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Revista
DIREITO, JUSTIÇA & CIDADANIA
FOCCA – Faculdade de Olinda Diretora Presidente Maria Antonieta Alves Chiappetta Vice Diretora Váleria Alves Chiappetta Diretor Acadêmico Luciano Ramos Brasileiro Diretora Administrativa Ana Silva Moreira Moutinho Revista Direito, Justiça e Cidadania Nº 01 Organização Helena Neves Regueira Normatização Kamyla Pradines Guimarães Revisão Maria Jaqueline Gomes Projeto editorial e capa Débora Lobo Bonald Pedrosa Impressão Gráfica Suassuna Periodicidade Anual Tiragem 100
Revista
DIREITO, JUSTIÇA & CIDADANIA
Olinda, outubro de 2018
A Revista Direito, Justiça e Cidadania é uma revista destinada a publicação de trabalhos de alunos e professores da FOCCA – FACULDADE DE OLINDA e de outras instituições de Ensino Superior. Os conteúdos emitidos nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores.
POLÍTICA EDITORIAL Cada artigo apresentado é revisado pelo Conselho editorial sob o sistema de blind review, no qual a identidade do autor é sempre mantida em sigilo para o revisor e vice-versa.
COORDENAÇÃO EDITORIAL Marcos Antônio Fonseca Calado Roberta Corrêa de Araujo Tibério de Paula Pedrosa Monteiro
CONSELHO EDITORIAL Francisco Ivo Dantas Cavalcanti – Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e também pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Especialista em Direito Público pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco UNICAP. Professor da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Professor visitante da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e da Universidade da Amazônia UNAMA. Professor Honoris Causa da FOCCA – Faculdade de Olinda Tibério de Paula Pedrosa Monteiro – Mestre em Desenvolvimento Internacional pela Indiana University of Pennsylvania – EUA. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Professor Convidado do Núcleo de Estudos do Terceiro Setor da Universidade de Pernambuco – UPE. Professor e Coordenador Adjunto do Curso de Direito da FOCCA – Faculdade de Olinda. Roberta Corrêa de Araújo – Juíza do Trabalho, Titular da 14ª Vara do Trabalho do Recife (TRT da 6.ª Região). Coordenadora da Escola Judicial do TRT da 6 Região. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1990). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora Acadêmica do curso de Direito da FOCCA – Faculdade de Olinda. Professora de Graduação e Pós-Graduação lato sensu nas áreas de Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado. Ingrid Zanella Andrade Campos – Doutora e mestre em Direito pela UFPE. Professora Adjunta da UFPE. Especialista pelo Law of Marine Insurance e Liability for Maritime Claims, pela International Maritime Law Institute, IMLI, em Malta. Professora Adjunta de Direito Civil e Direito Marítimo da UFPE. Professora da Faculdade Damas - PE (graduação e mestrado). Presidente da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da OAB-PE, e membro da Comissão Nacional de Direito Marítimo e Portuário do CFOAB. Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB-PE. Membro da Associação Brasileira de Direito Marítimo? ABDM, Instituto Ibero-Americano de Direito Marítimo, membro fundador da WISTA Brasil. Oficial da Ordem do Mérito Naval? Marinha do Brasil. Auditora Ambiental Líder de portos, plataformas e refinarias. Perita Ambiental Judicial. Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da UNINASSAU/PE. Professora das
especializações em Direito Marítimo, Portuário e Ambiental da UNISANTOS/SP, Faculdade de Direito de Vitória/ES, UNIVALI/SC e UFRN. Coordenadora e pesquisadora responsável pela análise jurídica do primeiro estudo ambiental no Brasil envolvendo navios de cruzeiros (Estudo Ambiental dos Impactos da Atividade de Cruzeiro Marítimo no Arquipélago de Fernando de Noronha, 2012). Sergio Torres Teixeira – Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor adjunto da FDR/UFPE e da UNICAP. Professor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco – ESMAPE e professor, coordenador científico e Diretor da Escola Superior da Magistratura do Trabalho – ESMATRA. Ocupa a cadeira nº 33 da Academia Nacional de Direito do Trabalho e a cadeira nº 02 da Academia Pernambucana de Direito do Trabalho, sendo igualmente membro do Instituto Ítalo-Brasileiro de Direito do Trabalho e do Instituto Brasileiro de Direito Processual Ademario Andrade Tavares – Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Universitat de Barcelona (2007). Professor adjunto e Coordenador do Núcleo de Assuntos Internacionais da ASCES (Caruaru/PE) e Professor de Direito Constitucional da FOCCA (Olinda) Adonis Costa e Silva – Mestre em Master en Derecho Comunitario Europeo – Universidad Autónoma de Madrid (1995) e doutorado em Doctorado en Derecho – Universidad Autónoma de Madrid (1998). Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco e da FOCCA – Associação Olindense Dom Vital de Ensino Superior S/S Ltda. Elaine Cristina de Moraes Buarque – Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Teoria do Direito Privado na UFPE. Professora na FOCCA. Martorelli Dantas da Silva – Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Advogado Criminalista e Professor de Teoria Geral do Direito, Direito Penal e Direito Processual Penal da UniFG. Écio Oto Ramos Duarte – Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR (2013); Mestrado em Direito (Direito e Ordem Constitucional) pela Universidade Federal do Ceará - UFC (2002); Diploma de Estudos Avançados na área de Filosofia Do Direito Pela Universidad Carlos III de Madrid (2006); Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí –UFPI (1989); Licenciatura Plena em Pedagogia pela UFPI (1996); Bacharelado em Direito pela UFPI (1993); Desde 1996 é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Piauí. Professor Convidado dos Cursos de Pós-graduação em Direito da Faculdade das Atividades Empresariais de Teresina – FAETE. Tem experiência na área das ciências humanas, com ênfase em Direito, Filosofia e Ciência Política. Autor de várias obras publicadas de Teoria do Direito e Teoria Constitucional.
APRESENTAÇÃO
O Direito é um saber investigativo. Seja no campo doutrinário, seja no campo das práxis jurídicas, o Direito oferece inúmeras possibilidades à elaboração crítica e desafia a capacidade descritiva e preditiva das teorias jurídicas. Neste sentido, sobreleva-se a importância de uma faculdade de Direito desenvolver o aprender como uma ação contínua e o pesquisar como um saber essencial. É, portanto, com o objetivo de disseminar a pesquisa científica, produzir e socializar conhecimentos e saberes, que o Curso de Direito da Faculdade de Olinda- Focca tem a honra e a satisfação de lançar a primeira edição da sua Revista “Direito, Justiça & Cidadania”, com viés temático focado na celebração dos 30 anos da Constituição Federal da República Federativa do Brasil. A indissociabilidade entre ensino e pesquisa é o ideal a ser continuamente buscado, transformando o curso jurídico em um centro de estudos, lugar de pesquisa e produção de conhecimento, fomentando a construção coletiva do saber jurídico e promovendo a formação de profissionais do direito aptos a gerar e socializar conhecimentos e saberes. Assim, a Revista científica “Direito, Justiça & Cidadania” se propõe a ser ponto fulcral do projeto estratégico do curso de Direito da Faculdade de Olinda- Focca para valorização e incentivo à pesquisa acadêmica em todas as suas dimensões e complexidades, promovendo o desenvolvimento de ideias e a disseminação do conteúdo jurídico, com seriedade e compromisso, a fim de contribuir para o crescimento da sociedade e para o crescimento do próprio Direito como ciência. O sopro de vida deste projeto, sem dúvidas, deveu-se ao engajamento e comprometimento da comunidade discente e docente, que empreendeu conjuntamente o esforço de torná-lo possível, contribuindo para o fortalecimento e incremento do curso de Direito. Aos mestres e aprendizes que com seus artigos científicos viabilizaram a primeira edição da “Direito, Justiça & Cidadania”, nossos agradecimentos e aplausos. Agradecemos, também, ao Conselho Editorial, competente e comprometido com a excelência em seus pareceres, atestando a importância de uma visão profissional e capacitada sobre cada assunto versado nos artigos que compõem este periódico, composto das mais diversas abordagens teóricas e metodológicas. A Revista “Direito, Justiça & Cidadania” terá periodicidade anual e intenta se consolidar como instrumento eficaz de confluência de discussões e atualizações da vivência acadêmica. Desejamos a todos uma proveitosa e enriquecedora leitura. Roberta Corrêa de Araujo Coordenadora Acadêmica do Curso de Direito da Focca- Faculdade de Olinda
SENTIMENTO E PENSAMENTO CONSTITUCIONAIS NO BRASIL - 1808 A 18221 Prof. Dr. Ivo Dantas 2 Ivo Dantas Filho 3
1. INTRODUÇÃO AO TEMA. JUSTIFICATIVA DE DELIMITAÇÃO TEMPORAL Inicialmente, inclusive por questões metodológicas, é preciso que se estabeleça, de maneira clara, o objetivo deste capítulo. Não é pretendido escrever a História Constitucional do Brasil, dentro da perspectiva traçada no capítulo anterior e não a História das Ideias Políticas, a qual, em última análise, tem um campo de abrangência muito maior que aquela. Em outras palavras, pode-se dizer que a História Constitucional interessa a todos os instantes da História das Idéias Políticas, enquanto que esta só interessa à História Constitucional, na medida em que influencia ou se reporta ao Constitucionalismo. Essa delimitação prévia é necessária, como se disse, por razões de ordem lógico-metodológica, dentre as quais, pelo menos duas devem ser mencionadas, a saber: a) - em primeiro lugar, para que não se diga que foi omitida a fase anterior à chegada de D. JOÃO VI ao Brasil, deixando de analisar movimentos políticos e de ideias da mais alta significação e importância, como o foram a chamada Insurreição Pernambucana de 13.06.1645, exemplo de movimento nativista manifestado contra os holandeses; a Conjuração Mineira de maio de 1789, irrompida em Ouro Preto, então Vila Rica, visando a independência do Brasil, e na qual, segundo AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO, no livro O Som do Outro Sino (Um breviário liberal)4, podemos identificar “um movimento de intelectuais, consagrador das idéias da República, Universidade e Abolição”; ou, finalmente, a Conjuração Baiana de 12.08.1798, que ao contrário da mineira, foi um movimento de alfaiates e soldados, e no entender de AFONSO RUY, “A Primeira Revolução Social do Brasil”. 1 O presente texto é baseado em outro, inicialmente, publicado em nosso livro Direito Constitucional e Instituições Políticas (Bauru: Editora Jalovi, 1986) e, posteriormente, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (Natal, vols. LXXIII - LXXIV, anos 1981 – 1982). No momento em que vivemos, com a aproximação das eleições e a discussão de uma Constituição, as considerações históricas são indispensáveis para que conheçamos o processo histórico, político e constitucional, dos primeiros gemidos constitucionais que nos influenciam até hoje. 2 Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife - UFPE. · Doutor em Direito Constitucional - UFMG. · Livre Docente em Direito Constitucional - UERJ. · Livre Docente em Teoria do Estado - UFPE. · Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. · Professor Titular de Processo Constitucional, Faculdade de Olinda – FOCCA, · Membro da Academia Brasileira de Ciências Morais e Políticas. · Presidente do Instituto Pernambucano de Direito Comparado. · Presidente da Academia Pernambucana de Ciências Morais e Políticas. · Miembro del Instituto IberoAmericano de Derecho Constitucional México). · Miembro del Consejo Asesor del Anuario IberoAmericano de Justicia Constitucional, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales (CEPC), Madrid. · Juiz Federal do Trabalho - (aposentado). · Advogado e Parecerista. 3 Especialista em Direito e Processo Trabalhista. Advogado. 4 Editora Civilização Brasileira, 1978, p. 146.
A propósito, vale relembrar o que já foi escrito no capítulo anterior, quando em lição de Manuel Correia de Andrade, estudando a Transição do período colonial para a Independência5, recua às Inconfidências Mineira e Baiana, e afirma: “A situação do Brasil, nos fins do século XVIII, era de impasse entre a permanência da dominação direta portuguesa, com a crise do Antigo Sistema Colonial, e a sua transformação em um país independente, separado de Portugal. Naquele momento, as ideias dominantes, influenciadas pela Revolução Norte-Americana (1775/83) e a Revolução Francesa (1789), iriam ter repercussões no Brasil, dando lugar a duas importantes conspirações: a chamada Inconfidência Mineira (1789) e a Inconfidência Baiana (1798). A primeira tinha forte participação da elite cultural e econômica da colônia e voltavase para os ideais da Revolução Francesa; a outra, de caráter popular, composta dominantemente de artífices, negros, mulatos e ex-escravos era mais influenciada pelos ideais da Revolução Americana. Ambas identificavam o desejo de reformas e de independência, em escala regional”.b) - em segundo lugar, porque o ano de 1808, é a oportunidade em que se dá, indubitavelmente, o decisivo passo para a formação do Estado Brasileiro, sobretudo, se atentarmos para a lição de J. P. Galvão de Souza6 quando, de forma quase didática, escreve: “Sendo três os elementos que concorrem para a formação jurídica do Estado - território, povo e poder soberano7. Só este último faltava para que o Brasil viesse a constituir um estado independente, que representasse a nacionalidade brasileira no consórcio das gentes. Foi o que lhe adveio da transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro ao tempo de D. João VI. Não admira que o Brasil fosse recebido entre as potências que participavam do Congresso de Viena. E desde 1815, constituía o Reino Unido com Portugal e Algarves”- conclui8. Dizia-se que a fase anterior ao ano de 1808 foi importante, e repetimos, sobretudo, em razão de que, foi exatamente nela, que se falou, entre nós, pela primeira vez, em república e outros princípios de ordem política, sem que, entretanto, o Constitucionalismo viesse a ser lembrado, o que só acontece com a influência das ideias advindas da Europa, através dos estudantes brasileiros lá formados, e sofrendo os condicionamentos dos sopros liberais contrários ao Estado absoluto, forma inicial de Organização Política na Europa da Idade Moderna. Tais ideias constitucionalistas, que serão vistas posteriormente, foram recepcionadas em Pernambuco, no ano de 1817! José Honório Rodrigues, em conferência publicada sob o título de “A Revolução Americana e a Brasileira: 1776-1820”, entende que “a Conjuração Mineira inicia a série de movimentos que, em pouco mais de uma geração, irá resultar na independência. Ela conta na sua motivação com causas internas e externas, econômicas e ideológicas. Os vários conjurados e testemunhas revelam, na devassa, sua grande 5 In Brasil: Realidade e Utopia. Recife: Editora Universitária UFPE, 2000, pp. 23-24. 6 Introdução à História do Direito Político Brasileiro, Editora Saraiva, 2a. edição, 1962, p. 81. 7 Insistamos na distinção científica que se deve fazer entre o povo e população, parecendo-nos correto tomar o primeiro como significando o total dos que gozam de direitos políticos, enquanto que população seria o elemento humano do Estado, ou seja, em uma perspectiva matemático-demográfica. No caso, evidentemente, a colocação correta seria população e não povo. Vejam-se IVO DANTAS, Ciência Política (vol. I) - Teoria do Poder e da Constituição (Editora Rio, 1976) e Teoria do Estado - Direito Constitucional I (Editora Del Rey, 1989) onde a matéria está analisada. 8 No período compreendido entre 1808-1889, foram datas importantes para a História Constitucional do Brasil: 1808 (7.3): Chegada do Príncipe Regente JOÃO ao Rio de Janeiro; 1986: Com a morte da Rainha D. MARIA (a louca) o Príncipe JOÃO torna-se, no Rio de Janeiro, o rei D. JOÃO VI, de Portugal e do Brasil; 1817: Ocorre em Pernambuco e capitanias vizinhas forte movimento pró-independência do Brasil; 1820 (24.08) Início da revolução constitucionalista do Porto, Portugal; 1821 (26.08): Volta do Rei D. JOÃO VI a Portugal, ficando no Rio de Janeiro o Príncipe herdeiro PEDRO, como Regente do Brasil; 1822 (9.1): Dia do Fico; 1822 (7.9): Independência do Brasil; 1822 (12.10): Aclamação de D. PEDRO; 1823: Instalação e Dissolução da Assembléia Constituinte; 1824 (25.03): Outorga da Carta Política.; 1824: Confederação do Equador, Pernambuco; 1832: Aprovação do Código de Processo Criminal; 1834 (12.08): Ato Adicional; 1835 (1.4): Abdicação de D. PEDRO; 1840: Lei de Interpretação.
satisfação com o que acontecera com a América Inglesa, e nota-se que, se tivessem igual oportunidade, não deixariam de lançar mão dela aproveitando-a para erigir uma República. Conheciam os sucessos da história revolucionária americana e possuíam desmedida paixão pelos Estados Unidos. Tiradentes exagerava as riquezas do país, achava que este podia ser independente como a América Inglesa, e possuía uma coleção de livros sobre os Estados Unidos e sua constituição. Adiante, fundamentando o que dizíamos sobre o sopro das idéias liberais contra o Estado absoluto, afirma: “Não foi só o amor à Independência, o desejo de sacudir o jugo colonial, nem só as pressões econômicas do fisco, mas o ódio à monarquia absoluta e à espoliação do país que o colonialismo impunha”, que na sua opinião, foram os maiores incentivos para os conspiradores da América Portuguesa9. Os movimentos referidos, e anteriores a 1808, entretanto, “fracassaram num ambiente de feudalismo colonial, por falta de comunicações e de população política; explodiram isolados sem poder de expansão em áreas restritas de conjuras filosóficas, onde se especulava contra a tirania fiscal dos governadores”, como ensina Luís Norton no ensaio A Revolução Constitucional no Brasil e a Partida da Corte10. Para concluir, ele ainda afirma que “assim morreram à nascença os levantamentos da Bahia e de Minas Gerais, amordaçando-se os primeiros protestos das chamadas inconfidências”.
2. D. JOÃO NO BRASIL. A REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817 E A REVOLUÇÃO PORTUGUESA DE 1820 Não há dúvida de que o primeiro grande e decisivo passo para a formação do Estado Brasileiro ocorreu em 23 de janeiro de 1808 com a chegada de D. João VI e sua Corte à Bahia, consequência do bloqueio continental decretado por Napoleão Bonaparte na Europa e, sobretudo, em Portugal11. Tal transferência, se por um lado representou a concretização de velhos sonhos, por outro representou à metrópole o único caminho para evitar o domínio napoleônico em terras lusas. A propósito, Luiz Norton tem palavras que merecem ser pensadas, quando, textualmente, escreve: “Se a saída de D. João VI para a América do Sul teve, em dado momento, a exclusiva aparência dum pânico liberativo, e se a atitude da corte, embarcando numa esquadra, em trigosa debanda, dava ao quadro aspectos de fuga, de naufrágio, ou de qualquer outra catástrofe, nem por isso é lícito concluir que se tratava de um ato impensado, indecoroso, pois é certo que o embarque da família real fora previsto com antecedência de muitos anos e refletido em todas as suas conseqüências”. E ainda arremata Norton: “Abandonar a Europa para fundar no Brasil um grande império, fora, em Portugal, desde o século XVI, um plano esboçado, estudado maduramente por soberanos e estadistas, quando circunstâncias políticas tornaram periclitante a soberania continental portuguesa, ou esta foi ameaçada por estranhas tentativas de absorção fulminante”12. 9 Sobre a Conspiração Mineira consulte-se os Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, edição conjunta da Câmara dos Deputados e do Governo do Estado de Minas Gerais, Brasília - Belo Horizonte, 1976. Veja-se ainda A Devassa da Devassa, de KENNETH MAXWELL, Editora Paz e Terra, 1978; sobre a Conspiração Baiana, o livro de AFFONSO RUY, em cujo título se nota a sua posição com respeito à mesma: Primeira Revolução Social Brasileira, 2ª edição, CEN. 10 Publicado no livro A Corte de Portugal no Brasil. CEN, 2ª edição, 1979, Col. Brasiliana, vol. 124, p. 116. 11 A bibliografia a respeito do tema é bastante ampla, inclusive, em termos de monografias. Aconselha-se, sobre o período, consultar-se o clássico livro de OLIVEIRA LIMA, D. João VI no Brasil. 3ª edição, Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 12 Ob. cit., pp. 2 e 3. Adiante-se que contrariamente a este entendimento, J. RIBEIRO e CAPISTRANO DE ABREU entenderam tal transferência como fuga. Veja-se a propósito A Fundação do Império Liberal. In História
Para o Brasil, a vinda da Família Real significou uma mudança em seu status colonial, dando início a uma fase monárquica que haveria de prolongar-se até 1889, com a Proclamação da República, além de dar à emancipação política nacional um caráter quase ímpar, de evolução, antes de ser uma revolução. Nesse sentido, lê-se em Caio Prado Junior, Evolução Política do Brasil13, que “a transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808 veio dar à nossa emancipação política um caráter que a singulariza no conjunto do processo histórico da Independência das colônias americanas. Todas elas, mais ou menos pela mesma época, romperam os laços de subordinação que as prendiam às nações do Velho Mundo. Mas, enquanto nas demais a separação é violenta e se resolve nos campos de batalha, no Brasil, é o próprio governo metropolitano quem, premido pelas circunstâncias; embora ocasionais, que faziam da Colônia a sede da Monarquia, resolve lançar as bases da autonomia brasileira”. Representou muito mais; representou uma liberdade de comércio ambicionada pelo poderio econômico aqui predominante, misto de burguesia e feudalismo, enriquecida por uma exploração latifundiária e escravocrata da terra e agora concretizada pela “Abertura dos Portos às Nações Amigas” bem com o interesse inglês, cujo objetivo maior era manter com o Brasil laços econômicos, em detrimento, evidentemente, dos objetivos lusos. Chamando a atenção para as relações entre a vinda da Família real e os interesses ingleses, escreve Afonso Arinos de melo Franco: “Enquanto a luta pela independência se confundia no Brasil (tal como acontecera em toda a América com a luta contra a Monarquia), o pensamento constitucional era, entre nós, republicano. Mas - caso único no novo mundo - a Corte metropolitana para cá se transferiu em 1808, a conselho da Inglaterra, que desejava salvaguardar precisamente o princípio monárquico em alguma parte do Continente de Colombo. E, em conseqüência disso, o caráter da luta brasileira pela independência tornou-se outro. Deixou de ser republicano e radical para se apresentar monarquista e moderado, na medida que pudesse fixar aqui a Coroa. Essa situação é de capital importância e não pode ser esquecida por quem deseje compreender os traços verdadeiros do constitucionalismo liberal do Império Brasileiro”14. Significou, finalmente, a conscientização de não ser mais possível, no futuro, um retrocesso que nos colocasse novamente na dependência do monopólio português, tanto sob o ponto vista econômico, quanto sob o ponto de vista político, pelo que solidificou o processo político do Brasil (Independência), agora contando com uma coordenação nos diversos instantes de manifestação do sentimento nativista. Referindo-se à participação das Cortes portuguesas no processo de nossa independência, Gonçalves Ledo, em artigo publicado no jornal O Sete de Abril15 escrevia: “A Independência não fui eu, não fomos nós, não foi José Bonifácio, nem D. pedro I que a fez. Foi a vinda de D. João VI, foi o decreto de 16 de dezembro de 1815, foi a estupidez das cortes portuguesas querendo colonizar o Brasil; foi a vontade popular, exigindo do Príncipe a Assembleia Constituinte; enfim, a fatalidade do tempo”. Nesse clima de euforia, por parte da Colônia, a História toma novo rumo com a derrota de Napoleão em Waterloo, desaparecendo, pois, os motivos de permanência da Coroa portuguesa em terras brasileiras. Ademais, Geral da Civilização Brasileira, obra sob a coordenação de SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA. Difel, vol. 3, pp. 135-141. 13 Editora Brasiliense, 1975, p. 42. 14 Curso de Direito Constitucional Brasileiro, Forense, 1960, II vol., p. 16. Veja-se PAULO MERCADANTE, A Consciência Conservadora no Brasil. Editora Civilização Brasileira, 2ª edição, 1972, capítulo 3, pp. 50-66. 15 P. MERCADANTE, ob. cit., pp. 50-51. Sobre o movimento nativista em Pernambuco, consulte-se MANUEL CORREIA DE ANDRADE, livro com este título, Editora UFPE, 1971. Especificamente com relação ao movimento de 1817 a bibliografia virá adiante, exatamente, quando analisarmos o citado movimento.
se na perspectiva lusa, não ficou ausentes à vaidade de fazer-se com que a Metrópole voltasse a ser, de fato e de direito, o centro da administração portuguesa, na perspectiva brasileira não se poderia esquecer que com o retorno a Corte, restaria ao Brasil voltar à sua antiga e simples condição de colônia, monopólio luso, com o que se feriam os interesses e sentimentos brasileiros. Nota-se um detalhe de profunda significação: um choque de interesses se iniciava (e com repercussões futuras), pois enquanto a metrópole exigia a volta da Coroa, os brasileiros aceitavam e desejavam sua permanência em terras americanas, sem a mínima intenção de expulsá-la, dado que a sua vinda tinha evitado e se antecipado a um movimento revolucionário, realizando, a partir da cúpula, tudo aquilo que se desejava realizar, e tentaríamos faze-lo pela base. Com muito acerto, aliás, Euclides da Cunha afirmava que “iniciava-se no Brasil, uma paradoxal revolução pela alto: A Coroa, neste clima, é persona grata aos brasileiros, enquanto que o regime, dadas suas características, é que ficava repudiado, valendo-se notar, a título de exemplificação, que o próprio D. João VI chegou a gozar de popularidade entre nós”. Cabe aqui destacar-se um detalhe, qual seja o de que, em relação ao monarca, havia uma diferença de tratamento: enquanto o Brasil repudiava o regime e aceitava D. João VI, a metrópole alimentava a rivalidade com o príncipe regente, o que é explicado pela influência exercida em Portugal pelas ideias liberais da Revolução Francesa de 1789, à época em que o Gal. Junot ocupava, em nome de Napoleão, as terras lusas. Em consequência, as ideias de Constitucionalização encontram terreno fértil, sendo o maior sonho acalentado pelos portugueses, como lembra, argutamente, Pedro Calmon: “Não mais o poder absoluto, mas a opinião pública ´rainha do mundo...´, isto é, a soberania nacional antes de tudo e a ela submetida o Rei, como seu dependente e funcionário, como se pensava em 1789. A exemplo da Revolução Francesa, que demorara tanto a chegar a Portugal, mas, passando pela Espanha, sempre chegara, com igual desprezo pela tradição, o mesmo rancor aos frades, exigindo a solução dos privilégios, leis feitas pelas Cortes, a razão a governar os povos. Regime imitado da Inglaterra, se possível, principalmente, democrático”16. É interessante observar que as idéias em defesa da Constitucionalização que começavam a circular em Portugal, tinham em si um caráter local, não se estendendo à colônia lusa situada na América, visto que à Metrópole interessava, apenas, um recuo nosso, nunca um avanço na direção das ideias e modelos constitucionais, os quais, em última análise, implicavam na separação do Brasil às determinações lusas. Entretanto, como já foi dito, o contato de nossos estudantes na Europa, sobretudo, França, com as linhas mestras do liberalismo, era fato consumado, servindo de canal à sua difusão entre nós, vindo a dominar o ambiente intelectual brasileiro à época. Mais uma vez, demos a palavra a Euclides da Cunha, desta feita citado por Nelson Saldanha em sua História das Idéias Políticas no Brasil17 e referindo-se ao caráter local das ideias de constitucionalização. Diz o autor de À Margem da História: “Aí ocorria uma antinomia notável: as cortes eram liberais no referente a Portugal, mas visavam recolonizar o Brasil, de sorte que o absolutismo (com o Rei aqui) tinha sido mais suportável para a consciência brasileira do que o liberalismo oficial de agora”. No mesmo sentido, escreve Octávio Tarqüínio de Souza em sua História dos Fundadores do Império do Brasil18: “Mas a verdade é que a revolução portuguesa debaixo de sua capa liberal, de defensora dos 16 História do Brasil. CEN, vol. 4, pp. 44-45. 17 Imprensa Universitária, UFPE, 1968, p. 73. 18 Livraria José Olympio, Editora Rio de Janeiro, vol. IX, p. 36.
direitos do homem, escondia rancores e sentimentos contra a colônia, que se transforma em centro da monarquia”, enquanto que Heitor Ferreira19 (referindo-se à Revolução Constitucionalista do Porto, 1820) entende que “é deste movimento que parte o apelo, ou melhor, a exigência para a volta do soberano à antiga sede do Reino. Das Cortes constituintes saídas deste movimento é que se originam as medidas recolonizadoras, contra as quais se ergueram os brasileiros, proclamando a Independência. Por isso, dele devemos partir, para estudar as etapas de nossa luta emancipadora”. A interpretação que vista é aceita pela quase unanimidade de nossos historiadores, dentre os quais trazemos à colação Aristheu Achilles quando afirma em Raízes do Pensamento Político Brasileiro na Independência20: “A revolução constitucionalista iniciada em Portugal, em 1820 nascia bastante contraditória: era ao mesmo tempo liberal e reacionária. Liberal porque se apossava das ideias do século para transformar o absolutismo em constitucionalismo; e reacionária porque, exigindo novamente a corte em Portugal, procurava restituir o Brasil ao status de Colônia. Essa contradição iria colocar mais lenha de crepitante fogueira da Independência”. Existe aqui uma posição digna de registro, mesmo porque, até certo ponto, é original, principalmente, ao contradizer o nosso entendimento, ou seja, de que as ideias liberais tinham livre trânsito entre nós, aspecto este a que voltaremos noutro item. Referimo-nos ao texto de Luís Norton, em seu já citado ensaio A Revolução Constitucional no Brasil e a Partida da Corte, onde se lê: “Não era o liberalismo a doutrina que empolgava a imaginação revolucionária dos brasileiros. O brasileiro mostrou-se partidário do constitucionalismo liberal, porque julgou por meio dele atingir mais depressa a soberania política, e a emancipação que lhe permitiria reclamar, sem o pavor do patíbulo, um Brasil livre de tutelas ou curatelas restritivas da sua capacidade de autônoma regência. O liberalismo brasiliense não era gêmeo do português e confundia-se com autonomismo; significava desejo de personalidade política e de nacionalidade constitucional”21. Mas voltemos ao raciocínio anterior. Enquanto ocorria esta contradição de conteúdo no liberalismo português, justificável e compreensível nos dias atuais, não só por razões de ordem econômica mas, e talvez principalmente, em razão de seus “brios de nacionalidade ferida”, a Coroa continuava a participar, embora até certo ponto inconscientemente, do processo de emancipação política do Brasil: em 1815 (16 de dezembro, e sete anos após sua chegada às terras de até então colônia), éramos elevados à categoria de Reino, sob a denominação de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o que valeu a D. João, com a morte da D. Maria I (20-03-1816) herdar a coroa, passando de Príncipe-regente a Rei, já agora do Reino Unido. Reportando-se a esse fato, Gilberto Vilar de Carvalho entende que “esse era o lado positivo da política portuguesa, a face da medalha que os brasileiros interpretavam como sendo o começo da sua maioridade como nação. Praticamente a metrópole não era mais Portugal, e sim o Brasil. O próprio D. Pedro percebia que estavam sendo lançadas na colônia as sementes que fatalmente germinariam numa separação de Portugal. São dele as palavras dirigidas a D. João, por essa ocasião: ‘V. M. acaba de lançar, após uma longa navegação, os alicerces de um Estado que deve ser um dia o primeiro do mundo’. 19 História Político-Econômica e Industrial do Brasil. CEN, 1973, Col. Brasiliana, vol. 347, p. 181. 20 Brasília, Senado Federal, Centro Gráfico, 1973, p. 113. Aconselhamos a leitura de Os Jornais na Independência, do mesmo autor, Editora Thesaurus/MEC, 1976. Ainda: NELSON WERNECK SODRÉ, História da Imprensa no Brasil (2ª edição, Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977, pp. 50 e segs.); HÉLIO VIANNA, Contribuição à História da Imprensa Brasileira - 1812-1869 (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945). Este trabalho, ao contrário de WERNECK SODRÉ, analisa a imprensa até mesmo pelo critério da especialização. 21 Ob. cit. pp. 118-119. Itálicos nossos.
A presença do rei e de sua Corte - continua Vilar de Carvalho - não poderia deixar de significar um progresso visível para o País, que, oficialmente, passava de colônia a reino. Para não poucos brasileiros essa ‘passagem’ era sinal de um degrau que se subia na direção de um grande progresso social e político, além de econômico. Para outros entretanto, tratava-se, nada mais nada menos, de mais uma laçada no nó apertado que unia o Brasil a Portugal, a consolidação da monarquia na sua pior forma, a absolutista, não liberal, a da Casa dos Braganças, enfim, a eternização da unidade luso-brasileira”22. Pela sua importância histórica e pela dificuldade de acesso à maioria dos que estudam a nossa História, transcrevamos, na íntegra, a Carta de Ley para o Reyno do Brasil, através da qual o país ficava elevado à categoria de Reino, mantendo-se, para tanto, a grafia original: Ei-la: “1- Que desde a publicação desta Carta de Ley o Estado do Brazil seja elevado à dignidade, preeminencia, e denominação de Reyno do Brazil. 2 - Que os meus Reynos de Portugal, Algarves, e Brazil formam d’ora em diante um só e único Reyno, debaixo do título de Reyno Unido de Portugal, e do Brazil, e Algarves. 3 - Que os títulos inherentes à Coroa de Portugal e de que até agora hei feito uso, se substituam em todos os diplomas, Cartas de Leys, Alvarás, Provisoens e Actos publicos, o novo título de “Príncipe Regente do Reyno Unido de Portugal, e do Brazil, e Algarves d’aquem, e d’alem mar em Africa, de Guiné e da Conquista, Navegação, e Commercio da Ethiopia, Arabia, Persia, e da India, etc. Manda cumprir, etc. etc.-16 de dezembro de 1815.O Principe Regente”.
Nessa época, verificava-se no Brasil a presença das ideias liberais derivadas da Constituição Francesa de 1791, que aqui chegavam, não só e como se disse, por meio de nossos estudantes na Europa, mas através da imprensa, principalmente, através do Correio Braziliense ou Armazém Literário, periódico fundado e lançado em Londres, por Hippolyto Joseph da Costa Pereira Furtado, em 01 de junho de 1808 e que teve circulação até dezembro de 1822, saindo mensalmente durante 14 anos e 7 meses, num total de 175 números. No seu programa de apresentação, se propunha e prometia ser “renovador, um reformador, não um revolucionário no sentido catastrophico do têrmo. Orientar a opinião pública, reformar os costumes por acção pedagógica esclarecida, oferecer diretrizes ao progresso e ao bem estar da Nação”23. Analisando o tema ora em apreciação Aristheu Achillles em seu já citado estudo Raízes do Pensamento Político Brasileiro na Independência24 , afirma que “evidentemente, o ar de mercantilismo que impregnava a atmosfera da colônia após a instalação da corte e do Governo português haveria que ser acompanhado pelas ‘idéias do século’. Um elemento novo viria discutir e ‘comunicar’ essas ideias: a imprensa. É curioso notar que a iniciativa do primeiro jornal coube à própria República, et pour cause. Fora ela, a importadora da primeira tipografia era a maior interessada em manter a opinião pública esclarecida quanto às reformas ‘revolucionárias’ do Governo. Aos boatos que se propalavam com rapidez, numa população irritada e agora vendo e sentindo de perto as injustiças e liberalidades reinóis, às notícias 22 A Liderança do Clero nas Revoluções Republicanas 1817-1824. Editora Vozes, 1980, p. 21. 23 Mantida a grafia original. A Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em co-edição com o Instituto Uniemp, lançou em 2000 uma edição fac-similar do Volume I do Correio Brasiliense, publicado em Londres, 1808, e impresso por W. Lewis, Paternoster. Row. A referida edição traz uma Apresentação de BARBOSA LIMA SOBRINHO, cujo texto foi extraído da Antologia do Correio Braziliense, por ele organizado (Editora Catédra/MEC, 1977). A leitura das referidas obras em muito contribuirá à compreensão do papel desempenhado pela Imprensa no processo da Independência Política do Brasil. Igualmente, em 1979, na mesma editora (Catédra/MEC), era lançado, em convênio com o MEC o livro Hipólito da Costa e a Independência - Documentário e Apreciação, de autoria de ROLANDRO MONTEIRO. 24 Brasília, 1973, p. 92. Itálicos nossos.
de constitucionalização das monarquias europeias e de rebeldias dos demais povos americanos, era preciso opor a informação, o esclarecimento visto do ângulo da Corte. E surgiu então, a ‘Gazeta do Rio de Janeiro’, cujo primeiro número apareceu a 10 de setembro de 1808 sob a vinculação de Frei Tibúrcio José da Rocha. Se era este o comportamento da Gazeta do Rio de Janeiro, oposta era a orientação do Correio Braziliense, órgão mais doutrinário do que mesmo informativo, difusor de ideias e, antes de tudo, crítico, e contrário a qualquer tipo de violência, a ponto de não concordar nem apoiar o movimento revolucionário de 1817 em Pernambuco, ao qual considerou “acontecimento desastroso”25. Mesmo assim, sua participação em nosso processo de Independência é inegável, sendo reconhecido desde o clássico Varnhagem, até Barbosa Lima Sobrinho, citado pelo historiador pernambucano Amaro Quintas em artigo publicado no Diário de Pernambuco26 sob o título O Patriarca da Imprensa Brasileira, quando declara: “No meu entender, a ação do periódico de Hipólito da Costa é um esforço de pioneirismo em prol da Independência do Brasil. A começar pelo título de Correio Braziliense”. E conclui: “foi sempre um periódico apreciado e disputado no Brasil e odiado e perseguido em Portugal”. Neste clima de ideias constitucionalistas, Pernambuco se apresenta como um importante centro, acolhendo as teorias políticas vigorantes na Europa e para cá trazidas através de estudantes formados nas suas universidades, principalmente Manuel de Arruda Câmara. Chegando ao Brasil, funda ele, em 1789, nos limites dos Estados de Pernambuco e Paraíba o Areópago de Itambé, sobre o qual, Ulisses Brandão no hoje clássico e raríssimo estudo A Confederação do Equador27, referindo-se ao seu cabeça, doutrina: “Foi exercer a sua profissão em Goiana, a sua terra natal e aí, no Areópago de Itambé, que fundou, fazia intensa propaganda da independência e da república, trazendo os seus ouvintes a par do movimento da política mundial, sobretudo, das conquistas liberais e das correntes democráticas dos povos livres”. Em seguida, citando N. L. Machado, afirma Brandão: “Era a Areópago uma sociedade política secreta, intencionalmente colocada na raia das províncias de Pernambuco e Paraíba, freqüentado por pessoas salientes de uma e de outra parte e donde saíam, como de um centro para a periferia, sem ressaltos nem ruídos as doutrinas ensinadas. Tinha, por fim, tornar conhecido o estado geral da Europa, os estremecimentos e destroços dos governos absolutos, sob o influxo das ideias democráticas. Era uma espécie de magistério que instruía e despertava entusiasmo pela República, mas em harmonia com a natureza e a dignidade do homem e ao mesmo tempo inspirava ódio à tirania dos reis. Era finalmente, a revolução doutrinada que atraía a independência e o governo republicano a Pernambuco”. Realmente, o Areópago de Itambé desempenhou decisivo papel não só na marcha revolucionária e constitucionalista de 1817, mas igualmente em 1821 28, ambas em Pernambuco, oportunidade em que seus principais líderes eram oriundos daquela sociedade secreta de natureza maçônica, no seio da qual o nome Areópago serve para designar os seus membros de graus elevados. De forma mais clara, pode-se mesmo afirmar que o Areópago de Itambé escondia, sob tal denominação, o início da participação, de forma acentuada, da Maçonaria em nosso processo de independência e 25 Cf. ROLANDO MONTEIRO, ob. cit., p. 11. 26 Recife: edição de 17.09.1978. Veja-se sobre HIPÓLITO, o livro de CARLOS RIZZI, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, CEN, 1957. 27 Revista do Instituto, Arqueológico e Geográfico de Pernambuco. Recife: vol. XXVI, jan-dez, 1924, nºs. 123-126. 28 Leia-se o capítulo O liberalismo, as sociedades secretas: marchas e contramarchas, constante do livro de TEREZINHA DE CASTRO, José Bonifácio e a Unidade Nacional, Editora Record, s/d.
no qual terá papel marcante, apesar da perseguição oficial de que era vítima, embora contasse, em seu quadro, com grande número de membros que faziam parte do grupo profissional dos religiosos (padres), os quais, entre nós, àquela época, além de desfrutarem de uma formação intelectual invejável, desfrutavam de um status social privilegiado. Estudando a referida instituição, Mário melo, em seu trabalho intitulado A Maçonaria e a Revolução Republicana de 181729, afirma que “em Pernambuco, porém, no século que expirou, a Liberdade partiu do seio das sociedades secretas, dos lábios dos adeptos da Maçonaria para os ouvidos da multidão”. Temos feito diversas referências à Revolução pernambucana de 1817. Contudo, não nos caberá analisá-la aqui, em seus detalhes, o que tem sido objeto de várias obras30, inclusive, a já citada de Gilberto Vilar de Carvalho, e inúmeros ensaios do historiador pernambucano Gláucio Veiga. A nós interessa, dada a limitação de nossos objetivos, o seu caráter liberal e constitucionalista sobre o qual, cremos não haver dúvidas. Estudando-a, Oliveira Lima escreve página das mais brilhantes, e onde doutrina que foi ela “a única revolução brasileira digna deste nome e credora de entusiasmo pela feição idealista que a distinguiu e lhe dá foros de ensinamento cívico, e pela realização prática que por algum, embora pouco tempo, lhe coube. Foi um movimento a um tempo demolidor e construtor, como nenhum outro entre nós, e como em nenhuma outra parte, em grau superior, na América Espanhola”. E continua o autor de Pernambuco - seu desenvolvimento histórico: “Com a Revolução de 1817, foi que a nação verdadeiramente aprendeu a combater e morrer pela liberdade. Os próprios monarquistas podem enxergar na mesma, a vantagem de haver feito indiretamente preferir a solução pacífica do império coesivo à solução violenta da demagogia dispersiva, que foi a sorte das repúblicas não-espanholas até que a educação política, a imigração europria, o progresso material e outros fatores modificaram nalgumas tal situação, tão diferentes da que oferece, na sua evolução constitucional, o Brasil purificado pelo holocausto dos mártires de 1817”31. Em seu breviário ideológico, fizeram-se presentes as influências do modelo republicano da Constituição americana de 1817, bem como das doutrinas políticas então em voga, a ponto de Afonso Arinos de Melo Franco não titubear em afirmar que foi ela “a primeira e violenta manifestação externa do liberalismo e do constitucionalismo no Brasil do séc. XIX”32. Diretamente relacionado com os objetivos deste trabalho o citado movimento revolucionário nos deu aquilo a que poderíamos chamar de a Primeira Manifestação Concreta de Sentimento Constitucional no Brasil, ou seja, o Projeto de Constituição a que se chamou de Lei Orgânica, de autoria de Antônio Carlos Ribeiro de Andrade e que traz em seu conteúdo os princípios e a estrutura sócio-econômica da sociedade brasileira de então, e cujo texto, na íntegra, encontra-se no livro de Muniz Tavares, História da Revolução de Pernambuco de 1817. 29 Citado por A. TENÓRIO DE ALBUQUERQUE, A Maçonaria e a Grandeza do Brasil, Editora Espiritualista Ltda., 1969, p. 159. 30 Sobre o tema, vejam-se, dentre muitos outros, MANUEL CORREIA DE ANDRADE, A Revolução Pernambucana de 1817. São Paulo: Editora Ática, 1995; MANUEL CORREIA DE ANDRADE, ELIANE MOURY FERNANDES e SANDRA MELO CAVALCANTI, Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira. Brasil: 1701 – 1824. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2000; SOCORRO FERRAZ, Liberais & Liberais. Guerras Civis em Pernambuco no século XIX. Recife: Editora da UFPE, 1996; GLACYRA LAZZARI LEITE, Pernambuco 1817: Estrutura e Comportamentos Sociais. Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1988. 31 Prefácio à História da Revolução de Pernambuco de 1817. 3ª edição, Recife: Imprensa Industrial, 1917. Lamentavelmente, a edição de 1969, patrocinada pelo Governo do Estado não traz tal prefácio que é obra prima de nossa historiografia. Destaque nosso. 32 Cf. Curso de Direito Constitucional, pp. 22-23.
Em síntese, a mencionada Lei Orgânica, datada de 09 de março de 1817 (que Muniz Tavares admite ser 29 a data correta) consagra o Governo Provisório da República de Pernambuco revestida de soberania que residia no povo, e defendia, dentre outros, os seguintes princípios (transcritos com a numeração original): 1. “Os poderes de execução e legislatura estão concentrados no Governo Provisório, enquanto se não conhece a constituição do Estado determinada pela Assembleia instituinte”... 6. “Cada membro opinará em plena liberdade, e igualdade, e pela opinião, que emitir em Conselho ninguém será increpado, e menos perseguido”; 8. “Para o exercício do Poder Executivo, criam-se duas secretarias uma para o expediente dos negócios do interior, Graça, Política, Justiça e Cultos; outra para o expediente dos negócios estrangeiros. Os patriotas nomeados para esses empregos, nomearão os Oficiais que carecem, e farão subir ao Governo para a sua aprovação”; 18. “Os Magistrados uma vez empregados não podem ser mais removidos senão por sentenças, em pena de suas prevaricações”; 23. “É proibido a todos os patriotas o inquietar e perseguir a alguém por motivo de consciência”.
Pelos artigos referidos, se verifica a ampla influência das ideias democráticas, já aí presentes na origem popular do poder tendo-se uma Constituição originada de uma Assembléia Constituinte. O Liberalismo, fazia-se presente na concepção das imunidades parlamentares e das garantias da Magistratura, além da liberdade de crença e convicção religiosa, embora fosse consagrada a Religião Católica como oficial do Estado. Em suas notas ao livro de Muniz Tavares, Oliveira Lima33, na de nº CV afirma: “O projeto de lei orgânica acima transcrito, de que encontrei cópia original entre os papéis da Biblioteca Nacional e que já ouvi atribuir a Frei Caneca, sem haver entretanto motivo de meu conhecimento que autorize tal alegação, parecendo antes ter sido obra de Antônio Carlos, não cogita propriamente da organização futura e definitiva da República. Forma apenas um conjunto de disposições constitucionais transitórias pelas quais era mantida por um tempo determinado a pentarquia inicial, dando-lhe todavia uma forma mais viável e completa para benefício da administração pública. Quando muito, representava um esboço da Constituição a vir, uma fixação das suas bases”. Seja como for, pelos princípios referidos, sente-se aquilo que acima dizíamos: a presença dos ideais oriundos da Revolução Francesa, os quais e a bem da verdade, estavam comprometidos em sua pureza pela estrutura econômico-social da sociedade brasileira de então, a qual chegava a impugnar dois artigos da Proclamação, conforme ensina Augusto Olympio Viveiros de Castro no artigo Manifestações do Sentimento Constitucional no Brasil-Reino34: “O que consagrava a liberdade de pensamento, acusado de ensejar em seu bojo um ataque à Igreja Católica: e o que estabelecia a igualdade jurídica de todos os homens, entendido como meio de abolir a escravidão”. A propósito, afirma Octávio Tarqüínio 35 que “tal foi o clamor suscitado, quando alguns patriotas mais progressistas falaram na emancipação dos negros, que os dirigentes republicanos de 1817 não hesitaram em baixar uma proclamação considerando intocável o execrando instituto, à vista do princípio de que a base de toda a sociedade regular era a inviolabilidade de qualquer espécie de propriedade”. Estudando o mencionado projeto, Nilo Pereira escreve que “no capítulo de nossa organicidade política, em período ainda incipiente de nossa vida o Projeto de Lei Orgânica, elaborado pelos revolucionários de 1817, em Pernambuco, abriu a primeira porta sob o signo do iluminismo, às doutrinas liberais que impulsionavam o movimento de rebeldia. Talvez, esse Projeto ande um tanto 33 Na edição de 1969, o trecho transcrito se encontra à p. 383. 34 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: 1916, tomo especial dedicado ao 1º Congresso de História Nacional, 7-16 de setembro de 1914, p. 13. Veja-se CARLOS GUILHERME MOTA, Nordeste, 1817, Editora Perspectiva, p. 75. 35 História dos Fundadores do Império do Brasil, vol. IX, p. 14.
esquecido. Oliveira Lima, comentando a História da Revolução de 1817 em Pernambuco, de Muniz Tavares, lhe dá a devida importância. Bem antes de 1823, vale a pena salientar, houve em Pernambuco essa tentativa pioneira de definição constitucional, na qual tudo quanto se fazia era em nome da liberdade dos povos”, conclui36. Vale dizer, a bem da verdade histórica: Pernambuco é o marco inicial na tentativa de constitucionalização no Brasil, indo, com a revolução de 1817, além de Portugal, que só consegue uma manifestação mais ou menos organizada e digna de registro, em 1820, ou seja, três anos após o nosso Projeto de Lei Orgânica. Lamentável, porém, como disse Nilo Pereira, é que tal fato passe quase despercebido ou esquecido, quando realmente, merecia uma análise aprofundada e monográfica, na qual se identificasse, até mesmo, o pensamento político da época, que, como dissemos acima, está presente e representado por sièyes, Montesquieu, Rousseau, etc., os teóricos da Revolução Francesa, como se evidencia da leitura do citado projeto. Passemos a outro movimento ou etapa deste movimento de manifestação constitucional: a Revolução Constitucionalista do Porto, em 182037. Na lição de Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado (O Império do Brasil), “em Portugal, em 24 de agosto de 1820, em nome da Constituição, da nação, do rei e da religião católica, um movimento militar no Porto deu início à agonia do Antigo Regime português. O objetivo da rebelião era retirar o país da opressiva situação em que jazia, desprovido, que estava, da presença de seu soberano, asfixiado pelo marasmo econômico, subordinado à autoridade dos inoperantes governadores do reino e sujeito à arrogância do marechal Beresford e das tropas de ocupação inglesas. Desde a partida da Corte para o Rio de Janeiro em 1807, o descontentamento não deixara de crescer. Os jornais publicados por portugueses no estrangeiro, especialmente em Londres, clamavam, em primeiro lugar, contra a inversão de papéis, que ocorrera entre Brasil e Portugal, insistindo para que o centro do Império luso-brasileiro voltasse à antiga metrópole, que não podia subsistir como simples colônia do Brasil. Os portugueses encontravam-se, como afirmava O Campeão Português, Amigo do Rei e do Povo, reduzidos à condição de órfãos, ´sem rei e quase sem pátria´. Tampouco podia Portugal continuar a ser governado por estrangeiros, numa clara alusão à presença britânica em seu território, que se estabelecera para a expulsão dos franceses”38. Sobre ele, autores há, como é o caso de José Honório Rodrigues no livro Independência: Revolução e Contra-Revolução39, que discordam do entendimento de identificá-lo como processo revolucionário. E ainda diz: “O movimento liberal-militar de 24 de agosto de 1820 não foi uma revolução, pois não afetou os aspectos superficiais e aparentes da sociedade e da economia portuguesa. Não teve caráter popular, não modificou a estrutura social, não reformou as relações sociais. Foi um golpe da burguesia portuguesa, promovido pelos negociantes, fomentado pela Maçonaria e pelas idéias liberais. O descontentamento das classes médias portuguesas, especialmente dos grandes comerciantes que haviam perdido o controle do comércio brasileiro e das forças armadas, despeitadas com a situação de dependência de Portugal, cada vez mais agravada desde 1808 quando a Família Real se transferiu para o Brasil, ajudou a fermentação antiabsolutista de que resultou o Movimento de 24 de agosto no Porto. 36 Introdução ao livro Criação dos Cursos Jurídicos no Brasil. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 1977. 37 Para maiores detalhes, veja-se JOÃO CHAGAS, História da Revolta do Porto. Lisboa: Assírio e Alvim, Sociedade Editorial e Distribuidora Ltda., 1978. 38 Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 67. 39 Livraria Francisco Alves Editora S/A., 1976, vol. I, p. 69.
