou – ainda que tenha optado por não lhe dar relevância – não previu o desenvolvimento que a lei e as circunstâncias económico-sociais haviam de sofrer e que conduziriam a uma incongruência no sistema. Contudo, se estamos perante uma lacuna, se a lei não regulamenta a possibilidade de uma das partes induzir negligentemente a outra em erro, estando nós no âmbito da formação de uma vontade perturbada, este problema não deveria ser resolvido no âmbito do regime dos vícios da vontade? As consequências jurídicas de uma indução em erro não deverão ser as mesmas, quer nos encontremos perante uma indução dolosa ou perante uma indução negligente? Qual dos institutos jurídicos em causa é o mais adequado para regulamentar esta questão e de que forma18? E no caso da indução negligente em erro ter partido de 18 Nuno Manuel Pinto OLIVEIRA refere que os problemas de coordenação entre os dois regimes aqui em causa – responsabilidade pré-contratual, por um lado, e erro e dolo, por outro –, relativamente aos casos de indução negligente em erro, encontraram quatro vias de solução: numa primeira, nega-se a desvinculação do contrato ao induzido em erro; numa segunda, permite-se a desvinculação ou “destratação” com fundamento na figura da responsabilidade pré-contratual, embora se lhe recuse eficácia real (será, por exemplo, a posição de SINDE MONTEIRO que se poderá encontrar em Jorge Ferreira SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, cit., p. 378 e Eva Sónia MOREIRA DA SILVA, Da
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um terceiro e não do declaratário? Qual o seu regime? E, mesmo que cheguemos à conclusão de que esta figura, apesar de ainda não encontrar tratamento jurídico-legal, se trata de uma figura que cabe conceptualmente no âmbito dos vícios da vontade, atendendo às suas similitudes, como deve ser tratado o facto de, simultaneamente, se encontrar preenchida a hipótese legal do instituto da culpa in contrahendo? Haverá um concurso entre estas figuras? De que forma será este facto relevante em questões tão importantes como o prazo, ónus da prova, indemnização cumulativa com a desvinculação (indemnizatória ou por anulação), etc? Infelizmente, a resposta para todas estas questões já não poderá ser encontrada no âmbito deste trabalho. Tratá-las-emos noutra oportunidade.
responsabilidade pré-contratual por violação de deveres de informação, cit., pp. 227 a 237); numa terceira, permite-se a anulação dos contratos celebrados com indução negligente em erro através da aplicação do regime do dolo (tese defendida, nomeadamente, por Rodolfo SACCO em Rodolfo SACCO, «Il dolo», in Pietro Rescigno (dir.), Trattato di diritto privato, v. X, 2ª ed., Torino, UTET, 1995, pp. 197 a 207, em especial, 198 e 199); na quarta, propõe-se uma correcção judicial do regime do erro de forma a permitir a anulação dos contratos sempre que a vontade tenha sido viciada por um erro causado pelo declaratário (Ernst KRAMER, anotação ao § 119 do BGB, in Münchener Kommentar zum Bürgerliches Gesetzbuch, v. I (§§ 1-240), München, C. H. Beck, 1993, pp. 907 a 967, em especial, 945 a 957). Nuno Manuel Pinto OLIVEIRA, Direito das Obrigações, v. I, Conceito, estrutura e função das relações obigacionais – Elementos das relações obrigacionais – Direitos de crédito e direitos reais; Coimbra, Almedina, 2005, pp. 94 e 95. A primeira destas soluções será a apontada no caso de se considerar que não existe qualquer lacuna da lei e que, por isso mesmo, o seu silêncio significa que o legislador considerou a figura da indução negligente em erro irrelevante; as restantes soluções referem-se, a nosso ver, a tentativas de dar relevância a esta figura, ora recorrendo aos instrumentos jurídicos de que a ordem jurídica dispõe, ora sugerindo as necessárias alterações para colmatar esta lacuna.
O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS: AS DIRECTIVAS 2000/43/CE E 2004/113/CE Benedita MacCrorie
I. INTRODUÇÃO. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO DIREITO
CONTRATUAL EUROPEU Neste trabalho vamos concentrar-nos na análise de duas directivas europeias: a Directiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de Junho de 2000, que visa a aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre pessoas, sem distinção da origem racial ou étnica, e a Directiva 2004/113/CE do Conselho, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento. Ambas as directivas se aplicam a todas as pessoas que fornecem bens e prestam serviços “postos à disposição do público […] e que sejam oferecidos fora do quadro da vida privada e familiar” e, consequentemente, ambas contêm regras gerais sobre direito dos contratos. Nessa análise vamos constatar que as normas antidiscriminação no direito contratual europeu não são satisfatórias, tanto da perspectiva do princípio da autonomia, enquanto liberdade contratual, como da perspectiva do princípio da igualdade. Se avaliarmos as Directivas 2000/43/CE e 2004/113/CE da perspectiva do princípio da autonomia, enquanto 133
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liberdade contratual, torna-se evidente que estas vão longe demais, uma vez que invadem a esfera privada do indivíduo. Se, por outro lado, avaliarmos as duas directivas da perspectiva do princípio da igualdade, constatamos que as Directivas não vão suficientemente longe, uma vez que assentam numa distinção controversa, e até eventualmente inadequada, entre discriminação com base em características mutáveis e discriminação com base em características imutáveis. II. UMA AVALIAÇÃO DAS DIRECTIVAS 2000/43/CE E 2004/113/CE, NA PERSPECTIVA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA 1. A COLISÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA AUTONOMIA, ENQUANTO LIBERDADE CONTRATUAL, E DA IGUALDADE
A expansão das normas anti-discriminação do direito público para o direito privado e, dentro do direito privado, de normas específicas relativas ao direito laboral para as normas gerais relativas ao direito dos contratos, colide com a liberdade contratual: enquanto o princípio constitucional da autonomia autoriza o indivíduo a actuar de forma ilógica, inconsequente, incoerente,1 o mesmo já não se passa com o princípio constitucional da igualdade; conformar os princípios e normas de direito contratual de modo a impor um dever de actuar razoavelmente, i. e., de acordo com o princípio da igualdade, colidiria com os princípios constitucionais da autonomia e da liberdade contratual. Segundo Eduard Picker, o dever de igualdade e de igual tratamento de todos perturba os princípios e valores fundamentais do direito contratual, uma vez que restringe 1 Ver, por exemplo, na Alemanha, JÜRGEN SALZWEDEL, “Gleichheitsgrundsatz und Drittwirkung”, in KARL CARSTENS – HANS PETERS, Festschrift Hermann Jahrreiss, Carl Heymanns Verlag KG, 1964, p. 348; ANETTE GUCKELBERGER, “ Die Drittwirkung der Grundrechte”, in JuS, Heft 12, 2003, p. 1153; HANS-MARTIN PAWLOWSKY, Allgemeiner Teil des BGB, 7ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2003, p. 80; KARL LARENZ – MANFRED WOLF, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 9.ª Edição, Verlag C.H. Beck, München, 2004, p. 91; em Portugal, JOÃO CAUPERS, Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a Constituição, Lisboa, 1985, p. 176; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2001, p. 268 – 269; JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 1293-1294; MARIA LÚCIA AMARAL, “O princípio da igualdade na Constituição Portuguesa”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004, p. 57; e em Espanha, JESÚS ALFARO AGUILA-REAL, “Autonomia privada y derechos fundamentales”, in Anuário de Derecho Civil, Tomo XLVI, Fascículo I, 1993, p. 63.
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e quase totalmente suprime a autonomia privada no que se refere à autodeterminação no direito privado. Para o autor, a autonomia privada deve ser vista como um sinónimo jurídico de liberdade. E a liberdade é sempre a liberdade do indivíduo, de viver a sua vida e de a conduzir de acordo com as suas preferências e interesses pessoais e puramente subjectivos.2 A expansão do princípio da igualdade de modo a aplicar-se a todos os contratos ou até a todos os negócios jurídicos (Rechtsgeschäfte) resultaria numa restrição da liberdade.3 2. A PROTECÇÃO CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA, ENQUANTO LIBERDADE CONTRATUAL, EM PORTUGAL E NA ALEMANHA
a) Na maioria, se não na totalidade, dos Estados Membros, a liberdade contratual é um direito fundamental: assim, por exemplo, em Portugal e na Alemanha é defendido em geral, que a protecção constitucional da liberdade contratual resulta do direito ao livre desenvolvimento da personalidade [ver o número 1 do artigo 26º, da Constituição da República Portuguesa, e o número 1 do artigo 2º, da Constituição (Federal) Alemã.]4 A argumentação que conduz do direito ao livre desenvolvimento da personalidade ao direito geral de liberdade e, eventualmente, à liberdade contratual é a seguinte: o respeito pelo indivíduo enquanto pessoa requer o respeito pela sua autodeterminação individual. Se o indivíduo não tiver liberdade para conformar as suas relações jurídicas de acordo com a sua própria vontade, não haverá respeito pela autodeterminação individual. Se não houver respeito pela autodeterminação individual, não haverá Estado constitucional e democrático.5 Os princípios e regras que visam 2 EDUARD PICKER, “Anti-discrimination as a Program of Private Law?”, in German Law Journal , Vol. 4, Nr. 8, 2003, www.germanlawjournal.com, p. 771-779. 3 WERNER FLUME, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Das Rechtsgeschäft, 4.ª Edição, Springer, Berlin, 1992, p. 22. 4 Nesse sentido ver, por exemplo, PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in Portugal-Brasil ano 2000 – Tema Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 199-206; PAULO MOTA PINTO, “Autonomia privada e discriminação. Algumas notas”, cit., p. 333 - 342 ; WERNER FLUME, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Das Rechtsgeschäft, cit., p. 17-20; HANS UWE ERICHSEN, “Allgemeine Handlungsfreiheit”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF, Handbuch des Staatsrechts, Vol, VI, 2.ª Edição, C.F. Müller Verlag, Heidelberg, 2001, p. 1209 – 1210. 5 WERNER FLUME, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. Das Rechtsgeschäft, cit., p. 17-20.
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implementar as directivas comunitárias sobre o princípio da igualdade seriam, desse modo, controversos, uma vez que violam ou limitam a liberdade contratual e, consequentemente, o direito geral de liberdade. b) Ainda que esta abordagem seja bastante consensual, não é totalmente convincente. Seguindo a teoria de Alexy sobre os direitos fundamentais, podemos distinguir três tipos de posições jurídicas fundamentais (i) “direitos a algo” (Rechte auf etwas); (ii) “liberdades” (Freiheiten); (iii) “direitos de conformação” (Bewirkungsrechte) ou “competências” (Kompetenzen). A primeira categoria compreende posições jurídicas fundamentais que se caracterizam por terem como objecto uma acção ou um comportamento; a segunda categoria compreende posições jurídicas fundamentais que se caracterizam por terem como objecto uma “alternativa de acção” ou “alternativa de comportamento” – a alternativa de agir (componente positiva) ou de não agir (componente negativa) de determinada forma -; finalmente, os “direitos de conformação” ou “competências” caracterizam-se por concederem a possibilidade de o indivíduo praticar determinados actos jurídicos e, consequentemente, alterar, através desses actos, determinadas posições jurídicas (por exemplo, a competência para celebrar ou revogar contratos).6 O direito geral de liberdade deve ser incluído na segunda categoria, o direito específico à liberdade contratual deve ser incluído na terceira: enquanto a liberdade de fazer, ou deixar de fazer aquilo que se quer não pressupõe regras jurídicas, a liberdade contratual pressupõe. As acções de celebrar, conformar ou revogar contratos são acções institucionais: pressupõem, de modo a realizar-se, a existência de regras que, para essas acções, são regras constitutivas. Assim, quem interpreta o comportamento de duas pessoas como a celebração de um contrato, pressupõe regras que convertem as acções naturais ou sociais observáveis em acções jurídicas.7 A diferença de estrutura entre o direito geral de liberdade e o direito específico à liberdade contratual é 6 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt-am-Main, 1996, p. 171-224; sobre este assunto, ver também, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, O direito geral de personalidade e a “solução do dissentimento”, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 133-135. 7 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 215.
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incompatível com a tese que apresenta o direito específico à liberdade contratual como uma simples dimensão ou concretização do direito geral de liberdade. c) Apesar da diferença de estrutura entre os dois direitos, a autonomia do indivíduo de conformar as suas relações contratuais de acordo com a sua própria vontade é protegida, como um direito a competências jurídicas tanto (i) pelos princípios gerais de direito constitucional e de direito dos contratos como (ii) por regras específicas, tais como o direito de propriedade, a liberdade de escolha de profissão ou a garantia da iniciativa económica privada.8 Se o direito constitucional à liberdade contratual é um direito a competências, o que, de facto, se verifica, então a decisão sobre a constitucionalidade dos princípios e regras que implementam as directivas europeias deve ser tomada tendo em conta as seguintes considerações: em primeiro lugar, a liberdade contratual é um direito a procedimentos para a criação de direito; em segundo lugar, os princípios e regras relativos à formação de contratos são princípios e regras relativos aos procedimentos para a criação de direito no quadro de relações jurídicas privadas; em terceiro lugar, os princípios e regras para a criação de direito no quadro de relações jurídicas privadas devem ser constituídos de modo a que o resultado esteja, com suficiente probabilidade e em medida suficiente, de acordo com os direitos fundamentais.9 O legislador tem o dever de ponderar os princípios ou valores constitucionais da autonomia e da igualdade: ou o resultado das regras que visam implementar as Directivas europeias está, com suficiente probabilidade e em medida suficiente, de acordo com a autonomia individual, ou não está; no primeiro caso é compatível com as constituições que protegem a liberdade contratual; no segundo caso, não é. 3. A HARMONIZAÇÃO DA AUTONOMIA, ENQUANTO LIBERDADE CONTRATUAL, E DA IGUALDADE. A DISTINÇÃO ENTRE A ESFERA PÚBLICA E A ESFERA PRIVADA DO INDIVÍDUO 8 Ver, por exemplo, JOÃO CAUPERS, Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a Constituição, cit., p. 168-169; JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, Almedina, Coimbra, 1999, p. 147-148; GUILHERME MACHADO DRAY, O princípio da igualdade no Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 1999, p. 177-178. 9 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p.441.
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No processo de ponderar, ou harmonizar, a liberdade contratual e a igualdade, o legislador deverá distinguir entre a esfera pública e a esfera privada do indivíduo. A esfera pública compreende todas as actividades que envolvem um contacto ou relação permanentes com o público; a esfera privada compreende todas as actividades que não envolvem esse contacto ou relação permanentes.10 Se a actividade for de incluir na esfera privada do indivíduo, não há razão nenhuma para impor um dever de actuar em conformidade com o princípio da igualdade: numa sociedade liberal, o direito constitucional estabelece e fronteira entre a discriminação pública contra cidadãos, ou grupos de cidadãos, e invasões públicas da privacidade, com o intuito de impor perspectivas “correctas”.11 As Directivas 2000/43/CE e 2004/113/CE não estão completamente em conformidade com a distinção entre esfera pública e esfera privada: ambas se aplicam a todos os casos de acesso a bens e serviços e seu fornecimento, incluindo a habitação, sem ter em consideração se a relação do vendedor ou fornecedor com o público é ocasional ou permanente. A invasão da esfera privada do indivíduo é, pelo menos, controversa: assim, por exemplo, a lei alemã que visa transpor as directivas comunitárias sobre a igualdade, e, em particular, a sua Lei Geral sobre a Igualdade de Tratamento (Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz AGG) tentou restringir a aplicação das regras previstas nas directivas, de modo a evitar a inclusão de um dever de agir de
10 Sobre esta questão ver BENEDITA MAC CRORIE, A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, Almedina, Coimbra, 2005, p. 41-60. Em termos algo semelhantes, JESÚS ALFARO AGUILA-REAL, “Autonomia privada y derechos fundamentales”, in Anuário de Derecho Civil, Tomo XLVI, Fascículo I, 1993, p. 118, considera que uma das circunstâncias que favorece a afirmação de que uma negação de contratar é atentatória da dignidade humana consiste no carácter observável da discriminação. O direito à intimidade proporciona cobertura a actuações discriminatórias, cobertura que não se estende, logicamente, às actuações públicas; por outro lado, OLIVER HAHN, “Neue Entwicklungen im Diskriminierungsrecht”, http://www.jura.uni-tuebingen.de/~heinr/schuldrechtsreform downloads/antidiskriminierungsgesetz/diskriminierungsrechthahn.pdf (última visita a 20 de Setembro de 2006), p. 3 – 4, sugere que a proibição de discriminação apenas deve ser aplicável àqueles que actuam regularmente no mercado, com um fim empresarial. 11 Ver, por exemplo, FRANZ-JÜRGEN SÄCKER, “«Vernunft statt Freiheit!» - Die Tugendrepublik der neuen Jakobiner”, in Zeitschrift für Rechtspolitik, Heft 7, 2002, p. 286; EDUARD PICKER, “Anti-discrimination as a Program of Private Law?”, cit., p. 771-779; HEINRICH EWALD HÖRSTER, “A Directiva 2000/43/CE e os princípios do direito privado — Esboço de algumas reflexões”, cit., p. 167.
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acordo com o princípio da igualdade no direito dos contratos. E fêlo de três formas: Em primeiro lugar, no que se refere à discriminação com base no género, idade, deficiência, ideologia, religião ou orientação sexual, a proibição de tratamento discriminatório e prejudicial (Benachteiligung) limita-se a (i) negócios jurídicos nos quais a pessoa da outra parte não assume tipicamente relevância, ou negócios jurídicos nos quais a pessoa da outra parte assume tipicamente uma relevância secundária (nachrangige Bedeutung), devendo tais negócios ocorrer numa multiplicidade de casos e sob termos comparáveis e (ii) a contratos de seguro [§ 19, número 1, AGG]. Em segundo lugar, a proibição de tratamento discriminatório e prejudicial não se aplica a negócios jurídicos que pressuponham uma relação de especial proximidade ou confiança [§ 19, número 5, primeira parte, AGG]. Em terceiro lugar, no caso de contratos de arrendamento, a proibição de tratamento discriminatório e prejudicial não se aplica se o senhorio não tiver mais de cinquenta casas disponíveis para o público. [§ 19, número 5, terceira parte, AGG]. Ainda que de forma implícita, o legislador alemão adoptou a distinção entre esfera pública e esfera privada: assim, tanto o conceito de negócio jurídico no qual a pessoa da outra parte não é relevante ou detém uma relevância secundária, bem como a exigência de que os negócios em causa tenham de ocorrer numa multiplicidade de casos e sob termos comparáveis, excluem as actividades que não pressuponham uma relação permanente do vendedor ou fornecedor com o público; a regra que restringe a aplicação da proibição de tratamento discriminatório e prejudicial aos casos em que o senhorio tem mais de cinquenta casas disponíveis para o público exclui as actividades que pressupõem uma relação ocasional com o público. Arrendar ou não arrendar é uma decisão que cai no âmbito da esfera privada do senhorio e, consequentemente, ele deverá ser livre na escolha da pessoa do arrendatário.12 12 KARL-HEINZ LADEUR, “The German Proposal of an “Anti-Discrimination”–Law: Anticonstitutional and Anti-Common Sense. A Response”, in German Law Journal, Vol. 3, Nr. 5, 2002, www.germanlawjournal.com, p. 2, considera que é um elemento central da
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III. UMA AVALIAÇÃO DAS DIRECTIVAS 2000/43/CE E 2004/113/CE NA PERSPECTIVA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE 1. A “HIERARQUIA DA IGUALDADE” NO DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS
No direito europeu dos contratos existe uma “hierarquia da igualdade”: a discriminação em razão do sexo e da raça é proibida através de princípios gerais e regras, i. e., através dos princípios e regras que se aplicam a todas as relações contratuais; a discriminação em razão de convicções, ideologia, religião, idade, deficiência ou orientação sexual é apenas proibida através de regras e princípios específicos, ou seja, regras e princípios que se aplicam ao emprego e à actividade profissional - por exemplo, através dos princípios e regras da Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, e que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional. a) Num artigo recente, Jörg Neuner considera que uma proibição universal de discriminações seria incompatível com o direito comunitário, e defende, como necessária, uma “hierarquia de dimensões da igualdade”: a protecção contra a discriminação pelo direito só se justificaria quando existisse a ameaça de um perigo de exclusão considerável.13 O perigo de uma exclusão considerável apenas podia ser determinado pela acção combinada de três factores: primeiro, só as pessoas detentoras de uma característica que seja geralmente considerada critério adequado para discriminar deveriam ser protegidas; segundo, só deveriam liberdade contratual a possibilidade de o arrendatário arrendar o seu apartamento a pessoas que ele simplesmente goste, sem ter que ser capaz ou ser forçado a dar razões para a sua escolha. Em sentido contrário, ver NICOLA VENNEMANN, “The German Draft Legislation On the Prevention of Discrimination”, in German Law Journal, Vol. 3, Nr. 3, 2002, www.germanlawjournal.com, p. 4; quanto às dificuldades da aplicação do princípio da igualdade em matéria de arrendamento, referindo-se à directiva 2000/43/CE, é muito ilustrativo o exemplo apresentado por HEINRICH EWALD HÖRSTER, “ A Directiva 2000/43/CE e os princípios do Direito Privado – esboço de algumas reflexões”, cit., p. 170 – 171. 13 JÖRG NEUNER, “Protection against Discrimination in European Contract Law”, in European Review of Contract Law, Vol. 2, N.º 1, 2006, p. 45.
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ser protegidas aquelas pessoas que efectivamente necessitem dessa protecção; terceiro, mesmo que se preenchessem os dois primeiros requisitos, o legislador deveria ter em consideração o interesse que o agente poderá ter em estabelecer uma diferenciação. b) Tanto o legislador como o julgador, ao avaliar se a pessoa portadora de uma característica que é geralmente considerada critério adequado para discriminar necessita efectivamente de protecção, deveriam ter em consideração diferentes elementos: em particular, a resposta dependeria de saber se os aspectos da discriminação são imutáveis (por exemplo, raça, género ou deficiência), se as possibilidades de fugir à discriminação são inexistentes, devido à estrutura do mercado (i. e., um monopólio) e qual o grau de dependência da pessoa discriminada em relação a essa prestação (i.e., o bem é de importância vital ou é um bem de luxo?). Na avaliação do interesse que o agente poderá ter em estabelecer uma diferenciação, a distinção entre “informação pessoal” mutável e imutável deve ser considerada decisiva: características mutáveis, como a religião, poderão ser um critério legítimo de discriminação; características imutáveis, como a raça, já não. Jörg Neuner afirma que poderá haver uma justificação ética ou moral para “decisões preferenciais” no que se refere a características mutáveis, uma vez que o interesse de quem decide em estabelecer diferenciações em razão da ideologia ou religião poderá estar abrangido pelo princípio da autodeterminação individual: ao contrário do Estado ou governo, o cidadão individual não está obrigado a ser “neutro" no que se refere à religião ou a qualquer outra ideologia. Já não haveria qualquer justificação moral ou ética para decisões preferenciais no que se refere a características imutáveis, tais como a raça ou género: quanto a este tipo de características não seriam de admitir, normalmente, decisões preferenciais. As Directivas 2000/43/CE e 2004/113/CE proporcionariam uma protecção adequada contra a discriminação em razão de duas características imutáveis: raça e género. Jörg Neuner considera que isso não é suficiente, devendo esta protecção alargar-se às situações de discriminação em razão de deficiência: a interpretação sistemática, comparativa e ética de razões jurídicas apoiaria fortemente a protecção das pessoas portadoras de uma deficiência no direito contratual europeu,
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através de uma directiva específica.14 Na opinião do autor, a protecção contra a discriminação baseada em características imutáveis do indivíduo deve ser assegurada pela União Europeia; já a protecção contra a discriminação baseada em características mutáveis deverá estar apenas a cargo dos Estados Membros: “No que diz respeito a outros motivos para a discriminação, sobretudo por causa de atributos pessoais mutáveis, tais como a religião ou a ideologia, também poder[ia] ser necessária protecção através do direito privado. No entanto, esta protecção dever[ia] ser garantida de uma forma significativamente mais fraca e deverá ser deixada aos Estados Membros”.15 c) Esta argumentação seria confirmada pelas regras europeias sobre competências. A autoridade da União Europeia (EU) para a criação de regras anti-discriminação decorreria da relação teleológica e sistemática dos artigos 13º e 137º do Tratado que estabelece a Comunidade Europeia (TCE): o Artigo 13º permite que a Comunidade Europeia (CE) legisle nestas matérias “dentro dos limites das competências que este [Tratado] confere à Comunidade”; o Artigo 137º, número 1, alínea j), atribui à Comunidade o poder ou a competência para combater a exclusão social. Jörg Neuner considera que é precisamente este o objectivo principal de regulação no direito privado que sustenta princípios de não-discriminação, concluindo consequentemente que o artigo 13.º está teleológica e sistematicamente relacionado com o artigo 137.º, número 1, alínea j), do Tratado que institui a Comunidade Europeia. A competência da CE para emanar directivas antidiscriminação pode ser limitada, ou até restringida, por duas razões: primeiro, a autoridade da CE pode ser limitada pelos princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade [artigo 5º, números 2 e 3 TCE]; segundo, as competências da CE devem ser restringidas, uma vez que o princípio da limitação de poderes a áreas específicas poderia ser facilmente contornado através da 14 JÖRG NEUNER, “Protection against Discrimination in European Contract Law”, cit., p. 48; também considerando relevante esta distinção entre características mutáveis, ou alteráveis, e não mutáveis, ou inalteráveis, ver PAULO MOTA PINTO, “Autonomia privada e discriminação. Algumas notas”, cit., p. 349 – 352, embora em termos algo diferentes, uma vez que considera que há características mutáveis em relação às quais se deve reconhecer a não exigibilidade de modificação, como é o caso da orientação sexual e da religião. 15
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JÖRG NEUNER, “Protection against Discrimination in European Contract Law”, cit., p.
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cláusula geral de atribuição de poderes, nos termos do Artigo 13º e do Artigo 137º, número 1, alínea j), do TCE. Por essa razão, a União Europeia deveria limitar-se a emanar directivas que protegessem apenas contra a discriminação em razão da raça, género e deficiência.16 2. CRÍTICA À “HIERARQUIA DA IGUALDADE” NO DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS
Não podemos estar de acordo com esta argumentação. A “hierarquia da igualdade” no direito europeu dos contratos exige tanto uma justificação interna como uma justificação externa: em primeiro lugar, exige uma justificação interna, i.e., jurídica; em segundo lugar exige uma justificação externa, i.e., moral ou ética. a) Partindo de uma perspectiva ética ou moral, não conseguimos encontrar qualquer diferença entre discriminações baseadas em características imutáveis, como é o caso da raça, e discriminações baseadas em características mutáveis, como é o caso da religião: para um verdadeiro crente, a religião é uma decisão profunda à qual este não pode senão obedecer – não poderá alterar a sua religião sem estar a alterar ou repudiar os princípios e valores constitutivos da sua identidade; não poderá negar a sua religião sem estar a negar-se a si próprio. Não conseguimos encontrar qualquer razão para considerar moral ou eticamente justificáveis discriminações com base em características mutáveis, protegidas pelo princípio da autodeterminação, e considerar moral ou eticamente injustificáveis discriminações baseadas em características imutáveis. Se tal razão não existe, e consideramos que não existe, então não há qualquer justificação externa, ou seja, moral ou ética, para a distinção entre dois tipos de regras que visam proteger o indivíduo contra actos discriminatórios; não há qualquer razão ética ou moral para que as regras destinadas a prevenir discriminações com base em características mutáveis confiram uma protecção significativamente mais fraca; não há qualquer razão moral ou ética que justifique que as regras destinadas a
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JÖRG NEUNER, “Protection against Discrimination in European Contract Law”, cit., p.
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prevenir discriminações com base em características imutáveis confiram uma protecção significativamente mais forte. b) Para além disso, a discriminação baseada em características mutáveis, como é o caso da ideologia, religião, ou orientação sexual, pode incitar as pessoas a esconder a sua identidade; pode conduzir ao “terror do silêncio” e pode implicar uma certa tendência para assimilar os indivíduos, em vez de aceitar as suas diferenças.17 A lei consideraria indivíduos com uma “diferente” ideologia, com uma “diferente” religião, com uma “diferente” orientação sexual tão diferentes do resto da sociedade, que a sua mera presença – ao contrário da de qualquer outro indivíduo – deveria ser submetida a um tratamento jurídico especial. De facto, quem expressasse livremente a sua ideologia, religião ou orientação sexual ficaria irreversivelmente “marcado”: essa ”marca”, ainda que invisível ou oculta, iria comunicar uma mensagem que, por sua vez, iria permitir a exclusão dessa pessoa onde quer que ela fosse.18 c) Partindo agora de uma perspectiva jurídica, também não encontramos qualquer diferença entre os dois tipos de características geralmente consideradas como um critério válido para discriminação: o artigo 13º do TCE autoriza o Conselho a adoptar as medidas adequadas no combate à discriminação tanto com base em características imutáveis (tais como a raça, género, idade e deficiência) como com base em características mutáveis (como a religião); o artigo 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assim como o artigo 21º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia vão ainda mais longe, na medida em que alargam a protecção contra a discriminação a outras características imutáveis, como é o caso da “origem social”, “características genéticas”, “pertença a uma minoria nacional”, ou “nascimento”, e a outras características mutáveis, como é o caso da “língua” e “opiniões políticas ou outras”. d) Finalmente, a UE tem o dever de respeitar os direitos fundamentais “tal como resultam das tradições constitucionais 17 DAGMAR SCHIEK, “A New Framework on Equal Treatment of Persons in EC Law”, in European Law Journal, Vol. 8, Nr. 2, 2002, p. 308. 18 Ver o voto de vencido do Juiz Stevens, no caso Boy Scouts of America vs. Dale, 530 US 640, 2000.
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comuns aos Estados Membros” (Artigo 6º do Tratado da União Europeia). A distinção entre características mutáveis e imutáveis é incompatível com as tradições constitucionais dos Estados Membros. Nas palavras do relatório sobre o projecto de lei alemã que visa transpor as directivas comunitárias sobre a igualdade, "a decisão de limitar a protecção conferida pelo direito civil a tratamentos discriminatórios e prejudiciais em razão da origem racial ou étnica seria problemática, uma vez que ficariam fora da regulação legal os tratamentos discriminatórios e prejudiciais em razão do género, ideologia ou religião, idade ou orientação sexual, ou em razão de deficiência”.19 O legislador tem o dever de proteger os indivíduos contra a discriminação [artigo 3º da Constituição Federal Alemã].20 Se a regulação civil restringisse a sua protecção a tratamentos discriminatórios e prejudiciais em razão do género ou da raça, seria inconstitucional pelo menos por duas razões: o legislador estaria a infringir o seu dever de proteger os indivíduos contra discriminações em razão da ideologia, religião, idade, deficiência ou orientação sexual, e estaria também a infringir o seu dever de tratar igualmente os indivíduos, uma vez que não haveria qualquer razão para distinguir consoante o motivo para o tratamento discriminatório ou prejudicial é uma característica mutável ou imutável. IV. CONCLUSÃO
Na conclusão do seu livro sobre o direito europeu dirigido a evitar a discriminação, Mark Bell considera a “hierarquia da igualdade” dentro do direito da União Europeia o problema central com que a legislação futura se terá de confrontar, uma vez que existe uma contradição inerente num sistema de direito antidiscriminação que discrimina no grau de protecção jurídica 19
BT Drucksache 16/1780, 8 June 2006, p. 26.
Sobre a construção dos direitos fundamentais enquanto deveres de protecção, ver CLAUS-WILHELM CANARIS, Direitos fundamentais e direito privado, Almedina, Coimbra, 2003; PETER UNRUH, Zur Dogmatik der grundrechtlichen Schutzpflichten, Duncker und Humblot, Berlin, 1996; JOST PIETZCKER, “Drittwirkung – Schutzpflicht – Eingriff”, in Das Akzeptierte Grundgesetz, Festschrift für Günter Dürig zum 70. Geburtstag, Verlag C. H. Beck, München, 1990; também JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF, Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Band V, 2ª Edição, C. F. Müller Juristischer Verlag, Heidelberg, 2000. . 20
146
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
conferido.21 Esta perspectiva afigura-se-nos incompleta, uma vez que há pelo menos dois problemas fundamentais complementares na relação a estabelecer entre direito anti-discriminação e direito dos contratos. Em primeiro lugar, o direito europeu dos contratos deve conformar-se com o princípio da liberdade contratual, fazendo a distinção entre esfera pública e esfera privada do indivíduo: as regras anti-discriminação deverão aplicar-se exclusivamente na esfera pública, não deverão invadir a esfera privada. Em segundo lugar, o direito europeu dos contratos deve expandir-se, de modo a abranger a discriminação com base em características alteráveis, tais como a religião e a ideologia. Na ausência de regras específicas, a protecção jurídica do indivíduo contra discriminações com base na ideologia, religião ou orientação sexual deve retirar-se do princípio geral da boa-fé: se a actividade do vendedor ou fornecedor envolver uma relação permanente com o público, ele tem o dever de agir de acordo com o princípio da boa fé, isto é, com razoabilidade. O dever de actuar com razoabilidade deve ser construído de modo a abranger um dever de agir de acordo com o princípio da igualdade.22 O recurso aos princípios gerais significa, porém, que as directivas europeias são ainda insuficientes para conferir uma protecção abrangente contra todas as formas de discriminação contrária à justiça e ao direito.
21 Mark Bell, Anti-Discrimination Law and the European Union, cit., p. 211; também criticando as Directivas por considerar que estas implicam uma “hierarquia da igualdade”, na qual determinadas formas de discriminação são mais iguais do que outras, ver DAGMAR SCHIEK, “A New Framework on Equal Treatment of Persons in EC Law”, cit., p. 300. 22 Sobre a relação entre o princípio da boa fé e o princípio da igualdade, ver HUGH COLLINS, “ European Social Policy and Contract Law”, in European Review of Contract Law, Vol. 1, Nr. 1, 2005, p. 125-128; EMILY M. S. HOUH, “Critical Interventions: Toward an Expansive Equality Approach to the Implied Doctrine of Good Faith in Contract Law" Cornell Law Review, 2003, p. 1025; “The Doctrine of Good Faith in Contract Law: A (Nearly) Empty Vessel” Utah Law Review, Vol. 1, p. 55-56; HILA KEREN, “We Insist! Freedom now: Does Contract Doctrine Have Anything Constitutional to say?” Center for the Study of Law and Society Faculty Working Papers, Paper 28, Year 2005, http://repositories.cdlib.org/csls/fwp/28 (última visita a 20 de Setembro de 2006), p. 59 – 66.
A PROTECÇÃO CONTRA DISCRIMINAÇÕES NO DIREITO PRIVADO — A ESCOLHA DAS CARACTERÍSTICAS PROTEGIDAS Gisela Kern Inquirido sobre a sua raça respondeu: - A minha raça sou eu, João Passarinheiro. Convidado a explicar-se, acrescentou: - Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, Senhor polícia. (Mia Couto, Cada Homem é uma raça).
I. INTRODUÇÃO
As proibições de discriminação no direito privado colocam múltiplos problemas ao legislador e ao jurista e obrigam-nos à tomada de decisões de peso. Uma das questões fundamentais nesta matéria é a de saber quais as características que devem ser incluídas no âmbito de protecção destas proibições. Este artigo trata precisamente dessa questão. Em primeiro lugar, faremos o enquadramento social e económico das proibições de discriminação nas relações entre privados, em especial, através da análise do princípio da autonomia privada. Partindo da premissa da liberdade contratual nas suas dimensões individual e social, é depois aprofundada a questão primordial das proibições de discriminação pessoal. Ao contrário de McCrorie e Pinto Oliveira1, procura-se analisar metodologicamente pontos de referência no 1 McCrorie – Pinto Oliveira, O princípio da igualdade no direito europeu dos contratos: as Directivas 2000/43/CE e 2004/113/CE, neste livro.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
direito vigente e recusa-se o recurso a valorações morais. Para aferir quais as características de discriminação essencialmente iguais no sentido do princípio geral de igualdade, serão examinados os parâmetros da necessidade de protecção do discriminado e o interesse discriminador daquele que discrimina (desta forma sobressai o já mencionado princípio da autonomia privada). Na conclusão, verifica-se que as características “deficiência”, “raça” e “sexo” deveriam ser protegidas de igual forma, particularmente no direito alemão, já que a lei fundamental protege os direitos dos deficientes de forma especial. Por outro lado, é recusada a aceitação de outras características de discriminação no direito civil geral, já que isso teria como consequência não só a limitação da autonomia privada, mas também a transferência do discurso de valores sociais para as salas de audiência, o que não é desejável numa sociedade pluralista. II. AS PROIBIÇÕES DE DISCRIMINAÇÃO NO DIREITO CIVIL – O
ENQUADRAMENTO SOCIAL E ECONÓMICO As proibições de discriminação nas relações que se estabelecem entre privados têm como problema-base a questão de saber até que ponto o mercado, como meio para o fornecimento de bens, necessita de e permite correcções. A livre economia de mercado, como sistema económico de todos os Estados europeus, tem como fundamento e pressuposto que os contratos entre privados possam ser celebrados e conformados livremente. A primazia da autonomia privada e da liberdade contratual é pressuposto essencial do sistema de economia de mercado. É nesta opção fundamental “pela” autonomia privada que reside a base da sociedade jurídico-privada, o que significa que é o indivíduo e não o Estado quem determina livremente os seus objectivos e é responsável pela sua realização2. A autonomia privada protege a acção auto-reguladora e auto-responsável. Nesta cabe, em princípio, também a decisão sobre a celebração e o conteúdo dos contratos, podendo ser tidas em consideração as características pessoais específicas do co-
2
Riesenhuber, System und Grenzen des Europäischen Vertragsrechts, p. 584 ss.
A PROTECÇÃO CONTRA AS DISCRIMINAÇÕES
149
contratante3. Os motivos que estão na base de discriminações são vários, mas, de uma forma geral, podem ser subdivididos em três grupos4. Estes motivos residem essencialmente em preconceitos em relação a características negativas, que, por sua vez, estão relacionadas com características pessoais. É, por exemplo, o caso da ideia de que as pessoas provenientes de uma determinada raça são inquilinos particularmente barulhentos e perturbam o convívio pacífico entre vizinhos. Para além disso, muitas vezes as reflexões paternalistas, que consideram os portadores de características específicas como devendo ser protegidos, têm como consequência a sua exclusão de determinados contratos, como será o caso do receado comportamento de rejeição por parte de clientes para com um empregado homossexual. Finalmente, também motivos económicos, como por exemplo a ideia de que as pessoas deficientes, devido a um risco acrescido de pobreza, terão uma probabilidade maior de se tornarem incapazes de pagar em relação a outros co-contratantes, estão por detrás de discriminações. Para além disso, a autonomia privada não só dá ao indivíduo a possibilidade já descrita de tomar uma decisão livre sobre celebração, parceiro e conteúdo do contrato e, automaticamente, de discriminar, mas tem também uma dimensão sócio-económica, já que ela é o fundamento de um ordenamento económico baseado na liberdade e que se apoia na concorrência e pluralidade. Oferta e procura são os parâmetros para toda a celebração de um contrato e isto pressupõe livre arbítrio e livre exercício da vontade do indivíduo. A possibilidade de discriminação e a existência de posições de desvantagem de participantes mais fracos no mercado fazem parte deste sistema e proibi-las em geral e indiferenciadamente iria impedir o livre mercado e a livre concorrência e, além do mais, estaria em contradição com todo o sistema privado e a sua conformação constitucional5.
3 Neuner, Vertragsfreiheit und Gleichbehandlungsgrundsatz, in: Leible/Schlachter (Hrsg.), Diskriminierungsschutz durch Privatrecht, p. 74 (81). 4 Segundo Thüsing, Gedanken zur Effizienz arbeitsrechtlicher Diskriminierungsverbote, RdA 2003, 257 (258). 5 Neuner, Diskriminierungsschutz durch Privatrecht, JZ 2003, 57 (59).
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
As proibições de discriminação no direito civil são, porém, só aparentemente um paradoxo. Se observarmos a dimensão sócio-económica da liberdade contratual, que vai para além da protecção da liberdade individual, a contradição dissipa-se. Há, frequentemente, discriminações no direito contratual que implicam uma lesão tal na liberdade contratual da pessoa afectada, que esta deixa de poder fazer parte do tráfego jurídicoprivado6. A compreensão da autonomia privada como fundamento da liberdade negocial de direito privado não pode, porém, permitir que a auto-regulação do indivíduo leve à hetero-regulação do outro7, mas pressupõe um equilíbrio do poder económico e intelectual das partes8. Isto ganha um peso acrescido devido ao facto de a recusa de celebração de um contrato com portadores de uma característica específica, pensada como regra hipotética, não só tirar ao indivíduo a sua real liberdade contratual, mas também levar à exclusão total dos negócios de direito privado de todas as pessoas com essa característica9. A limitação da autonomia privada através da proibição de discriminações, justificada pelo estado social e que intervém de forma a fazer face ao desequilíbrio existente, é imanente ao princípio da liberdade contratual10. Nesta situação, a protecção contra a discriminação tem como ponto de partida um princípio de tratamento igualitário, já que se trata de proteger grupos de população da exclusão económica11. A protecção contra a discriminação no direito civil adquire particular urgência quando pela discriminação se atenta contra a dignidade humana. A dignidade humana é ferida, por exemplo, quando a celebração de um contrato é recusada devido à origem étnica do outro, porque com isso se nega à pessoa afectada o seu estatuto de próximo12. Trata-se aqui do conceito individualista da 6 Schiek in: Rust u.a. (Hrsg.), Die Gleichbehandlungsrichtlinien in der EU und ihre Umsetzung in Deutschland, p. 129 (138 ss).Acerca da diferenciação de elementos jurídicos e factuais no direito contratual: Canaris, Wandlungen des Schuldvertragsrechts – Tendenzen zu seiner „Materialisierung“, AcP 200 (2000), 274 (277 ss). 7 BVerfG NJW 90, 1470; 94, 38. 8
Habersack, Richtigkeitsgewähr notariell beurkundeter Verträge, AcP 189 (1989), 407
9
Neuner, Die Stellung Körperbehinderter im Privatrecht, NJW 2000, 1822 (1824).
ss.
10 Riesenhuber, 11 12
nota de rodapé 2, p. 354.
Schiek, Differenzierte Gerechtigkeit, p. 39. Neuner, NJW 2000, 1822 (1824).
A PROTECÇÃO CONTRA AS DISCRIMINAÇÕES
151
protecção contra a discriminação tendo como ponto de partida a protecção da dignidade do indivíduo13. Nesta constelação adquire importância não só o dever de protecção estatal, mas também a ligação directa do indivíduo ao respeito pela dignidade humana. Quando discutimos a criação de outras proibições contra a discriminação no direito privado devemos observar este contexto socio-económico da protecção contra a discriminação no direito civil e a importância da autonomia privada. Perante o dever de transposição de directivas europeias sobre a protecção contra a discriminação no direito privado, decorrente dos artigos 10.º e 249.º do TCE, resulta concretamente, entre outras, a questão de saber quais as características que devem ser abrangidas pela protecção contra a discriminação. III. PROBLEMA: O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DAS PROIBIÇÕES DE
DISCRIMINAÇÃO PESSOAL
As directivas privilegiam as características “raça” e “sexo” em relação às características “idade”, “deficiência”, “orientação sexual” e “religião” ou “ideologia”. Um ponto problemático essencial na discussão alemã, em especial contra a proposta de lei apresentada em 2001, foi que o âmbito de protecção desta proibição, excluindo o direito do trabalho, englobava mais características de discriminação do que aquelas que as directrizes europeias exigiam14. Também a proposta de 2004 e a Lei Geral sobre Igualdade de Tratamento (AGG – Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz) prevêem uma protecção ampla contra a discriminação no direito civil geral. Apesar de o alargamento do campo de protecção ir para além dos pressupostos do direito europeu, entendeu-se que, para uma eficaz aplicação das directivas e para apoiar o respectivo propósito, era favorável ou conveniente a inclusão de outras características específicas, em especial a “deficiência”. Consequentemente, coloca-se (para já) a questão de saber se
13
Schiek, nota de rodapé 11, p. 37.
Picker, Antidiskriminierungsgesetz - Der Anfang vom Ende der Privatautonomie?, JZ 2002, 880; Picker, Antidiskriminierung als Zivilrechtsprogramm?, JZ 2003, 540; Säcker, „Vernunft statt Freiheit” – Die Tugendrepublik der neuen Jakobiner, ZRP 2002, 286 14
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
determinadas características são mais dignas de protecção do que aquelas protegidas pelo direito europeu. 1. OS DIFERENTES ÂMBITOS DIREITO CIVIL
DE
APLICAÇÃO
DAS
DIRECTIVAS
NO
A Directiva 2000/43/CE contém o mesmo âmbito de aplicação no direito civil que a Directiva 2000/78/CE, indo, no entanto, ainda mais além. Assim, as alíneas a) – d) do artigo 3º, n.º 1, da Directiva 2000/43/CE e as alíneas a) –d) do artigo 3º, n.º 1, da Directiva 2000/78/CE são textualmente iguais e dizem respeito aos direitos dos trabalhadores e à actividade profissional independente Também as alíneas a) – d) do artigo 3º, n.º1, da Directiva 2002/73/CE são textualmente iguais. Por outro lado, a Directiva 2000/43/CE vai mais longe e protege contra discriminações no acesso a e fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público, nos termos da alínea h) do n.º 1 do artigo 3º. Paralelamente, a Directiva 2004/113/CE, no n.º 1 do artigo 3º, dá orientações para a protecção contra discriminações no acesso a e fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público, independentemente da pessoa em causa. A Directiva 2000/43/CE refere-se às características “raça” e “origem étnica” e a Directiva 2000/78/CE à “idade”, “deficiência”, “orientação sexual” e “religião” ou “ideologia”. As Directivas 2002/73/CE e 2004/113/CE protegem contra discriminações em razão do “sexo”. Existe, então, um desequilíbrio entre a protecção contra a discriminação com base nas características “raça”, “origem étnica” e “sexo” e a protecção contra a discriminação com base nas características “religião” ou “ideologia”, “deficiência”, “idade” e “orientação sexual”. As primeiras são também protegidas no âmbito do acesso a e fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público, enquanto que as últimas não usufruem de protecção contra a discriminação neste âmbito15.
15 Brown, The Race Directive: Towards Equality for All the People of Europe?, Yearbook of European Law 2002 (Vol. 21), p. 195 (222 s.) consegue chegar ao cerne do problema : „Racism: first among others?”.
A PROTECÇÃO CONTRA AS DISCRIMINAÇÕES
153
2. PROBLEMÁTICA: PROPOSTA DE EQUIPARAÇÃO Face a esta disparidade na protecção contra a discriminação decorrente das directivas põe-se desde logo a questão de saber se os legisladores nacionais deveriam aceitar estas desigualdades ou se é conveniente um nível de protecção uniforme para todas as características também no que se refere ao acesso a e o fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público. As propostas de transposição apresentadas até agora na Alemanha, bem como a Lei Geral sobre Igualdade de Tratamento (AGG) – com a excepção da característica “ideologia” – prevêem esse alargamento, mas foram também criticadas por causa disso16. Os pontos de referência para a resolução do problema são: o artigo 13º TCE como norma de competência para a elaboração das directivas, as disposições de direito internacional e – para o direito alemão – as directrizes da Constituição, isto é, os n.º 2 e 3 do artigo 3º, da Constituição Alemã (GG). Para além disso, o princípio de igualdade de tratamento, que exige que características essencialmente iguais têm de ser protegidas de forma igual, implica que se torne necessário estabelecer critérios. Estes critérios são a necessidade de protecção dos discriminados e o interesse de diferenciação dos que discriminam. Neste campo, não nos parece que reflexões morais sejam um critério de delimitação útil17. O direito e a moral são sistemas normativos complementares. Segundo Kant, as acções são determinadas juridicamente quando resultam das leis e só são determinadas moralmente as que seguem a ideia de dever18. O direito pode coincidir com a moral, assim, por exemplo, na proibição do homicídio, mas pode também ser moralmente completamente neutro, como a obrigação de conduzir à direita ou à esquerda em diferentes países. Por fim, o direito e a moral podem também afastar-se, como é o caso do dever de não mentir, que só está determinado moralmente, ou no campo das leis 16
„deutscher Übereifer“: Picker, JZ 2003, 540 (542).
17
A.A.: Mc Crorie-Pinto Oliveira, neste livro. Kant, Metaphysik der Sitten.
18
154
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
positivas relativas ao aborto ou à eutanásia, que se opõem a algumas noções morais individuais. Por princípio, a moral não está acima do direito. Só quando a entendemos como direito supra-positivo é que se poderá aferir da validade do direito positivo tendo como base estas normas, o que é o caso extremo de Radbruch. O princípio geral de igualdade corresponde também à moral social geral. No entanto, parece-nos que a afirmação de que segundo essa moral social geral se deve proteger da mesma forma um “homossexual” e uma pessoa “deficiente” carece de fundamentação. Por outro lado, esta afirmação implica que a Lei Fundamental Alemã, que só protege a orientação sexual através de um princípio geral de igualdade de tratamento, e também a Constituição da República Portuguesa (CRP) que confere uma protecção mais “fraca” aos direitos dos deficientes, não estejam em conformidade com a moral social vigente. Mas não nos parece que assim seja. Deve então analisar-se quais os pontos de referência jurídicos existentes. O facto de partirmos do texto da norma, não implica que o façamos com uma atitude formal-positivista ou autoritária. A vinculação ao direito criado pelo legislador democraticamente legitimado, é uma conquista do estado de direito democrático que não se deve descurar. Na questão decisiva de saber o que é que se deve tratar como “igual”, estão, evidentemente, valores e valorações em jogo. Onde não são reproduzidas as valorações do legislador democraticamente legitimado, a argumentação tem de ser clara. Afirmações éticomorais apodícticas não podem substituir esta argumentação. 2.1.
DISPOSIÇÕES DO DIREITO EUROPEU
O artigo 13º TCE atribui a todas as características enumeradas valor equivalente. O n.º 1 do artigo 13º TCE é um fundamento de competência (“pode tomar as medidas”)19, o que significa sobretudo que esta disposição não é directamente
19 Os conceitos de „Kompetenzgrundlage“ e de „Ermächtigungsgrundlage“ são usados como sinónimos.
A PROTECÇÃO CONTRA AS DISCRIMINAÇÕES
155
aplicável20.21 Isto ao contrário do n.º 1 do artigo 12º TCE, que se opõe a discriminações com base na nacionalidade no âmbito de aplicação do Tratado e que é directamente aplicável (“é proibida”), vinculando desse modo as instituições comunitárias e os órgãos legislativos, jurisdicionais e administrativos dos Estados Membros, na medida em que o direito comunitário seja aplicável22. Por outro lado, o artigo 13º TCE, somente autoriza medidas de direito comunitário. Assim, no n.º 1 do artigo 13º TCE não está consagrado um direito fundamental comunitário de igualdade de tratamento directamente aplicável. A opinião contrária não convence. Tentase sustentá-la com o argumento de que a consagração de um fundamento de competência para medidas de combate à discriminação pressuporia a existência de uma proibição de discriminação23 directamente aplicável, pelo menos, em relação a medidas comunitárias. Não parece, no entanto, que essa conclusão se retire do artigo 13º TCE, uma vez que este não especifica um âmbito de aplicação para o princípio de igualdade de tratamento, mas prevê a sua determinação através das medidas individuais respectivas. Contra isso está também o facto de a aplicação directa esvaziar a parte processual do n.º 1 do artigo 13º TCE, assim como a exigência de unanimidade24. Pode, sem dúvida, argumentar-se em geral que a acção autorizada tem que ter um fundamento legítimo, ou seja, que por detrás da autorização para o combate à discriminação deve existir uma proibição de discriminação. Porém daí não resulta que esta seja directamente aplicável.
20 Eppiney in: Callies/Ruffert, EUV/EGV, Art. 13, Rn. 1; Hölscheidt in: Meyer, GRCharta, Art. 21, Rn. 3; Dieball, Gleichstellung der Geschlechter im Erwerbsleben – neue Vorgaben des EG-Vertrages, EuR 2000, 274 (278); Hilf/Pache, Der Vertrag von Amsterdam, NJW 1998, 705 (706); Jochum, Der neue Art. 13 EGV oder „political correctness“ auf europäisch?, ZRP 1999, 279 (280); Barnard, Article 13: Through the Looking Glass of Union Citizenship, in: O’Keeffee/Twomey, Legal Issues of the Amsterdam Treaty, p. 375 (382); Bell, Anti-discrimination law and the European Union, p. 63 ss, p. 125; a.A.: Cirkel, Gleichheitsrechte im Gemeinschaftsrecht, NJW 1998, 3332 (Direkte Anwendbarkeit i.V.m. Art. 10). 21 Neste contexto, „aplicabilidade directa“ significa que, ao nível de direito europeu, a respectiva disposição tenha, sem outro acto de aplicação, efeito jurídico vinculativo. 22
Rossi, Das Diskriminierungsverbot nach Art. 12 EGV, EuR 2000, 197.
23
Segundo Holoubek in: Schwarze, EU-Kommentar, Art. 13, Rn. 9. Eppiney in: Callies/Ruffert, EUV/EGV, Art. 13, Rn. 1.
24
156
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
Do artigo 13º TCE não se pode, em geral, retirar um dever de acção, nem tão pouco uma obrigação de alargar a protecção privilegiada atribuída às características “raça” e “sexo” pelas respectivas directivas, também às características “religião” ou “ideologia”, “idade”, “orientação sexual” e “deficiência”. Que a discriminação com base no “sexo” e na “raça”, segundo as Directivas 2004/113/CE e 2000/43/CE, diferentemente da discriminação com base na “religião” ou “ideologia”, “idade”, “orientação sexual” ou “deficiência” seja também proibida fora da actividade profissional, deriva de razões sobretudo políticas. A exigência de unanimidade, nos termos do Artigo 13º TCE, torna improvável a consagração de uma protecção equivalente, em especial para as características “religião” ou “orientação sexual”25. O consenso a que se chegou para a aprovação das Directivas 2004/73/CE e 2000/43/CE, resultou também do facto de a luta contra a discriminação em razão do “sexo” e da “raça” ter tradição na Europa: a proposta de igualdade de salários para as mulheres ficou, desde o início, expressa no TCE e a pressão da segunda Guerra Mundial e do ódio existente entre os povos da Europa deram o ímpeto para o surgimento da “Montanunion” (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço) no ano de 1951. A urgência da luta contra a discriminação racial e contra tratamentos discriminatórios com base no “sexo” reflectese também a nível internacional na Convenção Internacional Para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher26. 2.2.
DISPOSIÇÕES DE DIREITO INTERNACIONAL
Para além das características “raça” e “sexo”, o direito internacional protege também a característica “deficiência”. A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou já várias resoluções para a protecção de pessoas deficientes27 e está a ser elaborada 25 Brown, Yearbook of European Law 2002 (Vol. 21), S. 195 (p. 222 s). Cirkel, NJW 1998, 3332 (3333) receava, injustificadamente, que a exigência de unanimidade impediria realmente todas as medidas de combate à discriminação, nos termos do artigo 13.º T CE. 26 Código Civil Alemão l. 1985 II p. 648. 27 GA Res. 2856/26, 20.12.1971; GA Res. 3447/15, 9.12.1975; GA Res. 46/119, 17.12.1991; GA Res. 48/96, 20.12.1993.
A PROTECÇÃO CONTRA AS DISCRIMINAÇÕES
157
uma Convenção nesta matéria28. O indivíduo não pode, no entanto, recorrer a estas disposições do direito internacional. As resoluções são manifestações de opinião da Assembleia Geral, redigidas sob a forma de deliberação e as Convenções só vinculam os estados signatários entre si, pelo que enquanto não houver uma transposição legislativa não existe direito estadual ao qual o indivíduo possa recorrer29. No entanto, da obrigação prevista no projecto de Convenção de proibir, também, as discriminações em razão da deficiência nas relações jurídicas privadas30, decorre, de facto, uma obrigação internacional dos estados signatários. 2.3.
DISPOSIÇÕES DA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ
Para além do princípio geral de igualdade previsto no n.º 1 do artigo 3º, a Lei Fundamental alemã indica ainda proibições de discriminação específicas na 1.ª parte do n.º 2, e no n.º 3 do artigo 3º, relativas às características “sexo”, “descendência”, “raça”, “língua”, “pátria”, “origem”, “crença” e “convicções religiosas ou políticas”. Por fim, a Lei Fundamental inclui ainda uma regulamentação autónoma relativa à proibição de discriminações com base no “sexo” na 1.ª parte do n.º 2 do artigo 3º, tal como estabelece, na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 3º, uma tarefa estatal específica destinada ao incentivo da real implementação da igualdade de direitos e da eliminação das desvantagens existentes31. Separadamente disto, a 2.ª parte do n.º 3 do artigo 3º da Constituição Federal Alemã estabelece ainda uma proibição unilateral de tratamento discriminatório de pessoas “deficientes”. Através deste preceito, que se limita a estabelecer uma proibição de tratamento prejudicial e não uma proibição de situações de privilégio podem, pelo menos, justificar-se medidas específicas incidentais para o apoio a pessoas com deficiência32.
28 Cf. o actual relatório da comissão especial da assembleia geral (GA, AC.265/2006/2, 13.02.06). 29 Verdross/Simma, Universelles Völkerrecht. 1984, p. 539 s. 30
Artigo 4º, n.º 1, alínea e) do esboço.
31 Acerca
da relação entre o artigo 3º, n.º 2, 1.ª parte da Constituição Federal Alemã e do artigo 3º, n.º 3, 1.ª parte da Constituição Federal Alemã, cf.: Suelmann, Die Horizontalwirkung des Art. 3 II GG, p. 15 s. 32 Scholz in: Maunz/Dürig, GG, Art. 13 Abs. 3 Rn. 173 s.; Neuner, Die Stellung Körperbehinderter im Privatrecht, NJW 2000, 1822.
158
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
A Constituição atribui, então, às características “deficiência” e “sexo” um papel mais relevante. A característica “sexo” tem esta posição de destaque também no direito europeu por causa da forte protecção de que goza nas respectivas directivas. Mas da 2.ª parte do n.º 3 do artigo 3º da Constituição Federal Alemã, por si só, não resulta nenhum dever de, na transposição das Directivas 2000/43/CE, 2002/78/CE e 2004/73/CE, atribuir a mesma protecção privilegiada à característica “deficiência” que estas exigem para as características “raça” e “sexo”. A proibição de tratamento prejudicial impõe apenas que ninguém possa ser discriminado devido à sua deficiência. Esse já não será o caso quando se estabelecem proibições contra discriminações a favor de portadores de outras características de discriminação. Tais diferenciações são admissíveis do ponto de vista da Constituição33. Uma tal regulamentação, que estaria dependente de um consenso político, poderia justificar-se a partir da 2.ª parte do n.º 2 do artigo 3ºda Constituição Federal Alemã, pois o n.º 3 do artigo 3º da Constituição Federal Alemã inclui ainda um mandato estadual de reforço da posição dos deficientes no direito e na sociedade34. Este preceito constitui também, deste modo, o fundamento constitucional para normas que estabelecem proibições contra a discriminação em razão da deficiência entre privados35. 2.4.
O DIREITO CIVIL
Tais normas, que visam proteger pessoas deficientes de discriminações por parte de privados, faziam já parte do sistema de direito privado antes da transposição das directivas antidiscriminação. Conforme a 2.ª parte do n.º 2 do § 305 do Código Civil Alemão, o utilizador de condições gerais de venda tem de ter em consideração as deficiências físicas visíveis da outra parte 33 Dürig in: Maunz/Dürig, GG, Art. 3 Abs. 1, Rn. 174; Rüfner in: Dolzer/Vogel/Graßhof, Bonner Kommentar zum GG, Art. 3 Abs. 3 und 2, Rn. 586 ss. 34 Heun in: Dreier, GG, Art. 3 Abs. 3, Rn. 134; Rüfner in: Dolzer/Vogel/Graßhof, Bonner Kommentar zum GG, Art. 3 Abs. 3 und 2, Rn. 884 s. 35 Starck in: von Mangoldt/Klein/Starck, GG, Art. 3 Abs. 3, Rn. 388.
A PROTECÇÃO CONTRA AS DISCRIMINAÇÕES
159
contratante. Por outro lado, conforme a alínea a) do § 544 do Código Civil Alemão, o senhorio tem de tolerar, por princípio, que o inquilino faça obras na casa para uma utilização acessível a deficientes36. Vemos, portanto, que o legislador teve consciência da necessidade acrescida da protecção de deficientes no tráfego jurídico-privado, tendo como pano de fundo a 2.ª parte do n.º 3 do artigo 3º da Constituição Federal Alemã. 2.5.
A EXTENSÃO DA PROTECÇÃO: UMA PROPOSTA DE SOLUÇÃO
Já de lege lata e independentemente das directivas resulta um dever de protecção contra discriminações motivadas pela deficiência no fornecimento de e no acesso a bens e prestação de serviços que estão à disposição do público. Isto decorre do princípio geral de igualdade. Aqui têm de ser encontrados parâmetros úteis para determinar quais as características que são “essencialmente iguais” e têm de ser, por isso, tratadas da mesma maneira. Assim, a necessidade de protecção dos discriminados e a inexistência de um interesse na discriminação das outras partes contratantes (entrando aqui em jogo o princípio da autonomia privada) são os parâmetros decisivos. a) Necessidade de protecção características pessoais ascriptivas
dos
portadores
de
A necessidade de protecção dos portadores de uma característica discriminatória depende da resposta a duas questões: por um lado, se se trata de uma característica pessoal ou relacionada com o comportamento, e, por outro, em que medida o afectado é dependente do resultado conseguido pelo contrato concreto. aa) Classificação das características de discriminação As características de discriminação como características de personalidade podem, segundo Schiek, ser divididas em categorias37. Em primeiro lugar, as características relacionadas com o comportamento devem ser diferenciadas das características pessoais. As primeiras resultam de um comportamento 36 Acerca da protecção de deficientes no direito de arrendamento alemão: Decker, Die privatrechtliche Stellung behinderter Menschen im Wohnraummietrecht, §§ 4 ss. 37 Schiek, nota de rodapé 11, p. 26.
160
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
determinado, como é o caso da ideologia ou religião38. Na perspectiva do autor, o segundo grupo de características pessoais pode subdividir-se mais uma vez entre características ascriptivas e características relacionadas com o status. Estas últimas não são livremente escolhidas ou influenciáveis, porém são quase imperceptíveis exteriormente. Será o caso da “origem”, do “nascimento” ou “fortuna”. As características ascriptivas são aquelas “em razão das quais é atribuído (ascripto) um determinado estatuto por meio de características exteriormente perceptíveis e imutáveis”39. A estas pertencem o “sexo”, a “idade”, a “deficiência” ou a “raça”. Esta divisão é interessante sobretudo porque a classificação das características como sendo ascriptivas implica uma urgência na protecção contra a discriminação, especialmente na área contratual e pré-contratual. As características ascriptivas são evidentes e não podem ser ocultadas, pelo que é bastante provável uma discriminação que as tenha como base40. Isto faz com que uma protecção contra a discriminação seja urgente. A raça ou a origem étnica, que são objecto de regulamentação da Directiva 2000/43/CE, são características de personalidade ascriptivas. Das características protegidas enumeradas na Directiva 2000/78/CE a idade e a deficiência são classificadas como características pessoais ascriptivas e, por isso, em princípio, dignas de protecção41. bb) A dependência do discriminado Um outro parâmetro para a determinação da necessidade de protecção é o da dependência da prestação concreta por parte do potencial discriminado. Se se trata de uma prestação indispensável à vida, isto é, de “necessidade extrema”, ou de prestações que pertencem à normal rotina diária, isto é, a uma “necessidade normal” mas faltam possibilidades razoáveis de 38 Também segundo Neuner, JZ 2003, 57 (62) e o artigo criticado por McCrorie-Pinto Oliveira, Neuner, Protection against discrimination in European Contract Law, ERCL 2006 (1), 35 (42). Schiek (nota de rodapé 11, p. 26) acrescenta aqui também a homossexualidade explícita. 39
Schiek, nota de rodapé 11, p. 27.
40
Schiek, nota derodapé 11, p. 27. Mais restritivo: Neuner, JZ 2003, 57 (62, 65) para a característica idade.
41
A PROTECÇÃO CONTRA AS DISCRIMINAÇÕES
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desvio, existe uma forte dependência, independentemente da característica que está na base da discriminação. Isto tem como consequência que neste contexto, segundo os princípios gerais, se parte da ideia de uma obrigação de contratar42. No que se refere ao acesso a e ao fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público (artigo 3º, n.º 1, alínea h) da Directiva 2000/43/CE), e uma vez que a directiva se refere ao fornecimento de bens e prestação de serviços postos à disposição do público, independentemente da pessoa em causa e que sejam oferecidos fora do quadro da vida privada e familiar, haverá aqui sempre uma grande dependência por parte do discriminado. Trata-se de actos jurídicos que qualquer um efectua e que são necessários à normal rotina diária. Nesta rotina normal têm de poder participar todos os indivíduos. Consequentemente, o discriminado está dependente do respectivo contrato. b) O interesse na diferenciação de quem discrimina O interesse na diferenciação do co-contratante é o equivalente à necessidade de protecção do discriminado e, assim, mais um factor para a determinação da necessidade de uma protecção contra a discriminação. O interesse na diferenciação determina-se aferindo se o acto jurídico em causa diz respeito à esfera da vida privada ou à esfera pública do indivíduo43. Segundo a definição supra referida de “acesso a e fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público” (artigo 3º, n.º 1 da Directiva 2000/43/CE), nomeadamente que o respectivo negócio jurídico é efectuado num espaço quase público, certamente fora do campo da esfera familiar 42 Entre vários: Medicus, Schuldrecht I Allgemeiner Teil, S. 45, Rn. 84; Bork, Allgemeiner Teil des BGB, Rn. 673; Bork in: Staudinger, BGB, Vor § 145, Rn. 20, 27; Eckert in: Bamberger/Roth, BGB, § 145, Rn. 16; Kilian, Kontrahierungszwang und Zivilrechtsystem, AcP 180, 56 (60); Bydlinski, Quanto Às questões dogmáticas da obrigação de contratar, AcP 180 (1980), 1 (32 s); Bezzenberger, Ethnische Diskriminierung, Gleichheit und Sittenordnung im Bürgerlichen Recht, AcP 196 (1996), 395 (415 ss)
Segundo Neuner, JZ 2003, 57 (62) também existe uma grande necessidade relativo às informações, porque a informação concreta pode, em regra, só ser obtida através de determinados contratantes. 43 Bezzenberger, Ethnische Diskriminierung, Gleichheit und Sittenordnung im Bürgerlichen Recht, AcP 196 (1996), 395 (415 ss); Neuner, JZ 2003, 57 (63).
162
PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
e privada, parece que não se constitui aqui, pelo menos para as características pessoais ascriptivas, um interesse na diferenciação por parte daquele que discrimina. Se, por princípio, ele efectua os negócios jurídicos em questão com qualquer pessoa e independentemente de quem se trate, ele nunca tem um interesse legítimo na discriminação do co-contratante. c) Tomada de posição em relação ao direito alemão A grande necessidade de protecção do potencial discriminado e o inexistente interesse de diferenciação do outro co-contratante justificam que se confira uma protecção contra a discriminação a todos os portadores de características ascriptivas no acesso a e no fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público. Isto reforça o interesse numa protecção mais ampla contra discriminações em razão da “deficiência”, que se equipara às características “raça” e “sexo”. Se tivermos em consideração que estas características são, de igual forma, protegidas internacionalmente através da Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Deficientes que está a ser elaborada, e que a Constituição Alemã confere à protecção contra discriminações em razão da “deficiência” uma posição especial, seria inconsequente ter estas directrizes em consideração. O legislador alemão deveria, então, integrar a característica “deficiência” no âmbito de protecção das Directivas 2000/43/CE e 2004/113/CE. Para corresponder às especificidades do tráfego jurídico com deficientes, deveria ser criada a possibilidade de justificar também discriminações directas. É que o direito europeu só prevê a possibilidade de justificação para uma discriminaçao directa quanto a exigências profissionais. Uma tal regulamentação garante que os co-contratantes não sejam excessivamente onerados pela protecção contra a discriminação. Onde o legislador detém uma margem de livre apreciação para a fixação de normas e não está vinculado a directrizes de direito europeu, podem e devem ser elaboradas disposições que tenham mais em conta os interesses dos visados. Um alargamento do âmbito de protecção, fora da actividade profissional, de modo a abranger outras das características de discriminação previstas na Directiva 2000/43/CE não é necessário. A Constituição Alemã não atribui a estas
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características previstas no artigo 13º CE uma protecção especial, nem o direito internacional as considera tão dignas de protecção como as características “sexo”, “raça” e “deficiência”. Considerando a Constituição Alemã parece, aliás, duvidoso que, com a transposição da Directiva 2000/78/CE, os homossexuais possam, no futuro, defender-se de assédios (nos termos da directiva), enquanto outros, como será o caso de pais que ajustam os seus horários de trabalho ao horário de funcionamento de jardins de infância e de escolas também terão de aceitar, no futuro, comentários incómodos. Não é desejável uma extensão desta ponderação para o direito civil geral. A isto acresce que, uma vez que as características “religião” ou “ideologia” e “orientação sexual” não são características exteriores, os portadores não estão expostos a um risco especialmente elevado de discriminação. Apesar de a característica “idade” ser exteriormente reconhecível, ela ocupa um lugar de destaque devido à sua mutabilidade: em todas as idades existem vantagens e desvantagens, que se traduzem, no direito civil, por exemplo, na possibilidade de os bebés viajarem gratuitamente, nas elevadas taxas aplicadas a condutores com pouca experiência e nas reduções para a terceira idade. Todo o sujeito de direito privado é em alguma altura afectado por isto. De um ponto de vista global, é então, de recusar um alargamento da protecção contra a discriminação. Este alargamento, para além de envolver uma limitação da autonomia privada, implica ainda a transferência dos debates político e ideológico para as salas de audiência, o que não é desejável numa sociedade democrática e pluralista. d) A transposição para o direito português O legislador português optou por transpor as Directivas 2000/78/CE e 2000/43/CE separadamente. Deste modo, não foi criado um nível de protecção uniforme para todas as características de discriminação no direito civil. Porém, o contexto da Constituição da República Portuguesa difere do da Lei Fundamental Alemã. Em primeiro lugar, não existe, na CRP, uma proibição explícita de tratamento prejudicial e discriminatório de deficientes. O n.º 1 do artigo 71º da CRP apenas estabelece que estes usufruem dos direitos previstos na Constituição em toda a sua extensão, na medida em que a sua
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
deficiência o permita. O n.º 2 do artigo 71º da CRP estabelece uma obrigação de actuação do Estado tendo em vista o apoio a pessoas deficientes. A esta protecção mais “fraca” dos deficientes contrapõe-se um direito fundamental dos idosos, previsto no artigo 72º da CRP. Esta disposição consagra um direito à segurança económica e a condições da habitação e de convívio familiar e comunitário que respeitem a autonomia pessoal e evitem o isolamento ou a marginalização social. Porém, nem a idade nem a deficiência fazem parte do princípio especial de igualdade previsto no n.º 2 do Artigo 3º da Lei Fundamental Alemã. Outra diferença em relação à Constituição Alemã é ainda o facto de a orientação sexual estar abrangida pela especial proibição de discriminação prevista no n.º 2 do artigo 13º da CRP. Neste aspecto a Constituição Portuguesa vai mais longe do que a alemã. Porém, destas directrizes constitucionais não se deduziu a necessidade de equiparação do nível de protecção em relação a todas ou a algumas das características de discriminação. Em Portugal, o nível de protecção conferido à característica “deficiência” corresponde ao nível de protecção mais elevado das directivas 2000/43/CE e 2004/113/CE (lei n.º 46/2006 de 28 de Agosto; Código do Trabalho e Capítulo V da Lei n.º 35/2004). A “raça” e a “origem étnica” são protegidas contra discriminações no direito do trabalho através do Código de Trabalho e do Capítulo V da lei n.º 35/2004, e no tráfego jurídico civil através das leis n.º 134/99 e n.º 18/2004. As outras características previstas na Directiva 2000/78/CE (“orientação sexual”, “religião” ou “ideologia”, “idade”) só estão protegidas contra discriminações no âmbito do direito do trabalho, tal como o prevêem as directivas (Código do Trabalho e Capítulo V da lei n.º 35/2004). Um ajuste da disparidade existente quanto à protecção contra a discriminação foi, então, apenas parcialmente feito e restringiu-se à característica “deficiência”. IV. CONCLUSÃO
O direito europeu privilegia as características “raça” e “sexo” em relação às outras características do Artigo 13º TCE. O alargamento da protecção contra a discriminação no âmbito do acesso a e do fornecimento de bens e prestação de serviços que estão à disposição do público (artigo 3º, n.º 1 alínea h) da
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Directiva 2000/43/CE; artigo 3º, n.º 1 da Directiva 2004/113/CE) às características “orientação sexual”, “deficiência”, “idade”, “religião ou ideologia” (Directiva 2000/78/CE) através de leis nacionais é, a final, uma decisão política. O direito alemão não contém directrizes que obriguem à inclusão das características da Directiva 2000/78/CE no âmbito de aplicação mais alargado da Directiva 2000/43/CE. Apenas para a característica “deficiência” se podem encontrar pontos de referência que justifiquem uma protecção contra a discriminação que vá além da Directiva 2000/78/CE. Estes indícios encontram-se, por um lado, na proibição de tratamento prejudicial prevista na 2.ª parte do n.º 3 do artigo 3º da Constituição Federal Alemã e nos esforços realizados a nível direito internacional para a protecção de deficientes. Consequentemente, os deficientes também deveriam ser protegidos de discriminações fora do direito do trabalho, devendo ser tidos em consideração os interesses da parte contratante através de possibilidades de justificação. Partindo das disposições do direito internacional e da concepção aqui defendida, segundo a qual o princípio geral de igualdade de tratamento impõe que se tratem as características “raça”, “sexo” e “deficiência” da mesma forma, pode transpor-se inteiramente esta solução para o direito português. De facto, o direito português também protege contra discriminações em razão da deficiência no tráfego jurídico civil geral, indo assim além das orientações da Directiva 2000/78/CE.
IGNORARE LEGIS EST LATA CULPA BREVES CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA APLICAÇÃO DO ARTIGO 291.º DO CÓDIGO CIVIL Heinrich Ewald Hörster
I. O REGIME DO ARTIGO 291.º DO CÓDIGO CIVIL
Devem existir pouquíssimas normas em relação às quais a insegurança – quanto à sua interpretação e aplicação – é tão grande como sucede no caso do artigo 291.º do Código Civil. Na sistematização do Código, o artigo 291.º está inserido no Capítulo respeitante ao negócio jurídico, mais precisamente, na sua IIIª e última secção. Esta secção ostenta a epígrafe “nulidade e anulabilidade do negócio jurídico” e abrange apenas os artigos 285.º a 294.º. Deste modo, o artigo 291.º pertence à matéria das invalidades do negócio jurídico, matéria essa que – como já se disse com justeza – permanece o problema mais obscuro do direito civil.1 1. A NORMA DO ARTIGO 291.º EXCEPCIONAL
COMO
NORMA TRIPLAMENTE
1 Maria Clara Sottomayor, A obrigação de restituir o preço e o princípio do nominalismo das obrigações pecuniárias – A propósito do acórdão do STJ de 11 de Março de 1999, em: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Coimbra 2003, pág. 574, nota 94, citando Staudinger; Rui de Alarcão, Invalidade dos Negócios Jurídicos. Anteprojecto para o novo Código Civil, BMJ 89 (Outubro 1959), pp. 199 e seguintes, fala, citando Sconamiglio, de uma «verdadeira floresta virgem da ciência do direito».