Uma das maiores queixas portuguesas - prossegue J. H. Rodrigues - era estar Portugal reduzido à situação de colônia de uma colônia o que excitava o ódio contra o Brasil, os brasileiros e a própria Família real refugiada no Rio de Janeiro. Importava menos a Portugal uma colônia da Inglaterra, uma dependência informal do Império Britânico, com um General como Beresford dono real do país, com todos os poderes concedidos pelo próprio rei, que a situação ‘colonial’ de Portugal para com o Brasil”- conclui (itálicos nossos). Ainda com relação ao citado movimento português de 1820, Paulo m. de Lacerda em Princípios de Direito Constitucional Brasileiro40 doutrina que “proclamou-se o regime constitucional-monárquico, assumindo o governo uma Junta Provisória. Convocaram-se as Cortes (parlamento) para elaborar a Constituição. Entre as causas desse movimento sobressaiam o descontentamento pelos resultados da abertura dos portos do Brasil sobre Portugal, que assim perdia o antigo monopólio da navegação e do comércio exterior daquele país, e a ausência do Rei com residência no Rio de Janeiro, fato que importava na perda para Portugal da qualidade de metrópole, que Reino-Unido com o Brasil, neste se instala a Coroa”. Cabe-nos, desde que fiéis ao objetivo que pretendemos alcançar, que expliquemos a razão de ser sob o ponto de vista econômico-social, do movimento Constitucionalista de 1820. Demos, então, a palavra ao clássico estudo O Movimento da Independência41, de autoria do já citado Oliveira Lima, e onde está escrito: “Foram sobretudo quatro os motivos determinantes do movimento liberal que implantou o constitucionalismo em Portugal. Em primeiro lugar, as misérias do Velho Reino, refletidas não somente no atraso do pagamento dos ordenados e soldos - miséria financeira - como no fechamento das fábricas e no abandono da agricultura - miséria econômica e da primazia brasileira; por fim, o contágio espanhol. As três invasões francesas, sucedendo-se a curto prazo e assolando a Península com o caráter invariavelmente feroz das guerras, juntaram-se, como geradora da pobreza para Portugal, a concorrência mercantil inglesa, provocada pela abertura dos portos brasileiro em 1808. Essa medida, a um tempo diplomática e econômica, tivera por efeito direto cerrar tão amplo mercado quanto o da América Portuguesa ao monopólio comercial da sua antiga mãe-pátria e indiretamente trouxe a estas os graves males da penúria do Erário e da vagabundagem por falta de trabalho. Fácil é de ver que não só o povo sofria tal situação; dela sofria não menos, pela natureza mesmo dos fatos, a burguesia de negociantes e lavradores que foi quem fez a revolução de mãos dadas com o Exército enciumado. O povo em si, desacompanhado de outros elementos, jamais conseguiria levar por diante um empreendimento desse gênero, não só destruidor, como construtor. O desespero produz jacqueries, mas não organiza regime”. Augusto O. Viveiros de Castro42, na mesma linha de Oliveira Lima, leciona que “outro acontecimento de grande importância, que provocou manifestações do sentimento constitucional foi a Revolução Portuguesa de 1820, o qual tem muitos pontos de semelhança com o movimento revolucionário de Pernambuco, de que acabamos de tratar. “Os seus chefes principais, Desembargador Manoel Fernandes Thomás e o auditor geral José da Silva Carvalho, sonhavam, de certo, com um movimento liberal, inspirado nos princípios da Constituição de Cádiz; mas as suas verdadeiras causas foram o descontentamento do Exército, cujo soldo estava muito atrasado, e a miséria negra do Reino, completamente arruinado pela abertura dos portos do Brasil ao comércio das nações amigas, pelos 40 Livraria Azevedo Editora S/A., 1º vol. p. 182. 41 Companhia Editora Melhoramentos, 1972, pp. 19-20. 42 Ob. cit., p. 14.
extraordinários favores concedidos às mercadorias inglesas e inglesas e pelo afastamento da Família Real. Foram ainda as causas econômicas que determinaram o movimento”- perora Viveiro de Castro. Por fim, Carlos Guilherme Mota43 não mais preocupado com as causas, mas sim com um entendimento de conteúdo, afirma que “ambos os movimentos (Pernambuco, 1817 e Porto, 1820) revelam as duas faces de uma mesma realidade: a tentativa portuguesa de desvencilhamento dos laços de dependência com a Inglaterra indicando com nitidez a natureza das relações entre Portugal e essa potência; o ensaio revolucionário brasileiro, por seu lado, demonstrando o esforço descolonizador de uma primeira camada dirigente nativa, que procurou o auxílio da Inglaterra (e dos Estados Unidos) em sua tentativa de liberação em relação ao jugo português”.
3. INFLUÊNCIA DAS IDÉIAS LIBERAIS E CONSTITUCIONALISTAS NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO FRANCESA DE 1791 E A CONSTITUIÇÃO ESPANHOLA DE 1812 COMO FONTES DO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO Os séculos XVIII e XIX, sem nenhuma dúvida, foram de profunda importância na história dos povos. Assim, é que se pode recordar que foi nele que se deu a autonomia de um grande número de ciências, sobretudo em razão do denominado Historicismo Alemão. Por outro lado, nenhum modelo constitucional se forma sem receber as influências de outros modelos e das idéias políticas da época. A tal fenômeno, em nível de Direito Comparado, denomina-se Recepção Legislativa44, hoje bastante intensificado em razão da facilidade com que as ideias se propagam, mas, igualmente, presente em todas as fases da História Constitucional. Essa realidade esteve bem presente nos sécs. XVIII e XIX, oportunidade em que se consolida o denominado Constitucionalismo Liberal ou Liberalismo Constitucional, reflexo, não só de alguns modelos de Filosofia Política, mas em razão da Constituição Americana (primeiro documento constitucional escrito), da Constituição Francesa de 179145 (essas 43 Ob. cit., pp. 15-18. O salto na numeração das páginas se deve à existência de mapas. 44 Sobre o tema, veja-se nosso estudo A Recepção Legislativa e os Sistemas Constitucionais, publicado na Revista da Esmese - Escola Superior da Magistratura do Estado de Sergipe (Aracaju, nº 1, dezembro, 2001, p. 237-256), bem como na Veritati - Revista da Universidade Católica de Salvador (ano I, nº 1, novembro, 2001, p. 49-63). 45 Os livros franceses de Direito Constitucional, em geral, dedicam os primeiros capítulos à análise da Evolução Constitucional Francesa, pelo que, para maiores aprofundamentos sobre o texto de 1791, consultem-se, dentre muitos outros, os seguintes: MAURICE HAURIOU, Princípios de Derecho Público y Constitucional. Instituto Editorial Reus, Madrid, s/d.; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional- Tomo I. Coimbra Editora, 1996; MARCEL MORABITO / DANIEL BOURMAUD, Histoire Constitutionnelle et Politique de la France (1789-1958). Montchrestien, Paris, 1993, 3ª édition; ANDRÉ HAURIOU, - Derecho Constitucional e Instituciones Políticas. Ediciones Ariel, Barcelona 1970; ANDRÉ HAURIOU, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Montchrestien, 1978, 5ª édition; JOSEPH BARTHÉLEMY, Précis de Droit Constitutionnel. Librairie Dalloz, Paris, 1936; GUY CARCASSONE, La Constitution. Éditons du Seuil, 1996; R. BARRILLON, J. M. BÉRARD, M. H. BÉRARD, G. DUPUIS, A. GRANGÉ CABANE, A. M. LE BOS-LE POURHIET, Y. MÉNY, Dictionaire de la Constitution. Éditions Cujas, 4 édition, s/d; GEORGES BURDEAU, Manuel de Droit Constitutionnel. LGDJ, 21ª éditions par Francis Hamon / Michel Troper, 1988; GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique. LGDJ; GEORGES BURDEAU, O Poder Executivo na França. Ed. Revista de Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, 1961; GEORGES BURDEAU, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. LGDJ, 1974; MARCEL PRÉLOT et JEAN BOULOUIS, Institutions Politiques et Droit Constitutionnel. Dalloz, 1972; DMITRI-GEORGES LAVROFF, Le Système Politique Français. Dalloz, 1975; PHILIPPE ARDANT, Institutions Politiques & Droit Constitutionnel. LGDJ, 1993; MAURICE DUVERGER, Instituciones Politicas y Derecho Constitucional. Ediciones Ariel, 1962; MAURICE DUVERGER, Os Grandes Sistemas Políticos. Almedina, 1985; CHARLES DESBASCH, JEAN-MARIE PONTIER, JACQUES BOURDON et JEAN-CLAUDE RICCI, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Economica, 3ª édition augmentée et corrigé, 1990; DOMINIQUE TURPIN, Droit Constitutionnel. Puf, 1992;
duas ainda na fase de virada do séc. XVIII para o séc. XIX) e da Constituição de Cádiz (esta, já no séc. XIX, 1812)46, documentos esses que tiveram direta influência sobre o sistema político e constitucional brasileiro expresso na Carta Política de 1824. Um dos clássicos de nossa historiografia, e já tantas vezes citado, Octávio Tarquínio de Souza, em capítulo intitulado O Meio Intelectual na Época da Independência e constante do livro Fatos e Personagens em Torno de um Regime47, entende que “malgrado o isolamento em que a metrópole ciumenta mantinha a colônia, começou esta a sofrer a influência mais ou menos próxima, mais ou menos retardada dos movimentos de idéias e dos sucessos políticos da Europa e da América repercutindo no pensamento e na ação de seus naturais os ecos da independência norte-americana e da Revolução Francesa. Será fácil descobrir nas figuras mais ilustres da Inconfidência Mineira contatos com filósofos e pensadores franceses. Basta percorrer a lista dos livros seqüestrados a um dos conjurados, o Cônego Luiz Vieira da Silva: lá figuravam Condilac e Montesquieu, a enciclopédia, o inevitável MABLY, e numerosas obras de ciências naturais, história, geografia, viagens, etc., todas em língua francesa. Ainda não se deflagrara na França a grande Revolução e já em Minas Gerais, imbuídos das mesmas leituras, os homens mais representativos planejavam uma luta de libertação. Mas se a influência ideológica era antes francesa o exemplo que impressionava os conspiradores mineiros vinha da América do Norte’. E, mais adiante, no capítulo Crimes de Conversa, o mesmo autor sugere que “um dos estudos mais interessantes a se fazer entre nós seria determinar a influência mais ou menos próxima, mais ou menos retardada, dos movimentos de idéias e dos sucessos políticos e sociais da Europa e da América no pensamento e na ação de brasileiros de várias épocas, de preferência a partir da emancipação nortePIERRE PACTET, Institutions Politiques - Droit Constitutionnel. Masson, 1994, 13ª édition; JEAN GIECQUEL, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Montchrestien, 1987; BERNARD CHANTEBOUT, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Armand Colin, 1986, 7ª édition; OLIVIER DUHAMEL, Le Pouvoir Politique en France. Droit Constitutionnel, 1. Puf, 1991; OLIVIER DUHAMEL, Droit Constitutionnel et Politique. Éditions du Seuil, 1994; FRANÇOIS LUCHAIRE et GÉRARD CONAC, La Constitution de la République Française. Economica, 1987, 2 tomes; LÉON DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel. Éditions Cujas, 2ª édition en cinq volumes, s/d; VÁRIOS, Droit, Institutions et Systèmes Politiques. Mélanges en hommage à Maurice Duverger. Puf, 1987; GEORGES VEDEL, Droit Constitutionnel. Sirey, 1949; PIERO CRAVERI, Genesi di una Costituzione. Libertà e Socialismo nel dibattito costituzionale del 1848 in Francia. Guida Editori, Napoli, 1985; ANTOINE AZAR, Genèse de la Constitution du 4 Octobre 1958 – Solution Gaulliste a la Crise du Pouvoir. LGDJ, 1961; DIDIER MAUSS, La Pratique Constitutionnel Française – 1 octobre 1989 – 30 septiembre 1990. Puf, 1991; DIDIER MAUSS, Le Parlement sous le Vª République. Puf, Col. Que sais-je?, 1988; DENIS TOURET, L´élection Présidentielle au couer des institutions de la Vª République. Les Éditions d´ Organisation, 1994; HENRI LEGOHÉREL, Histoire du Droit Publique Français des origines à 1789. Puf, Col. Que sais-je?, 1986; P. H. CHALVIDAN, Droit Constitutionnel – Institutions et Regimes Politiques. Éditions Nathan, 1986. 46 Para maiores informações sobre o sistema constitucional espanhol decorrente da Constituição de 1812, consultem-se: Las Cortes de Cadiz. Madrid: Marcial Pons, 1991; JOAQUIM TOMAS VILLARROYA, Breve Historia del Constitucionalismo Español. 8ª edición, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989; FRANCISCO TOMÁS Y VALIENTE, Códigos y Constituciones – 1808-1978. Madrid: Alianza Editorial, 1989; BARTOLOMÉ CLAVERO, Evolución Histórica del Constitucionalismo Español. Madrid: Editorial Tecnos, 1986; BARTOLOMÉ CLAVERO, Manual de Historia Constitucional de España. Madrid: Alianza Editorial, 1989; M. ARTOLA (ed), RAQUEL RICO LINAGE, Constituciones Historicas. Ediciones Oficiales. Universidad de Sevilla, 1994, 2ª edición; HORACIO LABASTIDA, Las Constituciones Españolas. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1994; MELCHOR FERNÁNDEZ ALMAGRO, Orígenes del Régimen Constitucional en España. Editorial Labor, Barcelona, 1928; PEDRO FARIAS GARCIA, Breve Historia Constitucional de España. Madrid: Ed. Latina Universitária, 1981; ANTONIO ALVAREZ DE MORALES, Apuntes de Historia de las Instituciones Españolas (Siglos XVIII y XIX). Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1976; MIGUEL A. APARÍCIO, Introducción al sistema político-constitucional Español. Ariel, Barcelona, 1993. 47 Coleção História dos Fundadores do Império do Brasil, vol. IX, Editora José Olympio.
americana e da revolução Francesa”48. Nessa linha de necessidade, um dos pontos mais férteis de análise será a nossa História Constitucional, sobretudo, no século. XIX, quando imperava um pensamento não originário da própria realidade nacional-brasileira, mas, pelo contrário, quase subserviente às influências externas, como, aliás, Aurelino Leal, na sua clássica História Constitucional do Brasil assim o reconhece, quando afirma que as nossas idéias constitucionais não foram nativas da própria terra: “...seguiram o conceito expresso (refere-se às influências de um povo sobre o outro), constituíram um reflexo da revolução de 1820 em Portugal contra o absolutismo ali reinante, assim como a revolução de Portugal encontrou explicativa histórica e social nos acontecimentos que haviam trabalhado a Espanha que contaminaria Nápoles de idéias liberais, as quais fizeram com que o Rei Fernando VIII restaurasse a Constituição de Cádiz (18 de março de 1812), convocasse as Cortes ordinárias, restaurasse as liberdades públicas, tudo em conseqüência do Pronunciamento Militar de 1820”49. Realmente, nem Brasil, nem Portugal e/ou Espanha possuíam um pensamento político próprio em pleno século XIX e, se ainda hoje é válida a afirmativa da influência da História Universal sobre uma História Particular, era muito mais naquela época, sem uma organizada vida universitária nos citados países, e quando o chamado constitucionalismo ibérico iria buscar suas fontes de inspiração no texto da Constituição francesa de 1791. Este, diretamente, e com a ajuda teórico-doutrinária e filosófica de Rousseau e outros (Monstequieu e Benjamin Constant) far-se-á presente no pensamento constitucional hispano-luso-brasileiro, sendo que com relação a este último, autores há que enxergam no texto político americano em 1787, a origem de alguns institutos constitucionais consagrados pela Carta Política Brasileira de 1824. As ideias constitucionalistas europeias chegaram ao Brasil de forma intensa, em janeiro de 1821, ganhando, de logo, o apoio das tropas do Pará (01-0-1821), Bahia (17-02-1821) e Pernambuco, sendo que com relação a este último, cabe uma observação: desde o Areópago de Itambé (já analisado) fundado por Manuel de Arruda Câmara na zona fronteiriça ente Pernambuco e Paraíba, e que serviria de semente primeira para o movimento das Academias (do Paraíso e Suassuna), que tais idéias eram aceitas, inclusive, valendo a pena lembrarmos seu caráter de pioneirismo, até mesmo em uma análise-confronto com o grêmio político-português Sinédrio que, no Porto, desde 1818, preparava o movimento de 182050. Octacílio Alecrim em (Idéias e Instituições no Império - Influências Francesas51) entende, e com plena razão, que as origens destas ideias estão, não no texto de Cádiz de 1812, mas na Constituição Francesa de 1791 donde a Constituição Espanhola copiara inclusive, o princípio de que “a soberania reside na Nação”, o qual, diga-se de passagem, em ambos os diplomas legais se encontra no mesmo art. 3°. Textualmente, diz Alecrim: “Assim, pois, as primeiras descargas verificadas na época colonial (1820-1821) no Pará, na Bahia e no Rio, se diretamente provinham da ação centrípeta dos dínamos de Lisboa, indiretamente emanaram através da bobina de Cádiz, no dínamo gerador indeslembrável: a Constituição Francesa de 1791”. Nessa mesma linha, encontramos ainda Fernando Whitaker da 48 Ob. cit. p. 75. 49 Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1915, p. 4. 50 Observe-se que o Sinédrio começava a influenciar no Porto em e após 1818, enquanto o Areópago de Itambé preparou a Revolução Pernambucana de 1817, o que mostra o quanto e como circulavam, entre nós, as idéias políticas européias, muito embora restritas à elite intelectual, que, apesar de pequena, era atuante no sentido de defendê-las. 51 Rio, p. 33. Faz-se necessária uma nova edição deste estudo dada a sua importância e indispensabilidade para todos quantos se dedicam ao assunto.
Cunha e Afonso Arinos de Melo Franco. São do primeiro as palavras que seguem: “O movimento constitucional do Porto (1820), marca a vitória dos princípios liberais em Portugal que, todavia, tiveram que lutar muito, para não serem contaminados por um absolutismo insepulto e pelo saudosismo incompreensível do antigo regime por parte de alguns. A Constituição de 1822, nutrida na Espanhola de 1812, que por sua vez buscou inspiração francesa de 1791, influi na Carta brasileira de 1824 e a espanhola de 1837”52. Afonso Arinos, na Introdução que escreveu ao livro documentário O constitucionalismo de D. Pedro I no Brasil e em Portugal53 , assevera que “assim a trama da organização governativa da Espanha, de Portugal e do Brasil, no começo do século passado, é a compilação das idéias originariamente inglesas, trazidas para a França, e acomodadas nas diversas Constituições francesas que se sucederam, entre a revolucionária de 1791 e a moderada de 1814, outorgada por Luiz XVIII. Aqui e ali, especialmente no Ato Adicional de 1834 à Constituição do Império do Brasil, encontramos alguma reminiscência da Constituição norteamericana. No Brasil da Regência, ela se fez sentir pela tendência federalista e pelo ensaio de eleição do Poder Executivo à moda americana. Mas são, como dissemos, reminiscências excepcionais. A generalidade das normas orientadoras provém das fontes a princípio referidas. O racionalismo vitorioso do século XVIII penetrou vitoriosamente no campo da doutrina e da prática política a partir da publicação da Enciclopédia, em França, e do êxito universal dessa grande realização da cultura”. Pressionado por tais ideias, D. João VI terminaria por ceder às pressões constitucionalistas, prometendo que adotaria no Brasil aquilo que fosse aplicável da futura constituição portuguesa que se elaborava na Metrópole, como resultado do movimento de 1820. Para tanto, através de Decreto de 23-02-1821, nomeou uma junta constitucional encarregada de estudar as adaptações do texto português à realidade brasileira que seria presidida pelo marquês de Alegrete e composta de 14 membros, mais um Procurador da Coroa, ou seja, José de Oliveira Botelho Pinto Mosqueiro. Eram membros da citada Junta: Barão de Santo Amaro, Mons. Almeida Luiz, José de Carvalho e Melo, Antônio Luiz Pereira da Cunha, Antônio Rodrigues Velloso de oliveira, José Severino Maciel da costa, Camillo Maria Toullet, José de Souza de Mendonça Corte Real, José da Silva Lisboa, Mariano José Pereira da Fonseca, João Rodrigues Pereira de Almeida, Antônio José da Costa Ferreira, Francisco Xavier Pires e José Caetano Gomes54. O posicionamento assumido pela Coroa não satisfez, entretanto, às tropas portuguesas sediadas no Rio de Janeiro, que impunham a D. João aprovar a Constituição que se iria fazer em Portugal, adotando-a no Brasil, sem adaptações, no que este concordou e jurou em reunião do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, realizada na sala do Real Teatro de São João (hoje, Teatro João Caetano), em 26 de fevereiro de 1821. Naquela oportunidade, D. João dava a conhecer o Decreto de 24 de fevereiro de 1821, dois dias antes, onde tal concordância era jurada, sendo a leitura do decreto foi feita por D. Pedro de Alcântara, em nome de D. João. Em conseqüência desta aprovação duas conclusões vieram à baila naquele momento: a) pela primeira vez na História do Brasil as forças armadas - representadas pelas tropas lusas aqui sediadas - intervinham no processo político brasileiro, impondo soluções de logo aceitas pelo Executivo; 52 Política e Liberdade - (História Constitucional e Direito Político). Rio, 1975, p. 171. 53 Edição do Ministério da Justiça - Arquivo Nacional, p. 4. 54 Cf. AGENOR DE ROURE, Formação Constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Typografia Jornal do Commércio, 1914, p. 16.
b) a comissão antes designada para estudar as adaptações, jamais iria funcionar, uma vez que sua razão de ser desapareceu com o juramento feito sob a imposição das tropas portuguesas. Tínhamos, desde então, o que se poderia chamar a Primeira Constituição do Brasil, datada de 24 de fevereiro de 1821, ou a segunda, se considerarmos a Lei Orgânica de 9.3.1817 da Revolução Pernambucana de 1817 (posição esta que nos parece mais correta) apesar do que sobre ela escrevem Paulo Bonavides e Paes de Andrade55: “A história constitucional do Brasil no século passado principiou aparentemente com o Projeto tosco de Antônio Carlos, oferecido aos revolucionários pernambucanos de 1817, em cuja insurreição de cunho republicano, o patriota tomara parte. Em rigor se tratava tãosomente de uma Lei Orgânica de 28 artigos, quando muito de um esboço de constituição, meras bases, ou simples alvitre político, feito às Câmaras Municipais de Pernambuco, talvez com o propósito de reforçar a seriedade do movimento”. Destaque-se que o texto português de 24 de fevereiro de 1821 era totalmente desconhecido dos que a juravam, embora fosse corrente a crença de que trazia consigo os ideais do liberalismo e conseqüente limitação do Absolutismo monárquico56. Jurando o texto, D. João se justificou alegando ter “chegado ao seu real conhecimento que o maior bem que se poderia fazer aos seus povos era desde logo aprovar a Constituição portuguesa que se elaborava”. Com ironia, Agenor de Roure na sua clássica Formação Constitucional do Brasil57, escreve que “como chegou ao seu conhecimento que esse era o “maior bem”, não o disse D. João VI no decreto, mas é certo que a descoberta lhe foi revelada pelos homens armados que constituíam a guarnição do Rio de Janeiro e que lhe obedeciam ao plano de volta ao Brasil à condição de colônia....” Diremos nós: esse maior bem a que se referia o monarca, evidentemente, o era apenas em uma perspectiva lusa, já que com o texto constitucional elaborado do outro lado do Atlântico, não se objetivava atender aos reclamos e interesses nossos, uma vez que, e como já nos referimos, inexistia no sentimento constitucional português lugar para uma constitucionalização brasileira, ou melhor, à moda brasileira, que atendesse nossas necessidades ou situações. Ao contrário, com a adoção do texto lá aprovado teríamos, quando muito, uma Constituição sem o menor embasamento sócioeconômico das condições locais, e, como tal, não voltada para a realidade que, teoricamente haveria de regulamentar. Em última análise este maior bem seria o de manter o Brasil preso à metrópole, numa tentativa de aumentar nossos laços de dependência que, bem sentiam os governantes portugueses, se afrouxavam desde 1817...!
4. “DUAS CONSTITUIÇÕES”. O REGRESSO DE D. JOÃO A PORTUGAL A instabilidade constitucional que haveria de acompanhar o Brasil, como de resto a América Latina em geral, inicia-se, entre nós, exatamente naquela fase da História Nacional. Jurada a Constituição que se estava fazendo em Portugal, e tendo que regressar à Metrópole, D. JOÃO VI deixou no Brasil seu filho, D. Pedro DE Alcântara, encarregado do Governo Provisório desse reino, enquanto nele se achasse vigorando a Constituição Geral da Nação. Além disto, determinou a eleição de deputados 55 História Constitucional do Brasil. Brasília: Editora Paz e Terra, 1988, p. 94. 56 Este texto, aprovado no Brasil em 1821, só a 23 de setembro de 1822 seria aprovado em Portugal, portanto, dias após nossa independência política, que se deu a 7 de setembro daquele ano. 57. p....(?)
brasileiros às Cortes de Lisboa, nos termos do Decreto de 7 de março de 1821, que fixava para esse fim “as instruções estabelecidas na Constituição espanhola sobre o modo de formar as Cortes”. Em outras palavras: a Lei Maior espanhola (já referida Constituição de Cádiz), nos termos do decreto mencionado, seria aplicável no Brasil apenas no que se refere às eleições ao Parlamento de Lisboa. Um fato novo, contudo, surge: as bases da Constituição política da monarquia portuguesa (Lei de 10 de março de 1821) não reconheciam sua obrigatoriedade para o Brasil gerando, como conseqüência, entre os militares lusos que haviam imposto a D. João seu juramento, uma alta onda de insatisfação. Veja-se o que, textualmente, afirmava a Base 21 da citada Lei de 10.3.1821: “Somente à Nação pertence fazer a sua Constituição ou Lei Fundamental, por meio de seus representantes legitimamente eleitos. Esta Lei Fundamental obrigará por ora somente aos portugueses residentes nos Reinos de Portugal e Algarves, que estão legalmente representados nas presentes Cortes. Quanto aos que residem nas outras partes do mundo, ela se lhes tornará comum, logo que pelos seus legítimos representantes declarem ser esta a sua vontade”58.
Em consequência do tratamento dado ao Brasil pelo referido texto constitucional (que, no fundo, confirma o não desejo de Portugal à constitucionalização deste lado do Atlântico!), a Constituição Espanhola passa a ser aclamada e aprovada por D. João em 21 de abril de 1821, a fim de ser adotada, não só com relação ao processo eleitoral, no que já estava, mas em seu todo. Nessa oportunidade, e tal como nos ensina Agenor de Roure59, “vitoriosa a idéia de ser adotada a Constituição Espanhola interinamente, os eleitores paroquiais da Comarca do Rio de Janeiro a instância e declarações unânimes do Povo dela, prestaram juramento à mesma Constituição, e disso foi lavrado termo, que subiu à presença do Rei D. João VI, que imediatamente atendeu e foi servido ordenar que de então em diante se ficasse estrita e literalmente observada no Brasil a mencionada Constituição Espanhola até que se achasse inteira e definitivamente estabelecida a Portuguesa”. Não ficou aí, contudo, a instabilidade constitucional, já presente em nossas manifestações de sentimento constitucional. NesSe sentido, 24 horas depois daquela adoção, ou seja, do juramento do texto espanhol, um novo Decreto (22 de abril), assinado pelo mesmo D. João VI, revogou o ato anterior, revigorando a antiga-futura Constituição Portuguesa, entregando o governo do Brasil a D. Pedro e, partindo de volta a Portugal 4 dias depois (26-04-1821). Na íntegra foi o seguinte o Decreto assinado pelo Monarca: “Subindo ontem à Minha Real Presença uma representação dizendo-se ser do Povo, por meio de uma deputação formada dos eleitores das paróquias, a qual Me assegurava que o Povo exige para Minha felicidade, e dele, que Eu determinasse que de ontem em diante este meu Reino do Brasil fosse regido pela Constituição Espanhola. Houve então por bem decretar que essa Constituição regesse até a chegada da Constituição que sábia e sossegadamente estão fazendo as Cortes convocadas na Minha muito nobre e leal cidade de Lisboa; Observando-se porém hoje, que esta representação era mandada fazer por homens mal intencionados e que queriam a anarquia, e vendo que o Meu Povo se encontra como Eu lhe agradeço, fiel ao juramento que Eu com ele de comum acordo prestamos na praça do Rócio, no dia 26 de fevereiro do presente ano; Hei por bem determinar, decretar e declarar por nulo todo o ato feito ontem; e que o Governo Provisório, que fica até a chegada da Constituição Portuguesa, seja da forma que determinava o outro decreto e instrução que Mando publicar com a mesma data deste e que Meu Filho o Príncipe Real há de cumprir e sustentar até chegar a mencionada Constituição Portuguesa”.
58 Dúvidas não existem no sentido de que, em tal enunciado presentes estão as influências de J. J. ROUSSEAU (O Contrato Social) e do Abade de SIÈYES (Que é o Terceiro Estado?), para os quais a titularidade do poder constituinte reside na Nação. Veja-se IVO DANTAS, Poder Constituinte e Revolução - Breve Introdução à Sociologia do Direito Constitucional (Editora Rio, 1978), onde o problema está abordado até mesmo em uma perspectiva de Constituinte como imperativo da predominância do direito vivo (E. EHRLICH) sobre o direito legislado (SOROKIN). 59 Ob. cit., p. 21.
Ressalte-se que tal atitude por parte de D. João VI pode ser interpretada sob dois enfoques ou perspectivas: no primeiro, significava mais um passo a favor de nossa independência, como resultado do acirramento dos ânimos entre lusos e brasileiros; noutro sentido representava mais uma tentativa no sentido de ver vitoriosa a ideia de voltar o Brasil à condição de simples colônia portuguesa, possibilidade esta, que o próprio D. João não acreditava muito, a ponto de aconselhar a D. Pedro que “colocasse a Coroa na cabeça antes que um aventureiro dela lançasse mão!”. Tinha início, assim, com a partidavolta de D. João às terras do Além-Mar o período da Regência de D. Pedro de Alcântara, o que haveria de culminar com a definitiva Independência Política do Brasil, vez que, como já dizia DUPRAT, “o barco que levasse para a Europa a Família Bragança deixaria a Independência do Brasil”...
5. BREVE ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO DE CÁDIZ Logo na capa do livro Las Cortes de Cadiz, sob a edição de M. Artola60, consta um texto que bem demonstra o papel que aquele momento do constitucionalismo espanhol desempenhou frente ao movimento constitucional do século XIX. Diz: “Llevaron a término la revolución iniciada em 1808. Se constituyeron y acturaron por vías revolucionarias. Introdujeron la Monarquia Parlamentaria y el Estado unitario e hicieron de la igualdad ante la ley el fundamento de la sociedad. Durante dos décadas, la Constitución de Cádiz fue la bandera del liberalismo europeo”. A fim de evitar má compreensão, vale lembrar que, apesar de promulgada em 1812, a Constitución de Cádiz só entrou em vigor em 1820, quando, por Decreto de 7 de março, o rei manifestou sua decisão de jurar a Constituição. Entretanto, como observa Juan Ferrando Badía no artigo Proyección exterior de la Constitución de 181261, ao analisar a fase compreendida entre 1812 a 1820, mesmo antes de sua vigência na Espanha, seus efeitos se faziam presentes no resto da Europa. Neste sentido, escreve o mencionado autor que “en este período la Constitución fue conocida como un código que si bien estava dirigido contra la Monarquia, se realizó sin la Monarquia. Pero las circunstancias en las que se elaboró la Constitución de Cádiz justificaba un poco y tranquilizaba a las Cortes europeas, aunque su carácter excesivamente democrático no fuese de su agrado. Antes de la revolución de 1820 algunos estudiosos de Europa se acercaron a ella, bien para traducirla, bien para criticarla o para, en cierto modo, desvirtuala con modificaciones que la adecuarían a las exigencias de algún país determinado. Pero, en estas fechas, no solamente fue traducida, criticada o modificada, sino que incluso fue reconocida como Constitución de España por alguna potencia en guerra con Napoleón”. Vale relembrar um detalhe: a 21 de abril de 1821, D. João adotava, no Brasil, em seu todo, a Constituição Espanhola de Cádiz, de 19 de março de 1812, a qual, apesar de vigente entre nós por apenas 24 horas, teve, como diz Afonso Arinos, “influência muito grande no nosso Direito Constitucional”62. Entretanto, pouco, ou quase nunca, dela se fala ou se estuda (observação que Arinos concorda, inclusive, estendendo-a aos professores) no contexto de nossa evolução constitucional, deixando, assim, uma lacuna que torna difícil a compreensão dos textos posteriores, sobretudo a Carta Política de 1824. Com esse 60 Madrid: Marcial Pons, 1991. O livro é formado por sete estudos, de autoria de MANUEL MORÁN ORTÍ, RAFAEL FLAQUER MONTEQUI, JUAN IGNACIO MARCUELLO BENEDICTO, MIGUEL ARTOLA, ALFREDO GALLEGO ANABITARTE, MANUEL PÉREZ DE LEDESMA y JUAN FERRANDO BADÍA, analisando variados temas relacionados às Cortes. 61 In Las Cortes de Cadiz, p. 217-218. 62 Cf. O Som do Outro Sino..., p. 152.
item, tentaremos suprir tal esquecimento, mostrando, ainda que em uma análise breve, o seu conteúdo e pelo qual será constatado que a mesma serviu de fonte ao nosso Direito Constitucional. Pode-se fazer uma pergunta, principalmente, ao ter em vista que, e como já foi referido, a Constituição de Cádiz sofreu influência da Constituição Francesa de 1791: constituíram as Cortes Espanholas de Cádiz em 1810 uma criação espanhola, ou apenas uma incorporação das ideias e instituições francesas? Assim, escreve Antonio Fernandez63: “la respuesta es compleja. Las Cortes acometen una revolución, una transformación en profundidad de la politica española; algunos de sus principios nacen espontáneamente, por el apremio de una situación historica; otros estan latentes en la tradición reformista hispana del siglo XVIII; finalmente algunos se difunden al socaire de un patrón frances, que radicalizó el deseo de reforma. La coyuntura era propicia para edificar un nuevo entremado politico, en guerra popular y con un vacio de autoridad, ausente el monarca y deslacificados e disuetos los órganos de gobierno del Antiguo Régimen. Por sua vez primera en la historia española se convocan Cortes sin mediar una decisión del rey. SANCHES AGESTA ha precisado que el proceso revolucionario no es contra la Monarquia, pero si, sin la Monarquia”.
Em livro intitulado Breve Historia del Constitucionalismo Español64, Joaquim Tomas villarroya, tratando das Fontes Doutrinárias da Constituição de Cádiz, afirma: “Un segundo problema, que se remonta también a los orígenes mismos de la Constitución, consistiría en determinar el grado de influencia que en ella ejerció o pudo ejercer la francesa de 1791. Mientras las Cortes de Cádiz discutían el texto, el Filósofo Rancio apuntaba ya el temor de que resultase ´un transunto de la francesa´. En la discusión de la Constitución se afirmó y se negó aquella influencia. El Decreto de Fernando VII, de 1814, por el que se derogaba la Constitución, formulaba un pliego de cargos contra la misma: entre ellos figuraba el de haber copiado ´los princípios revolucionarios y democráticos de la Constitución francesa de 1791[…]”
Realmente, existem na análise do texto constitucional de Cádiz, possibilidades de identificar-se a presença de ideias francesas, como, aliás, já chegamos a chamar a atenção, inclusive, no tocante à origem contratual do poder, entendimento este, tipicamente, rousseauniano. Com esta linha de raciocínio concorda, não apenas Octacílio Alecrim, mas o próprio Fernandez, apesar de este último ver na influência do autor de O Contrato Social, junto à Constituição espanhola analisada, alguns matizes religiosos que a tornaram diferenciada da interpretação que lhe é dada, diretamente, na França. Por outro lado, e ainda nesta análise sociológica do texto positivo, se é verdade que os textos constitucionais representam, quase sempre, a composição da Assembleia ou Corpo Constituinte que os elaborou, no caso da Constituição de 1812, a hipótese está plenamente justificada, visto que o meio intelectual das classes médias predominou no seio das Cortes de Cádiz, compostas por 97 eclesiásticos (dos quais 3 eram bispos), 60 advogados, 55 funcionários públicos, 37 militares, 16 catedráticos e 43 comerciantes, proprietários, escritores, médicos e possuidores de Títulos do Reino, perfazendo um total de 308 membros, sem que se possa identificar nenhum elemento de classe inferior. Em outras palavras: em razão de sua origem social, nenhum de seus membros pode ser apontado de que não tivesse, pelo menos, ouvido falar em Rousseau, Sièyes, Montesquieu e os escritores franceses lidos e festejados à época. Em sua estrutura a Constituição de Cádiz era composta de 384 artigos, dividido em 10 títulos, cada um compondo-se de capítulos, conforme a discriminação abaixo 65: 63 História Contemporânea. Barcelona: Editorial Vicens-Vives, 1976, p. 90. 64 Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989, pp. 17-18. 65 A quem desejar ter acesso à Constituição de Cádiz em sua íntegra, ver MILTON BARCELOS, Evolução Constitu-
Título I - Da Nação espanhola e dos espanhóis; Título II - Do território da Espanha, sua Religião e Governo e dos Cidadãos espanhóis; Título III - Das Cortes; Título IV - Do Rei; Título V - Dos Tribunais e da Administração de Justiça no Cível e no Criminal; Título VI - Do Governo Interior das Províncias e dos Povos; Título VII - Das Contribuições; Título VIII - Da Força Militar Nacional; Título IX - Da Instrução Pública; Título X - Da observância da Constituição e Modo de Proceder para fazer nela variações. Joaquim Tomas Villarroya66, ao analisar a natureza da Constituição, ofrece uma síntese do que foi o texto de 1812, escreve, logo no início, que “la Constitución ofrece tres características esenciales: 1. Es una Constitución de origen popular. El Preámbulo cuida de subrayar, especialmente, esta característica: la Nación española, representada por las Cortes generales y extraordiaria, se da a sí misma la Constitución, sin el concurso de ningún outro poder; la Regencia del Reino, en nombre del Rey ausente y cautivo, se limita a publicarla. La Constitución se elaboró sin participación del Rey; pero no frente o contra un Rey por cuya libertad combatía la nación: en su intención inicial, no era, pues, una Constitución que se pretendiese imponer al Monarca. Ahora bien: las vicisitudes históricas llevaron a la Constitución de Cádiz a tener la condición de impuesta a la Corona en dos momentos diferentes: en 1820, después del levantamiento de Riego, Fernando VII se vio obligado a aceptarla; en 1836, después del motín de La Granja, la Reina Doña Maria Cristina de Borbón se vio obligada a restablecerla. 2. Es una Constitución extensa. La Constitución de 1812, con sus 384 artículos, es la más larga de nuestra historia. Tal amplitud se explica por el hecho de que regulaba, de manera sistémica, la organización de loa poderes fundamentales del Estado e, de manera dispersa, los derechos de los españoles; pero, además contenía normas muy detalladas y minuciosas sobre los mecanismos electorales, sobre el proceso de formación de las leys, sobre la Administración de Justicia, sobre la organización de Ayuntamientos y Diputaciones. Este afán detallista se debía al deseo de que la Constitución fuese ´un sistema completo y bien ordenado, cuyas partes guarden entre sí el más perfecto enlace y armonía´. La aspiración era laudable, pero la minuciosidad afrecí inconvenientes inmediatamente perceptibles: se mezclaban principios fundamentales y preceptos secundarios; se constitucionalizaban materias que debieran haberse regulado por leyes ordinarias o disposiciones subalternas; se confería fijeza constitucional a temas que, como el sistema electoral, son de suyo variables y, generalmente, necesitados de reformas y correciones tan pronto se há hecho la primera aplicación práctica de ellos. 3. Es una Constitución rígida, es decir, una Constitución cuya reforma exige trámites distintos de los que son necesarios para modificar o alterar una ley ordinaria. La de 1812 era especialmente rígida: una Cortes proponían la reforma; las Cortes siguientes examinaban tal propuesta; unas terceras Cortes, dotadas de poderes especiales, la aprobaban defitivamente; siendo necesarios para todos estos trámites, determinados plazos y mayorías de dos tercios. Tales dificultades se explicaban por el deseo de los autores de la Constitución de dar estabilidad y duración a su obra; de impedir modificaciones apresuradas; de evitar, entre nosotros, la inestabilidad constitucional que ya entonces se registraba en otros países. Estos deseos y previsiones resultaron vanos: la Constitución fue derogada, por voluntad del Monarca, en 1814 y en 1823; y cuando fuew reformada en los años 36 y 37, lo fue al margen de las disposicones que regulaban su modificación”.
O texto de Tomas Villarroya, apesar de longo, é de oportuna análise sobre o texto, visto que nos oferece uma visão geral do que a Constituição de Cádiz, cujo conteúdo é impossível ser estudado na dimensão deste trabalho. Observa-se, atentamente, que os princípios do Liberalismo, como se disse cional do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933, pp. 160-204. 66 Ob. cit. pp. 12-14. Itálicos nos itens, de nossa responsabilidade.
acima, doutrina dominante e típica do século XIX, estavam presentes no texto ora em análise, do que são provas evidentes, principalmente, os capítulos III, IV e V, nos quais se evidencia, a todo instante, a concepção tripartida de MONTESQUIEU e que, no Brasil, pela Carta de 1824, foi desprezada com a adoção do chamado Poder Moderador, criação de Clermont Tonnere, difundido por Benjamin Constant e entendido como “a chave de toda a organização política do Império” (Carta de 1824, art. 98). Na conformidade do entender dos constituintes espanhóis de 1810 as funções do poder são distintamente especificadas, como se: “Art. 27: As Cortes são a união de todos os deputados que representam a nação, nomeados pelos cidadãos na forma que se dirá”;O princípio de independência plena do Legislativo, poderemos identificar no art. 128, onde a Constituição de Cádiz, aí influenciada pelas idéias oriundas da Inglaterra e dos Estados Unidos, consagrava, em toda a sua amplitude, o instituto da imunidade parlamentar, como se vê: “Os deputados serão invioláveis por suas opiniões, e em nenhum tempo e em nenhum caso, nem por algumas autoridades poderão ser acusados por elas, nas causas criminais, que contra elas intentarem, não poderão ser julgados senão pelo Tribunal de Cortes no modo e forma que se prescrever no regulamento interior das mesmas. Durante as sessões das cortes e um mês depois os deputados não poderão ser demandados civilmente nem executados por dívidas”. Evidente, que o texto não faz uma distinção precisa entre a Irresponsabilidade Parlamentar e a Inviolabilidade Parlamentar, hoje perfeitamente distintas. Entretanto, este aspecto não poderá tirar o mérito da intenção do artigo citado, que pode até ser criticado pela sua extensão, quando assegura ao parlamentar a não possibilidade de ser demandado civilmente ou executado por suas dívidas, o que, a nosso ver, quebra o Princípio da Isonomia, isto é, o Princípio de Igualdade de todos perante a Lei. Somos favoráveis às Imunidades Parlamentares, nas quais não enxergamos como um privilégio, mas sim, como prerrogativa da função, no que, é claro, não se enquadram as dívidas pessoais dos senhores deputados67. “Art. 168: A pessoa do rei é sagrada e inviolável, e não está sujeita a responsabilidade”; “Art. 169: O rei terá o tratamento de Majestade Católica”. A liberdade individual frente ao poder, encontrava-se consagrada, ao mesmo tempo em que se assentava o princípio da jurisdição una, nos termos do art. 242: “O poder de aplicar as leis nas causas civis e criminais pertence exclusivamente aos tribunais”. Tal enunciado fica coroado pelo que vinha logo em seguida, ou seja, no art. 243: “Nem as cortes, nem o rei poderão exercer em algum caso as funções judiciais, avocar as causas pendentes nem mandar abrir os juízos findos”. Um ponto merece destaque nesta breve análise: trata-se do Título X, onde já àquela época, se reconhecia a superioridade do texto constitucional frente à legislação ordinária. Já ali, as características da Supralegalidade e da Imutabilidade Relativa, com que hoje se identificam as Constituições (pelo menos no papel), estavam aceitas, prevendose até mesmo “fazer efetiva a responsabilidade dos que tiveram contravindo a ela” (art. 372). Além disto, no tocante às limitações ao Poder de Reforma, o texto de Cádiz fixava uma limitação temporal, quando, no art. 375, prescrevia que “antes de passarem oito anos depois de posta em prática a constituição em todas as suas partes não se poderá propor alteração, nem reforma ou adição dos seus artigos”. Outros aspectos poderiam ser aqui mencionados. De uma coisa, porém estamos certos: o que dissemos no início, inclusive, com base em Afonso Arinos, está plenamente demonstrado: a grande influência da Constituição Espanhola de 1812 sobre a nossa Carta Política de 1824 e, antes 67 Ainda hoje que a confusão terminológica existente em 1812, na Constituição de Cádiz, se repete entre nós, por exemplo, no texto constitucional de 1967-1969 (art. 32), bem como a Constituição de 1988 (art. 53), quando, entendem a inviolabilidade como equivalente à irresponsabilidade, o que não mais se justifica em razão dos avanços dos estudos constitucionais e políticos de nossos dias!
dela, sobre a Constituição Portuguesa de 23 de setembro de 1822, aquela a que D. João jurara antes mesmo de ser elaborada em Portugal.
6. D. PEDRO E O MOVIMENTO DA INDEPENDÊNCIA Assumindo o poder, logo no dia seguinte (27.04.1821) ao do regresso de D. João a Portugal, seu filho, D. Pedro fez uma proclamação ao povo brasileiro, onde declarava ser “encarregado do cuidado sobre a pública felicidade do Brasil, até que de Portugal chegasse a Constituição que a consolidasse”. Nessa condição, o Regente encontra um clima dos mais difíceis, provocado por aspectos, tanto de ordem política, como de natureza econômica, a saber: a) - exigência das tropas portuguesas sediadas no Rio de Janeiro para que renovasse o julgamento de obedecer às bases da Constituição que se estava fazendo na Metrópole, fato que ocorreu a 5 de junho de 1821 (recorde-se que a 26.02.1821 D. PEDRO havia jurado o texto constitucional português em nome de seu pai); b) - situação econômica altamente deficitária, provocada, principalmente, pela enorme saída de numerário que D. JOÃO levara para Portugal, e que D. PEDRO referiria em sua Fala na abertura da Assembleia Constituinte de 1823. Arguto, preferindo governar dentro de um clima de tranqüilidade (pelo menos aparente), D. Pedro (face às pressões), jurou a Constituição que se elaborava na Corte, atendendo, com isto, à Divisão Auxiliadora que, entretanto, não encerrou aí suas atividades no sentido de esvaziar o caminho brasileiro pró-independência, iniciado em 1808, ou seja, havia 13 anos.
Assim, e dentro desta linha de conduta, as Cortes portuguesas assumem duas atividades que, evidentemente, logo gerariam protestos por parte dos brasileiros: pela primeira, reduziam e limitavam a autoridade do Regente apenas ao Rio de Janeiro, ficando as demais províncias diretamente ligadas ao Governo de Lisboa; em segundo lugar, sob o pretexto de uma viagem de instrução a ser feita pela Europa, determinaram o regresso de D. Pedro às terras lusas. Pretendiam, como se sente, com a segunda das medidas, repetir o que haviam conseguido com relação a D. João, isto é, o abandono das terras americanas, o que significaria amplo retrocesso do Brasil à sua antiga condição de colônia, tanto de direito como de fato, nos moldes anteriores a 1808. Oportuno é lembrar que, apesar de mais tarde D. Pedro assumir o patrocínio de nossa independência política, nesta fase dos acontecimentos permanecia fiel às Cortes de Lisboa, do que é fato inconteste sua “Fala à Nação” em 05 de outubro de 1821, oportunidade em que afirmava: “Que delírio é o Vosso? Quais são os vossos intentos? Quereis ser perjuro ao Rei e à Constituição? Contais com a minha Pessoa para fins que não sejam provenientes e nascidos do juramento que Eu, Tropa e Constitucionais prestamos no memorável 26 de fevereiro? De certo que não quereis; estais iludidos, estais enganados e, em uma palavra, estais perdidos se intentardes uma outra ordem de coisas, se não seguirdes o caminho da honra e da glória em que já tendes parte e da qual vos querem desviar cabeças esquentadas, que não têm um verdadeiro amos de El-Rei Meu Pai e Senhor D. JOÃO VI, que tão sábia e prudentemente nos rege e regerá, enquanto Deus lhe conservar tão necessária como preciosa visa: que não tem religião e que se cobrem com peles de cordeiros, sendo entre a Sociedade lobos devoradores e esfaimados. Eu nunca serei perjuro nem à Religião, nem ao Rei, nem à Constituição. Sabei o que vos declaro em nome da tropa e dos filhos legítimos da Constituição, que vivemos todos unidos; sabei mais que declaramos guerra desapiedada e cruelíssima a todos os perturbadores do sossego público, a todos os anticonstitucionais desmascarados. Contai com que vos digo, porque quem vo-lo diz é fiel à Religião, ao Rei e à Constituição, e por todas estas três divinas coisas estou, sempre estive e estarei pronto a morrer, ainda que fosse só, quanto mais tendo a tropa e verdadeiros constitucionais que Me sustêm, por amor, que mutuamente repartimos e por sustentarem juramento tão cordial e voluntariamente dado. Sossego, Fluminenses. (Destaque nosso).
O citado pronunciamento68, embora “carregado de ameaças”, não amedrontou os sentimentos em defesa dos ideais da Independência. Assim, a segunda das medidas mencionadas - regresso de D. Pedro a Portugal - provocou manifestações patrióticas chefiadas por José Clemente Pereira e Joaquim Gonçalves Ledo, os quais alcançaram seu ápice com a entrega de 8.000 assinaturas ao Príncipe-Regente (9 de janeiro de 1822), em forma de memorial, pedindo-lhe que o permanecesse no Brasil. Para espanto de todos que compunham as tropas lusas aqui sediadas, o monarca atendeu ao pedido, desobedecendo, pela primeira vez, às ordens emanadas do outro lado do Atlântico. Tal aquiescência, logo comunicada aos brasileiros na pessoa de José Clemente, foi formalizada através de uma declaração sucinta, porém, significativa, nos seguintes termos: “Como é para o bem de todos e felicidade geral da Nação estou pronto; diga ao povo que fico”. Ato contínuo, determinou ao Comandante das Tropas Portuguesas, Divisão Auxiliadora, Jorge AVILES, que as retirasse “para a outra banda do Rio”, ou seja, para a Praia Grande, hoje cidade de Niterói. Diz, novamente, Agenor de Roure que nesse quadro “vencia completamente a causa nacional, em oposição à Constituição jurada sob coação, antes mesmo de conhecidas suas BASES como depois delas publicadas sem garantia alguma para os princípios de autonomia do rei D. João VI entre nós”69. O processo que culminaria com o 7 de setembro de 1822 não parou aí, assumindo doravante uma característica não esperada pelos lusitanos: se até aqui o comportamento brasileiro era apenas o de defender-se da campanha de esvaziamento promovida pelos portugueses, passamos agora à ofensiva, para tanto contribuindo a nomeação de José Bonifácio de Andrada e Silva para o cargo de ministro de D. Pedro (16.12.1821), com o que, se oferecia à nossa atuação uma característica de astúcia, expressa em duas medidas fundamentais que o mesmo conseguiria aprovar: 1) - nenhuma ordem ou lei portuguesa seria obedecida no Brasil sem que o Príncipe-Regente lhe desse o necessário “CUMPRA-SE”. Isto eqüivaleria, nos dias atuais, a uma espécie de “Sanção”, sem a qual (e a repetição é proposital) a norma não teria aplicação no território brasileiro; 2) - ficavam convocados ao Rio de Janeiro os representantes de todas as províncias para uma reunião do Conselho de Procuradores Gerais da Províncias do Brasil, com funções meramente consultivas. Este órgão, contudo, não chegou a reunir-se, vez que em 03 de junho de 1822 em conseqüência das pressões de elementos radicais do Rio de janeiro e das Cortes portuguesas, o príncipe-Regente convocava uma Assembléia Constituinte e Legislativa para elaborar uma Constituição destinada ao Reino do Brasil, diferente daquela a ser elaborada em Portugal. Igualmente, tal missão não chegou a ser cumprida, conseqüência de sua dissolução pelo próprio Monarca a 12 de novembro de 1823, em virtude de desentendimentos entre Ele (Poder Executivo) e o Colegiado Constituinte (Poder Legislativo). Nessa época, a agitação em Minas Gerais é intensa, e em conseqüência, D. Pedro resolve, pessoalmente, acalmar o ambiente, sendo ali recebido com euforia popular, e trazendo, em sua volta ao Rio de Janeiro, não só o apoio mineiro à causa constitucional (embora desobedecendo à Coroa e às suas determinações, D. Pedro considerava-se constitucional), mas igualmente, o título de Defensor Perpétuo do Brasil, título este que, sem dúvida, lhe tornava profundamente comprometido com as idéias de liberdade e independência, às quais, embora inconscientemente, o Príncipe já havia aderido. Mais uma vez, a história corria a nosso favor, transformando a posição de D. Pedro de suposto favorável à independência, para uma posição oficial e abertamente assumida: em 6 de agosto de 1822 anunciava a todas as nações, seu desejo de romper os laços entre Portugal e Brasil. Assim, em 68 Cf. AGENOR DE ROURE, ob. cit., pp. 29-30. 69 Ob. cit., p. 32.
documento cuja autoria é atribuída a José Bonifácio, declarava70: “O Brasil está pronto a respeitar os direitos de outros povos e governos, se em troca, forem respeitados os nossos direitos, dispondonos, caso contrário, a lutar por eles”. Era, como se percebe, uma pré-declaração de Independência, uma afirmativa categórica de que não reconheceríamos em Portugal (ou qualquer outro Estado soberano) uma superioridade sobre o Brasil, sobre nossos interesses políticos e/ou econômicos. Por tudo isso, a independência declarada a 7 de setembro aparece como coroamento de um processo que se inicia, como vimos, em 1808, e que, sob uma ótica economicista, como escreve Caio Prado Junior71, “resultou do desenvolvimento econômico do País, incompatível com o regime de colônia que o peava, e que por conseguinte, sob sua pressão, tinha de ceder. Em outras palavras - continua - é a superestrutura política do Brasil colônia que, já não corresponde ao estado das forças produtivas e à infra-estrutura econômica do País, rompe-se, para dar lugar a outras formas mais adequadas, às novas condições econômicas e capazes de conter sua evolução. A repercussão deste fato no terreno político - a Revolução da Independência - não é mais que o termo final do processo de diferenciação de interesses nacionais, ligados ao desenvolvimento econômico do País, e por isso mesmo distante dos da metrópole e contrários a eles”. Finalmente, pode-se lembrar a lição de Paulo Mercadante no livro A Consciência Conservadora no Brasil72: “A Independência Política de 1822 encerra em seu contexto o espírito de conciliação que provinha de todo o processo histórico nacional. Prevista de fato, há muito pelos portugueses, tornouse inevitável, realizando-se quando irreversível a emancipação econômica decorrente da abertura dos portos”. Para finalizar: proclamada a Independência Política do Brasil, inicia-se um novo ciclo da história do Brasil, desta vez com um Estado Soberano que terá de organizar-se constitucionalmente, sem se esquecer de considerar neste texto, as reais condições sociais e econômicas e sem poder eximirse das influências do pensamento político e jurídico da época.
70 Sobre o pensamento de JOSÉ BONIFÁCIO, consultem-se OCTÁVIO TARQÜÍNIO DE SOUZA, História dos Fundadores do Império do Brasil, vol. I; VICENTE BARRETO, Ideologia e Política no Pensamento de José Bonifácio, além de muitos estudos. 71 Ob. cit., pp. 47-48. 72 Ob. cit. p. 50.
SUMÁRIO
Mauricio Barreto Pedrosa Filho O poder judiciário e a experiência de controle pós 2004............................................................................................37 Mariana Carneiro Leão Figueiroa Povos indígenas e pluralismo jurídico: Manifestação da interculturalidade.............................................................59 Rebeca Rátis Rêgo Monteiro | Eloy Moury Fernandes Adolescentes em conflito com a lei e a constitucionalidade das medidas sócio-educativas: Uma experiência na comarca de Pernambuco..............................................................................................................75 Amanda Karina de Siqueira Arruda A constelação familiar no âmbito da conciliação judiciária como mecanismo de inibição ou atenuação dos efeitos da alienação parental............................................................................................................89 Rosivaldo Câmara da Silva Assédio moral na atividade de transporte privado de produto acabado .................................................................97 Ingrid Zanella Andrade Campos | Igor Zanella Andrade Campos A legislação aplicável ao tripulante de navio de cruzeiro: Uma análise do princípio da força da gravidade... 107 Suenya Talita de Ameida Discursos jurídicos e extrajurídicos em torno da legalização de substâncias usadas para fins terapêuticos.... 117 Daniel Alves Pereira Neto Justiça restaurativa: Um novo modelo de justiça criminal e as principais práticas restaurativas institucionalizadas em Pernambuco............................................................................................................................ 129 Maria Luíza Maranhão Dias Cabral A mãe infratora da colônia penal feminina do Recife: A dissociação entre as leis e a realidade....................... 139 Ítalo Lustosa Roriz Qual o destino do constitucionalismo?...................................................................................................................... 155
Bruno Loureiro Cavalcanti Batista Ética enquanto dever de todos: O início da reconstrução da cidadania no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988.................................................................................................................... 173 Marcelo Rocha Bezerra Kant: ética deontológica, dignidade humana e Constituição de 1988................................................................... 183 Elaine Buarque A função social do dano existencial: Para além do dano moral.............................................................................. 191 José Pandolfi Neto A transgressão ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição no dissídio coletivo de natureza econômica em razão da obrigatoriedade do comum acordo............................................................. 213
O PODER JUDICIÁRIO E A EXPERIÊNCIA DE CONTROLE PÓS 2004 THE JUDICIARY BRANCH AND THE EXPERIENCE OF AFTER CONTROL 2004 Mauricio Barreto Pedrosa Filho1
RESUMO: O Poder Judiciário no Brasil coexiste com um regime democrático e de liberdades públicas há quase trinta anos, desde a promulgação da vigente Constituição em 05 de outubro de 1988. Inserto nessa realidade, busca-se, através do presente trabalho, discutir a experiência de controle do Judiciário com o advento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Portanto, pós 2004, o ano de criação do mesmo. Crê-se de relevo o tema, dado o grande número de demandas judiciais existentes no país e a lentidão da máquina judiciária; fato gerador de muitos reclamos, afora a atuação exorbitante do CNJ em matéria que foge a sua competência, daí uma subversão aos dogmas constitucionais prejudiciais ao Estado Democrático de Direito. O Brasil, que em sua Carta Magna diz serem poderes da União independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo, e o Judiciário (Art. 2º), não merece assistir, no estágio atual de civilidade e governança democrática, uma prática intervencionista de um órgão estatal em matéria estranha a sua seara de competência, a exemplo da autorização para casamento civil entre pessoas do mesmo sexo conferida pelo CNJ. Longe a experiência do Poder Moderador trazido com a Constituição Imperial de 1824. Enfrenta-se o tema escolhido mediante procedimento metodológico crítico-analítico, estudo comparativo de legislação, tendo sido o texto elaborado por meio de pesquisa bibliográfica, legislativa e documental, no intuito de acrescer elementos ao debate dessa importante temática junto à comunidade jurídica e mesmo à sociedade civil. Palavras-chave: Judiciário; Constituição; Democracia; Competência; Controle.
1. INTRODUÇÃO Com o presente artigo, objetiva-se proporcionar ao leitor uma visão da experiência brasileira de controle do Poder Judiciário pós 2004, e a sua importância para o Estado Democrático de Direito. Crê-se de relevo o tema, dado que o Brasil vivenciou uma Ditadura Militar no período compreendido de 1964 a 1985, época caracterizada pela falta de liberdades públicas, cidadania participativa, e pleno de repressão política; quando ao Judiciário faltava o comprometimento político com o ideal democrático e de direitos sociais, só trazidos com a Constituição Federal de 1988. O retorno ao pleno regime democrático com a dita Constituição trouxe um fortalecimento da cidadania, ampliou os direitos sociais e garantias ao cidadão, fato nunca antes vivenciado na história do constitucionalismo brasileiro. E, sob a égide dessa Carta política, foi criado em 2004 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão de controle do Poder Judiciário do Brasil, quando já decorridos mais de quinze anos da sua promulgação. 1 FOCCA — Faculdade de Olinda, Curso de Direito, Função: professor. mbpf64@yahoo.com.br 39
O Direito é mutável já que o seu foco é a harmonia, a disciplina do convívio humano. E esse convívio altera-se por diversos fatores, sobretudo devido aos ventos políticos que tocam as nações (no caso brasileiro, ventos de democracia, direitos humanos e cidadania), o que faz surgir a necessidade de novas normas para tutelar as relações humanas em sociedade, seja para permitir ou coibir condutas. Nesse passo, a atuação do Poder Judiciário; ao dirimir os conflitos de interesses havidos no convívio humano, bem como aqueles havidos entre o cidadão e o Estado, ou vice-versa, é imprescindível para a construção de um Estado Democrático de Direito e a mantença da paz social. Todavia, esse Poder Judiciário passou a sofrer um controle unificado a partir de 2004, quando foi criado o pré-falado Conselho, objeto aqui do presente estudo. Como já dito acima, será buscado, neste artigo, abordar essa experiência de controle da Justiça brasileira, mas com olhares críticos a respeito do seu funcionamento e comprometimento ao regime democrático. Ao longo do texto, será abordada a atividade do Poder Judiciário no contexto de um Estado Democrático de Direito; a importância do Conselho Nacional de Justiça, na sua condição de órgão de controle do Judiciário; e serão tecidas críticas sobre a interferência desse Conselho na seara do legislador. Ao lado disso, mostra-se a teoria de John Rawls acerca da Justiça e uma visão crítica do CNJ à luz do mesmo Rawls, notadamente, quanto à autorização administrativa desse Conselho para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. À luz de Kant, discorre-se a respeito daquela autorização e o poder de legislar, apontando exemplos legislativos de Portugal e França sobre matéria análoga tratada pelo Conselho Nacional de Justiça. Por derradeiro, faz-se uma crítica conclusão sobre a importância do tema. Enfim, este é o tratamento dado ao tema proposto, no intuito não apenas de contribuir à compreensão da dinâmica dos interesses políticos e sociais, mas, sobretudo, para servir de contributo ao estudo do Direito e da Justiça.
2. A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Para perpetuação do Estado Democrático de Direito, deve haver o acesso facilitado do cidadão ao Poder Judiciário, e também a resposta desse Poder em tempo hábil (REDE JUDICIÁRIA EUROPEIA, 2018,p.1). Em uma conjuntura de democracia o acesso ao Judiciário é a única trincheira de luta que o cidadão possui para se insurgir, pacificamente, contra lesão, ou ameaça de lesão a direito seu, seja por parte de um particular ou mesmo do Estado. A atual Constituição do Brasil assegura, nos incisos XXXV e LXXIV, do seu artigo 5º, como direito fundamental o livre acesso do cidadão à prestação jurisdicional, como também assegura àqueles necessitados a gratuidade dessa prestação2.. Mas, indo mais longe no tempo, a prestação jurisdicional dos Estados nacionais passou a ser considerada direito humano-fundamental desde quando proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em dezembro de 1948, que em seus artigos VIII a X, prevê: Artigo. VIII. Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
2 CF/88 – “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]; XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;” [...]; “ - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;.” No plano infraconstitucional, a Lei n.º 1.060/1950 regula no Brasil a gratuidade dos benefícios da justiça gratuita, isentando do pagamento de custas judiciais aqueles considerados pobres na forma da lei (a maioria da população brasileira!). 40
Artigo IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo.X. Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 1).
No estágio civilizacional em que a sociedade se encontra, mormente após o advento da DUDH, é inaceitável, sob todos os sentidos, a prática da autotutela como forma maior da solução dos conflitos de interesse. O Estado evoluiu ao longo dos anos avocando para si essa atividade de dirimir litígios, é dele o monopólio da jurisdição (autotutela é exceção especialíssima, legitimada apenas quando encontra consagração em lei, a exemplo da legítima defesa) para estabelecer a paz e a harmonia social. Portanto, estimular aquela prática (autotutela) pela hipótese de inércia do aparelho judicial é um retrocesso civilizacional inaceitável que fere não só a cidadania, mas também o primado do próprio Estado Democrático de Direito e os Direitos Humanos. Nesse passo, no momento em que não se obtém do órgão jurisdicional – nenhuma resposta, ou resposta tardia, corre-se o risco de perecer o direito perseguido e, por conseguinte, ferir-se a própria essência da democracia que é o sistema de direitos e garantias do cidadão (dentre eles o de receber uma livre prestação jurisdicional). Em suma: a democracia exige um Poder Judiciário atuante, célere, comprometido com a ordem jurídica, a cidadania, os princípios constitucionais, e não com os ventos políticos que conduzem os governantes. Fato igualmente lesivo à democracia brasileira, além da inércia do magistrado no trato da entrega da prestação jurisdicional, é a “troca de favores” entre o Judiciário e os demais Poderes do Estado, ou seja, quando o magistrado utiliza da máquina pública judicial, de forma pessoal e voluntária, ao arrepio da própria Constituição que consagra o princípio da impessoalidade, ao lado da legalidade, improbidade, publicidade e eficiência, no intuito de favorecer a certo grupo político partidário à frente do Executivo ou do Legislativo. E isso precisa ser combatido. Dallari (1996), em sua obra, O Poder dos Juízes, mostra-nos exemplo do gênero. Veja o leitor: Alguns juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores não conseguem esconder sua preferência eleitoral e, às vezes, deixam entrever essa preferência até mesmo em decisões judiciais. Assim aconteceu em São Paulo no ano de 1991. O Procurador-Geral da Justiça apresentou denúncia contra a prefeitura municipal, em março desse ano, alegando a prática de ato que configuraria ilícito penal. O processo foi distribuído a um desembargador, que durante meses não proferiu o despacho que lhe competia. O que lhe cabia fazer era rejeitar desde logo a denúncia por falta de fundamento legal ou, ao contrário disso, encaminhar o processo ao colegiado competente, propondo a aceitação da denúncia. Mas o desembargador em questão não fez uma coisa nem outra, preferindo guardar o processo em sua gaveta para usá-lo em ocasião oportuna. A falta de um órgão controlador dava essa possibilidade. Alguns meses depois, às vésperas das eleições para escolha do sucessor da prefeitura, o desembargador proferiu despacho, exorbitando de suas competências e acolhendo a denúncia, o que só poderia ter sido feito pelo colegiado. Além de acolher a denúncia irregularmente, aquele desembargador, que pouco depois seria eleito presidente do Tribunal de Justiça do Estado, imediatamente distribuiu cópia de seu despacho a um dos candidatos à Prefeitura, o qual, como era previsível, utilizou-o amplamente em sua propaganda eleitoral. Isso tudo enquanto, conforme registro informatizado, os autos do processo se encontravam em mãos do desembargador, só tendo ocorrido à devolução ao cartório depois daquela utilização político-eleitoral. Esse fato foi imediatamente levado ao conhecimento do então presidente do Tribunal de Justiça, que considerou inútil qualquer iniciativa visando a apuração dos fatos, pois se tratava de um desembargador e, com toda a probabilidade, não chegaria a resultado prático qualquer tentativa de apurar responsabilidades. Tempos depois, quando aquele desembargador já era presidente do Tribunal de Justiça e o então candidato era o Prefeito de São Paulo, este prestou estranhíssima homenagem, dando o nome de ‘Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo’ a uma passagem subterrânea aberta sob uma avenida, localizada quase dez quilômetros longe do edifício do Tribunal. Não se tratava de uma data especial na história do Tribunal
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nem havia ocorrido qualquer fato novo e significativo que justificasse a homenagem, a não ser a gratidão do Prefeito Municipal pelo favor eleitoral recebido. Reforçando a contrapartida, em mais de uma oportunidade esse mesmo presidente do Tribunal proferiu despachos cassando liminares concedidas por juízes de primeira instância contra atos do mesmo Prefeito, seu protegido eleitoral. Essas cassações, que em outras circunstâncias deveriam ser vistas e respeitadas como o exercício regular de uma função judicial, ficaram, inevitavelmente, sob suspeita, por causa dos antecedentes (DALLARI, 1996, p. 86-87, grifo nosso).
O magistrado, no exercício da sua função judicante, deve estar afinado com o bem servir, com a democracia, e com o sistema constitucional de garantias do cidadão, e nunca, sob hipótese alguma negar a entrega da prestação jurisdicional, causar entraves à mesma (por conseguinte, incorrer em inércia/morosidade), tampouco quebrar a sua imparcialidade. Para coibir coisas do gênero, em especial a morosidade processual é que a Reforma do Judiciário brasileiro, empreendida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, inseriu no rol de Direitos e Garantias Fundamentais do cidadão que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, LXXVIII). Embora louvável essa a pretensão do legislador a morosidade da Justiça brasileira ainda é realidade3. É válido não esquecer que a magistratura tem um caráter político, eis que o juiz exerce o seu munus com o poder oriundo da Constituição, poder esse fruto da vontade popular consolidada pelos legisladores (como a Constituição de 1988), e nessa esteira ele – o magistrado – não pode se desvirtuar, fugir, daqueles princípios políticos democráticos e de cidadania inseridos na Carta Política. O juiz deve e merece ter sempre prerrogativas constitucionais, e legais, para exercer a função judicante com total independência, mas, inaceitável a sua inércia enquanto órgão estatal imbuído de entregar a prestação jurisdicional, e se valer de sua autoridade para fins escusos e/ou praticar atos fora da moldura do direito capazes de lesar interesses das partes, do cidadão, subverte a democracia, e o regime de liberdades públicas. Estas ocorrências levam à descrença do homem comum quanto à atuação e existência do Poder Judiciário, e no próprio regime democrático, ensejando dessa maneira a ideia de caos social a estimular a implantação de políticas autoritárias como a forma de redenção, o que bem serve de subsídio aos ideólogos dos regimes de exceção (v.g. o regime despótico de Fujimori no Peru que atacou a atuação do Poder Judiciário sob alegação de corrupção e “ineficiência”). Infelizmente, ainda hoje, inúmeras pessoas em países que se rotulam de democráticos (Brasil, México, Argentina, [...]) falecem e não têm reconhecido um direito postulado, algumas falecem no cárcere sem presenciar o reconhecimento de sua inocência e ver restituída a liberdade, outras, em virtude da natureza da ação, assistem ao perecimento do bem em litígio e, muito antes do julgamento final da lide que se prolongou por vários anos devido à inércia da máquina judicial4. Fato lamentável presenciado diretamente pelos causídicos patrocinadores das demandas e que denigre a imagem do Judiciário, é a lentidão da máquina judicial, o que leva ao enfraquecimento da cidadania, e mesmo a descrédito do regime democrático5. Como exemplo disso são citados os reiterados adiamentos de 3 “A Justiça brasileira é lenta. Os processos duram em média, 10 anos no Brasil”. Conforme Humberto Vieira de Melo, ex-secretário de Justiça do Estado de Pernambuco, em entrevista ao periódico Jornal do Commercio em 17 de junho de 2108 (BELFORT, 2018, p. 1). 4 Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do ano de 2011 (Agosto), revelou Pernambuco como o Estado da federação brasileira com a Justiça mais lenta do país, e que 82,4% dos processos acumulados no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) passaram mais de um ano sem decisão. – Notícia veiculada pelo Jornal do Comércio, Cidades, em 30 de agosto de 2011, Recife-PE (v. também: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Jornal do Commércio, Recife, Cidades, 30 ago. 2011. Disponível em: <http://cnj.myclipp.inf.br>. Acesso em 12 jun. 2014, 21:06h). 5 Marinoni (2000, p. 29) a esse respeito afirma: “A morosidade não só significa um peso grande para o litigante, mas 42
atos processuais, às vezes para data longínqua e sem justificativa plausível de parte do magistrado que preside o processo. Tais situações desprestigiam o monopólio da jurisdição estatal, que há de ser prestigiada sempre como forma de manter o Estado Democrático de Direito, zelar pela paz social, conter a notória violência urbana que assola um país continental como é o Brasil. Viver sob democracia é conviver com desiguais, com a alternância de poder, com o contraditório, e também aceitar decisões judiciais, mesmo que não lhes sejam convenientes. E o acolhimento dessas decisões tocam obrigatoriamente os governantes, do contrário, haveria o arbítrio dos mesmos. Portanto, no Estado Democrático de Direito, a sociedade civil, os governos, as autoridades públicas hão de se submeter ao que for decidido por juízes e Tribunais, fora dessa moldura haverá o caos, a desordem social. Uma democracia somente pode subsistir mediante o respeito dos governantes e de toda sociedade às decisões do Poder Judiciário. Como exemplo histórico cita-se o caso Brown v. Board of Education, julgado pela Suprema Corte dos EUA em maio do ano de 1954 (portanto há 64 anos). Tal decisão declarou a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas americanas e constituiu um importante marco para eliminar aquela prática na educação escolar dos EUA (VOICES, 2014). Indubitável que o poder conferido ao magistrado é enorme (é ele um ser humano poderoso!). Não se pode esquecer que o magistrado é uma pessoa como outra qualquer, possuidora de virtudes e defeitos, contudo, imbuída da função estatal de decidir sobre os conflitos que surgem do convívio humano, sobre a liberdade, cidadania, honra, família, moradia, trabalho, etc. Essa propagada prestação jurisdicional requer para tanto magistrados imparciais, céleres, independentes e que não se omitam frente à arrogância das autoridades públicas. É conditio sine qua non ao Estado Democrático de Direito uma magistratura com esse perfil e, ainda, comprometida com a preservação da dignidade e vida humana, especialmente no Brasil, país que subscreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Some-se a isso, que a Constituição vigente contempla como fundamento da República a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos (art. 1º, III, e art. 4º, II). Alvitra-se que, em países subdesenvolvidos onde a ignorância do povo6, fruto da carência de educação escolar, dificulta a cidadania, por conseguinte, dificulta os reclamos contra o afrontamento de direitos. Tal realidade facilita a inércia de juízes e tribunais que deixam de ser provocados e, consequentemente, deixam de perturbar instituições, governantes, empresários, políticos, ou qualquer cidadão, com as suas decisões. Em sequência ao raciocínio supra não se pode esquecer que também há tipos no exercício da função judicante que ficam muito apegados à formalística do processo do que à efetiva entrega da prestação jurisdicional. Também há aqueles que sonegam o interesse público em prol de interesses privados, que olvidam a cidadania e cometem ilícitos no exercício do seu mister, não podendo ficar isentos de responsabilização, de reprimendas, enquanto órgão estatal imbuído da prestação jurisdicional. Diante desses contextos o Legislador criou em 2004 o Conselho Nacional de Justiça como órgão centralizador também inibe o acesso à Justiça. A lentidão leva o cidadão a desacreditar no Poder Judiciário, o que é altamente nocivo aos fins de pacificação social da jurisdição, podendo até mesmo conduzir à desligitimação do poder.” Marinoni, Luiz G. Tutela Antecipada, julgamento antecipado e execução imediata da sentença. 6 Barbas (2006, p. 41), ao tratar sobre Estado e Modernidade Política, releva a questão da ignorância como um dos problemas do poder público: “Existem três problemas colocados de forma permanente ao poder político numa determinada comunidade: a violência, a pobreza e a ignorância. Sublinhe-se os seus opostos para compreender a íntima ligação entre ele: a paz, o bem-estar e a educação.” 43
do controle da magistratura com o fito de fiscalizar a atuação da máquina judiciária no país, mormente privilégios, morosidade, desídia, malversação de verbas, atos de improbidade.7
3. EVOLUÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PÓS 1988 A estrutura funcional do Poder Judiciário brasileiro está assente em parte nos mesmos moldes da legislação do período militar8, como a Lei Orgânica da Magistratura Nacional9 (Lei Complementar nº 35/1979), surgida no governo do General João Figueiredo10, anterior à Constituição democrática de 1988. Vero é que com a chegada desta Carta política ocorreram mudanças no Poder Judiciário, mas, lentamente, exceto a criação de novos tribunais federais e critérios de competência definidos no próprio texto magno. Contrariamente, os advogados do Brasil ganharam mais cedo um novo Estatuto da Advocacia, a Lei nº 8.906/1994, que lhes conferiu, além de deveres éticos-profissionais, prerrogativas muitas, amoldando as suas funções ao Estado Democrático de Direito e a Constituição que diz ser o advogado essencial ao funcionamento da Justiça (Art. 113). Também o Ministério Público logo cedo ganhou o seu atual estatuto, a Lei nº 8.625/1993, em face de sua nova feição trazida com a Constituição (Art. 127), tudo que o colocou em sintonia com a cidadania, cabendo-lhe a defesa da ordem jurídica nacional e do próprio regime democrático. Há anos, Thouret expressou “inexistir poder que atuasse mais diretamente, mais habitualmente, sobre os cidadãos do que o Poder Judiciário. Os depositários desse poder são aqueles sobre cuja escolha a nação tem maior interesse em velar.” (CARVALHO, 2014, p. 1). Na sequência desse raciocínio não é forçoso concluir que o Poder Judiciário no Brasil carecia de reformas para atender os anseios da sociedade. Todavia isto só veio ocorrer efetivamente no ano de 2004, mediante a Emenda Constitucional de nº 45 (EC 45/2004), que dentre outras cousas criou o Conselho Nacional de Justiça, como órgão de controle do Poder Judicial do Brasil. Assim, a EC 45/2004 é a gênese do CNJ. “O Direito Constitucional não é inerte, nem fixo, devendo acompanhar o avanço que, por acaso, venha a ocorrer o sistema social para o qual foi criado.” (DANTAS, 2017, p. 1). É importante ressaltar que, anteriormente ao CNJ só havia no Brasil o sistema interna corporis de controle existente em cada Tribunal do país (as suas corregedorias), mas que se mostraram ineficientes para coibir as distorções e vícios do Judiciário, por conseguinte, fortalecer o Estado Democrático de Direito. Aquele modelo de controle não se mostrou eficaz nem aos anseios da sociedade (a sociedade precisa confiar na Justiça), nem fortalecia a democracia do país, pela forma corporativa como alguns vinham tratando a coisa pública, inobservando os princípios constitucionais contidos na Constituição de 1988, e dessa realidade brotou o CNJ. Retornando a EC nº 45/2004, é certo que a mesma trouxe ao país a reforma do Judiciário, e no seu rastro, o Conselho Nacional de Justiça que passou a ser tratado pelo texto magno em seu 7 Na Roma antiga, segundo a Lei das XII Tábuas (Tábua Nona, 3): “Se um juiz ou um árbitro indicado pelo magistrado receber dinheiro para julgar a favor de uma das partes em prejuízo de outrem, que seja morto.” 8De 1964 até 1985. Um regime de poucas liberdades públicas, de restrita participação política, de afrontamentos aos direitos humanos, e de parcos instrumentos em prol da defesa da cidadania. A respeito do regime militar, vide de Hélio Silva, 1964 Vinte Anos de Golpe Militar, Editora LPm, 1985. 9 Conhecida como LOMAN a Lei Complementar nº 35/1979. 10 João Batista de Figueiredo último presidente do período militar (1979-1985). 44
Art. 103-B. Trata-se de um órgão colegiado do próprio Poder Judiciário, sediado em Brasília-DF, com atuação em todo o território brasileiro, que busca, por meio de planejamento, a coordenação, o controle administrativo e o aperfeiçoamento no serviço público da prestação da Justiça no país. É composto por quinze membros, com mandato de dois anos, entre magistrados, advogados, membros do Ministério Público e cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada. Com isso, buscou o legislador criar um órgão heterogêneo para evitar que os interesses dos magistrados sob investigação fossem julgados apenas por seus pares, longe de um tribunal de exceção11. Ao CNJ cabe disciplinar o funcionamento do Poder Judiciário brasileiro, e, dentre as suas competências previstas no §4º do supracitado dispositivo constitucional, destaca-se: I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II - Zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; [ ... ] VII - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.
O controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário, bem como, do controle éticodisciplinar de seus membros é exercido pelo CNJ, conforme se depreende da leitura do artigo 103B, §4º da Constituição brasileira12. Assim, a possibilidade de existir controle do Poder Judiciário pelo 11 A esse respeito transcreve-se extrato de decisão da Suprema Corte brasileira: “A EC 45/2004, ao instituir o CNJ, definiu-lhe um núcleo irredutível de atribuições, além daquelas que lhe venham a ser conferidas pelo Estatuto da Magistratura, assistindo-lhe o dever-poder de efetuar, no plano da atividade estritamente administrativa e financeira do Poder Judiciário, o controle do ‘cumprimento dos deveres funcionais dos juízes’ (CF, <art>. <103>-<B>, § 4º). [...] Vale enfatizar [...] que a instituição do CNJ tem suporte em diploma normativo revestido de autoridade constitucional e que foi promulgado sem qualquer conotação de índole casuística, dotado de eficácia geral e qualificado, quanto aos seus destinatários, por critério de evidente indeterminação subjetiva, circunstâncias essas que, aparentemente, descaracterizariam a alegação de que o órgão em questão subsumir-se-ia à noção de tribunal de exceção. ” (MS 28.712-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 6-5-2010, DJE de 11-5-2010). 12 CF/88. “Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo: [...];§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; III -receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IVrepresentar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; V- rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; VI- elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.” 45
Conselho Nacional de Justiça gerou uma série de debates e críticas, uma vez que em sua composição há membros não magistrados e escolhidos pelo Poder Legislativo. Com isso, surgiu a tese de que o Poder Judiciário brasileiro estava sujeito a um controle externo. Entretanto, tal questão foi superada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 3.367/DF, prevalecendo a tese de que se trata de um controle interno do próprio Judiciário, sujeito ao Supremo Tribunal Federal13. Inobstante esse entendimento final acerca do papel institucional do CNJ discorre-se no item abaixo da atuação desse Conselho tocante a celebração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, situação em que ao sentir deste autor houve uma invasão pelo CNJ da competência do Poder Legislativo e inovação em termos de política pública14. Não pode o CNJ invadir a competência do Poder Legislativo, pois é uma das características principais do Estado Democrático de Direito a separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário, ficando o Governo e a Administração pública subordinados ao respeito da Constituição e das leis, controlados por tribunais independentes (AMARAL, 2014, p. 84). Nesse diapasão, a intervenção do Poder Judiciário na seara de outros Poderes políticos do Estado quebra a autonomia política desses Poderes, subverte a ordem constitucional, revelando uma anomalia sob o aspecto jurídico e político, o que não é salutar ao regime democrático de direito e dá azo ao despotismo. A atual Constituição do Brasil não confere aos magistrados isoladamente, nem aos Tribunais, poderes para incluir no ordenamento jurídico inovações legislativas (em substituição ou modificação às leis vigentes), embora tenha o Poder Judiciário competência para atuar quanto ao controle constitucional, o que é diferente, dado que decisão nesse sentido há de excluir do sistema tão somente a aplicação da lei tida por contrária aos preceitos da Constituição. Aceitar pacificamente essa posição do CNJ, ou seja, esse seu “novel papel legislativo” é conviver com uma anomalia jurídica e política, e caminhar para uma forma de autoritarismo judicial (um perigo à democracia!). Amostra de anomalia do gênero, encontra-se quanto ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, como será visto a seguir.
13 A propósito, transcreve-se trecho daquela decisão do STF: “EMENTAS: [...]. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Emenda Constitucional nº 45/2004. Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Instituição e disciplina. Natureza meramente administrativa. Órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura. Constitucionalidade reconhecida. Separação e independência dos Poderes. História, significado e alcance concreto do princípio. Ofensa a cláusula constitucional imutável (cláusula pétrea). Inexistência. Subsistência do núcleo político do princípio, mediante preservação da função jurisdicional, típica do Judiciário, e das condições materiais do seu exercício imparcial e independente. Precedentes e súmula 649. Inaplicabilidade ao caso. Interpretação dos arts. 2º e 60, § 4º, III, da CF. Ação julgada improcedente. Votos vencidos. São constitucionais as normas que, introduzidas pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, instituem e disciplinam o Conselho Nacional de Justiça, como órgão administrativo do Poder Judiciário nacional. [...]. 4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal. Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu controle jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra “r”, e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito. (ADI 3.367, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 13-4-05, DJ de 22-9-06). 14 Sorj dá a noção de judicialização de política pública: “A noção de judicialização da política e do conflito social foi desenvolvida dentro de um campo de discussão mais limitado ao terreno da política, referindo-se à crescente expansão do Poder Judiciário e/ou dos métodos judiciais, especialmente o poder de revisão judiciária das ações do Legislativo e do Executivo.”(SORJ, 2001, p. 101-102). 46
4. O CNJ E O CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO A vigente Constituição em seu Art. 226, § 3º, reconhece, para fins de proteção do Estado a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento15. Também o Código Civil brasileiro, em seu art. 1.72316, reconhece como entidade familiar, a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradora e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Nota-se, a toda prova que, em momento algum a Constituição, tampouco o Código Civil, cuidaram da união entre pessoas do mesmo sexo. Ora, sem esforço de exegese vê-se que, à luz das normas supracitadas, inexiste amparo legal para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, como também, não há tocante a união estável entre elas. Em um Estado Democrático de Direito a ordem legal posta, o sistema legal em vigência, somente pode ser alterado, modificado, por lei em sentido formal e material, nunca por ato administrativo, como o fez o Conselho Nacional de Justiça tocante ao casamento civil de pessoas de mesmo sexo. Mediante um ato administrativo, como sendo a Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, surgiu autorização no país aos cartórios de casamento a celebrar casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Assim, por meio daquele ato administrativo, uma mera resolução17, ocorreu modificação no texto da própria Constituição e também do Código Civil, sem a participação do legislador, esse que teve as suas funções usurpadas pelo CNJ, tudo em um ato de força, flagrantemente inconstitucional, próprio de regimes despóticos. Essa ocorrência revela arranhaduras no regime democrático no Brasil em que o culto ao constitucionalismo é algo ainda distante. Alvitra-se aqui o magistério do Jorge Miranda que mostra como requisito do Estado de Direito a atribuição “ao Parlamento o primado da função legislativa”18, e não a outro órgão. A justificativa do CNJ de que houve decisão de tribunal superior do país (o STJ no RESP 1.183.378/ RS) no sentido de inexistir óbice legal ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mostra-se precária, pífia, e nitidamente afrontosa aos ditames da Constituição. Primeiro, porque matéria de Direito Civil (aí o casamento) é de competência legislativa somente da União, conforme Art. 22 da Constituição, e não se refere ao Poder Judiciário; Segundo, porque na hipótese de controle de constitucionalidade caberia ao Poder Legislativo, dentro da regularidade democrática e parlamentar, votar projeto de lei modificadora para atender ao anseio social; e em Terceiro, porque o art. 103-B da Constituição não atribui
15 CF/88 – “Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [“omissis”]; § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. 16 Código Civil –”Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. 17 Segundo a doutrina brasileira de Direito Administrativo, “Resoluções são atos administrativos normativos expedidos pelas altas autoridades do Executivo (mas não pelo chefe do executivo, que só deve expedir decretos) ou pelos presidentes de tribunais, órgãos legislativos e colegiados administrativos, para disciplinar matéria de sua competência específica”. (MEIRELLES, 2005, p. 182). 18 Miranda (2005, p. 108-109), que aqui transcrevemos: “ II- Sem entrar aqui na análise que da formação e evolução das instituições quer dos problemas atuais que suscitam – o que excederia o escopo deste volume – devem figurar-se como postulados ou requisitos do Estado de Direito (passíveis de graduação e de conformação específicas consoantes os sistemas jurídicos e políticos) os seguintes: [“omissis”] ; b) a pluralidade de órgãos governativos, independentes ou interdependentes quanto à sua subsistência, e com funções distintas, competindo, nomeadamente, ao Parlamento o primado da função legislativa.” 47
competência ao CNJ para legislar19. O CNJ não existe para legislar, em momento algum os eleitores brasileiros delegaram poderes aquele Conselho para legislar, e por isso inaceitável querer fazê-lo, com já o fez, rasgando a Constituição. Mais ainda. O Supremo Tribunal Federal (STF), não “legalizou”, não criou, tampouco regulamentou o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, porque não é essa a sua função. O que fez o STF foi reconhecer como constitucional a união homoafetiva como união estável (por meio das decisões tomadas no julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF), o que à primeira vista é correlato, contudo, diferente. O restante, ou seja, o direito de pessoas do mesmo sexo contraírem casamento civil ficou ao Poder Legislativo (Congresso Nacional) para fazer. O fato de ter sido declarada constitucional a união homoafetiva, não implica, obrigatoriamente, que seja autoaplicável ao matrimônio civil, sobretudo, quando inexistia, e até hoje inexiste, lei a tratar a matéria (a esse respeito vide os exemplos legislativos postos no item 7 abaixo). Converge ao raciocínio deste autor, o fato de que anteriormente a pré-falada Resolução do CNJ, já tramitava no Congresso Nacional, desde 2011, um projeto de lei da Senadora Marta Suplicy (PT-SP)20 no sentido de que a união estável entre homossexuais fosse reconhecida pelo Código Civil para fins de casamento. O papel do legislador, in casu, foi usurpado e o então Presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, ao justificar da existência da Resolução do CNJ de nº 175, de 14 de maio de 2013, disse à imprensa ser desnecessário o papel do legislador, cujas palavras são aqui transcritas: Ao pôr em debate a resolução, Joaquim Barbosa alertou que não faria sentido o CNJ aguardar o Congresso apreciar o tema para fazer valer a decisão tomada pelo Supremo em maio de 2011. ‘O Conselho está removendo obstáculos administrativos à efetivação de decisão tomada pelo Supremo e que é vinculante (precisa ser seguida por todo o Judiciário do país)’, disse o presidente do CNJ. ‘Vamos exigir aprovação de nova lei pelo Congresso Nacional para dar eficácia à decisão que se tomou no Supremo? É um contrassenso’. (O PAPEL DO LEGISLADOR, 2013, p. 8, grifo nosso).
Contrariamente à posição do Ministro Joaquim Barbosa, o Ministro Gilmar Mendes, também integrante do STF, ao ser entrevistado disse:
19 CF/88 – “Art. 103 – B . [“omissis”] ; “§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV - representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; V - rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; VI - elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.” 20 Projeto de lei do Senado nº 612/2011. 48
A decisão do CNJ, no entanto, foi vista com ressalva por ministros do STF, parlamentares e pelo Ministério Público Federal (MPF). O ministro Gilmar Mendes observou que, no julgamento realizado há dois anos, o Supremo não autorizou o casamento civil entre homossexuais. “Pelo que me lembro, o Tribunal só tratou da questão da união estável, mandou aplicar a união estável. Ficou muito claro isso”, disse Mendes, em entrevista, ontem, antes da sessão da 2ª Turma do STF. (O PAPEL DO LEGISLADOR, 2013, p. 8, grifo nosso).
Nessa esteira, a pré-falada Resolução do CNJ é exemplo típico de invasão de competência desse Conselho, porque matéria de Direito de família no Brasil somente por lei (em sentido formal e material) cabe ser tratada, nunca por ato administrativo, como é uma resolução. Em repúdio à Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, o Senado Federal do Brasil, por iniciativa do Senador Magno Malta (PR - ES), se insurgiu contra tal ato mediante a propositura do projeto de decreto legislativo nº 106, de 2013 com o fito de sustar aquele ato do CNJ, estando hoje o dito projeto ainda em trâmite naquela casa legislativa. Entende aquele parlamentar que o pré-falado ato do CNJ usurpou competência do Poder Legislativo, violou o princípio da separação dos poderes políticos do Estado, promoveu inovação no ordenamento legal do país, ao extrapolar os limites das suas funções constitucionais21, não podendo por isto subsistir22. Estranhamente o Ministério Público não adotou medidas processuais em face da Resolução em alude, embora a ele compete a defesa da legalidade, da ordem jurídica e do regime democrático (Art. 127, caput, da CF/88). Aclara-se que a Constituição de 1988, em seu art. 49, XI, atribui exclusiva competência ao Parlamento do país (entenda-se o Congresso Nacional) para “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros Poderes”, daí o respaldo jurídico-constitucional à propositura do projeto de decreto legislativo acima mencionado23, que visa sustar a Resolução nº 175, de 14 de Maio de 2013, do CNJ – é repetido. 21 O Senador Magno Malta (PR – Espírito Santo) usou da palavra na tribuna do Senado brasileiro, em 17.05.2013, para assim, criticar a conduta do CNJ tocante a Resolução nº 175/2013: “ O CNJ foi criado para poder policiar as ações éticas dos magistrados. Quando o CNJ toma essa posição que não lhe é devida ele cospe, pisa e rasga o Código Civil Brasileiro. Repudio veementemente a decisão tomada pelo CNJ quando ordena aos cartórios, como se fosse uma lei que se cumpra daqui para a frente, e que se façam os casamentos homossexuais. Chegamos ao fim do mundo. Estou entrando com um projeto de resolução para sustar essa decisão descabida, inconsequente, do CNJ”. (CAVALCANTI, 2013). 22 Sobre o afrontamento constitucional por parte do CNJ ao autorizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, reproduz-se aqui a crítica de Reinaldo Azevedo: “Quando um órgão criado para funcionar como controle externo do Judiciário decide assumir o papel de legislador, algo de muito ruim está em curso. E, vocês verão, desta vez, prevejo que Renan Calheiros (PMDB-AL) e Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), respectivamente presidentes do Senado e da Câmara, não vão reagir porque, afinal, se trata de comprar uma briga com um setor bastante influente na imprensa. [...] Ao longo do tempo, as opiniões, os valores, as escolhas podem ir mudando. Certamente há hoje mais gente favorável no Brasil ao casamento gay do que há 10 ou 20 anos. Até porque o lobby é forte e poderoso. O que é muito ruim — para gays, héteros, brancos, pretos, altos, baixos, anões, míopes, belos, feios, remediados, pobres, ricos, amantes de comida japonesa e gente que odeia comida japonesa — é que se mandem as leis, a Constituição e as instituições às favas, ainda que sob o pretexto de fazer justiça e proteger as minorias.” (AZEVEDO, 2013, p. 1). 23 A JUSTIFICAÇÃO da proposta do decreto legislativo nº 106, de 2013 encontra-se assim vasada: A Resolução nº 175, de 2013, do Conselho Nacional de Justiça, proíbe que as autoridades competentes recusem-se à realização de atos destinados ao casamento entre pessoas de mesmo sexo. Acontece que esse ato normativo usurpa a competência do Poder Legislativo, ao extrapolar os limites do poder de regulamentar e esclarecer a lei. Contra esse tipo de esbulho, a Constituição Federal atribuiu ao Congresso Nacional a competência exclusiva para sustar os efeitos de atos normativos violadores do princípio constitucional da separação dos Poderes, conforme seu art. 49, V. É importante ressaltar que o referido dispositivo também se aplica a atos do Conselho Nacional de Justiça, quando estes possuírem conteúdo meramente regulamentar. Isso, porque a finalidade do supracitado preceptivo é permitir que o Congresso Nacional insurja-se contra atos normativos que, a pretexto de explicitar e esclarecer as leis vigentes, promovem verdadeiras inovações no ordenamento, em uma conduta de usurpação das atribuições do Poder Legislativo. Além do mais, no caso em tela, o fato de o Conselho Nacional de Justiça integrar a estrutura do Poder Judiciário não afasta a aplicação do art. 49, inciso V, da Constituição Federal. É que os órgãos do Poder Judiciário desempenham, de forma atípica, funções administrativas, quando, por exemplo, editam atos administrativos sem cunho jurisdicional. Nesses 49
Imagina-se o caos na sociedade se doravante modificações no Código Penal, na legislação tributária, e mesmo nos Direitos Fundamentais dos brasileiros, passarem a ser modificados por aquela via adotada pelo CNJ. Em tal hipótese não haverá segurança jurídica em detrimento do regime democrático e do bem-estar dos cidadãos, e longe se estará de atingir a sociedade justa idealizada por John Rawls.
5. A SOCIEDADE JUSTA NA VISÃO DE RAWLS O filósofo político estadunidense Jonh Rawls argumenta em sua obra, Uma Teoria da Justiça (1971), o que seria uma sociedade justa. Nesse sentido pertinente a lição de Ferreira da Cunha (2013, p. 218): E Rawls, neokantiano, renova o contrato social num modelo hipotético (em que avulta o <<véu de ignorância>> sobre a <<posição originária>> de cada um, o que levará cada qual a, preventivamente, conceber uma sociedade em que qualquer pessoa tenha os mesmos direitos e oportunidades) e acaba por justificar a um tempo os direitos e as liberdades e a desigualdade com a base no mérito. A sua obra magna é A Theory of Justice.