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS O artigo 291.º determina o seguinte: 1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que (1) respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica (2) os direitos adquiridos (3) sobre os mesmos bens, (4) a título oneroso, (5) por terceiro de boa fé, se (6) o registo da aquisição for anterior ao registo da acção2 de nulidade ou anulação (…)3. – 2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. – 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.”
Este artigo 291.º que, ao exigir a verificação cumulativa de todos os seus pressupostos nele enunciados, não é, à primeira vista, de leitura (ou de entendimento) fácil, constitui – como teremos ocasião de ver – uma norma triplamente excepcional: (1) estabelece uma excepção ao regime geral dos efeitos da declaração de nulidade e da anulação de um negócio jurídico, que estão previstos no artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte; (2) constitui um desvio ao regime geral das coisas móveis, ressalvado pelo n.º 2 do artigo 205.º, e (3) consagra ainda, e em duas formas, uma excepção ao princípio “nemo plus iuris (…)”. 2. A APLICAÇÃO NULOS
DO
ARTIGO 291.º
NA
SEQUÊNCIA
DE
NEGÓCIOS
Em ordem a verificar (ou falsificar) estas afirmações, serão analisados dois exemplos. a) O regime das coisas móveis aa) A celebração de negócios nulos subsequentes; o regime de um negócio nulo: a não produção dos efeitos negociais pretendidos Como ponto de partida sirva o seguinte simples caso: António, toxicodependente, vende a Hugo, narcotraficante, por um décimo do seu valor um relógio antigo e precioso que o seu avô lhe legara. Passados vinte meses, Hugo vende o relógio pelo seu 2 O registo das acções é praticamente obrigatório devido ao disposto no artigo 3.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Código do Registo Predial, uma vez que a prossecução da acção depende da efectivação do registo. 3 Não é considerado, no âmbito desta conferência, a última parte do artigo 291.º, n.º 1, que se refere ao registo do acordo entre as próprias partes contraentes acerca da invalidade do negócio que celebraram, sendo certo, todavia, que também esta disposição do artigo 291.º suscita não poucas dúvidas.
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valor real a um Museu. Volvidos outros vinte meses, Salvador, irmão de António, por ocasião de uma visita ao Museu, vê e reconhece logo o relógio aí exposto. Depois de ter colhido informações, Salvador fica a saber do sucedido e interpõe uma acção em que pede a restituição do relógio a seu irmão António, entretanto internado num centro de reabilitação. Ao analisar as vendas, podemos dizer que o primeiro contrato, celebrado entre António e Hugo, muito embora pareça preencher os requisitos de um negócio usurário (artigo 282.º), não é anulável por usura, mas sim nulo por ser um negócio ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2). De facto, apenas a nulidade é a sanção adequada para contratos com o conteúdo que veio a ser descrito. Sendo o negócio nulo, não se produzem os seus efeitos pretendidos (aqui, os efeitos enumerados no artigo 879.º), designadamente não se produz o efeito real (artigo 879.º, alínea a)), de modo que António continua a ser o proprietário do relógio. Assim, a venda subsequente, feita por Hugo ao Museu, não pode deixar de ser uma venda de coisa alheia4 e, como tal, igualmente nula (artigo 892.º, 1.ª parte). Por isso, devido ao princípio “nemo plus iuris (…)”, os efeitos do negócio, e entre eles o efeito real, voltam a não produzir-se e António permanece proprietário do relógio. bb) Os legitimados para pedir a declaração de nulidade Nestas circunstâncias, a acção proposta por Salvador há-de dirigir-se contra Hugo, pedindo (1) a declaração de nulidade do contrato celebrado entre este e António, por ser ofensivo dos bons costumes, e (2) a restituição do relógio ao seu proprietário, António.5 Resta saber se a acção terá êxito. De acordo com o disposto no artigo 286.º, a nulidade é invocável por qualquer interessado a todo o tempo. Sendo Salvador um irmão de António, é naturalmente interessado e 4 Quer dizer, a venda de uma coisa alheia como própria ou sem legitimidade. Assim, por exemplo, a venda é perfeitamente válida se o vendedor da coisa alheia agir como mandatário. 5 Ainda é de ponderar a hipótese se não será possível propor, em nome de António, uma acção de reivindicação nos termos do artigo 1311.º, n.º 1, directamente contra o Museu. Neste contexto coloca-se o problema do relacionamento ou da hierarquização entre as normas que consagram os meios de defesa da propriedade (artigos 1311.º e seguintes) e os regimes da invalidade dos negócios jurídicos.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
como tal também legitimado para propor a acção.6 (Acrescente-se que, se o contrato fosse apenas anulável por usura, Salvador, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, aplicável a negócios anuláveis, já não tinha qualquer legitimidade para defender o irmão em tribunal, uma vez que deixou de ser um interessado, visto a anulabilidade por usura não ter sido estabelecida no interesse dele.) cc) Os efeitos e o alcance da declaração de nulidade, de acordo com o princípio geral estabelecido no artigo 289.º, n.º1, 1.ª parte Atendendo aos factos a julgar, não pode haver quaisquer dúvidas que a acção proposta por Salvador será julgada procedente e o negócio declarado nulo. Da sentença resultam as consequências enunciadas no artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte: “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (…).” Esta disposição – cujas consequências podem abalar gravemente a segurança do tráfico jurídico negocial e a estabilidade quanto à atribuição dos bens – significa que a sentença abarca, desde já, dois efeitos distintos entre si: (1) a retroactividade, como efeito imediato, e (2) as obrigações de restituição. Contudo, no fundo, a declaração de nulidade – ao contrário da anulação – nem poderá ter efeitos retroactivos pois, devido à nulidade do negócio, nenhum direito se transmitiu.7 A sentença que declara a nulidade é, deste modo, declarativa8 ao constatar o facto de o negócio ser nulo, e restringe-se a determinar, uma vez que a propriedade não se transmitiu, a obrigação de restituir tudo o que tiver sido prestado.9
6 De acordo com Pires de Lima / Antunes Varela / Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra 1987, Anotação ao artigo 286.º “qualquer interessado [é o] titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afectada pelo negócio.” 7 Precisamente por ter incluído num único preceito tanto os casos da declaração de nulidade como os da anulação, o artigo 289.º, n.º 1, foi logo criticado, justificadamente, por João de Castro Mendes, Direito Civil. Teoria Geral, Volume III, AAFDL Lisboa, 1979, pág. 680, que reputa a redacção “extremamente infeliz”. 8 Todavia, nos casos em que um negócio nulo produz efeitos laterais por lei (nomeadamente por virtude do princípio da conservação dos negócios jurídicos), haverá retroactividade quanto a estes efeitos laterais. 9 No entendimento de Maria Clara Sottomayor (nota 1) “a obrigação de restituição não tem uma natureza jurídica contratual mas constitui uma obrigação ex lege que visa a
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Todavia, Hugo não pode restituir a António a prestação que dele recebeu, i.e., o relógio, pois vendera-o e entregara-o ao Museu, embora sem lhe ter transmitido a propriedade devido à nulidade do contrato de compra e venda (de coisa alheia), concluído entre os dois. Em consequência disso, parece que a obrigação de restituir o relógio (“tudo o que tiver sido prestado”) só pode recair sobre o Museu. Na verdade, esta conclusão decorre da formulação cuidadosa do texto do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Este não limita as obrigações de restituir às próprias partes do negócio declarado nulo, mas estende-as ainda a terceiros que, entretanto, na sequência dele, tenham adquirido (direitos sobre) o mesmo bem.10 Na verdade, como vimos, a lei diz lapidarmente: “deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado”, mas sem dizer por quem e, ainda menos, sem restringir as obrigações de restituir unicamente às partes do negócio declarado nulo.11
reposição da legalidade e a reintegração do estatus quo ante. O fundamento das restituições não é de natureza contratual mas de natureza legal” (pp. 581/2; cf. também pp. 580 e 584). Este entendimento, em princípio, parece-me correcto; mas já é duvidoso, se vale também para o caso do “acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio” que é admitido na última parte do n.º 1 do artigo 291.º, ficando – como a própria acção – sujeito a registo. Teoricamente, também não teria sido ilógico recorrer às regras do enriquecimento sem causa. Mas a solução da lei não é esta. 10 Na vigência do Código de Seabra, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, 4.ª reimpressão, Coimbra 1974, pp. 425/6, escreve, quanto aos efeitos da declaração de nulidade, não mais do que o seguinte: “Opera ex tunc, isto é, retroactivamente.” Depois, ainda esclarece que “o facto de a coisa ter sido alienada para terceiro não impede, por via de regra, a restituição, e a restituição em espécie (dizendo em nota: “Há que ressalvar, em certos termos, o caso da simulação.”). A nulidade opera em face de terceiros e não só em face da contraparte. Opera in rem e não apenas in personam. Portanto, se B transmitiu a C um prédio que nulamente comprara a A, B tem de restituí-lo.”
Não parece que, face à constelação prevista pelos artigos 289.º, n.º 1, e 291.º para a realização das restituições, hoje a solução seja esta. Nos termos destes dois preceitos, a restituição por parte do terceiro, C, deve ser feita imediatamente ao primeiro, A, sem passar ainda por B. 11 José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, Volume II, Actos e factos jurídicos, Coimbra 1999, pp. 334/5 escreve, e bem: “ (…) A lógica da invalidade faz prevalecer os direitos verdadeiros sobre as aquisições realizadas, mesmo de boa fé, por terceiros. Portanto, quem for o verdadeiro titular não é prejudicado pelo acto inválido e pode reivindicar o bem mesmo em poder de terceiros. Não há, na ordem jurídica portuguesa, nenhum princípio geral de protecção de terceiros de boa fé. Seja qual for a categoria do bem, móvel ou imóvel, o adquirente, desde que esse bem seja proveniente de acto inválido, fica vulnerável, não obstante a sua boa fé.”
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dd) A obrigação de restituir em espécie por parte de terceiros adquirentes De acordo com esta lógica, a obrigação de restituir, estabelecida na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 289.º, deixa de existir entre as partes do negócio inicial, declarado nulo, para recair sobre a parte adquirente de um negócio posterior, o subadquirente (e pode ter havido uma cadeia de transmissões), que é afectado pela declaração de nulidade do negócio inicial. Quer dizer, a obrigação de restituir acaba sempre por recair sobre o último subadquirente na sequência e em relação a um primeiro negócio declarado nulo, sendo ele deste modo o “terceiro” abrangido pela decisão judicial (e pela acção).12 Isto significa, no caso concreto, que a obrigação de restituir “tudo o que tiver sido prestado” – tal como prevê a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 289.º – veio a constituir-se entre o primeiro (transmitente), António, que há-de devolver o preço (pago por Hugo), e o terceiro (adquirente), o Museu, que há-de devolver o relógio (recebido de Hugo) [e aqui surgem não pequenas dúvidas cuja origem reside no (des)equilíbrio das prestações iniciais13]. O Museu, sendo o último adquirente em relação ao primeiro transmitente é terceiro para efeitos do artigo 291.º, quer dizer, é um terceiro em relação ao primeiro, António. ee) A função protectora do artigo 291.º, como excepção, a favor de terceiros adquirentes contra os efeitos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte 12 Julgamos que este resultado pressupõe, logicamente, que o terceiro deve ser chamado ao processo. No fundo, até devíamos distinguir entre uma acção de nulidade e uma acção de restituição. Entre as partes iniciais, elas coincidem. Contudo, uma decisão judicial que declara a nulidade do negócio entre as partes iniciais só faz caso julgado entre estas. Assim, se a obrigação de restituir não se limita às partes do negócio mas recair sobre um terceiro, a acção (de restituir) deverá ser proposta também contra este.
Mas também deve ser possível, após o trânsito em julgado da decisão de declaração da nulidade entre as partes, propor, com base nela, uma acção de restituição autónoma contra o terceiro. Em qualquer caso, é necessário garantir ao terceiro, por via processual, um meio que lhe permita invocar, em seu favor, a norma protectora do artigo 291.º. Contudo, todas estas questões processuais situam-se para já – apesar da sua relevância inegável – fora do âmbito deste trabalho. 13 Podemos dizer que o Museu sempre tem o direito a ser indemnizado por Hugo de todos os prejuízos sofridos nos termos do artigo 898.º, uma vez que Hugo procedeu com dolo.
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É dentro da lógica referida, que estende a obrigação de restituir também a terceiros, que bem se compreende a finalidade do artigo 291.º – dirigido precisamente a estes terceiros14 e, ao mesmo tempo, preocupado com a defesa da estabilidade na atribuição de bens em geral – quando determina, aliás em condições muito restritivas, quase exíguas, que “a declaração de nulidade (…) não prejudica os direitos adquiridos (…) por terceiro de boa fé (…).” Quer dizer, é na exacta medida em que o artigo 291.º protege os terceiros de boa fé nos seus direitos adquiridos, que os efeitos retroactivos e restitutivos (e destrutivos) da regra do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte, ficam “bloqueados” e não se produzem, de modo que a acção de nulidade ou de anulação não procede. Deste modo, o artigo 291.º constitui uma norma excepcional à regra do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. De qualquer maneira, no nosso caso, o artigo 291.º nunca pode proteger o Museu contra os efeitos restitutivos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte, pela simples razão (que, para já, dispensa outras reflexões) de um relógio não ser um móvel sujeito a registo. O Museu também não fica protegido na sua aquisição pelo instituto da usucapião, caso esta seja invocada (artigos 1292.º e 303.º), uma vez que a posse do relógio, que será de boa fé e fundada em justo título, não durou os três anos legalmente exigidos para o efeito (cf. artigo 1299.º). Por tudo isso, a acção proposta por Salvador é julgada procedente e o Museu deve restituir o relógio a António. E o nosso “sentimento de justiça” diznos que, provavelmente, este resultado será o mais adequado. b) O regime das coisas móveis sujeitas a registo Assim, enquanto os problemas suscitados pelo nosso pequeno caso são susceptíveis de uma solução que se aceite, as 14 Que são os subadquirentes que confiam na validade dos seus negócios e na estabilidade das suas aquisições. A este respeito, Mário de Brito, Código Civil Anotado, Edição do autor, 1967, explica bem, na anotação ao artigo 291.º, o seguinte: “Trata este artigo do problema da inoponibilidade da nulidade e da anulabilidade a terceiros. A opinião tradicional era no sentido de que a nulidade e a anulabilidade operavam tanto em confronto das partes como em confronto de terceiros. Isto, é claro, sem embargo da protecção conferida por lei a terceiros quanto a certos institutos ou figuras particulares e da protecção resultante do funcionamento das normas da usucapião. Entendeu-se, porém, que esta protecção não era bastante para satisfazer os legítimos interesses de terceiros e os interesses gerais do tráfico jurídico. É precisamente a consideração desses interesses que está na base da solução consagrada neste preceito.”
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coisas complicam-se substancialmente quando se trata de negócios que respeitam a bens sujeitos a registo. aa) A celebração de negócios nulos subsequentes Suponhamos que os sucessivos contratos de compra e venda que foram celebrados entre António, Hugo e o Museu não versaram sobre um relógio antigo, mas, sim, sobre um automóvel antigo – por exemplo: um Bugatti – quer dizer, um bem móvel sujeito a registo (artigo 205.º, n.º 2), mais precisamente, um bem sujeito ao registo automóvel.15 Sucede que todas as sucessivas aquisições foram devidamente registadas: da aquisição por aceitação do legado da parte de António até à “aquisição” por meio de um contrato de compra e venda da parte do Museu. É agora que Salvador propõe a sua acção em que pede (1) a declaração de nulidade do contrato celebrado entre António e Hugo, por ser ofensivo dos bons costumes, e ainda (2) a restituição do automóvel a António. Também esta acção veio a ser registada, como deve ser (nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do Código do Registo Predial, aplicável por força do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que aprova o Registo Automóvel).16 Dos factos enunciados resulta, sem mais, que o registo da acção é posterior ao registo do contrato de aquisição pelo Museu. Face a estas circunstâncias pergunta-se: a acção será de novo julgada procedente? Como é óbvio, a resposta depende decisivamente da relevância jurídica da variação que introduzimos no caso inicial e que fez com que o objecto dos contratos deixasse de ser um simples bem móvel e passasse a ser um bem móvel sujeito a registo. Desta forma, para encontrarmos a resposta,
15 O registo automóvel encontra-se regulado pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que aprova o Registo da Propriedade Automóvel, e o Regulamento do Registo de Automóveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de Fevereiro, ambos com alterações posteriores, designadamente pelo Decreto-Lei n.º 178-A/ /2005, de 28 de Outubro, que aprova o “documento único automóvel”, ao transpor para a ordem jurídica nacional as respectivas Directivas europeias. 16 As disposições relativas ao registo predial são aplicáveis subsidiariamente, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis por força do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que aprova o Registo de Automóveis.
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temos de fazer agora as reflexões que na versão inicial do nosso caso ainda pudemos dispensar. bb) O artigo 291.º como norma excepcional ao regime geral das coisas móveis Vamos começar pelo regime das coisas móveis. A este respeito, podemos ler no artigo 205.º, n.º 2, que “às coisas móveis sujeitas a registo público é aplicável o regime das coisas móveis em tudo o que não seja especialmente regulado.” Portanto, o facto de um bem móvel estar sujeito a registo, por via de regra, não influi no seu regime jurídico. Assim, para todos os negócios que versam sobre coisas móveis valeriam, em caso de declaração da sua nulidade, uniformemente, os efeitos previstos no artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Contudo, não é isto que acontece, na medida em que encontramos no artigo 291.º uma solução especialmente regulada que exceptua os bens móveis sujeitos a registo do regime geral aplicável às coisas móveis, aqui do regime do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Na verdade, o artigo 291.º determina que “a declaração de nulidade (…) do negócio jurídico que respeite (…) a [bens] móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens (…), por terceiro de boa fé (…).” Daí decorre que o artigo 291.º constitui uma excepção ao regime geral das coisas móveis. cc) A “indefinição” dos direitos posteriormente, preservados pelo artigo 291.º
adquiridos
e,
Este preceito legal do artigo 291.º, à primeira vista, só nos pode causar estranheza: se todos os negócios são nulos – no nosso exemplo o primeiro por ser ofensivo dos bons costumes e o segundo por ser uma venda de coisa alheia – de modo que não se produzem os efeitos pretendidos, ou seja, não se transfere a propriedade das coisas sobre que incidem, continuando por isso o primeiro transmitente a ser proprietário, como é possível que, nestas circunstâncias, um terceiro tenha “adquirido um direito sobre estes bens”?17 17 Também José de Oliveira Ascensão (nota 11), pág. 336, coloca a questão: “qual o fundamento desta aquisição anómala de direitos por parte de quem era apenas titular aparente?” e, depois, responde pela seguinte forma: “ (…) o fundamento está (…) na fé pública
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Podíamos pensar, como reacção imediata, que esta aquisição se deve ao registo. Todavia, não é isto que acontece: o registo não é constitutivo de direitos, mas apenas declarativo. O registo não dá (não cria) direitos e a sua falta também não os tira a quem seja o seu titular (sem os ter registado). Deste modo, o facto de tanto Hugo como o Museu terem registado os seus contratos através dos quais aparentemente teriam adquirido a propriedade, não lhes confere este direito; bem pelo contrário, o proprietário ainda é António, diga o registo o que disser.18 Por conseguinte, o direito adquirido por um terceiro de boa fé nunca pode ser a propriedade. Em contrapartida, se a lei diz, no seu artigo 291.º, que protege os “direitos adquiridos”, estes direitos hão-de existir sob pena de a lei fazer afirmações falsas. Porém, a lei não define estes direitos. E quando procuramos saber, nos vários livros de ensino de Direito, quais são ou seriam então os “direitos adquiridos” a que o artigo 291.º se refere, normalmente não encontramos resposta.19 Em todos eles se afirma tão-só o resultado – que já conhecemos – que os direitos adquiridos por terceiro de boa fé são protegidos contra os efeitos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte, mas
do registo.” – Contudo, precisamente isto não é o caso: o registo apenas confere fé pública a actos válidos (não a actos nulos). Por isso, o fundamento da aquisição a seguir a negócios nulos não pode ser a fé pública do registo; há-de existir outro. 18 É evidente que esta situação não abona propriamente a favor da segurança no tráfico jurídico negocial, pois induz em erro ao criar – e manter – aparências falsas. Ainda veremos, que o registo tal como está concebido não garante a existência do direito inscrito. O registo “não garante, de modo nenhum, a validade ou a não impugnabilidade do direito do titular inscrito.” Assim, J. Antunes Varela, Anotação ao acórdão do STJ, de 20 de Julho de 1969, RLJ 103 (1970/1971) pág. 468 (= BMJ 188, pág. 164), pp. 475 e seguintes, 483 e seguintes, 487/8. 19 Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 3.ª edição revista e actualizada, Lisboa 2001, pág. 477, escreve: “A letra da lei aponta claramente no sentido de o preceito só reger quando os direitos do terceiro incidem sobre a coisa que é objecto dos dois negócios envolvidos na sua previsão. Em suma, estão em causa apenas direitos reais (…)”.
Temos as nossas dúvidas, a começar pela utilização do próprio conceito de “coisa” sobre que podem incidir os direitos de terceiro. Na verdade, o direito transmitido ou constituído invalidamente pode ter natureza diferente de um direito real. Cf. Pires de Lima / Antunes Varela / Henrique Mesquita (nota 6), Anotação 2. ao artigo 289.º. Porventura, em vez de apontar para direitos reais, dever-se-á perguntar antes se os direitos adquiridos por um terceiro resultam de negócios de disposição ou não (ao utilizarmos este conceito no sentido empregue por Manuel de Andrade [nota 10, pp. 66/7 e 117]).
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sem nos explicar como se adquirem e/ou em que consistem estes direitos que a lei acaba por proteger.20 Pelos vistos, a resposta não é fácil, e ela deve ser procurada e apenas pode ser encontrada a partir e dentro do regime das invalidades, (aparentemente) o problema mais obscuro do direito civil. Desta feita, o ponto de partida há--de ser o artigo 285.º, que abre a última secção – nulidade e anulabilidade – do Capítulo respeitante ao negócio jurídico e diz: “Na falta de um regime especial, são aplicáveis à nulidade e à anulabilidade do negócio jurídico as disposições dos artigos subsequentes.” dd) A protecção inicial, relativa (in personam), por lei, do terceiro com base no regime da venda de coisa alheia Sem entrar em pormenores, podemos logo depreender do artigo 285.º que as disposições da secção se destinam a estabelecer o regime geral (ou típico) das invalidades, ressalvando porém, em atenção à multiplicidade das situações possíveis, os regimes especiais (ou atípicos) que, conforme os casos, se mostram mais indicados ou úteis e acomodados às exigências da justiça.21 Com base nesta conclusão22 vamos analisar, passo por passo, os contratos de compra e venda que foram celebrados.
20 Podem consultar-se: João de Castro Mendes (nota 7), pp. 681a 684, e nota 2 à pág. 682, que remete para José de Oliveira Ascensão e Rui de Alarcão; Rui de Alarcão, A confirmação dos negócios anuláveis, Coimbra 1971, pág. 79, nota 108; José de Oliveira Ascensão (nota 11), pp. 334 a 337; António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª edição aumentada e inteiramente revista, pp. 876/7; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição, Coimbra 2003, pp. 583/4; Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra 1977, pág. 275, nota 76; Idem, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra 1981, pp. 63, 66, 69 a 71, 72/73 e 75; Nuno de Oliveira, Grandes linhas da Parte Geral do Código Civil, em: Paulo Ferreira da Cunha (organizador), Instituições de Direito, II Volume, Coimbra 2000, pp. 229, 257 a 261; Raúl Guichard, Um «Caso Exemplar» ou um «Exemplo Casual», em: Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, N.º 4 – 2005, pp. 99, 130 a 134; Pires de Lima / Antunes Varela / Henrique Mesquita (nota 6), Anotações ao artigo 291.º; Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra 2005, pp. 370/1, 626/7.
Unicamente Luís A. Carvalho Fernandes (nota 19), pág. 479, avança com uma resposta precisa ao afirmar que o terceiro é titular de um direito real (!), embora sem explicar como e quando ele o adquiriu. 21
416.
Neste sentido, ainda na vigência do Código Seabra, Manuel de Andrade (nota 10), pág.
22 Ver por todos: Pires de Lima / Antunes Varela / Henrique Mesquita (nota 6), Anotações ao artigo 285.º.
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Já vimos que o primeiro contrato, concluído entre António e Hugo, é nulo por ser ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2). Sendo nulo, de acordo com o regime geral da nulidade, não produz os seus efeitos ou, mais precisamente, não produz os efeitos pretendidos pelas partes (enunciados no artigo 879.º). Assim, não opera a transferência da propriedade e a sua nulidade pode ser invocada por qualquer interessado a todo o tempo (artigo 286.º). Nestes termos, e não existindo um regime especial, o contrato nulo não confere qualquer direito a Hugo e António, naturalmente, permanece o proprietário. Também sabemos que o contrato entre Hugo e o Museu é nulo, por ser uma venda de coisa alheia (artigo 892.º, 1.ª parte), e que não pode transmitir a propriedade em obediência ao princípio “nemo plus iuris (…)”, aliás um princípio que actua de modo perfeitamente objectivo, independentemente de qualquer vontade, (des)conhecimento ou boa fé das partes. Esta nulidade do contrato entre Hugo e o Museu seria, de acordo com o regime geral das invalidades, invocável por qualquer interessado (artigo 286.º). Porém, é exactamente isto que não se passa. A lei que tudo instituiu um regime especial: o vendedor não pode opor a nulidade do contrato ao comprador de boa fé (artigo 892.º, 2.ª parte).24 Com isso, a lei retira ao vendedor a legitimidade para invocar, também ele, à semelhança de outro qualquer interessado, a nulidade do contrato.25 Esta restrição, imposta ao vendedor, visa sem dúvida proteger o comprador de boa fé,26 mas sem lhe atribuir um direito real (a propriedade). Nestes termos, a venda pode23
23 Manuel de Andrade (nota 10), pág. 416 (sendo o sublinhado do próprio Manuel de Andrade). 24 Está de boa fé o comprador que confia na titularidade e/ou na legitimidade do vendedor. 25 Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra 1986, Anotação 3. ao artigo 892.º, escrevem que “o regime geral da nulidade dos negócios jurídicos, prescrito nos artigos 285.º e seguintes, é afastado do regime da venda de bens alheios em vários aspectos. (…) Estabelecem-se [no] artigo 892.º (…) limitações ao (…) artigo 286.º. (…) O vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé (…). (…) A nulidade da venda prescrita no artigo 892.º apenas se refere (…) às relações entre o vendedor e o comprador de coisa alheia. No que se refere ao verdadeiro proprietário da coisa, a venda, como res inter alios, é verdadeiramente ineficaz.” Assim, na Anotação 1. ao artigo 892.º. 26 Assim também Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (nota 20), pp. 219/220, nota 6.
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produz, por força da lei, efeitos obrigacionais,27 ou seja, efeitos inter partes, e protege o comprador de boa fé in personam, contra o vendedor (mas só contra este). Quer dizer, por efeito do disposto no artigo 892.º, 2.ª parte, o comprador de boa fé adquiriu face ao seu vendedor uma posição jurídica, melhor dizendo: um direito relativo legal,28 dado que o negócio, por ser nulo, não lhe podia ter atribuído qualquer direito contratual, designadamente não a propriedade (por maior que fosse a sua boa fé). Uma vez que não há (ou não se vislumbra) um outro fundamento, apenas pode ser a existência deste direito relativo legal em que se alicerça a protecção dos “direitos adquiridos (…) por terceiro de boa fé”, prevista no artigo 291.º. Quando inexiste a boa fé, exigida pelo artigo 892.º, 2.ª parte, um direito relativo legal do comprador não chega a nascer e assim cessa, à partida, o fundamento para a aplicação do artigo 291.º, ou seja, a existência de um “direito adquirido”. Isto significa para o nosso caso que o Museu, estando de boa fé, adquiriu um direito relativo legal, de natureza obrigacional, oponível apenas ao seu contraente Hugo perante quem está, desta forma, protegido.29 Em relação a António, todavia, esta 27 Neste sentido também Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (nota 20), pp. 219/220, nota 6. 28 É difícil de explicar qual será a natureza deste direito relativo legal. Em trabalho anterior nosso, Efeitos do registo – terceiros – aquisição «a non domino», RDE 8 (1982), pp. 111, 124, 142/3, falámos de uma “oponibilidade relativa” ou de uma “excepção peremptória material”, que funcionam unicamente contra o vendedor. 29 Na medida em que, por um lado, o comprador está de boa fé e, por outro, o vendedor não lhe pode opor a nulidade do contrato, entre as partes, quanto aos efeitos obrigacionais, tudo se passa como se o contrato fosse válido: o comprador há-de pagar o preço acordado e o vendedor há-de entregar a coisa vendida. Apenas o efeito real não se produz por ser legal e logicamente impossível. De resto, segundo o artigo 897.º, o vendedor é obrigado a sanar a nulidade da venda, sendo certo que esta obrigação apenas existe se o comprador tiver agido de boa fé, como sublinham Pires de Lima / Antunes Varela (nota 25), Anotação 2 ao artigo 897.º.
A situação assemelha-se, de certo modo, ao caso da venda comercial de coisa alheia, que é válida (artigo 467.º do Código Comercial). Em contrapartida, face ao verdadeiro titular, o adquirente de boa fé não possui direito nenhum: a venda, como é evidente, não pode beliscar os direitos do verdadeiro titular e é, em relação a este, perfeitamente ineficaz (res inter alios acta). Assim, nesta fase, a defesa do adquirente está limitada em relação ao seu vendedor (de coisa alheia). Não parece que o verdadeiro titular possa invocar a nulidade da venda como qualquer interessado, com base no artigo 286.º, se daí resultar a subversão do sistema protector estabelecido pelo artigo 291.º. O problema é semelhante ao referido na nota 5, ou seja, se é
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oponibilidade não lhe assiste: ela está limitada às partes, e o Museu é terceiro. Para poder opor o seu direito adquirido (a Hugo) também a António, o Museu carece de um novo fundamento legal, diferente do artigo 892.º, 2.ª parte. Este fundamento é o artigo 291.º ao qual compete, preenchidos os seus requisitos, a protecção do direito adquirido pelo terceiro (o Museu) contra o primeiro (António). ee) A protecção subsequente, absoluta (in rem), por lei, do terceiro com base no artigo 291.º; a aquisição do terceiro «a non domino»; o artigo 291.º como excepção ao princípio “nemo plus iuris (…)” O papel do artigo 291.º resulta da sua interacção com o artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Na medida em que a obrigação de restituir deixou de existir entre as partes do negócio inicial, declarado nulo, para recair sobre a parte de um negócio subsequente, isto é, o terceiro adquirente, o artigo 291.º tem a tarefa – que o artigo 892.º, 2.ª parte não pode desempenhar – de proteger o terceiro (adquirente) precisamente à custa do primeiro (transmitente), ou seja, à custa daquele que seria beneficiado com a procedência da acção de nulidade. Assim, o artigo 291.º, na sua finalidade específica, é dirigido e concebido directa e precisamente em favor dos terceiros adquirentes de boa fé que visa proteger no contexto circunscrito do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Há, em consequência disso, um conflito de interesses (e de direitos) entre o terceiro adquirente e o primeiro transmitente.30 Assim, resta definir o âmbito da protecção conferida pelo artigo 291.º ao terceiro. Quanto ao nosso caso, partimos do pressuposto de que o Museu, quando comprou o automóvel a Hugo, estava de boa fé. Deste modo, naturalmente, julgou ter adquirido a propriedade, em sintonia com o conteúdo do contrato de compra e venda celebrado. Contudo, este entendimento subjectivo e de boa fé não coincide com a realidade jurídica verdadeiramente existente. Segundo esta realidade – sujeita ao funcionamento objectivo do possível recorrer a uma acção de reivindicação nos termos do artigo 1311.º, n.º1, directamente contra o terceiro, e contornar deste modo o artigo 291.º. 30 A este respeito pode ver-se o nosso trabalho (nota 28), pp. 142/143 (e 125 a 127).
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princípio nemo plus iuris (…) –, que o Museu na sua boa fé ignora, ele não adquiriu mais do que um mero direito relativo por força da lei face ao seu vendedor, Hugo, uma vez que é legalmente impossível que a propriedade se tenha transmitido (ainda por cima por um não titular através de uma venda de coisa alheia) por meio de um contrato nulo. Por outro lado, se o artigo 291.º quer realmente que os direitos de terceiros não fiquem prejudicados, deve protegê-los em conformidade com a boa fé destes. Dito de outra maneira, a propriedade supostamente adquirida pelos terceiros por contrato há-de ser-lhes atribuída por lei. Na verdade “o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei” (artigo 1316.º). Entre estes “demais modos previstos na lei” incluir-se-á a protecção, pela norma do artigo 291.º, do “direito adquirido” ao abrigo do artigo 892.º, 2.ª parte. Como sabemos, o artigo 291.º requer a verificação cumulativa de todos os requisitos enunciados, e entre eles destaca-se a boa fé do terceiro. Ao fazer esta exigência, a lei submete o terceiro adquirente duas vezes ao critério da boa fé: primeiro, em relação ao seu transmitente, porque apenas estando de boa fé adquire com base no artigo 892.º, 2.ª parte, o seu direito relativo legal face a este (in personam); segundo, em relação ao primeiro negócio (ou em relação primeiro transmitente), porque apenas cumprindo o conceito específico de boa fé consagrado no n.º 3 do artigo 291.º, o seu direito adquirido não é prejudicado nos termos do artigo 291.º, n.º 1.31 No quadro do artigo 291.º unicamente é considerado de boa fé um terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável (n.º 3 do artigo 291.º).32 Quer dizer, a boa fé exigida refere-se à 31 Com vista às finalidades protectoras diferentes das normas em causa (o artigo 892.º, 2.ª parte protege in personam; o artigo 291.º protege in rem), os critérios para aferir a boa fé, num caso e noutro, não são os mesmos. Assim, o artigo 291.º, n.º 3, refere-se ao negócio celebrado pelo primeiro transmitente; o artigo 892.º, 2.ª parte, refere-se ao negócio celebrado pelo último transmitente. Além de apontar para o artigo 892.º, ainda se podem comparar as disposições dos artigos 243.º, n.º 2, por um lado, e 291.º, n.º 3, por outro, onde as diferenças quanto aos critérios ou conceitos da boa fé são manifestas. 32 Portanto, esta redacção do n.º 3 do artigo 291.º deixa bem expresso que a boa fé (subjectiva) do terceiro adquirente não se baseia – e nem se pode basear – na fé pública do
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confiança justificada na validade do primeiro negócio, aquele que veio a ser declarado nulo ou anulado. Com esta exigência a lei sublinha bem que quer ver protegidos apenas os terceiros que participam honestamente no tráfico jurídico negocial, de acordo com os cuidados e a diligência indicados.33 Apenas quem pautar a sua conduta desta forma está de boa fé no sentido do artigo 291.º, n.º 3. Sem a existência desta boa fé específica, delineada no n.º 3 do artigo 291.º, os direitos do terceiro adquirente não podem gozar da protecção prevista no artigo 291.º, n.º 1, embora eles possam manter-se, naturalmente, como direitos relativos face ao transmitente. 34 Por conseguinte, a boa fé é sempre constitutiva35 do direito do terceiro adquirente, tanto para efeitos do artigo 892.º, 2.ª parte, como para efeitos do artigo 291.º, n.º 1, pois sem a sua existência nada se adquire e nada se protege a seguir. Neste esquema, em que todos os contratos são nulos, os direitos do terceiro, necessariamente, só podem resultar da lei (i.e., da conjugação do artigo 892.º, 2.ª parte, com o artigo 291.º) com fundamento na sua boa fé, pois esta é, como facto constitutivo dos direitos legais em causa, a razão última da sua registo, resultante das suas presunções, uma vez que estas, depois de terem funcionado ainda a favor do primeiro transmitente inscrito (aqui António, que adquiriu validamente), deixaram de funcionar nas pessoas dos adquirentes subsequentes (aqui Hugo e o Museu, que não adquiriram validamente), visto estes nunca terem sido titulares dos direitos inscritos a seu favor. Como é apenas declarativo, o registo não dá direitos. As presunções derivadas do registo pressupõem a existência válida do direito inscrito. Nestes termos, o registo garante tão-só que o direito, a ter uma vez existido, ainda se mantém na pessoa do titular inscrito, ainda não foi transmitido por este a outrem. Desta forma, a inscrição de um direito “adquirido” com base num contrato nulo não pode fazer funcionar as presunções. Por conseguinte, nestes casos o registo não confere fé pública. Mas isto não faz com que registo, enquanto tal, esteja viciado: apenas sucede que não tem efeitos presuntivos. 33
(Ou, como dizem os alemães, mit der im Verkehr erforderlichen Sorgfalt.)
A falta da boa fé, nas várias fases aquisitivas por parte do terceiro, implica que este ou já nem adquire o direito legal relativo ou, tendo-o adquirido, não obtém a protecção posterior do artigo 291.º. 34
Por outro lado, se a aquisição de um direito legal relativo tiver sido feita a título gratuito (segundo o artigo 956.º, n.º 1, 2.ª parte), a protecção pelo artigo 291.º está excluída à partida, e o direito mantém-se enquanto tal, ficando a aquisição ao alcance do artigo 289.º, n.º1, 1.ª parte. 35 Neste sentido também, STJ CJ - Ano XII - Tomo III - 2004, pp. 78 e seguintes.