Em linhas gerais, Rawls discorre que uma sociedade justa é aquela onde há uma cooperação vantajosa para todos, além de igualdade de oportunidades também para todos. Com isto, Rawls (2000) renova o contrato social, “e acaba por justificar a um tempo os direitos e as liberdades e a desigualdade com a base no mérito”, nas palavras acima de Ferreira da Cunha. Busca Rawls com a sua teoria conciliar liberdade e igualdade para edificar e manter uma sociedade justa, sobretudo no tocante a condição econômica. Para ele nenhum indivíduo deve ser mais livre do que o outro e não ter mais oportunidade do que o outro24. Mais sobre o pensamento de Rawls: que a excessiva desigualdade econômica entre ricos e pobres gera efeitos negativos, porque alguns não terão acesso a quase nada (v.g. saúde, justiça, alimentação, vestuário, moradia [...] e outros terão acesso a tudo, e essa desigualdade económica pode dar aos ricos a possibilidade de oprimir os desfavorecidos (pobres) e influenciar os governos no tocante as suas múltiplas decisões; que a posição que cada indivíduo ocupa na sociedade deve resultar dos seus próprios esforços (dos seus méritos), e não de fatores externos dos quais não foi responsável (v.g. uma herança) (BLOGUE PORTUGUÊS, 2018, p. 10, grifo do autor).
casos, o Poder Judiciário está a atuar como uma instância da Administração Pública. De fato, a função administrativa, apesar de ser típica do Poder Executivo, também é realizada, de modo atípico, no âmbito dos demais Poderes. Nesse contexto, o art. 49, inciso V, da Constituição Federal permite a sustação de qualquer ato normativo administrativo que exorbite os limites do poder regulamentar, ainda que proceda do exercício atípico da função administrativa por órgão do Poder Judiciário, como sucede na espécie. Acresça-se que o ato normativo mencionado no art. 49, inciso V, da Constituição Federal não se restringe aos decretos, mas alcança qualquer ato normativo administrativo que desrespeite os limites da lei. A propósito, o mestre Hely Lopes Meirelles mencionava, como exemplos de atos administrativos normativos, “as resoluções, deliberações e portarias de conteúdo geral”. Não se esqueça de registrar que a Constituição Federal foi enfática em assegurar ao Congresso Nacional as ferramentas destinadas a reprimir atos normativos usurpadores da função legislativa. Com efeito, o art. 49, inciso XI, é explícito em atribuir, com exclusividade, ao Congresso Nacional a competência para “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”. Como se vê, o art. 49, inciso XI, da Carta Magna seria suficiente, por si só, para respaldar o presente Projeto de Decreto Legislativo, que busca sustar ato normativo expedido pelo Conselho Nacional de Justiça que esbulhou a competência legislativa do Congresso Nacional. Portanto, seja sob a leitura finalística do inciso V, seja ao impulso do claríssimo inciso XI do art. 49 da Constituição Federal, a Resolução nº 175, de 2013, representa um ato administrativo normativo que, por invadir o terreno de competência do Poder Legislativo, deve ser sustado, razão por que convoco o apoio dos nobres Pares para a aprovação do presente Projeto de Decreto Legislativo (MALTA, 2018). 24 Para uma visão ampla da obra de Rawls cf. o blogue português FILÓSOFOS (lrsr 19583.blogspot.pt). 50
Três princípios basilares são encontrados na Teoria de Rawls: I) O princípio da liberdade igual (significa que nenhum indivíduo deve ter mais liberdade que outros para conduzir a sua vida e ambições pessoais); II) o princípio da igualdade de oportunidade (o Estado deve promover a igualdade de oportunidades) e; III) o princípio de diferença (corresponde ao modo que o filósofo entende a equidade, buscando uma distribuição dos bens básicos). Ao lado desses princípios não se pode olvidar que sufrágio, soberania popular, e democracia constam do pensamento de Rawls, sem o que impossibilitaria a vontade da maioria e a equidade no tratamento25. O quadro a seguir visa facilitar a compreensão do leitor quanto ao pensamento de Rawls, notadamente a respeito dos seus princípios basilares de uma sociedade justa. Quadro 1 - Os princípios de justiça ou de uma sociedade justa
PRINCÍPIO DA LIBERDADE IGUAL PARA TODOS Todos temos direito a conduzir as
PRINCÍPIO DA IGUALDADE PRINCÍPIO DA DIFERENÇA OU DA DE OPORTUNIDADES DISCRIMINAÇÃO EQUITATIVA Há pessoas favorecidas pela
É injusto que muitos membros de uma
nossas vidas de acordo com a nossa natureza no que respeita ao talento sociedade sejam impedidos, por fatores vontade. Mas a minha liberdade tem para atividades intelectuais, físicas pelos quais não são responsáveis, de alcançar de ser compatível com a dos outros. e artísticas. Muitas delas também os seus objetivos. O principal obstáculo é a É injusto que umas pessoas tenham tiveram a sorte de encontrar boas desigualdade económica, ou seja, condições mais liberdade do que outras. Por condições sociais e económicas económicas desfavoráveis. Devemos tentar isso, cada pessoa deve ter um máximo para conquistarem um lugar con- corrigir os efeitos dos acasos naturais e de liberdade que seja compatível com fortável ou de destaque na socie- económicos. Como? Os que tiveram sorte idêntico grau de liberdade de todos dade. Outras são desfavorecidas na lotaria natural e social e ascenderam a os outros. O princípio da igual liber- ou pouco favorecidas pela nature- uma boa posição social e económica devem dade para todos refere-se a liberdades za quanto a talento e capacidade, contribuir para benefício dos que não foram básicas como a liberdade de voto, de além de nascerem em meios so- favorecidos. Qual o meio? Os impostos que associação, de religião, de expressão, ciais e económicos que impedem permitem indiretamente assistir e subsidiar e a direitos como o direito à integri- o acesso a uma razoável ou boa quem precisa de ajuda para tentar melhorar dade física, à propriedade e a um tra- posição social.
a sua condição social.
tamento legal justo.
25 Nesse sentido Freitas do Amaral leciona: “Há pelo menos duas coisas que não se pode deixar de reconhecer ao falar de John Rawls: a inteligência, profundidade e originalidade do seu pensamento político; e o humanismo altruísta da sua maneira de ser, porque, nascido em berço de ouro, e tendo chegado a professor de uma das mais famosas universidades do mundo – Harvard –, passou a vida inteira a procurar justificar, no plano das ideias, a necessidade de colocar o Estado democrático (e as instituições privadas a isso dedicadas) a eliminar a concentração da riqueza nas mãos de poucos, dispersando-a por muitos, e a defender a obrigação do Estado e da Sociedade Civil de prestar apoio e proteção social aos mais desfavorecidos. Começamos por concordar com os pressupostos ou postulados da sua teoria e, em especial, com o ponto seguinte: - na nossa época – encontrado um fundamento aceitável para obedecer à autoridade legítima; conquistados os direitos do Homem; aceite o princípio da soberania popular e, com ele, a democracia baseada no sufrágio universal; e eliminadas as desigualdades jurídicas mais gritantes, como as baseadas em privilégios de casta, sexo, raça ou cor da pele [grifamos] –, o principal problema político que continua por resolver é o das grandes desigualdades econômicas e sociais, e respectivas consequências”. (AMARAL, 2012, p. 727-728, grifo nosso). 51
O princípio da liberdade igual ou
Uma sociedade justa é aquela
Haverá sempre pessoas em melhor
do direito a iguais liberdades básicas em que a posição social dos indi- situação social do que outras, mas a todos é o mais importante. A promoção da víduos deriva das suas escolhas e deve ser dada a oportunidade de melhorar a igualdade de oportunidades e a redu- não do acaso ou da sorte. O princí- sua vida. O princípio da diferença defende ção da desigualdade económica não pio da igualdade de oportunidades pre- que a distribuição da riqueza se deve fazer são legítimas se violarem o direito à tende garantir que apenas as nos- de forma igualitária, exceto se as desigualigual liberdade.
sas escolhas e o esforço pessoal, e dades beneficiarem os menos favorecidos não outros fatores, sejam decisivos e lhes derem a oportunidade de melhorar a para alguém realizar as suas ambi- sua situação. É injusta a sociedade em que ções no plano social. No acesso às as vantagens dos mais favorecidos não são profissões mais valorizadas, todos benéficas para mais ninguém. os cidadãos devem, à partida, estar em igualdade de condições.
Fonte: Rodrigues, 2013, p. 156.
Frisa-se que a teoria de Rawls também é conhecida pelo nome de “liberalismo social” e ao referirse ele ao contrato social postula que este deva ser constituído com base em uma total imparcialidade dos indivíduos.
6. CRÍTICA DA ATUAÇÃO LEGISLATIVA DO CNJ À LUZ DE RAWLS Ao tratar a tipologia dos regimes políticos, Barbas Homem leciona: i) que a democracia se caracteriza pelo poder que reside na comunidade; ii) que dentre os seus fins, Justiça, paz, segurança e bem comum; iii) que dentre os seus valores a igualdade e a cidadania; iv) que como causa de decadência da democracia o incumprimento dos seus fins (AMARAL, 2012, p. 57). Como já dito acima o CNJ ao usurpar a função do legislador contrariou princípios jurídicos e políticos de uma democracia, e também a Teoria de Rawls. Trata-se aqui, por ser mais polêmico, o caso da autorização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Critica-se a via de criação desse direto e não o seu conteúdo. Invita-se ao leitor refletir que o dito Conselho ao autorizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, por meio de um ato administrativo, in casu, a Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, não representou por aquele ato o cumprimento da vontade da maioria da sociedade. Isso só ocorreria pela via legislativa, onde os parlamentares, legitimados pelo sufrágio, representariam a vontade popular no sentido de autorizar ou não o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Daí, ser aquela conduta do CNJ contrária ao ideal de democracia, que também é prestigiada por Rawls em sua Teoria da Justiça. Ao lado disso, a igualdade como valor democrático foi afrontado pelo CNJ. Bem é de ver que um grupo social determinado (ou seja, os homossexuais) recebeu um tratamento especial, exclusivo e diferenciado (alguns podem até tachar de uma benesse), que foi a aquisição de direito fora dos moldes legislativos e constitucionais, quando haveria de conquistá-lo por meio de lei (em sentido formal e material), como ocorre ordinariamente em relação aos demais grupos da sociedade, a exemplo da Lei Maria da Penha, que trata da violência doméstica contra as mulheres, e que contou com amplo debate da sociedade, incluindo
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o Legislativo26. Repisa-se que somente por lei, apreciada pelo parlamento, poderia ser criado o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, nunca por mero ato administrativo do Poder Judicial. Nas democracias maduras, e sólidas, magistrado não cria lei, faz sim a sua aplicação e interpretação, zelando pelos preceitos constitucionais. Essa subversão jurídica e política do caso brasileiro, aqui em foco, contraria princípio consagrado por Rawls em sua Teoria da Justiça, como sendo o Princípio da liberdade igual. Dito princípio significa que nenhum indivíduo deve ter mais liberdade que outros para conduzir a sua vida e ambições pessoais. E mais liberdade para conduzir a sua vida (e ambições pessoais) houve aos homossexuais em relação aos demais grupos da sociedade, porque lhes autorizaram o casamento civil através de mero ato administrativo, autorização totalmente divorciada de uma produção legislativa, onde não prevaleceu a vontade da maioria popular (pela representação dos parlamentares), essa que é a essência da democracia. Caso, todavia, houvesse a outorga daquele direito pela via do Poder Legislativo, estaria o grupo social respaldado com plena segurança jurídica, porque o seu direito viria da legitimidade da função dos parlamentares, representando a vontade da maioria popular. Em resumo, a sociedade brasileira não autorizou o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, como deveria ocorrer em uma verdadeira democracia. É de bom tom lembrar que mercê do princípio da legalidade27, disposto na Constituição, “Ninguém poderá fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei “(art. 5º, II), e atualmente não existe lei no Brasil, nem nunca existiu, a permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo28. Conforme antes exposto, o CNJ detém atribuição de controle do Poder Judiciário brasileiro e tal controle é de índole interna, isto é, um controle em que não prejudica a autonomia e a independência desse Poder, mas sim, o organiza. Tal característica foi reafirmada quando a Corte máxima do Brasil (o STF) julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade (nº ADI 3365,) ajuizada pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), que entendia ser o CNJ um órgão de controle jurisdicional, por isso inconstitucional, porque iria de encontro a autonomia e independência de julgar típica do próprio Poder Judiciário. 26 A Lei nº 11.340/06 é conhecida como Lei Maria da Penha. “O processo de formação legislativa da Lei Maria da Penha foi um dos mais democráticos vistos até hoje no Brasil, visto que este processo teve a participação de movimentos feministas de todas as regiões do país, além de um grande apoio internacional. Uma proposta de prevenção à violência doméstica elaborada por um conjunto de ONGs (Advocacy, Agende, Cepia, Cfemea, Claden/IPÊ e Themis) foi apresentada, e depois de várias discussões e reformulações coordenadas pela Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), o texto legal foi enviado pelo Governo Federal ao Congresso Nacional, onde foi aprovado por unanimidade nas cinco regiões do país onde houve audiências públicas realizadas nas Assembleias Legislativas e que contaram com a participação de entidades da sociedade civil, parlamentares e a SPM. Como podemos observar, a espera de uma lei que realmente fosse ajudar as mulheres vítimas da violência doméstica foi finalmente concretizada, podendo atender tanto mulheres da classe alta quanto mulheres carentes.” (CABETTE, 2013, p. 1). 27 A respeito da legalidade necessária ao Estado de Direito assim encontra-se na Teoria da Justiça de Rawls: “Os limites de nossa Liberdade são incertos. E na medida em que isso acontece, o exercício da liberdade fica limitada por um temor razoável. O mesmo tipo de consequências decorre se casos semelhantes não são tratados de maneira semelhante, se o processo judicial não tem a honestidade indispensável, se a lei não reconhece a impossibilidade de adimplemento como defesa e assim por diante. O princípio da legalidade [grifamos] tem, então, um fundamento firme na decisão consensual de pessoas racionais que querem estabelecer para si mesmas o grau máximo de liberdade igual. Para terem confiança na posse e exercício dessas liberdades, os cidadãos de um sociedade bem-ordenada geralmente querem que o estado de direito seja mantido.” E continua Rawls na mesma obra: “Na aplicação do princípio da legalidade, devemos ter em mente a totalidade de direitos e deveres que definem as liberdades e, de acordo com eles, harmoniza as reivindicações.’ (RAWLS, 2000, p. 262- 266). 28 Ao lado disso, a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, preconiza que “Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.” (Artigo VII). 53
Embora a Constituição refira que o CNJ possui atribuição apenas administrativa e disciplinar contra quem está sob a sua hierarquia, o que foi confirmado pelo STF (vide julgamento da ADI 3365), tal mandamento não parece ser respeitado pelo aludido órgão administrativo, porque o mesmo vem tomando exóticos caminhos, a partir das resoluções que emana, e que são impostas à sociedade brasileira, a exemplo da multicitada Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Tomando-se a sequência dos 4 (quatro) estágios de que fala Rawls, em sua Teoria da Justiça, essa atividade legislativa do CNJ, usurpando o papel do legislador, atribuindo direito a certo e exclusivo grupo social (por via oblíqua), não pode ser tida como justa porque corrompe o que ele chama do “ véu da ignorância”. Elemento essencial da Teoria de Rawl é o “véu da ignorância” ao lado da Justiça e Equidade. Em face dele o indivíduo, na posição original, ao escolher os princípios daquilo que considera justo, não possui a noção de como estará socialmente depois dessa escolha. Ou seja, o “ véu da ignorância” é o desconhecimento de cada indivíduo quanto a sua condição social (e também econômica) no momento em que se estabelecem regras para o funcionamento futuro de uma sociedade pretendida como justa. Ora, isso implica em participação do cidadão nas escolhas daquilo que se decidirá como justo ao corpo social, o que em uma democracia como a implantada no Brasil se dá por meio da representação parlamentar, ou até mesmo por plebiscito, tudo o que não houve, no caso em foco, quando o CNJ, arbitrariamente, e à revelia da sociedade, ferindo a ordem constitucional, concedeu direito aos homossexuais de celebrar casamento civil por um mero ato administrativo. Nas próprias palavras, Rawls (2000, p. 2017) “[...] as leis e políticas justas são aquelas que seriam estabelecidas no estágio legislativo”, o que não houve no Brasil, tocante ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A determinação do CNJ em alude beneficiou um grupo social determinado (homoafetivos), mas deixou todo o restante da sociedade brasileira a conviver com uma regra de direito que ela não escolheu, e que talvez não represente sequer o anseio da maioria (nessa hipótese, gera-se uma incômoda situação social), portanto, não se respeitou a equidade para tal escolha.
7. O CASAMENTO HOMOAFETIVO AUTORIZADO PELO CNJ À LUZ DE KANT Considerando que Rawls, em sua teoria usa do pensamento kantiano, faz-se abaixo uma abordagem do pensamento de Kant tomando os Princípios da Liberdade e Igualdade. O Princípio da Liberdade está ferido naquela deliberação do Conselho Nacional de Justiça sobre o casamento de homoafetivo, pois segundo a lição de Kant (1993, p. 104), ao tratar do direito misto ou do direito pessoal: Este direito é o da posse de um objeto exterior como de uma coisa e de seu uso como de uma pessoa (O Meu e o Teu que concernem a esse direito é tudo que se refere à família; e à relação, neste estado é o da comunidade de seres livres que pela influência mútua – de uma pessoa sobre a outra – segundo o princípio da liberdade exterior – causalidade - , uma sociedade de membros de um todo – entre pessoas que vivem em comunidade – o que se chama família). A maneira de adquirir esse estado não ocorre nem por um fato arbitrário (facto), nem por simples contrato (pacto), mas sim por uma lei (lege). Esta lei, pelo fato de não ser somente um direito contra uma pessoa, como também e ao mesmo tempo uma posse de uma pessoa, deve ser um direito superior a todo direito real e pessoal, a saber: o direito da humanidade em nossa própria pessoa; cuja consequência é uma lei natural facultativa em cujo favor é possível semelhante aquisição.
Continuando, Kant (1993, p. 105), ao tratar do Direito Doméstico como direito real-pessoal, distinguido em Direito Matrimonial, Direito dos pais e Direito do dono da casa ou chefe de família, toma com ponto de partida a posição original do commercium sexuale como “o uso mútuo dos órgãos e das faculdades sexuais de um indivíduo de sexo diferentes (usus membrorum et facultatum sexualium 54
alterius), o qual pode ser natural, tendo em vista o fim da procriação ou contra a natureza (quando ocorre entre pessoas do mesmo sexo ou com animal estranho à espécie humana). A relação sexual, assim, tanto pode ser natural – ou segundo a natureza animal pura (vaga libido, Venus vulgivaga, fornicatio), ou segundo a lei, sendo esta última o casamento ou matrimonium, isto é, “a união de duas pessoas de sexo diferente para a posse mútua, durante toda a vida, de suas faculdades sexuais” (Kant, 1993, p. 106). Considerando-se a posição original inserida no “véu da ignorância” a que se refere Rawls, afastados, portanto as eventuais circunstâncias históricas ou interesses individuais, se deve compreender que o chamado casamento de pessoas do mesmo sexo não pode ser reconhecido como matrimônio, ou matrimonium, dado que é injusta, pois transgride o Princípio da Liberdade. E por quê? Encontra-se a resposta em Kant (1993, p. 106): Porque o uso natural que um sexo faz dos órgãos sexuais do outro é um gozo (fruito) para o qual uma das partes se põe à disposição da outra. Neste ato o próprio homem se converte em coisa, o que repugna o direito de humanidade em sua própria pessoa. Isto somente é possível sob a condição de que quando uma das pessoas é adquirida pela outra, como pudesse sê-lo uma coisa, a aquisição seja recíproca; porque encontra nisto sua vantagem própria e restabelece assim sua personalidade. Mas, a aquisição de um certo membro no homem equivale à aquisição de toda pessoa – porque a pessoa forma uma unidade absoluta. De onde se conclui que a cessão de um sexo para uso de outro, são não somente permitidas sob a condição de matrimônio, como também não são possíveis senão sob essa única condição.
Ou seja, a condição de uma reciprocidade de igualdade e liberdade originais, cujo estado não ocorre nem por fato, nem por pacto, mas, exclusivamente, por lege. Nesse passo, a exigência de uma previsão legal do casamento está, justamente, na própria condição humana inserida no matrimônio, a saber, tratar-se do direito matrimonial de um direito misto ou de direito real-pessoal. A ser assim, a injustiça do casamento entre pessoas do mesmo sexo sem previsão legal e, portanto, sem os trabalhos legislativos próprios, está em que o Princípio da Liberdade e da Igualdade terminam como transgredidos dada a própria natureza do matrimônio em sua posição original. Poder-se-ia indagar se o matrimônio não está relacionado com o afeto, o qual pode ser verificado entre pessoas do mesmo sexo ou se o matrimônio não se pode dar com fins outros além da procriação e da coabitação, conforme se tem observado na sociedade atual. Aí encontra-se um argumento que transgride o fundamento último da Teoria de Jonh Rawls quanto ao “véu da ignorância”, pois a se desvelar o véu os argumentos guardam em si intencionalidades interessadas, e não apenas desinteressadas, no sentido de uma Justiça alheia à empiria de sociedade historicamente localizadas. Voltando a Kant (2013), conveniente lembrar que ele é homem do século XVIII, quando o individualismo e a luta contra as formas de despotismo foram marcas daquela centúria, e de cujos ventos políticos resultaram na Revolução Francesa de 1789. Um estudo mais severo sobre o modelo jurídico liberal recai em Kant, portanto. Ao lado disso, ele inclina-se para um estudo do Direito e da Moral29. Todavia, aqui é abordado o poder de legislar segundo a sua visão, uma vez que a influência de Kant no Brasil não vem de hoje, segundo leciona Adeodato (1996, p. 36): Sobre os pós e neokantinianos, a própria denominação testemunha o papel da filosofia de Kant. E, no Brasil, sua influência não vem de hoje, pois a ligação de nossas teorias e prática jurídicas com o pensamento alemão e especificamente com Kant remonta pelo menos ao século passado.
29 A esse respeito a obra de Kant: Fundamentos da Metafísica dos Costumes. 55
Na sua obra, a Doutrina do Direito, afirma Kant (1993, p. 152): “O poder legislativo somente pode pertencer à vontade coletiva do povo. E, visto que dele deve proceder todo direito, não deve absolutamente poder causar injustiça a ninguém por suas leis”. Continuando a tratar sobre o poder de legislar, considera Kant (1993, p. 152) que “a vontade concordante e conjunta de todos, enquanto cada um decide para todos e para cada um, isto é, a vontade coletiva do povo, pode unicamente ser legisladora”. Nesse passo, Kant considera que o direito deve vir do Legislativo, e não de outra instituição. Resta pois, evidente, que da atividade parlamentar se materializa a vontade coletiva do povo e essa vontade há de ser legislada, criando direitos. Ressalta-se que essa atividade legislativa há de ser respaldada pelo sufrágio, que para ele – Kant - por si só constitui o cidadão. Diante do caso brasileiro onde o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo se deu através de mero ato administrativo do Conselho Nacional de Justiça, e não por uma produção legislativa, não é difícil concluir que tal situação colide com o pensamento kantiano supra, sobretudo porque não prevaleceu a vontade coletiva do povo pela representação dos parlamentares eleitos em sufrágio. Daí, falece legitimidade àquele Conselho para criar direitos, sendo a multicitada Resolução do CNJ nº 175, de 14 de maio de 2013, uma anomalia jurídica e política, repetimos (!). A realidade das democracias de Portugal e França deixam ver que em seus sistemas jurídicos existe o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas que conferido por lei oriunda dos seus respectivos parlamentos, e não por ato administrativo de um órgão estatal qualquer.
8. OS EXEMPLOS LEGISLATIVOS DE PORTUGAL E FRANÇA É cedido que o Direito brasileiro nasceu em berço lusitano. Muitas de suas legislações e institutos jurídicos foram aplicadas no Brasil, até após a independência de Portugal. Exemplo disso são as Ordenações Filipinas que tiveram aplicação no Brasil até o advento do seu primeiro Código Civil em 191730. Todavia, nem sempre os bons exemplos foram seguidos pelos brasileiros. In casu, Portugal como país inserido em uma realidade de Europa ocidental, onde se privilegia a proteção dos direitos humanos, cuidou do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo antes do Brasil, mas o fez acertadamente pela via legislativa, alterando o seu Código Civil. Diferentemente, o Brasil adotou esse novo casamento civil por meio de mero ato administrativo, ao sentir deste autor maculado de inconstitucionalidade, como já dito acima. Por meio da Lei nº 9/2010, a Assembleia da República permitiu o casamento civil ente pessoas do mesmo sexo em Portugal, alterando com isso os artigos 1577º, 1591º e 1690º do Código Civil português. Registra-se o fato de que Portugal, o mais antigo país da comunidade lusófona, vive há mais de quarenta e quatro anos sob o pálio de uma democracia, melhor dizendo, de um Estado Democrático de Direito, onde já se criou na sociedade uma cultura de respeito à lei, à Constituição, e às instituições públicas como um todo, dado ao nível educacional atingido pelo povo ao longo desses anos de democracia e de ensino público de qualidade. O exemplo português mostra claramente que houve participação da sociedade naquela inovação legislativa, que houve cumprimento da vontade da maioria, dado que a Lei em comento fora votada pelos seus representantes (deputados) no Parlamento da República. Outrossim, mostra respeitabilidade 30 Correia e Sciascia (1953, p. 14) a esse respeito afirmam: “As Ordenações Filipinas foram confirmadas e revalidadas pela lei de 20 de janeiro de 1643, quando Portugal reconquistou a sua independência da Espanha (1640) e vigoraram no Brasil até o ano de 1916. O Código Civil Brasileiro, em vigor a partir de 1º de janeiro de 1917, foi redigido de acordo com os princípios romanísticos hauridos nas Ordenações Filipinas e segundo o sistema dos mais modernos códigos (sobretudo o Burgerliiches Gesetzbuch) diretamente inspirados no direito romano.” 56
ao princípio da separação funcional dos poderes políticos do Estado, o que é básico na organização dos governos nas verdadeiras democracias. Bom lembrar, por razões de didática, que antes da teoria da tripartição de poderes (imortalizada por Montesquieu em O Espírito das Leis), a evolução política inglesa consagrou o Bill of Right de 1689. Por meio daquele diploma os ingleses forçaram um compromisso, colocando no mesmo nível a autoridade real e a autoridade do parlamento e reconhecendo a autoridade dos juízes. Mas, com a Revolução Francesa (1789) é que o princípio da separação de poderes tornouse dogma da organização política liberal pelo Art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (FERREIRA FILHO, 1989, p. 177). Avanços legislativos parecem ser correntes na historiografia do Direito português, dando exemplos significativos para a Europa e o resto do mundo. Registre-se que Portugal foi um dos primeiros países da Europa a abolir a pena de morte, e isto em 1867, durante do reinado de D. Luís. Tal fato levou o escritor francês Victor Hugo (2010) a escrever ao diretor e fundador do periódico Diário de Notícias, o Sr. Eduardo Coelho, elogiando aquela medida de avanço civilizacional, tendo ele dito à época que “Portugal dá exemplo à Europa” e “A Europa imitará Portugal”. Passados mais de cem anos do fato acima, os portugueses permitiram o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, primeiramente aos franceses, dando-lhes exemplo, portanto. Em 2010, por força da Lei nº 9/2010, Portugal pacificou aquele conflito, enquanto que a França somente o fez em 2013, por meio da Lei nº 2012-404 de 17 de maio de 2013. Assim, a França tida por muitos como a pátria das liberdades públicas e dos direitos do homem, adotou, da mesma forma que Portugal, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Contudo, vale salientar, diferentemente do caso brasileiro, o fez por meio de lei específica, votada pelo seu parlamento nos moldes constitucionais. Com isso, houve, tal como em Portugal, respeito à democracia, à Constituição, e à independência funcional dos poderes políticos do Estado. Ressalta-se que em França, antes da permissão legislativa para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o Poder Judiciário daquele país, por meio do Conselho Constitucional, havia decidido ser constitucional a proibição para aquele tipo de casamento, como também, ser de competência do Legislativo a autorização para aquela união (PROIBIÇÃO... 2014). Com isto o debate sobre o tema foi levado ao parlamento francês, tudo, em um exemplo claro da limitação e funcionamento do seu Poder Judicial.
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS É desejoso que com o presente trabalho o leitor possa descortinar a sua visão para a importância do tema abordado, notadamente a experiência brasileira de controle do seu Poder Judiciário pós 2004, ano em que foi criado o Conselho Nacional de Justiça. As abordagens feitas ao longo do presente trabalho não se esgotam. Dizia o Prof. Nelson Saldanha, da Faculdade de Direito do Recife, que “nenhuma obra nunca é definitiva”, e assim crê-se que o debate sobre o tema perdurará ainda por muito, uma vez que está umbilicalmente ligado à recente história política e jurídica do Brasil, tudo sempre a atrair a atenção de estudiosos, sobretudo, porque respostas a novos problemas podem ser encontradas em situações vividas no passado. Porém, no intuito de concluir o presente trabalho, chama-se a atenção do leitor a respeito das seguintes proposições pertinentes ao tema proposto:
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I) O livre acesso do cidadão ao Poder Judiciário em defesa dos seus interesses, inclusive quando ameaçados por agentes do Estado, é essencial para se construir um Estado Democrático de Direito. De igual, a atuação desse Poder político em tempo hábil e afinado com os direitos humanos e o ideal de democracia. O cidadão sob a égide de uma democracia há de ter sempre segurança jurídica em todas as relações de que participe, sendo de capital importância para dirimir os conflitos de interesse que houver a atuação eficaz e célere da Justiça, sob pena de estímulo à violência; II) No estágio civilizacional atual os agentes políticos do Estado, especialmente os magistrados, não podem ficar impunes por atos praticados no exercício da judicatura, sejam esse atos dolosos ou culposos; III) O sistema de controle da justiça brasileira atribuído ao CNJ, a partir de 2004, não cabe ser entendido como um verdadeiro controle externo do Poder Judiciário, pois o dito Conselho é um órgão desse próprio Poder subordinado e comandado pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal (repisando, a maior corte de justiça do Brasil), e este não se sujeita aquele, pode dele exigir, porém sem ser exigido; IV) O CNJ não nasceu para ser um órgão definidor das políticas públicas do país (isso cabe ao Executivo e Legislativo), e sim para ser um órgão de coordenação e fiscalização interna da atuação do Poder Judiciário (atuando em todo o território e sobre carreiras a ele vinculadas, v.g. juízes, funcionários, notários, etc. [...]). O poder regulamentar do CNJ deve ficar adstrito ao seu âmbito de competência, sendo de todo inconstitucional, uma subversão à democracia e ao princípio da separação dos poderes políticos do Estado, usurpar ele a função do legislador para inovar, por meio de atos administrativos seus, o sistema legal do país, a exemplo do que fez quando autorizou por meio da Resolução nº 175, de 14 de Maio de 2013, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo; V) A experiência de controle do Poder Judiciário pelo CNJ, conforme as anomalias apontadas no presente artigo, mostra ausência de lealdade aos princípios de um Estado Democrático de Direito, o que em nada contribui para criar na nação uma cultura de constitucionalismo, democracia, e respeito às funções típicas dos poderes políticos do Estado; VI) Recorrendo a Kant, “O homem só pode tornar-se homem pela educação. Ele não é senão aquilo que a educação faz dele”. Assim, acredita-se que só mediante mudanças profundas no ambiente cultural e educacional do Brasil surgirá uma nova classe dirigente comprometida com valores democráticos, direitos humanos e constitucionalismo, capaz de gerar reflexos na política interna do país, e evitar no futuro desvio funcional das instituições públicas permanentes do Estado, dentre elas o próprio Conselho Nacional de Justiça.
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POVOS INDÍGENAS E PLURALISMO JURÍDICO: MANIFESTAÇÃO DA INTERCULTURALIDADE1 Mariana Carneiro Leão Figueiroa2
(...) o pluralismo jurídico es una manifestación de la interculturalidad, donde se refiere que un mismo hecho, conducta, acción se encuentra o pueden encontrarse regulada de manera diferente por los diferentes ordenes jurídicos que conviven y interactúan em um mismo espacio geopolítico. (CASTRO, 2001, p.04)
RESUMO: O presente trabalho apresenta reflexões em torno de um marco teórico – pluralismo jurídico – que permite delinear algumas pautas a se levar em consideração no estudo da aplicação do Direito pelo poder judiciário em contextos interculturais. Neste texto pretendo expor um breve histórico das concepções teóricas da antropologia jurídica, enquanto campo interdisciplinar; um panorama da legislação constitucional da América Latina no que concerne ao reconhecimento dos sujeitos coletivos de direitos, em especial os povos indígenas, no respeito à diversidade étnica e cultural pelos Estados nacionais e, por fim, as principais contribuições teóricas acerca do pluralismo jurídico na atualidade. Palavras-chave: Pluralismo Jurídico; Antropologia; Direito; Diálogo Intercultural. ABSTRACT: This paper presents reflections on a theoretical framework - legal pluralism - allowing outline some guidelines to consider in studying the application of law by legal practitioners in intercultural contexts. In this text we wish to describe a brief history of the theoretical concepts of legal anthropology as an interdisciplinary field, a panorama of Latin American constitutional law regarding the recognition of collective subjects of rights, especially the indigenous people, the respect for ethnic and cultural diversity by national states, and finally, the central theoretical contributions on legal pluralism today. Keywords: Legal Pluralism; Anthropology; Law; Intercultural Dialogue.
1. INTRODUÇÃO Para o antropólogo Clifford Geertz (2001), o Direito é apenas uma maneira de imaginar o mundo em meio a tantas outras, entretanto, é pautado numa determinada maneira de imaginar como as coisas devam ser (a lei) e como elas são (o fato), desenvolvendo com isso, um sentido de justiça que é sempre específico, “local”. Assim, é possível dizer que o Direito emerge da sociedade como um processo dinâmico no qual os grupos sociais criam normas para gerir a vida em coletividade, que não passam, necessariamente, pelo modelo jurídico estatal. A relação entre Direito, Estado e os povos indígenas, vem, desde o final do séc. XX, apresentando grandes avanços, a partir do reconhecimento de determinados direitos fundamentais, com vistas a 1 Este texto é parte integrante do primeiro capítulo de texto da autora: Ad Argumentandum Tantum: um olhar antropológico acerca do processo criminal da morte do cacique Xicão Xukuru. Recife: Dissertação de Mestrado, UFPE, 2010. 2 Professora do Curso de Direito da Faculdade de Olinda (FOCCA). 61
proteger o direito desses povos a uma cultura própria no contexto das sociedades que integram e, assim, garantir o respeito à sua integridade étnica. Vários países da América Latina, inclusive o Brasil, reconheceram constitucionalmente esses direitos relativos aos povos indígenas que implicam e exigem dos próprios Estados o respeito e a aplicação prática dos mesmos. A Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes – dispõe em seu artigo 8º que, ao se aplicar aos povos indígenas a legislação nacional, devem ser levados em consideração seus costumes e seu direito consuetudinário3. No âmbito nacional, é possível afirmar que a Constituição Federal de 1988 foi um marco de visibilidade do “outro”, no sentido de reconhecer a diversidade cultural da sociedade brasileira de forma institucional/normativa, todavia, a garantia legal de direitos por si só, não garantem a sua efetivação política. Desse modo, o foco do presente trabalho é tentar apresentar, do ponto de vista teórico, a dificuldade que um Estado de tipo monista4 tem em perceber a justiça enquanto prática social e, por isso, explicitar a importância das teorias pluralistas nesse contexto, pode-se indagar: como lidar com a alteridade? Como se processa a alteridade entre os “diferentes” em práticas sociais que envolvem relações de poder, como o judiciário?
2. ANTROPOLOGIA JURÍDICA ENQUANTO CAMPO DE SABER É possível dizer que o surgimento do campo da antropologia jurídica confunde-se com o surgimento da própria disciplina antropológica enquanto área autônoma do conhecimento científico. No final do século XIX, pós-revolução industrial e durante o processo de colonização da África e da Ásia, “nasce” o objeto de estudo da Antropologia Jurídica: o estudo do Direito de povos tidos como “primitivos”, de culturas não-ocidentais, que posteriormente, passa a contemplar também o estudo do próprio sistema jurídico ocidental (COLAÇO, 2008). Assim, desde seu surgimento, já havia uma preocupação em distinguir entre lei e costume, para saber se nas sociedades tidas como “primitivas” teriam direitos, no sentido de normas de controle social, como nas sociedades tidas como “civilizadas”. Um dos primeiros antropólogos a demonstrar tal interesse foi Malinowski. A partir de suas análises das relações de troca entre os trobriandeses5, o Kula, ele procura discutir as implicações dessas relações para o Direito em seu livro Crime e Costume na Sociedade Selvagem (2003), para isso, explora a reciprocidade como princípio de ordenação social. O caráter inovador de sua obra reside na indicação de uma nova maneira de compreender o comportamento humano: os costumes e as crenças de um povo exótico adquirem plenitude de significado e o comportamento nativo aparece como ação coerente e integrada à sua realidade cultural (DURHAM, 1978). Malinowski (2003) argumentava 3 A convenção 169 da OIT define em seu artigo 8º que: “Ao aplicar a legislação nacional dos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário deverão ser estabelecidos procedimentos para solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação desse princípio”. 4 O monismo jurídico foi instituído na sociedade ocidental por volta dos séc. XVII e XVIII, sob a influência do absolutismo monárquico e da burguesia revolucionária européia; postula que dentro de um Estado só cabe um Direito- no sentido de legitimidade – aquele positivado pelo Estado. Essa concepção se respalda em políticas de homogeneização cultural e centralização jurídico-política no modelo de Estado-Nação de cunho liberal. (WOLKMER, 2003). 5 Povo indígena que viviam nas ilhas do pacífico sul. 62
que em todas as sociedades, incluindo as “primitivas” tinham direitos, ou seja, normas reguladoras da vida em coletividade, distintas dos costumes tal como nas sociedades “civilizadas”; e que, caberia ao antropólogo distinguir entre “lei” e “costume” de forma a encontrar as normas jurídicas dessas sociedades: A lei e a ordem permeiam os usos tribais das raças primitivas, regem o curso monótono da existência cotidiana e também os atos mais importantes da vida pública, sejam estes estranhos e sensacionais ou importantes e vulneráveis. Entretanto, de todos os ramos da antropologia, a jurisprudência primitiva tem recebido a menor e menos satisfatória atenção. (MALINOWSKI, 2003, p.10)
Para tal intento, Malinowski sugeriu um método6 que não dependia dos conceitos elaborados pelos juristas ocidentais para encontrar normas jurídicas onde não existiam leis escritas ou tribunais formais. A etnografia adquire a capacidade de reconstruir e transmitir uma experiência de vida, uma realidade cultural diferente da nossa, mas nem por isso menos rica ou menos digna. Já seu contemporâneo Radcliffe-Brown, em oposição, defendia que os conceitos desenvolvidos por juristas ocidentais para estudar seus próprios tribunais e normas, poderiam ser utilizados por antropólogos em seus trabalhos em sociedades ditas “primitivas”, haja vista que, ao contrário de Malinowski, para Radcliffe-Brown, as sociedades sem governo centralizado e sem tribunais, não teriam direito, mas apenas costumes (COLLIER, 1995). Assim como Malinowski, a antropóloga norte-americana Jane Collier (1995), defende que as distintas definições de Direito implicam em diferentes métodos para estudar o mesmo e mudam de acordo com o contexto que se inserem; por isso, ao fazer uma reflexão acerca do desenvolvimento teórico e metodológico da antropologia jurídica nos Estados Unidos, dedica parte de seu texto a apresentar um histórico desse campo de estudo na América do Norte, com o objetivo de apontar as mudanças de concepções. Desse modo, toma como primeira referência E. A. Hoebel – The Law and Primitive Man – que segundo a referida autora, foi um dos primeiros antropólogos a centrar seu interesse nas decisões tomadas por homens em postos de autoridade para distinguir entre lei e costume; propôs uma definição de Direito que combinava a ênfase dada por Radcliffe Brown às sanções de natureza coercitivas com a “habilidade de Malinowski para encontrar leis em todas as sociedades”; e adotou como método o “estudio de caso” para estudar normas jurídicas de qualquer sociedade: En su libro de 1954, Hoebel contrasta el “método de caso” con los dos métodos prévios caracterizados como inferiores: un método desciptivo, asociado con el enfoque de Malinowski sobre los procesos jurídicos y un método ideológico, asociado com el enfoque de Radcliffe-Brown sobre las reglas. Hoebel criticó ambos métodos como incapaces de distinguir las normas jurídicas de las costumbres. (COLLIER, 2003, p.61).
Outros antropólogos anglo-saxões também estudaram a tomada de decisões para entender como os juízes ou homens em posição de autoridade decidiam as contendas, como exemplo, temos o que ficou conhecido na antropologia jurídica norte-americana como o “debate Gluckman-Bohannan”. Max Gluckman (1973) estudou entre os Bartose da Rodésia, um tipo de etnia africana, constituída por 25 grupos tribais; seu 6 Malinowski promoveu críticas aos postulados evolucionistas que dominavam a antropologia à época estabelecendo um novo método de investigação e interpretação que ficou conhecido como funcionalismo, que está diretamente vinculado ao trabalho de campo. O “trabalho de campo” constitui no que hoje é chamado de observação participante, grande inovação do trabalho de Malinowski, que apresentou os princípios fundamentais dessa prática de pesquisa. (DURHAM, 1978). 63
argumento central é que as idéias essenciais do Direito bartose têm seus paralelos nos estágios iniciais do direito romano, europeu. Essas similitudes apontadas por Gluckman levam-no a concluir que os homens que detêm legitimidade para decidir sobre conflitos de interesses, utilizam ferramentas similares para chegar às suas decisões, pois para ele, os juízes bartose recorriam aos mesmos mecanismos que os juízes estadunidenses - em sentido valorativo: costumes, ética, moral - na hora de fazer um julgamento (COLLIER, 1995). Diferente da posição notadamente evolucionista adotada por Gluckman, o inglês Paul Bohannan (1973) depois de estudar os tiv na Nigéria, defendeu que os juízes tiv não pensavam iguais aos ocidentais, logo se baseavam em conceitos e valores específicos de sua cultura para decidir sobre os conflitos que lhes eram apresentados. Com isso, Bohannan argumentava que os antropólogos não deviam se utilizar de “conceitos ocidentais” para estudar os processos econômicos, políticos e jurídicos de povos tidos como “não-ocidentais” ou “não-civilizados” (COLLIER, 1995). Posição esta que me parece mais acertada. Se for para tomar partido neste debate, ao contrário de Jane Collier, é preferível adotar a visão de Bohannan, por assumir uma postura menos etnocêntrica ao relativizar a definição do Direito. No início da década de 1970, a antropóloga Laura Nader impulsiona uma mudança no enfoque da antropologia jurídica nos Estados Unidos, ao propor uma descentralização das análises antropológicas e incluir os litigantes, além dos juízes, no que ela chamou de “processos de disputas” (COLLIER, 1995). A partir daí, muda o enfoque teórico-metodológico e o Direito passa a ser visto como mais um mecanismo de dominação, que não diz respeito apenas a solucionar problemas, mas também à formação de ideologias e, nesse sentido, “os antropólogos subestimaram sistematicamente o papel das ideologias jurídicas na estruturação ou desestruturação da cultura” (NADER, 1969, p.10). Assim, no campo da antropologia jurídica norte-americana, passa a haver uma preocupação em estudar de que maneira o poder e a história modelam os sistemas jurídicos e as relações entre eles. Seguindo esta orientação, a antropóloga Jane Collier, em sua tese de doutorado (1973), dedica-se a estudar o direito consuetudinário do povo indígena zinacantán, em Chiapas - México, mas especificamente, a relação entre os processos de disputa e as formas de contrair matrimônio. Ela argumenta que sendo o Direito mais um mecanismo de dominação, de exercício de poder, logo, não pode este ser estudado à margem de outros mecanismos de dominação, como a família, a religião e a economia, por exemplo. Para a referida antropóloga, em lugar de supor que o Direito e os processos de disputas judiciais beneficiam a todos de um modo geral, cabe ao antropólogo jurídico supor que os processos jurídicos e institucionais beneficiam mais a uns que a outros, pois se prestam a manter o “status” dos grupos dominantes. Surge, a partir dessa nova perspectiva, a crítica jurídica, um movimento intelectual que ganhou força na década de 1980 nas escolas de Direito dos Estados Unidos e, recentemente, pelos antropólogos que estudam “minorias étnicas”, por exemplo, que detêm seu interesse em perceber como as normas e os processos jurídicos constroem as identidades desses indivíduos na sociedade (COLLIER, 1995). Já no que tange a América Latina, a Antropologia Jurídica enquanto campo de conhecimento começa a se firmar face às modificações impostas pela nova ordem constitucional pós-regimes ditatoriais. Com o processo de (re) democratização das nações latino-americanas no final do século XX, “nasce”, histórica e institucionalmente, um novo modelo de Estado-Nação, orientado a valorizar e fortalecer as diferenças, assim argumenta o jurista e antropólogo holandês André Hoekema: El reconocimento constitucional de la configuración multiétnica y pluricultural de sus poblaciones por parte de una serie de Estados Latinoamericanos, reforzado por las ratificaciones del Convenio 169 de La Organización Internacional del Trabajo (OIT), constituye un notable rompimiento simbólico con el pasado. (HOEKEMA, 2002, p.95, grifo nosso)
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Desde então, todas as Constituições latino-americanas, em maior ou menor escala, preveem direitos e garantias específicos para povos culturalmente diferenciados (PINTO, 2008). Esse reconhecimento implica numa mudança de paradigma epistemológico e metodológico no que concerne à relação do Estado com esses povos e com a sociedade nacional que o integram. Em 1997, no 49º Congresso Internacional de Americanistas realizado na cidade de Quito, no México, surge a Red Latinoamericana de Antropología Jurídica – RELAJU, vinculada a Commission on Folk Law and Legal Pluralism, que faz parte da União Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas (IUAES), que, por sua vez, integra a Associação Internacional de Ciências Legais (IALS) do escritório da UNESCO. Desde então seus membros se reúnem em congresso e cursos pré-congresso a cada dois anos, na tentativa de impulsionar os estudos das relações entre cultura e direito nas sociedades plurais, o uso de ferramentas metodológicas interdisciplinares e o desenvolvimento de teorias críticas no Direito e na Antropologia. Esta Red vem trabalhando com temas relativos à diversidade sócio-cultural e a pluralidade de sistemas normativos, identidades, gênero, participação política, direitos indígenas, povos e comunidades tradicionais, conflitos em torno dos novos contextos da globalização, entre outros. Assim, pautada no respeito à diversidade, a antropologia jurídica na America Latina, não restringe suas preocupações à função política e legal do Estado-Nação, mas também com a natureza pluriétnica dos grupos sociais que nele vivem e se relacionam em seu interior. O material da investigação antropológica é o fenômeno jurídico como uma das faces do fenômeno sócio-cultural e os sistemas jurídicos nas suas várias composições (SÁNCHEZ, 2008). Nesse sentido, compreende, dentre outras coisas, a análise de processos de resolução de disputas e de situações de conflito em diferentes sociedades e/ou contextos culturais específicos; a apreciação das abordagens normativas e processualistas das instituições de Direito na sociedade contemporânea e seus desdobramentos; o “diálogo intercultural”7 entre sistemas de Direito, o local, o nacional e o internacional, com a mediação do antropólogo; além da interpretação do Direito ocidental em atenção às normas garantidoras da diversidade cultural. No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, o país assume pela primeira vez na história que ser indígena não uma condição temporária - ao contrário da ideia que vigorava anteriormente, que o indígena deveria “integrar-se” a sociedade nacional8 - com isso, inaugura uma nova categoria jurídica de povos indígenas, agora legítimos sujeitos de direitos diferenciados no que diz respeito à sua cultura, organização político-social, tradição e costumes (artigo 231, CFB/88). Como bem assevera o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira: “os índios atualmente passaram a assumir tal condição étnica com foros de uma nova cidadania que até então lhes era praticamente negada” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2005, p.24). A partir daí, os antropólogos, com mais frequência, passam a ser instados a dialogar com o aparelho jurídico estatal, através de laudos e perícias antropológicas, principalmente no que concerne aos povos indígenas e minorias étnicas, o que realça a necessidade de repensar as relações entre o Estado e esses povos. 7 Entendo por “diálogo intercultural” a definição dada pelo Jurista Fernando Dantas: “O diálogo intercultural se configura como um espaço e um instrumento da nova cidadania indígena, diferenciada, multicultural, dinâmica, criativa e participativa no sentido de construir e reconstruir os direitos diferenciados indígenas e, como conseqüência, criar, também, contextos institucionais plurais e heterogêneos onde a convivência democrática possibilite o desenvolver das ações da vida sem a opressão, sem exclusão”. (DANTAS, 2002, p. 6248) 8 Paradigma da “aculturação”: antes da CFB/88, as Constituições Brasileiras tratavam dos direitos dos povos indígenas de forma residual, reportando-se ao Código Civil de 1916 e o Estatuto do Índio (lei 6001/73), pelos quais eram tidos como “relativamente incapazes” para o exercício dos atos da vida civil, devendo ser tutelados até sua integração com a sociedade nacional, quando então deixariam de ser índios e passariam a ser cidadãos brasileiros e capazes. 65
Outrossim, para colocar em prática as garantias constitucionais9, bem como os acordos internacionais10, em especial a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007 - o Estado brasileiro deve assumir práticas pluralistas para a lidar com a diversidade concretamente e, neste sentido, a antropologia jurídica pode fornecer conhecimentos específicos para compreender os significados e sentidos culturais próprios desses grupos, bem como possibilitar o entendimento cultural de determinados fatos, práticas, normas e procedimentos em que se inserem um sujeito coletivo, como é o caso dos povos indígenas, ou simplesmente sujeitos individuais, mas que detêm características que implicam um olhar e tratamento diferenciado por parte do Estado-Juiz.
3 O PLURALISMO JURÍDICO: DO OLHAR JURÍDICO AO ANTROPOLÓGICO Assim como a Cultura o Direito também é dinâmico, enquanto produto dos grupos sociais e reflexo dessas relações (LYRA FILHO, 1999). A Antropologia trata da alteridade, preocupada com os valores socialmente construídos e chamando a atenção para moralidades diferentes que coexistem na sociedade. Já o Direito trata de uma moralidade (jurídica), a partir da justiça enquanto instituição de poder que regula a vida do homem em sociedade; daí a necessidade de interlocução entre esses dois campos de conhecimento, principalmente quando o Estado-Juiz11 e sua moralidade, emite, literalmente, um juízo de valor sobre o “outro”. As características comuns existentes entre o Direito e a Antropologia são retratadas de forma singular pelo antropólogo Clifford Geertz em seu livro O Saber Local (2001), no capítulo que trata dos fatos e leis em uma perspectiva comparativa; sem esquecer que “de uma forma muito pouco útil, colocou-se em campos opostos o enfoque forense e o enfoque etnográfico das análises jurídicas”, propõe um “ir e vir hermenêutico entre os dois campos, olhando primeiramente em uma direção, depois na outra, a fim de formular as questões morais, políticas e intelectuais que são importantes para ambos” (GEERTZ, 2001, p.253). Nesse sentido, o olhar antropológico ajuda a perceber o Direito em sua dinamicidade, fundamental para um Estado Democrático e plural; já o enfrentamento jurídico, se apresenta como uma arena privilegiada para refletir acerca das relações de alteridade entre sujeitos de direitos culturalmente diferenciados e o direito-estatal. Nas relações sociais estão inseridos conflitos que necessitam ser 9 O Estado Democrático de Direito Brasileiro destina-se a assegurar, fundamentalmente, o exercício de direitos sociais e individuais como valores supremos de uma sociedade pluralista e sem preconceitos (vide Preâmbulo da Carta Magna nacional). No que diz respeito aos povos indígenas, a CFB/88 dedica uma parte para tratar dos direitos referentes aos índios – Capítulo VIII - , trago à colação os seguintes artigos: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. E Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legitimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. 10 Atualmente, os documentos internacionais mais específicos que abordam o direito dos indígenas e de outras minorias são: Convenção para a Prevenção e Punição do Delito de Genocídio (1948); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965); Declaração Americana sobre Direitos dos Povos Indígenas (1997); Convênio 169 da OIT (1989) e a Declaração sobre Direitos das Populações Indígenas (2007). 11 O termo “Estado-Juiz” e “poder judiciário” são tomados como sinônimos nesta dissertação. O modelo federativo do Estado brasileiro caracteriza-se pela tripartição dos poderes; o poder judiciário é um deles, responsável pela aplicação da lei e resolução dos conflitos, nesse sentido, o Estado-Juiz pode ser entendido como um dos “braços” do Estado brasileiro, enquanto o poder regulador da vida em sociedade, segundo este modelo de Estado-Nação. 66
encaminhados e, se por um lado, o monismo jurídico12 fortalece a ideia do Poder Judiciário Estatal como único sujeito responsável em resolvê-los, por outro, observa-se uma dificuldade de exercício de direitos através dos mecanismos estatais. A estrutura normativa do direito positivo estatal, por vezes, mostra-se ineficaz por não atender ao universo complexo e dinâmico das sociedades plurais, tornando-se imperiosa a construção de um novo paradigma de regulamentação que priorize o reconhecimento da diversidade no bojo da sociedade (WOLKMER, 1997). Daí a necessidade que o Estado “olhe de modo diferente”, por exemplo, para os povos indígenas, no sentido de proteger e respeitar a diversidade étnica e cultural, levando em conta suas especificidades, enquanto sujeitos coletivos de direitos, principalmente na hora de emitirem um juízo de valor, por meio de uma decisão estatal que possa atingi-los direta ou indiretamente. Para o jurista argentino Raúl Zaffaroni: “na realidade social existem condutas, ações, que significam conflitos que se resolvem de forma geral de modo institucionalizado, mas que isoladamente considerados possuem significados culturais completamente diferentes” (ZAFFARONI, 2004, p.57) e isso deve ser levado em consideração num diálogo intercultural. No “mundo jurídico”, os teóricos liberais fortalecem a ideia do Estado como o único sujeito legítimo para a elaboração de normas de conduta e de soluções de conflitos na sociedade, pois defendem a tese da centralização política e jurídica da produção do Direito apenas no Estado - monismo jurídico (KELSEN, 1953). Em oposição, teorizações acerca do pluralismo jurídico partem da constatação de que ao lado do direito-estatal, “oficial” e vigente, existem formas diversas de juridicidade, que detêm validade, eficácia e coercibilidade onde se aplicam; com isso “rompe” com o modelo monista e positivista dominante que reproduz uma cultura jurídica de homogeneização. Sob um prisma jurídico, o pluralismo jurídico se aproxima da concepção apresentada nesse trabalho quando pode ser visto como um novo paradigma de regulamentação que não nega o direito estatal, mas que tem como escopo propor um exercício de alteridade: a convivência entre as várias formas de direito que se observam na sociedade, ou “um uso contra-hegemônico do direito como instrumento de emancipação de povos marginalizados” (PINTO, 2008, p.07). Um dos primeiros defensores do pluralismo jurídico emancipador no Brasil foi o jurista Roberto Lyra Filho, que ao responder “O que é Direito?” não se limitou a uma visão legalista e positivista, afirmando que “o direito não é uma coisa ‘fixa’, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente” (LYRA FILHO, 1999, p.44). O “Pluralismo Jurídico de teor ComunitárioParticipativo”, proposto pelo jurista brasileiro Antônio Carlos Wolkmer (1997, p. 101), consiste num “projeto democrático de emancipação dos sujeitos coletivos emergentes”, que passa por dar legitimidade a “novos atores sociais”, os “novos movimentos sociais”, e no reconhecimento pleno da sociedade brasileira enquanto plural. Para Wolkmer: A proposta do pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo para espaços institucionais periféricos passa, fundamentalmente, pela legitimidade instaurada por novos atores sociais e pela justa satisfação de suas necessidades na sociedade plural e democrática (WOLKMER, 1997, p.100).