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protecção.36 Mas isto significa também que o terceiro tem o ónus da prova da sua boa fé (artigo 342.º, n.º 1),37 pois, na sequência de negócios nulos, nenhuma presunção legal (artigo 350.º, n.º 1) milita a seu favor. Mas se o terceiro adquire com base na lei e na sua boa fé, e não com base num contrato nulo, pois isto é de todo impossível, não adquire, contudo, independentemente do seu contrato nulo.38 Este mantém alguma utilidade formal na exacta medida em que define o direito contratual que o terceiro, na sua boa fé, já julgava ter adquirido. O contrato nulo mantém a função de descrever o conteúdo do direito cuja aquisição, por força do artigo 291.º, não fica prejudicada pela declaração de nulidade (do negócio precedente). Quer dizer, com a ajuda de um título nulo, o artigo 291.º acaba por proteger o “direito adquirido” por um terceiro, de acordo com a boa fé deste. Sendo assim, o artigo 291.º não protege a própria existência do direito relativo legal, objectivamente adquirido, mas, com base nesta existência, conduz à protecção do direito do terceiro nos precisos termos do título nulo, exactamente como o terceiro, na sua boa fé, o pensava ter adquirido, neste caso, a propriedade com os seus efeitos erga omnes. Devido à aquisição pelo terceiro, e uma vez que é lógica e legalmente impossível haver dois plenos proprietários do mesmo bem,39 a propriedade do primeiro transmitente não pode subsistir 36 Com razão, António Menezes Cordeiro (nota 20), pág. 877; diferente, José de Oliveira Ascensão (nota 11), pág. 336, que atribui fé pública ao registo de contratos nulos (!) para proteger o terceiro. 37
No mesmo sentido, STJ CJ - Ano XII - Tomo III - 2004, pp. 78 e seguintes (nota 35).
Orlando de Carvalho, Direito das Coisas (nota 20), pág. 275, nota 76; Raúl Guichard (nota 20), pp. 131 a 133; de modo igual, já no nosso trabalho anterior (nota 28) escrevemos que o terceiro adquire a coberto do seu contrato, com base no seu direito resultante da lei, de acordo com as características do direito contratual (pp. 125 a 127, 142 a 143). 38
De qualquer maneira, a relevância do título nulo como elemento formal tem um significado secundário mas igualmente decisivo para a protecção do terceiro e não é apenas uma questão de lã caprina. Todavia, todo o valor formal do título deixa de existir por completo se o adquirente não estiver de boa fé. Sem esta, o título não passa de um papel sem valor. A boa fé condiciona tudo: a aquisição do direito relativo legal, a protecção subsequente deste direito e a relevância formal do título aquisitivo nulo. 39 Segundo o artigo 1305.º, a propriedade é um direito absoluto (indiviso) e o proprietário goza o seu direito de modo pleno e exclusivo.
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e fica extinta (à semelhança do que sucede por efeito da usucapião). Nestes termos, o conflito de direitos entre o terceiro (o último adquirente) e o primeiro (alienante) é resolvido à custa deste. Por isso, na medida em que o artigo 291.º protege “os direitos adquiridos (…) por terceiro de boa fé”, ele não se limita a proteger in personam, como sucede com o artigo 892.º, 2.ª parte, mas protege in rem, ficando agora, e só agora, preteridos os direitos do primeiro transmitente. A protecção do terceiro realiza-se, por assim dizer, em “dois degraus”: (1) com a aquisição do seu direito relativo legal, nos termos do artigo 892.º, 2.ª parte, caso possua a boa fé aí exigida; (2) com a protecção – assente no direito relativo legal – do direito contratual subjectivamente adquirido, caso satisfaça a boa fé definida pelo artigo 291.º, n.º 3.40 Ou, visto da perspectiva da
40 Como ficou referido, o artigo 1316.º enumera os vários modos de aquisição da propriedade. O artigo 1317.º, por seu lado, determina os momentos em que a aquisição se verifica, sem dizer, no entanto, qual é este momento em relação aos “demais modos previstos na lei” (aos quais pertencerá o artigo 982.º, 2.ª parte, em conjugação com o artigo 291.º).
Parece-nos que a solução da lei será esta: nos casos em que a aquisição do direito pelo terceiro de boa fé (como “direito adquirido” no sentido do artigo 291.º, n.º 1) se aperfeiçoa por força do artigo 291.º, o momento da aquisição é o da data do trânsito em julgado da decisão que julgar improcedente o pedido contra o terceiro (o “segundo degrau”), portanto a aquisição opera ex nunc. Contudo, os efeitos da decisão e da aquisição por ela protegida (os “direitos adquiridos” pelo terceiro de boa fé) retrotrair-se-ão à data de aquisição do direito relativo legal por parte do terceiro (o “primeiro degrau”), e produzir-se-ão deste modo ex tunc. Há, novamente, semelhança com a usucapião. Assim, constatamos que também em relação ao momento em que se inicia a produção dos efeitos dos “direitos adquiridos”, protegidos pelo disposto no artigo 291.º, a boa fé do terceiro acaba por ser de novo o elemento decisivo. O resultado desta solução, quanto ao início da produção dos efeitos dos “direitos adquiridos” em caso de nulidade coincide, como ainda havemos ocasião de ver [infra, 3. d)] com a protecção concedida pelo artigo 291.º à aquisição feita por um terceiro de boa fé na sequência de um negócio anulável. E, mais ainda, coincide também com as aparências criadas pela execução (ou o “cumprimento”) dos sucessivos contratos nulos. Todavia, a solução proposta – e por isso ela deixa algumas dúvidas – já não coincide com os efeitos de uma convalidação da venda nula (cf. os artigos 895.º e 896.º, n.º 1, alínea a), em ligação com o artigo 896.º, n.º 2), que operam ex nunc. A este respeito pode ver-se Manuel A. Carneiro da Frada, Perturbações típicas do contrato de compra e venda, em Direito das Obrigações, coordenação de António Menezes Cordeiro, AAFDL Lisboa 1991, pp. 49, 52, 56/7, que escreve – e diminui as nossas dúvidas – “o regime da venda de bens alheios não se aplica (…) sempre que o ordenamento jurídico, excepcionalmente, o determine. Estão nestas circunstâncias (…) a hipótese (…) do artigo 291.º e as situações que resultam do funcionamento das regras próprias do registo destinadas a proteger a boa fé do adquirente que confiou na (…) publicidade registral (…).” Ultimamente, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Direito dos Contratos Civis, AEDUM Braga 2006, analisa cuidadosamente o regime da venda de coisa alheia (pp. 98 a 145) mas, quanto ao conflito entre as regras dos artigos 286.º e 892.º
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oponibilidade de direitos subjectivos, também podemos dizer que, no fundo, por força do artigo 291.º, um direito relativo (com efeitos inter partes) é convertido em direito absoluto (com efeitos erga omnes). Seja como for, com base na sua boa fé, o terceiro adquire o seu direito por lei e o seu conteúdo resulta do título nulo. Assim, a raiz do direito é a lei (o artigo 892.º, 2.ª parte); esta raiz nasce no alfobre da boa fé do terceiro; o direito nascido aperfeiçoa-se, novamente por lei (artigo 291.º), e o contrato aquisitivo nulo formaliza o seu conteúdo. Os efeitos deste “direito adquirido” produzir-se-ão – tendo havido registo do contrato de aquisição pelo terceiro – a partir do momento da conclusão do contrato.41 O terceiro, por seu lado, acaba por adquirir a propriedade a um transmitente que realizou uma venda de coisa alheia, adquire, portanto, a non domino. Assim fica comprovado que o artigo 291.º consagra uma excepção ao princípio “nemo plus iuris (…) na medida em que faz com que um alienante transmita um direito que não possui. ff) Os requisitos especiais do artigo 291.º Quanto ao nosso caso, chegamos então ao resultado de que o Museu poderá estar protegido em prejuízo de António. Contudo, esta protecção apenas é concedida, se se verificarem ainda mais dois pressupostos que vêm enunciados no artigo 291.º, sendo um de índole material e outro de natureza registral-formal. !) O período de defeso de três anos a favor do primeiro transmitente O primeiro destes pressupostos, de índole material, vem estabelecido no n.º 2 do artigo 291.º. Diz o artigo 291.º, n.º 2: “Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.” O negócio a que o n.º 2 se refere é, tal como sucede (pp. 125 a 132), não alude à sombra do regime excepcional do artigo 291.º que paira sobre as regras em causa. 41 Esta última conclusão, embora parecendo ser lógica e adequada (sobretudo quando comparada com a protecção dada pelo artigo 291.º a uma aquisição do terceiro na sequência de um anterior negócio anulável [ver infra, 3. d)], deixa uma réstia de dúvidas como admitimos na nota anterior.
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no n.º 3, obviamente o primeiro, aquele contra o qual é proposta a acção de anulação42 ou de declaração de nulidade, e contra cujos efeitos de invalidação o artigo 291.º protege a aquisição do terceiro. Na verdade, como resulta da análise dos seus requisitos feita até agora, o artigo 291.º não protege o terceiro adquirente de ânimo leve.43 Pois na medida em que protege este, fica irremediavelmente preterido o direito de quem aproveitaria dos efeitos retroactivos e restitutivos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Em atenção a esta consequência severa, o artigo 291.º pesa os direitos e interesses em conflito e procura estabelecer um justo equilíbrio. Neste sentido, a lei pondera, por um lado, as necessidades de segurança do tráfico jurídico negocial e de estabilidade na atribuição dos bens em geral e, por outro, os interesses e os efeitos negativos para o primeiro transmitente em particular, enquanto resultado da protecção do terceiro. Com este intuito é estabelecido, no n.º 2 do artigo 291.º, ainda para além do estreito condicionalismo dos demais requisitos, um “período de defeso” de três anos, contados desde a celebração do primeiro negócio, mediante o qual a lei proporciona aos interessados na declaração de nulidade ou anulação do negócio (na maioria dos casos será o primeiro transmitente) um lapso de tempo considerado suficiente para se defenderem em tribunal. Só depois de ter decorrido este prazo sem que tenha sido proposta e registada uma acção de nulidade ou anulação, a ponderação do artigo 291.º inverte-se, e a sua finalidade primordial passa a ser, além da necessária certeza para o tráfico jurídico negocial, a protecção do terceiro em função e em recompensa da sua confiança e boa fé e em detrimento do primeiro transmitente. Como no nosso caso em apreço o prazo dos três anos decorreu, o requisito fixado no n.º 2 do artigo 291.º está preenchido.
42 A este respeito lembramos que, no caso da anulabilidade do negócio precedente, o negócio posterior do terceiro (= do subadquirente) é, sob o aspecto da titularidade dos direitos transmitidos, perfeitamente válido, não havendo nada para anular. 43 No nosso trabalho (nota 28) ainda nos interrogámos se a protecção concedida pelo artigo 291.º não era demasiadamente escassa (pp. 143/4).
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!) O pressuposto registral-formal da prioridade dos registos Falta analisar o último pressuposto, agora meramente registral-formal: o registo da aquisição do terceiro deve ser anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação do primeiro negócio (artigo 291.º, n.º1, quase in fine). Tendo em conta que os registos lavrados a respeito de aquisições nulas não fazem fé pública, uma vez que os direitos registados não existem na pessoa do titular inscrito, tal não significa, porém, que os registos não tenham valor. Pelo contrário, um pouco (!) à semelhança de um contrato nulo que ainda conserva funções formais para definir o conteúdo do direito protegido pelo artigo 291.º, também no caso da falta de efeitos presuntivos os registos feitos mantêm funções formais relevantes para estabelecer prioridades (e para manter o trato sucessivo) e para premiar quem for diligente e registar em primeiro lugar.44 E o Museu foi diligente, pois como sabemos dos factos enunciados, ele registou o seu contrato de aquisição em primeiro lugar, antes do registo da acção. gg) A protecção limitada de terceiros nos pressupostos exíguos do artigo 291.º Com isso estão reunidos todos os pressupostos do artigo 291.º: (1) o negócio respeita a bens móveis sujeitos a registo, (2) os direitos foram adquiridos, (3) a título oneroso, (4) sobre o mesmo bem, (5) por terceiro de boa fé, (6) o registo da aquisição do terceiro foi anterior ao registo da acção de nulidade, (7) a acção de nulidade foi proposta e registada passados três anos sobre o negócio. 44 São esclarecedoras as considerações, feitas por ocasião da elaboração do Código Civil, por Rui de Alarcão (nota 1), pp. 199, 242, 250: “(…) Por último, estabelece-se que os terceiros adquirentes só serão protegidos, validando-se as suas aquisições, se as houverem registado, antes de feito o registo da acção de nulidade ou de anulação. Claro que sempre deveria requerer-se que a aquisição tivesse lugar antes do registo da acção de nulidade ou de anulação, nem, de contrário, tal aquisição teria sido feita de boa fé. Mas, mais do isso, exige-se que o registo da aquisição (e não apenas a própria aquisição) se tenha verificado antes da inscrição no registo da acção de nulidade ou de anulação. Faz-se esta exigência (…) como meio de incentivar o registo, mas sem deixar de reconhecer-se que se presta a críticas, no sentido do dever antes atender-se, para a protecção dos terceiros, ao momento da própria aquisição, que não o respectivo registo (…).” O texto em itálico é do autor citado, os sublinhados são meus.
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Em consequência disso, o direito adquirido pelo Museu fica protegido de uma declaração de nulidade,45 pois a acção proposta por António é julgada improcedente quanto à rstituição.46 Resta saber se este resultado satisfaz o nosso “sentimento de justiça”, 45 Se tivermos em atenção as modalidades da aquisição de direitos – aquisição originária versus aquisição derivada – podemos admitir perfeitamente que a aquisição do terceiro, nos moldes em que se concretizou na sequência de negócios nulos, é uma aquisição originária. Na verdade, ao conjugar os factores que contribuem para a aquisição do terceiro, temos (1) como elemento material decisivo, a boa fé como facto constitutivo do direito e pressuposto da atribuição do(s) direito(s) por força da lei e (2) como elemento formal o contrato nulo que apenas define os precisos termos do direito adquirido.
Ora bem, se, embora não independentemente dele, o terceiro não adquire com base ou por força do contrato nulo, não haverá aquisição derivada, mas sim aquisição originária: com base na sua boa fé, facto constitutivo do seu direito, o terceiro adquire contra o primeiro transmitente, cujo direito fica extinto. Por isso, já sustentámos em trabalho anterior – Zum Erwerb vom Nichtberechtigten im System des Portugiesischen Bürgerlichen Gesetzbuchs, Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia-1984», Coimbra 1988, pp. 86 e seguintes – que a aquisição do terceiro é originária. A este respeito, Raúl Guichard, Da relevância jurídica do conhecimento no direito civil, Porto 1996, pp.80 a 89, contesta a nossa posição – sem nos convencer. Para Raúl Guichard, o elemento decisivo para a aquisição do terceiro é, em última instância, o contrato nulo celebrado entre ele e o transmitente, mas não a boa fé do terceiro, sendo assim a aquisição derivada do título nulo. Além disso, tratar-se-ia de um caso semelhante à «aquisição coactiva de direitos (reais)» em que não era necessário o concurso da vontade do verdadeiro titular. Neste contexto acrescenta, que já Manuel de Andrade [Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4.ª reimpressão, Coimbra 1974, pág. 14] tinha acentuado que o concurso da vontade do verdadeiro titular não caracteriza a aquisição derivada. Obviamente, Manuel de Andrade tem razão. Todavia, a situação em apreço é diferente. Raúl Guichard inverte os factores decisivos da aquisição do terceiro. Se a boa fé deste é, como é, o facto constitutivo do seu direito, o título nulo apenas pode ter um papel secundário, importante, sem dúvida, mas não obstante complementar. Sem a existência da boa fé do lado do adquirente, o título nulo não vale nada. Por isso, a aquisição não é derivada do título nulo mas apenas delimitada por ele na medida em que, formalmente, descreve o conteúdo do direito legalmente adquirido. De resto, a «aquisição coactiva de direitos (reais)» não é uma figura que se ajuste às relações entre o primeiro transmitente e o terceiro adquirente, pois este não adquire por força de qualquer acto coactivo como sucede, por exemplo, na execução específica de um contrato-promessa ou na constituição forçada de um direito real limitado (maxime: uma servidão) por decisão judicial. Por fim, no que concerne ao registo, é de dizer que, a partir do trânsito em julgado da sentença com a qual António decai, (re)começam a funcionar, normalmente, as presunções dele derivadas, agora a favor do Museu, nos precisos termos em que o seu direito ficou protegido. As presunções tinham deixado de funcionar devido à nulidade das aquisições que foram registadas. Todavia, o registo destas aquisições, embora não fazendo fé pública, assume funções formais, ou seja, garante o trato sucessivo do primeiro transmitente (aqui António), passando pelo segundo transmitente (aqui Hugo), para o terceiro adquirente (aqui o Museu). Em resultado: para o futuro (e com efeitos retroactivos desde a aquisição pelo terceiro? [ver nota 40]), a fé pública do registo na pessoa do terceiro adquirente está perfeitamente preservada, como deve ser. 46
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uma vez que – por efeito da protecção de um terceiro de boa fé – fica consolidada a venda de um bem, por um décimo do seu preço real, feita em ofensa dos bons costumes. 3. A APLICAÇÃO ANULÁVEIS
DO
ARTIGO 291.º
NA
SEQUÊNCIA
DE
NEGÓCIOS
Enquanto o nosso primeiro exemplo incidiu, embora em duas versões, sobre negócios nulos, o segundo exemplo que vamos expor respeita a um negócio anulável. Como veremos, agora parece ser mais fácil encontrar uma solução. a) A celebração de negócios subsequentes a seguir a um negócio anulável Imaginemos que António vendeu o automóvel a Hugo que o enganara ao convencê-lo que o veículo, apesar da marca sonante, não tinha grande valor.47 Vinte meses após a aquisição, Hugo vende o automóvel ao Museu. Passados outros vinte meses, Salvador visita o Museu e, a seguir, informa o irmão que o automóvel, vendido há mais de três anos por um preço irrisório a Hugo, era, ao contrário das afirmações feitas por este, uma autêntica peça de museu e muito valioso. b) O regime de um negócio anulável: a produção provisória de todos os efeitos negociais pretendidos; a validade dos negócios subsequentes Ao analisar os contratos de compra e venda que foram celebrados – e, neste contexto, pressupomos que todos eles foram devidamente registados –, vemos logo que o primeiro contrato é anulável por dolo (artigos 253.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1). Contudo, um negócio anulável, em nítido contraste com um negócio nulo, produz desde o momento da sua celebração todos os efeitos pretendidos pelas partes, embora sujeitos à anulação (artigos 287.º e 289.º). Isto significa que os efeitos de um negócio anulável se produzem apenas a título provisório ou precário, e só acabam por ser extintos se o negócio for anulado. Por isso, em comparação com um negócio nulo, onde os efeitos pretendidos não se 47 Dentro da finalidade deste trabalho, não tem qualquer sentido útil, desenvolver um exemplo relativo a um móvel não sujeito a registo. Neste sentido também a conclusão supra quanto à função protectora do artigo 291.º.
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produzem ipso iure, um negócio anulável, enquanto não houver uma decisão judicial que decrete a sua anulação, é tratado como se fosse válido.48 A anulabilidade de um negócio deve ser invocada mediante acção.49 Desta maneira, o contrato de compra e venda, celebrado entre António e Hugo, produz os efeitos essenciais enumerados no artigo 879.º: a obrigação de pagar o preço, a obrigação de entregar a coisa e, sobretudo, o efeito real da transmissão da propriedade. Quer dizer, Hugo passou a ser proprietário do automóvel, a título provisório, é certo, mas não obstante verdadeiro e pleno proprietário nos termos do artigo 1305.º. Por isso, quando Hugo vende o automóvel ao Museu, o contrato é – sob o aspecto da titularidade (que está aqui em causa) – perfeitamente válido:50 o Museu, como comprador, adquire a propriedade. E, para este efeito, nem interessa sequer se está – em relação ao vício que afecta o primeiro negócio – de boa ou má fé: só interessa que adquire a um verdadeiro proprietário! A propriedade adquirida pelo Museu não é, porém, uma propriedade estável. Isto é legalmente impossível. Devido à anulabilidade do seu contrato de aquisição, o transmitente, Hugo, era apenas proprietário a título precário. Assim, Hugo pode sem dúvida transmitir a propriedade mas, obviamente, em consequência da actuação objectiva do princípio “nemo plus iuris (…)”, apenas como propriedade provisória.51 É uma propriedade provisória que o Museu adquiriu, por via contratual. Claro, quando o Museu estiver de boa fé só pode julgar ter adquirido uma propriedade estável e definitiva. Contudo, devido à objectividade da regra “nemo plus iuris (…)”, a realidade jurídica verdadeira é diferente da representação 48 Ver por todos, C. A. Mota Pinto (nota 20), pág. 621: “O negócio anulável é, em princípio, apesar do vício, tratado como válido.” 49 À parte o acordo admitido pelo artigo 291.º, n.º 1, in fine, uma solução que – como já mencionámos em nota anterior (nota 3) – fica fora das nossas considerações. 50 Naturalmente, poderão surgir sempre outras causas de invalidade (das incapacidades de exercício e da incapacidade acidental até à inobservância da forma legal, das faltas e vícios da vontade até ao negócio contrário à lei). 51 A situação assemelha-se aos actos dispositivos realizados na pendência da condição (artigo 274.º, n.º 1). Cf. Pires de Lima / Antunes Varela / Henrique Mesquita (nota 6): “(…) é possível a alienação de direitos condicionais, como condicionais, sujeitando-se o adquirente (…) à contingência da verificação da condição.”
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subjectiva do Museu adquirente.52 Este nunca passa de um proprietário provisório, embora não o saiba. c) Os efeitos e o alcance da sentença de anulação; o artigo 289.º, n.º1, 1.ª parte Por outro lado, com a informação recebida do seu irmão, António ficou desenganado e assim acabou de cessar o vício (i.e., o dolo) que serve de fundamento à anulabilidade do seu contrato celebrado com Hugo. Logo a seguir, António propõe (com base nos artigos 254.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1) uma acção de anulação contra Hugo, que também veio a ser imediatamente registada. Se a acção é julgada procedente, em princípio, de acordo com o artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte, “a anulação do negócio (tem) efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (…)”. Em nítido contraste com as consequências de uma decisão judical de nulidade, a anulação tem efeitos retroactivos e constitutivos: ela altera de imediato a situação jurídica existente na medida em que destrói os efeitos jurídicos até agora provisoriamente produzidos pelo negócio anulado, e isto, tanto em relação às partes como em relação a terceiros que, entretanto, hajam adquirido com base no negócio anulado. Em sede conceptual,53 tudo se passa como se o negócio anulado não tivesse sido celebrado, quase como se fosse nulo desde o início. Isto significa, para o nosso caso concreto, que – na lógica conceptual das consequências da anulação – a propriedade transmitida por mero efeito do contrato (artigos 879.º, alínea a), e 408.º, n.º 1) de António a Hugo, volta por mero efeito da decisão judicial (artigo 289.º, n.º 1: efeito imediato da anulação) do terceiro adquirente para o primeiro alienante, ou seja, de Hugo a António, devendo este devolver o preço e aquele o automóvel (entretanto vendido ao Museu). Ao mesmo tempo, a venda entre Hugo e o Museu, inicialmente válida, é transformada 52 E se o negócio vier a ser anulado, verificamos que a realidade é – como sempre sucede – mais forte. 53 São instrutivas as considerações de Maria Clara Sottomayor (nota 1), pp. 573 a 585, e, entre, estas a pág. 574 com a nota 95 e as pp. 577/578.
São também elucidativos os trabalhos preparatórios, coligidos por Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas, IV, Arts. 285.º a 333.º, Viseu 1969, pp. 43 a 50.
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retroactivamente em venda de coisa alheia e, como tal, nula (artigo 892.º, 1.ª parte), assim deixando o Museu de ser, também com efeitos retroactivos, o proprietário (provisório), de modo que será obrigado a restituir o automóvel a António. d) A protecção do direito provisório do terceiro, adquirido por contrato válido, pelo artigo 291.º como direito definitivo; a aquisição do terceiro «a domino»; o artigo 291.º como excepção ao princípio “nemo plus iuris (…)” De novo, para obstar aos efeitos decorrentes do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte, a protecção do terceiro [adquirente (o Museu)] – contra o primeiro [transmitente (António)] – compete, dentro dos seus pressupostos, ao artigo 291.º. Já sabemos como esta norma protege os terceiros nos seus direitos adquiridos, em caso de nulidade dos negócios aquisitivos, contra os efeitos previstos no artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Também analisámos como a aquisição e a protecção do terceiro se dão gradualmente. Assim, é natural pensarmos que o modo de protecção, no caso de negócios anuláveis, seja o mesmo.54 Todavia, isto não é o caso. A solução da lei é agora diferente e não pode deixar de ser diferente. Na verdade, o artigo 291.º determina que a invalidação do negócio jurídico “não prejudica os direitos adquiridos” por terceiro de boa fé mas, como já constatámos, sem nos dizer quais são, em concreto, estes direitos. Ora bem, no caso de negócios nulos, estes direitos resultam sempre da lei, embora tão-só quando o terceiro esteja de boa fé. No caso de negócios anuláveis, porém, a situação é diferente; aqui os direitos do terceiro resultam sempre de um contrato, mesmo que não esteja de boa fé. O terceiro adquirente é – até à anulação do negócio precedente (i.e., do primeiro negócio) – sempre verdadeiro titular de um direito contratual, não obstante este ser provisório. Acontece que a provisoriedade pode cessar, e com efeitos retroactivos, a partir do momento em que o primeiro negócio anulável vier a ser confirmado (artigo 288.º, n.os 1 e 2) ou se
54 Neste sentido ainda o nosso estudo (nota 28), pp. 142/143. Contudo, este entendimento carece de base legal, como reconhecemos logo num trabalho posterior, A função do registo como meio de protecção do tráfico jurídico, Regesta, N.º 70 (15 de Fevereiro de 1986), pág. 300/P com a nota 55.
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consolidar,55 com a consequência de o direito adquirido pelo terceiro passar, de modo igual com efeitos retroactivos, de provisório a definitivo, mesmo que o terceiro, no momento da sua aquisição, sabia positivamente que o negócio anterior, agora confirmado ou consolidado, estava viciado. Daí resulta sem margem para dúvidas que, em caso de anulabilidade do negócio precedente, o direito do terceiro, susceptível de ser preservado pelo artigo 291.º contra os efeitos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte, não é um direito legal (como sucede na sequência de negócios nulos que produzem efeitos laterais por lei), mas um direito contratual. Este direito, devido ao processo aquisitivo, caracteriza-se pela sua provisoriedade. É exactamente perante esta situação jurídica que opera a norma do artigo 291.º. Mas, bem ao contrário do seu papel nos negócios nulos em que, a seguir à aquisição com base no artigo 892.º, 2.ª parte, “aperfeiçoa” o direito legal do terceiro, o artigo 291.º não tem (nem pode ter) agora esta função: o terceiro já adquiriu um direito contratual bem definido de que é titular provisório. Portanto, a tarefa não é a de “aperfeiçoar” um direito do terceiro adquirido por lei (ao transformá-lo de relativo em absoluto), mas é a de decidir se o direito do terceiro adquirido por contrato fica ou não prejudicado pelos efeitos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte. Por outras palavras, no caso da anulabilidade do negócio precedente, o artigo 291.º não decide como o terceiro adquire mas decide, isso sim, se o terceiro pode ficar ou não com o direito 55 A confirmação está prevista no artigo 288.º, concebido para facilitar a mesma, e a consolidação dá-se em consequência da caducidade do direito de anulação estabelecido no artigo 287.º.
Até pode suceder – e com certeza também sucederá – que confirmação e consolidação ocorram ainda antes de ter expirado o prazo de três anos estabelecido pelo artigo 291.º, n.º 2, de modo que nem sequer resta qualquer campo de aplicação para o artigo 291.º. O terceiro já se encontra protegido, indirectamente, pela confirmação ou consolidação do negócio anulável que precede a sua aquisição. E, se assim suceder, não deixa de ser interessante (e contraditório) – atendendo à ponderação de interesses, feita pelo artigo 291.º – que o terceiro, nestas situações, acaba por ficar protegido mesmo que esteja de má fé em relação ao vício que afectou o negócio anulável precedente. Ora bem, sendo o negócio nulo tudo isto não é possível. A situação jurídica é perfeitamente diferente. Aqui não há nada para confirmar e a nulidade pode ser invocada sem dependência de um prazo (e não parece que redução ou conversão do negócio nulo precedente possam salvar, indirectamente, um negócio subsequente nas situações que aqui interessam).
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contratual provisoriamente adquirido. Significa isto que, antes da satisfação de todos os requisitos enunciados no artigo 291.º (e não me parece necessário repeti-los aqui), a aquisição do terceiro não é segura e como tal perfeitamente reversível. Nestas circunstâncias a decisão do artigo 291.º é simples: o terceiro apenas pode ficar com o direito adquirido se estiver de boa fé, ou seja, se desconhecia, sem culpa, o vício do negócio anulável precedente (artigo 291.º, n.º 3). Neste caso, o artigo 291.º (1) impede que se produzam os efeitos retroactivos e restitutivos da anulação e (2) preserva os contratos anteriormente celebrados e os direitos neles constituídos. Quer dizer, à semelhança do que se verifica no caso da confirmação (ou da consolidação) do negócio precedente, os direitos do terceiro mantêm-se a partir da celebração do seu contrato aquisitivo e, ao mesmo tempo, passam de provisórios a definitivos. Esta consequência é o resultado de um efeito formalprocessual: além do autor, que decaiu com a sua acção de anulação, não há outros legitimados para anular o negócio precedente.56/57 Deste modo, objectivamente, o terceiro acaba por conseguir a situação jurídica que, subjectivamente, na sua boa fé, já julgava existir: a aquisição de um direito estável no momento da conclusão do seu negócio. Podemos concluir que, em caso de anulabilidade do negócio precedente, o terceiro adquire o seu direito, quanto à sua raiz e ao seu conteúdo, por via contratual, do seu transmitente, adquire portanto «a domino»; mas, quanto à estabilidade do direito, adquire com base na sua própria boa fé, que a lei por meio do artigo 291.º protege58. Ou seja, primeiro, o terceiro adquire, provisoriamente; a seguir, o artigo 291.º consolida e protege o 56 Também aqui, o artigo 291.º acaba por proteger o terceiro adquirente in rem. Contudo, o “modo de protecção” na sequência de um anterior negócio anulável (onde flúi de regras processuais) é diferente do modo quando o negócio precedente é nulo (onde resulta do direito material). Esta diferenciação é lógica: no primeiro caso temos uma aquisição «a domino» e no segundo «a non domino». 57 Podemos pensar que surgirão problemas quando existem vários legitimados para anular, como sucede, por exemplo, no caso do artigo 125.º, onde há legitimidades concorrentes para pedir a anulação dos actos dos menores. Todavia, se o prazo de três anos a contar da primeira transmissão anulável se verifica em relação a um dos legitimados, há-de verificar-se também no que toca aos outros. 58 Neste sentido já o nosso estudo (nota 28), pp. 111, 136 a 144.
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adquirido em definitivo.59 Deste modo verificamos que o artigo 291.º é, outra vez, uma excepção ao princípio “nemo plus iuris (…)” na medida em que faz com que um alienante transmita um direito mais forte do que tem. e) A protecção limitada de terceiros nos pressupostos exíguos do artigo 291.º Voltando ao nosso caso, que cumpre decidir, podemos constatar de novo, que do lado do Museu estão preenchidos todos os pressupostos estabelecidos no artigo 291.º para que o seu direito contratual não fique prejudicado. Concluímos então que nenhuma obrigação de restituir recai sobre o Museu e que a propriedade adquirida lhe fica preservada em termos definitivos. Em contrapartida, a acção de anulação proposta por António é julgada parcialmente improcedente na medida em que não se verificam os efeitos retroactivos e restitutivos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte, em virtude do artigo 291.º. 4. OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES. Tendo assim ficado resolvidos os casos enunciados, falta fazer algumas observações que se destinam a complementar as considerações anteriores a respeito das exactas funções que competem ao artigo 291.º. Para o efeito, vamos variar o nosso exemplo mais uma vez. a) A obrigação de restituir o valor entre as partes Suponhamos que, em qualquer dos casos, um incêndio destruiu os objectos adquiridos pelo Museu ainda antes de terem decorrido três anos sobre a conclusão do negócio nulo ou anulável. Não obstante, é proposta a acção de nulidade (por Salvador) ou de anulação (por António), contra Hugo. Nestas circunstâncias, e depois de proferidas as decisões de anulação ou de declaração de nulidade, a restituição em espécie não é possível, como sucederá, de resto, em tantos e tantos outros 59 Quer dizer, tanto em caso de nulidade como de anulabilidade, o artigo 291.º protege sempre o direito adquirido pelo terceiro de acordo com o conteúdo do seu contrato e a partir do momento da celebração deste (contudo, neste último ponto temos pequenas dúvidas em relação ao caso da nulidade [ver nota 40]). Aliás, doutra forma não pode ser (ou não deve ser) porque a protecção do artigo 291.º tem que ter um sentido útil, comum a ambas as modalidades da invalidade.
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casos.60 Por isso, nenhuma obrigação de restituir “tudo o que tiver sido prestado” pode atingir terceiros. Em consequência disso, aplica-se o disposto no artigo 289.º, n.º 1, 2.ª parte: se a restituição em espécie não for possível, deve ser restituído o valor correspondente. Esta obrigação de restituir o “valor correspondente” cingese agora às partes do negócio invalidado. Os problemas que surgem neste contexto são múltiplos e complicados e não os podemos analisar ou resolver aqui.61 Só queremos focar um aspecto, aliás evidente em todos os nossos exemplos: os negócios celebrados entre as partes iniciais têm sempre um desequilíbrio acentuado entre as prestações na medida em que uma das partes (António) é vítima da outra (Hugo). Em situações deste género, a obrigação de restituir deve ser acompanhada, necessariamente, por uma obrigação sancionatória (ou indemnizatória). Caso contrário não se faz justiça e, além disso, não se regressa (em termos económicos) ao equilíbrio do estado quo ante, como se o negócio nunca tivesse sido celebrado.62 Com base nestas considerações, as acções de nulidade ou de anulação propostas, respectivamente, por Salvador ou António contra Hugo para restituir o valor terão êxito. Deste modo, Hugo restituirá o valor económico real dos objectos por ele adquiridos por um preço irrisório a António, sendo o valor corrigido, se for preciso, em função da desvalorização monetária entretanto verificada. b) A obrigação de restituir o valor àquele cujo direito ficou preterido por efeito da protecção do terceiro adquirente Neste contexto, é imprescindível sublinhar ainda um outro aspecto: nos exemplos que analisámos e em que Salvador e 60 Escrevem Pires de Lima/Antunes Varela/Henrique Mesquita (nota 6), Anotação ao artigo 289.º: “A restituição em espécie (…) não é possível em muitos casos: pode a coisa ter sido consumida ou ter desaparecido, e pode ter-se constituído um direito de terceiro, que deva ser respeitado nos termos do artigo 291.º (sublinhado meu). Nestes casos haverá lugar à restituição em valor.” 61 Para mais desenvolvimentos remetemos, outra vez, para o bonito estudo de Maria Clara Sottomayor (nota 1) que se debruça nomeadamente sobre a necessidade e justeza da actualização do valor a restituir. 62 Também neste ponto concordamos com Maria Clara Sottomayor (nota 1), pp. 600 e seguintes.
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António decaem nas suas acções (parcialmente), em consequência do facto de o artigo 291.º ter protegido a aquisição do Museu, sempre lhes será possível (e viável) pedir a restituição do valor a Hugo nos precisos moldes que acabam de ser expostos.63 Nesta medida, a restituição do valor, por aplicação do artigo 289.º, n.º 1, 2.ª parte, equilibra de certo modo, economicamente, a perda do direito do primeiro alienante a favor do terceiro adquirente.64 II. A APLICAÇÃO PERVERSA DO REGIME DO ARTIGO 291.º
Se nos lembramos ainda das afirmações introdutórias, feitas no início desta conferência, e se as compararmos agora com o que dissemos ao longo da mesma, tenho a esperança de ter contribuído, de alguma maneira, para que o artigo 291.º apareça como uma norma um pouco menos obscura. 1. A FINALIDADE PROTECTORA DO LEGISLADOR E DA LEI, QUANTO A TERCEIROS, PELO ARTIGO 291.º Na verdade, o artigo obedece a uma lógica intrínseca perfeita e revela as suas finalidades de uma maneira inequívoca, embora provavelmente não de imediato, à primeira leitura. Este facto deve-se à sua correlação com o artigo 289.º, n.º 1, que é uma norma demasiadamente “compactada” ao compreender na sua redacção as consequências tanto de uma acção de nulidade, como de uma acção de anulação, e ainda as correspondentes (acções de) restituições e, tudo isto, não só em relação às partes como também no que respeita a terceiros (que são todos os subadquirentes). É precisamente em função destes terceiros e da sua protecção que o artigo 291.º foi concebido e introduzido na lei, o Código Civil vigente. Podemos dizer que, dentro da sua finalidade de proteger terceiros – contra os efeitos do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte –, o artigo 291.º encontrou as respostas diferenciadas a uma norma indiferenciada. 63 É esta a nossa posição e é ainda neste sentido que entendemos Pires de Lima/Antunes Varela/Henrique Mesquita (nota 6), Anotação ao artigo 289.º. 64 Uma “protecção subsidiária” para as partes do negócio inicial ainda resulta do n.º 2 do artigo 289.º que determina: “Tendo alguma das partes alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efectiva contra o alienante a restituição do valor dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, ma só na medida do seu enriquecimento.”
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Até à introdução do artigo 291.º, a lei foi parca, demasiadamente parca, na protecção de terceiros adquirentes.65 Apenas o registo predial (e os registos nele baseados), além de algumas soluções pontuais, protegeu um terceiro adquirente com base nas presunções do registo. Contudo, em atenção às necessidades da segurança do tráfico jurídico negocial e para honrar a confiança de quem participar nele honestamente, esta protecção existente foi considerada insuficiente pois não contemplava os casos da invalidade subsequente. Precisamente por isso, no intuito de melhorar a protecção dos terceiros, acrescentou-se ao regime do registo – que ficou preservado na íntegra (!) – mais um amparo: o regime consagrado no artigo 291.º, concebido a favor do terceiro de boa fé, e como tal merecedor de protecção devido à sua confiança investida, que adquiriu um direito em seguida a um negócio precedente inválido e cuja invalidade desconhecia sem ter culpa. Esta orientação protectora da lei é muitíssimo clara: ela quer um mais de protecção e não um menos em comparação com a situação anterior. 2. OS LIMITES ESTREITÍSSIMOS PARA A PROTECÇÃO DE TERCEIROS CONCEDIDA PELO ARTIGO 291.º, UMA NORMA EXCEPCIONAL POR EXCELÊNCIA Todavia, mesmo com esta finalidade específica, o artigo 291.º não é uma cornucópia de protecção. Bem pelo contrário, a norma faz uma ponderação muito cuidadosa e equilibrada dos interesses em jogo. Pois sempre que o artigo 291.º protege o “direito adquirido” de um “terceiro”, pretere o direito anterior de um “primeiro”. Reside aqui uma das razões que explica o seu carácter excepcional, quase diria “super-excepcional”. Na verdade, como tivemos ocasião de verificar ao resolver os nossos casos enunciados, o artigo 291.º apenas protege o terceiro em termos muito limitados contra os efeitos da declaração de nulidade e da anulação, sendo sempre certo que a situação
65 Ver, Mário de Brito (nota 14); J. Antunes Varela, Anotação, RLJ 118 (1985/1986), pp. 282, 285, 310 e seguintes; Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos (nota 54) que reproduz os trabalhos preparatórios relativos ao artigo 291.º.
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normal é a da aplicação incontida do artigo 289.º, de acordo com o princípio “nemo plus iuris (…)”. Assim, a utilização do artigo 291.º pressupõe, desde logo, a possibilidade da restituição em espécie, que muitas vezes não é realizável. Depois, a previsão da norma não abrange a grande maioria dos bens, ou seja, toda a imensidade dos bens móveis não sujeitos registo (seja qual for o seu valor). Além disso, não encara todas as aquisições do terceiro, mas unicamente as feitas a título oneroso. De resto, durante um período de três anos a seguir à celebração do negócio inválido precedente, a norma até actua em defesa do primeiro alienante e só a seguir opera a favor do terceiro. Acrescem a tudo isto os requisitos, aliás em termos bastante rigorosos, da boa fé e, mais ainda, a exigência da prioridade do registo da aquisição do terceiro sobre o registo da acção de nulidade ou anulação, em obediência ao princípio registral da prioridade e à necessidade da segurança no tráfico jurídico. Unicamente quando estão reunidas todas estas condições (de)limitativas prévias, é criado o espaço para a aplicação do artigo 291.º que – como já antecipámos – constitui uma norma triplamente excepcional: (1) estabelece uma excepção ao regime geral do artigo 289.º, n.º 1, 1.ª parte; (2) é um desvio ao regime geral das coisas móveis, ressalvado pelo n.º 2 do artigo 205.º, e (3) consagra, em duas formas, uma excepção ao princípio “nemo plus iuris (…)”. Quer dizer, o artigo 291.º é uma norma excepcional no sentido mais genuíno do artigo 11.º do Código Civil, ou seja, uma norma excepcional por excelência. 3. A PERVERSÃO COMPLETA DO ARTIGO 291.º POR UMA PARTE DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA Todavia, acontece que uma parte da doutrina, bem como a jurisprudência nela fundamentada, têm um entendimento totalmente diferente a respeito do artigo 291.º e pervertem, por completo, o seu sentido e a sua finalidade. Vamos ver alguns exemplos “elucidativos”. a) A aplicação do período de três anos ao negócio aquisitivo do terceiro
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Ainda há pouco tempo, num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), foi escrito e decidido o seguinte: “(…) o art. 291º protege dos efeitos da declaração de nulidade os direitos adquiridos sobre esses bens por terceiro de boa fé. (…) Como é óbvio, a acção que deve ser proposta e registada dentro dos 3 anos posteriores à conclusão do negócio, é a acção de nulidade ou de anulação do negócio originário do caso (…). Trata-se, pois, do 1° negócio, pois é a nulidade dela que vai afectar a validade do 2° negócio, por via do qual o terceiro subadquirente adquiriu os direitos que se pretende proteger. (…) Mas, por outro lado, os 3 anos referidos no nº 2 do preceito em análise, contam-se desde a conclusão do negócio, sendo que tal negócio há-de ser o que for celebrado entre o (…) adquirente e o terceiro subadquirente, não o negócio original gerador da nulidade sequencial.66 É que o terceiro que está em causa quando se trata de fazer valer a protecção do art. 291º é o subadquirente depois da celebração do negócio inválido, daí que só o negócio em que este interveio pode interessar. É ele que se consolida.”67 Pois bem, isto não faz sentido útil nenhum. Primeiro, não é verdade que a acção de nulidade ou anulação deve ser proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. Esta acção pode ser proposta perfeitamente depois, e o direito do seu autor prevalece se o terceiro não tiver sido diligente e não tiver registado a sua aquisição antes do registo da acção. Segundo, a contagem do prazo a partir do negócio em que interveio o terceiro adquirente conduz a um resultado perfeitamente perverso que contraria de todo a finalidade protectora da norma do artigo 291.º. Basta ver um exemplo68: Augusto, casado, vende ao seu filho Dário, nascido na constância do seu matrimónio, um terreno. Dez ou doze anos depois, Dário vende o mesmo terreno a um investidor. Todos os 66
O sublinhado não é nosso mas do próprio acórdão citado.
67
Acórdão do STJ CJ - Ano XII - Tomo III - 2004, pp. 78, 82.
68 Inspirámo-nos no caso decidido pelo acórdão do STJ, BMJ 315 (Abril 1982), pp. 256: “É anulável a venda feita a um filho quando à data da outorga da escritura já existia um outro filho do vendedor, fora do matrimónio, e que só foi registado e perfilhado posteriormente.” O acórdão foi anotado, criticamente, por J. Antunes Varela RLJ 118 (1985/1986), pp. 339, 343 a 345, e RLJ 119 (1986/1987), pp. 22 a 28. Não obstante a insatisfação compreensível a que o resultado prático do acórdão possa levar (no caso decidido os efeitos limitaram-se às partes) pensamos que o acórdão está em perfeita sintonia com as leis aplicáveis.
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contratos foram devidamente registados. No ano seguinte (ao da venda de Dário a um investidor) Augusto morre e deixa um testamento em que perfilha Gonçalo, um filho nascido fora e antes do seu casamento. Gonçalo (com base nos artigos 1797.º, n.º 2; 877.º e 287.º) propõe e regista de imediato uma acção de anulação do contrato de compra e venda celebrado entre o seu pai Augusto e seu irmão Dário, invocando que na altura não tinha dado o seu consentimento. Gonçalo ganha a causa e, de acordo com o STJ, o direito adquirido pelo investidor fica prejudicado por não terem decorrido três anos após a sua aquisição. Isto não pode ser!69 Porque, se assim fosse, ter-se-ia alcançado o fim da segurança do tráfico jurídico sobre bens sujeitos a registo70 e a inutilização ou eliminação, em larguíssima medida, da norma protectora do artigo 291.º cuja inserção na lei quase se revelaria como dispensável. Além disso, há um outro aspecto a considerar, também importante. Como já referimos, com o disposto no n.º 2 do artigo 291.º a lei proporciona aos interessados na declaração de nulidade ou anulação do negócio (na maioria dos casos será o primeiro transmitente) um lapso de tempo considerado suficiente para se defenderem em tribunal, ou seja, um “período de defeso” de três anos a partir do primeiro negócio. Mas o STJ, ao contar o prazo de três anos a partir da conclusão do negócio aquisitivo do terceiro não só se encarrega em destruir o cuidadoso equilíbrio encontrado 69
Se o investidor for estrangeiro, provavelmente fará futuros investimentos noutro país.
Sendo o primeiro negócio anulável, o prazo para invocar a anulabilidade é quase infindável – um ano a partir da cessação do vício que lhe serve de fundamento – e isto pode suceder 10, 15 ou mais anos depois. Segundo o STJ, o terceiro – com toda a sua boa fé, confiança, diligência e o registo atempado da sua aquisição que, quanto à titularidade, foi uma aquisição válida (!) – fica prejudicado nos seus direitos adquiridos se não tiverem passado ainda mais três anos sobre o seu próprio negócio aquisitivo. É deveras absurdo. É triste … 70
Ou, para lembrarmos outras constelações possíveis: a seguir ao primeiro negócio declarado nulo ou anulado, pode ter havido, ao longo de vários anos, uma cadeia de transmissões subsequentes. Neste caso, alguém com bom senso lembra-se de contar o prazo de três anos a partir do último negócio? Isto, para não falarmos da espada de Dámocles que penduraria sobre todos os terceiros adquirentes na sequência de um negócio anterior simulado – e dizem que há muitos – que desconhecem a simulação, e cuja nulidade pode ser invocada sem dependência de prazo. Era legítimo esperar que o STJ pensasse nas consequências (jurídicas, económicas e sociais) da sua decisão, tanto mais que no caso concreto sobre que se pronunciou o negócio precedente era precisamente um negócio simulado.
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pelo artigo 291.º como, e isto é ainda pior, desresponsabiliza por completo os interessados na invalidação do primeiro negócio em serem cuidadosos, uma vez que o infeliz do terceiro adquirente, passados mais anos ou menos anos, sempre há-de aparecer. Esta decisão do STJ, já por si só, é grave. Mais grave ainda é que ela – com certeza por ser considerada exemplar – faz parte do material de estudo e de preparação para os candidatos aos exames de admissão ao Centro de Estudos Judiciários.71/72 b) A aplicação do mesmo período à aquisição do terceiro para efeitos do registo aa) A posição de uma parte da jurisprudência Todavia, não contente com o decidido quanto ao momento a partir do qual se deve contar o prazo de três anos, previsto no n.º 2 do artigo 291.º, o STJ, na esteira de outras decisões infelizes em matéria de registo predial, aplicou a norma do artigo 291.º, n.º 2, também a terceiros para efeitos do registo (artigo 5.º, n.º 4, CRegPred), ao sentenciar que os direitos do terceiro não são reconhecidos se não tiverem decorrido ainda três anos sobre a sua aquisição, aliás registada. Antes disso, o primeiro adquirente, que não registou, pode sempre invocar a nulidade da aquisição do terceiro. Assim se lê na sentença em causa: “(…) A venda posterior de um mesmo veículo já antes alienado a um primitivo adquirente pelo mesmo alienante consubstancia uma venda de coisa alheia, uma vez que o vendedor carece já de legitimidade para a fazer, venda essa qua tale ferida de nulidade, nos termos dos arts. 892.º e 289.º do CC. Contudo, a declaração da nulidade desse negócio não é oponível ao primeiro adquirente [que não registou], se não transcorrido ainda o prazo de três anos entre a data da respectiva 71 A este respeito conheço (e possuo) um amplo dossier, preparado para o efeito e destinado a explicar “as várias noções de terceiros” aos candidatos. 72 Também considero grave a afirmação feita no dossier referido na nota anterior (na fl. 4) que, neste ponto, o STJ decidiu no sentido de um parecer meu. Esta afirmação é falsa.
A responsabilidade pela posição assumida pelo STJ resulta, com toda a clareza, do próprio texto da sentença onde se lê, para dar força ao raciocínio desenvolvido: “(Cfr. a este respeito o elucidativo parecer do Prof. Oliveira Ascensão junto aos autos. No mesmo sentido, embora sem fundamentação, quanto a este ponto concreto, cfr. o Parecer do Prof. Menezes Cordeiro, igualmente junto aos autos).” Foi nos autores referidos que o STJ se inspirou.
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celebração e a da propositura da acção judicial e o respectivo registo – art. 291.º, n.os 1 e 2, do CC. (…) Assim, se a acção de declaração de nulidade ou anulação da compra e venda de imóveis (cuja aquisição foi inscrita no registo predial pelo segundo adquirente73 [sic!]) tiver sido registada antes de decorridos três anos sobre a conclusão de tal aquisição, os direitos desse adquirente (terceiro) não são reconhecidos, prevalecendo os do primeiro (adquirente).” 74 Esta decisão só é explicável – se é que há explicação – a partir de uma incompreensão profunda das finalidades e do regime do registo predial português bem como das tradições jurídicas a seu respeito. Assim, estas serão recordadas, de modo sucinto, para mostrar o insustentável absoluto do acórdão proferido. bb) As finalidades do registo predial e, entre elas, a protecção de terceiros Na verdade, desde sempre o registo predial, essencialmente,75 se tem destinado “a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário” (artigo 1.º CRegPred).76 !) A natureza declarativa do registo Para o efeito, o registo possui funções declarativas (ou enunciativas) em obediência ao facto de os direitos nele inscritos se terem constituído fora dele (embora não necessariamente sem 73
O sublinhado é meu.
Acórdão do STJ, de 19.2.2004, CDP, n.º 9, Janeiro/Março 2005, pp. 43 e seguintes, que confirma a decisão correspondente da Relação, com a anotação crítica de Luís M. Couto Gonçalves, pp. 48 a 53, que se pronuncia, com todas as razões pertinentes, “frontalmente contra esta decisão” (pág. 52). 74
Infelizmente, o acórdão pré-mencionado não é um caso isolado (o que é deveras alarmante). No mesmo sentido encontrámos ainda o acórdão do STJ, de 27.4.2005, CJ - Ano XIII - Tomo II - 2005, pp. 74 e seguintes, bem como o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 5.7.2004, processo n.º 0453572 http://www.dgsi.pt. Convém acrescentar, para não deixar a informação incompleta, que todos os acórdãos aqui citados foram votados sem um único voto de vencido! 75 O registo tem ainda outras finalidades como, por exemplo, a identificação física, económica e fiscal dos prédios, através da sua descrição (artigo 79.º CRegPred). 76 O CRegPred de 1967 falava de “direitos inerentes às coisas imóveis”, mas a sua finalidade essencial era a mesma de hoje.
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ele). Quer dizer, primeiro o direito constitui-se (ou adquire-se) e depois de constituído (ou adquirido) regista-se, ou, para ser mais preciso, inscreve-se.77 O registo tem, portanto, uma natureza declarativa.78 Contudo, com a inscrição do direito o registo não garante a sua existência efectiva a favor da pessoa inscrita como seu titular, porque a aquisição do direito pode não ser válida. Tão-pouco assegura a sua permanência a favor do adquirente, na medida em que esta aquisição pode ser retroactivamente destruída pelo exercício de um direito real (e legal) de preferência79 como pode ser destruída em consequência dos efeitos retroactivos de uma decisão de anulação, nos termos do artigo 289.º, n.º 1.80/81 Por isso, o registo não garante, de modo nenhum, a validade da aquisição do direito inscrito; apenas garante que, a ter o direito uma vez existido na pessoa do seu titular, ainda se conserva – ainda não foi transmitido por este a outra pessoa.82 Ao mesmo tempo o registo garante que, se for válida e inatacável a posição do titular inscrito, este pode alienar e transmitir validamente ao adquirente83 a totalidade ou parte dos seus
77 Esta sequência dos factos mostra-nos, com nitidez, que a própria aquisição do direito se realiza com base no direito material (substantivo) enquanto a sua publicidade (com a consequente oponibilidade do direito) é tarefa do direito processual (formal, adjectivo). 78 A natureza declarativa do registo não exclui, que possa ter funções constitutivas complementares em relação a direitos já constituídos (fora dele, como é óbvio), como sucede, nomeadamente, por efeito da aplicação regra da prioridade (o exemplo tradicional), ou da “transformação” do direito relativo legal do terceiro adquirente em direito absoluto (na sequência de negócios nulos) ou, ainda, da solidificação de um direito precário e provisório que passa a ser estável e definitivo (sendo o negócio precedente anulável). 79 Assim, J. Antunes Varela, Anotação ao acórdão do STJ, de 20 de Julho de 1969, RLJ 103 (1970/1971), pág. 468 (= BMJ 188, pág. 164), pp. 475 e seguintes, 483 e seguintes, 487/8 e nota 2 à pág. 487. 80 Para evitar que daí resulte uma desconformidade entre o registo e a realidade jurídica, modificada pela sentença, na própria acção de anulação deve ser pedido não apenas a anulação do negócio como também o cancelamento do registo (artigo 8.º CRegPred). 81 Acresce, como facto agravante, que a situação não é transparente a não ser no caso previsto no artigo 92.º, n.º 1, alínea c), CRegPred onde o registo é provisório por natureza quando se trata da inscrição de um negócio jurídico, anulável por falta de consentimento de terceiro ou de autorização judicial (ou do Ministério Público, por força do n.º 2 do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro). 82 Cf. Manuel de Andrade (nota 10), pág. 20. 83 Aqui é necessário precisar a citação feita, no sentido de que é sempre o adquirente (de boa fé) que acaba por obter uma posição jurídica válida.
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poderes sobre a coisa.84 Visto nestes termos, o valor do registo é bastante frouxo85 e, por causa disso, a lei registral está inevitavelmente concebida em ordem a garantir – em atenção à segurança limitada que um registo meramente declarativo pode dar – pelo menos este valor frouxo. Nesta ordem de ideias, o registo definitivo constitui presunção (1) de que o direito existe e (2) pertence ao titular inscrito (3) nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7.º CRegPred). As presunções derivadas do registo fazem fé até prova em contrário. Nelas baseia-se a fé pública do registo e quem confiar nas presunções adquire – e não tem o ónus da prova quanto à situação jurídica inscrita nem a obrigação de procurar mais informações a seu respeito. !) A necessidade imperiosa de incentivar o registo Se é exactamente através da publicidade da situação jurídica dos prédios – a qual, por esta via, fica acessível ao conhecimento dos interessados – que o registo procura imprimir segurança ao comércio imobiliário, resulta daí a exigência elementar e fundamental que o registo seja o mais completo e abrangente possível. Por isso mesmo há a necessidade imperiosa – até se pode dizer que há um interesse público86 – em incentivar o registo. Tendo em atenção que, para adquirir um direito, a inscrição no registo não interessa e que, para além disso, nem é obrigatória87 84 J. Antunes Varela (nota 79), pág. 468, pp. 475, e seguintes, 483 e seguintes, 487/8; Manuel de Andrade (nota 10), pág. 20. 85 86
Antunes Varela (nota 65), pp. 282, 313. Assim, com inteira razão, Carlos Alberto da Mota Pinto (nota 20), pág. 368.
87 Contudo, até à entrada em vigor, em 1 de Outubro de 1984, do actual Código do Registo Predial, havia alguns concelhos do país em que vigorava o regime do registo obrigatório, com sanções para aqueles que não cumpriram a sua obrigação de registar dentro do prazo legal. Esta obrigatoriedade foi abandonada e substituída pelo actual regime do artigo 9.º, n.º 1, CRegPred. Em virtude disto existe agora para todos os factos aquisitivos sujeitos a registo uma obrigatoriedade indirecta, que se estende a todo o país.
O artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 255/93, de 15 de Julho, estabelece uma excepção (aliás exemplar) para os contratos de compra e venda com mútuo de prédios urbanos destinados à habitação, na medida em que dispõe: “A transferência de propriedade efectuada pela forma referida no artigo 2.º está sujeita a registo obrigatório, devendo a instituição de crédito promover o respectivo registo na conservatória do registo predial competente.” Além disso, há determinados casos especiais, previstos no artigo 40.º CRegPred.
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na medida em que vale o princípio da instância (artigo 41.º CRegPred), torna-se necessário encontrar outras soluções legais adequadas que obriguem as pessoas a registar. Neste sentido, o meio (coercivo) que paira, desde sempre, sobre um adquirente de um direito é a ameaça (lícita) de ele, caso não registe, poder perder o seu direito a favor de um terceiro. Quer dizer, a lei institui o ónus de registar88 e castiga o adquirente irresponsável e negligente, que não regista,89 pela perda do seu direito a favor de um terceiro diligente que, desta maneira, é protegido em resultado de uma sanção que se inflige a quem não registar. O mecanismo formal-registral concebido pela lei a este respeito é deveras simples. Como a publicidade por meio do registo é fonte de conhecimento dos interessados, estes apenas podem saber de factos ou direitos que foram registados.90 Por isso, a lei determina, lapidarmente: “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo” (artigo 5.º, n.º 1, CRegPred). Naturalmente, entre as partes, os factos podem ser invocados mesmo sem haver registo (artigo 4.º, n.º 1, CRegPred), pois elas conhecem-nos;91 todavia contra um terceiro não são oponíveis, precisamente porque ele não sabe dos factos não registados.92 Por isso, fontes do conhecimento do terceiro são as presunções derivadas do registo, a fé pública do registo, e as informações que fornecem. É nesta fé 88
Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra 1966, pp. 43 e
89
Carlos Ferreira de Almeida (nota 88), pp. 43, 102, 150/1.
90
Carlos Ferreira de Almeida (nota 88), pág. 54.
54.
Um caso especial é o registo da hipoteca. Segundo o artigo 4.º, n.º 2, CRegPred exceptuam-se da regra do seu n.º 1 os factos constitutivos de hipoteca cuja eficácia, entre as próprias partes (!), depende da realização do registo. A finalidade deste preceito é evitar fraudes à custa dos outros credores que, caso a excepção não existisse, se podiam ver enfrentados com hipotecas que não conhecem e que poderiam desvalorizar os seus direitos de crédito. Mas a lei não diz, com podia ter feito, que a hipoteca sem registo é ineficaz de todo. 91
Sobre a hipoteca, cf. Isabel Menéres Campos, Da hipoteca. Caracterização, constituição e efeitos, Coimbra 2003, pp. 182 a 189, que faz uma análise “estruturalista” do artigo 4.º, n.º 2, CRegPred e refere as opiniões da doutrina desenvolvida a seu respeito, que dão pouca atenção à ratio legis na norma: a finalidade de evitar fraudes, ou seja, a causa justificativa já referida na primeira lei hipotecária de 1836. 92 Contudo, segundo Carlos Ferreira de Almeida (nota 88), pp. 268/9, 274, “a presunção da ignorância de terceiros pode ser afastada por eles próprios, se for da sua conveniência. Os factos inoponíveis não podem ser invocados contra terceiros, mas podê-lo-ão ser por estes a seu favor.
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pública que o terceiro confia justificadamente (e não em factos que se situam à margem do registo e de que nada sabe nem há-de saber). !) A protecção do terceiro como efeito sancionatório para quem não registar Todos conhecemos o exemplo clássico da dupla venda: António, titular de um direito válido e devidamente registado, de modo que as presunções operam a seu favor, vende um terreno a Bernardo, que não regista a sua aquisição. Não obstante, Bernardo adquiriu a propriedade com efeitos erga omnes por mero efeito do contrato (artigos 408.º, n.º 1, e 879.º, alínea a)), pois a falta do registo não releva para a aquisição de um direito.93 Como Bernardo não registou, o facto da sua aquisição, válida, é perfeitamente invocável entre as partes do contrato; contudo, para efeitos de publicidade registral, a aquisição já não é oponível a terceiros, cujo conhecimento fica determinado pelas presunções derivadas do registo. E no registo aparece-nos ainda, como titular validamente inscrito, o proprietário antigo, António. Em virtude disso, da perspectiva de um terceiro, tudo se passa – como, aliás, não pode deixar de ser – como se o negócio entre António e Bernardo não existisse. Assim, o registo finge a existência de uma situação jurídica que na realidade já não se verifica. Deste modo, o registo está desconforme com a realidade jurídica (mas sem que daí decorra qualquer vício do registo).94 Se, nestas circunstâncias, António, que continua inscrito validamente como proprietário, alienar o terreno a César, pratica evidentemente uma venda (ou, se for caso disso, uma doação) de
93 Foi José de Oliveira Ascensão que tem posto este facto em evidência. Sendo a propriedade um direito real (absoluto), resultam desta própria natureza os efeitos erga omnes característicos da propriedade. Cf. Direito Civil. Reais, 5.ª edição, Coimbra 1993, pp. 360/1: “(…) o direito não registado mantém a oponibilidade erga omnes que é própria do direito real” (sublinhado meu). Na verdade, uma coisa são os efeitos erga omnes, coisa diferente é a inoponibilidade destes efeitos contra determinados terceiros (num sentido técnico) por falta da publicidade registral. Posição diferente, quanto a este aspecto, ainda assume J. Antunes Varela (nota 65), pp. 285, 287/288, em Anotação ao acórdão do STJ BMJ n.º 315, pp. 244 e seguintes. Mas é José de Oliveira Ascensão quem defende a posição correcta. 94 Não existe nenhuma causa de inexistência, nulidade ou inexactidão do registo (cf. os artigos 14.º, 16.º e 18.º CRegPred).
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coisa alheia,95 para a qual não possui legitimidade.96 Não obstante, César pode adquirir (1) desde que esteja de boa fé, por ter confiado nas presunções e na fé pública do registo, e (2) desde que aproveite mais um instrumento formal-registral, ou seja, a regra da prioridade (artigo 6.º, n.º 1, CRegPred), e registe, como pessoa diligente que é, o seu contrato de aquisição em primeiro lugar. Todavia, o terceiro não adquire – por ser legalmente impossível – com base nos mecanismos objectivos ou nos instrumentos formais-registrais de um registo de natureza declarativa, que foram referidos. As normas formais-registrais (normas do direito “adjectivo”) destinam-se e limitam-se tão-só a fornecer-lhe toda a “ferramenta” necessária para que possa adquirir o seu direito com base no direito material (o direito “substantivo”). É exactamente no direito substantivo, no Código Civil, que encontramos as disposições pertinentes a este respeito, ou seja, a norma do artigo 892.º, 2.ª parte,97 relativa à venda de coisa alheia, que prevê a aquisição de um direito por parte do comprador de boa fé e, como norma correspondente, o artigo 956.º, n.º 1, 2.ª parte, quanto à doação de coisa alheia que prevê, em termos paralelos, a aquisição de um direito por parte do donatário de boa fé. Na verdade, como já vimos, a venda de coisa alheia é nula, mas o vendedor não pode opor esta nulidade ao comprador de boa fé. Neste sentido, está de boa fé o terceiro que confia nas presunções do registo. Devido à sua boa fé, o terceiro adquire face ao antigo titular validamente inscrito um direito relativo legal e, com a inscrição do seu contrato de aquisição no registo predial, o seu direito acaba por prevalecer, nos precisos termos em que está
95 Esta é, hoje, a opinião quase unânime e já terá sido também a posição de Manuel de Andrade (nota 10), pág. 20. Em sentido contrário, embora de modo peculiar, Raúl Guichard, Da relevância do conhecimento (nota 45), pág. 81, nota 101. 96 O facto de o alienante continuar validamente inscrito no registo não lhe confere nenhuma “posição registral” “activa” que o legitima a dispor de novo a favor de um terceiro. Em contrapartida, o mesmo facto da continuidade da inscrição legitima, de forma “passiva”, porque sustenta as presunções do registo, a existência da boa fé do terceiro adquirente. 97 Por força do artigo 939.º, o artigo 892.º aplica-se também aos restantes contratos onerosos.
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titulado, sobre o direito do primeiro adquirente.98 Este direito fica preterido – como sanção. O primeiro adquirente há-de assumir este castigo em consequência de não ter registado e, desta maneira, não ter correspondido ao seu ónus de registar.99 A aquisição do terceiro, feita nestes termos, está “de pedra e cal”, seja ela a título oneroso ou a título gratuito – em nítido contraste com o que sucede, numa situação valorativa e de interesses bem desigual, com a aquisição do terceiro para efeitos do artigo 291.º que, conforme a data da sua aquisição, poderá estar sujeito a uma “moratória” – e este resultado insere-se, com a maior perfeição, no objectivo primordial da lei de incentivar o registo.100 De resto, a partir da inscrição do seu direito no registo, as presunções dele derivadas funcionam agora naturalmente, para todos os efeitos, na pessoa do terceiro adquirente e o registo faz fé pública, como corresponde à sua finalidade. Falta dizer que esta aquisição do terceiro é, novamente, uma aquisição «a non domino»,101 como sempre sucede nos casos 98 O modo de aquisição, em dois degraus, é exactamente idêntico àquele que foi descrito no contexto do artigo 291.º a respeito de um negócio nulo (sob I. 2. b), dd), ee) e gg)), e para que se remete. 99 Cf. Luís M. Couto Gonçalves (nota 74), pág. 52: “O primeiro adquirente sofre as consequências de não ter cumprido com o ónus do registo.” 100 A pergunta que, neste contexto, se pode formular legitimamente é a de saber se o fim (promover a publicidade registral) justifica os meios (a perda de um direito validamente adquirido), sendo certo que uma solução com menos custos sociais e morais (a lei acaba por legitimar uma burla praticada por meio de uma dupla disposição pelo falso titular) poderia resultar, por exemplo, de uma alteração do regime da transferência da propriedade. 101 Em sentido contrário Raúl Guichard, Da relevância do conhecimento (nota 45), pág. 81, nota 101: “É certo que a segunda alienação constitui uma venda de bens alheios e «um acto de disposição de direitos alheios». Mas, isso apenas nos termos da relação («interna») entre alienante e adquirente (ulterior). Já não no plano das relações («externas») entre os adquirentes do autor comum, pois que a alienação primeiramente efectuada é inoponível ao adquirente (ulterior), como preceitua o art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial. Portanto, entre si, os terceiros (para efeitos do registo) devem ser considerados adquirentes a domino, configurando-se um conflito entre títulos de aquisição, no qual a lei dá prevalência ao primeiramente transcrito. (...) [Deve entender-se] que a transcrição da segunda aquisição constitui uma conditio iuris resolutiva da anterior aquisição não registada, [e] há-de admitir-se, decerto, que, embora a segunda aquisição inicialmente se possa configurar como a non domino, logo se converte numa transmissão a domino (mantendo o título aquisitivo, conquanto susceptível de ser considerado nulo por se tratar de uma venda de bens alheios, a sua idoneidade abstracta para operar a transferência patrimonial), para todos os efeitos ab origine. Ao registo não caberá, no mecanismo aquisitivo, mais do que a função de tornar retroactivamente inoperante a primeira: «eliminada» esta, a segunda transmissão decorre tão-só do título aquisitivo (a domino) do adquirente (solução perfeitamente consequente com a ideia de que o registo não tem, aqui, qualquer valor constitutivo. (...) Se estivéssemos perante uma aquisição a non domino, então, ela seria a título originário (ou,
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de venda de coisa alheia (ou de doação de coisa alheia), feita sem legitimidade e portanto nula, em que a lei protege um terceiro adquirente, ou seja, estamos, também aqui, perante uma excepção ao princípio “nemo plus iuris (…)”. !) A obrigatoriedade indirecta do registo Contudo, o “processo sancionatório” descrito, que penaliza o adquirente pelo não cumprimento do seu ónus de registar, não é o único meio para incentivar o registo. Com a entrada em vigor do actual Código do Registo Predial102 o legislador, determinado pelo intuito de valorizar a fé pública registral,103 também veio responsabilizar as próprias entidades que titulam os factos sujeitos a registo pela efectivação deste. Com esta finalidade foi introduzido o princípio da legitimação de direitos sobre imóveis, ou seja, “os factos de que resulte transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo” (artigo 9.º, n.º 1, CRegPred que encontra correspondência nos artigos 54.º, n.º 2, e 62.ºdo Código do Notariado).104 Desta maneira, o registo tornouse indirectamente obrigatório, não para adquirir,105 mas para alienar ou onerar.106 A medida só peca por não ter sido introduzida há mais tempo.
alternativamente, seria figurável uma transmissão ex lege do primeiro adquirente (...)”. – Os sublinhados são do autor citado. 102 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho, que no seu artigo 10.º fixou a data da entrada em vigor no dia 1 de Outubro de 1984. 103 Assim, o preâmbulo ao Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho. 104 No mesmo sentido aponta o artigo 3.º CRegPred a respeito do registo das acções, obrigatório por força do seu n.º 2.
Ainda deve ser mencionado o artigo 41.º-A CRegPred que, no seguimento do princípio da instância (artigo 41.º) e no intuito de facilitar a inscrição no registo, prevê a apresentação do pedido do registo, subscrito pelos interessados, por intermédio do notário que outorgou a escritura. 105 Aqui é de relembrar a excepção para os contratos de compra e venda com mútuo de prédios urbanos destinados à habitação, nos termos do Decreto-Lei n.º 255/93, de 15 de Julho, para os quais o registo da aquisição é obrigatório. 106 Esta solução pareceu ao legislador mesmo preferível ao registo obrigatório que vigorava, até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de Julho, em alguns concelhos do país, e que – com o artigo 9.º – deixou de existir.
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O artigo 9.º, n.º 1, dirigido às entidades que titulam os factos sujeitos a registo, encontra o seu complemento no artigo 34.º CRegPred, em cuja mira estão os conservadores que, a seguir, inscrevem os factos titulados. O artigo 34.º, n.º 1, impõe-lhes a observância do princípio do trato sucessivo – um princípio antigo e básico mas hoje, por causa do artigo 9.º, n.º 1, com uma relevância menos destacada – ao prescrever que em certos casos da aquisição de direitos ou em casos da constituição de encargos por negócio jurídico o registo definitivo não pode ser feito sem a prévia inscrição de quem os transmite ou onera. Destes dois princípios resulta novamente, com toda a clareza desejável, o interesse público tanto na efectivação do registo – para fomentar, através da publicidade que proporciona, a transparência e a segurança do comércio jurídico imobiliário – como no fortalecimento simultâneo do seu objectivo primordial e por excelência: a fé pública do registo. cc) O terceiro para efeitos do registo versus terceiro para efeitos do artigo 291.º De acordo com esta pequena análise que acabámos de fazer a respeito das finalidades e do regime do registo predial, podemos concluir, sem ter dúvidas, que a lei protege o terceiro adquirente não tanto em recompensa da sua indispensável107 boa fé, que tem Exceptuam-se das regras mencionadas os prédios não descritos no Registo Predial (artigo 9.º, n.º 3). 107 Que o terceiro adquirente há-de estar de boa fé é actualmente opinião dominante. Todavia, continuam a existir vozes em sentido contrário, sobretudo na doutrina ainda defendida pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Neste sentido escreve, por exemplo, Carlos Alberto da Mota Pinto (nota 20), pág. 368: “ A segurança que se pretende garantir ao comércio jurídico seria fortemente afectada, se o terceiro (…) ficasse exposto (…) a processos judiciais tendentes a provar que ele conhecia uma alienação anterior. Acresce que só a inoponibilidade de actos não registados a terceiros, mesmo de má fé (…), motivará os interessados a promover o registo, como é de interesse público. (…) O nosso direito positivo não fornecia já qualquer argumento legal que permitisse sustentar, para o desproteger, a relevância da má fé do terceiro que registo em primeiro lugar (…).” A argumentação aqui transcrita era, de certo modo, justificável na vigência do Código de Seabra. Mas hoje não faz sentido invocar – a exemplo de Carlos Alberto da Mota Pinto, cit., pág. 368, nota 440 – a obra de Guilherme Moreira, Instituições de Direito Civil português, Volume Primeiro. Parte Geral, Coimbra 1907 (!), para sustentar a irrelevância da má fé. Além disso, quem propuser uma acção tendente a provar que o terceiro conhecia uma alienação anterior tem o ónus da prova. E do mesmo modo como as presunções do registo são ilidíveis mediante prova em contrário, também a má fé do terceiro adquirente pode ser objecto de prova.
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o seu peso decisivo, mas antes de tudo em função do interesse público em garantir a publicidade registral e, através dela, a fé pública do registo, por bem do tráfico jurídico imobiliário em geral. !) O terceiro para efeitos do registo Contudo, se queremos saber, com precisão, quem é terceiro para efeitos do registo, ficamos a saber que a este respeito não há precisão. Na verdade, a figura do terceiro para efeitos do registo tem sido, praticamente desde o início, objecto de controvérsia – talvez devido ao facto de as discussões não terem partido de premissas bem definidas, apesar de hoje estas premissas virem enunciadas, com clareza, no artigo 1.º do Código do Registo Predial. Sem querer aprofundar a questão – que no propósito limitado destas breves considerações nem interessa muito – podemos dizer que o terceiro, para efeitos de registo, será aquele que tenha adquirido, nas formas da aquisição derivada e em conformidade com a lógica negocial privada do comércio jurídico
Por outro lado, é verdade que os artigos 4.º a 7.º CRegPred nunca fazem referência à boa fé (nem à má fé). Contudo, como normas formais-registrais (ou adjectivas) que são, isto também não lhes compete. A relevância da boa ou má fé é uma questão do direito material (substantivo) e, como vimos, os artigos 892.º e 956.º, n.º 1, do Código Civil pronunciam-se a este respeito com a clareza necessária e, para proteger o adquirente, exigem a boa fé deste como conditio sine qua non. Também deve ser lembrado Carlos Ferreira de Almeida (nota 88) que escreve: “ (…) a publicidade é instituto de boa fé, isto é destina-se a que os factos jurídicos não sejam oponíveis a terceiros, enquanto eles não tomarem deles conhecimento. Se sucede porém que tal conhecimento ocorre, independentemente dos registos, a função da publicidade deixa de operar com tal finalidade (…). O conhecimento efectivo não é equivalente, ou sucedâneo, da publicidade. Esta é que é uma substituição legal do conhecimento. Na impossibilidade prática de fazer depender a oponibilidade de certos factos do conhecimento real de todos os sujeitos da ordem jurídica, a lei estabelece um modo que permite em princípio o conhecimento, impondo um ónus de diligência para os interessados; mas vai mais longe ainda e cria uma autêntica ficção de conhecimento, para impedir embaraços ao tráfico jurídico. (Assim) quando à publicidade se antepõe aquele elemento que ela procura criar – o conhecimento efectivo – não se descortinam razões para que tal requisito continue a ser indispensável para a eficácia plena dos factos” (pp. 275, 276 e 277). Portanto, a boa fé do terceiro adquirente é necessária, e o mérito de ter sido o primeiro a defender esta posição abertamente (uma voz isolada), com outros argumentos é certo, cabe a José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais (nota 93), pág. 377: “Só o adquirente de boa fé pode beneficiar (…). Assim o sustentámos já no domínio da lei anterior, contra o que era então doutrina unânime entre nós [Cfr. As nossas Lições de 1964-5 e seguintes.].”