Entretanto, segundo esse jurista, para que uma norma “extra-estatal” tenha validade, no sentido de legitimidade jurídica, ela deve atender a dois critérios de efetividade: a efetividade formal que diz respeito ao processo de elaboração das normas - devem ser criadas a partir de discussões coletivas 12 Na perspectiva Kelsiana (1953), só existe um sujeito legitimo para criar e dizer o que é Direito: o Estado, que se confunde com o próprio Direito. 67
onde todas as pessoas do grupo tenham a oportunidade de se expressar, a partir de mecanismos de participação popular; e na efetividade material devem ser observados o sujeito elaborador das normas e o conteúdo dessas normas. Quanto aos sujeitos, Wolkmer (1997) reconhece nos novos movimentos sociais os sujeitos legítimos para elaboração de norma jurídica não oriunda do Estado, com as seguintes características: ser coletivo, se dar com participação política, além de ser minimamente institucionalizados. E quanto ao conteúdo da norma, este deve ter como objetivo o atendimento das necessidades fundamentais, previstas na Carta Política da nação. Já o sociólogo português Boaventura de Souza Santos (1991), tomando o “espaço” como categoria analítica, propõe uma “cartografia simbólica do Direito”, no intuito de descanonizar o mesmo, avançar para o pluralismo jurídico e pensar o Direito na pós-modernidade. Para tanto fixa o “conceito-chave” de interlegalidade na tentativa de dar conta da dimensão fenomenológica do pluralismo jurídico, nos seguintes termos: Trata-se, outrossim, da sobreposição, articulação e interpretação de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas nossas atitudes, como nos nossos comportamentos, quer em momentos de crise ou de transformação qualitativa nas trajetórias pessoais e sociais, quer na rotina morna do cotidiano sem história. Vivemos em tempos de porosidades e, portanto, também de porosidade ética e jurídica. (SANTOS, 1991, p.165).
Nesse desiderato, para o referido autor, o direito, as leis, as normas, os costumes e as instituições jurídicas são apenas um modo específico de imaginar a realidade que guardam muitas semelhanças com os mapas, pois as várias formas de Direito têm em comum o fato de serem “mapas sociais”, ainda que metaforicamente (SANTOS, 1991). Quem também oferece alternativas de intercomunicação e diálogo entre diferentes culturas numa perspectiva interdisciplinar, mesmo sem mencionar o tema específico do pluralismo jurídico, é o criminologista argentino Eugénio Raúl Zaffaroni. Suas análises acerca do sistema penal brasileiro, com fulcro na criminologia crítica radical13, trazem fundamentos e elaborações que dão conta do “problema” da diversidade cultural e da coexistência de diferentes ordens jurídicas, para o direito positivo estatal na esfera criminal. Um bom exemplo quanto à questão do indígena é a doutrina do erro de compreensão culturalmente condicionado14, que ocorre quando um indivíduo, mesmo conhecendo a ilicitude do fato, não internaliza os valores contidos na norma jurídica estatal, porque desconhecidos ou incompatíveis com aqueles que pertencem a sua cultura. Zaffaroni (2004) argumenta que o respeito à diversidade cultural e aos valores das diferentes culturas humanas, garantem o direito de não se deixar “contaminar” por valores culturais que não sejam os seus, quiçá, obrigar sob a ameaça do sistema penal, internalizar valores diferentes e/ou incompatíveis com a sua realidade cultural. Juristas brasileiros, como Gulherme Rezende (2009), defendem que o erro de compreensão culturalmente condicionado não é direcionado especificamente à questão indígena, podendo ser aplicado em qualquer situação em 13 Para essa corrente da criminologia, que tem como principais defensores Foucault, Hulsman e Zaffaroni, qualquer lei penal é seletiva, na medida em que ela já surge com uma função: selecionar grupos vulneráveis e marginalizá-los. Por isso, propõem uma definição proletária de “crime” (violação de Direitos Humanos) e defendem a abolição do sistema penal no ordenamento jurídico e apontam, basicamente, como alternativa a resolução de conflitos na esfera cível. 14 O erro de compreensão culturalmente condicionado foi expressamente acolhido pelo Código Penal peruano de 1991, que em seu art. 15 estabelece que aquele que em razão da sua cultura ou se seus costumes, comete um fato punível sem compreender o caráter delituoso do fato ou determinar-se de acordo com este entendimento será eximido da responsabilidade penal estatal, ou ainda, terá sua pena atenuada se, pelas mesmas razões tiver diminuída sua possibilidade de compreensão ou autodeterminação (REZENDE, 2009) 68
que haja um conflito cultural. Posição com forte traço relativista e em consonância com o argumento antropológico. Vez que hoje, as culturas que eram consideradas “distantes”, segundo uma perspectiva ocidental, não se encontram mais tão distantes assim (o “lá” e o “aqui” estão cada vez mais próximos), passam a dialogar e negociar seus direitos no âmbito do Estado-Juiz e “essa relação dialógica entre membros de comunidades culturalmente distintas introduz certas especificidades que merecem um exame mais detido” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p.177). Sob o prisma antropológico, a questão do pluralismo jurídico também é um tema de grande complexidade, afinal o Direito recebe distintos sentidos conforme as “sensibilidades jurídicas em que se aplica” (GEERTZ, 2001). No final do séc. XX, as análises antropológicas começaram a ver o direito consuetudinário e o direito estatal não mais como sistemas paralelos, mas como esferas legais distintas que coexistem na sociedade e devem ser reconhecidos e respeitados de igual modo (SÁNCHEZ, 2008). Com isso, inaugura-se o “novo” projeto da antropologia jurídica no contexto mundial, para a antropóloga Rita Segato: “a tarefa do antropólogo consiste em estudar como os discursos normativos baseados nos direitos humanos e garantias fundamentais são produzidos, traduzidos e materializados em uma variedade de contextos sociais, culturais e jurídicos”; ressalta ainda que é preciso perceber a importância pedagógica do discurso jurídico, pois este é capaz de desenvolver “novas sensibilidades jurídicas” na sociedade (SEGATO, 2006). E, no que diz respeito à “sensibilidade jurídica”, esta, nos moldes de Geertz (2001), consiste em, ainda que de forma acanhada, reconhecer o pluralismo jurídico, ao perceber que cada saber local tem um direito, uma sensibilidade jurídica diferenciada do positivismo jurídico estatal e que deve ser levado em conta na tomada de decisões por parte dos órgãos estatais. Na antropologia da América Latina é possível perceber grandes contribuições em relação ao desenvolvimento teórico do pluralismo jurídico. Uma delas é a da antropóloga e jurista colombiana Esther Sanchéz Botero (2008, p.76). Para esta autora: o pluralismo jurídico é a convivência de diferentes formas de direito que se relacionam entre si, geralmente de modo assimétrico. Ela defende que os sistemas jurídicos próprios são válidos para uma população determinada segundo sua origem cultural e devem ser respeitados pelo sistema jurídico estatal, haja vista que nas sociedades indígenas, por exemplo, o direito próprio em geral é paralelo ao direito positivo estatal. E, nesse sentido, o conceito de direito próprio ou costume jurídico se refere a um universo de normas e sanções legais de tipo tradicional, não escrita nem codificadas, mas que são reconhecidas e partilhadas por uma coletividade e cuja fonte são os costumes ou usos sociais, que permitem a reprodução e coesão sócio-cultural de determinado grupo social. Esse tipo de Direito se distingue do direito positivo, que codifica por escrito normas e sanções e tem sua origem no Estado, que garante o seu cumprimento através de organizações burocráticas e coercitivas, como o judiciário e a polícia (SÁNCHEZ, 2008). Como é possível perceber, o questionamento acerca da centralidade do Estado na elaboração de normas jurídicas também é o cerne das discussões antropológicas sobre o pluralismo jurídico. A advogada e antropóloga mexicana Elisa Rueda (2008) opta por um conceito metodológico de pluralismo jurídico, no sentido de reconhecer que tanto o direito positivo estatal como o direito indígena são sustentados por valores sociais distintos. Para ela, o conceito de pluralismo jurídico é válido para explicar duas idéias: a) que o direito, está longe de ser um produto exclusivo de determinadas sociedades, por exemplo, daquelas que tem Estado, mas pode encontrar-se em outros tipos de sociedade; b) que no interior do Estado é possível dar conta de diversas manifestações de direito. Vejamos:
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Para este apartado, he optado por el concepto de pluralismo jurídico, entendido como sistemas jurídicos relacionados entre si en un mismo campo social – que permite documentar el sentido em que el sistema normativo em las comunidades indígenas se construye en relación estrecha com el sistema jurídico del Estado. (RUEDA, 2008, p.34)
Atualmente, dentre as grandes contribuições teóricas em matéria de pluralismo jurídico, a do jurista e antropólogo holandês André Hoekema é a que vem se destacando, partindo do pressuposto de reconhecimento estatal do pluralismo jurídico nas sociedades indígenas, define-o em dois tipos distintos: a) o pluralismo jurídico formal de tipo unitário, o qual caracteriza-se pela subordinação dos outros sistemas de direito em relação ao direito positivo estatal, ou seja, o pluralismo jurídico só é reconhecido em casos específicos, podendo ser suprimido pela jurisdição estatal e; b) o pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, que “rompe el Estado hegemónico”, na medida que as sociedades indígenas deixam de ser governadas e administradas à luz dos princípios e valores da sociedade evolvente e, nesse ponto, há um reconhecimento pleno de outras formas de juridicidade em conjunto com a estatal (HOEKEMA, 2002). O pluralismo jurídico de tipo igualitário apresenta-se como um caminho para a construção de uma sociedade efetivamente mais justa e igualitária ao passo que, ao respeitar a diversidade sem hierarquizar culturas, deixa de ser etnocêntrica. Destarte, o diálogo entre a Antropologia e o Direito se coloca como uma possibilidade do Direito “ir para campo” e “usar” da Antropologia como instrumental para transformar a “sensibilidade jurídica estatal”, no sentido de perceber “sensibilidades jurídicas diversas” na sociedade plural. Afinal, para se aplicar devidamente os mandamentos constitucionais, as normas de acordos e tratados internacionais, no que tange o reconhecimento e o respeito à diversidade étnico-cultural, é preciso conhecer essa diversidade concretamente, com suas especificidades – pois como diz Ester Sanchez15, “não se pode falar em reconhecimento jurídico pleno sem conhecimento cultural”, haja vista que não se pode reconhecer aquilo que não se conhece.
4. AS EXPERIÊNCIAS LATINO-AMERICANAS Na América Latina, no final do séc. XX, por volta das décadas de 80 e 90, a partir dos processos de redemocratização dos países latinos, as Constituições dos Estados nacionais começaram a reconhecer alguns direitos específicos para as minorias étnico-culturais, ou povos culturalmente diferenciados, em especial os povos indígenas, movimento que ficou conhecido como “multiculturalismo constitucional”16. A Constituição Federal Brasileira de 1988 apresenta importantes “avanços”, principalmente no que tange o discurso normativo, mas o reconhecimento pleno da diversidade cultural está longe de ser completo e ainda é tratado de forma incipiente pela máquina estatal. No Brasil, conforme assevera Arruti (2000): O resultado foi uma Constituição apelidada de ‘cidadã’ e tomada como exemplo da possibilidade de reais avanços institucionais em direção da plena consolidação democrática. Mas (...), seu texto continuou tratando da diferença cultural como algo residual. (ARRUTI, 2000, p.116).
15 Em uma de suas falas no VI Congresso Latino-Americano de Antropologia Jurídica – Bogotá/Colômbia – De 28 à 31 de outubro de 2008. 16 Movimento que se difundiu na América Latina a partir da Constituição da Guatemala (1986), desde então todas as constituições latino-americanas em maior ou menor escala prevêem direitos e garantias específicos para povos culturalmente diferenciados (PINTO, 2008). 70
Atualmente, as Constituições do Equador, da Colômbia, da Guatemala, da Bolívia e da Venezuela, são os documentos mais elaborados em matéria de direitos indígenas, adotam o sistema jurídico pluralista e reconhecem a administração indígena da justiça (PINTO, 2008). O “avanço” mais significativo no que tange a questão do pluralismo jurídico é, precisamente, o reconhecimento da jurisdição especial indígena ou do direito consuetudinário indígena e o da livre (auto) determinação dos povos indígenas, estabelecidos, respectivamente, no artigo 246 da Constituição Colombiana, no artigo 191 da Constituição Equatoriana e no artigo 119 da Constituição Venezuelana. Nestes países, o diálogo entre jurisdição indígena e jurisdição estatal está em processo de construção; é imprescindível que se estabeleça quais os parâmetros para esse diálogo intercultural, haja vista que o reconhecimento constitucional do pluralismo jurídico feito pelo Estado, requer a (re) formulação de legislação complementar, ou infraconstitucional, a fim de estabelecer as formas de coordenação e compatibilidade entre distintos sistemas legais com o sistema jurídico estatal (ASSIES; VAN DER HAAR; HOEKEMA; 2002). A Colômbia17 vem se destacando no contexto latino-americano como uma das principais referências no estudo dos direitos indígenas devido ao amplo reconhecimento dado pela Constituição de 199118 e, em especial, a vasta jurisprudência da Corte Constitucional19, acerca da questão indígena, demonstrando que o conteúdo material dos direitos não está limitado apenas ao normativo, mas a sua interpretação com base na diversidade étnica e cultural. Assim, destaca Esther Sánchez Botero, principal referência acerca da questão: Colombia no solamente reconoció la existência de culturas ditintas y, con éstas, del pluralismo jurídico, sino que las valoro al punto de convertir estas expresiones diversas em constitucionales, legales y oficiales. (SÁNCHEZ, 2008, p.120)
A Corte Constitucional Colombiana20, na qualidade de intérprete autorizado da referida Carta Magna firmou entendimento no seguinte sentido: La proteción que la Carta extiende a la anotada diversidade se deriva de la aceptación de formas diferentes de vida social cuyas manifestaciones y permanente reproducción cultural son imputables a estas comunidades como sujetos colectivos autóctonos y no como simples agregados de sus membros que, precisamente, se realizan a través del grupo y asimilan como suya la unidad de sentido que surge de las distintas vivencias comunitárias. La defensa de la diversidad no puede quedar librada a uma actitud paternalista o reducirse a ser mediada por conducto de los miembros de la comunidad, cuando ésta como tal, puede verse directamente menoscabada en su esfera de intereses vitales y debe por ello, asumir con vigor su propia reinvindicación y exhibir como detrimentos suyos los perjuicios o amenazas que tengan la virtualidad de extinguirla. (Informativo da Corte Constitucional Colombiana apud SÁNCHEZ, 2008, p. 06)
Como se pode perceber, esse controle de constitucionalidade, expressa um fortalecimento da etnicidade e da diversidade cultural, pois apontam um avanço no sentido de formalizar algumas regras 17 Na Colômbia, os povos indígenas contam com Tribunais Indígenas plenamente reconhecidos pelo Estado e podem optar se recorrem ao Tribunal Indígena ou ao Estatal para solucionar seus conflitos. 18 O artigo 7º da Constituição Colombiana reconhece a diversidade étnica e cultural da nação e, no artigo 246 dispõe acerca de uma jurisdição especial indígena, ampla, em todas as matérias, para o exercício da autoridade indígena. (SÁNCHEZ, 2008). 19 A Corte Constitucional Colombiana corresponde ao nosso Supremo Tribunal Federal (STF), ou seja, instância máxima para interpretar as normas constitucionais e “dizer o direito no caso concreto”. 20 Para conhecer algumas decisões da Corte Constitucional colombiana no que tange os direitos indígenas, vide Anexo que traz uma lista da jurisprudência deste órgão. 71
que podem representar o ponto de partida para (re) pensar o próprio contexto latino-americano. Nesse sentido, André Hoekema (2003), sinaliza que a análise de algumas sentenças da Corte Constitucional colombiana podem servir de contraponto para alguns países latino-americanos: La Corte de Colombia es el único lugar jurídico en el mundo donde se delibera y decide tan intensa y frecuentemente sobre casos de conflitos multiculturales muy concretos. Por ende, tal análisis tiene un valor edificante para todos quienes, en la lucha social diária o desde la distancia académica, se interesan por un futuro donde se respete la diversidad cultural sin dejar desintegrar la sociedad como tal. (HOEKEMA, 2003 apud SÁNCHEZ, 2008, p.03).
No Peru também existe uma situação de pluralismo cultural, lingüístico e legal, reconhecido pela Carta Constitucional de 1993. Para a advogada e antropóloga peruana, Raquel Fajardo (2001), a introdução dos artigos 2, 19 e 14921 na carta política de 1993, combinada com a ratificação do Convênio 169 da OIT no mesmo ano, possibilitam superar o modelo monista e etnocêntrico sustentado pelas Constituições republicanas para a construção de um modelo constitucional pluralista. Não obstante, ressalta que, mesmo com esses “avanços” normativos, nem o poder judiciário vem aplicando as normas garantidoras, nem o Executivo vêm desenvolvendo políticas públicas de respeito à diversidade e o legislativo tampouco elabora normas de compatibilidade constitucional naquele País (FAJARDO, 2001). O mesmo acontece no Brasil, o Estado também assume esse papel contraditório: garantidor e ao mesmo tempo violador dos direitos das minorias étnicas, em especial dos povos indígenas. Já a Venezuela, traz um exemplo singular, o processo legislativo constituinte da atual Carta Magna venezuelana foi composto também por indígenas, que garantiram um capítulo na Constituição dedicado a esses povos; reconhecendo o direito à livre ou autodeterminação dos povos indígenas, que deste decorre o direito ao território tradicional, a uma cultura e língua própria, dentre outros. Na Venezuela há hoje cerca de 2.854 comunidades indígenas identificadas, segundo a Ministra de Assuntos Indígenas22 da referida nação e, desde que assumiu o poder, o Presidente Hugo Chávez, implementou uma política pública de atenção aos povos indígenas, denominada Misión Guaicaipuro, bem como em 2005, promulgou a Lei Orgânica dos Povos e Comunidades Indígenas daquele País que “regula” esse diálogo intercultural. Na Guatemala, a maioria da população indígena é de origem Maia e, no que tange a luta pelos seus direitos, contam com uma ONG – conhecida por Defensoría K’iché - constituída por líderes indígenas que em seu passado tiveram alguma vinculação com organizações guerrilheiras e hoje apoiam a reconstrução do tecido social da Guatemala a partir da capacitação e do empoderamento das autoridades indígenas tradicionais (PADILLA, 2008). Segundo o pesquisador mexicano, Guillermo Padilla (2008), esta organização vem protagonizando vários “avanços” em relação à coordenação da justiça indígena com a “oficial” (estatal), vez que o poder judiciário local, em especial os juízes estatais, carece de uma formação compatível com a multiculturalidade; a Defensoría K’iché vêm apresentando recursos à “Corte Suprema de Justicia” da Guatemala que também vem estabelecendo 21 O artigo 149 da Constituição peruana assim dispõe: “Las autoridades de las comunidades campesinas y nativas com el apoyo de las Rondas Campesinas, puedem ejercer las funciones jurisdiiccionales dentro de su ámbito territorial de conformidad com el derecho consuetudinario siempre que no violem los direchos fundamentales de la persona. La ley estabelece las formas de coordinación de dicha jurisdicción especial com los Juzgados de Paz y com las demás instancias del Poder Judicial”. 22 Fala da Ministra de Assuntos Indígenas, Aloa Nuñes, em palestra proferida na Universidade de Pernambuco (UPE), sobre Os Povos Indígenas da Venezuela, no dia 16 de outubro de 2009. 72
precedentes em torno do direito dos povos indígenas gozarem dos direitos assegurados na carta política de sua nação23. Ademais, a Constituição da Guatemala, assim como a do Brasil24, estabelece uma hierarquia das normas de direito internacional em matéria de direitos humanos e, considerando que o Convênio 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes é um tratado de direitos humanos que, ao ser ratificado pela Guatemala, sua aplicação está acima do direito interno, pois assume status de norma constitucional, conforme reza o seu artigo 46 (PADILLA, 2008): Art. 46. Se estabelece el principio general de que en materia de derechos humanos, los tratados y convenciones aceptadas y ratificadas por Guatemala tienen preeminencia sobre el derecho interno.
Assim, é possível concluir que na antropologia jurídica da América Latina, esta questão está posta há algum tempo: a necessidade de uma mudança metodológica e efetiva na cultura legal e política desses países no trato da diversidade étnico-cultural pela máquina jurídica estatal e seus operadores, em especial no que diz respeito aos povos indígenas. No Brasil só recentemente as discussões nesse sentido começam a “ganhar força” e ainda muito restritas aos meios acadêmicos da antropologia esta que, enquanto ciência do “outro”25 , seria o “campo” para contribuir no incremento de novas “sensibilidades jurídicas”, no reconhecimento do pluralismo jurídico e no respeito aos valores das diferentes culturas humanas, ou dos “diferentes modos de estar no mundo”.
REFERÊNCIAS ARRUTI, J. M. A. Direitos Étnicos no Brasil e na Colômbia: notas comparativas sobre hibridação, segmentação e mobilização política de índios e negros. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 6, n. 14 – Novembro, 2000. ASSIES, W.; VAN DER HAAR, G.; HOEKEMA, A. J. Los Pueblos Indígenas y la Reforma del Estado en América Latina. Papeles de Población, Universidad. Autónoma del Estado de México. Toluca, México: enero-marzo, 2002. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. Identidade étnica, reconhecimento e mundo moral. Revista Antropológicas, ano 9, vol. 16 (2). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2005.
23 A Constituição da Guatemala estabelece em seu artigo 66 a proteção aos grupos étnicos da nação: “Guatemala está formada por diversos grupos étnicos, entre los que figuran los grupos indígenas de ascendencia maya. El Estado reconoce, respeta y promueve sus formas de vida, costumbres, tradiciones, formas de organización social, el uso del traje indígena em hombres y mujeres, indiomas y dialectos”. 24 No Brasil, o Supremo Tribunal Federal – corte suprema em matéria constitucional – estabelece que os tratados internacionais, mesmo aqueles que abordam matéria relativa a direitos humanos, serão incorporados ao direito brasileiro como norma ordinária, ou seja, de caráter infraconstitucional (RHC 79.785, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 22/11/02); esta é a regra geral. Entretanto, a emenda constitucional 45 de 08 de dezembro de 2004, estabeleceu a possibilidade de os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do congresso nacional, em dois turnos de votação, por três quintos dos votos dos respectivos membros, são equivalentes às emendas constitucionais, ou seja, possuem status de norma constitucional. Infelizmente, o Convênio 169 da OIT ainda não passou pela chancela do Congresso Nacional brasileiro. 25 A antropologia, enquanto ciência nasceu de uma preocupação em entender o “outro” (DENZIN e LINCOLN, 2006). 73
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ANEXO JURISPRUDÊNCIA DA CORTE CONSTITUCIONAL DA COLÔMBIA DIREITOS INDÍGENAS PROTEGIDOS • Direito a superveniência cultural: diz respeito à versão grupal do direito a vida e a não ser submetido ao desaparecimento forçado. T – 428 de 1992; T – 342 de 1994; T – 007 de 1995; SU – 039 de 1997; SU – 510 de 1998; T- 652 de 1998. • Direito a preservação do habitat natural: em virtude das mudanças culturais, que podem levar a uma variação do habitat natural, a Corte Constitucional reconheceu as comunidades indígenas o direito a preservação do seu território. T – 342 de 1993; SU – 037 de 1997; T – 652 de 1998; T – 380 de 1993. • Direito a propriedade coletiva sobre a terra ocupada pela comunidade: nesse sentido, a Corte Constitucional reconheceu o caráter de direito fundamental, devendo, portanto, ser garantido e protegido. T – 567de 1992; T – 188 de 1993; T – 652 de 1998; T – 257 de 1993; SU – 510 de 1998; T – 405 de 1993. • Direito a autonomia política: consiste no direito de determinar suas próprias instituições políticas e que estas sejam reconhecidas pelos agentes estatais. T – 652 de 1998; C – 139 de 1996. • Direito a autonomia jurídica: consiste em administrar a justiça em seu território tradicional e reger-se por suas próprias normas e procedimentos. T – 254 de 1994; C – 139 de 1996; C – 349 de 1996; T – 496 de 1996; T – 23 de 1997. • Direito a participação na tomada de decisões que possam afetar as comunidades indígenas e/ou seu território: este direito está consagrado expressamente no artigo 330 da Constituição de 1991, também conhecido como o direito a consulta prévia. SU – 037 de 1997; T – 652 de 1998. • Direito a igualdade lingüística: compreende o reconhecimento oficial das línguas indígenas nas áreas de influencia das comunidades indígena e não apenas dentro de seu território. T – 84 de 1994. • Direito ao reconhecimento e proteção das práticas médicas tradicionais: este direito ficou consignado na sentença C – 377 de 1994 e protegido na decisão T – 214 de 1997.
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ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI E A CONSTITUCIONALIDADE DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS: UMA EXPERIÊNCIA NA COMARCA DE PERNAMBUCO. ADOLESCENTS IN CONFLICT WITH THE LAW AND THE CONSTITUTIONALITY OF SOCIO-EDUCATIONAL MEASURES: AN EXPERIENCE IN THE PERNAMBUCO REGION. Rebeca Rátis Rêgo Monteiro1 rebecaratis95@hotmail.com
Eloy Moury Fernandes2 eloymoury@hotmail.com
RESUMO Diante do grande aumento no índice de atos infracionais – equivalentes a crimes no Código Penal Brasileiro – CPB – cometidos por adolescentes, esse trabalho tem por objetivo a investigação das chamadas medidas sócio-educativas – equivalentes às penas do CPB, verificando, a fim de atestar ou negar, a partir de experiência empírica na Comarcas de Recife e Olinda, sua eficácia e/ou ineficácia diante atual sistema adotado no Brasil, a partir do estado de Pernambuco. Foram analisados assim dados estatísticos acerca do perfil do denominado jovem infrator, buscando-se, por fim, apontar quais garantias constitucionais os amparam nesse contexto, a partir das medidas sócio-educativas aplicadas nas amostragens verificadas. A pesquisa apresentada é quantitativa e qualitativa, na medida em que tem por fundamento o levantamento de dados pré-existentes junto a órgãos executivos responsáveis pela tutela desses adolescentes, desde a escolha até a execução dessas medidas. Buscando-se uma verificação da eficácia e constitucionalidade das sanções aplicadas aos adolescentes infratores no estado de Pernambuco. Palavras-chave: Jovem infrator, medidas sócio-educativas, eficácia. Constitucionalidade. ABSTRACT In view of the large increase in the index of infractions - equivalent to crimes in the Brazilian Penal Code committed by adolescents, this work has the objective of investigating the so-called socio-educational measures - equivalent to the penalties of the CPB, verifying, in order to certify or deny, from empirical experience in the Comarcas of Recife and Olinda, its effectiveness and / or inefficiency in the present system adopted in Brazil, from the state of Pernambuco. Statistical data on the profile of the so-called juvenile offender were analyzed, aiming at finally indicating which constitutional guarantees support them in this context, based on the socio-educational measures applied in the verified samplings. The research presented is quantitative and qualitative, 1 Graduanda do Curso de Direito da Focca – Faculdade de Olinda. 2 Especialista e mestre em Direito Penal, Professor de Direito Penal e Processo Penal da Focca – Faculdade de Olinda, Mediador Judicial com certificação CNJ e Advogado Criminal. 77
in that it is based on the collection of pre-existing data with executive bodies responsible for guardianship of these adolescents, from the choice to the execution of these measures. Aiming to verify the effectiveness and constitutionality of the sanctions applied to juvenile offenders in the state of Pernambuco. Keywords: Young offender, socio-educational measures, effectiveness. Constitutionality.
1. INTRODUÇÃO Tendo por eixo temático o estudo das medidas sócio-educativas aplicadas ao jovem em conflito com a Lei em Pernambuco, com especial ênfase em sua constitucionalidade, observou-se assim o perfil dos adolescentes sujeitos a essas medidas e como elas são aplicadas no atual sistema brasileiro. Sob o mesmo objetivo geral, buscou-se analisar os direitos e garantias constitucionais, regulamentados infra constitucionalmente, em especial no Estatuto da Criança e do Adolescente. Sob esta finalidade, são analisados dados estatísticos acerca do perfil do jovem alvo dessas sanções penais, apontando em que medida isso repercute em face de seus direitos e garantias constitucionais observando assim as medidas sócio-educativas atualmente aplicadas nesse contexto e verificar alguns dos posicionamentos jurídicos, sobre o êxito ou não dessas medidas. A proteção integral prometida a todos os menores de dezoito anos pela ordem jurídica inaugurada com a Constituição da República de 1988, ensejou, em 1990, a criação da Lei 8.069, de 13 de julho, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, consolidando em um só diploma legal toda a atenção legislativa dedicada à proteção dos adolescentes e crianças, não sendo diferente quanto às medidas sócio-educativas impostas em caso de conflito com a Lei Penal Incriminadora aplicável aos imputáveis. Ocorre que, mediante rasa análise da realidade social brasileira, verifica-se que os jovens submetidos a tais medidas, não se ressocializam – principal promessa no modelo punitivo inaugurado no segundo pós guerra, até, em 1990, com o documento denominado Regras de Tóquio3 –, e voltam a cometer crimes – que para os menores de dezoito anos e maiores de 12, são denominados atos infracionais. Um erro, ou insucesso, já verificado quando se analisa o modelo ressocializador aplicável aos imputáveis. Assim, parece pertinente o questionamento sobre a eficiência desse modelo sócioeducativo baseado na privação de liberdade tal qual o dos adultos, sob a etiqueta meramente formal de sua função sócio-educativa e internamento. Sendo assim é também possível afirmar, diante da reincidência dos menores infratores, que a mesma falência enfrentada pela pena privativa de liberdade é um mal que alcança as medidas sócio-educativas de internação. Com vistas a começar a responder a essas e outras perguntas, é que buscou-se, primeiro, identificar o perfil dos menores em conflito com a lei em Pernambuco entre os anos de 2007 e 2018, segundo, como são aplicadas as medidas previstas em lei para reeducação desses menores; terceiro, como o Judiciário enxerga a eficácia dessas medidas.
2. O PERFIL DO JOVEM EM CONFLITO COM A LEI Para determinação de um perfil mínimo desse jovem foram comparados dados coletados entre os anos de 2007 e 2018, oriundos de informações colhidas em abril de 2018 em Órgão de nome Unidade de Atendimento Inicial – UNIAI, comparados a anos anteriores. 3 Regras de Tóquio, conferir: Regras mínimas das Nações Unidas para elaboração de medidas não privativas de liberdade (regras de Tóquio), adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 45/2010, de 14 de dezembro de 1990. Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_6/IIIPAG3_6_11.htm, acesso em 27.04.2016 78
Para isso foram elencados, com o intuito de traçar o perfil do jovem infrator, aspectos como sexo, idade, cor da pele, escolaridade e ato infracional cometido, na busca de se estabelecer uma relação desses dados com a aplicação das medidas sócio-educativas Nesse sentido, viu-se que, do efetivo pesquisado. 5% (cinco por cento) são de mulheres e 95% homens, no primeiro momento, aumentando para 9% (nove por cento) as meninas. Um aumento de 80% (oitenta por cento) na parcela feminina. Não foi pesquisado quanto, em números brutos isso pode ter representado, contudo é fácil presumir que os valores não diminuíram. Após análise do primeiro comparativo a partir exclusivamente do sexo, é possível verificar que, apesar dos atos serem cometidos em sua maioria por jovens do sexo masculino, o índice de meninas em conflito com a Lei aumentou entre os anos de 2013 e de 2018, pois se antes representavam 5% (cinco por cento), hoje, após cinco anos, passam a representar 9% (nove por cento). Um aumento de quase 100% se tomarmos em conta o índice anterior. Mas, os rapazes permanecem líderes dessa estatística, sendo então os mais envolvidos em práticas delituosas. Quadro 1: Quanto ao critério etário, verificou-se assim:
PRIMEIRO CENÁRIO
SEGUNDO CENÁRIO
Até 12 anos
1,8%
Até 12 anos
1%
Até 13 anos Até 14 anos Até 15 anos Até 16 anos Até 17 anos
1,8% 16,36% 23,63% 25,45% 30,9%
Até 13 anos Até 14 anos Até 15 anos Até 16 anos Até 17 anos Até 18 anos Mais de 18 anos*
3% 8% 15% 27% 36% 8% 2%
*Ainda que aplicadas quando menores de dezoito aons, algumas medidas sócio educativas podem ser cumpridas após os adolescentes terem alcançado a maioridade.
Como pode ser observado, as infrações são cometidas por jovens de idades entre 12 e 18 anos (exatamente o período da adolescência e incidência das medias sócio-educativas de internamento), com forte prevalência da idade de 17 anos, com aumento significativo de 5,1% (cinco vírgula um por cento) no período pesquisado. Quanto à cor da pele, ou raça, viu-se que 69,7% são pardos, 2,4% são de raça não informada; 18,8% são negros e 9,1% brancos, no primeiro momento. Enquanto no segundo, o número de pardos cai para 58,8%; o de negros sobe para 26,3%; o de brancos aumenta discretamente para 11,3%. Enquanto que os não informados sobem para 3,8%. Nesse aspecto, analisa-se as cores de pele negra, branca e parda, predominando esta última, sendo seguida de negros e brancos, respectivamente. Muito embora seja difícil fazer tal análise, afinal muitas pessoas negras ainda acabam sendo consideradas – e se dizendo pardas – em razão de aspectos outros que fogem em demasiado ao objeto do presente estudo. Quanto à escolaridade, vimos que 44% simplesmente não têm sua escolaridade informada. Enquanto que 36% alcançaram o ensino fundamental; 12% a informação é de regularidade na idade e classe. Mas, ainda viu-se 8% de não-alfabetizados. Já no segundo momento da análise, os analfabetos eram 5%; os com ensino fundamental 44%, médio 11%; EJA 9%, e os alfabetizados 9%. 79
Escolaridade, como se poderia antever, é o perfil que mais chama atenção, afinal, ao contrário do que se imagina, o maior índice de jovens infratores estão naqueles alocados em escolas, em detrimento dos considerados como sem instrução. Contudo, vale ressaltar que o fato de estar matriculado ou mesmo de frequentar uma unidade de ensino equivalente à sua faixa etária, não significa dizer que o façam com finalidades exclusivamente educativas. Muitos deles se matriculam apenas para cumprir um dever imposto pela ordem familiar, ou até mesmo para propiciar o ato infracional que já tem por intento cometer. Quadro 2: Partir do ato infracional – equivalentes aos crimes dos adultos – se viu o seguinte panorama:
PRIMEIRO MOMENTO
SEGUNDO MOMENTO
CRIME
CRIME
Ameaça Roubo Arrombamento Atentado violento ao pudor Crime de dano Estupro Formação de quadrilha Furto simples Homicídio Latrocínio Lesão corporal Porte ilegal de arma Homicídio tentado Roubo tentado Tráfico de drogas Outros
PERCENTUAL 1,17% 48,86% 0,63% 0,86% 0,5% 0,65% 0,53% 7,86% 7,36% 2,56% 1,02% 8,6% 1,69% 0,65% 8,62% 8,42%
Ameaça Dano Estupro Furto simples Formação de quadrilha Homicídio Lesão corporal Porte ilegal de arma Receptação Roubo Tráfico de drogas Roubo tentado Homicídio tentado Outros crimes Contravenções tentadas Outros crimes tentados
PERCENTUAL 1,8% 3,6% 1,2% 6% 1,2% 0,6% 4% 5,4% 1,8% 20,8% 27,4% 0,6% 0,6% 2,4% 1,8% 20,8%
Os comparativos podem ser feitos a partir da simples verificação da tabela abaixo. Tomando-se como exemplo único o aumento quase que ao dobro dos casos de estupro. Queda do números de furtos simples, enquanto que roubos caíram para menos da metade. Por fim, o delito de tráfico de drogas passa de 8,42% para 27,4%, permitindo perceber a migração entre modalidades criminosas efetivado pela população de internados submetida à analise. De acordo com o levantamento de dados acerca dos principais atos infracionais cometidos, se pode observar que nos anos de 2007 até 2018 houve uma redução expressiva na prática de roubo – que já significou 48,86% (quarenta e oito vírgula oitenta e seis por cento) – que hoje encontra-se em 20,08% (vinte vírgula oito por cento). Por outro lado, essa queda nos crimes de roubo, acabou sendo substituída pelo aumento do tráfico de drogas, que em 2007 apontava para 8,62% (oito vírgula sessenta e dois por cento), e agora aparece com 27,4% (vinte e sete vírgula quatro por cento). Mais de 300% (trezentos por cento) de incremento. Por fim, vale registro uma queda significativa no percentual de homicídios, que antes era de 7,36% (sete vírgula trinta e seis por cento) e hoje passou para 0,6% (zero vírgula seis ponto percentual). Tomando como base os dados analisados no decorrer da pesquisa e tendo, é possível concluir que perfil do jovem infrator foi traçado como sendo de sexo masculino, em sua maioria com idade 80
de 17 anos, cor “parda”, matriculados em unidades de ensino em modalidades que compreendem desde o ensino regular ao EJA (programa educacional para jovens e adultos com vistas à facilitação do progresso serial) e praticantes principalmente de atos infracionais análogos aos crimes de tráfico de drogas e roubo. Sobre ser possível afirmar que a esses jovens, no decorrer da aplicação das medidas sócio-educativas, estão lhes sendo asseguras as garantias constitucionais reduzidas ao texto formal de nossa Constituição Cidadã, nos debruçaremos a seguir.
3. OS DIREITOS E GARANTIAS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ACERCA DOS MENORES EM CONFLITO COM A LEI
Se iniciarmos a nossa abordagem com uma breve análise dos critérios de determinação da (in) imputabilidade sob o critério da idade no Brasil, e assim nos aproximarmos da compreensão sobre os motivos pelos quais são estabelecidos os Direitos e Garantias fundamentais, notadamente os traduzidos em documentos internacionais cunhados no segundo pós guerra, poderemos, a partir do ECA, vermos que, em seu artigo 6º, ao definir os conceitos de criança e de adolescente, apostando na concepção ontológica de ser humano em condição peculiar de desenvolvimento, perceber que ambos estão postos como isentos às normas incriminadoras estabelecidas no Código Penal Brasileiro, pois são classificados como inimputáveis, o que excluiria a sua culpabilidade, como preceitua a Constituição Federal em seu artigo 228, “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” Assim como a Constituição Federal, o CPB estatui em seu artigo 27 que os menores de dezoito anos são igualmente inimputáveis, ficando assim, subordinados às normas determinadas na Legislação Especial, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Acerca da inimputabilidade penal, Guilherme de Souza Nucci conceitua como: Conjunto das condições pessoais, envolvendo inteligência e vontade, que permite ao agente ter entendimento do caráter ilícito do fato, comportando-se de acordo com esse entendimento. O binômio necessário para a formação das condições pessoais do imputável consiste em sanidade mental e maturidade. (NUCCI, 2009, p.295).
Nesse caso, ausente o binômio apontado por Nucci, inexistiria a culpabilidade por parte do autor, visto que no caso do menor de dezoito anos a maturidade não se faz presente, fazendo com que se reafirme a sua incapacidade. De mesmo modo Júlio Fabrini Mirabete ainda afirma que: Só é reprovável pela conduta se o sujeito tem certo grau de capacidade psíquica que lhe permita compreender a antijuridicidade do fato e também a de adequar essa conduta a sua consciência. Quem não tem essa capacidade de entendimento e de determinação é inimputável, eliminando- se a culpabilidade. (MIRABETE, 2010, p. 196)
A partir desses dois posicionamentos, é possível deduzir que o agente não tem discernimento sobre a conduta que praticou, ou seja, não tem consciência e não entende a magnitude do ato criminoso e o que suas consequências podem ocasionar na sociedade, simplesmente por não conseguirem distinguir o certo do errado, ficando assim, mais uma vez, ausente a sua punibilidade, em face de não reprovação social de sua conduta, ainda que efetivamente típica e ilícita.
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Como consequência do fato de serem considerados inimputáveis e se tratarem de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, como já dito acima, a Constituição Federal assegura a todas as crianças e adolescentes, sem distinção por condição pessoal, social, ou até mesmo por sua conduta, uma série de direitos e garantias individuais e coletivas, traduzidas no que se conhece por proteção integral (COSTA, 2012). Estes direitos ficam explícitos no decorrer de uma simples leitura no texto constitucional, porém, de forma mais clara, no artigo 277, que determina: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
De forma mais específica acerca de tais direitos, dessa vez mais voltados ao jovem em conflito com a lei, os incisos IV e V do parágrafo 3º, do mesmo artigo explicita: § 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;
Segundo Saraiva, existem a respeito dessas garantias, três níveis diferentes no Sistema Constitucional Brasileiro, que merecem ser lembrados. O primeiro corresponde aos direitos de caráter universal, ou seja, comum não só apenas às crianças e adolescentes, como também à sociedade em geral, são os chamados direitos fundamentais, elencados no artigo 5º da Constituição Federal, como por exemplo o direito à vida, educação, saúde, entre outros. Em segundo lugar, temos os direitos e garantias de proteção “especial”, direcionado àqueles que são vítimas de violência, negligência e maus tratos. O terceiro e último nível refere-se unicamente com relação à responsabilização, destinando-se tão somente aos adolescentes que praticam atos infracionais. (COSTA apud SARAIVA, 2012) O último dos três níveis de direitos e garantias tem seu foco na responsabilização dos jovens por práticas de condutas tipificadas como atos infracionais – equivalente terminológico para os crimes doa adultos. Para tanto, tal responsabilidade não é tratada como costumeiramente se percebe em relação aos adultos que são regidos pela lei penal comum, pois os adolescentes – crianças não são submetidas a nenhuma medida de caráter sancionador – ficam submetidas a uma legislação especial, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Isto acontece por que para a Constituição, estes são considerados inimputáveis, como já se destacou. Sobre esse nível de responsabilização, Ana Paula Motta Costa afirma que: A responsabilização dos adolescentes, enquanto nível de direitos e deveres a serem garantidos por políticas públicas de caráter especial, deve estar interligada com os demais níveis referidos. É como se a responsabilização estivesse em conexão com a proteção social especial, na medida das necessidades dos sujeitos. Ambos os níveis devem contar como pano de fundo com as políticas públicas de caráter universal. Assim, um adolescente que comete um ato infracional não deixa de ser titular de direitos fundamentais. (COSTA, 2012, p. 141)
Coimo consequência disso, é possível inferir que apesar de tais garantias se encontrarem subdivididas, sob o artumento de somente assim possam ser efetivadas, demandando assim que estejam presentes de forma simultânea, uma servindo de alicerce para o cumprimento da outra, e assim sucessiva e reciprocamente. 82
Essa responsabilização – posto que não se pode falar em imputabilidade, tampouco de culpabilidade – se dará por meio das medidas socioeducativas a eles impostas, como consequência pela prática de atos infracionais, reconhecidas por processo judicial adequado, cuja cujo fim encontrou uma Decisão equivalente à condenatória dos adultos. O estudo dessas medidas sancionadoras aplicáveis aos adolescentes, com destaque à sua modalidade de internamento, será o objetivo a seguir.
4. MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM ESPÉCIE: ORIGEM DO TERMO ATO INFRACIONAL O adolescente, diferentemente do adulto, não comete crime, visto que se trata de pessoa em desenvolvimento, e por isso penalmente inimputáveis. Nesse contexto, o termo utilizado passa a ser “ato infracional”, que para o próprio ECA trata-se de conduta descrita como crime ou contravenção penal. É classificada como ato infracional a conduta praticada por criança ou adolescente que caracterize crime ou contravenção penal (estas aplicáveis aos penalmente imputáveis). A diferença fundamental reside no fato de que, quanto aos imputáveis, há a imposição de sanção pelo aparelhamento estatal como retribuição social ao ilícito penal cometido, ao passo que, quanto aos inimputáveis, existe a reeducação pelo Estado para que condutas tidas como ato infracional não se repitam. (LAMENZA, 2012, p. 187)
Sendo assim, o Estado, em caso de efetiva constatação da prática de ato infracional, aplica aos jovens (12 à 18 anos incompletos) as chamadas “medidas socioeducativas”. Estas, como o próprio nome já explana, tem caráter educativo, enquanto as penas tradicionais possuem como finalidade apenas a punição. Porém, existe discordância quanto ao papel destas medidas de natureza jurídica sui generis. Para Wilson Donizeti Liberati, a medida socioeducativa tem natureza jurídica impositiva sancionatória e retributiva: A medida sócio-educativa é a manifestação do Estado, em resposta ao ato infracional, praticado por menores de 18 anos, de natureza jurídica impositiva, sancionatória e retributiva, cuja aplicação objetiva inibir a reincidência desenvolvida com a finalidade pedagógica-educativa. Tem caráter impositivo, porque a medida é aplicada independentemente da vontade do infrator – com excessão daquelas aplicadas em sede de remissão, que tem finalidade transacional. Além de impositiva as medidas sócio-educativas tem cunho sancionatório, porque com a sua ação ou omissão, o infrator quebrou a regra de convivência dirigida a todos. E, por fim, ela pode ser considerada uma medida de natureza retributiva, na medida em que é uma resposta do estado à prática do ato infracional praticado (LIBERATI, 2006, p. 102).
Para que melhor se compreenda, necessária uma abordagem mais específica, das medidas sócioeducativas propriamente ditas, e especificamente previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, em rol taxativo no artigo 112: Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional;
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4.1 ADVERTÊNCIA: Trata-se da mais suave medida aplicada, pois consiste em uma conversa entre o magistrado e o adolescente, com finalidade de repreender e prevenir a prática de novas práticas infracionais, a ser feita em audiência com presença dos responsáveis, Ministério Público e o Defensor, constituído ou público. Sendo esta cabível então como consequência pela prática de um ato infracional que se assemelhe a uma contravenção penal ou crime que sejam classificados como leves, sem incidência de violência ou grave ameaça. 4.2 OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO: Ainda que encontre similitude capaz de confundir-se com a reprovação da conduta em face da ilicitude civil, ou até mesmo da culpabilidade penal dos maiores de dezoito anos4, tal medida será aplicada como consequência condenatória pelo reconhecimento judicial do cometimento de atos infracionais com reflexos patrimoniais, como por exemplo nos casos de furto, roubo, estelionato, entre outros5. Podem se dar de três formas: restituição da coisa ao dono, na mesma condição que se encontrava quando lhe fora tirado; ressarcimento do dano, para casos em que não seja possível a devolução e seja fungível o objeto, logo, deverá ser efetuado o pagamento do valor referente ao prejuízo; ou na compensação de alguma outra forma cabível. Para casos nos quais fique clara a impossibilidade de concretização de tal medida, o juiz deverá substituir por outra equivalente, que se adeque a possibilidade de cumprimento por parte do jovem para que este entenda o prejuízo causado como consequência de seu ato, e com isso se reeduque. 4.3 PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE: Consiste na prestação de serviços em geral à comunidade, de forma gratuita em unidades assistências oficiais como hospitais, asilos, orfanatos, entre outros, a fim de que o jovem, além de reconhecer o caráter ilícito de sua conduta, perceba que tem seu devido valor na sociedade, e que assim, passe a vê-la de um modo mais saudável à sua formação individual. O período de prestação de tais serviços não pode exceder seis meses, à razão deoito horas semanais, de modo a não prejudicar sua frequência escolar ou laboral, devendo ser a função atribuída de acordo com a aptidão do jovem. Como Roberto Bergalli enfatiza o caráter educativo da medida quando afirma que: […] a submissão de um adolescente a “prestação de serviços à comunidade” tem um sentido altamente educativo, particularmente orientado a obrigar o adolescente a tomar consciência dos valores que supõem a solidariedade social praticada em seus níveis mais expressivos. Assistir aos desvalidos, aos enfermos, aos educandos (atividades que devem ser prestadas em “entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres”) é tarefa que impõe a confrontação com o alter coletivo, de modo que possa demonstrar-se uma
4 Enquanto o Código Civil traz a figura da responsabilização civil de reparar o dano causado por ilícito em seus artigos 186 e 927, o Código Penal traz como efeito da condenação, e assim conseqüência para além da pena, tornar certa a obrigação de indenizar a vítima, em seu artigo 91. Não se devendo, pois, confundir a natureza sancionadora da mesma obrigação como aqui apresentada sob a etiqueta formal de medida sócio-educativa, imposta à adolescente como conseqüência condenatória de processo judicial que apura ato infracional. 5 Não se analisará a transcendência da penalidade em face do patrimônio dos pais ou responsáveis legais, por não ser objeto desse estudo. 84
confiança recíproca que, por sua vez, está presente em todos os códigos de ética comunitária, como herança dos decálogos religiosos. (BERGALLI, 2016)
4.4 LIBERDADE ASSISTIDA – LA: Consiste em submeter o adolescente ao acompanhamento, auxílio e orientação de uma pessoa capacitada para assisti-lo em áreas como escolar, social e profissional, para que assim sejam afastadas possibilidades de novas práticas delituosas. A Liberdade Assistida configura-se como o mecanismo reeducador mais eficaz dentre os apontados pelo ECA, visto que permite aos adolescentes o cumprimento junto a sua família e todo o convívio social (BARROSO, 2001), sob a supervisão de uma pessoa indicada pelo Juízo. Como se o adolescente ganhasse apenas um reforço na rede de indivíduos que o auxiliarão na sua formação como indivíduo coletivo. Sobre esse mecanismo, ensina Elias Carranza: No entanto, pela natureza da medida, considera-se importante que esta se realize com o maior grau possível de voluntariedade e ativo protagonismo do adolescente, tendo como objetivo não só evitar que este seja novamente objeto de ação do sistema de Justiça Penal mas, também, apoiá-lo primordialmente na construção de um projeto de vida. Neste sentido, o papel do orientador responsável é da maior importância e suas ações de apoio e assistência devem ser discutidas e acordadas com o adolescente, respeitando seu direito de escolher seu próprio projeto. Assim se procura que a liberdade, bem exercida, com o valor em si mesma, atue como principal elemento socializante. (CARRANZA, 2016)
Cabe ainda ressaltar que a lei determina um prazo mínimo para a duração da medida, que nesse caso é de 6 meses, com possibilidade de ser prorrogada, revogada ou substituída a qualquer tempo. 4.5 SEMILIBERDADE: É considerada como uma das medidas mais severas, sendo superada apenas pela internação, considerando que aqui, o jovem encontra-se parcialmente privado de sua liberdade, estando livre para frequentar a escola, bem como cursos profissionalizantes, sendo recolhido novamente à noite, assim como aponta Wilson Donizeti Liberati: Como o próprio nome indica, a semiliberdade é executada em meio aberto, implicando, necessariamente, a possibilidade de realização de atividades externas,como a frequência à escola, às relações de emprego etc. Se não houver esse tipo de atividade, a medida socioeducativa perde sua finalidade. (LIBERATI, 2006)
Pode o adolescente receber a medida desde o início, a depender da gravidade do caso e de sua necessidade de execução, assim como também pode ser inserido nesse regime como forma de transição da internação para o meio aberto. (LAMENZA, 2012) O grau de similitude com o regime semi-aberto das penas privativas de liberdade aplicáveis aos imputáveis – mesmo sem mencionar a quase que identidade entre as unidades de execução – vê-se evidente. Posto que lá, para os adultos, são permitidas, sob esse regime prisional as denominadas autorizações de saída6. 6 A Lei de Execuções Penais, em seus artigos, sob as denominações de Permissão de saída e de saída temporária, permite que o apenado saia da prisão para desde casos de falecimento ou doença grave do cônjuge, até visitação à sua família, respectivamente. Vide artigos 120 e seguintes da LEP. 85
4.6 INTERNAÇÃO Essa medida é considerada como sendo de caráter excepcional, ou seja, apenas poderá ser utilizada após o esgotamento de todos os recursos possíveis para reeducar o jovem infrator, e se assim ocorrer, seu período de duração deverá ser o menor possível. Acerca da excepcionalidade de tal medida, Bianca Moraes e Helane Ramos asseveram: A internação precisa ser excepcional. Isso significa que sua aplicação somente se justifica quando não há outra que se apresente mais adequada à situação. As exceções pressupõem a existência de uma regra. Neste caso, a regra é a da manutenção do jovem em liberdade. A excepcionalidade é consequência do caráter aflitivo das medidas restritivas de liberdade, e guarda estreita relação com a necessária delimitação do poder do Estado de impingir aos indivíduos cerceamento no exercício dos seus direitos. (MORAES, RAMOS, 2010, p.844)
Moraes e Ramos ainda destacam outra característica que precisa ser observada para a aplicação da internação: a brevidade. A internação precisa ser breve. Quer isso dizer que deve alcançar o menor período possível da vida do adolescente, o qual está em processo de formação e tem no seu direito fundamental à liberdade um dos mais relevantes fatores para a construção do seu caráter. A vida em sociedade, os direitos de expressão, de se divertir e de participação da vida política são exemplos da importância do gozo da sua liberdade, em um momento singular da sua existência. (MORAES, RAMOS, 2010, p.844)
Tal medida consiste na privação de liberdade dos adolescentes, dessa vez total, em entidade exclusiva para estes, por período não superior a 3 anos, observando-se a separação destes por categorias como idade, tipo físico e gravidade da infração cometida, ficando também obrigatória a realização de atividades de cunho pedagógico para que o caráter sócio-educativo da medida venha a surtir seu efeito. Suas hipóteses de aplicabilidade estão expostas em rol taxativo no artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo então apenas três hipóteses de cabimento: quando o ato infracional em questão for cometido mediante violência ou grave ameaça, pela reiteração no cometimento de outras infrações de natureza grave ou pelo descumprimento reiterado e injustificável de uma medida que lhe foi imposta anteriormente. Por envolver privação de liberdade, a eles é assegurado uma série de direitos, que podem ser observados no artigo 124 do Estatuto, visto que é dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos.
5. CONCLUSÕES A similitude das espécies de medidas sócio-educativas, aplicáveis aos adolescentes em conflito com a Lei, com as sanções penais aplicáveis aos adultos, salta aos olhos como o mais evidente dos aspectos de suas inconstuticionalidades. É verdade que aquelas, as penas, alternativas ou privativas de liberdade, vivem seu ocaso7 e são condenadas mundo a fora em face de sua completa ineficácia em face dos índices de reincidência enfrentados. 7 ROXIN, Claus. El desarrolodelderecho penal enelsiguintesiglo. in: ____. dogmática penal y politica criminal. Tradução de ETRAD. Manuel Vasquéz. Lima: IDEMSA, 1998. p. 437-465, refere que a falência da pena privativa de liberdade dá-se e dará ainda mais em consequência dos custos que a inviabilizam do que propriamente em razão de uma humanização do sistema punitivo ao redor do mundo. 86
Os perfis dos infratores menores de dezoito anos igualmente coincidem com diversos perfis daqueles encontrados nas unidades prisionais de adultos. O que nos impede inclusive de identificar qual dado é reflexo e qual dado é causa. Seriam os adultos presentes no cárcere destinado aos adultos os mesmos que na adolescência ocupavam as unidades juvenis, ou essa relação não pode ser feita, pode ser um questionamento a ser tratado em outro estudo. Certo é que algo de errado e evidentemente inconstitucional há no tratamento penal de inimputáveis, quando esse tratamento encontra tantos equivalentes no tratamento destinado aos adultos. Notadamente quando esse tratamento dado aos adultos mostra sinais de falência noticiado a todo momento pela doutrina penal crítica latino americana de nossos dias atuais8. Após o término das pesquisas ora realizadas para a obtenção de respostas acerca do objetivo geral do trabalho, que se caracteriza pelo estudo das medidas socioeducativas aplicadas ao jovem infrator, restou percebido que diversos fatores implicam para um resultado, quer seja positivo ou negativo da aplicação destas. Para isso, com a análise de dados exposta no tópico 1, pôde-se perceber que existe um perfil pré-definido desse adolescente, sendo apontado logo após, no tópico 2, os direitos garantidos pela constituição a estes, mais diretamente do direito de responsabilização, em razão de se tratarem de pessoas em desenvolvimento, e por isso, inimputáveis perante o Código Penal, não respondendo igualmente aos adultos e, ficando então sujeitos ao ECA e a aplicação das medidas sócio-educativas. Desigualdade esta que foi posta à prova quando analisou-se as espécies de sanções aplicáveis aos jovens, à medida em que se viu sua semelhança com o modelo aplicável aos imputáveis adultos. A partir do tópico 3, cada uma das medidas foi brevemente estudada: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Com o intuito de deixar clara as hipóteses de aplicabilidade bem como a razão pela qual é interessante a execução da medida em determinados casos, para que seu fim seja de fato realmente as desejáveis educação e ressocialização. Com a verificação da similitude com as medidas sancionadoras aplicáveis aos maiores de idade, ficou nitidamente demonstrada a ineficácia na execução de tais medidas, não pela má formulação da lei, mas sim pela omissão do Estado executivo, principalmente por não fornecer ferramentas necessárias para a efetivação destas medidas. Entende-se assim que o principal responsável pela ineficácia das medidas é o Estado, que se omite e não proporciona os meios necessários para sua execução de modo satisfatório, conforme se estabelece no ECA, fazendo com que o sistema sócio-educativo por muitas vezes não passe de um sistema exclusivamente punitivo, sem que seja alcançada a sua real finalidade. Cabe ressaltar ainda que antes de se pensar em meios para melhoria do atual sistema, se faz importante observar formas de prevenção, para que não se necessite sequer a aplicação da uma medida9. E essa prevenção pode ser efetivada principalmente pela criação de políticas públicas visando uma 8 Sobre o tema da falência das medidas penalizadoras ver Baratta, Europa, e Zaffaroni, Argentina, no Brasil conferir: Vera Regina Pereira de Andrade, em Qual alternativismo para a brasilidade? política criminal, crise do sistema penal e alternativas à prisão no Brasil, publicado na Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n. 59, p. 83-107, out./dez. 2015, p. 11. 9 Para o Marques de Becaria, em seu atemporal Dos Delitos e das Penas: É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que lhes possam causar, segundo os cálculos dos bens e dos males desta vida. (BECCARIA, 2017, p.104) 87
melhoria no bem-estar da vida desse jovem com educação de qualidade, profissionalização, cultura e lazer, além do apoio às famílias, que precisam estar estruturadas para que possam auxiliar seus filhos e acompanhá-los, de forma que, com uma base familiar e social, não cheguem nem a praticar atos delituosos e com isso, os índices de adolescentes em situação de vulnerabilidade social se torne cada vez mais escasso, ou, quiçá em níveis menos inaceitáveis.
REFERÊNCIAS ALMEIDA, Suenya Talita de. Delinquência juvenil e controle social: a construção da identidade infratora e a dinâmica disciplinar do Estado. (Tese de Doutorado) Recife: O Autor/UFPE, 2013. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas : Tradução de Paulo M. Oliveira; prefácio de Evaristo de Moraes. 2ª. ed. São Paulo: Edipro, 2015. BERGALLI, Roberto. ARTIGO 117/LIVRO 2 – TEMA: MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS. 2016. Disponível em: :<http://fundacaotelefonica.org.br/promenino/trabalhoinfantil/promeninoecacomentario/ eca-comentado-artigo-117livro-2-tema-medidas-socio-educativas/>. Acesso em: 11 maio 2018. BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. BRASIL. LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. CARRANZA, Elias. ARTIGO 118/LIVRO 2 – TEMA: LIBERDADE ASSISTIDA. 2016. Disponível em: <http://fundacaotelefonica.org.br/promenino/trabalhoinfantil/promeninoecacomentario/eca-comentadoartigo-118livro-2-tema-liberdade-assistida/>. Acesso em: 11 maio 2018. COSTA, Ana Paula Motta. Os adolescentes e seus direitos fundamentais: da invisibilidade à indiferença. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. FILHO, José Barroso. Do Ato Infracional. 2001. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/2470/do-atoinfracional>. Acesso em: 11 maio 2018. FUNASE, Fundação de Atendimento Sócio-educativo. Estatísticas do ano de 2013 . 2013. Disponível em:
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A CONSTELAÇÃO FAMILIAR NO ÂMBITO DA CONCILIAÇÃO JUDICIÁRIA COMO MECANISMO DE INIBIÇÃO OU ATENUAÇÃO DOS EFEITOS DA ALIENAÇÃO PARENTAL Amanda Karina de Siqueira Arruda1 amandarruda@hotmail.com
RESUMO: O presente projeto de pesquisa será desenvolvido no âmbito do Direito Civil, com ênfase ao direito de família e o efeito da técnica criada na década de 1970, pelo filósofo alemão Bert Hellinger, “A constelação Familiar”. Verifica o uso, a abordagem e aplicabilidade da técnica da constelação sistêmica familiar no meio jurídico-social ao melhor interesse do menor, da família e sociedade. Assim, observa-se as principais intervenções e contribuições dessa técnica nas audiências de conciliação de algumas Varas de Família e Registro Civil do Estado de Pernambuco. No Brasil, no ano de 1999, foi implantada a técnica dentro de alguns fóruns do país. No Estado de Pernambuco, a iniciativa surge em novembro de 2016 a fim de contribuir no embate de conflitos e proporcionar maior compreensão e harmonia nos relacionamentos. Tendo, portanto, o objetivo primordial de possibilitar ao judiciário intervir com as reflexões de Bert Hellinger sobre os valores morais para evitar a consolidação de prejuízos diversos aos menores que são vítimas das relações de hostilidade dos seus genitores. Para execução deste trabalho, será utilizado o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica e documental do judiciário de Pernambuco na utilização da Constelação Familiar como mecanismo de inibição ou atenuação dos efeitos da alienação parental. Como técnicas de pesquisa, serão usadas as devidas apropriações bibliográficas e documentais. Palavras-chaves: Constelação Familiar; Conciliação; Alienação Parental. ABSTRACT: This research project will be developed within the scope of Civil Law, with emphasis on family law and the effect of the technique created in the 1970s, by the German philosopher Bert Hellinger, “The Family Constellation”. We will verify the use, approach and applicability of the technique of the family systemic constellation in the juridical-social environment to the best interests of the minor, family and society. Thus, we will observe and discuss the main interventions and contributions of this technique, in the conciliation hearings of some Family Courts and Civil Registry of the State of Pernambuco. In Brazil, in 1999, the technique was implemented in some forums in the country. In the State of Pernambuco, the initiative arises in November 2016, in order to contribute to the conflict conflict and provide greater understanding and harmony in relationships. Therefore, the primary objective is to enable the judiciary to intervene with Bert Hellinger’s reflections on moral values in order to avoid the consolidation of diverse damages to the minors who are victims of the hostile relations of their parents. To carry out this work, the deductive method will be used, with bibliographical and documentary research of the Pernambuco judiciary in the use of the Family Constellation as a mechanism to inhibit or attenuate the effects of Parental Alienation. As appropriate research techniques will be used the appropriate bibliographical and documentary appropriations. Keywords: Family Constellation; Conciliation; Parental Alienation. 1 Graduanda em Direito. Faculdade de Olinda - FOCCA. 91
1. INTRODUÇÃO Criada pelo teólogo, filósofo, professor e psicanalista alemão Bert Hellinger há mais de 40 anos, a Constelação Familiar é uma abordagem terapêutica embasada em três leis naturais que atuam nas relações humanas, também chamadas de “as ordens do amor”. São elas: Pertencimento, Hierarquia e Equilíbrio. Atualmente, seu trabalho é reconhecido no mundo todo e o método é utilizado em diversos setores, tendo como exemplo a psicoterapia, as organizações/empresas, educação, saúde e a área Jurídica. Nesta perspectiva, a abordagem da Constelação Familiar será abordada como método de diminuir os efeitos de conflitos no âmbito judicial, analisando as medidas que o Judiciário vem abordando de maneira interdisciplinar no que concerne maior atenção às questões de ordem psíquica. E, tratandose de alienação parental, pode-se ampliar os estudos e as discussões sobre a presença de dano afetivo quando as leis naturais - “as ordens do amor” que Hellinger se refere- são violadas. E, quando violadas, surgem compensações que atuam nos membros envolvidos. É nesse momento que a técnica da Constelação atua abordando o poder da entidade familiar, sua extinção, alienação parental o dano afetivo e a atuação do judiciário utilizando-se da técnica para amenizar o conflito entre as partes e preservar o bem-estar e interesse do menor. O presente projeto de pesquisa propõe identificar os resultados obtidos, analisar os efeitos, as vantagens e desvantagens da aplicabilidade da técnica da constelação sistêmica familiar nas audiências de conciliação de algumas Varas de Família e Registro Civil do Estado de Pernambuco. Também procura verificar a colaboração dessa abordagem sistêmica no Poder Judiciário e o que ela pode oferecer ao Direito brasileiro. A Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que estimula práticas que proporcionam tratamento adequado dos conflitos de interesse do Poder Judiciário, consolidam a importância e o reconhecimento da eficácia de métodos que auxiliam os genitores e suas famílias no entendimento dos efeitos nocivos da alienação parental buscando esclarecer às partes o que há por trás do conflito que gerou o processo judicial antes mesmo das audiências de conciliação. Neste contexto, as reflexões de Bert Hellinger sobre os valores morais e os motivos pelos quais pessoas que construíram laços familiares passam a digladiarem-se utilizando como arma principal seus próprios filhos. Com isso, há a necessidade de compreender o porquê de a implantação dessa técnica estar sendo fundamental na inibição ou atenuação dos efeitos da alienação parental, tornando-se passaporte para encontrar soluções para conflitos familiares dentro do Poder Judiciário considerando que o Judiciário brasileiro vem lançando mão dos ensinamentos de Hellinger e ampliando a aplicação da sua terapia das Constelações Familiares, já presente em tribunais de pelo menos 16 estados brasileiros, incluindo Pernambuco.
2. PODER FAMILIAR E O INTERESSE DO MENOR O novo código de processo civil norteia o interesse do menor como chave central em toda atividade jurídica no direito de família, prevalecendo o bem-estar do menor acima dos interesses pessoais dos pais. O antigo “Pátrio Poder” perde o predomínio e o “poder”, agora, é o “familiar”, sendo a guarda compartilhada em caso de pais que não convivem juntos, em regra geral, adotada pelo judiciário brasileiro, a fim de amenizar ou até mesmo evitar a prática da alienação parental, na tentativa de buscar o melhor interesse da criança e preservar seus direitos no que concerne à constituição federal em seu art. 227. 92
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, e a convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA, DE 1988).
Desde então, atividades jurídicas no âmbito das relações familiares sofreram significativas mudanças, tal como a Lei 11.698/2008 que traz ao ordenamento brasileiro a guarda compartilhada como regra geral prevalecendo a igualdade de condições, responsabilidades, deveres e obrigações que são atribuídos a ambos os pais, regendo a reciprocidade dos direitos entre eles e seus filhos. É importante esclarecer que a guarda compartilhada não se assemelha a guarda alternada, conforme crítica de Maria Berenice Dias (2006, p 363) “procede-se praticamente na divisão da criança”, que, através de rígidos intervalos de tempo está na convivência da mãe e em seguida do pai, o que pode gerar ansiedade, prejuízos emocionais e prejuízo na rotina da criança. A guarda compartilhada é indicada para que os pais consigam reorganizar suas relações amadurecendo-as no intuito de prevenir o distanciamento com os filhos e consigam priorizar a boa convivência em prol do menor.
3. SAP – SINDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL A Síndrome de Alienação Parental (SAP) foi definida pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner ainda na década de 80, como um distúrbio que acometeria menores envolvidos em situações de hostilidade entre os pais separados, sobretudo, mas não exclusivamente, em situações de disputa de guarda. Na visão do pesquisador, a SAP se desenvolve a partir de programação ou lavagem cerebral realizada por um dos genitores, ou ainda por algum indivíduo do vínculo familiar deste, para que o filho rejeite o outro responsável (GARDNER, 2001). No Brasil, um estudo dirigido por Sousa (2010) sobre a temática constatou que associações de pais separados tiveram papel de destaque na consolidação das ideias de Gardner, uma vez que essas entidades, ao dedicarem-se a promover a igualdade de direitos e deveres de pais separados, através de debates acerca da importância da guarda compartilhada, introduziram em seus trabalhos aspectos centrais da SAP como forma de preservar a convivência familiar após o rompimento conjugal. Entretanto, fora do contexto de atuação dessas entidades, a escassez dos debates e estudos acerca dos efeitos da alienação parental contribui para a naturalização do assunto de forma acrítica, como se fosse uma consequência natural em casos de litígio conjugal, extraindo do Estado o dever de intervir de forma a inibir ou mesmo atenuar os efeitos da alienação parental. Assim, o objetivo primordial da lei 4.053/2008 (Lei de Alienação Parental) é possibilitar ao judiciário intervir com medidas simples a fim de evitar a consolidação de prejuízos diversos aos menores vítimas das relações de hostilidade dos genitores, estabelecendo medidas para inibir a prática de atos de alienação parental ou atenuar seus efeitos, sob o argumento de que: (...) a alienação parental merece reprimenda estatal porquanto é forma de abuso no exercício do poder familiar, de desrespeito aos direitos de personalidade da criança em formação; que envolve claramente questão de interesse público, ante a necessidade de exigir uma paternidade ou maternidade responsável, compromissada com as imposições constitucionais, bem como de salvaguardar a higidez mental das crianças e adolescentes. (PROJETO DE LEI Nº 4.053, DE 2008).
Graças às abordagens interdisciplinares que o Direito de Família vem recebendo, passou-se a prestar maior atenção às questões de ordem psíquica ampliando as discussões sobre a presença de dano afetivo 93
pela ausência de convívio paterno filial, uma vez que, antes, a função materna levava a que os filhos ficassem sob a guarda da mãe. Ao pai restavam somente as visitas em dias predeterminados. Agora, porém, a sociedade move as transformações de costumes e culturas, incluindo o reconhecimento das mais diversas formas de família. O conceito de família em si mudou, e essas transformações potencializaram as discussões sobre os conflitos no seio familiar e a observação da alienação parental como tema fundamental no Direito de Família.
4. CONSTELAÇÃO FAMILIAR E O DIREITO SISTÊMICO A abordagem sistêmica é uma forma de buscar organização de maneira efetiva dentro de um determinado sistema buscando melhoria para o bem de um todo. Sendo nosso primeiro contato com o pensamento sistêmico, o sistema que estamos inseridos desde o nascimento; Família, sociedade, comunidade a qual faça parte, instituições etc. Ou seja, fazemos parte de muitos sistemas, dentro de grupo interdependente que compõe o sistema. Um fenômeno desenvolvido por Bert Hellinger, que consiste num conjunto de valores, crenças, convicções, comportamentos e relacionamentos. A técnica de constelação familiar e sua visão sistêmica é importante ao enxergar os fenômenos do mundo e a complexidade das interações pessoais. Ela é inicialmente inserida no campo da terapia familiar dentro de consultórios médicos e vem sendo amplamente difundida em outras áreas além da psicologia dando origem a constelação educacional, conflitos étnicos, organizacionais, empresariais e integrando a compreensão mais dinâmica das relações, especificamente o Direito Sistêmico. Mesmo com a globalização, que estreitou as fronteiras culturais e facilitou a introdução de novas ideias e interpretações sobre as relações familiares, percebe-se que estamos dentro de uma cultura ainda muito paternalista e litigante, fazendo-se necessário a atuação do poder judiciário para resolver questões privadas e intimas. A população tem buscado cada vez mais a justiça, e a psicologia vem ocupando um lugar de relevância nesse contexto, auxiliando as relações subjetivas na busca de soluções construídas e aceitas conjuntamente nas audiências de mediações e conciliações, conforme sugere o novo código de processo civil e a lei 13140/15. Juntamente, é evidenciado que a questão emocional não pode mais ser tratada como “detalhes irrelevantes”, e sim como peça importante do conflito e na, maioria das vezes, componentes decisivos na solução do problema.
5. TJPE TÉCNICA DE CONSTELAÇÃO FAMILIAR SISTÊMICA PARA LITÍGIOS DE FAMÍLIA Em novembro de 2016, a Juíza Wilka Pinto Vilela aplicou pela primeira vez a técnica sistêmica como ferramenta judicial na resolução de conflitos com o objetivo de facilitar a convivência familiar em processos judiciais. Ela utilizou o método da Constelação Familiar Sistêmica como instrumento de resolução de conflitos em 30 processos de alto litígio convidando os casais das ações para a palestra e vivência sobre o método. A expectativa era, através da técnica que permite que o conflito seja devolvido aos próprios donos para que eles consigam compreender e busquem suas próprias pacificações, conseguir que os casais entrassem em conciliação nos processos. As pessoas vão ao Judiciário achando que nós, juízes, somos salvadores da pátria. E não somos salvadores da pátria porque o conflito que gerou aquela demanda está lá, no sistema familiar deles, e com essa técnica temos conseguido ajudar essas pessoas”, disse a magistrada durante apresentação da experiência pernambucana com constelação familiar no Workshop Inovações na Justiça, realizado pelo Conselho da Justiça Federal
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Percebe-se que o passo fundamental para pacificação dos conflitos é reconhecer a importância de cada membro da família. De acordo com o funcionamento da técnica que é considerada uma terapia familiar e por meio de dinâmica de grupo, busca-se identificar o que produz os problemas no sistema familiar e mostrar claramente os padrões de conduta repetitivos que perduram ao longo das gerações de forma inconsciente, de acordo de como era o comportamento no passado da família. É preciso uma busca por essa reconciliação com os pais e avós para o afastamento de bloqueios que atrapalham relacionamentos no presente. A partir dessas informações, pode-se compreender o porquê de Hellinger chamar a técnica de “ordem do amor” e ela é constituída por três leis básicas que são: o pertencimento, que significa que todos têm o direito de pertencer a uma família; a hierarquia, a qual estabelece que quem chega primeiro tem precedência sobre os que chegam depois enfatizando o respeito aos mais velho; e o equilíbrio, que implica na igualdade de dar e receber entre os membros familiares. A juíza ainda observou que: “Quando há uma desarmonia em qualquer uma dessas três leis, segundo a técnica, surgem os problemas nas relações e na convivência familiar. Então, realmente, é preciso buscar valores como gratidão, respeito, inclusão dos familiares, e o não julgamento do outro para que tudo seja reorganizado na família”
Contudo, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) tem como objetivo resolver e transformar os conflitos de forma definitiva, e não apenas resolver o processo. O objetivo maior, principalmente quando envolver menor no litígio, é resgatar o convívio familiar e o respeito dos envolvidos no caso, preservando assim o melhor interesse da criança e o respeito pela entidade família. De acordo com Vilela, as ações abrangem divórcio, guarda, regulamentação de visitas, e alienação parental. No método, por meio de uma dinâmica de grupo, os participantes representam os membros da família dos litigantes e assim reconstroem um pouco das histórias vivenciadas no sistema familiar. Para Vilela (2016), “A Constelação modifica positivamente por ir ao cerne do sistema familiar em que surge o conflito, e contribui para a sua pacificação ao promover a reconciliação daquela família”. Ela ainda conclui “trabalhando dessa forma, a tendência é que a solução seja duradoura”. Ou seja, o problema não ressurge em nenhum dos casos de conflitos de direito de família que estão sendo trabalhados com o novo método atenuando um novo ingresso na justiça. Em entrevista a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais –ANAMAGES–, Vilela fala que seu interesse em implementar a metodologia sistêmica familiar em Pernambuco aconteceu há alguns anos atrás quando a mesma participou de um encontro onde conheceu a técnica através de uma palestra e vivência. Vilela (2016) afirma: “fiquei deslumbrada com os resultados obtidos. Logo em seguida, resolvi fazer o curso de formação e visualizei a possibilidade alternativa de aplicação do método de Bert Hellinger, como forma de solucionar os conflitos familiares ou melhorar as relações e não apenas o processo. ” Ela ainda relata a vantagem de aplicação da técnica para o jurisdicionado, para o judiciário e para a sociedade de Pernambuco de forma que quando uma pessoa ingressa com uma ação na Justiça, ela quer a resolução daquele litígio de forma rápida, já que sozinha não conseguiu o seu intento. A constelação familiar sistêmica é uma ferramenta muito útil porque vai atuar dentro do sistema familiar, dentro do sistema organizacional e reorganizar a vida das pessoas através da aplicação do método indo na causa do problema apresentado. Será muito importante para o jurisdicionado quando ele se aperceber que por trás daquela contenta existe muito mais do que aquele litigio, compreender porque aquilo aconteceu, para restabelecer a ordem que foi violada dentro do ceio familiar, pacificando os relacionamentos das pessoas, nas famílias. O judiciário como um todo está passando por um momento de crise, temos a morosidade, temos o acesso 95
à justiça em nível elevado, por força da consciência do povo, em detrimento da quantidade de juízes, onde os juízes não conseguem entregar a tutela jurisdicional efetiva, por força também de falta de pessoal. Logo, como estamos com a nova visão de conciliar, mediar nos moldes da Resolução de nº 125/2010 e, também com a nova sistemática do CPC, prevista no art. 3º § 3º, e art. 165, a constelação familiar sistêmica será uma ferramenta muito eficaz, servirá como um instrumento de alta eficácia para resolução de conflitos para todos, por ter um resultado rápido. ” Mencionou a magistrada. A Vara de infância e juventude de Olinda, onde a magistrada Laura Amélia é titular, também relata que vai inserir o método para resolução de conflitos. “Harmonizar um sistema familiar que está desarmonizado é a função da Constelação Familiar”, a Alienação Parental tem sido um fenômeno em expansão, no qual não há vencedores, mas em que a maior vítima e quem mais sofrem são as crianças, uma vez que é a peça principal deste jogo de domínio dos afetos. Tem sido considerada como um abuso emocional, uma violência psicológica para as crianças com potenciais de graves consequências, quer para o seu superior interesse e bem-estar psicoemocional, quer para o seu desenvolvimento da personalidade, e projeção na vida adulta. Os atos de alienação parental violam gravemente a dignidade da criança, o seu direito à liberdade dos afetos, violando a Convenção Europeia dos Direitos da Criança e os seus Direitos Constitucionais Fundamentais, pois que destrói, desestrutura, desmoraliza e desacredita os laços paterno-filiais. A partir de todo esse contexto, o judiciário é respaldado (conforme a resolução125/2010) na aplicação da constelação familiar para inibir e atenuar a síndrome da alienação parental.
6 UM NOVO OLHAR PARA CONCILIAR Uma justiça que preza pelo humanismo, com um novo olhar para conciliar. As varas de família estão conseguindo aumentar as conciliações nas audiências judiciais, permitindo à justiça, outra forma de litígio que não somente a sentença. Assim, a constelação sistêmica nos traz um olhar mais amplo nos conflitos familiares, que normalmente tem suas origens mal resolvidas e em alguns casos, são reflexo de algo já vivido. Relatos informam que alienadores já foram vítimas de alienação, e tudo que fazem agora é reproduzir o que já viveram de forma inconsciente, eles estão horando o sistema familiar, partindo das repetições de comportamentos. Ou seja, filhos, netos e bisnetos alienados tendem a repetir os ciclos, que é “desatado” ou entendido a partir das palestras e participações nas audiências de conciliação utilizando-se da técnica sistêmica familiar. Dessa forma, através do judiciário e profissional preparado para conduzir o método, o “nó” sistêmico é desfeito. Permitindo que os envolvidos no litigio consiga olhar para situações do passado que os colocaram naquele momento que estão, e a partir do reconhecimento do que foi, os liberte dos “nós”, que os impedem de ser eles no presente, de sentir suas dores e angustias sem carregar pesos que não são deles e nem querer transferir esses pesos, culpas e angustias aos seus filhos. Hellinger nos mostra que existe uma consciência coletiva que rege todos os relacionamentos humanos e a família, quando somos afetados emocionalmente pelas gerações anteriores, podemos afetar as gerações seguintes através de nossos sentimentos, comportamentos e crenças. Na questão da exclusão de um dos pais, o que pode vir agregada da ação judicial através do divórcio, da guarda dos filhos ou pedido de alimentos é uma batalha judicial. Em algumas situações, na disputa de guarda da criança, não é explicita a alienação, ela ocorre de forma velada, ou seja, interiormente é possível sentir que um dos cônjuges reprova e exclui o outro e isto também reflete na criança. Crianças que sofrem alienação parental sentem-se divididas, confusas e ficam enfraquecidas com a exclusão. Podendo desencadear doenças e comportamentos inadequados. E diante desse cenário, 96
a justiça resolve inovar com essa terapia familiar, que vem sendo um marco na história do poder judiciário brasileiro. Quando pais decidem se reconciliar em suas diferenças, o sintoma da criança muitas vezes desaparece, pois ele está a serviço desta reconciliação. O trabalho do conciliador nas palestras e dinâmicas de grupo nas audiências é lembrar, que o pai só tem o filho devido à mãe que o gerou e a mãe só tem o filho, devido ao pai que o gerou. Isto é suficientemente um bom argumento para abandonar a disputa e compreender que a criança pertence aos dois genitores. É uma forma de honrar o que ambos geraram juntos, independente das circunstâncias ou diferenças que os separaram como casal. Desta forma, juízes em pelo menos 16 estados do país utilizam-se da constelação não apenas para resolver conflitos e desafogar os processos e sentenças judicias, mas as técnicas de terapia alternativas são adotadas pelo judiciário com objetivo de humanizar a justiça e resgatar na sociedade valores básicos e essenciais para a boa convivência, como empatia, respeito mútuo e amor ao próximo.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde os primórdios, a humanidade conviveu com conflitos, os quais podem ser citados: a escravidão, a luta pela igualdade, liberdade de crença, empregado e empregador, irmã e irmão, marido e esposa etc., sendo uma sociedade cada vez mais marcada pela existência de conflitos. Para solucionar esses conflitos na sociedade, o estado utiliza o poder Judiciário na figura do Juiz para intervir, decidir e por fim na lide através de decisões definitivas e muitas vezes imutáveis. Por outro lado, surgem novas práticas de justiça para solucionar conflitos dentro do judiciário, com tratamento, acesso e ordem jurídica justa. O novo código de processo civil, a Lei de Mediação (Lei 13.140/2015), Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), Lei sobre Divórcio, Partilha e Inventário (Lei 11.441/07), e a Resolução 125 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), marca o avanço na busca pelo aprimoramento das mais variadas formas de resolução de conflitos judiciais ou extrajudiciais. Nesse sentido, o estado (poder judiciário brasileiro) utiliza-se de uma “nova cultura”, uma nova era na resolução de conflitos, com incentivo aos meios autocompositivos e postura responsável dos envolvidos nos litígios. Em 1999, o Brasil utiliza pela primeira vez a técnica de constelação familiar sistêmica em audiências judiciais e percebe que a técnica do alemão Bert Hellinger constrói uma boa solução para a questão que esteja sendo vivenciada, também auxiliando no diálogo e na criação e/ou restabelecimento de vínculos mais sadios. Confere às pessoas envolvidas a autoria de suas próprias decisões, convidando-as à reflexão e responsabilidade, num contexto colaborativo e de construção de alternativas. O uso da constelação sistêmica aproxima a razão da emoção, possibilitando uma compreensão ampla da vida e de inúmeros problemas vivenciados pelas partes envolvidas. Com isso, a técnica de constelação familiar sistêmica aliada ao direito possui uma forte união (as leis do amor auxiliando as leis jurídicas). Uma aliança que trouxe avanço e uma nova era em mediar e conciliar lides. Uma força a serviço da paz social, e emocional de toda uma sociedade. Acrescento o despertar para o autoconhecimento, para a aceitação das emoções e da realidade como ela é, assim como redirecionando a visão individual para a visão sistêmica, em que não existem culpados nem inocentes. O presente projeto consegue perceber que existem inúmeras possibilidades para contribuição da psicologia junto ao direito, o primeiro caminho já foi traçado e já corre a longos passos nessas novas e criativas maneiras que a justiça começa a humanizar, privilegiando a família e o entendimento de pertencer como membro fundamental na célula social e não somente tratar a sociedade como mero instrumento de litigio em questão. O estudo sugere que conjuntos de novas 97
ideias como a de Constelação familiar sistêmica e abordagem holística precisam ser divulgadas, aperfeiçoadas e trabalhadas no Direito, sendo ferramentas transformadoras de vidas e somatório para os demais métodos de mediar e solucionar questões processuais dentro do judiciário brasileiro.
REFERÊNCIAS ANAMAGES, Associação nacional dos magistrados estaduais, 2016. Disponível em: http://anamages. org.br/noticias/a-partir-de-iniciativa-da-juiza-wilka-vilela-tjpe-introduz-constelacao-familiar BAPTISTA, Neves Sílvio, et al. Manual de direito de família. Recife: Bagaço, 2008.397p. CEZAR-FERREIRA, Verônica A. Motta, Família, separação e mediação: uma visão psicojurídica. São Paulo: Editora Método, 2004. DALBEM, Carla, Você sabe o que é constelação familiar?, 2018. Disponível em: http://www. academyhealingarts.com.br/site/terapias-academy/constelacao-sistemica/ FONTE CNJ. Direito de Família na mídia, Tribunal pernambucano utiliza da constelação familiar em conciliação, 2017. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/na-midia/13187/tribunal+pernambucano+utilizada+Constela%C3%A7%C3%A3o+Familiar+em+concilia%C3%A7%C3%A3o G1 FANTÁSTICO, Juízes usam técnicas da constelação para resolver conflitos em tribunais, 2017. Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2017/05/juizes-usam-tecnica-da-constelacao-pararesolver-conflitos-nos-tribunais.html GRANERO, Vanessa, Alienação Parental e o efeito de exclusão nas crianças, 2016. Disponível em: https:// aempreendedora.com.br/alienacao-parental-e-o-efeito-da-exclusao-nas-criancas/ acessado HELLINGER, Bert. Ordens do amor: um guia para o trabalho com constelações familiares. Tradução Newton de Araújo Queiroz. São Paulo: Cultrix, 2007b. LÔBO, Paulo. Direito civil – famílias. Saraiva, 4ª ed. 2011. POSSATO, Alex, Constelação sistêmica: os efeitos colaterais de acessar a luz. 2013. Disponível em: https:// constelacaosistemica.wordpress.com/2013/11/22/constelacao-sistemica-os-efeitos-colaterais-de-acessar-a-luz/ REDAÇÃO ASCOM TJPE, TJPE lança técnica de constelação familiar sistêmica para litígios de família, 2017. Disponível em: http://www.tjpe.jus.br/-/tjpe-lanca-tecnica-de-constelacao-familiar-sistemicapara-litigios-de-familia-13-11-?inheritRedirect=true SACERDOTE, Ana; LIMA, Fernanda A.; FREIRE, Lúcia. Famílias: reflexão sobre a arte de amar e transformar, Recife: Libertas, 2012.
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ASSÉDIO MORAL NA ATIVIDADE DE TRANSPORTE PRIVADO DE PRODUTO ACABADO Rosivaldo Câmara da Silva rosivaldo555@hotmail.com
Resumo: Neste artigo, será abordado um dos comportamentos mais conhecidos se tratando de assédio moral na atividade de transporte privado de produto acabado, em sua relação através de coletas de dados e informações de casos de maus-tratos infligidos aos indivíduos exercendo suas atividades laborativa, conforme amostragens coletadas sobre injúrias, difamações, ofensas, afrontamentos, dentre outras denunciadas em processos judiciais trabalhistas junto ao TRT de diversas regiões ou até mesmo no TST. O assédio moral é um dos mais conhecidos tipo de abuso aplicado aos indivíduos nas entidades pública ou empresas privadas, esses abusos são derivados de uma lógica é indecente atitude de comportamento de um determinado individuo, e está relacionado ao respeito ou poder existente na relação de trabalho, ou até mesmo em um especifico setor da organização, e é possível ser identificado de várias formas, uma vez que o produto dessa relação laborativa acontecerá de várias maneiras, tais como humilhações e conflitos entre superiores direto é subordinados, inclusive poderá ocorrer essas situações entre os funcionários de mesma atividade funcional, deixando bem explicito que o principal fenômeno destruidor da relação no ambiente de trabalho e da cooperação harmônica e a convivência diferenciada entre os colaboradores na relação empregado x empregador. Palavras-chave: Assédio Moral; Transportes; Produto Acabado. ABSTRACT: This article will address one of the most well-known behaviors when it comes to moral harassment in the private transportation of finished product, in its relationship through data collection and information on cases of maltreatment inflicted on individuals performing their work activities, according to samplings collected on slander, defamation, offenses, hot flashes, among others denounced in labor judicial proceedings with the TRT of several regions or even in the TST. Bullying is one of the most well-known types of abuse applied to individuals in public entities or private companies, these abuses are derived from a logic is indecent behavioral behavior of a particular individual, and is related to respect or power existing in the employment relationship , or even in a specific sector of the organization, and it is possible to be identified in several ways, since the product of this labor relation will happen in several ways, such as humiliations and conflicts between direct superiors are subordinate, the employees of the same functional activity, leaving explicitly that the main destructive phenomenon of the relationship in the workplace and harmonious cooperation and the differentiated coexistence between employees in the employee vs. employer Keywords: Moral Harassment; Transport; Finished product.
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1. INTRODUÇÃO Conforme ocorre em diversos setores de prestações de serviços de transporte de produto acabado, parcerias entre as empresas sofrem bastantes variações decorrentes da evolução econômica da atividade de transporte no mercado atual, podemos citas alguns desses impactos como a depreciação dos valores de fretes, frotas cada vez mais sofisticadas, falta de incentivos do governo para transportadores, estradas cada vez mais precárias dentre outros fatores. A acirrada competitividade das empresas que atuam nesse ramo tem como ponto crucial o alto número populacional de colaboradores, terceirizados e profissionais avulsos, o modelo econômico que favorece as poderosas empresas do mercado que atuam, acentuam ainda mais o abismo sócio econômico que separa e afasta os marginalizados e excluídos do mercado atual. O assédio moral é uma prática existente na relação de trabalho, identificada a partir de atitudes reiteradas de comportamentos abusivos, como a desmoralização, hostilidade e inferiorização do outro, práticas de indivíduos desprovidos de responsabilidade e respeito para com o próximo, principalmente pelo amigo de trabalho e que acabam por degradar o ambiente profissional o qual está inserido. Algumas atitudes que trarão uma boa e sadia convivência em uma relação de trabalho serão tratadas ao decorrer desse estudo. São elas: verificar os conceitos de assédio com base na doutrina e as principais formas de ocorrências de assédio moral no ambiente de trabalho; Identificar as principais características do assedio, e analisar o terror psicológico sofrido pelos funcionários no ambiente laborativo; Identificar as atitudes do agressor e da vítima, expondo os principais distúrbios e doenças ocupacionais causadas pelo assédio moral; recuperação do colaborador que foi vítima de assédio moral e acompanhar os pontos de evolução com demonstrativo de melhoria no âmbito interno das organizações; e analisar as formas que o poder judiciário disciplinará empresas condenadas a pagar indenização por dano moral na atividade de transporte. Diante de todo esse processo, as relações humanas – já complexas por natureza, uma vez que estamos tratando de uma relação jurídica entre empregado x empregador, a competitividade entre as empresas são bastante acirradas – merecem estudo aprofundado, principalmente pelos distúrbios e doenças ocupacionais que vem ocorrendo em número expressivo muito preocupante para novas gerações futuras. No âmbito da atividade de transporte, por exemplo, está sendo mais rotineiros ato de assedio no local de trabalho podemos, nos deparar com ocorrências, que provoca nas vítimas graves danos emocionais, psíquicos e físicos. O universo jurídico tem sido palco de grandes discussões sobre a necessidade de proteger trabalhadores que são vítimas do assédio moral dentro de suas organizações, de modo a estabelecer meios legais de prevenir e evitar atos desse tipo, no intuito de reparar e punir toda e qualquer violação à sua integridade, dignidade e direitos fundamentais, partindo de todo esse aparato, vem a dúvida. Podese questionar quais os casos mais comuns de assédio moral na atividade de transporte de produto acabado de acordo com a jurisprudência. É coerente afirmar que as vítimas que passam por um “terror psicológico”, como também é conhecido o assédio moral, tem por consequência em algumas situações mudanças consideráveis em sua personalidade, afetando a sua competência dentro do setor que exerce suas atividades, a criatividade, o seu talento e a predisposição para o trabalho são alguns dos pontos positivos que existe em um colaborador diferenciado, as consequências não param por aí; como efeito dominó, elas tornam-se pessoas antissociais, perdem a autoestima e a motivação de viver, tornam-se autodestrutivas, podendo incorrer a vícios e até mesmo ao suicídio. 100
Embasado no conteúdo mencionado ao decorrer desse estudo será apresentado ás diversas formas de assédio moral na atividade de transporte de produto acabado e as consequências trazidas ao profissional no ambiente laborativo. A metodologia aplicada para se chegar ao ponto crucial desse estudo será através da análise investigatória, ou seja, método dedutivo de tratamentos de dados, relacionada ás ocorrências de tipos de assedio. Essas pesquisas serão realizadas através de jurisprudências, decisões ou julgados nos TRTs e TST, conforme a região que ocorreu a condenação, serão expostos também os tribunais que deram sentenças favoráveis aos funcionários vítimas de assédios e condenaram empresas pagar valores altíssimos.
2. CONCEITOS DE ASSÉDIO MORAL Por ser um fenômeno estudado primeiramente pela Psicologia, mais especificamente pela Psicologia do Trabalho, nada mais natural do que buscar o conceito de assédio moral nesse estudo. Devido a isso, diversos autores citam o conceito da psicóloga francesa Marie – France Hirigoyen (20117, p. 65): “Por assédio em um local de trabalho temos que entender toda e qualquer conduta abusiva manifestandose sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.
Sabendo que não se entende como um fenômeno novo, ou seja, pode-se dizer que o assédio moral existe desde que o homem passou a viver em sociedade, recentemente o assunto tem sido objeto de estudos na área jurídica, no Brasil notadamente inclusive quanto à sua ocorrência nas relações de trabalho, podendo ser percebida de diversas formas. Em seu conceito, Marie-France Hirigoyen (2000, p. 65) compreende que: “Toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho” (HIRIGOYEN, 2000, p. 65).
Como há de perceber o assédio moral, é uma atitude que caminha por décadas nas relações pessoais ou através de subordinação no ambiente laboral, os casos mais comuns consistem em atos cruéis e/ ou desumanos onde os colaboradores são submetidos a situações degradantes e fora do normal, principalmente quando são penalizados por meta que não foram alcançadas, ocorre que em muitas das vezes por um longo período tempo, atitude essa que a CLT repudia em sua maioria, a ética no polo ativo encontramos os chefes usando de seu poder de mando em função de seu subalterno, ocorre nas relações de trabalho na realização de suas funções. A estudiosa francesa Marie-France Hirigoyen assim define o Assédio Moral: “O assédio moral no trabalho é qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho”.
O assédio moral está explicito em uma relação empregado x empregador de tal forma que consegue ser identificado como algo subjetivo para os agressores, para os agredidos algo de grande potencial 101
ofensivo e de total relevância, em muitas vezes não é possível evitar ou prevenir que as vitimas de assedio sofram transtornos ou problema psicológicos em decorrência das agressões sofrida. O assédio moral para Capelari, (2009) pode ser dividido em três espécies, sendo elas: “1. Assédio moral vertical: esta pode ser praticada de duas formas, pelo hierarquicamente superior ou pelo hierarquicamente inferior. Na primeira ocorre de forma vertical descendente, onde o superior hierárquico no uso de suas atribuições e de seu poder inerente a função, atinge ao subordinado de forma a dificultar o desempenho de suas funções e até mesmo causar lhe o constrangimento, esta é a mais comum encontrada. Na segunda, temos a forma vertical descendente, onde o subordinado está no polo ativo, este sabe de fatos que coloca a vida pessoal ou profissional do superior em jogo, seria uma forma de coagi-lo. “2. Assédio moral horizontal: esta ocorre também com frequência, os agentes que atuam nessa espécie são de níveis hierárquicos iguais, sendo assim, a agressão ocorre em face do outro buscando melhorias em sua função ou salário. “3. Assédio moral misto: nesta são necessárias ás duas espécies anteriores e também a vítima, ou seja, a vítima é excluída pelo superior e sofre também com seus colegas de trabalho, que por algum motivo tendem a escolher o lado da chefia.
2.1 ASSEDIO MORAL NA ATIVIDADE DE TRANSPORTE DE PRODUTO ACABADO O assédio moral na atividade de transporte de produto acabado, também denominado como violência moral, refere-se ao fenômeno que indica situações onde á relação humana entre as partes (empregado x empregador) predispõe-se ao desequilíbrio, de forma que uma delas age de forma abusiva sobre a outra, no sentido de impor a vitima do assedio danos irreparável, violência nociva e perversa à moral, de modo sucessivo, habitual, causando graves problemas á saúde do ofendido. Segundo Salvador (2002), tal fenômeno vinha sendo tratado e confundido com outros problemas no mundo do trabalho, como stress ou conflito natural entre colegas – fato que sempre prejudicou a caracterização e prevenção do problema. O autor cita a jurista Lydia Guevara Ramires, que nota que a pessoa assediada é escolhida. Ainda segundo Barros (2005, p 871-872): “O assédio moral está diretamente ligado à nossa própria estrutura emocional e sentimental, a que chamamos de caráter. ” Barros em seu conceito abaixo diz que o assédio moral está diretamente ligado á estrutura emocional e sentimental do indivíduo, indivíduo esse que teve sua dignidade afetada por consequência de atitudes ou situações agressivas resultando em sua vida pessoal, no ambiente escolar tão quanto no de trabalho. De acordo com Barros: O assédio moral está diretamente ligado à nossa própria estrutura emocional e sentimental, a que chamamos de caráter. Trata-se pois, de um atentado contra a dignidade humana, que de início se manifesta nos ambientes familiar e escolar, e que mais tarde, na vida adulta, pode chegar ao ambiente de trabalho e em outras áreas da sociedade, em forma de potencial ração negativa decorrente de ciúmes, invejas e rivalidades quando se depara com exibição de valores, relato de brilho e glória. Nessas situações, o Direito busca a proteção à dignidade da vítima, fato que justifica a punição do assédio moral, sendo este o seu fundamento. (BARROS: 2005, 871-872)
2.1.1 DAS OUTRAS FORMAS DE ASSÉDIO MORAL Alguns autores falam que o assédio moral poderá ocorrer de determinadas formas, não obstante de qualquer tipo de atividade ou ramo, sem contar que os resultados negativos trazidos para funcionários vítimas de assedio no ambiente de trabalho serão levados por eles durante muito tempo, chegando até o próprio colaborador passar por diversas doenças ocupacionais. Analisando essas observações segue abaixo algumas das formas mais comuns de assédio moral no local de trabalho. 102
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Dar instruções erradas com o fim de prejudicar; Atribuir erros que o trabalhador não cometeu; Críticas em público do colaborador que não atingiu sua jornada; Brincadeiras de mau gosto no posto de trabalho; Impor horários e rotas sem justificativas; Transferência de setor para isolá-lo dos demais ou colocado em rota de viagem sem descanso; Proibir colegas de falar ou fazer refeições com o trabalhador; Fazer circular boatos maldosos sobre o trabalhador ou de sua família; Submeter a humilhações públicas ou particulares; Perseguições; Punir o trabalhador injustamente; Omitir informações necessárias para o desempenho da função;
2.2 PRINCIPAIS CARACTERISTICAS DO ASSÉDIO MORAL NA ATIVIDADE DE TRANSPORTE DE PRODUTO ACABADO O assédio moral na atividade de transporte de produto acabado se dá na maioria das vezes quando um dos colaboradores se recusa a atender uma determinação do seu superior direto, acumulo de diversas atividades, trabalho excessivo sem parada para descanso intrajornada determinação obrigatória pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), atitudes e condutas negativas dos chefes em relação aos seus empregados ocasiona uma experiência subjetiva que resulta em prejuízos emocionais para aquele funcionário. E notável que a fragilidade dessas vítimas de assédio é decorrente da constante humilhação que sofre o colaborador no ambiente de trabalho, passa afetar a vida particular do mesmo, comprometendo sua identidade, dignidade e relações afetivas e sociais dentro e fora da sociedade, de forma a ocasionar gravíssimos danos à sua saúde física, emocional e mental, podendo evoluir inclusive para a incapacidade laborativa, conforma expõe Salvador (2002) em seus estudos.