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imobiliário, de um autor (ou transmitente) comum direitos total ou parcialmente incompatíveis entre si sobre o mesmo bem.108 O que interessa para o nosso propósito não é propriamente a definição do terceiro, mas sim o esclarecimento da “constelação ou estrutura aquisitiva” – e neste ponto as opiniões parecem convergir – de que resulta o seu direito que acaba por ser protegido. A este respeito a constelação básica é a seguinte: Um alienante, titular de um direito válido, devidamente inscrito, na pessoa do qual funcionam as presunções do registo, dispõe validamente a favor de um adquirente que não regista. A seguir, o alienante, na pessoa do qual as presunções do registo continuam a funcionar, dispõe de novo, por negócio nulo, a favor de um outro adquirente, de boa fé, que regista. Ninguém duvida que, nesta constelação aquisitiva triangular, os dois adquirentes são terceiros entre si, havendo um conflito de direitos entre eles. Com o registo o terceiro de boa fé adquire de imediato109 – seja a título gratuito ou oneroso – em atenção à defesa do interesse público na efectivação do registo que faz com que o seu direito seja protegido enquanto o direito do primeiro adquirente, que não registou, de acordo com a intenção sancionatória da lei,
108 Julgo que esta definição está de acordo com o pensamento de Manuel de Andrade (nota 10), quando, na página 19, se refere ao terceiro e escreve: “Terceiros para efeitos de registo predial são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio.” É certo, todavia, que esta definição deve ser lida devidamente inserida no seu contexto. E este contexto é o da aquisição derivada. “A aquisição derivada pressupõe um direito do anterior titular (o mesmo ou outro mais amplo, ao menos como regra geral). Funda-se ou filia-se na existência dele. É acompanhada da extinção subjectiva do direito do anterior titular ou da sua limitação ou compressão, havendo entre os dois fenómenos um nexo causal e não meramente cronológico. Na aquisição derivada intervém portanto uma relação entre o titular anterior e o novo, não querendo isto dizer, todavia, que para se operar seja sempre necessário o concurso da vontade daquele (pág. 14). (...) “Do instituto do registo predial deriva uma limitação ao princípio segundo o qual, na aquisição derivada, o adquirente não pode obter qualquer direito (sendo nula a aquisição) se nenhum direito pertencia ao transmitente, nem obter mais direitos do que ele tinha (pág. 20). – Os realces em itálico são do autor citado, os sublinhados são meus. 109 A respeito desta afirmação pontual não interessam as diferenças de opinião quanto ao próprio conceito de terceiro, uma vez que – quanto à aquisição “pelo” registo – nunca houve dúvidas para ninguém.
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fica preterido. Tem sido esta a solução tradicional110 da chamada “aquisição pelo registo”. !) O terceiro para efeitos do artigo 291.º Bem diferentes da situação descrita são a estrutura aquisitiva e o escopo legal de que resulta a protecção do direito de um terceiro adquirente para efeitos do artigo 291.º. Este artigo – e o regime nele consagrado – veio juntar-se ao já existente paradigma de protecção do terceiro adquirente pelas regras do registo, sendo o seu objectivo precisamente conferir alguma protecção também aqueloutros terceiros adquirentes que não podem ser compreendidos por estas regras. Na verdade, como já dissemos, a lei foi parca na protecção de terceiros adquirentes para além do registo predial (e os registos nele baseados), pese embora algumas soluções pontuais – como o caso, aliás controverso, da simulação111 ou o caso ambíguo da nulidade do registo112 – em que um terceiro podia ser protegido. Fora estes casos e em todas as situações em que – devido à nulidade do título113 – as presunções do registo não operam, um terceiro ficou regularmente desprotegido – o que foi considerado insatisfatório. Era justamente em atenção às necessidades da segurança do tráfico jurídico negocial e para honrar a confiança de quem participar nele honestamente, que se introduziu a norma protectora do artigo 291.º. 110 Sem prejuízo das posições doutrinais, de longa data, que, atendendo à necessidade da defesa do registo como única fonte de conhecimento do terceiro, têm prescindido do requisito da boa fé. Ver Guilherme Alves Moreira (nota 107), pp. 523, 526/7; e ainda hoje, Paulo Videira Henriques, Terceiros para efeitos do artigo 5.º do Código do Registo Predial, BFD, Volume Comemorativo, Coimbra 2003, pp. 389, 452; Carlos Alberto da Mota Pinto (nota 20), pág. 368. 111
A este respeito, cf. Manuel de Andrade (nota 10), pp. 198 e seguintes.
Segundo Carlos Ferreira de Almeida (nota 88) que para o efeito invoca o artigo 83.º CRegPred de 1959 (“A nulidade do registo ou do seu cancelamento sòmente desde a data do registo da competente acção prejudica os direitos de terceiros que ao tempo desse registo não se achavam ainda inscritos.”), o terceiro era também protegido em caso de nulidade do registo, em consequência de um acto de registo nulo, e mais ainda quando o próprio facto sujeito a registo é nulo, que – no entender do autor citado – também leva à nulidade do registo. 112
Efectivamente, houve uma tendência de transformar nulidades substantivas (nulidades do título) em nulidades registrais para, desta forma, proteger um terceiro. Ver, a este respeito, o nosso estudo Zum Erwerb (nota 45), pág. 26, nota 53. 113 Ou devido à anulação do título, com os seus efeitos retroactivos.
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Para efeitos do artigo 291.º a “estrutura aquisitiva” apresenta-se da seguinte forma: Um alienante, titular de um direito válido, devidamente inscrito, na pessoa do qual funcionam as presunções do registo, dispõe invalidamente (por negócio nulo) a favor de um adquirente, que regista. Sendo o negócio aquisitivo nulo, as presunções do registo não funcionam na pessoa do adquirente inscrito.114 Este adquirente aliena, a seguir, novamente por negócio nulo (por venda ou oneração de coisa alheia), a um subadquirente que – não tendo as presunções a seu favor – adquire se está de boa fé por desconhecer, sem culpa, a nulidade do negócio precedente, e se regista a sua aquisição. Aqui estamos perante uma estrutura aquisitiva sequencial (em que há – dois, três ou mais – negócios sucessivos) em que o subadquirente é terceiro em relação ao primeiro alienante. Agora, o terceiro adquire – unicamente a título oneroso – como prémio merecido pela sua boa fé e confiança investidas115 que faz com que – no conflito com o primeiro alienante – na intenção protectora da lei o seu direito seja preservado, excepcionalmente, à custa do direito deste, que em seguida à sua disposição inválida ainda dispõe de três anos para inverter a evolução a seu favor, sob pena de haver graves prejuízos para a segurança do tráfico jurídico negocial bem como a indispensável estabilidade quanto à atribuição de bens.116/117
114 Como é óbvio, as presunções deixaram de funcionar na pessoa do alienante que já não está inscrito no registo, uma vez que o seu adquirente registou, sem que, todavia, na pessoa dele o registo definitivo tenha nem possa ter efeitos presuntivos. 115 E a protecção não envolve o mínimo efeito sancionatório pela não observância do ónus de registar, pois todos os registos foram feitos devidamente. 116 Sendo o primeiro negócio aquisitivo anulável, e depois anulado, a estrutura aquisitiva, embora igualmente sequencial, apresenta particularidades na medida em que a segunda alienação, por si válida, produz efeitos e leva à aquisição de um direito contratual provisório na pessoa do terceiro adquirente. 117 Também encontramos estruturas aquisitivas sequenciais – mas agora somente a nível registral – nos casos de declaração de nulidade (artigo 17.º CRegPred) e de rectificação (artigo 124.º CRegPred) do registo, em que um adquirente de boa fé a título oneroso é protegido. Aqui há alguma controvérsia (ao que me parece sem grande utilidade) a respeito do relacionamento entre o artigo 291.º e o artigo 17.º, que não tem interesse em ser aprofundada aqui. Queremos apenas dizer que, no nosso entender, os artigos 17.º e 124.º CRegPred têm o seu campo de aplicação limitado a meros vícios e inexactidões formais-registrais, ficando quaisquer vícios materiais, mesmo que coincidam com vícios formais-registrais, abrangidos tão-só pela previsão do artigo 291.º.
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!) A perfeita incompatibilidade entre si das duas figuras de terceiro Ficaram assim esclarecidas – e confrontadas – as estruturas aquisitivas que actuam a favor (1) de um terceiro para efeitos do registo (a “aquisição pelo registo”) e (2) de um terceiro para efeitos do artigo 291.º, ou seja, foram enunciados o esquema de protecção tradicional com o recurso às leis do registo e a solução inovador introduzida pelo Código Civil e, ainda, as finalidades sancionatórias e protectoras que a um e a outra subjazem. Ora bem, com base na comparação feita, podemos constatar sem mais que: (1) os modos aquisitivos – a sequência e a (in)validade dos negócios – são mesmo incomparáveis; (2) os conflitos de direitos são diferentes; (3) os terceiros aparecem em constelações verdadeiramente divergentes; (4) as finalidades normativas são, em parte, opostas; (5) os direitos protegidos não são os mesmos; (6) os efeitos aquisitivos por virtude da inscrição no registo – imediatos ou sujeitos a prazo – só parcialmente coincidem e (7) a lógica de protecção conferida aos terceiros também não é idêntica. É por tudo isso mesmo – que o regime do artigo 291.º é complementar às regras registrais anteriores a ele. Em suma: trata-se de dois institutos diferentes, que versam sobre problemas distintos,118 têm finalidades divergentes e obedecem, por isso, cada um à sua própria lógica; isto sem falar da natureza verdadeiramente excepcional que caracteriza a norma do artigo 291.º ou dos regimes do ónus da prova, aplicáveis num caso e noutro, e que são completamente diferentes. De tudo isto resulta a perfeita incompatibilidade das figuras de terceiro para efeitos de registo e de terceiro para efeitos do artigo 291.º entre si que pouco têm em comum.119 4. A DESTRUIÇÃO SISTEMÁTICA PREDIAL E DA SUA FÉ PÚBLICA
DO
INSTITUTO
DO
REGISTO
Ao aferir o acórdão do STJ, de 19 de Fevereiro de 2004, às soluções legais vigentes em matéria de registo predial, que 118 119
Rui de Alarcão (nota 20), pág. 79, nota 108. Ver, no mesmo sentido, Luís M. Couto Gonçalves (nota 74).
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tentámos expor de forma sucinta, somos forçados a constatar, consternados, que esta decisão do STJ contradiz frontalmente a lei em tudo o que tem valido até agora a respeito da aquisição de um terceiro com base nas presunções e na fé pública do registo. Nestes termos, o acórdão é insustentável de todo. a) A utilização, contrária à lei, da norma excepcional do artigo 291.º Se tivermos em conta, mais ainda, a evolução jurisprudencial que se iniciou com o acórdão lamentável do STJ, de 4 de Março de 1982120 – onde ficou decidido, implicitamente, que o registo predial é constitutivo de direitos e que o requisito da aquisição “a título oneroso”, previsto no artigo 291.º, se devia generalizar a todos os casos da “aquisição pelo registo” – então somos levados a concluir, resignados, que o mencionado acórdão do STJ, de 19 de Fevereiro de 2004, representa uma forma de “coroação” na sucessão de decisões infelizes, todas elas contributivas para o descrédito e a destruição do registo predial. Na altura, o acórdão de 4 de Março de 1982 – que, entre outros equívocos, não se preocupou nem minimamente (1) em esclarecer o relacionamento entre as regras tradicionais do registo predial e o regime introduzido pelo artigo 291.º, (2) em comparar as funções das regras registrais com as do artigo 291.º, (3) em analisar a inserção sistemática do artigo 291.º no seu contexto legal, (4) em respeitar a natureza verdadeiramente excepcional da norma, (5) em comparar o terceiro para efeitos do registo com o para efeitos do artigo 291.º, (6) em reflectir ao menos sobre as consequências da sua decisão – foi severamente criticado por vários autores.121 120 Acórdão do STJ BMJ 315 (Abril 1982), pág. 244, com um voto de vencido, que tem a lei e a razão do seu lado. 121 O acórdão foi apreciado por Orlando de Carvalho, Alguns aspectos da negociação do estabelecimento, RLJ 117 (1984/1985), pág. 233/235 e nota 46, com as seguintes palavras: “(…) o Supremo Tribunal de Justiça, mesmo quando obedece a um impulso ético generoso (…), determina-se muitas vezes por «casuais pontos de vista» que (…), parece assumi-los com leviandade não menor e não menor menosprezo pelas respectivas consequências.”
Também Antunes Varela (nota 65), pp. 282, 285 a 288 e 307 a 316, teve um juízo muito negativo a respeito do acórdão “que (…) vibrou (…) golpe sério na corda mais sensível de todo o aparelho jurídico destinado a tutelar a segurança da propriedade imobiliária.” (Devemos confessar, todavia, que em relação a muitos pontos da Anotação não podemos concordar com a argumentação desenvolvida.)
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Mas as vozes críticas não têm sido consideradas para uma reflexão ou uma análise em ordem a repensar determinadas posições doutrinais e a evolução da jurisprudência nelas “alicerçada”.122 Pelo contrário, apesar da proibição expressa do artigo 11.º do Código Civil, a norma excepcional do artigo 291.º tem sido generalizada e – em perfeita contradição com as regras, o sistema e as finalidades do registo predial – tem servido de fundamento, completamente ilegal, para exigir a onerosidade da aquisição do terceiro para efeitos do registo. Ou seja, a lei preocupa-se em incentivar o registo e orienta todo o seu sistema normativo neste sentido, e parte da doutrina e da jurisprudência
Já antes das críticas proferidas pelos dois autores citados, escrevemos no nosso trabalho (nota 28) que a decisão do STJ era a todos os títulos insustentável. 122 É elucidativo como o acórdão fundamenta a sua decisão: “Será, no entanto, que o registo efectuado pelo segundo donatário é constitutivo em termos de ele, embora nada tendo adquirido na ordem substantiva (sic!), pois adquiriu a non domino, se tornou o verdadeiro titular do direito? É a questão a decidir.
(…) Segundo os mesmos autores [Prof. Oliveira Ascensão; Dr. Menezes Cordeiro], a aquisição pelo registo (aquisição tabular) apenas se dá quando reunidos os seguintes requisitos: a) Preexistência de um registo desconforme com a realidade substantiva; b) Actuação do terceiro com base no registo preexistente; c) Aquisição a título oneroso; d) Boa fé do adquirente; e) Registo de aquisição antes de corrigido o registo desconforme ou de registada a acção destinada a corrigi-lo. A exigência de que a aquisição tenha carácter oneroso justifica-se, naturalmente, por os adquirentes a título gratuito estarem menos carecidos da protecção do que os adquirentes por negócio oneroso, já que não efectuaram nenhuma contraprestação. (…) O registo já não pode ser concebido como «uma ordem perfeitamente objectiva, indiferente ao conhecimento efectivo por parte dos sujeitos» (Prof. Oliveira Ascensão). A ética social vigente a todos impõe se comportem com lisura; os negócios jurídicos são hoje dominados pelo princípio geral da boa fé; «o registo visa a protecção da boa fé e não tortuosas formas de transacções jurídicas imobiliárias» (Dr. Menezes Cordeiro). Há actualmente disposições legais, sobre a aquisição pelo registo que exigem a boa fé do adquirente. Trata-se dos artigos 291.º do Código Civil e 85.º [hoje 17.º] do Código do Registo Predial, respeitante aquele à invalidade substancial e este à invalidade do registo. São também essas disposições que, ao referirem-se a direitos adquiridos a título oneroso, excluem do seu campo de aplicação as aquisições a título gratuito. As duas exigências que aí se fazem (título oneroso, boa fé do terceiro) devem generalizar-se a todos os casos da aquisição pelo registo (…). O réu (…) adquiriu – é óbvio – a título gratuito. Logo, não se operou a seu favor aquisição pelo registo.” Além de não encontrarmos aqui análise nenhuma de problema nenhum, não deixa de ser interessante constatar que, como resulta da “argumentação” transcrita, os juízes não têm opinião própria alguma a respeito da matéria doutrinal sobre que decidiram. – Quanto ao resultado da decisão no caso concreto, porém, ele parece-me justo, atendendo à probabilidade de o segundo donatário ter estado de má fé.
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empenha-se em contrariar a lei e em inutilizar a finalidade do registo.123 Mas, infelizmente, não é apenas através da aplicação ilegal do artigo 291.º aos casos da “aquisição pelo registo” que o instituto do registo predial tem sido desacreditado, também outras decisões judiciais contribuíram para o efeito e – apesar de elas não se situarem no estrito âmbito destas breves considerações – não podem ser omitidas de todo. Pertencem aqui: 1) Os acórdãos uniformizadores n.os 15/97, de 20 de Maio de 1997,124 e 3/99, de 18 de Maio de 1999,125 que no curto espaço de apenas dois anos (!) adoptaram posições contraditórias quanto ao conceito de terceiro para efeitos do registo (terceiro “em sentido amplo” versus terceiro “em sentido restrito”), sendo de reconhecer todavia, como sinais positivos, que ambos os acórdãos não estabeleceram, para haver a aquisição por parte do terceiro, o requisito “a título oneroso” e que, além disso, o segundo acórdão exigiu que o terceiro havia de estar de boa fé. 2) O acórdão uniformizador n.º 4/98, de 5 de Novembro de que – partindo da premissa errada de que o artigo 5.º CRegPred só se aplica a conflitos entre titulares de direitos reais e não a conflitos entre titulares de um direito real e um direito de 1998,126
123 Que a exigência da onerosidade da aquisição leva directamente a este resultado foi sublinhado, no seu voto de vencido, pelo juiz Amaral Aguiar quanto ao decidido pelo acórdão do STJ BMJ 315 (Abril 1982) (nota 120), pp. 244, 247. 124 DR – I-A, N.º 152, de 4-7-1997, pág. 3295 (=BMJ 467, pág. 88): “Terceiros, para efeitos do registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.” São de assinalar 11 votos de vencido. 125 DR – I-A, N.º 159, 10-7-1999, pág. 4354 (=BMJ 487, pág. 20): “Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.” Houve 12 votos de vencido. 126 DR – I-A, N.º 291, 18-12-98, pág. 6931 (=BMJ 481, pág. 112). Além da premissa errada, o acórdão ainda invoca o seguinte argumento falso: “(…) não se concebe que o Estado se substitua ao promitente-vendedor, emitindo a declaração negocial em substituição deste, praticando o acto que a lei veda ao promitente-vendedor; que seja o Estado a vender coisa alheia, a praticar aquele ilícito civil e criminal; que seja o Estado a meter no bolso do promitente-vendedor o preço pela segunda vez.” – Que o Estado faça semelhante coisa concebe-se perfeitamente; ou não será verdade que é a sua própria lei que premeia uma autêntica burla (cf. notas 96 e 100) – no interesse público da defesa do registo e das suas finalidades de publicidade – quando confere efeitos a uma segunda disposição do transmitente a favor de terceiro para efeitos do registo e elimina, precisamente através da aquisição do terceiro, a hipótese legal da burla cometida pelo transmitente?
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crédito – firmou jurisprudência nos termos seguintes: “A execução específica do contrato-promessa sem eficácia real, nos termos do artigo 830.º do Código Civil, não é admitida no caso de impossibilidade de cumprimento por o promitente-vendedor haver transmitido o seu direito real sobre a coisa objecto do contrato prometido antes de registada a acção de execução específica, ainda que o terceiro adquirente não haja obtido o registo da aquisição antes do registo da acção; o registo da acção não confere eficácia real à promessa.” – No nosso entender, a decisão contradiz o regime legal e as finalidades do registo predial tanto na sua letra como no seu espírito (e por isso foram formulados vários votos de vencido, que têm razão).127 3) Os acórdãos perfeitamente contraditórios a respeito da questão se – em caso de uma venda judicial – o adquirente que registou é terceiro ou não para efeitos do registo quando, anteriormente, houve uma venda negocial por parte do executado, não registada pelo primeiro adquirente.128 b) A profunda quebra da tradição jurídica portuguesa quanto ao registo predial Voltando ao acórdão do STJ, de 19 de Fevereiro de 2004, lembramos o que foi decidido (sendo certo que já há um acórdão posterior exactamente no mesmo sentido129): se a acção de
127 Foram seis os juízes conselheiros que não subscreveram o acórdão. O acórdão mereceu o aplauso de M. J. Almeida Costa, com uma anotação concordante publicada na RLJ 131 (1998/1999), pp. 244 a 246). Todavia, quem defende a posição em contrário e, com isso, tem toda a razão é Inocêncio Galvão Telles, Registo de acção judicial (Sua relevância processual e substantiva), O Direito, Ano 124 (1992), pp. 441, 447 a 449 e 495 a 517. 128 Ver o acórdão do STJ, de 4-4-2002, CDP, N.º 2, Abril/Junho 2003, pág. 53: “Na venda executiva gera-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente, pelo que aquele que adquiriu um direito de propriedade que não registou e o adquirente em venda executiva de direito de propriedade registado são terceiros para efeitos do registo (…).” Em sentido perfeitamente contrário temos (além dos acórdãos citados em STJ CJ Ano XI - Tomo III - 2003, pág. 170), por exemplo, a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, CJ Ano XXIX - Tomo III - 2004, pág. 280: “À luz do disposto no art. 5.º, n.º 4 (…), aquele que adquire direito de propriedade por via da venda judicial não é de considerar terceiro, para efeitos do registo (…).” O acórdão do STJ mereceu uma Anotação negativa de Miguel Teixeira de Sousa, CDP, N.º 2, Abril/Junho 2003, pp. 61 e seguintes, e de Luís M. Couto Gonçalves, Terceiros para efeitos do registo e a segurança jurídica, CDP, N.º 11, Julho/Setembro 2005, pp. 26, 28 e seguintes. 129 STJ CJ - Ano XIII - Tomo II - 2005, pág. 74 : “A declaração da nulidade do segundo contrato de compra e venda prejudica os direitos adquiridos sobre o mesmo bem, a título oneroso, por terceiro de boa fé, não obstante ter este registado a sua aquisição antes do registo
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declaração de nulidade ou anulação da compra e venda de imóveis (cuja aquisição foi inscrita no registo predial pelo segundo adquirente) tiver sido registada antes de decorridos três anos sobre a conclusão de tal aquisição, os direitos desse adquirente (terceiro) não são reconhecidos, prevalecendo os do primeiro (adquirente), [que não tinha registado]. Lê-se e não se acredita. Mas está escrito. Com este acórdão, o STJ deita por terra certezas adquiridas como inabaláveis, sem pestanejar e provavelmente também sem se dar conta do alcance do decidido, pois à sua fundamentação não só falta – como já sucedera com o acórdão de 4 de Março de 1982 – a mais elementar preocupação jurídico-dogmática, como ainda lhe falta de todo a percepção de quem seja terceiro, ou para efeitos do registo ou para efeitos do artigo 291.º, terceiros esses que não distingue.130 da acção de nulidade, se tal acção tiver sido proposta e registada dentro dos três anos subsequentes ao negócio nulo.” Depois, o acórdão – invocando uma anterior decisão do STJ – ainda acrescenta (e confesso que não percebo o sentido do que vem dito): “O art. 291.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil, encontra-se em vigor, não tendo sido revogado pelos arts. 5.º, n.º 1, e 17.º, n.º 2, do Cód. Reg. Predial.” 130 Para elucidar a falta de consciência com que se terá decidido, vem reproduzida a fundamentação do acórdão nos seus pontos essenciais:
“A aquisição (…) pela 2.ª ré (…) ocorreu em data posterior, mas essa 2.ª adquirente procedeu ao registo da transmissão, o que a autora não chegou a fazer, pelo que, por força do disposto no art. 5.º do CRegP, teria (em princípio) de se lhe reconhecer (à 2.ª ré e 2.ª adquirente) o direito de propriedade (…). Pela venda posterior (…) à 2.ª ré (…) operou-se uma venda de coisa alheia, uma vez que a vendedora carecia já de legitimidade para a fazer; venda essa qua tale ferida de nulidade, nos termos dos arts. 892.º e 289.º do CC. Contudo (…) a declaração da nulidade desse negócio não é oponível à autora, porquanto não decorrera ainda o período de três anos entre a data da respectiva celebração e a da propositura desta acção e respectivo registo. (…) Com aquela (primitiva) venda, a autora (…) passou a ser a proprietária (…). Assim (…) a (…) ulterior alienação, pela mesma transmitente, constitui uma venda de coisa alheia, ferida de nulidade (…) que (…) apenas não pode ser invocada pelo vendedor ao comprador de boa fé (…). Ora, nos termos do art. 291.º, n.º 1, do CC, “a declaração de nulidade […] que respeite a […] bens (…) sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação […]”. Mas logo acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito que “os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio”.
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Desta maneira, o STJ faz tábua rasa da lei – ou seja, dos artigos 5.º, n.º 1 (inoponibilidade de factos não registados a terceiros), 6.º, n.º 1 (prioridade do registo), e 7.º (presunções derivadas do registo) do CRegPred – por meio da aplicação, totalmente contrária à lei, do artigo 291.º, n.os 1 e 2, ao terceiro para efeitos do registo.131 O decidido corresponde a uma profunda quebra da tradição jurídica portuguesa a respeito do instituto do registo predial: (1) com a introdução de um factor de incerteza latente, geral e imprevisível a respeito da estabilidade de uma aquisição feita, é subvertido por completo a finalidade do registo predial de criar segurança;132 (2) com a sujeição do terceiro, que confiou nas presunções do registo (!), aos efeitos de uma sentença que declara nula a sua aquisição, devidamente registada (!), as presunções do registo ficam inutilizadas e, com isso, a sua fé pública destruída.133 Esse n.º 2 encontra-se em vigor, por não ter sido revogado pelo Código do Registo Predial; assim, se a acção de declaração de nulidade ou anulação da compra e venda de imóveis (cuja aquisição foi inscrita no registo predial pelo segundo adquirente) tiver sido registada antes de decorridos três anos sobre a conclusão de tal aquisição, os direitos desse adquirente (terceiro) não são reconhecidos, prevalecendo os do primeiro (adquirente) (…). E concilia-se perfeitamente com o disposto no n.º 4 do art. 5.º do CRegP de 1984, tal como vêm entendendo a doutrina e também a corrente jurisprudência deste Supremo Tribunal (…) sendo, por isso, a regra contida no art. 5.º do CRegP de 1984 de aplicar, mas sem prejuízo dos casos em que não tenha decorrido o período de três anos entre a data da celebração do negócio impugnado e a data da propositura da acção e respectivo registo.” – (No meu entender, não será fácil fazer pior.) 131 Ao fazer isso, o STJ nem sequer tinha de enfrentar qualquer problema novo; não, estava em causa o caso clássico da dupla venda – uma constelação em que desde sempre indubitavelmente o terceiro de boa fé adquiriu se procedeu ao registo do seu título em primeiro lugar – que o STJ não soube resolver porque ignora quem é o terceiro para efeitos do registo.
Felizmente, ainda há sentenças do STJ que se opõem à “proliferação” da aplicação do artigo 291.º a casos paro os quais a norma não é indicada. Assim, o acórdão de 11-03-2003, processo n.º 03B3714 http://www.dgsi.pt, afirma, sem rodeios, que a norma do artigo do 291.º “nem tinha que ser chamada à colação” estando em causa o caso típico da dupla transmissão de um prédio (sendo certo que esta decisão não é referida sequer pelos acórdãos posteriores em sentido contrário), e o acórdão do STJ de 21-01-1992, BMJ 413 (1992), pp. 514 e seguintes diz claramente que o artigo 291.º não se aplica quando o primeiro negócio é válido (pág. 521). 132 E se há institutos inspirados pelo valor da segurança, então pertencem aqui exactamente as leis do registo que visam proteger a confiança ou a fé pública. Cf. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 9.ª reimpressão, Coimbra 1996, pp. 56 e seguintes. 133 Com isso cai, o que Angel Latorre, Introdução ao Direito, 5.ª reimpressão, Coimbra 2002, pág. 46, designa por «segurança das transacções» , ou seja, a confiança daqueles que adquirem de boa fé.
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5. A CRIAÇÃO DE UMA SITUAÇÃO DE INSEGURANÇA INADMISSÍVEL E INSUPORTÁVEL A RESPEITO DA AQUISIÇÃO E CONSERVAÇÃO DO DIREITO DA PROPRIEDADE O resultado imediato da jurisprudência aqui referida ou analisada é a criação de um estado de insegurança inadmissível e insuportável a respeito da aquisição e conservação (ou defesa) do direito da propriedade. E, como todos sabemos, o mínimo dos mínimos que se deve esperar e se pode exigir de um ordenamento jurídico privado é que ele garanta certeza e segurança quanto à atribuição e conservação (ou defesa) dos bens. Esta segurança, actualmente, deixou de existir. Hoje em dia, quem sair do cartório notarial e pagou o preço de compra sabe que ficou sem o seu dinheiro mas já não sabe se ficou também com a propriedade. a) A expropriação, sem fundamento legal, dos terceiros adquirentes como resultado da jurisprudência De acordo com a jurisprudência do STJ, qualquer adquirente134 está – nos três anos a seguir à celebração do seu contrato aquisitivo135 – sujeito aos efeitos retroactivos de uma decisão judicial de anulação ou declaração de nulidade de um contrato antecedente ou de uma decisão de declaração de nulidade do seu próprio negócio – e isto por mais honesto, responsável, de boa fé ou diligente que tenha sido a sua conduta. Porque para o STJ não prevalece a conduta irrepreensível, a prioridade do registo e a propriedade adquirida do terceiro, mas a irresponsabilidade, a negligência e o descuido de quem não cumpriu o seu ónus de registar primeiro ou de quem não invocou atempadamente a invalidade do seu negócio de alienação.136/137/138 134 Por via negocial, naturalmente; se for por via judicial não adquire por não ser terceiro (uma questão não completamente esclarecida e que não podemos desenvolver nestas “breves considerações”). 135 Lembramos que o STJ conta o prazo sempre a partir do último negócio que ficou concluído, tanto em caso da protecção do terceiro adquirente nos termos do artigo 291.º como no caso do terceiro para efeitos do registo. 136 Ou, como escreve Luís M. Couto Gonçalves (nota 74): “E o mais grave é que implicaria um desincentivo sério do registo. O primeiro adquirente deixaria de ter, em bom rigor, o ónus de registar a sua aquisição. O risco da ineficácia do seu negócio em relação a um terceiro seria muito atenuado, para não dizer eliminado. (…) O princípio da publicidade sofreria, então, um rude golpe (…).”
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Convém termos uma noção muito precisa das consequências do decidido: na exacta medida em que, nos trâmites referidos, os direitos de um terceiro que registou não são reconhecidos, prevalecendo os do primeiro adquirente que não tinha registado ou do primeiro alienante que tinha deixado decorrer o prazo para invocar a invalidade da sua alienação, estamos perante uma verdadeira expropriação, por via judicial, embora sem utilidade pública, sem fundamento legal e sem indemnização, bem ao contrário do que exige o artigo 62.º da Constituição. Os resultados das decisões do STJ são patentes e gravíssimos: na verdade quem quererá investir num lugar onde as preferências são essas e onde não se sabe quando e como se adquire ou se conserva a propriedade?139/140
137 Escreve Isabel Pereira Mendes, De novo o conceito de terceiros para efeitos de registo predial, em: Estudos sobre o registo predial, Coimbra 2003, pp. 157, 161: “Paulatina e insidiosamente, há quem se empenhe em transformar o registo predial numa instituição sem qualquer relevância que deixou de cumprir o objectivo para que foi criada: publicitar a situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. (...) A negligência irá assumir maiores proporções, face à atitude do STJ.”
Luís M. Couto Gonçalves, Terceiros para efeitos do registo e a segurança jurídica (nota 128), diz: “Os hábitos dos portugueses não devem servir de desculpa, especialmente se são maus como nos parece o caso [em que não registam].” Mas não será este o entendimento do STJ quando permite ao primeiro adquirente, que não registou, juntar à sua posse ainda a posse dos seus antecessores para efeitos de usucapião – que, segundo o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), prevalece sobre o registo – enfraquecendo também por esta via o registo. Podem ver-se quanto à acessão de posses, por exemplo, STJ BMJ 418 (Julho 1992), pág. 773, ou STJ BMJ 484 (Março 1999), pág. 384 (que se apoia expressamente na doutrina defendida pelos Professores Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro). A primeira decisão referida foi duramente criticada por Antunes Varela e Henrique Mesquita na sua Anotação, RLJ 126 (1993/1994), pp. 374, 380 (382/3) e RLJ 127 (1994/1995), pp. 19 e seguintes, e com razão na medida em que defendem que a acessão da posse leva à inutilização do registo. (Contudo, admito que, quanto ao resultado do caso concreto, o STJ decidiu bem, uma vez que o terceiro não terá estado de boa fé.) Para os anotadores, fiéis à tradição da Escola de Coimbra, a eventual má fé do terceiro é irrelevante (pp. 23 a 25). Ora bem, precisamente isto não é o caso. 138 De resto, seria uma tarefa interessante para uma análise jurídico-psicológica procurar saber se os hábitos de indulgência (ou de perdão, de pena, etc.) para com um infractor, tão frequentes em Portugal, não terão influenciado o subconsciente dos juízes (ou a sua précompreensão) quando decidiram a favor de quem não foi diligente. 139 Esta situação agrava-se ainda mais quando claudicarem as garantias dos contribuintes; e há quem afirme que assim está a suceder. 140 Dito cinicamente, o prazo de três anos também pode ser considerado um contributo para uma maior e mais rápida circulação de bens, pois em relação a uma propriedade tão insegura será grande a vontade de se desfazer dela.
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b) O sistema legal, equilibrado e perfeito, da protecção dos terceiros adquirentes Mas que fique bem claro: a situação de calamidade perante a qual nós nos encontramos não é, de modo nenhum, devida às leis em vigor. Estas, dentro do seu sistema, são equilibradas, coerentes entre si, harmoniosas e, em geral, tecnicamente muito bem conseguidas.141 Na verdade, em obediência ao princípio da consensualidade a respeito da transferência de direitos reais (artigo 408.º, n.º 1), a lei regula, com base nas finalidades de um registo declarativo, em termos lógicos e coerentes o regime (tradicional) da protecção do terceiro para efeitos do registo; e mais tarde, desde 1967, o Código Civil veio completar este regime (tradicional) com as soluções (inovadoras) do artigo 291.º em ordem a dar protecção a um terceiro igualmente em caso de invalidade sequencial; e, ao mesmo tempo – acrescenta-se ainda, para não deixar o quadro legal incompleto –, o Código do Registo Predial, de 1967, introduziu um regime renovado para proteger um terceiro no caso da invalidade meramente registral.142 Cada um dos três regimes referidos tem as suas finalidades e funções específicas, sendo eles bem delimitados entre si, e todos eles obedecem às suas lógicas próprias, de modo que não podem ser confundidos: (1) a protecção do terceiro para efeitos do registo está subordinada às finalidades deste; (2) a protecção do terceiro para efeitos do artigo 291.º visa garantir a segurança do tráfico jurídico e a estabilidade na atribuição dos bens e, ainda, premiar a confiança e conduta honesta do terceiro; (3) a protecção do terceiro registral destina-se a defender este contra os efeitos da invalidação dos actos do registo em caso de vícios meramente formais.143 c) A perversão, em todos os sentidos, do sistema legal
141
Ver o nosso estudo Zum Erwerb (nota 45), pp. 97 a 100.
Esta protecção já existia no Código do Registo Predial, de 1959, mas em termos diferentes. 142
143 Como já referi (na nota 117), há neste contexto alguma controvérsia doutrinal quanto ao âmbito de aplicação do artigo 17.º CRegPred.
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Contudo, o que foi tão bem idealizado e concebido pelo legislador, e está assim consagrado na lei, acabou por ser pervertido (no sentido etimológico da palavra: vertere ! pervertere), completamente, por parte da doutrina e da jurisdição (portanto, não toda). Repetimos: a situação de calamidade que enfrentamos deve-se, em exclusivo, a elas, e não ao legislador! O legislador, preocupado com a ausência de um regime que protegesse os direitos de um terceiro, adquiridos na sequência de um anterior negócio inválido, de cuja invalidade ele não podia ter conhecimento, cria, com uma finalidade protectora bem traçada, um instituto novo, ao introduzir uma norma excepcional que juntou ao regime de protecção já existente, em ordem a atribuir protecção também ao terceiro nos casos da invalidade sequencial. Este instituto novo veio a ser consagrado pela norma do artigo 291.º.144 O objectivo do artigo 291.º é, por isso, inequívoco: acrescentar à protecção já existente do terceiro para efeitos do registo – que de acordo com a sua lógica intrínseca não pode abranger o terceiro em caso de invalidade sequencial – uma solução protectora para aquele outro terceiro. Por meio do artigo 291.º o legislador nunca quis fragilizar o registo e as presunções dele derivadas. Bem pelo contrário, e como ilustram todas as inovações legislativas a nível do Código do Registo Predial que referimos, a sua intenção aponta clara e perceptivelmente no sentido de valorizar o registo. Neste contexto, o artigo 291.º apenas torna os limites de protecção e as fragilidades de um registo declarativo mais patentes e contribui com isso para a consciencialização da frouxa protecção garantida por ele. De facto, unicamente em caso de validade do direito inscrito a favor do titular as presunções do registo operam a favor do terceiro adquirente. Por causa disso, era necessário ajuntar um complemento de protecção precisamente para os casos em que – devido à invalidade do direito – as presunções não funcionam. É esta a razão de ser do artigo 291.º: conferir mais protecção ao tráfico jurídico onde ela antes não existia na medida em que o registo não a podia dar.