3. IDENTIFICAÇÃO DAS ATITUDES DO AGRESSOR E DA VITIMA. Segundo Quadros (2004), uma das primeiras atitudes do agressor é escolher sua vítima e isolá-la do grupo, impedindo que a mesma se expresse e sem explicar qualquer motivo. Com isso, a vítima vai se fragilizando, se sentindo inferiorizada, e passa a ser ridicularizada e menosprezada na frente dos colegas, e muitas vezes, até por eles próprios. Conforme e percebido é muito comum deixar a vítima de assedio desestabilizada emocionalmente, o colaborador vai perdendo sua autoestima e principalmente sua autoconfiança, seu interesse no trabalho, fazendo com que o agressor alcance assim seus objetivos. De acordo com os dados a seguir expostos o agressor utiliza meios diferentes para atingir homens e mulheres. Podemos citar, por exemplo, para atingir homens, atacam sua virilidade, preferencialmente. Já com as mulheres os controles são diversificados, tais como a intimidação, a submissão, a proibição da fala, controle de tempo e frequência de permanência nos banheiros, e relacionando atestado médico e faltas, a suspensão de cestas básicas e promoções, por exemplo. Por se sentir acuada e sem apoio, a fragilização da vítima leva a sérios distúrbios de saúde. Em entrevista realizada com 870 homens e mulheres vítimas de violência moral no ambiente de trabalho, 103
realizada por Barreto (apud QUADROS, 2004), indicam como cada sexo reage a essa situação (em porcentagem); vejamos:
SINTOMAS
MULHERES
Crise de choro Dores Generalizadas Palpitações, tremores Sentimento de inutilidade Insônia Depressão Diminuição da libido Sede de Vingança Aumento da pressão arterial Dor de cabeça Distúrbio digestivo Passa a beber Tentativa de suicídio
100 80 80 72 69,9 60 60 50 40 40 40 5 --
HOMENS -80 40 40 63,3 70 15 100 51,6 33,2 15 63 18,3
O resultado dessa pesquisa deixa claro que as vítimas de assédio consequentemente terão problemas emocionais ou psíquicos, os problemas mais comuns que poderão ser percebidos dentro da instituição ou até mesmo fora dela são: a humilhação, o constrangimento, depressão, angústia, perca de sono, conflitos com seus parentes, sem contar dentro de seu local de trabalho.
4. OS CASOS MAIS COMUNS DE ASSEDIO MORAL NA ATIVIDDE DE TRANSPOSTE DE PRODUTO ACABADO DE ACORDO COM A JURISPRUDENCIA Como bem destaca Barros: É difícil construir um conceito jurídico de assédio moral, em virtude dos “difusos perfis do fenômeno”, e é que alguns doutrinadores enfatizam no conceito o dano psíquico acarretado à vítima em face da violência psicológica sofrida. Outros autores destacam a situação constrangedora e o dano à imagem provocada pelo assédio moral. Contudo, há elementos caracterizadores sobre os quais a doutrina e a jurisprudência estão em consonância. (BARROS, 2005, 875)
O assédio moral, conforme apregoa Nascimento (2004), tem natureza psicológica. Mais especificamente no que tange à natureza jurídica do assédio, encontra-se inserido no âmbito do gênero “dano moral” ou ainda do gênero “discriminação”, pegando como gancho algumas atitudes que são consideradas como assédio moral na atividade de transporte de produto acabado estão cada vez mais se tornando corriqueira, em algumas situações levando o trabalhador á acidente de trabalho, as ameaças constante de demissão caso não atinja o resultado esperado pela empresa, o autoritarismo e a intolerância de gerências e chefias (formas abusivas de tratar), as atitudes de desprezo fazendo com oque o funcionário se sinta inferiorizado ou mal profissional, as calúnias e inverdades dissimuladas no ambiente de trabalho por chefias, os constrangimento e humilhações perante o público, a desmoralização e menosprezo de trabalhadores de outras categoria, as demissões por telefone, telegrama ou e-mail, os desvio de função (fazendo o funcionário realizar uma atividade alheia a que foi contratado), todos esses 104
pontos se caracteriza por uma conduta abusiva atentatória à dignidade da pessoa humana conforme está exposto na constituição federal. 4.1 JURISPRUDÊNCIA DO TRT REFERENTE A CONDENAÇÕES POR ASSÉDIO MORAL. Até o presente momento, infelizmente, não há uma lei específica para coibir e punir àqueles que praticam o assédio moral tanto dentro das organizações como fora delas, todavia, na Justiça do Trabalho, caso seja configurado o assédio, será devido pela empresa indenização por danos morais e físicos ao empregado. Com relação à esfera trabalhista, o assédio moral praticado pelo empregador ou por qualquer de seus prepostos autoriza o empregado a deixar o emprego e a pleitear na justiça seus direitos legais mediantes a situação. Desta feita, as práticas de assédio moral são, geralmente, enquadradas no artigo 483 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que determina que o empregado poderá, considerar rescindido o contrato de trabalho e cobrar o valores através meios na justiça do trabalho, entre outros motivos, forem identificados atividades superiores às suas forças, diferente aos bons costumes ou alheios ao contrato laborativo, ou ainda quando for agredido pelo empregador ou por quem ele delegar. Ademais, na Justiça criminal, conforme o caso, a conduta do agressor poderá caracterizar crimes contra a honra, como a difamação e injúria, contra a liberdade individual, em caso, por exemplo, de constrangimento ilegal ou ameaça. Logo abaixo estão expostos algumas das ações que já tramitam na justiça do trabalho de vários TRTs. Decisão: DE DROGAS. TRANSPORTE EM VEÍCULO DE CARGA. DIREITO A RECURSO EM LIBERDADE. MANTENÇA DA PRISÃO... o entorpecente no compartimento de carga do caminhão; QUE nunca fez transportes desse tipo... de veículos e caminhões que ingressavam no Brasil vindos do Paraguai quando, em atividade de fiscalização. TRF-4 - Inteiro Teor. APELAÇÃO CRIMINAL ACR 6748 PR 2007.70.02.006748-0 (TRF4) Jurisprudência. Data de publicação: 17/12/2009. Decisão: DE DROGAS. TRANSPORTE EM VEÍCULO DE CARGA. DIREITO A RECURSO EM LIBERDADE. MANTENÇA DA PRISÃO... a expor. No auto de prisão em flagrante, o acusado declarou apenas que fazia o transporte da carga para... no compartimento de carga do caminhão; QUE nunca fez transportes desse tipo; QUE ganharia R$ 15. TRF-4 - Inteiro Teor. APELAÇÃO CRIMINAL ACR 6748 PR 2007.70.02.006748-0 (TRF4). Jurisprudência. Data de publicação: 28/10/2009 Decisão: obrigado a realizar o carregamento/descarregamento de carretas e transporte de cargas sem o auxílio..., por vezes, se via obrigado a realizar o carregamento/descarregamento de carretas e transporte de cargas... e transporte de cargas sem o auxílio de qualquer maquinário” e o testigo do próprio autor destaca. TRT-21 - Inteiro Teor. : RTOrd 6189520155210005, Jurisprudência. Data de publicação: 06/11/2015. Decisão: obrigado a realizar o carregamento/descarregamento de carretas e transporte de cargas sem o auxilio..., por vezes, se via obrigado a realizar o carregamento/descarregamento de carretas e transporte de cargas... e transporte de cargas sem o auxilio de qualquer maquinário” e o testigo do próprio autor destaca. TRT-21 - Inteiro Teor. : RTOrd 6189520155210005 Jurisprudência. Data de publicação: 06/11/2015.. Ementa: em decorrência de motivos alheios a sua vontade, não ficando caracterizada falha ou má-prestação do serviço. Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica, a saber: TRANSPORTE. RESPONSABILIDADE. FATO SEM CONEXIDADE COM O TRANSPORTE. NÃO CONTRIBUINDO O TRANSPORTADOR NEM SEU PREPOSTO PARA O EVENTO DANOSO FICAM AQUELES ISENTOS DE QUALQUER RESPONSABILIDADE PELO fato (REsp 61526 / RJ, Rel. MIN. CLÁUDIO SANTOS, 3ª T., j. 08/08/1995, DJ 27/05/1996 p. 17866) 1.- Tratam os autos de ação de indenização por danos morais e materiais proposta por ADHERSON NEGREIROS TEJAS em relação à EMPRESA DE TRANSPORTES ANDORINHA S/A. 2.- O Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul negou provimento ao apelo do autor, em acórdão assim ementado: AGRAVO REGIMENTAL EM APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS ASSALTO A ÔNIBUS DE PASSAGEIROS - SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA POR DECISÃO SINGULAR
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DO RELATOR - CASO FORTUITO EXTERNO - EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE - ATO REANALISADO - AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I - ‘O assalto à mão armada, no interior de ônibus coletivo, por se configurar caso fortuito, constitui-se em causa excludente da responsabilidade da empresa concessionária do serviço público.’ (TJMS - Apelação Cível n. 2004.000153-3 - 1ª T. Cível). II - Confirma-se a decisão singular do relator que deu provimento de plano a recurso de apelação cível, se as razões deduzidas no agravo interno não são convincentes acerca da necessidade de modificar o ato impugnado. 3.- Inconformado, o autor interpôs recurso especial, amparado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, no qual sustentou ofensa aos artigos 12 , parágrafo 3º , inciso II , e 22 da lei 8.078 /90, 5º, inciso X, e 37 , § 6º , da Constituição Federal . 4.- Para tanto, alegou, em síntese, que a empresa transportadora responde, independentemente da culpa, pelo ‘defeito relativo ao fornecimento do serviço, considerando defeituoso o serviço prestado sem a segurança. TRT-21 - Inteiro Teor. : RTOrd 6189520155210005 Jurisprudência•Data de publicação: 06/11/2015 TJ-RJ - RECURSO INOMINADO RI 00028712020078190077 RJ 0002871-20.2007.8.19.0077 (TJ-RJ), Jurisprudência•Data de publicação: 10/06/2011 Decisão: o pedido, se em razão da suposta doença ocupacional ou em razão do suposto assedio moral que alega ter... Laboral foi acometido de doença ocupacional (hérnia discal lombar), sofreu dano e assedio moral... o levantamento ou transporte de cargas, longos períodos em pé ou sentado. Sendo essa a situação do autor. TRT-11 - Inteiro Teor. : 120965320135110004 Jurisprudência• Data de julgamento: 07/12/2016.
4.2 RECUPAÇÃO DO COLABORADOR VÍTIMA DE ASSÉDIO MORAL. O dano moral, segundo Saad, consiste em: Lesão ao patrimônio de valores ideais de uma pessoa, tendo como pressuposto a dor, o sofrimento moral causado por ato ilícito ou pelo descumprimento do ajustado contratualmente. (SAAD, 2000, 305)
Um ponto importante destacado por Barros (2005) refere-se à dificuldade da prova de condutas que comprovem as ações configuradoras do assédio moral, cabendo à vítima apresentar indícios que levem a uma razoável suspeita, aparência ou presunção da figura em exame, forçando a vítima de assedio a assumir para si a responsabilidade de demonstrar que a conduta foi razoável, e não atentatória a qualquer direito fundamental. Segundo a autora: A experiência revela que se não existir a adequada distribuição da carga probatória, a normativa a respeito da temática não se tornará efetiva e permanecerá no terreno da declaração de boas intenções. (BARROS, 2005, 886)
Segundo Saad (2000), compete à Justiça do Trabalho conhecer e julgar casos de indenização do dano moral sofrido pelo empregado ou pelo empregador – hipótese prevista na alínea “k”, do art. 482, da CLT. Lembra também o autor que o art. 114, da Constituição Federal, estabelece que: Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar (...) outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se pôde identificar com a conciliação dessas informações é que a exploração da mão-de-obra dês dos antepassados era escravizada pelos senhores de engenho, hoje não tão diferente partindo do contexto que na atualidade o agressor de assédio moral procura na maioria das vezes os assalariados ou de menor classe funcional dentro da empresa, sem contar que o modo abusivo para pratica desse ato repugnante os agressores aplicavam na classe operária ou mais conhecida como chão de fábrica e na atividade de 106
transporte nos ajudantes de entrega relacionado á atividade de transporte, classe essa que poucos sabem mais é a que mais trabalho e trás a maior receita para instituição se tratando de produtividade, com o bum da industrialização, a convivência entre empregado x empregador dentro das instituições empresariais passaram a identificar que sempre existiu uma falsa ideia com relação ao funcionário de menor classe hierárquica onde era obrigado a se submeter a uma forte humilhação enquanto ser humano, passando assim a aceitar como condição normal qualquer tipo de trabalho é de maus-tratos. Depois de ser analisado alguns individuo conforme pesquisa realizada no citado artigo, onde relada que vários funcionários já passaram por algum tipo de assédio moral em seu local de trabalho, não é tão difícil de identificar, pois a agressão física ou moral na maioria das vezes deixará sequelas nesse funcionário, para os agressores existe várias forma de atingir o indivíduo que é afetando o seu bemestar, a sua convivência na família e com seus amigos de trabalho, hoje em dia o assédio acontece de forma mais sofisticada e de forma devidamente adaptada, ou seja, com foco na exploração da mão de obra humana, transformando o local de trabalho numa “campo” de conflitos, divergências, perseguições, sofrimentos e desilusões. Nesse local de trabalho a vítima de assedio está sujeita a passar por agressões irreparáveis, como: injúrias, difamações, ofensas, afrontamentos, dentre outras discussões, todas essas atitudes são aplicadas de forma intensa e constante pelo detentor do poder na maioria das vezes seu superior hierárquico, ou até mesmo por colaboradores de mesma categoria. Não se pode esquecer que o agressor do assedio tem como objetivo atingir aquela pessoa que não suportou as primeiras agressões ou quando transforma o trabalhador que não rescindiu o contrato de trabalho em um indivíduo doente, improdutivo e desnecessário para a organização, simplesmente com um único intuito que é fazer o mal para esse profissional que sempre fez de tudo para instituição.
REFERÊNCIAS BRASIL: (TRF-4 - Inteiro Teor. APELAÇÃO CRIMINAL ACR 6748 PR 2007.70.02.006748-0 (TRF4) Jurisprudência•Data de publicação: 17/12/2009. BRASIL: (TRT-21 - Inteiro Teor. : RTOrd 6189520155210005, Jurisprudência. Data de publicação: 06/11/2015). BRASIL: (TRT-21 - Inteiro Teor. : RTOrd 6189520155210005, Jurisprudência. Data de publicação: 06/11/2015). AGUIAR, André Luiz Souza. Assédio Moral. LTR Junho, 2005. SILVA, Natan Cipriano da; MANSíLIA, Janaína Guimarães. Assédio moral no ambiente de trabalho. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 152, set 2016. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/ site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17878&revista_caderno=25>. Acesso em maio 2018. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 2005. FARIA JÚNIOR, Adolpho Paiva. Reparação civil do dano moral. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003. 107
SILVA, Natan Cipriano da; MANSíLIA, Janaína Guimarães. Assédio moral no ambiente de trabalho. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 152, set 2016. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/ site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17878&revista_caderno=25>. Acesso em maio 2018. HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. São Paulo: Bertrand Brasil, 2002. BRASIL: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10709394/artigo-482-do-decreto-lei-n-5452-de-01-de-maiode-1943 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. O assédio moral. São Paulo: LTR, 1999. APELARI, Luciana Santos Trindade. O assédio moral no trabalho e a responsabilidade da empresa pelos danos causados ao empregado. Rio Grande, XII, n. 71, dez 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico. com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6668>. Acesso em: 20 mar. 2015. EDITORA FORUM. O assédio moral no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: <http://www. editoraforum.com.br/ef/wp-content/uploads/2014/06/O-assedio-moral-no-ordenamento-juridicobrasileiro.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2016. SAAD, Eduardo Gabriel. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 2000. SALVADOR, Luiz. Assédio moral: doença profissional que pode levar à incapacidade permanente e até à morte. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 59, out. 2002. SILVA, Américo Luis Martins da. O dano moral e a sua reparação Civil. 1. ed. São Paulo:
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A LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AO TRIPULANTE DE NAVIO DE CRUZEIRO: UMA ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA FORÇA DA GRAVIDADE THE LEGISLATION APPLICABLE TO THE CRUISE SHIP CREW: AN ANALYSIS OF THE PRINCIPLE OF THE MOST SIGNIFICANT RELATIONSHIP Ingrid Zanella Andrade Campos1 Igor Zanella Andrade Campos2 RESUMO: O presente estudo busca analisar o trabalhador marítimo para perquirir a possibilidade de incidência da legislação brasileira a tripulantes a bordo de navios de cruzeiros quando prestam serviço embarcados em embarcação estrangeira de turismo. Pretende-se, inicialmente, e como objetivo específico, abordar questões inicias quanto ao trabalhador marítimo para concluir que aplicação do princípio do centro da gravidade, que afasta a aplicação da lei da bandeira da embarcação, deve ser interpretado com cautela para não representar uma afronta às normas internacionais. Palavras-chave: Navio de cruzeiro; Trabalhador marítimo; Princípio da força da gravidade. ABSTRACT: The present study seeks to analyze the maritime crew in order to investigate the possibility of Brazilian legislation affecting crew members aboard cruise ships when they provide services on board a foreign tourism vessel. It is intended, initially and as a specific objective, to address initial questions regarding the maritime crew, to conclude that application of the principle of the most significant relationship, which removes the application of the law of the flag of the vessel, must be interpreted with caution so as not to represent an affront to international norms. Keywords: Cruise ship; Maritime crew; Principle of the most significant relationship.
1. INTRODUÇÃO O objetivo principal deste trabalho é a problemática subjacente à definição da legislação trabalhista que deverá incidir sobre os tripulantes, trabalhadores marítimos, brasileiros quando prestam serviço 1 Doutora e Mestre pela Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Damas da Instrução Cristã. Oficial da Ordem do Mérito Naval - Marinha do Brasil. Secretária Adjunta do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP). Presidente da Comissão de Direito Marítimo e Portuário do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP). Presidente da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da OAB/PE. Membro da Comissão Nacional Direito Marítimo e Portuário da OAB. Professora das especializações em Direito Marítimo, Portuário e Ambiental da UNISANTOS/SP, UNINASSAU/PE, Maritime Law Academy/SP, Faculdade de Direito de Vitória/ES, UNIVALI/SC e UFRN. Advogada no escritório Zanella Advogados & Consultores (<www.zanellaconsultoria.adv.br>). E-mail: ingrid@zanellaconsultoria.adv.br. 2 Especialista em Direito do Material e Processual do Trabalho. Membro da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da OAB/PE. Especialista em Direito Marítimo e Portuário pela ESA/PE. Advogado no escritório Zanella Advogados & Consultores (<www.zanellaconsultoria.adv.br>). E-mail: igor@zanellaconsultoria.adv.br. 109
a bordo de embarcação estrangeira de turismo, se haverá incidência da legislação brasileira ou da bandeira da embarcação. Para tanto, será abordado caso envolvendo tripulante brasileira que exercia o cargo de camareira que foi julgado em 04/09/2013 pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST - ARR: 193009420065020441), com o Relator Aloysio Corrêa da Veiga, bem como demais jurisprudências relacionadas à temática objeto deste artigo. Pretende-se, inicialmente e como objetivo específico, abordar questões inicias ao trabalhador marítimo para demonstrar que o objeto desta pesquisa se relaciona com o estudo da aplicação da lei trabalhista no espaço, que envolverá a análise do princípio da força da gravidade e da lei do pavilhão. Em seguida, a fim de compreender a referida problemática sob um viés histórico-normativo, desenvolve-se o conceito de tripulante, armador e comandante, relação de vínculo, documentos, relação de subordinação a bordo, através da análise de Lei no 9537/1997, que que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional (LESTA) e se aplica às embarcações brasileiras, exceto as de guerra, os tripulantes, os profissionais não-tripulantes e os passageiros nelas embarcados, ainda que fora das águas sob jurisdição nacional, respeitada, em águas estrangeiras, a soberania do Estado costeiro. Percorrido todo o caminho estabelecido pelos objetivos especiais, pretende-se demonstrar, como objetivo geral, que, conforme caso prático que será analisado, a aplicação do princípio do centro da gravidade para se afastar a aplicação da lei da bandeira da embarcação, como forma de proteção aos direitos mínimos assegurados ao empregado, o qual deve, entretanto, ser interpretado com cautela para não representar uma afronta às normas internacionais. O artigo foi elaborado seguindo o método dedutivo, partindo-se das premissas até a conclusão. A constatação da veracidade das premissas permite atestar, pelos encadeamentos lógicos realizados com argumentos condicionais, a verdade da conclusão.
2. APLICAÇÃO DA LEI DA BANDEIRA ÀS RELAÇÕES TRABALHISTAS MARÍTIMAS Os trabalhadores marítimos constituem o conjunto de pessoas empregadas a serviço do navio e embarcadas mediante um contrato de trabalho. No Brasil, de acordo com a Lei no 9.537/97, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional (LESTA), tripulante é o aquaviário ou amador que exerce funções embarcado na operação da embarcação. O tripulante deve ser contratado através de uma relação é de emprego, conforme disciplina a LESTA, ao instituir que os aquaviários devem possuir o nível de habilitação estabelecido pela autoridade marítima para o exercício de cargos e funções a bordo das embarcações, e que o embarque e desembarque do tripulante submete-se às regras do seu contrato de trabalho (art. 70, parágrafo único). Quanto à relação de vínculo de emprego, ela ocorre com o armador da embarcação, que é pessoa física ou jurídica que, em seu nome e sob sua responsabilidade, apresta a embarcação com fins comerciais, pondo-a ou não a navegar por sua conta3. No que concerne a incidência da legislação trabalhista, é sabido que, em regra, se aplica a lei trabalhista da bandeira do navio, ou seja, a lei do pavilhão, que sujeita os trabalhadores às leis do país em que o navio foi registrado, com base no Convenção de Direito Internacional Privado de Havana (Código de Bustamante), promulgada pelo Decreto no 18.871/29, salvo situações especificas,
3 CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Marítimo Sistematizado. Curitiba, Juruá, 2017. p. 281. 110
como restará esclarecido4. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, concluída em Montego Bay (CNUDM), Jamaica, em 10 de dezembro de 1982, estabeleceu o princípio da unicidade de bandeira, bem como o dever de existir um elo substancial entre Estado e a embarcação. O princípio da unicidade de bandeira, estabelecido pela CNUDM, determina que os navios devam navegar sob a bandeira de um só Estado, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou própria Convenção, e devem se submeter, em alto mar, à jurisdição exclusiva desse Estado5. O critério de definição da nacionalidade de um navio (bandeira) deve considerar a existência de um vínculo entre o navio e o Estado de registro. Logo, o Estado onde se processa o registro da embarcação é detentor da competência para estabelecer os requisitos para concessão de bandeira do país. Como observa Sussekind (1979), as embarcações constituem estabelecimentos moveis, cuja nacionalidade decorre da patente de navegação, comprovada pela respectiva certidão de registro.6 A Convenção Montego Bay – CNUDM (Decreto n° 1.530, de 22 de junho de 1995), determina que todo Estado deve estabelecer os requisitos necessários à atribuição da sua nacionalidade a navios para o registro de navios no seu território e para o direito de arvorar a sua bandeira. O Brasil segue o princípio da unicidade de bandeira e adota o critério misto para concessão da nacionalidade brasileira do navio. Dessa forma, nas embarcações de bandeira brasileira, serão necessariamente brasileiros o comandante, o chefe de máquinas e dois terços da tripulação7. O Código Bustamante, estabelece que “também é territorial a legislação sobre acidentes do trabalho e proteção social do trabalhador” (artigo 198). Não há como se interpretar que isso implique em afirmar que deve haver a incidência da legislação a brasileira, mas sim, que os Estados devem assegurar condições dignas aos tripulantes, mesmo que não haja a incidência da lei brasileira. Nesses casos, mesmo quando não seja aplicada à CLT, a fiscalização é no sentido de analisar se há obediência aos percentuais de contratação de trabalhadores brasileiros. Portanto, mesmo não havendo a incidência da legislação trabalhista brasileira, haverá a possibilidade de fiscalização das condições de trabalho, afetas à segurança e à saúde do trabalhador, por parte das autoridades brasileiras competentes, nas embarcações nacionais e estrangeiras que trafeguem em águas brasileiras e atraquem em portos e terminais brasileiros.
3. A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA APLICÁVEL AO TRIPULANTE DE NAVIO DE CRUZEIRO E A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CENTRO DA GRAVIDADE No que tange à relação de trabalho, destaca-se a Resolução Normativa do Ministério do Trabalho nº 71, Conselho Nacional de Imigração – CNIg, de 05 de setembro de 2006, que disciplina a concessão de visto a marítimo estrangeiro empregado a bordo de embarcação de turismo estrangeira que opere em águas jurisdicionais brasileiras. De acordo com a aludida Resolução o marítimo que trabalhar a bordo de embarcação de turismo estrangeira em operação em águas jurisdicionais brasileiras, sem vínculo empregatício no Brasil, estará sujeito às normas especificadas na Resolução nº 71/2006. Além 4 CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Marítimo Sistematizado. Curitiba, Juruá, 2017. p. 283. 5 CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Marítimo Sistematizado. Curitiba, Juruá, 2017. p. 125. 6 SUSSEKIND, Arnaldo. Conflitos de leis do trabalho. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979. p. 52. 7 CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Marítimo Sistematizado. Curitiba, Juruá, 2017. p. 281. 111
disso, só é exigido visto de entrada no país ao marítimo estrangeiro que não seja portador da Carteira de Identidade Internacional de Marítimo ou documento equivalente. E se equipara ao marítimo qualquer pessoa portadora da Carteira de Identidade Internacional de Marítimo que exerça atividade profissional a bordo de embarcação de turismo estrangeira. A Resolução nº 71/2006 determina, da mesma forma, que aquele que não for portador da Carteira de Identidade Internacional de Marítimo válida ou documento equivalente deverá obter o visto de trabalho previsto no art. 13, inciso V, da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a partir de autorização do Ministério do Trabalho e Emprego. A referida Resolução esclarece que, depois de março de 2007, a embarcação de turismo estrangeira deverá contar com um mínimo de 25% (vinte e cinco por cento) de brasileiros em funções técnicas e em atividades a serem definidas pelo armador ou pela empresa representante do mesmo, a partir do 31º (trigésimo primeiro) dia de operação em águas jurisdicionais brasileiras. E com o intuito de sanar questões relacionadas à legislação trabalhista aplicável, a Resolução em comento determina que aqueles brasileiros recrutados apenas para trabalhar durante a temporada de cruzeiros no Brasil deverão ser contratados de acordo com a legislação trabalhista brasileira aplicável à espécie. Da mesma forma determina a igualdade de remuneração, ao estabelecer que os brasileiros contratados sob a égide da lei brasileira serão remunerados nos mesmos valores ofertados aos demais tripulantes que exerçam função idêntica devendo ser indicadas, no caso da existência de gorjetas, sua forma isonômica de distribuição. No que concerne aos camarotes e as instalações sanitárias a serem utilizadas pela tripulação, essas deverão estar dimensionados e separadas por gênero (com base nas Convenções nº 92 e 133 da OIT), podendo o empregador oferecer, mediante comprovação de união estável registrada em cartório, de certidão de casamento ou declaração formal dos interessados, a critério da empresa e conforme sua disponibilidade, camarote de casal, sendo proibido o fumo em cabines compartidas8. Portanto, resta esclarecido que no caso do tripulante brasileiro em embarcação estrangeira poderá incidir a legislação brasileira ou da bandeira da embarcação, a depender da temporada de contratação. Assim, sendo o tripulante contratado para toda a temporada marítima devem ser regidos pela lei do pavilhão (lei da bandeira da embarcação) e não a lei brasileira. No que tange o Princípio do Centro da Gravidade, enquanto elemento de conexão do Direito Internacional, este foi utilizado pela Justiça do Trabalho brasileira para se afastar a aplicação da lei da bandeira a Reclamante, brasileira, como forma de proteção aos direitos assegurados ao empregado. Ressalta-se que o referido caso deve ser interpretado com cautela para não representar uma afronta às normas internacionais, posto que em regra ao trabalhador marítimo internacional se deve aplicar a lei do pavilhão / bandeira da embarcação. Importante mencionar caso julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho envolvendo camareira brasileira que embarcou na Itália, possibilitando que a embarcação viesse até o Brasil, mas apenas permaneceu a bordo durante a temporada em águas brasileiras, não tendo chegado a concluir o percurso em águas internacionais. O processo foi julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, qual seja: TST - ARR: 193009420065020441, Relator: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 04/09/2013, 6ª Turma, Data de Publicação: 06/09/2013, com a seguinte ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO DA RECLAMADA. PRELIMINAR DE NULIDADE POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. TRABALHO MARÍTIMO. PRÉ-CONTRATAÇÃO E PRESTAÇÃO
8 CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Marítimo Sistematizado. Curitiba, Juruá, 2017. p. 285. 112
DOS SERVIÇOS NO BRASIL. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. DESPROVIMENTO . Diante da ausência de ofensa a dispositivos de lei e da Constituição Federal, bem como da inespecificidade dos arestos indicados para a divergência, não há como admitir o recurso de revista. Agravo de instrumento desprovido. RECURSO DE REVISTA DA RECLAMANTE. REEMBOLSO DO VALOR DESCONTADO DAS GARRAFAS DE ÁGUA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. TRATAMENTO DISCRIMINATÓRIO. RECURSO DESFUNDAMENTADO. Ausente indicação de ofensa a dispositivo de lei e/ou da Constituição Federal, bem como de divergência jurisprudencial, não há como conhecer do recurso, porque desfundamentado. Recurso de revista não conhecido. MULTA DO ART. 477 DA CLT. RELAÇÃO DE EMPREGO CONTROVERTIDA. A multa prevista no art. 477 , § 8º, da CLT incide sempre que não houver pagamento das verbas rescisórias no prazo, independentemente da relação jurídica controvertida. Em razão deste entendimento, foi cancelada a Orientação Jurisprudencial nº 351 da SBDI-1 desta Corte. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido. MULTA DO ART. 467 DA CLT. Não ofende o art. 467 da CLT decisão regional que, diante da inexistência de verbas incontroversas, exime o empregador da multa em exame. Recurso de revista não conhecido. (TST ARR: 193009420065020441 19300-94.2006.5.02.0441, Relator: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 04/09/2013, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 06/09/2013).
Trata-se de Reclamação Trabalhista em face da COSTA CRUZEIRO AGÊNCIA MARÍTIMA E TURISMO, interposta por tripulante brasileira que desempenhava a função de camareira. A camareira era uma estudante universitária brasileira que se candidatou a uma vaga de emprego no navio Costa Tropicale, do grupo Costa Cruzeiros. Ela foi admitida em 30 de novembro de 2003 para limpar e arrumar as cabines do navio, com salário de aproximadamente 1.685 euros (fixo mais gorjetas), algo em torno de R$ 4.770,00. Segundo consta no referido processo, as condições de trabalho não agradaram a tripulante. Desta forma, ela recorreu à justiça alegando que tinha jornada de trabalho abusiva e desumana: das 7 às 24 horas, todos os dias da semana, com dois intervalos para descanso e refeição. Também disse que sofreu constrangimentos e humilhações pela chefia e foi demitida em 30 de janeiro de 2004, sem registro na carteira de trabalho e pagamentos de FGTS, horas extras, adicional noturno e descanso semanal remunerada. No recurso de revista ao TST, a empresa reforçou a tese de que a trabalhadora foi contratada pela CSCS Internacional, com sede nas Antilhas Holandesas, para prestar serviço em navio de bandeira italiana. Por essas razões não se aplicaria a ela a lei brasileira, mas sim a italiana. A empresa alegou ainda que as embarcações são um prolongamento da bandeira que ostentam, e que os serviços foram prestados apenas em parte no Brasil. No mais, defendeu que o Direito Internacional consagrou a chamada lei do pavilhão ou da bandeira, que consiste na aplicação da legislação do país no qual está matriculada a embarcação. O navio onde foi prestado o trabalho era um navio de bandeira italiana, tendo a Reclamante embarcado em Genova. A contratação ocorreu para oito meses, visto que embarcação permaneceria menos de 03 meses em águas brasileiras, sendo o restante do período laboral em águas internacionais. Nesse sentido, a sentença entendeu que: As disposições legais apontadas pela reclamada em defesa não tem o condão de afastar a conclusão acima. Com efeito, a aplicação da lei do pavilhão (bandeira do navio) se dirige às embarcações que percorrem todo globo terrestre, a fim de evitar que eventuais lesões a direitos estejam desamparadas pela inexistência de leis, como por exemplo homicídio no interior do navio ocorrido no meio do Oceano Pacífico. No caso sob análise, incontroverso que a reclamante prestou serviços apenas em águas brasileiras, com a providencial aplicação da legislação brasileira para regência do negócio jurídico. Incontroverso nos autos que a précontratação da reclamante deu-se no território brasileiro (depoimento da testemunha da ré de fl. 254), bem como a prestação de serviços foi desenvolvida no navio Costa Tropicale, em águas brasileiras nos cruzeiros marítimos entre Santos e Rio de Janeiro.
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Igualmente, o TST entendeu que: A pré-contratação da reclamante, no Brasil, por representante da reclamada, bem como fato de grande parte da prestação laboral ter ocorrido em águas territoriais brasileiras, conforme prova o quadro demonstrativo de fl. 134 da defesa (resumo do documento n° 10 do volume apartado), impõe-se seja mantida a r. sentença recorrida, afastando-se a aplicação da lei do pavilhão do navio à relação jurídica “sub judice”, que a r. sentença originária entendeu tratar-se de contrato de trabalho entre as partes. Observo que a alegada responsabilidade “ad causam” da reclamada diz respeito ao próprio mérito do vínculo empregatício e com ele será apreciado, no item seguinte do presente voto.
A inovação ainda maior na jurisprudência em glosa, trata-se de aplicação do Princípio do Centro da Gravidade, como forma de proteção aos direitos assegurados ao empregado, conforme, inclusive, já se manifestou o Superior Tribunal do Trabalho: Ementa: TRABALHO EM NAVIO ESTRANGEIRO - EMPREGADO PRÉ-CONTRATADO NO BRASIL - CONFLITO DE LEIS NO ESPAÇO - LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. 1. O princípio do centro de gravidade, ou, como chamado no direito norte-americano, most significant relationship, afirma que as regras de Direito Internacional Privado deixarão de ser aplicadas, excepcionalmente, quando, observadas as circunstâncias do caso, verifica-se que a causa tem uma ligação muito mais forte com outro direito. É o que se denomina “válvula de escape”, dando maior liberdade ao juiz para decidir que o direito aplicável ao caso concreto. 2. Na hipótese, em se tratando de empregada brasileira, pré- contratada no Brasil, para trabalho parcialmente exercido no Brasil, o princípio do centro de gravidade da relação jurídica atrai a aplicação da legislação brasileira. Processo: ED-RR - 12700-42.2006.5.02.0446 Data de Julgamento: 06/05/2009, Relatora Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8a Turma, Data de Publicação: DEJT 22/05/2009.
O princípio em glosa foi importante, pois o Reclamado sustentou que deveria se aplicar à lei do pavilhão, já que a prestação de serviços teve início na Itália e o contrato de trabalho duraria oito (08) meses, visto que embarcação permaneceria menos de 03 meses em águas brasileiras, sendo o restante do período laboral em águas internacionais. Assim deveria ser aplicável ao caso a “lei do pavilhão”, que sujeita os trabalhadores às leis do país em que o navio foi registrado, de acordo com o Decreto 18.871/29 que promulgou a Convenção de Direito Internacional Privado de Havana (Código de Bustamante). Entretanto, a jurisprudência aplicou a lei brasileira, consequentemente tendo afastado a lei do pavilhão em face de alguns fatores, como: por ter existido a dispensa sem justa causa, pois a tripulante permaneceu a bordo apenas durante a temporada em águas brasileiras, não tendo chegado a concluir o percurso em águas internacionais; e, por haver uma distinção entre os personagens marítimos envolvidos, ou seja, restar caracterizada a Bandeira de Conveniência ou de Favor. No que concerne a bandeira de conveniência, a Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF) entende que se constitui bandeira de conveniência quando um navio não tem nenhum vínculo entre o armador, proprietário e o pavilhão da embarcação, ou seja, quando a propriedade beneficiária e o controle do navio estão sediados em país ou países diferentes ao da bandeira que o navio pertence9. Eliane Octaviano Martins explica que os Registros Abertos de Bandeiras de Conveniência (BDC) se caracterizam por oferecerem facilidades para registro e incentivos de ordem fiscal. Igualmente que a não exigência de vínculo do Estado da Bandeira com o navio e a não observância de legislações e regulamentos severos concernentes à segurança da navegação e obrigação de fiscalizar dos Estados decorre do fato dos Estados que concedem bandeira de conveniência não 9 Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes. Bandeiras de Conveniência. Disponível em: < http:// www.itfglobal.org/itf-americas/flags-convenience.cfm/ViewIn/POR>. Acesso em 21 dez. de 2013. 114
serem signatários da CNUDM III e de outras convenções internacionais de extrema importância no cenário da navegação, como a MARPOL, SOLAS 1974, CLC/69, dentre outras10. Castro Jr.11 (2011), ao citar François Armand de Souza, aponta as seguintes características às bandeiras de conveniência: a) o país autoriza cidadãos não residentes a serem armadores e/ou controlarem seus navios mercantes; b) o registro é fácil de obter, pois um navio pode se registrar no estrangeiro, não restando a transferência sujeita a qualquer restrição; c) o rendimento obtido pela exploração dos navios não está sujeito a qualquer imposto ou sujeito a impostos insignificantes; os direitos por matrículas e uma taxa anual, calculada sobre a tonelagem do navio, são, em geral, os únicos encargos existentes; d) o país de matrícula é uma pequena potência que não tem, nem terá necessidade, em qualquer circunstância previsível, dos navios registrados; e) as receitas obtidas pelas taxas, embora pequenas, aplicada sobre uma tonelagem importante, tem uma influência valiosa na economia do país; f) é livremente permitida a contratação de tripulações estrangeiras; g) o país não tem poderes, nem estrutura administrativa, para fazer cumprir os regulamentos e convenções internacionais; h) o país não tem desejo, nem condições de controlar as companhias. (apud DE SOUZA, 2013, p. 4)
Constatou-se que, no caso em glosa, não havia uma ligação entre as partes, mas diversos personagens marítimos envolvidos, sem que houvesse um elo entre a bandeira da embarcação e o proprietário, podendo ser considerado como um registro de favor. Assim, podem-se identificar os seguintes atores: • O proprietário-armador (CSCS Internacional) possuía sede nas Antilhas Holandesas, para prestar serviço em navio de bandeira italiana. • O afretador não armador – era empresa brasileira. • A embarcação possuía bandeira italiana. A utilização de bandeira de conveniência ou registros abertos vem sendo interpretada pela justiça do trabalho de maneira inovadora, como sendo fraude contra a legislação brasileira, razão pela qual poder-se-ia afastar à aplicação da lei do pavilhão quando se constatar que a bandeira não reflete a realidade de seu proprietário. Tal interpretação busca proteger o empregado determinando a norma mais próxima de sua realidade, posto que há uma pluralidade de Estados envolvidos. A interpretação de que bandeira de conveniência se constitui como fraude contra à legislação brasileira trabalhista é uma inovação pautada nos princípios internacionais e nacionais, confira jurisprudência: TRT-RO-01183-2004-481-01-00-4. A C Ó R D Ã O. 3ª T U R M A. Trabalhador estrangeiro residente no país. Contratação por empresa estrangeira. Cessão a empresa brasileira. Grupo econômico. Trabalho embarcado. Plataforma continental. Regência. - Restringir a noção de grupo à literalidade do parágrafo segundo do artigo 2º da CLT não se justifica. O dinamismo das relações não permite que a configuração do grupo fique adstrita a que uma empresa exerça controle ou liderança sobre as demais. É de grupo econômico que se trata quando as empresas, embora dispostas em plano horizontal, interagem entre si, visando a objetivos comuns. O Tribunal Regional, soberano na análise do conjunto probatório, deliberou que o reclamante prestou serviços em embarcação fora do território brasileiro. Todavia, rejeitou a aplicação da legislação dos países
10 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Propriedade de navios e a adoção de bandeira de conveniência. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 69, out 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_ link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6840>. Acesso em 21 dez. de 2013. 11 DE SOUZA, François Armand. Noções de Economia dos transportes marítimos, p. 79. Apud CASTRO JR., Osvaldo Agripino de. Segurança Marítima e Bandeiras de Conveniência. Disponível em http://www.advocaciapasold. com.br/artigos/arquivos/artigo_seguranca_maritima_ e_bandeiras_de_ conveniencia_osvaldo_agripino_revisado. pdf. acesso em 07/04/2013. p. 04 115
onde a embarcação foi matriculada (Panamá e Libéria), porque constatou a ocorrência de FRAUDE, uma vez que nem a reclamada (Noble do Brasil Ltda.), nem a assistente (Noble International Limited) empresas que exploram a referida embarcação - possuem alguma relação com esses países.
Igualmente, o TRT 6o região compartilha esse exato entendimento no que concerne a bandeira de conveniência, vide: RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE. DIREITO INDIVIDUAL E PROCESSUAL DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO BRASILEIRA. Nos ternos do art. 651, §2°, da CLT, a competência dos órgãos jurisdicionais trabalhistas de primeiro grau estende-se aos dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário. Assim, ainda que o conflito ocorra no estrangeiro, sendo o empregado brasileiro e não havendo legislação internacional em sentido contrário, fica atraída a competência da Justiça do Trabalho Brasileira para apreciar a lide. (RECLAMAÇÃO TRABALHISTA Nº 0000303-55.2015.5.06.0144)
Observa-se que o caso não é de aplicação da lei do Pavilhão ou da Bandeira, prescrita no Código de Bustamante (Convenção de Direito Internacional Privado de Havana ratificada através do Decreto n° 18.871/1929) que dispõe que as relações de trabalho da tripulação de navios regem-se pelas leis do local da matrícula da embarcação, pois estamos diante do que a doutrina e a jurisprudência chamam de “bandeira de favor”, situações nas quais o país onde está matriculado o navio não guarda relação com o “armador”, isto é, aquele que explora a atividade econômica atrelada à embarcação. No caso, é incontroverso que a relação jurídica se estabeleceu entre o reclamante (brasileiro) e a segunda reclamada (empresa sediada no Brasil, que explora roteiros de cruzeiros), não havendo cogitar de aplicação da lei da bandeira da embarcação. Atenção para o fato de que o recrutamento e a contratação se deram em território nacional e o contrato social das reclamadas evidencia serem integrantes de grupo econômico com sede no Brasil sendo indiscutível a regência do art. 651, §2°, da Consolidação das Leis do Trabalho. Recurso a que se dá provimento. (1ª Turma deste Tribunal, em Acórdão cuja relatoria coube ao Desembargador Sérgio Torres Teixeira, reclamação trabalhista nº 0000303-55.2015.5.06.0144.). Entretanto, adverte-se que no caso de tripulantes que sejam contratados para toda a temporada marítima, envolvendo a prestação de serviços em águas internacionais, mesmo que em parte em águas brasileiras, deverá haver um contrato de trabalho internacional, incidindo, portanto, a lei da bandeira da embarcação (do pavilhão), de acordo com os tratados e as convenções internacionais. Desta forma, o princípio do centro da gravidade deve ser interpretado com cautela, para não se estabelecer como uma regra demasiadamente aberta de conexão no âmbito do Direito Internacional.
4. CONCLUSÃO Considerando que o objetivo central do artigo é a problemática subjacente à definição da legislação trabalhista que deverá incidir nos tripulantes, trabalhadores marítimos brasileiros, quando prestam serviço embarcados em embarcação estrangeira de turismo, inicialmente foi apresentado o conceito de tripulação ou equipagem, como o conjunto de pessoas empregadas a serviço do navio e embarcadas mediante um contrato de trabalho. Destacou-se ainda que, no Brasil, de acordo com a Lei no 9.537/97, tripulante é o aquaviário ou amador que exerce funções embarcado na operação da embarcação. Ainda, que o vínculo de emprego se faz com o armador da embarcação, que é tripulante responsável pela operação e manutenção de embarcação, em condições de segurança. 116
Quanto a incidência da legislação trabalhista, destacou-se que, em regra, se aplica a lei trabalhista da bandeira do navio, ou seja, a lei do pavilhão, que sujeita os trabalhadores às leis do país em que o navio foi registrado, com base no Convenção de Direito Internacional Privado de Havana (Código de Bustamante), promulgada pelo Decreto no 18.871/29. Explicou-se que devido ao princípio da unicidade de bandeira, estabelecido pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, os navios devam navegar sob a bandeira de um só Estado, concedida através de um elo entre o Estado soberano e a embarcação. Ainda, que todo Estado deve estabelecer os requisitos necessários para a atribuição da sua nacionalidade aos navios. Desta forma, o Brasil segue o princípio da unicidade de bandeira e adota o critério misto para concessão da nacionalidade brasileira do navio, exigindo serem necessariamente brasileiros o comandante, o chefe de máquinas e dois terços da tripulação. Enfatizou-se que a utilização de bandeira de conveniência ou registros abertos vem sendo interpretada pela justiça do trabalho de maneira inovadora, como sendo fraude contra à legislação brasileira, razão pela qual pode ser afastada à aplicação da lei do pavilhão quando se constata que a bandeira não reflete a realidade de seu proprietário. Em seguida, analisou-se a possível aplicação do princípio do centro da gravidade, como forma de proteção aos direitos assegurados ao empregado, afastando a aplicação da lei do pavilhão à tripulante brasileira, quando existir distinção entre os personagens marítimos envolvidos, ou seja, no caso de bandeira de conveniência, por isso, seria pertinente a aplicação da norma mais próxima à realidade do empregado. Entretanto, adverte-se que no caso de tripulantes que sejam contratados para toda a temporada marítima, envolvendo a prestação de serviços em águas internacionais, mesmo que em parte em águas brasileiras, deverá haver um contrato de trabalho internacional, devendo incidir a lei da bandeira da embarcação (do pavilhão), de acordo com os tratados e as convenções internacionais. Portanto, concluise que o princípio do centro da gravidade deve ser interpretado com cautela nas relações de trabalho marítimo, considerando a regra basilar de aplicação da lei do pavilhão, para não se estabelecer como uma regra demasiadamente aberta de conexão no âmbito do Direito Internacional, enfraquecendo à segurança afeta às relações jurídicas.
REFERÊNCIAS CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Marítimo Sistematizado. Curitiba, Juruá, 2017. CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino; PASOLD, César Luiz. Direito portuário, regulação e desenvolvimento. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011. DE SOUZA, François Armand. Noções de Economia dos transportes marítimos, p. 79. Apud CASTRO JR., Osvaldo Agripino de. Segurança Marítima e Bandeiras de Conveniência. Disponível em http:// www.advocaciapasold.com.br/artigos/arquivos/artigo_seguranca_maritima_ e_bandeiras_de_ conveniencia_ osvaldo_agripino_revisado.pdf. acesso em 07/04/2013. p. 04 Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes. Bandeiras de Conveniência. Disponível em: <http://www.itfglobal.org/itf-americas/flags-convenience.cfm/ViewIn/POR>. Acesso em 21 dez. de 2013.
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MARTINS, Eliane M. Octaviano. Propriedade de navios e a adoção de bandeira de conveniência. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 69, out 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/ site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6840>. Acesso em 21 dez. de 2013. SUSSEKIND, Arnaldo. Conflitos de leis do trabalho. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979.
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DISCURSOS JURÍDICOS E EXTRAJURÍDICOS EM TORNO DA LEGALIZAÇÃO DE SUBSTÂNCIAS USADAS PARA FINS TERAPÊUTICOS Suenya Talita de Ameida suenyalmeida27@gmail.com
RESUMO: A pesquisa trata dos discursos jurídicos, extra ou meta jurídicos em torno da legalização de substâncias usadas para fins terapêuticos, a exemplo do “canabidiol” (CDB). Versa, portanto, sobre os meios de produção de linguagem no direito, a partir da análise de argumentos favoráveis e contrários a legalização de drogas, mesmo experimentais, para fins terapêuticos. Inicialmente intenta identificar os argumentos favoráveis e contrários à legalização de drogas como “canabidiol” para fins medicinais ou terapêuticos, levantados nos âmbitos social e jurídico, e, posteriormente, verificar como estão sendo construídos estes discursos em torno do direito fundamental à saúde no Brasil e em alguns países da América Latina. A hipótese que pode gerar conclusões através da pesquisa é a existência de argumentos situacionais localizados no âmbito dos discursos individualmente considerados ou da aplicabilidade de exceções normativas, já que, no Brasil, hipoteticamente considera-se justificável a existência da ilegalidade do uso comum de drogas como a maconha (cannabis sativa), embora existam discursos contestadores. Nesse sentido, será utilizada a teoria da argumentação jurídica, especialmente a contraposição entre a posição dworkiana e a Teoria do Discurso de Habermas e Günther, especialmente no que se refere ao processo de justificação entre os argumentos jurídicos e não jurídicos. Quanto à metodologia, a pesquisa será do tipo exploratória e classificada, quanto aos meios, como bibliográfica e documental, através da coleta de dados bibliográficos em livros, artigos e sites especializados. Ademais, farse-á o estudo do caso Anny, precedente jurisprudencial de referência para o assunto. Por fim, observou-se uma construção dialógica dos discursos pesquisados, afastando–se da suposta cisão entre as fases da justificação e da adequação normativa. Palavras-chave: Legalização do Canabidiol; Discursos Jurídicos; Discursos Extra Jurídicos; Teoria da Argumentação; Classificação de Argumentos.