144 Com correspondência, para os casos da invalidade meramente registral, no artigo 83.º do Código do Registo Predial, de 1967 (hoje, os artigos 17.º e 124.º do Código de 1984).
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Não obstante as finalidades bem definidas do legislador e a correspondente sistematização clara e diferenciada dos vários regimes protectores da lei, uma parte da doutrina e da jurisprudência resolveu encarregar-se na sua destruição completa através da aplicação perversa da norma do artigo 291.º. (1) Primeiro, sem fundamento legal e em perfeito contraste com as funções e a sistematização das leis em vigor e ao arrepio da lógica intrínseca do registo predial, exigiu-se que a aquisição do terceiro para efeitos do registo tinha que ser a título oneroso, como estava previsto no artigo 291.º, n.º 1. (2) Depois, foi decidido em matéria do artigo 291.º, uma norma introduzida na lei com o propósito expresso de melhorar a protecção do terceiro nos casos da invalidade sequencial, que o prazo de três anos, fixado no seu n.º 2, não se iniciava a partir da conclusão do primeiro negócio inválido de uma cadeia de transmissões mas contava tão-só a partir do último negócio, celebrado pelo terceiro adquirente, eliminando-se desta forma praticamente toda a protecção pretendida pelo artigo 291.º. (3) Por fim, decidiu-se, em total desobediência à lei, com realce para o disposto no artigo 11.º do Código Civil, aplicar o prazo de três anos do n.º 2 do artigo 291.º não só à aquisição do terceiro em caso de invalidade sequencial mas igualmente à aquisição registada (!) do terceiro para efeitos do registo, a quem se retira assim a propriedade legitimamente adquirida mediante a destruição da fé pública do Registo Predial. Quer dizer, a norma do artigo 291.º que foi introduzida na lei com a precisa finalidade de aumentar a protecção do terceiro nos casos da invalidade sequencial, não só não viu inutilizada esta sua própria finalidade como ainda serviu de “fundamento” para destruir a protecção do terceiro, desde sempre salvaguardada pelas presunções e a fé pública do registo. – É obra! Alcançou-se o perfeito contrário daquilo que legislador e lei quiseram garantir. Assim, deixou de haver lei. (Ou nem vale a pena haver lei.) 145
145 Na verdade, a forma como o STJ não respeita (ou não conhece) as leis em vigor, sendo elas boas (!), podia ser motivo para uma pesquisa no sentido de analisar o relacionamento da população com as leis que a haviam de reger; mas esta pesquisa, manifestamente, não tem lugar nestas “breves considerações” nem corresponde aos desígnios do seu autor, mas será antes uma tarefa para o auto-instituído, e independente, “Observatório Permanente da Justiça”.
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Daí resulta agora o problema insolúvel:146 Quem protege o cidadão contra a magistratura (ou, melhor dizendo, contra os juristas, pois o estado a que se chegou não se deve apenas aos juízes, mas igualmente à advocacia e ainda ao ensino ou, antes, à falta dele)?147/148 Julgo que o cidadão pode exigir, com toda a legitimidade, que se acabe de “brincar aos terceiros”.149 6. AS ALTERAÇÕES MAL ACOLHIDAS OU DESNECESSÁRIAS ARTIGO 5.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
DO
Num ponto, devido às contradições entre os acórdãos uniformizadores a respeito do conceito de terceiro para efeitos do registo, o legislador reagiu quase de imediato para sanar as consequências de uma jurisprudência que, em vez de criar estabilidade, fomenta a insegurança sobre a titularidade dos bens, e introduziu no artigo 5.º do Código do Registo Predial um novo n.º 4 em que, a respeito do conceito de terceiro, tomou partido pela definição clássica de Manuel de Andrade.150 Contudo, 146
Pelo menos no quadro legislativo actual.
Recentemente, em Outubro de 2006, ao tomar posse, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça afirmou ser necessário varrer dos tribunais todo o lixo processual que neles se encontra (e entre ele os processos destinados à recuperação de créditos instaurados por empresas que pretendem obter o dinheiro que lhes é devido). Pois bem, talvez sejam contados os dias em que valeu o princípio pacta sunt servanda, consagrado no artigo 406.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Civil. Mas facto é que a perspectiva do Presidente do STJ pode ser invertida e possivelmente muitas pessoas que se dirigiram aos tribunais na esperança vã de obterem justiça (ainda sem recorrer à força própria) hão-de considerar lixo não as suas próprias acções mas as sentenças que a seu respeito foram preferidas. 147
Não parece que as afirmações do Presidente do STJ tenham provocado qualquer onda de protestos. Mas fica aqui registada a indignação que o sucedido mereceu a João Cândido da Silva, Há lixo na justiça?, Público, 28-10-2006, pág. 9. 148 A sensação que se tem é a de o cidadão se encontrar, perante os tribunais e o seu poder, numa situação da Geworfenheit (na expressão heideggeriana). 149 Num artigo bem interessante, António Quirino Duarte Soares, O conceito de terceiros para efeitos do registo predial, CDP, N.º 9, Janeiro/Março 2005, pp. 3 a 11, faz uma exposição – à semelhança de um relatório descritivo que versa sobre os resultados de pesquisas (ou de experiências) de campo – da jurisprudência do STJ relativamente às variações que esta tem experimentado ao longo das décadas quanto ao conceito de terceiro, sem nunca aflorar sequer os efeitos destas variações para a segurança jurídica, em geral, ou para as preocupações do cidadão à procura de justiça, em especial, e sem equacionar o prejuízo causado ao instituto do registo predial, atingido não só pela instabilidade da jurisprudência como ainda pela confusão feita entre os terceiros para efeitos do registo e do artigo 291.º. 150 O Decreto-Lei n.º 533/99, de 11 de Dezembro, introduziu o n.º 4 do artigo 5.º CRegPred com o seguinte texto: “Terceiros, para efeitos do registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.”
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acontece que o legislador – e considero novamente sem ser por culpa dele (!) – não foi inteiramente bem sucedido, de modo que a eterna controvérsia ainda não terminou.151 A este respeito penso, se a definição de Manuel de Andrade acolhida pela lei vier a ser lida, como deve ser, dentro do contexto das suas considerações em redor da aquisição derivada,152 o n.º 4 do artigo 5.º CRegPred faz pleno sentido e contribui também para a correcta qualificação da venda judicial, no fundo a única questão dogmática por resolver. Em contrapartida, não me parece que o legislador tenha sido feliz quanto à mais recente alteração do artigo 5.º CRegPred,153 no qual foi introduzido ainda um n.º 5, com o seguinte texto: “Não é oponível a terceiros a duração superior a seis anos do arrendamento não registado.” Esta disposição pareceme redundante, pois mais não faz do que repetir o que já se encontra previsto, há muito, no artigo 2.º, n.º 1, alínea m) – estão sujeitos a registo (…) o arrendamento por mais de seis anos e as suas transmissões ou sublocações, exceptuado o arrendamento rural – e no artigo 5.º, n.º 1 – os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo. Todavia, apesar da sua redundância, o novo n.º 5 tem um mérito inegável: deixa perfeitamente claro, e ainda bem, que – ao contrário do que foi decidido pelo STJ – o artigo 5.º CRegPred não está concebido apenas para conflitos entre direitos reais. III. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sequência do que foi dito, gostaria de tecer algumas observações finais destinadas a sugerir medidas que, face à situação calamitosa criada, não devem ser retardadas.
151 Ver Luís M. Couto Gonçalves (nota 74), pág. 49; também o estudo de Isabel Pereira Mendes (nota 135); Luís M. Couto Gonçalves, Terceiros para efeitos do registo e a segurança jurídica (nota 128), que propõe uma alteração legislativa ao artigo 5.º, n.º 4, CRegPred que redefina terceiro como todo aquele que, tendo efectuado, de boa fé, em relação ao mesmo titular inscrito, o registo de um facto sobre determinado prédio, veria este direito afectado, total ou parcialmente, por qualquer outro facto conflituante anterior não registado ou registado posteriormente (os sublinhados são do autor citado). Não me parece que a solução seja esta. As leis que existem, desde que aplicadas, servem perfeitamente. 152 Ver acima II. 3. b) cc) ). 153 Pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, relativa ao Novo Regime do Arrendamento Urbano.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS 1. O IMPERATIVO URGENTE DE RESTABELECER A SEGURANÇA QUANTO À AQUISIÇÃO E CONSERVAÇÃO DO DIREITO DA PROPRIEDADE
O imperativo mais urgente é restaurar a plena segurança em relação à aquisição e conservação do direito de propriedade e, simultaneamente, restabelecer a indispensável confiança nos tribunais. O primeiro passo a ser dado devia ser a indemnização, oficiosamente, de todos os terceiros que perderam a sua propriedade em consequência da aplicação perversa e contrária à lei do artigo 291.º. A seguir, parece inevitável haver uma lei interpretativa pelo menos a respeito do alcance do n.º 2 do artigo 291.º. Não se pode esperar por mais um acórdão uniformizador que, na primeira ocasião, corre o risco de vir a ser afastado por outro em sentido contrário. A qualidade das leis, que aqui não está nem minimamente em causa (!), e a qualidade da jurisprudência, que não comento,154 são factores de primeira grandeza para a segurança jurídica e para atrair o investimento. Estes factores não podem ser negligenciados – pelo bem de todos. 2. NÃO “REPENSAR”, MAS ACTUAR SOBRE O PODER JUDICIAL E RESPONSABILIZAR O JUIZ PELA VIOLAÇÃO DAS LEGES ARTIS, QUE HÁ-DE CONHECER Neste contexto não é suficiente “repensar o poder judicial”.155 (Re)pensar já não chega, é preciso actuar.156 De acordo com o disposto no artigo 369.º do Código Penal (denegação de 154 Limito-me a transcrever alguns passos da intervenção proferida no Centro de Estudos Judiciários, em 9 de Maio de 2006, por Carlos de Abreu Amorim, Formação inicial dos candidatos a magistrados, ScI, 2006, pp. 303 e seguintes: “Sem dúvida, o modo como a Justiça portuguesa opera é um dos elementos que mais concorre para a desconfiança do cidadão perante os poderes públicos em geral. (…) Nem me parece que eventuais deficiências de conhecimentos técnico-jurídicos constituam o ponto essencial das lacunas que (…) uma parte da sociedade portuguesa tem vindo a reconhecer aos magistrados (…). Antes pelo contrário, supomos que as mesmas se encontram nalguma falta de maturidade intelectual e cívica (…). Se esses condicionalismos do nosso tempo têm reflexos negativos no exercício de qualquer profissão jurídica, estamos em crer que serão especialmente perniciosos para um correcto desempenho da magistratura. (…) [A formação deve ter] bem presente o necessário espírito de humildade que presta um serviço público (…). 155 Assim o título da monografia de Paulo Castro Rangel, Porto 2001. 156 E actuar significa algo mais do que a reorganização do mapa judiciário, por imprescindível que seja.
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justiça e prevaricação), um juiz que decide, conscientemente e contra direito, é punido, e segundo o n.º 5 do mesmo artigo é punido também o juiz que, com negligência grosseira, ordena ou executa medida privativa de liberdade de forma ilegal; mas para o caso de alguém por causa da ignorância das leis – por causa do não domínio das leges artis pelo juiz – perder os seus bens ou a sua propriedade, nenhuma previsão legal existe. Uma explicação para o facto pode residir na regra da irresponsabilidade do juiz (artigo 216.º, n.º 2, 1.ª parte, da Constituição) que tem sido defendida com a necessidade da independência do poder judicial (dos restantes poderes do Estado aos quais não são permitidas intromissões na esfera jurisdicional, por respeito ao princípio da separação dos poderes). Mas não deverá ser bem assim. O princípio (político) da independência do poder judicial (ou do juiz) – que é justificado e deve ser mantido – e a questão da sua (ir)responsabilidade são aspectos distintos que não convém fundir. É a regra da irresponsabilidade do juiz que há-de ser revista.157 Na verdade, tal como sucede em relação a 157 Wladimir Brito, O poder judicial, BFD 80 (2004), pp. 231-270, separa a responsabilidade individual do juiz, de natureza “disciplinar”, da responsabilidade do Poder Judicial, esta de natureza política (pág. 256), e acrescenta, em nota de rodapé (69), que este Poder será responsável civilmente pelos danos causados a terceiros. Ao mesmo tempo aponta para a necessidade da elaboração de um Código ético-deontológico com base no qual o juiz poderia ser responsabilizado.
Por seu lado, Paulo Castro Rangel (nota 152), referindo-se à justiça norte-americana, limita-se a sublinhar o carácter fragmentário da responsabilidade do juiz (pp. 74 a 102). Neste contexto é de realçar o acórdão do STA, de 7 de Março de 1989, RLJ 123 (1990/1991), pp. 293 a 305 – qualificado por J.J. Gomes Canotilho, RLJ 123 (1990/1991), pág. 305, “como um leading case da jurisdictio portuguesa” – que decidiu que o ordenamento jurídico português prevê a responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos provenientes de factos ilícitos culposos resultantes da função jurisdicional, concluindo que age com culpa o juiz que só 5 anos mais tarde profere a sentença, quando a lei aplicável determina que a mesma fosse ditada para a acta ou lavrada no prazo máximo de 3 dias. Pois bem, tomando esta decisão como ponto de partida, apenas falta dar um curto passo (de gigante) para responsabilizar também, pessoalmente, o juiz faltoso por via de regresso. Na verdade, como escreve Jorge Miranda, A Constituição e a Responsabilidade Civil do Estado, em: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra 2001, pp. 927 e seguintes: “Um mais longo caminho tem de ser percorrido no domínio da responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional, sobretudo por causa da morosidade dos processos (pág. 932).” A este respeito é de esperar que a Proposta de Lei N.º 56/X, onde está previsto, pela primeira vez em Portugal, um regime geral de responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional, se torne realidade sem qualquer demora. Segundo esta proposta de lei, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, gozando o Estado do direito de regresso contra o juiz.
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PERSPECTIVAS SOBRE O DIREITO DOS CONTRATOS
todas as profissões prestadores de serviços, também o juiz – que presta um serviço e não exerce um poder (!) – deve, se for caso disso, ser responsabilizado. E até por maioria de razão, exactamente em consideração do valor elevado deste seu serviço para a comunidade e do seu papel inestimável158 num Estado de Direito democrático, ao qual consagra os serviços da maior relevância e valia:159 a garantia da justiça, como resultado da sua fidelidade à lei,160 e, ao mesmo tempo, a garantia da paz social. Conclusão. Cheguei ao fim das minhas breves considerações e gostaria de afirmar o seguinte: mesmo que todos, pela utilização perversa e contrária à lei do artigo 291.º (e não só), se empenhem e colaborem na destruição sistemática do instituto do registo predial português – Eu não.161 Abreviaturas AAFDL – Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa AEDUM – Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho BFD – Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra BMJ – Boletim do Ministério da Justiça CDP – Cadernos de Direito Privado CJ – Colectânea de Jurisprudência CRegPred – Código do Registo Predial pág. – página 158 Mas não insubstituível de todo, como mostra a relevância cada vez maior da arbitragem. 159 Mais valioso do que, por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde, sendo certo que a saúde é um bem de suma relevância e a sua perda é causa da maior infelicidade. Em consequência disso, quanto aos médicos, há responsabilidade. Menciona-se neste contexto, somente a título de exemplo, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde: problemas de ilicitude e de culpa, Separata de Responsabilidade civil dos médicos (integrado no projecto de investigação bianual “Responsabilidade Civil dos Médicos”, Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), Coimbra 2005, pp. 127-255. 160 Jorge de Figueiredo Dias, Nótulas sobre Temas de Direito Judiciário (Penal), RLJ 127 (1994/1995), pp. 354 a 359, e RLJ 128 (1995/1996), pp. 8 a 13: O poder judicial se esgota na sua função, e esta se esgota (...) na aplicação do direito” (pág. 8). 161 Os “precisos termos” desta conclusão fomos buscar à obra de Joachim Fest, Ich nicht. Erinnerungen an eine Kindheit und Jugend, Reinbek bei Hamburg 2006, pág. 77: “Auch wenn alle mitmachen – ich nicht!”
IGNORARE LEGIS EST LATA CULPA pp. – páginas RDE – Revista de Direito e Economia RLJ – Revista de Legislação e de Jurisprudência ScI – Scientia Iuridica STA – Supremo Tribunal Administrativo STJ – Supremo Tribunal de Justiça
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QUE DIREITO DO INCUMPRIMENTO? Assunção Cristas
INTRODUÇÃO Em primeiro lugar gostaria de agradecer à Universidade do Minho, na pessoa de quem me dirigiu o convite para estar hoje aqui, o Senhor Professor Nuno Pinto Oliveira, o amável convite para participar neste evento tão interessante quanto pertinente. Em segundo lugar gostaria de explicar qual o sentido da minha intervenção. Provavelmente adivinha-se com facilidade do título escolhido: “Que direito do incumprimento?”…é propositadamente uma interrogação, porque nesta área do direito eu tenho mais interrogações do que respostas, mais dúvidas do que certezas. A minha exposição fará pois um excurso sobre alguns problemas ligados ao incumprimento, sobre várias questões que me têm assaltado e procurará esquissar, apenas esquissar em traço grosso e impreciso aquilo que penso é e o que poderá ser o nosso direito do incumprimento contratual. Do ponto de vista metodológico preocupo-me particularmente em atender ao direito aplicável pelos tribunais e perceber em que medida as disposições legais têm vindo a ser interpretadas e aplicadas e a lição dos autores tem assumido relevância nesse processo. Por razões de total transparência e lealdade científica importa referir que o meu interesse por este tema parte de um pré-entendimento que seguramente não hoje, não agora, mas com 235
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o desenvolvimento do estudo e também com a ajuda da nossa discussão espero poder vir a confirmar ou a infirmar. Esse pré-entendimento é o de que o direito português do incumprimento contratual é mais permissivo do incumprimento do que promotor do cumprimento. Parto ainda de um outro pré-entendimento que mais será uma profissão de fé: a de que para o direito é muito importante a promoção do cumprimento contratual e que o incumprimento corresponde e deve corresponder a um facto ilícito sancionado enquanto tal pela lei, que o direito deve, pois, promover o cumprimento e dissuadir o incumprimento. Isto pode ser mais ou menos evidente para um jurista, mas não é seguramente para um economista. Os comportamentos económicos seguem, por regra, a racionalidade da eficiência. Isto significa que, independentemente de o direito configurar o incumprimento enquanto ilícito contratual, uma análise económica pode explicar com facilidade que em determinados casos pode ser mais vantajoso para o devedor não cumprir e arcar com as consequências negativas do incumprimento. Ora se partirmos de uma plataforma de entendimento segundo a qual é bom que o direito promova o cumprimento, porque tal é importante para a segurança das relações jurídicas e promotor do desenvolvimento em geral, então importa explicar, interpretar ou criar um desenho legislativo que seja promotor do cumprimento e dissuasor do incumprimento. Este modelo não se consegue apreender na totalidade sem a ajuda das metodologias próprias da análise económica do direito. Mas mesmo antes de aplicar essas metodologias ao direito português importa explicar, descobrir esse direito do incumprimento, o que nem sempre se afigura fácil, porquanto aparentemente simples e sistemático, construir o puzzle do direito português do incumprimento implica jogar com peças dispersas no código civil e, cada vez mais, em legislação dedicada à protecção do consumidor. Perguntarão, mas porquê agora esta preocupação com o regime do incumprimento contratual, quando há doutrina
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razoavelmente estabilizada e jurisprudência mais ou menos constante. Por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, por causa dos grandes números. Com isto quero referir-me às estatísticas da justiça, que nos mostram o peso muito elevado que as acções para cumprimento de dívidas têm no nosso sistema judiciário. Consultados os últimos dados disponíveis (dados provisórios de 2004) sobre o objecto das acções declarativas, podemos concluir que as acções relativas a cumprimento dos contratos andarão acima dos 65% da totalidade das acções declarativas. E neste número não são contempladas outras acções que podem ter como fundamento incumprimento de contratos (por ex. acções de preferência ou de responsabilidade civil contratual). Se atendermos a que este número é muito elevado nas acções executivas, então percebemos a dimensão e o peso do incumprimento contratual nos tribunais portugueses. Dir-me-ão que nos outros países também é assim. Ainda não tive oportunidade de me dedicar a essa análise, mas confesso que também não me estimula extraordinariamente, porque em matérias como esta a procura por fazer melhor não se deve preocupar com o que é normal, com a média, com o comum. Alguém tem de ser líder, não vejo porque não possa ser Portugal. Mais, não vejo porque não ter a preocupação em não só promover o efectivo cumprimento como em fazer desaparecer uma certa ideia de que os portugueses são incumpridores, de que somos pouco sérios e pouco rigorosos no cumprimento das obrigações. A segunda razão prende-se com a vontade de analisar o direito efectivamente aplicado, as decisões judiciais, para compreender não só se aquele direito que comodamente estamos habituados a pensar é aplicável tal qual supomos, como para perceber se tem conduzido, realmente, a soluções não apenas razoáveis, mas também boas, óptimas. 1. A COMPLEXIDADE DO REGIME DO INCUMPRIMENTO 1.1. DISPERSÃO DE REGRAS LEGAIS
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O primeiro sinal da pouca clareza do regime português do incumprimento contratual reside na dispersão sistemática das regras fundamentais. No que respeita à qualificação das diferentes situações como incumprimento há alguma nebulosidade: o artigo 798.º contém um princípio geral de responsabilidade pelo incumprimento, mas não explica quando há incumprimento; o n.º1 do artigo 801.º equipara a impossibilidade culposa à falta culposa do cumprimento da obrigação; o n.º2 do artigo 804.º explica quando existe mora e o art.805.º concretiza o momento da constituição em mora permitindo perceber que só haverá incumprimento quando já não existir espaço para a mora; isso mesmo vem a ser concretizado no artigo 808.º. No que toca a incumprimento parcial ou defeituoso a lei é razoavelmente omissiva: genericamente, há algumas referências, sobretudo a propósito da possibilidade de resolução, nos tipos contratuais legais encontram-se mais algumas normas importantes que a doutrina se tem encarregado de trazer para a teoria geral. A propósito dos meios de reacção que o credor tem ao seu dispor no caso de incumprimento o panorama não é muito diferente: — o já referido artigo 798.º prevê a responsabilidade contratual; — o n.º2 do artigo 801.º - claramente com localização deficiente – prevê a possibilidade de resolução no caso de incumprimento e impossibilidade culposos; — o artigo 802.º relativo à impossibilidade parcial, mas que a doutrina estende ao incumprimento parcial, admite a redução da contraprestação e limita o direito de resolução aos casos de incumprimento relevante; — só nos tipos contratuais legais (v.g. compra e venda, empreitada) encontramos regras mais detalhadas sobre a possibilidade de exigir a reparação ou a substituição da coisa objecto da prestação. É o caso da possibilidade de reparação ou substituição da coisa prevista na venda de coisas defeituosas (art.914.º) ou, no caso de defeitos da obra, do direito à eliminação
QUE DIREITO DO INCUMPRIMENTO?
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desses defeitos ou a nova construção, redução do preço ou, no limite, resolução (arts.1221.º e 1222.º). Estamos todos razoavelmente habituados a lidar com este emaranhado legal e nem percebemos como é pouco escorreito. 1.2.
ALGUNS PONTOS NEVRÁLGICOS
Das variadas questões eventualmente controversas e que têm sido analisadas pela jurisprudência escolhi dois casos com vista a ilustrar a complexidade do nosso direito do incumprimento. Vou referir, pois, dois exemplos que me parecem bastante esclarecedores: a delimitação entre a mora e o incumprimento definitivo e a delimitação entre cumprimento parcial ou (in)cumprimento parcial e (in)cumprimento defeituoso. a) Mora/incumprimento definitivo Partimos de um exemplo muito simples para ilustrar a complexidade do nosso regime do incumprimento: A obrigou-se a pintar a casa de B, mediante pagamento de preço, até ao dia 20 de Outubro. Chegados a esse dia, a casa de B continua por pintar. Qualquer pessoa diria, de imediato, que A não fez o que era devido, que incumpriu a sua obrigação. Tecnicamente, porém, tal situação configura-se como mora e não como incumprimento propriamente dito. Este é o primeiro ponto em que gostaria de me deter: aquilo a que chamaria o paradigma da mora. Segundo este paradigma, quando alguém deixa de cumprir uma obrigação não estará imediatamente numa situação de incumprimento, mas em princípio estará em simples mora nos casos em que não é necessária prévia interpelação. Esta solução, tão evidente para qualquer jurista treinado, é muito estranha ao entendimento de um jovem estudante e porventura mais ainda do comum das pessoas (embora esteja profundamente enraizado na actuação social). Não se discute que possa haver cumprimento tardio, a questão não é essa, o problema é saber se quando há uma falha no cumprimento essa falha dá ainda um direito a um cumprimento tardio ou esse cumprimento pode apenas ocorrer em certos casos e numa óptica de satisfação do interesse do credor.
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É sabido que se, em consequência da mora, o credor perder definitivamente, objectivamente, o interesse no cumprimento, então a mora converte-se em incumprimento definitivo. É sabido também, desde Baptista Machado, que nas relações duradouras pequenas moras podem configurar uma situação de falta de confiança e conduzir ao incumprimento definitivo. Por fim, sabemos que caso nada disto aconteça, só resta ao credor fazer uma interpelação admonitória de maneira a converter a mora em incumprimento definitivo. Esta interpelação admonitória obedece a requisitos estritos de acordo com a doutrina. A jurisprudência por seu turno tem ainda sido porventura mais exigente na aplicação destes requisitos, exigindo, por exemplo, que da interpelação conste expressamente a indicação de que caso a prestação não seja realizada até ao termo do prazo concedido o credor entende que o devedor incumpre definitivamente a prestação. Já sem entrar nas especificidades dos direitos nacionais, faria apenas referência a alguns textos importantes da construção de uma doutrina transnacional comum do incumprimento: os Princípios do Direito Europeu dos Contratos, os Princípios do Unidroit e a Convenção de Viena de 1980 relativa à Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Em qualquer um destes textos o modelo adoptado é razoavelmente simples: quando alguém deixa de cumprir uma obrigação a que está adstrito entra em incumprimento e poderá utilizar diversos meios ao seu dispor1. No entanto, se ainda tiver interesse no cumprimento pode optar por conceder um prazo suplementar ao devedor para que este possa realizar a sua prestação. Esse prazo suplementar tem como efeito inibir o credor de recorrer a outros meios de reacção ao incumprimento durante o período suplementar. Por seu turno, pode acontecer que o devedor tenha interesse no cumprimento. Nesse caso ele poderá cumprir 1 Como se refere expressamente nas notes ao artigo 8:101 dos Princípios, o não cumprimento é, para os princípios, um conceito unitário, que abrange o incumprimento total, o cumprimento tardio e o cumprimento defeituoso. Inclui ainda aquilo que chamaríamos impossibilidade não imputável ao devedor (excused non-performance).
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tardiamente (ou oferecer novo cumprimento ainda dentro do prazo no caso de tentativa de cumprimento parcial ou defeituoso) se o incumprimento não corresponder a uma falha de tal forma grave que comprometa irremediavelmente a manutenção do interesse do credor (nos Princípios, o texto refere-se a “fundamental non-performance”2, a Convenção de Viena de 1980 refere-se a uma violação fundamental do contrato). Podemos argumentar que no direito português também estes casos mais graves corresponderão a uma situação de incumprimento definitivo: por exemplo, declaração peremptória de não cumprimento ou comprometimento irremediável da satisfação do interesse do credor. Todavia ainda que tal seja verdade (e sabe-se como as soluções actuais têm muita construção doutrinária a sustentar e não são consensuais: veja-se o caso da declaração de não cumprimento que para alguma doutrina configura apenas uma dispensa de interpelação para a constituição em mora, mas não desobriga a uma futura interpelação admonitória para transformar a mora em incumprimento definitivo) isso não muda a circunstância de por princípio termos uma situação de mora e não de incumprimento definitivo. De maneira que o cumprimento num quadro de mora é visto como um direito do devedor e como uma imposição para o credor, diria quase que o devedor tem um direito potestativo e o credor está numa situação de sujeição. Não é o devedor que tem de justificar que ainda pode cumprir, é o credor que tem de argumentar que aquele já não pode cumprir. Se esta abordagem é bastante clara na lei e sofre apenas as inflexões próprias da elaboração doutrinária, de onde cumpre realçar o nome de Baptista Machado, a casuística é profusa em analisar situações em que o regime da mora é explorado ao limite. Frequentemente o tribunal altera a qualificação do autor, entendendo que existe simples mora quando para o credor já 2 A fundamental non-performance abrange casos em que: o cumprimento estrito da obrigação faz parte da essência do contrato; o incumprimento priva substancialmente o credor daquilo que razoavelmente esperava do devedor a menos que este não tenha previsto ou não pudesse ter razoavelmente ter previsto esse resultado; o não cumprimento é intencional e justifica que o credor não possa confiar no futuro cumprimento do devedor (artigo 8:103).
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estaria em causa um incumprimento definitivo. Em matéria de empreitada a casuística tende a ser particularmente exigente neste ponto. Note-se que há sinais de como a matéria da mora é particularmente sensível nos dias de hoje. O Decreto-Lei n.º 32/2003, de 7 de Fevereiro, que transpõe para o nosso ordenamento a Directiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, actua precisamente no sentido de pressionar a um cumprimento mais célere. A maneira encontrada foi prever subsidiariamente um prazo certo para a constituição da mora, de maneira a prever a cobrança automática de juros de mora como forma de pressão para o credor. É evidente do instrumento comunitário a preocupação generalizada de promoção do cumprimento. Deste novo diploma não decorre no entanto ma alteração das regras gerais sobre o incumprimento definitivo subsequente à mora. Ele actua num momento anterior, o momento da constituição em mora, dentro de uma preocupação de libertar o credor da interpelação admonitória no caso de obrigações de prazo incerto. b) Incumprimento parcial/incumprimento defeituoso Outra situação que reveste aparente simplicidade teórica, revele dificuldades de operacionalidade prática, que tem a ver com a distinção entre incumprimento parcial e incumprimento defeituoso, bem como incumprimento defeituoso e objecto da prestação defeituosa. Quando a este último ponto, é conhecida a desadequação do regime do código civil da compra e venda de coisa defeituosa, que separa regimes consoante o defeito seja contemporâneo ou superveniente à celebração do contrato, ao primeiro caso aplicando o regime o erro (anulação) e ao segundo o do incumprimento das obrigações (resolução). Além disso está claramente em desarmonia com o novo regime da compra e venda das relações de consumo. No que respeita ao primeiro ponto, as dúvidas nascem desde logo da falta de um regime genericamente aplicável ao incumprimento defeituoso. Nascem também da circunstância de a lei só se referir expressamente à impossibilidade parcial e não ao
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incumprimento culposo parcial. É preciso um esforço sério para distinguir ou harmonizar soluções e bem assim para Por exemplo, quando é que temos uma compra e venda de coisa defeituosa ou o cumprimento defeituoso de um contrato de compra e venda. Teoricamente, num caso é o objecto da prestação que sofre de defeito e no outro é a actuação do devedor que não está conforme às exigências impostas (por violação de deveres secundários e acessórios de conduta, pergunto? Por exemplo, entrega os tijolos em bom estado, mas deposita-os no fundo de um poço). Na prática, a solução legal deve ser diferente? Em qualquer dos casos não será de exigir uma substituição ou reparação da coisa? E isto não equivale a uma repetição da prestação? Para além disso há toda uma necessidade de compatibilizar com o regime próprio da mora e do incumprimento definitivo que a lei não esclarece, mas a doutrina cumpre. 2. O CUMPRIMENTO PONTUAL, A CONSERVAÇÃO DO CONTRATO E O PRINCÍPIO DA BOA FÉ NO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS O nosso regime legal deixa perceber a existência de alguns princípios estruturantes do direito dos contratos e, mais especificamente, do direito do cumprimento e do incumprimento contratual. Alguns são assumidos e explicados pela doutrina, outros porventura não. Creio que têm particular relevância o princípio do cumprimento pontual do contrato, o princípio da boa fé no cumprimento das obrigações e ainda o princípio da conservação do contrato ou do aproveitamento das prestações. O princípio do cumprimento pontual do contrato determina que o cumprimento deve ser conforme ao que foi acordado entre as partes: deve corresponder a uma actuação ponto por ponto. Isto leva-nos a concluir que se não há cumprimento em todos os aspectos: no que respeita à quantidade de qualidade do objecto da prestação, à maneira como a prestação deve ser efectuada, tudo visto numa óptica de satisfação do interesse do credor, então não se pode dizer que, rigorosamente,
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há cumprimento. Estaremos perante um caso de incumprimento do contrato. Esse incumprimento poderá ser meramente temporário (porque entretanto o devedor cumpriu) ou parcial ou defeituoso (categorias que se devem equivaler), podendo depois ser ou não imputável ao devedor. Todas estas especificidades terão importância ao nível da ponderação dos meios de reacção ao dispor do credor adimplente (por exemplo, em caso de impossibilidade excluir o direito a indemnização), mas não deverão ter incidência ao nível da qualificação jurídica da situação fática. O princípio da boa fé no cumprimento das obrigações tem afloramentos variados e está expressamente previsto enquanto regra no n.º2 do artigo 762.º. Dele decorre não só que a violação de deveres impostos pela boa fé também configura um incumprimento contratual (podemos discutir se é mesmo do contrato ou se é de uma obrigação legal…) e poderá determinar em certos casos a impossibilidade de actuação. Será o caso em que a boa fé impedirá o credor de recusar uma prestação tardia em que ainda está objectivamente interessado. O princípio da conservação do contrato é normalmente invocado a propósito dos regimes da invalidade, nomeadamente da redução ou da conservação do negócio jurídico. Penso que no âmbito das obrigações contratuais também se poderá falar de um princípio de conservação do contrato ou do aproveitamento das prestações. Tal é visível quando alguns preceitos (que poderão ser importados para a parte geral) determinam a necessidade de esgotar primeiro a possibilidade de reparação ou substituição da coisa objecto da prestação e só depois admitem a resolução. Tal princípio será também visível na regra genericamente aplicável em sede de indemnização, segundo a qual a reconstituição natural precede a indemnização em dinheiro. Soluções favoráveis à manutenção das prestações contratuais e à exigência de actuações de boa fé têm influência directa nos meios de reacção colocados à disposição do credor, nomeadamente na possibilidade ou não de destruir o contrato através da resolução. De todos estes princípios, e de algumas disposições legais, creio que podemos afirmar que existe um princípio da prevalência interesse objectivamente controlado do credor, que, temperado
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pelo princípio da boa fé, é a pedra de toque do sistema português. Não propriamente daquele sistema que consta de uma interpretação literal do código, que admite tal princípio de modo bastante circunscrito, mas do sentido que a doutrina lhe tem dado. Levado a consequências mais vastas, este princípio permitirá passar de um paradigma da mora a um paradigma do incumprimento. Para além destes princípios, que mais ou menos conseguimos divisar no nosso direito do cumprimento, podemos discutir se há necessidade de ponderação ou de introdução de um princípio de eficiência do cumprimento dos contratos, com expressão em regras legais. 3. UMA POSSÍVEL ARQUITECTURA LEGAL 3.1.
A SIMPLIFICAÇÃO DO MODELO EXISTENTE
É possível pensar numa diferente arquitectura legal do nosso modelo do incumprimento, que, reflectindo os princípios antes enunciados, corresponda, no essencial, ao direito actualmente vigente. Tal exercício corresponderia a uma simplificação do desenho legislativo, com uma clara diferenciação entre o que é incumprimento e o que são os diferentes meios de reacção a diferentes graus de incumprimento. Corresponderia ainda a uma incorporação de soluções doutrinárias mais ou menos estabilizadas e eventualmente a uma orientação para a jurisprudência. Teria desde logo a vantagem de permitir um conhecimento mais seguro e mais simples do direito. Assim, em caso de incumprimento (total, parcial, temporário ou defeituoso, mas já não no caso de impossibilidade) o devedor seria responsável e os meios de reacção do credor dependeriam em primeira linha possibilidade ou não de a prestação satisfazer ainda o seu interesse objectivamente considerado e do seu interesse subjectivo na prestação faltosa. Caso a prestação ainda fosse possível, o regime a aplicar seria o da mora e não o do incumprimento em sentido estrito. Neste caso não só o credor pode exigir o cumprimento como o devedor tem o direito a cumprir até que a mora se transforme em incumprimento definitivo. Tal ocorre quando, entretanto, há perda objectiva do interesse do credor ou quando o credor dirige ao devedor uma
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interpelação admonitória, concedendo prazo adicional para o cumprimento conforme, findo o qual se considera o contrato como definitivamente incumprido. Ocorre ainda quando o devedor antecipada ou subsequentemente declara peremptoriamente que não irá cumprir. Nestes últimos casos, em que a prestação é objectivamente possível, mas há um incumprimento definitivo o credor tem ainda uma grande opção a fazer: ou exigir o cumprimento conforme, nomeadamente por via judicial, caso em que manterá (ou efectuará) a sua prestação (cfr. “grande indemnização” de Baptista Machado) ou se estiver subjectivamente desinteressado no cumprimento resolver o contrato e pedir indemnização (que, de acordo com as posições divergentes da doutrina deverá ser pelo interesse contratual negativo ou pelo interesse contratual positivo apenas com o desconto do valor de prestação do credor). No caso de a prestação já não ser possível, restará ao credor a via da resolução. Todas estas considerações serão válidas para um incumprimento defeituoso em sentido alargado (incumprimento parcial, defeituoso, desconforme ao fim do contrato, etc.). 3.2.
A RENOVAÇÃO DO MODELO EXISTENTE
Outra possibilidade de repensar a nossa arquitectura legal passará não só por simplificar o modelo existente mas também por introduzir soluções ponderadas à luz de um princípio de eficiência económica do contrato. E mesmo antes disso, passará por proceder a uma reflexão porventura mais profunda sobre quem se quer proteger no contrato, sendo certo que em boa parte dos contratos, os sinalagmáticos, ambas as partes são simultaneamente e correspectivamente credoras e devedoras. Parece-me mais ou menos claro que o nosso código civil é mais protector do devedor do que do credor. Protector talvez não seja a palavra mais ajustada, complacente, desculpabilizante, talvez sejam qualificativos mais adequados. Dir-me-ão que tal não se nota ao nível do dever de indemnizar com base no incumprimento contratual, previsto com alguma generosidade. Mas não só nesse campo há ainda alguma nebulosidade (por exemplo, indemnização pelo interesse contratual positivo ou negativo com a resolução? Ou, embora cada vez com menos
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expressão, indemnização de danos morais…), como na configuração de dada situação como incumprimento para efeito de resolução há um claro favor ao devedor…e mesmo em casos em que se insiste quase na configuração de um direito do devedor a uma nova e conforme prestação, mesmo em casos em que porventura a confiança já se encontra perdida. Um novo modelo deverá abandonar o paradigma da mora para acolher o do incumprimento. Deverá ainda, com benefícios, adoptar um conceito unitário de incumprimento e perfilhar uma lógica do princípio da conformidade. Por fim, deve resultar de um teste sério do ponto de vista da eficiência económica do cumprimento. No actual código civil não se vislumbram réstias do paradigma liberal oriundo do Code Napoléon, segundo o qual o código civil é um código do credor (e do proprietário e do empregador…). Creio que Portugal ganharia muito com alguma maior preocupação com a posição do credor, com vista a disciplinar e a promover o cumprimento. Nem sempre o devedor é a parte fraca numa relação contratual. Nem sempre existe uma parte fraca numa relação contratual…seguramente não vale a pena olhar para um direito tecnicamente correcto e politicamente descomprometido. O direito está sempre comprometido. Às vezes tal pode é não ser muito visível…
LE PROJET DE RÉFORME DU DROIT FRANÇAIS DE L’INEXÉCUTION DES CONTRATS. VERS UN RAPPROCHEMENT DU DROIT FRANÇAIS ET DES DROIS EUROPÉENS? Judith Rochfeld
1. A l’orée du bicentenaire du Code civil, en 2004, une trentaine d’universitaires français se sont attelés à proposer une réforme de la partie du Code consacrée au droit des obligations et de la prescription. Ce projet s’est concrétisé, sous l’égide du Professeur Catala, par la rédaction d’un Avant-projet de réforme, remis au Ministre de la Justice, le 22 septembre 20051. Il est actuellement toujours en discussion, a été soumis aux remarques et critiques des professionnels et subit les corrections des services du Ministère de la Justice. L’une des motivations de ce travail était de confronter l’état du droit français en la matière aux principes du droit européen des contrats issus des travaux de la Commission Lando et aux autres travaux d’harmonisation, ainsi qu’aux droits des pays européens voisins. Il paraissait ressortir d’une première approche que si, sur certains points, le droit français était ou pouvait entrer en convergence avec la trame proposée pour l’Europe, sur d’autres points, des divergences importantes existaient.
1 Cet avant-projet est disponible sur le site du Ministère de la justice français, à l’adresse : www.justice.gouv.fr/publicat/ rapport/RAPPORTCATALASEPTEMBRE2005.pdf.
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2. Parmi ces dernières, le droit français de l’inexécution se caractérise par une grande spécificité. Pour avoir reçu la tâche d’y réfléchir au sein de ce groupe de travail et de proposer des évolutions, je présenterai le cheminement suivi à cet effet, en partant de l’état des textes existants et de leurs lacunes (I), pour éclairer les propositions de réforme et l’influence européenne qui les sous-tend (II). Je finirai par quelques remarques sur les changements profonds que pourrait impliquer l’adoption de ces nouvelles mesures à l’égard de la conception même que se fait le droit français du lien contractuel (III). Au préalable, je voudrais avertir immédiatement qu’il s’agit de faire partager un parcours de doutes, d’hésitations, qui ne prétend nullement à une vérité et ne tend qu’à ouvrir à critique et discussion, notamment au regard des traditions et pratiques juridiques voisines. I. L’ÉTAT DU DROIT FRANÇAIS DE L’INEXÉCUTION UNE SPÉCIFICITÉ EN EUROPE
DU
CONTRAT :
3. Le travail de réflexion a pris comme point de départ la seule disposition de la matière traitée, certes célébrissime en droit français, à savoir l’article 1184 du Code civil: « La condition résolutoire est toujours sous-entendue dans les contrats synallagmatiques, pour le cas où l'une des deux parties ne satisfera point à son engagement. Dans ce cas, le contrat n'est point résolu de plein droit. La partie envers laquelle l'engagement n'a point été exécuté, a le choix ou de forcer l'autre à l'exécution de la convention lorsqu'elle est possible, ou d'en demander la résolution avec dommages et intérêts. La résolution doit être demandée en justice, et il peut être accordé au défendeur un délai selon les circonstances. »
Cet article se caractérise par plusieurs particularités. Il précise tout d’abord qu’une condition résolutoire est toujours sous-entendue dans le contrat synallagmatique, « pour le cas où l’une des parties ne satisfera point à son engagement ». Il ajoute ensuite que, dans ce cas, le créancier se trouve investi d’une option entre une demande d’exécution forcée et une demande de résolution, chacune éventuellement accompagnée de l’octroi de dommages et intérêts.
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Si, enfin, le créancier opte pour la résolution, le texte l’oriente vers la résolution judiciaire puisqu’il lui enjoint de la demander en justice, un délai pouvant être accordé au défendeur « selon les circonstances ». 4. Le fondement, les conditions, et la philosophie censés porter cette disposition sont particulièrement intéressants. Quant à son fondement, il est explicite : la résolution est assise sur le mécanisme de la condition résolutoire (par fidélité à l’idée d’autonomie de la volonté faisant de la bonne exécution du contrat la condition du consentement) ; elle s’inscrit comme implicite dans tous les contrats synallagmatiques. Quant aux conditions de mise en œuvre, on note le caractère judiciaire de la mesure. Quant à la philosophie sous-jacente du texte, deux idées l’irriguent. En premier lieu, le juge intervient pour assurer la défense du principe de la force obligatoire, qui voudrait que le contrat soit exécuté quelles que soient les circonstances et les difficultés rencontrées ; et qu’en conséquence, il ne soit anéanti que dans les seuls cas d’inexécution très grave, par décision du juge contrôlant ce seuil de gravité. En second lieu, le juge intervient pour garantir une protection minimale au débiteur, celui-ci ne devant pas subir une sanction, trop vite assénée et sans contrôle, de la part de son partenaire si son inexécution n’est pas la conséquence d’un fait volontaire ou si elle revêt un caractère minime. La première idée relève du moralisme contractuel, la seconde de l’humanisme contractuel. Elles donnent toutes deux leur spécificité au droit français : celui-ci s’appuie, en la matière, sur une conception morale, bien plus que sur une poursuite de l’efficacité économique du mode de sanction2.
2 Pour une comparaison entre les deux modèles, cf. Y.-M. Laithier, Etude comparative des sanctions de l’inexécution du contrat, préf. H. Muir Watt, LGDJ, 2004 ; notre article, « Résolution, exception d’inexécution », in Les concepts contractuels à l’épreuve des Principes européens de droit des contrats, P. Rémy-Corlay et D. Fenouillet (Dir.), Dalloz, 2003, pp. 213-233
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5. En effet, si l’on synthétise l’ensemble de ces précisions, il en ressort que, dans la tradition française, la résolution est conçue comme une sanction, d’une part ; étroitement surveillée dans son application par le juge et prononcée par ce dernier, d’autre part ; en dernière extrémité, enfin. On peut résumer cette idée par celle de « résolution-accident ». Celle-ci s’oppose à l’ensemble des autres systèmes européens habités par une « résolutionprérogative », aux mains de la partie insatisfaite qui a le droit de constater l’échec du contrat3. Plusieurs conséquences en découlent. Tout d’abord, la résolution est entourée d’un halo de méfiance et ne doit intervenir que dans les cas extrêmes de faillite irrémédiable du contrat. Ensuite, quand bien même une inexécution serait constatée, un grand pouvoir d’appréciation, dit « pouvoir modérateur », est laissé au juge, qui lui permet de choisir la mesure la plus appropriée. Il pourra ainsi refuser de prononcer la résolution et préférer laisser une chance au débiteur de s’exécuter pendant un délai déterminé ; il pourra remplacer la résolution par des dommages et intérêts ; il pourra prononcer une résolution aux torts réciproques ; ou encore une résolution assortie de dommages et intérêts4. 6. Par ailleurs, hormis cet article fondamental, des lacunes importantes marquent le Code civil actuel. Elles relèvent de trois domaines. 7. En premier lieu, elles touchent les prévisions initiales. La résolution est, en effet, la seule mesure prévue pour l’ensemble des contrats. Les autres mesures ne sont évoquées que dans des textes, épars, dédiés aux contrats spéciaux. C’est le cas de l’exception d’inexécution, prévue pour la vente, l’échange ou le contrat d’assurance par exemple5. C’est le cas également de la théorie des 3
Sur cette opposition, cf. notre article, « Résolution… », préc.
Cf. J. Fischer, Le pouvoir modérateur du juge en droit civil français, préf. P. Le Tourneau, PUAM, 2004, nn° 171 et s., pp. 160 et s. 4
5 Article 1612 C. civ. (vente) : « le vendeur n’est pas tenu de délivrer la chose, si l’acheteur n’en paye pas le prix et que le vendeur ne lui ait pas accordé un délai pour le payement » ; Article 1704 (échange) : « Si l’un des copermutants a déjà reçu la chose à lui donnée en échange, et qu’il prouve ensuite que l’autre contractant n’est pas propriétaire de cette chose, il ne peut être forcé à livrer celle qui est promise en contre-échange, mais seulement à rendre celle qu’il a reçue » ; art. L. 113-3 C. ass. (contrat d’assurance).
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risques (inexécution pour cas de force majeure), construite par la doctrine, sur le fondement de textes relatifs au bail et au contrat d’entreprise, notamment6. 8. En deuxième lieu, des lacunes marquent les conditions d’application des mesures. L’article 1184 ne précise pas celles entourant la résolution : rien n’est dit, notamment, sur le seuil d’inexécution propre à l’entraîner, cette disposition se contentant de viser le « cas où l’une des parties ne satisfera point à son engagement ». La jurisprudence en appelle traditionnellement au « manquement suffisamment grave »7. Le constat peut être étendu à l’exception d’inexécution. 9. Enfin, des lacunes intéressent les effets des différentes sanctions de l’inexécution. L’article 1184, toujours, ne précise rien quant à l’étendue de ceux de la résolution : rétroactifs ou non ; touchant ou non l’ensemble du contrat. Certes, la référence en son sein à la « condition résolutoire » a orienté vers la rétroactivité. Mais, doctrine et jurisprudence n’en ont pas moins créé une variante, la « résiliation » ou résolution pour l’avenir, qui l’écarte. Pour autant, le critère de la distinction des contrats résolus et des contrats « résiliés » n’est ni très explicite ni indiscutable en droit français8. Par ailleurs, rien n’est dit, des suites de l’application des diverses mesures, notamment de l’organisation des restitutions et du fondement de ces dernières. 10. Enfin, au-delà de ces lacunes, la réflexion devait prendre en considération les évolutions de la jurisprudence et de la pratique, ainsi que les influences européennes. 6 Article 1722 (bail) : « si, pendant la durée du bail, la chose louée est détruite en totalité par cas fortuit, le bail est résilié de plein droit » ; Article 1788 (contrat d’entreprise) : « si la matière fournie par l’ouvrier vient à périr de quelque manière que ce soit avant sa livraison la perte est pour l’ouvrier ». 7 Le critère n’est cependant pas unique. Les juges peuvent également prononcer une résolution, en l’absence de manquement « suffisamment grave », dans les cas d’inexécution intentionnelle ou de confiance perdue par le cocontractant, cf. récemment, T. Génicon, La résolution du contrat pour inexécution, thèse Paris II, 2006, à paraître à la LGDJ. 8 Cf. Cass. civ.1e, 3 nov. 1983, Bull. civ. I, n° 252, p. 227, Defrénois 1984, art. 33368, p. 1014, obs. J.-L. Aubert, RTD civ 1985, p. 166, obs. J. Mestre, et 13 janv. 1987, Bull. civ. I, n° 11, p. 8, JCP G 1987, II, 20860, note G. Goubeaux : « la résolution pour inexécution partielle atteint l’ensemble du contrat ou certaines de ses tranches seulement, suivant que les parties ont voulu faire une convention indivisible ou fractionnée en une série de contrats ».
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Du côté de la jurisprudence, et pour ne citer que les principales mutations, des nuances au caractère judiciaire de la résolution ont été introduites. Après avoir exceptionnellement admis la rupture unilatérale dans des hypothèses circonscrites9, les juges, spécialement la première chambre civile de la Cour de cassation, par deux arrêts importants du 13 octobre 1998 et du 20 février 2001, se sont plus radicalement prononcés pour l’admission d’une rupture, mise en œuvre par l’un des contractants. La Cour de cassation a ainsi énoncé que « la gravité du comportement d’une partie à un contrat peut justifier que l’autre (partie) y mette fin de façon unilatérale à ses risques et périls »10, « peu important que le contrat soit à durée déterminée ou non »11. Du côté de la pratique, on relève le renversement du principe de la compétence du juge par l’insertion très fréquente de clauses résolutoires12. Enfin, l’influence des travaux d’harmonisation européens et des modèles juridiques voisins, majoritairement habités par le système de la résolution unilatérale pesait sur le droit national en le menaçant d’isolement. Pour toutes ces raisons, on pouvait légitimement tenter de réordonner la matière et de proposer une réforme. II. LES PROPOSITIONS DE RÉFORMES DU DROIT FRANÇAIS L’INEXÉCUTION : L’INFLUENCE DE L’EUROPE
DE
9 Celles-ci étaient au nombre de trois: l’urgence ; l’« état de nécessité ; la « situation devenue intolérable », par exemple, une perte de confiance lorsque celle-ci est particulièrement nécessaire à la relation contractuelle ; sur ces admissions, R. Encinas de Munagorri, L’acte unilatéral dans les rapports contractuels, préface A. Lyon-Caen, LGDJ, 1995, n° 145 et s., p. 139 et s. ; J. Ghestin, M. Billiau, C. Jamin, Traité de droit civil. Les effets du contrat, LGDJ, 3e éd., 2001, n° 423 et s., p. 433 et s. 10 Cass. civ.1e, 13 oct. 1998, D. 1999, p. 197, note C. Jamin et Somm., p. 115, obs. P. Delebecque, Defrénois 1999, p. 374, obs. D. Mazeaud, JCP G, 1999, II, 10133, note N. Rzepecki. 11 Cass. civ.1e, 20 février 2001, D., 2001, p. 1568, note C. Jamin et Somm., p. 3239, obs. D. Mazeaud, RTD civ. 2001, p. 363, obs. J. Mestre et B. Fages, Defrénois 2001, p. 705, obs. E. Savaux. 12 Elles ne sont toutefois pas autorisées dans tous les contrats, par exemple elles sont interdites dans le bail d’habitation.
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11. Au travers de l’Avant-projet de réforme, divers changements sont proposés. Ils font l’objet de sa section V (cf. annexe n° 1). Après les avoir évoqués dans leur ensemble, on discutera, en priorité, de la mesure phare relative au choix du mode de résolution, qui passe de judiciaire à unilatérale. Celui-ci démontre, en effet, l’influence de l’harmonisation européenne et les bouleversements qu’elle peut entraîner dans les conceptions nationales. 12. Quant au survol des changements principaux, on remarquera tout d’abord les consécrations textuelles des mécanismes de l’exception d’inexécution (art. 1157, cf. annexe n° 1) et de la résolution conventionnelle (art. 1159 ; ce texte énonce certaines des conditions de mise en œuvre, telles l’exigence de précision des inexécutions ouvrant à résolution et la mise en demeure, mais ne reconnaît pas explicitement le contrôle de la bonne foi tel qu’il est actuellement pratiqué par la jurisprudence). En revanche, il n’a pas été jugé acceptable, en raison des fondements rappelés de la résolution et du danger représenté, d’accueillir la résolution anticipée (on peut se reporter à l’article 1158, cf. annexe n° 1). On relèvera également la reconstruction d’une certaine unité des sanctions de l’inexécution. Elles seraient toutes placées dans un chapitre relevant de l’exécution et de l’inexécution, alors que la résolution était auparavant prévue ailleurs (dans les obligations sous condition, en raison de son fondement de condition résolutoire). L’alternative avec l’exécution forcée serait ainsi plus claire. En outre, les mesures s’ordonneraient toutes, désormais, autour d’une idée objective, détachée de toute référence à la faute. Elles s’appliqueraient en conséquence aux cas de force majeure ou de cause légitime empêchant l’exécution (la théorie des risques, construite par la doctrine, s’y intègrerait donc ; la référence n’est explicite que pour l’exception d’inexécution mais s’étend à la résolution13). La jurisprudence est, déjà, en ce sens.
13 Cf. art. 1157, al. 2, Avant-projet : « Lorsque l’inexécution résulte d’une force majeure ou d’une autre cause légitime, le contrat peut être pareillement suspendu si l’inexécution n’est pas irrémédiable ».
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Par ailleurs, au titre des effets des mesures, le moment de prise d’effet de la résolution serait fixé (cf. infra) et, en conformité avec les principes de droit européen des contrats14, le droit français abandonnerait la rétroactivité de la résolution, sauf critère départageant les hypothèses où il est nécessaire d’anéantir tous les effets passés (c’est l’objet des articles 1160 et suivants, cf. annexe n° 1). 13. Si l’on en vient maintenant au problème central qui concentre les principaux enjeux de la matière, la réforme a tranché la question du choix du caractère judiciaire ou unilatéral de la résolution. En effet, une fois admise l’idée de ne pas en rester au statu quo ante, que ce soit pour ne pas ignorer les revendications internes d’évolution ou pour considérer la différence entre la France et ses voisins européens, deux directions étaient envisageables. 14. Une première orientation pouvait prôner une approche binaire et objective : il s’agissait d’ouvrir une alternative entre résolution unilatérale et résolution judiciaire, le domaine de chacune ne dépendant pas d’un choix de l’une des parties — le créancier — , mais d’un critère objectif tenant en la gravité du manquement. Ainsi, la résolution unilatérale, parce qu’elle revient à investir le créancier d’un pouvoir unilatéral de rompre, pouvait ne se justifier, au regard de la tradition française, que si un seuil d’inexécution manifeste est atteint (cf. les fondements français traditionnel, supra, et la méfiance à l’égard des pouvoirs exercés par l’un des contractants sur l’autre). L’idée, ici, serait que, pour se passer du juge et abandonner l’appréciation à l’une des parties, il faudrait que le manquement soit facile à caractériser, qu’il soit manifeste, et que sa constatation ne donne pas lieu à contestation sérieuse ; il le faudrait d’autant plus, toujours dans cette première conception, que la charge du procès est inversée et pèse sur le débiteur, s’il estime que la résolution a été mise en œuvre de façon illégitime. En conséquence, alors que l’on pouvait se contenter, antérieurement, c’est-à-dire au sein de la résolution judiciaire, du 14
Cf. art. 9 : 305 PDEC.
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seuil du « manquement suffisamment grave » mis en œuvre par la jurisprudence, il pourrait sembler nécessaire de caractériser un manquement d’une particulière gravité, pour le jeu de la résolution unilatérale C’est pourquoi, dans cette première orientation, la résolution unilatérale n’était prévue que dans les hypothèses d’inexécution totale, conçues comme celles d’un contrat totalement inexécuté. Elle concernait également le contrat exécuté avec retard, lorsque le délai a été stipulé, ou apparaît, comme essentiel. A l’inverse, la résolution restait judiciaire, dans les autres cas, c’est-à-dire dans les hypothèses d’exécution partielle, défectueuse ou tardive, pour lesquelles il est nécessaire d’apprécier la gravité du manquement, voire de moduler la sanction. On parvenait ainsi à la proposition suivante, sous forme d’alternative : « Une partie peut résoudre le contrat s’il y a inexécution totale de la part de l’autre partie (suivent les conditions reprises dans la version définitive proposée, cf. art. 1158, annexe n° 1). Dans l’hypothèse où l’inexécution n’est pas totale, le juge prononce la résolution si l’intérêt au contrat ne peut plus être satisfait. Il peut également octroyer au défendeur un délai pour exécuter. A défaut, le juge prononce le maintien du contrat et alloue, le cas échéant, des dommages et intérêts au demandeur… ».
15. Au titre des avantages de cette proposition, ou de ce que d’aucuns pourraient considérer comme tels (mais tout le problème est là !), on relèverait que le système restait objectif, au sens où il n’investissait pas le créancier de la possibilité discrétionnaire de choisir le mode de sanction. En outre, une considération du seuil de gravité du manquement intervenait en amont. Au titre de ses inconvénients, on pouvait non seulement noter la difficulté de qualifier les manquements (entre total ou partiel ; selon le critère de l’intérêt au contrat) et le possible contentieux pouvant en naître, mais également la perpétuation de la particularité française, les autres droits européens ne connaissant pas ce type d’alternative objective.
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16. C’est pourquoi, après arbitrage, une deuxième orientation, celle des articles 1158 et 1158-1 des textes proposés, a consisté à rejeter cette alternative pour retenir une option, maniée par le créancier, entre résolution judiciaire et résolution unilatérale. L’alinéa 2 de l’article 1158 de l’Avant-projet prévoit ainsi que, « quand il opte pour la résolution, le créancier peut soit la demander au juge, soit, de lui-même, mettre en demeure le débiteur défaillant de satisfaire à son engagement dans un délai raisonnable, à défaut de quoi il tiendra le contrat pour résolu ». Au titre des avantages de cette seconde direction, on compte l’absence de seuil problématique entre résolution unilatérale et judiciaire. Mais, surtout, et ces arguments ont été très forts dans l’option choisie, elle permettait la mise en conformité du droit français avec celui de ses voisins, plus précisément d’ailleurs avec le droit néerlandais qui connaît cette même option, la méthode unilatérale faisant, là, figure d’hypothèse normale (article 267 du Livre 6 du nouveau C. civ. néerlandais). L’impact politique et psychologique d’une mesure conçue comme marquée du sceau d’une certaine modernité, parce qu’adoptée assez généralement en Europe, a ainsi beaucoup pesé. Par ailleurs, ce choix démontre que les préoccupations d’efficacité économique de la sanction ont gagné en importance : la résolution unilatérale, autorisant le constat rapide de l’échec d’un contrat, permettrait une plus prompte ré-allocation des ressources, ainsi que, plus globalement et par voie de conséquence, une préservation optimale de l’intérêt du marché. L’exécution devrait ainsi être « efficace », ou le contrat devrait disparaître. 17. Au titre des inconvénients des mesures proposées, néanmoins, on peut compter, l’absence de seuil précis autorisant le créancier à se prévaloir de la résolution15. Surtout, le juriste français aura tendance à relever la « subjectivation » du droit de rompre (celui-ci devient un droit 15 Sur cette critique, cf. H. Beale, « La réforme du droit français des contrats et le “droit européen des contrats“ ; perspective de la Law Commission anglaise », in La réforme du droit des contrats : projet et perspectives, Revue des contrats, 2006, pp. 135 et s.
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subjectif du créancier) par l’octroi, qu’il ne conçoit pas sans dangers, d’une véritable prérogative unilatérale au créancier. 18. C’est pourquoi ce choix de l’unilatéral s’entoure de précautions afin de contrer l’introduction d’un pouvoir unilatéral sans intervention du juge. Celles-ci tiennent en l’organisation de la considération minimale des intérêts du débiteur lors de la mise en œuvre de la prérogative par le créancier, d’une part, et en l’exigence d’éléments permettant l’exercice d’un éventuel contrôle a posteriori de cette dernière par le juge, d’autre part. Tout d’abord, la considération minimale des intérêts du débiteur est visible à l’alinéa 2 de l’article 1158 proposé qui précise que, quand il opte pour la résolution unilatérale, le créancier doit « mettre en demeure le débiteur défaillant de satisfaire à son engagement ». Cette mise en demeure intervient comme une condition, traditionnelle, destinée à parvenir à l’exécution (dernière tentative pour obtenir cette dernière) et à assurer un respect minimal des intérêts du débiteur, dans un souci d’humanisme : la mesure est informative au sens où elle évite de surprendre le partenaire contractuel16 ; elle se veut également comminatoire, le créancier manifestant par son biais sa volonté de voir l’obligation exécutée17. Par ailleurs, le créancier doit octroyer un « délai raisonnable » d’exécution (alinéa 2 de l’article 1158). On se reportera ensuite à l’alinéa 3 du même article, qui prévoit que « lorsque l’inexécution persiste, le créancier notifie au débiteur la résolution du contrat et les raisons qui la motivent ». En effet, on trouve ici, sur le modèle des travaux d’harmonisation européens18, l’exigence de notification. Celle-ci répond au besoin 16 Cf. B. de Coninck, « La mise en demeure. Rapport belge », in Les sanctions de l’inexécution des obligations contractuelles, Etudes de droit comparé, sous la dir. de G. Viney et M. Fontaine, Bruylant, LGDJ, 2001, p. 165. 17 On peut s’interroger, si les propositions devaient être retenues, sur le sort qui serait réservé à cette mise en demeure, dans les hypothèses où l’exécution serait d’ores et déjà impossible. Dans ce cas, dans le système actuel, la jurisprudence a allégé l’exigence qui l’entoure, la demande en justice du créancier pouvant valoir mise en demeure. On peut imaginer que ce raisonnement pourrait valoir également ici et que la notification puisse valoir mise en demeure.
Cf., sur cette évolution, J. Ghestin, C. Jamin et M. Billiau, Les effets…, op. cit., nn° 452, pp. 512 et s. ; Cass. civ.1e, 23 mai 2000, D. 2000, IR, p. 203. 18 Cf. Art. 9 : 303 : Notification de la résolution :
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d’information du débiteur de la fin du contrat et à la nécessité de constater la volonté du créancier de rompre19. Elle fixe précisément la date de la rupture à sa réception par l’autre partie20 et s’intègre dans la catégorie des actes réceptifs. A cette date, les effets de la rupture se développent pour l’avenir, conformément à la suppression de la condition résolutoire comme fondement de la résolution, sur le modèle européen21. 19. Par ailleurs, l’exigence de motivation de cette notification intervient en prévision du contrôle postérieur du juge. Celui-ci est prévu par l’art. 1158-1, al. 1er, sur le fondement de l’idée que la mise en œuvre d’une prérogative unilatérale justifie un tel contrôle. Les pouvoirs du juge vont, alors, « selon les circonstances », de la validation de la résolution à la condamnation à l’exécution du contrat, avec octroi éventuel « d’un délai au débiteur ». 20. Ce contrôle n’irait toutefois pas sans difficultés. Deux directions sont possibles, selon le degré de discrétion du droit ainsi reconnu au créancier.
« (1) La résolution s’opère par notification au débiteur ; (2) Le créancier est déchu du droit de résoudre le contrat s’il n’adresse pas notification dans un délai raisonnable à partir du moment où il a eu, ou aurait dû avoir connaissance, de l’inexécution ». Sur cet article, I. de Lamberterie, G. Rouhette et D. Tallon et C. Witz, Les principes du droit européen du contrat. L’exécution, l’inexécution et ses suites, version française, Doc. française, 1997, p. 206. 19 Cf., déjà, l’article L. 114-1 C. cons. qui enjoint au consommateur, dont le produit ou la prestation n’a pas été livré ou exécuté sept jours après la date prévue, de notifier par lettre recommandée la « dénonciation » du contrat. 20 En lieu et place de l’incertitude et des hésitations du droit français antérieur, cf. J. Ghestin, C. Jamin et M. Billiau, op. cit., nn° 543 et s., pp. 598 et s., un flou existant dans la jurisprudence ; par ex., Cass. civ. 3e, 13 mai 1998, Bull. civ. III, n° 98, p. 66, la fixant au jour du jugement, constitutif.
On relèvera que cette date est la plus à même d’introduire un équilibre entre les intérêts de chacune des parties (par exemple, elle est appliquée en droit du travail en matière de licenciement, cf. art. L. 122-14-1, al. 1er c. trav.). 21
Art. 9 : 305 PDEC : Effets de la résolution en général :
« (1) La résolution du contrat libère les deux parties de leur obligation d’effectuer la prestation ou de la recevoir dans le futur ; mais sous réserve des articles 9 : 306 à 9 : 308, elle est sans effet sur les droits et obligations qui avaient pris naissance au moment où elle est intervenue ».
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Dans une première direction, le juge exercerait un contrôle véritable en tant que « juge-contrôleur »22. Il pourrait porter une appréciation réelle de la mise en œuvre et de l’opportunité de la prérogative unilatérale de décider de la résolution, quand bien même le contrôle interviendrait a posteriori23. Deux types de critères pourraient, ici, être utilisés. En premier lieu, on peut imaginer un contrôle de l’abus du droit : l’exercice par le créancier de sa prérogative de résoudre unilatéralement le contrat pourrait être jugée abusive si elle apparaît particulièrement injustifiée ou brutale ou sans qu’il y ait véritablement un intérêt. Plus avant et en second lieu, un contrôle de proportionnalité pourrait être conduit : il s’agirait de mettre en balance les intérêts respectifs des parties, à savoir l’intérêt du créancier à la mise en œuvre de la mesure et la défaillance et/ou les moyens du débiteur (par exemple, au vu du coût, financier, humain ou social de la résolution)24. Ces critères pourraient d’ailleurs s’entremêler, l’approche en termes de proportionnalité pouvant fonder le constat d’un abus de droit25. Au soutien de cette première direction, on peut relever, dans la proposition de réforme, l’exigence de notification des motifs de la rupture. La sanction la plus adéquate serait alors le prononcé du maintien du contrat dans les cas où la décision de rompre serait intervenue de façon illégitime. Cette possibilité est ouverte à l’article 1158-1 al. 2 proposé26. 22 Selon les expressions de J. Normand, « Conclusions », in Le conventionnel et le juridictionnel dans le règlement des différends, P. Ancel et M.-C. Rivier, (dir.), Economica, 2001, p. 148. 23 C’est le cas, plus largement, pour l’exercice de toutes les prérogatives unilatérales, telle la mise en œuvre des clauses résolutoires. 24 Cf. l’opposition entre « droit » à la résolution, véritablement absolutiste, et « intérêt » à la résolution, intégrant une mise en balance avec l’intérêt d’autrui, entendu en priorité comme celui du débiteur, éventuellement des tiers,Y.-M. Laithier, Etude comparative des sanctions de l’inexécution du contrat, préf. H. Muir Watt, LGDJ, 2004. n° 219 et s., p. 304 et s., spéc. nn° 227 et s., pp. 311 et s.
Comp. le contrôle entourant la mise en œuvre des clauses résolutoires, fondé sur la bonne foi mais non sur la proportionnalité ; cf., par ex., Cass. civ.1e, 16 fév. 1999, Bull. civ. I, n° 52, qui reproche à celui qui se fonde sur une telle disposition d’avoir attendu plusieurs années d’inexécution avant de se prévaloir brutalement de la clause. 25
26 Art. 1158-1 : « Il est loisible au débiteur de contester en justice la décision du créancier en alléguant que le manquement qui lui est imputé ne justifie pas la résolution du contrat.
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21. Selon une seconde direction, néanmoins, le juge ne ferait qu’homologuer la décision du créancier et se bornerait à être un « juge-homologateur »27. En faveur de ce contrôle minimal, plusieurs arguments peuvent être avancés Tout d’abord, on remarquera que l’exigence du seuil traditionnel du « manquement suffisamment grave », qui impliquait un contrôle de proportionnalité de la mesure, ou la précision d’un seuil quelconque, n’a pas été reprise ou effectuée. Ce seuil pourrait cependant être réintégré a posteriori. Surtout, le renversement du temps et de la charge du procès, sur les épaules du débiteur du fait de l’intervention a posteriori du juge, induit deux effets. D’une part, une réduction du champ du contrôle en pratique, au sens où peu de contractants prendront le risque et supporteront le coût d’une telle entreprise. D’autre part, la décision de rompre ayant d’ores et déjà déroulé ses conséquences, le juge sera placé devant un état de fait qui lui laisse peu de marge de manœuvre. Il ne pourra, dans le plupart des cas, qu’octroyer des dommages et intérêts. On ajoutera à cet égard qu’il existe des doutes, en droit français, sur la compétence du juge des référés pour prononcer le maintien du contrat. Or, juge de l’urgence, il est le seul qui puisse efficacement intervenir afin d’ordonner à un contractant, en temps utiles, de continuer l’exécution de son contrat alors que celui-ci veut illégitimement en sortir en alléguant une résolution. Le juge du fond, quant à lui, n’interviendra que face à une exécution d’ores et déjà interrompue, face à une rupture consommée, de sorte que toute idée de maintenir le contrat pourra sembler illusoire. Il risque donc, en définitive, de se produire un déplacement, d’un contrôle de la légitimité de la mesure de résolution, vers celui de la responsabilité civile de son auteur28. III. QUELQUES REMARQUES FINALES : UN CHANGEMENT CONCEPTION DU LIEN CONTRACTUEL ?
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Le juge peut, selon les circonstances, valider la résolution ou ordonner l’exécution du contrat, en octroyant éventuellement un délai au débiteur ». 27 Cf. note n° 22. 28 Cf. l’idée de glissement du contentieux vers celui de la responsabilité civile, notre article, « Résolution et exception… », préc., pp. 229 et s.
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22. Pour conclure cette présentation, on mettra en lumière les profonds bouleversements que l’adoption des changements proposés, au-delà de leur aspect technique, serait à même d’entraîner. 23. Tout d’abord, ces mesures portent un changement de modèle de la sanction de l’inexécution. La conception française actuelle de la résolution, celle de « résolution-accident », fondée sur des préoccupations d’humanisme, cèderait devant la « résolution-prérogative » et ses valeurs d’efficacité économique29. Le résultat le plus tangible de cette mutation tient en l’inversion, lourde, de la charge du procès, sur les épaules du débiteur. 24. Plus profondément, ensuite, on peut soulever une interrogation cruciale, tenant aux répercussions que pourraient avoir ces propositions sur la conception même que le droit français a forgé du lien contractuel. La conception que l’on adopte des pouvoirs du créancier ne lui sont pas, en effet, étrangère. Or, on notera que cette partie se trouve, dans une certaine mesure, privilégiée dans la relation, au nom de l’efficacité de la sanction. Certes, chaque contractant détient cette faculté de résoudre le contrat. Mais, la résolution unilatérale favorise le créancier qui se libère rapidement, quitte à être attaqué pour abus, a posteriori et de façon limitée comme nous l’avons vu. Cette conception investit donc chacune des parties de pouvoirs sur l’autre : elles ont un droit subjectif de rompre. En ce sens, il y a « subjectivation » du rapport contractuel, dans sa phase d’exécution30. 25. Or, ce constat peut appeler, pour un juriste français, deux types réserves Quant à la répartition des pouvoirs entre les parties, tout d’abord, on peut penser que reconnaître au créancier le droit de rompre unilatéralement le contrat revient à valoriser l’unilatéralisme dans la relation contractuelle et à concevoir cette 29 Sur cette évolution, sous l’influence des principes de droit européens des contrats, cf. notre article, « Résolution et exception d'inexécution », préc., p. 217. 30 Cf. notre article, « Remarques sur les propositions relatives à l’exécution et à l’inexécution du contrat : la subjectivation du droit à l’exécution », in La réforme du droit des contrats : Projet et perspectives, Revue des contrats, 2006, pp. 113 et s.
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dernière comme un agencement de pouvoirs et de devoirs de chacune des parties envers l’autre31. Dans ce prolongement, le juge voit son rôle diminué : il y a, pour des raisons qui peuvent paraître légitimes, déjudiciarisation. Or — et c’est là peut-être que résiderait le plus grand changement sous l’influence européenne — le droit français était habité jusqu’alors par une conception du lien contractuel conçu comme une situation objective, un lien de droit, régie par le droit, sous le contrôle du juge32. Il évoluerait vers un lien d’obligation entre deux individus, un « lien fonctionnel », au service de la satisfaction et de l’avantage de chacune des parties33.
31 Cf. R. Encinas de Munagorri, L'acte unilatéral dans les rapports contractuels, préf. A. Lyon-Caen, LGDJ, 1995 ; D. Mazeaud et C. Jamin (dir.), L’unilatéralisme et le droit des obligations, Economica, 1999 ; pour une comparaison sur ce point, du droit français et du droit anglais, cf. S. Whittaker, « Un droit à la prestation plutôt qu’un droit à l’exécution ? Perspectives anglaises sur l’exécution en nature de la réparation », Revue des contrats,2005, p. 54. 32 S. Whittaker, art. préc., p. 54, qui rattache cette conception à l’héritage du droit romain. 33 Sur cet aspect, Y.-M. Laithier, « La prétendue primauté de l’exécution en nature », Revue des contrats 2005, p. 161.