1. INTRODUÇÃO Os discursos jurídicos em torno de certas garantias individuais como a liberdade, educação, segurança e saúde (ou, em última instância, a própria vida) têm sido integrantes no sentido de sua construção e dos argumentos usados no sentido de sua concretização ou efetividade social1. A seara argumentativa em que são construídos os mencionados discursos pressupõe-se plural, vez que existe um amplo debate sobre algumas questões pontuais, que vão emergindo à medida que ganham notoriedade (publicidade) nos diversos meios de expressão atuais desde o âmbito midiático até o meio acadêmico. 1 No dizer de Tércio Sampaio Ferraz Jr (2012), o plano da eficácia dos direitos subdivide-se em eficácia formal (propensão a eficiência) e efetividade social (eficiência plena). 119
Especificamente quando aparecem questões relativas ao direito à saúde ou à vida, logo a perspectiva interdisciplinar e interdiscursiva se faz presente, pois tais problemas podem ser discutidos no campo da bioética (ou biodireito), no campo da Ciência da Dogmática Jurídica (Direito Constitucional, Direito Administrativo), no campo da Filosofia do Direito, dentre outras possíveis perspectivas. Porém, a opção de abordagem do presente estudo restringe-se ao campo da teoria da argumentação, vez que o objetivo geral da pesquisa é entender como ocorre a construção dos discursos em torno de direitos individuais situacionalmente restritos, como no caso do uso de drogas ou terapias experimentais. Por essa razão, tomamos como ponto de partida os discursos sobre a legalização de drogas como o “canabidiol” para fins medicinais ou terapêuticos. A opção por esta abordagem se deu em virtude da polêmica em torno do uso da citada substância “alternativamente” no tratamento de pacientes com múltiplos episódios convulsivos por dia. Antes do aumento dos pedidos para a legalização do tratamento, era proibida a comercialização e importação do Canabidiol independentemente da finalidade. Depois da demanda, a pauta resultou numa mudança permissiva (através da RESOLUÇÃO-RDC N. 3, de janeiro de 2015), desde que a comercialização e o uso sejam devidamente justificados por parecer médico. O contexto do tema, portanto, envolve também intensas batalhas judiciais para a garantia do direito de buscar tratamentos alternativos, mesmo através de substâncias consideradas “arriscadas”, ou crivadas pela ilegalidade. Aliás, deve-se alertar que um dos pressupostos da pesquisa é a contraposição de argumentos favoráveis à liberdade de uso de substâncias não aprovadas pela ANVISA para tratamento e a obstrução destas terapias quando há risco de vida ou considerável dúvida sobre a eficiência do tratamento. Em verdade, há ampla discussão no mundo jurídico sobre os princípios e normas aplicáveis aos casos que tratem do direito à saúde, à vida, à disposição do próprio corpo, à dignidade, dentre outros direitos. Basta lembrar as recentes discussões sobre o uso de células tronco, o aborto, a eutanásia, a barriga de aluguel, a criopreservação de material genético e seu uso post mortem. Desta forma, justificase o interesse pelo estudo da produção argumentativa em torno do objeto pontual da pesquisa (a legalização de tratamentos alternativos) como o uso de canabidiol como anticonvulsivo. Assim, tomou-se como objetivos de trabalho, primeiramente, a coleta de dados para seleção de textos jurídicos e não jurídicos sobre o uso medicinal de drogas como o “canabidiol” (CDB) para tratamento médico. E o primeiro limite a essa seleção, ocorreu diante do segredo de justiça que envolve a maioria dos processos judiciais sobre o assunto. Por essa razão, adotou-se como modelo de discurso jurídico, além de peças processuais, atos administrativos e legislação relacionada à matéria. Ademais, foi realizada uma seleção de reportagens, notícias, pareceres médicos, estudos de medicina, dentre outros discursos considerados “extrajurídicos”, a fim de comparar as teses apresentadas e confrontá-las com o modelo teórico destacado (A teoria da Argumentação de Klaus Gunther). Após a seleção dos textos, buscou-se identificar os argumentos favoráveis e contrários à comercialização do “canabidiol”, ou de substâncias similares, para fins terapêuticos. Por fim, procedeu-se a análise das semelhanças e/ou divergências entre os argumentos jurídicos e extrajurídicos, sobretudo, para identificar suas características e propriedades no contexto em que são construídos a fim de responder questionamentos como: “Quais as condições de aplicabilidade das normas ou o fundamento das decisões no mundo jurídico e como são expressas essas condições? ”, considerando a tese de que a questão tratada já ultrapassou o sistema de justificação e encontra-se na fase da “adequação” ou “harmonização” das normas (GUNTHER, 2004). 120
Em verdade, potencialmente encontra-se um sistema argumentativo tão diversificado que remete a inaplicabilidade da conclusão de Klaus Gunther (2004), vez que o processo de aplicabilidade das normas existentes grande parte das vezes indica a necessidade de retorno do processo de justificação e a possibilidade de abertura no sistema jurídico para a discussão política e alterações legislativas que “adequem” uma crescente demanda em torno da efetivação do direito à liberdade e á saúde. O trabalho conclui-se apresentando como proposta a ideia de um discurso de justificação-adequação como condição de produção e aplicabilidade das normas jurídicas sobre o uso de medicamentos e terapias alternativas.
2. A TRANSFORMAÇÃO DO CANABIDIOL DE SUBSTÂNCIA PROIBIDA EM SUBSTÂNCIA PARA FINS TERAPÊUTICO O estudo será iniciado com uma análise acerca da construção discursiva em torno da “legalização” ou autorização para o uso de substâncias para fins terapêuticos/ tratamento médico. Há, nesse fato, um conflito de argumentos que o direito vem tentando absorver, sendo ele a polêmica legalização entorpecente “maconha”, e o uso de substância denominada Canabidiol (CBD), ambos produtos da planta Cannabis Sativum. A partir deste conflito de ordem jurídica, foi utilizada a teoria do discurso (e da argumentação) para abordar as propriedades dos discursos jurídicos que recentemente consideraram legal o uso terapêutico do canabidiol. Porquanto, deve-se apresentar o discurso jurídico que anteriormente classificou a cannabis sativum como “planta que pode originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas” e proibia sua comercialização. O procedimento de análise dos referidos discursos teve início com a apropriação de teorias sobre a fundamentação da norma e da decisão judicial, precisamente discutidos nas obras de Klaus Gunther (2004) e Robert Alexy (2001). E, dessas obras, abstraiu-se a problemática sobre quais seriam os discursos de justificação e de aplicação, e o que os diferenciaria. Porém, quis-se tese a imprecisão da proposta de cisão discursiva de Gunther, nascendo assim a hipótese de que os discursos do direito seriam justificados e aplicáveis, desde a sua construção até a sua procedimentalização (prática orientada pelo discurso). É importante salientar como nasceu o discurso jurídico de proibição (justificação e aplicação negativa) do uso do canabidiol (produto da cannabis sativum). Ele emergiu através da Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998, que “aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial”. Nessa norma de caráter regulamentar, o seguinte artigo define a ilegalidade do uso terapêutico de substância constante da denominada “Lista – E”: Art. 61 As plantas constantes da lista “E” (plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas) e as substâncias da lista “F” (substâncias de uso proscrito no Brasil), deste Regulamento Técnico e de suas atualizações, não poderão ser objeto de prescrição e manipulação de medicamentos alopáticos e homeopáticos.
A referida lista encontra-se no anexo I da portaria, e nela constam as seguintes informações: “Lista–E, lista de plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas. 1. Cannabis Sativum”. Na lista seguinte (F), estão elencadas as substâncias de uso proibido. Portanto, notase uma distinção classificatória entre substância (E) e substância (F), sendo o primeiro rol impedido de prescrição e manipulação médica, e o segundo rol, além desse veto, também tem seu uso proibido. 121
Diante disso, são levantados questionamentos como “O que isso implicaria em termos do argumento de justificação da norma? ”, “Quais as razões implícitas na norma? ” e “Seriam essas razões de ordem puramente lógica (coerente com o sistema jurídico) ou de ordem moral (sentido de adequação) ?” (GUNTHER, 2004) Esse texto legal publicado em 1998 foi atualizado algumas vezes e chama atenção a RDC Nº 39 DE 9 DE JULHO DE 2012, que define claro um efeito de coerência à portaria 344/98, ao classificar como “planta proscrita, que pode originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas” a “Cannabis Sativa”. Pode-se então perguntar: “o argumento proibitivo está devidamente justificado? ”, “Do ponto de vista argumentativo, que tipo de argumento justifica a proibição? ”, “Poder-se-ia dizer, como Chaim Perelman, que o argumento está baseado numa estrutura do real? ”. Já que há também uma clara expressão de ilicitude (o que pauta a criminalização) nas condutas definidas pela Portaria 344/98 e na Resolução 39/2012, poder-se-ia, então, dizer que o argumento se vale do real (realidade) “para estabelecer uma solidariedade entre os juízos admitidos e outros que se procura promover” (PERELMAN, 2005, p. 297). Todavia, ainda surge o questionamento “poder-se-ia admitir que a argumentação segue um vínculo causal, no sentido de que um dado acontecimento é evidenciado o efeito que dele deve resultar? ”. Não se pode confirmar essa tese sem associar a norma administrativa à Lei 6.368/76 e à Lei 11.343/2006, respectivamente a lei revogada sobre prevenção e repressão ao uso de substâncias entorpecentes e a nova lei antidrogas. Essas normas (enquanto discursos jurídicos do âmbito penal) poderiam ser classificadas como discursos causais, pois baseados em argumentos que se valem do real (fatos julgados ilícitos e justamente tipificados). Mas, afinal, é necessário entender como classificar o discurso das normas que complementam e estabelecem definições usadas por estas últimas leis (como a definição de entorpecente). Pode-se indagar se seriam discursos baseados em argumentos quase-lógicos, vez que sua pretensão de validade se dá por efeito do seu próprio aspecto racional. Se assim o for, pode-se dizer que a Portaria 344/98 possui um discurso de justificação, ligado à razão prática, a um princípio universalizante (GUNTHER, 2004), ou como diria Habermas (1997), a norma possui uma razão comunicativa, no sentido da superação do sujeito-objeto. De uma ou de outra forma, sua justificação, classificaria a norma como um discurso de justificação e não de aplicação, já que somente os casos de descumprimento da norma (de caráter proibitivo) haveria a necessidade, e consequente, surgimento de um discurso de aplicação (onde juízes buscariam a validade de suas decisões nos discursos válidos para o sistema). Isso implica na questão ulterior de perda de credibilidade da norma vigente, fazendo emergir também a problemática do ponto de vista axiológico enquanto fator de justificação. Quanto a isso pergunta-se: que tipo de valores estariam conectados à antiga norma proibitiva de uso da substância “Cannabis Sativa”? Inegável a preocupação do direito com o valor negativo atribuído ao uso e ao tráfico de substâncias entorpecentes (drogas). Enquanto um problema social, cada vez mais tem sido caracterizado também como problema de saúde pública (basta lembra-se dos efeitos devastadores do crack) e de como se tem discutido a questão do internamento compulsório, para desintoxicação (um tênue debate sobre a invasão do âmbito moral pelo direito). Todavia, com a necessidade de repensar o acesso à droga para uma finalidade “conforme o direito”, necessário se fez adaptar o próprio discurso normativo e, assim, o efeito da reclassificação torna-se a saída mais imediata no sentido de facilitar o exercício do direito à saúde através de uma via, anteriormente julgada como ilegal. Há que se entender, no entanto, como a justificativa para a reformulação pode hipoteticamente ter partido de um caso emblemático, qual seja, o processo nº 24632-22.2014.4.01.3400 122
da menina Anny contra a Anvisa, embate onde o judiciário do Distrito Federal produziu um recorte discurso permeado de argumentos positivos, no sentido de tonar o Canabidiol uma exceção dentre a regra de proibição de plantas que podem produzir substâncias entorpecentes. Vejamos a seguir quais são estes argumentos.
3. O CASO ANNY X ANVISA: ADEQUAÇÃO IN CASU DA NORMA POSTA O processo da Menina Anny, recentemente tomado como paradigma ou síntese de motivos para uma requalificação do Canabidiol, é recheado de argumentos e de silogismos capazes de representar o âmbito geral do problema. Todavia, observa-se que como caso específico, sua órbita de aplicabilidade é restrita. Como paradigma, poderia servir de precedente jurisprudencial e fonte de analogia. Mas na verdade, tal caso culminou com a reclassificação da planta de onde é originada a maconha. Diante disso, pode-se também indagar se estaria o caso enquadrado na regra (U) de adequação que justifica a norma, segundo Gunther (2004), ou se estaria o caso, tratando de um princípio, como aquilo que quando é relevante deve ser levado em consideração pelas autoridades públicas, que possui a dimensão do peso ou da importância, como diz Dworkin (2014); se seria o caso um puro exemplo de discurso jurídico, tratando de estabelecer uma “exigência de correção” (ALEXY, 2001, p.212), ou se seria o caso um exemplo de princípio moral (U) (GUNTHER, 2004), ante sua tendência a estabelecer validade e adequação para a norma subsequente. Será adotada, para efeito de teste de hipótese, a categoria de Gunther (2004). E vejamos alguma seleção de argumentos e como poderíamos classificá-los, a partir da distinção (hipotética) entre justificação e aplicação. Chamaremos de argumentos de aplicação todo discurso que referir-se a adequação ou validade prática da aplicação da lei existente; e de argumentos de justificação, aqueles que se referirem à possibilidade de mudança no sistema legal por sua inconsistência ou incoerência no sistema. Temos desde a primeira parte do julgado, referências à opinião médica (argumento demonstrativo): Inicialmente percebe-se a existência, ainda no relatório de sentença, de três tipos de argumentos: • Argumento legal (alusão à existência de uma lei proibitiva, ou melhor, a inexistência de autorização legal pela autoridade competente): “O ponto controvertido está em que o medicamento em tela não pode ser comercializado ou utilizado no Brasil, pois não está registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, que detém a atribuição de realizar o controle dos medicamentos em uso no território nacional, com vista a avaliação da eficácia para os fins a que se propõem e da segurança dos pacientes aos quais se destinam”.
• Argumento in casu ou “do caso” (que define a situação particular discutida na ação): “Dada a gravidade de seu estado de saúde, não pode aguardar a longa tramitação do processo de registro do produto perante aquela autarquia (ANVISA) para só então utilizá-lo, sem que disso resulte grave dano pela interrupção do tratamento, inclusive com risco de morte. ” • Argumento de aplicação (que implica considerar o ajuste para “adequação da norma ao fato”, que irá conduzir o desfecho da matéria): “Analisando o pleito, considero relevante advertir, já de início, que, pelos termos em que posta a questão pela autora, não se pretende com a presente demanda fazer apologia do uso terapêutico da Cannabis sativa, a maconha, no tratamento da encefalopatia epilética infantil precoce tipo 2 (EIEE2), menos ainda da liberação de seu uso, para qualquer fim em nosso país. O tema sobre o uso dessa planta para fins terapêuticos tem instigado
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a opinião pública, a opinião pública, a academia de medicina, o poder público e os meios de comunicação, e reforçado o debate sobre a possibilidade da legalização de seu uso no Brasil, de modo que a referência inevitavelmente feita à Cannavis sativa nestes autos, até pela similitude entre o nome científico da planta e o nome do princípio ativo do medicamento almejado, o Canabidiol, pode levar a precipitada conclusão de que estaria, também aqui, a discutir acerca da possibilidade de o Poder Judiciário autorizar, excepcionalmente, o uso da maconha para fins medicinais.” “É bem verdade que faz parte da lista de plantas proscristas a Cannabis sativa L., a maconha, donde também se extrai o Canabidiol. Todavia, sua vedação de justifica enquanto capaz de originar substâncias entorpecentes e/ ou psicotrópicas, no caso, o Tetrahidrocannabinol (THC), que foi expressamente incluído no rol de substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil”. “Portanto, fica bastante claro que não se cuida aqui de analisar a possibilidade da utilização em nosso país da Cannabis sativa L, a maconha, como via terapêutica, mas de apenas um e seus oitenta canabinóides, o Canabidiol, que não produz os efeitos típicos da planta, no tratamento da grave doença identificada pela sigla EIEE2, de que é portadora a autora”.
Além destas alegações, o juiz ainda argumenta no sentido de compatibilizar a atuação da ANVISA no controle de substâncias utilizadas para fins medicinais e cita a Portaria 344/98 e a Resolução n. 37/2012, que indica a ausência do Canabidiol na lista de substâncias proscritas, figurando na lista, na verdade, a planta da qual ele é extraído – a Cannabis sativa L. Outra legislação é citada, para reforçar o argumento de que compete apenas à ANVISA legislar sobre a lista de substâncias, de uso terapêutico, permitidas ou não no país, qual seja a Lei 9.782/99. Tudo para definir a abertura da possibilidade de solução do caso concreto sem gerar conflito entre a exceção à norma, proposta na ação. Enfim, o argumento de “exceção à regra” proposto pelo Juiz, é lançado da seguinte forma: Essa solução decorre, ademais, de imposição da Constituição Federal de 1988, que, no art. 196, estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Portanto, assim como a ANVISA tem o poder-dever de controlar os medicamentos de uso humano que ingressam e circulam no território nacional, compete-lhe também, a obrigação de proteger a saúde da população brasileira, o que, no caso particular da autora, demonstrou-se ser possível apenas através da liberação da importação e do uso do Canabidiol a fim de que ela dê sequência ao tratamento já iniciado com resultados espetaculares no combate à EIEE2.
Isso irá remeter a uma máxima não generalizável que induzirá a opção por outra máxima a qual é chamada de norma (com status derivado) por Gunther (2004, p. 83). Será esse tipo de discurso um exemplo de argumento de aplicação, ou vigora nele uma correlação entre aplicação e justificação? E ainda, será que a questão perpasse o problema do princípio aplicável ao caso difícil (hard case), para o alcance de uma integridade justificadora da decisão? Para Dworkin (2014), nesses casos, podem ser aplicados direitos ou argumentos principiológicos que se encontrem fora da ordem jurídica positiva. Assim os juízes podem interpretar uma lei confirmando princípios e argumentos objetivos que, “diante da responsabilidade do legislador, fornecem a melhor justificação” (DWORKIN apud GUNTHER, 2004, p.405) para a decisão a ser tomada. Nesse sentido, vimos a relação norma e princípio sendo trabalhada discursivamente no seguinte trecho: De resto, trata-se da única solução compatível com o princípio da proporcionalidade, à vista das circunstâncias reveladas nos autos. Ainda que se vislumbre a adequação e a necessidade da retenção do medicamento por parte da ANVISA no exercício de sua atividade de fiscalização, como meio de efetivação plena do controle sanitário, a restrição administrativa não resiste ao último filtro que conforma o princípio da proporcionalidade, que é o da proporcionalidade em sentido estrito.
E, neste mesmo sentido, apresenta o juiz um argumento baseado no princípio do interesse público, que prevalece sob o privado, não havendo uma contradição expressa no caso julgado: “De mais a mais, 124
a pretensão manifestada pela postulante não expõe a população a nenhum risco, uma vez que o pedido se restringe à importação para uso próprio, tendo em vista as peculiaridades do caso”. Por fim, o argumento judicial destaca a possibilidade da inserção válida do Canabidiol na lista de substâncias controladas, após estudos de constatação da eficácia do produto, mas não descarta a negativa de registro, já que isso dependeria da prova de eficácia. Todavia, julgou-se razoável, no caso, a permissão para importação e uso da substância pela autora. Restaria consolidada, através deste exemplo, a construção de um discurso com ponto de justificação e de aplicação, defendido por Gunther? Há distinções que permitem defender as duas fases da argumentação jurídica, uma de validade e uma de adequação, que juntas formariam uma espécie de “fórmula de justificação dedutiva (lógica)”. Mas, também há o problema da imprevisibilidade, que põe em cheque esta fórmula. Mas, se há tanta indeterminação no plano jurídico argumentativo neste caso, pode-se questionar se isso decorre de uma contradição de argumentos extrajurídicos (discursos médicos, discursos midiáticos, discursos da sociedade civil). Vejamos adiante como funcionam estes outros discursos, ou como funcionaram antes e depois a resolução que reclassificou o Canabidiol.
4. OS DISCURSOS EXTRAJURÍDICOS COMO ELEMENTO DE JUSTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO DE LEGALIDADE Neste ponto, insta destacar alguns dos discursos que embora fora do sistema de direito positivo possam ter influenciado mudanças em seu contexto. Começamos com uma ressalva a respeito da definição científica de Cannabis Sativa L e de Canabidiol, visando encontrar a justificativa jurídica apara sua anterior proibição, pela Portaria 344/98 da ANVISA. Segundo Schier; Ribeiro e et tal (2012): Cannabis sativa é a droga de abuso mais utilizada em todo o mundo, e cerca de 20% da população mundial de jovens a usam de forma abusiva e regular. O principal componente psicoativo da planta é o delta-9tetrahidrocanabinoluma das substâncias responsáveis pelos efeitos psicoativos da maconha. Já o canabidiol (CBD) é outro composto abundante na Cannabis sativa, constituindo cerca de 40% das substâncias ativas da planta. Os efeitos farmacológicos do CBD são diferentes e muitas vezes opostos aos do delta-9-tetrahidrocanabinoluma.
Ou ainda, noutra definição: “O canabidiol (CBD) é um dos principais fitocanabinóides presentes na planta Cannabis sativa e diferente do seu principal constituinte, o tetraidrocanabinol (delta-9THC), é desprovido de efeitos psico-tomiméticos” (PEDRAZZI, PEREIRA, GOMES; DEL BEL, 2014). Interpreta-se que para a literatura médica há uma distinção entre a planta (Cannabis) e um dos componentes (substâncias) que dela se pode extrair (Canabidiol), e há uma relação entre o uso abusivo da planta, o tráfico e o fundamento da ilegalidade das atividades que envolverem estas substâncias. A intervenção estatal nesse caso constitui espécie de paternalismo puro (DWORKIN, G. apud RAWLS, 2000), isto é, expressa o ato interventivo na vontade de terceiro com vistas a restringir a liberdade decisória, para com isso conquistar um benefício àquele que teve desconsiderada sua autonomia volitiva. Disso resulta a justificativa da lei nº. 11.343/2006 (antitóxicos) e das leis administrativas complementares como as Portarias e Resoluções da Anvisa. Portanto, aqui estaria a fase de justificação ou validade de Gunther (2014), mas haveria uma precisão lógica nesta justificativa? De certa forma a lei coíbe uma máxima não generalizante (o uso de abusivo 125
de drogas), mas a máxima excepcional do efeito positivo de componentes de uma droga não poderia ser prevista pelo legislador, e o fator da imprevisibilidade continua vigente, contraposto à uma fórmula de justificação. Cabe questionar se isso poderia ser suplantado pela aplicação (adequação). Sabe-se que são raríssimas ações judiciais no sentido de garantir o uso e comercialização de drogas sobre a justificativa de uso terapêutico. E, sobretudo, até o caso Anny, mais raras eram as decisões permissivas. Como seria possível, então, identificar o momento de uso do critério “Adequação” para o fundamento da decisão permissiva de uso terapêutico de uma droga? Para Lênio Streck (2012, p. 466): Günther faz depender “validade e adequação” de uma impossibilidade objetividade somar todos os elementos de adequação em um único saber, que é o projeto de todo pensamento lógico-dedutivo, isto é, ter o esquema pronto sobre o qual se subsumem todos os elementos da aplicação constantemente. Se isso fosse conseguido, poderia ser suprimida a diferença entre a validade e a adequação da norma, desde que houvesse essa coincidência objetiva da aplicação.
Não obstante, na crítica da teoria de Gunther, tem-se a questão da argumentação externa (ALEXY, 2000, P. 225-266), sobre qual a fundamentação empírica, dogmática, factual, racional e prática para a autorização de uso de substâncias consideradas “arriscadas”, do ponto de vista das autoridades sanitárias. Já foram descritos alguns dos argumentos empíricos e dogmáticos, com o caso Anny e as definições médicas de Cannabis sativa L e Canabidiol, vejamos agora argumentos externos da ordem factual, racional e prática com a alusão, selecionados em noticiários brasileiros e internacionais (América Latina). Segundo o Jornal Zero Hora, em reportagem, destacou um argumento negativo sobre a permissão de uso geral: Com cerca de 400 compostos químicos, a planta conta com 60 canabinóides – princípios ativos específicos –, dois dos quais destacam-se por suas propriedades medicinais. O tetrahidrocanabinol (THC) é reconhecido por seus efeitos analgésicos e relaxantes, mas é também a principal substância psicoativa (o que “dá barato” e pode causar dependência química). É, portanto, o maior entrave ao uso medicinal.
Esse argumento pode ser classificado como racional, diferentemente de outro aplicado na mesma matéria, que classifica como factual: “57% dos brasileiros aprovam o uso medicinal da maconha, segundo pesquisa feita pela Expertise, empresa de pesquisa e inteligência de mercado, que consultou 1.259 pessoas por meio de uma plataforma online”. E, por fim, a mesma reportagem traz um aporte prático: Durante o 4º Simpósio Internacional da Cannabis Medicinal, realizado durante a semana, em São Paulo, a carioca Margarete Santos, mãe de Sofia, quatro anos, portadora da CDKL5, defendeu liberação para importação do canabidiol. Segundo ela, há cerca de um mês, as convulsões sofridas pela menina se tornaram menos frequentes, desde que ela passou a ingerir um óleo elaborado a partir de uma pasta de CDB importada.
No sentido oposto ao argumento factual exposto no Jornal Zero Hora, identifica-se a reportagem do Jornal “Folha de São Paulo”, de novembro de 2014: Pesquisa Data folha encomendada pelo Instituto de Ciências Tecnológicas e Qualidade Industrial (ICTQ) revela que 56% dos brasileiros são contra a venda de maconha para uso medicinal; 50%, no entanto, aprovam a liberação de remédios derivados da droga. Foram feitas 2.162 entrevistas em todo o país. A margem de erro é de dois pontos percentuais.
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A polêmica da maconha medicinal se acentuou no país após famílias conseguiram na Justiça autorização para importação do canabidiol (CBD), uma substância derivada da maconha utilizada em tratamentos de doenças neurológicas. Desde abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já liberou 184 pedidos de importação. A pesquisa mostra que o apoio à liberação da substância é maior conforme a escolaridade do entrevistado; 69% entre os que têm nível superior contra 38% dos com nível fundamental; e nível socioeconômico – 60% entre as classes A e B contra 33% das C e D. (Grifo Nosso)
Estão expressos argumentos considerados factuais e racionais na reportagem. Factuais, quando se referem à exposição de dados estatísticos (provas demonstrativas) que podem corroborar com a justificação jurídica da legalização, e racionais no sentido de identificar o valor da escolaridade no contexto das opiniões esboçadas pelos entrevistados da pesquisa. E, por fim, se pode comparar o cenário brasileiro de alteração na seara legislativa para a permissão de uso do Canabidiol com o cenário da América Latina, alguns países se adiantaram nas discussões e decisões de ordem jurídica a respeito do tema. É o que denota a seguinte reportagem no Uruguay: La legalización de la marihuana en Uruguay va camino de convertirse en una despenalización del autocultivo que ya se practica en todo el país, la mayoría de las veces salteándose el registro legal previsto por las autoridades. La venta en farmacia del cannabis producido en campos controlados por el Estado, el capítulo más ambicioso de la reforma legislativa, tarda en llevarse a cabo y podría no ver nunca la luz. (EL PAIS, 2015). (Grifo Nosso)
E segue nessa mão a imprensa argentina: La clase política sigue mirando hacia otro lado y la mayoría de los que quieren gobernar el país ya adelantaron su negativa a despenalizar uso, tenencia y cultivo de marihuana, mientras el mundo va en sentido contrario. (...) Ante este panorama, la Comunidad Cannábica Córdoba hace un llamado a los poderes del Estado para que, sin más demoras, asuman su responsabilidad en la toma de una decisión definitiva en este tema, que incluya la derogación de la ley federal 23.737, la discusión social de una nueva ley general de drogas y, en particular, una legislación que abarque toda la problemática de legalización del cannabis, sus usos y su estatus de planta medicinal. (LA VOZ, 2015) (Grifo Nosso)
E ainda na fase de discussão do assunto, trabalha a Bolívia: “El viceministro de Defensa Social, Felipe Cáceres, en entrevista con El Diario, informó que Bolivia no está preparada para analizar o poner en debate la posibilidad de legalizar el consumo de marihuana”. Percebe-se que, no âmbito da discussão midiática, fala-se na legalização da maconha (Marihuana), enquanto a questão do uso dos componentes da planta para fins medicinais resta em segundo plano. Mas, a pesquisa eletrônica indicou a relevância da notícia da regulamentação do Canapelo Brasil, e da legalização da Marihuana (maconha) pelo Uruguay. Isso induz pensar na possibilidade da “integração” entre as ordens jurídicas, já que as discussões e a institucionalização da questão vêm ocorrendo de forma cíclica, quase que em efeito dominó na América Latina. É o que também comprova os discursos da imprensa chilena que denotam a proximidade maior da legislação daquele país com a ordem jurídica brasileira, e, além da proximidade normativa, ocorrem também as mesmas discussões sobre legalização de substâncias derivadas da marihuana (maconha). É o caso do Sativex®, fármaco composto por THC (Tetrahidrocannabinol) e CBD (Canabidiol), derivados da Cannabis sativa L: La importación de este medicamento se hace de forma excepcional a través del Art.21, y para que esto se pudiera realizar se requirió que un hospital o clínica, a través de de la indicación médica, avale el uso del
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fármaco. Además el paciente debe financiar el fármaco, el que tiene un alto costo. En este caso Cecilia Hyder, quien padece de lupus y cáncer de mama, con el apoyo del Instituto Nacional del Cáncer y del Servicio de Salud Metropolitano Norte solicitó la autorización del ingreso de Sativex en diciembre de 2013, dando respuesta a su requerimiento este 2014, bajo la administración del Dr. Fábrega. (Notícia ISPCH, CNNChile, 2014).
Além do Sativex®, outros medicamentos têm sua autorização discutida pelo Instituto de Saúde Pública do Chile.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Inicialmente, é preciso dizer que o discurso jurídico de proibição (justificação e aplicação negativa) do uso do canabidiol (produto da cannabis sativum) nasceu pelo processo de criminalização dos processos de drogadização, uso indiscriminado de entorpecentes que afetam não só a saúde individual, mas geram uma preocupação com a saúde pública, e justamente o interesse público, como destacado no processo da menina Anny, que correu no Distrito Federal. Mas, sobretudo, com o advento em 1998 da Portaria 344 da ANVISA, e das Leis de controle de tóxicos (Lei no 6.368, de 21 de outubro de 1976, e a Lei no 10.409, de 11 de janeiro de 2002. e a atual Lei 11.343/2006). Foi destacada ao longo do trabalho a possibilidade dos efeitos de contradição ou incoerência do sistema, ante a procedimentalização de ações no sentido de reverter a proibição do uso do Canabidiol, mesmo em sede de excepcionalidade do caso concreto. Porém, a aparente contradição apenas revela a pluralidade semântica sobre um tema de complexidade alta que envolve, como dito, conflito de interesse individual e coletivo. Mas, restou a hipótese de que a adequação (critério que envolve argumentação de justificação normativa prévia e de aplicação normativa não-generalizante), possibilita a compatibilidade entre os contingentes fáticos e normativos apresentados. A pesquisa, inicialmente, fundamentava-se na hipótese de duas fases argumentativas sobre o assunto, o que no final considera-se mais um efeito da distinção de Habermas e Gunther sobre validade e adequação das normas. Estes momentos argumentativos são recortes instáveis e facilmente superados por outras acepções como a teoria da argumentação de Perelman, Alexy e Dworkin. As classificações ou distinções argumentativas servem apenas como marcos das várias etapas de construção dos discursos jurídicos, que não suportam uma avaliação meramente causal, pois se constituem a partir de múltiplos fatores, inclusive a influência cultura, e, por que não dizer, de uma moral universal. Todavia, pareceu indiscutível a prevalência de uma perspectiva dialógica (BAKHITIN, 2003) na construção dos discursos jurídicos e extrajurídicos abordados, afastando-se a utilidade prática da cisão entre as questões de validade e aplicação das normas jurídicas, vez que ambas as fases podem estar presentes no discurso normativo e judicial, bem como assistir razão à crítica hermenêutica que entende haver circulação argumentativa nos discursos jurídicos.
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DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2014. FERRAS JR, Tercio Sampaio. Introdução ao. Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 2012. GUNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justifi cação e aplicação. Tradução de Claudio Molz. Introdução à edição brasileira de Luiz Moreira. São Paulo: Landy, 2004. HABERMAS, Jurgen. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios. Madrid: Cátedra, 1997. PEDRAZZI, J.F.C, PEREIRA, A.C.C.I, GOMES, F. V., DEL BEL, E. Perfil antipsicótico do canabidiol. Revista de Medicina (Ribeirão Preto). 2014;47(2):112-19. Aprovado para publicação em 04/02/2014. Disponível em: http://revista.fmrp.usp.br Perelman, Chaïm & Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. [prefácio Fábio Ulhôa Coelho; tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira]. São Paulo : Martins Fontes, 2005. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo, Martins Fontes, 2000. SCHIER, Alexandre Rafael de Mello; RIBEIRO, Natalia Pinho de Oliveira, et tal. Canabidiol, um componente da Cannabis sativa, como um ansiolítico. Rev. Bras. Psiquiatr. vol.34 supl.1. São Paulo, Jun. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S151644462012000500008&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em: 30 de março de 2015. STRECK, Lênio. A crítica hermenêutica e a cisão dos discursos em Klaus Günther . Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica, vol.3 , n. 17, p. 456-468, Dez. 2012. Disponível em: <http://www6.uni-vali.br/seer/ index.php/nej/article/ view/2308> Bolivia no está preparada para legalizar marihuana. El Diario, 26 de jan de 2015. Disponível em: www.eldiario. net/noticias/2015/.../sociedad.php?n... La Argentina debe legalizar el cannabis. La Voz. Argentina. Abril de 2014.Disponível em: http://www.lavoz. com.ar/opinion/la-argentina-debe-legalizar-el-cannabis Los cultivadores de marihuana en Uruguay se saltan la ley. Magdalena Martínez Montevideo. EL PAIS. Argentina, 31 ENE 2015. Disponível em: http://internacional.elpais.com/internacional/2015/01/31/ actualidad/1422666089_162815.html Maioria São
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JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM NOVO MODELO DE JUSTIÇA CRIMINAL E AS PRINCIPAIS PRÁTICAS RESTAURATIVAS INSTITUCIONALIZADAS EM PERNAMBUCO Daniel Alves Pereira Neto dalvesneto@hotmail.com
RESUMO: Este trabalho propõe analisar os principais conceitos ligados ao abolicionismo penal, bem como as práticas atreladas à Justiça restaurativa em Pernambuco, especialmente os projetos relacionados à proteção da mulher vítima de violência doméstica, e aos menores institucionalizados pela prática de ato infracional. Como objetivo geral, o trabalho visa pesquisar acerca dos conceitos e dos exemplos práticos de Justiça Restaurativa. Para isso, são colocados os seguintes objetivos específicos: identificar os conceitos mais abordados na literatura brasileira sobre justiça restaurativa e sua relação com o abolicionismo penal; destacar alguns dos modelos e experiências aplicadas no Brasil com base nesse sistema e; por fim, pesquisar sobre as práticas restaurativas em Pernambuco, com destaque para os projetos criados pelo Tribunal de Justiça desse mesmo estado. Assim sendo, empregou-se o tipo de pesquisa denominado de pesquisa exploratória, para obter todas as informações desejadas neste trabalho. E ainda, foram usadas a pesquisa bibliográfica e a revisão de textos para, assim, mostrar que as práticas restaurativas, sob certas condições, são possíveis e surtem bons resultados como alternativa penal, pautada nas ideias abolicionistas mais recentes que garantem maior eficácia ao sistema “punitivo”. Palavras-chave: Abolicionismo Penal; Justiça Restaurativa; Práticas Restaurativas; Pernambuco. ABSTRACT: This work aims to analyze the main concepts related to criminal abolitionism, as well as practices related to Restorative Justice in Pernambuco, especially the projects related to the protection of women victims of domestic violence and minors institutionalized by the practice of an infraction. As a general objective, therefore, the work aims to research about the concepts and practical examples of Restorative Justice, but for this, some more specific objectives should be posed as: to identify the concepts most approached in the Brazilian literature on restorative justice and its relation with the criminal abolitionism; highlight some of the models and experiences applied in Brazil based on this system; research on restorative practices in Pernambuco, highlighting the projects created by the Court of Justice of this same state; therefore, we will have to use the type of research called exploratory research, to obtain all the information desired in this work. Furthermore, bibliographical research and the revision of texts will be used to show that restorative practices under certain conditions are possible and have good results as a penal alternative, based on the most recent abolitionist ideas that guarantee more effective the “ punitive”. Keywords: Abolitionism; Restorative Justice; Restorative Practices; Pernambuco.
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1. INTRODUÇÃO Este trabalho aborda primeiro os principais conceitos ligados ao abolicionismo penal e, em seguida, se insere na discussão sobre Justiça restaurativa. A pesquisa precisa, portanto, ligar esses dois assuntos que hoje são bastante debatidos no campo do direito penal, da criminologia e da vitimologia também. Falar em Justiça restaurativa significa também discutir sistema prisional no Brasil e suas alternativas. Daí a necessidade de relacionar o tema ao abolicionismo penal sem perder o foco das discussões específicas propostas, que compõem os objetivos desse trabalho. Como objetivo geral temos o desejo de pesquisar sobre os conceitos e exemplos práticos de Justiça Restaurativa. Porém, para conseguir atingir esse objetivo precisaremos identificar os conceitos mais abordados na literatura brasileira sobre justiça restaurativa e sua relação com o abolicionismo penal; destacar alguns dos modelos e experiências aplicadas no Brasil com base nesse sistema e, por fim; pesquisar sobre as práticas restaurativas em Pernambuco, com destaque para os projetos criados pelo Tribunal de Justiça neste estado. Segundo Brandao (2010): a denominação justiça restaurativa é atribuída a Albert Eglash, que, em 1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada “Restitution in Criminal Justice”. Eglash sustentou, no artigo, que havia três respostas ao crime – a retributiva, baseada na punição; a distributiva, focada na reeducação; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparação. A prática restaurativa tem como premissa maior reparar o mal causado pela prática do ilícito, que não é visto, a priori, como um fato jurídico contrário á norma positiva imposta pelo Estado, mas sim como um fato ofensivo à pessoa da vítima e que quebra o pacto de cidadania reinante na comunidade. Portanto, o crime, para a justiça restaurativa, não é apenas uma conduta típica e antijurídica que atenta contra bens e interesses penalmente tutelados, mas, antes disso, é uma violação nas relações entre infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça Restaurativa identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa relação e do trauma causado e que deve ser restaurado.
Sendo assim, torna-se importante discutir como essa prática pode ser implantada no sistema penal brasileiro e produzir efeitos de reparação de danos como prevê seu conceito original, pois muitas são as perguntas ainda não respondidas acerca de como isso pode ocorrer e resultar numa alternativa ao sistema penal tradicional. Os grandes problemas a serem discutidos neste artigo são o conceito de justiça restaurativa e o seu funcionamento no Brasil; o modelo de justiça restaurativa mais adequado ao cenário nacional e, por fim; as práticas e projetos restaurativos que vêm sendo desenvolvidos em Pernambuco. Como metodologia empregada, adotamos a pesquisa exploratória, que visa abordar com certa profundidade o assunto obtendo todas as informações desejadas para esclarecer as perguntas ou problemas acima colocados. Também foram usadas a pesquisa bibliográfica e a revisão de textos para mostrar que as práticas restaurativas, sob certas condições, são possíveis e surtem bons resultados como alternativa penal, pautada nas ideias abolicionistas mais recentes que garantem maior eficácia ao sistema “punitivo”. A princípio, foi feita uma breve revisão da literatura sobre o conceito de justiça restaurativa e a relação dela com o abolicionismo penal.
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2. CONCEITOS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA E O ABOLICIONISMO PENAL Acerca disso, pode-se dizer que o modelo de Justiça Restaurativa na área criminal surge como uma resposta no plano humanitário, educacional e social, em face das situações conflituosas que conduzem às ocorrências criminais constantes, sendo imprescindível admitir, que a intervenção estatal, mediante a aplicação da pena de encarceramento, não reduz as altas taxas de criminalidade ou de reincidência. O déficit de vagas carcerárias, que segundo dados oficiais17, só poderia ser enfrentado com a construção de dezenas de presídios, mensalmente, torna inarredável a certeza da inadequação do sistema de Justiça Criminal aos novos tempos (JESUS, 2014, p. 22).
Dessa maneira, o conceito de Justiça Restaurativa ainda se encontra em processo de construção, mesmo que, do ponto de vista da teoria criminal, venha sendo desenvolvido há mais de trinta anos. Assim sendo, ainda não foi possível precisar um conceito inequívoco para Justiça Restaurativa. Com essa ideia corrobora Fernanda Rosenblatt que entende o seguinte: um dos problemas da justiça restaurativa não é somente a ausência de um conceito pronto e acabado, quer dizer, de uma “frase conceitual” com a qual todos (ou a maioria) concorde. 4 Leituras mais aprofundadas da literatura sobre justiça restaurativa revelam, outrossim, uma grande indecisão teórica acerca da sua própria natureza: seria ela um processo, uma filosofia, um movimento, um estilo de vida? Seja o que ela for, estaria ela voltada à ocorrência de um crime (e independentemente da espécie de crime?) ou, muito além disso, a quaisquer situações (problemáticas ou não) do cotidiano? (ROSENBLAT, 2014)
Ainda no que tange o conceito de justiça restaurativa, Jaccoud, afirma que: Realmente, o conceito de justiça restaurativa nasce em 1975, através da caneta de um psicólogo americano, Albert Eglash (Van Ness e Strong, 1997). Porém, este conceito origina-se da noção de restituição criativa5 que Eglash sugere ao término dos anos 50 para reformar profundamente o modelo terapêutico : porém a restituição criativa ou a restituição guiada refere-se à reabilitação técnica onde cada ofensor, debaixo de supervisão apropriada, é auxiliado a achar algumas formas de pedir perdão aos quais atingiu com sua ofensa e a ‘ter uma nova oportunidade’ ajudando outros ofensores” (EGLASH apud JACCOUD, 2005, p. 165).
É possível dizer que não há apenas uma, mas várias definições ou vários conceitos sobre justiça restaurativa. No entanto, a ideia central do termo, especialmente como é visto e aplicado no Brasil, foi sintetizada por Daniel Achutti (2012, p. 14), quando o mesmo diz que: “a justiça restaurativa teria potencial para ser considerado um modelo distinto de gerenciamento de conflitos, com o abandono do paradigma crime-castigo e a inserção efetiva do diálogo na resolução dos casos”. Nessa mesma linha de raciocínio, está o pensamento de Zerh (2008), que aponta a distinção de lentes ou de paradigmas entre os dois modelos de justiça (retributivo e restaurativo). Nesse caso, duas lentes bem diferentes poderiam ser descritas da seguinte forma: Justiça Retributiva - O crime é uma violação contra o estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e estado, regida por regras sistemáticas. E, Justiça Restaurativa O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança. (ZERH, 2008, p. 9)
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Vale também considerar a visão de Prudente e Sabadell de que: “A justiça restaurativa não significa uma resposta a todas situações. Não visa substituir o sistema legal vigente – o qual é guardião dos direitos humanos básicos e do Estado Democrático de Direito – mas de modo complementar, dar efetividade à implementação da justiça, contribuindo desta forma, para a construção de uma cultura de paz.” (PRUDENTE; SABADELL, 2008, p. 60)
Como se pode perceber, a discussão conceitual é extensa e menos preocupante do que o aspecto prático em torno da justiça restaurativa, que para ser uma alternativa precisa ser praticada, mas nem sempre é possível tal prática. Passou-se então ao relato de alguns dos principais modelos e experiências aplicadas aqui no Brasil a partir da justiça restaurativa.
3. MODELOS E EXPERIÊNCIAS APLICADAS NO BRASIL COM BASE NESSE SISTEMA Antes de mostrar como está sendo implantada a ideia do modelo restaurativo no Brasil, importante ressaltar a experiência belga com esse novo paradigma, que também foi destaca na obra de Daniel Achutti. Diz o autor que, na Bélgica, “as primeiras iniciativas ocorreram no final da década de 1980 na esfera da justiça juvenil e possuíam uma finalidade pedagógica. Diversas outras iniciativas foram realizadas desde então, apesar da referida lei não fazer menção à justiça restaurativa ou à mediação.” (2013, p. 162) Para além da esfera juvenil, Achutti comenta que, no modelo belga, a justiça restaurativa para adultos apresenta um desenvolvimento mais acelerado do que a justiça juvenil, pois: De 1991 em diante, diversos programas de mediação foram implementados: a) a mediação penal, 9 que ocorre no âmbito do Ministério Público (durante ou após a investigação policial, mas antes do oferecimento 8 Para informações completas sobre as pesquisas realizadas pelos integrantes da Linha de Pesquisa em Justiça Restaurativa do Instituto de Criminologia de Leuven, da Universidade de Leuven, conferir: . 9 Instituída pela Lei de 10 de fevereiro de 1994, que regulamentou o procedimento para a mediação em matéria penal. D. Achutti – Justiça restaurativa no Brasil 163 da denúncia), e é realizada por assistentes de mediação em casos cuja pena não supera os dois anos de prisão; b) a mediação para a reparação (mediation for redress),10 que desde junho de 2005 faz parte da legislação federal (Códigos Penal e de Processo Penal belgas) e determina que as partes envolvidas no conflito devem ser informadas sobre o serviço de mediação, que poderá ser realizado em qualquer fase do processo penal ou até mesmo depois da sentença, durante a execução da pena. Neste caso, as mediações são realizadas por duas ONGs: Suggnomè, na Comunidade Flamenca (norte), e Médiante, na Comunidade Valônica (sul); c) a mediação na fase policial, mais comum na região Flamenca e nos arredores de Bruxelas, apesar de ocorrerem em sede policial, são realizadas por servidores públicos civis, especialmente em casos de pequenas ofensas ao patrimônio (eventualmente praticados com violência), em que há clareza sobre os danos materiais ou financeiros e quando um acordo pode ser alcançado para resolver o conflito (AERTSEN apud ACHUTTI, 2013, p. 163).
No Brasil, no entanto, há cerca de 10 anos, conforme informe do CNJ, a Justiça Restaurativa vem sendo discutida e, tem-se buscado pratica-la em alguns momentos e situações específicas no sistema penal nacional. Sica entende que: o programa da justiça restaurativa pode ser perfeitamente compatível no Brasil, podendo utilizar espaços comunitários ou até mesmo centros integrados de cidadania, locais esses onde seria instalado núcleos de justiça restaurativa, sendo composto por uma coordenação e um conselho multidisciplinar, e suja estrutura se compreenderia câmaras restaurativas onde se agrupariam as partes e os mediadores, com o devido apoio administrativo e de segurança. (SICA, 2007, p.89)
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Ao longo desses anos, percebe-se que alguns núcleos e projetos vieram sendo construídos em algumas poucas cidades no Brasil com destaque para três em especial: Porto Alegre, São Caetano, Brasília e São Paulo. No caso de Porto Alegre, a justiça restaurativa começou a ser aplicada em casos de jovens em conflito com a lei com reincidência, abrangendo a confissão do ato pelo ofensor/infrator, a identificação da vítima e tendo também como requisito não serem atos infracionais análogos a homicídio, latrocínio, estupro ou conflito familiar. E, para que seja implantado o modelo, o processo é dividido em algumas etapas. Na primeira, se seleciona casos; e logo depois passa-se a fase do “Pré- Círculo”, em que se explica às partes o que é a justiça restaurativa e se constata seu interesse em participar da mesma. Depois, finalmente chega-se a etapa do “Círculo Restaurativo”, em que, acompanhados de coordenadores e após a colaboração e participação de ambas as partes, chega-se a um consenso, o chamado acordo restaurativo. Após a assinatura do acordo, o ofensor é encaminhado ao Programa de Execução de Medidas Socioeducativas, acompanhado de um técnico que observará o cumprimento do acordo. Outro técnico acompanha as necessidades da vítima. Por fim, ocorre a etapa do “Pós-Círculo”, em que se verifica se o acordo foi devidamente cumprido pelas partes (SILVA, 2007, P. 72). Quanto ao legado de São Paulo, segundo o CNJ (2017): Um dos pioneiros no uso da Justiça Restaurativa no País, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) adotou a prática em 2005, nas quatro varas Especiais da Infância e da Juventude que coordenam a aplicação das medidas socioeducativas. Com o apoio da Coordenadoria da Infância e da Juventude, o projeto foi criado com o objetivo de afastar o caráter estritamente punitivo das sentenças tradicionais por meio da conscientização e da responsabilização das partes envolvidas nos conflitos, a fim de diminuir a reincidência.
Vistos os modelos já em andamento no país, verifica-se agora o exame das práticas restaurativas que vêm sendo implementadas aos poucos no estado de Pernambuco.
4. AS PRINCIPAIS PRÁTICAS RESTAURATIVAS EM PERNAMBUCO Segundo Lucienne e Arrais (2015, p. 1), as práticas restaurativas contam com experiências e projetos desde o início dos anos 2000, como por exemplo, os seminários nacionais de Justiça Restaurativa em 2005 e 2006, a Carta do Recife, o Programa Núcleos de Mediação Comunitária, o projeto Escola Legal e o Projeto “É de Direito”, tudo levantado pelo professor Marcelo Pelizzoli no Projeto “Justiça Participativa – Práticas Restaurativas em Pernambuco: Varas da Infância e Juventude”. Na sequência, essas experiencias também serão explanadas. Primeiramente, deve-se considerar o 1º Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, ocorrido em Araçatuba (SP) em 2005. O segundo evento de grande porte sobre o tema veio a ser o 2º Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, em Recife (PE) em 2006. Este último resultou na chamada Carta de Recife, documento que serviu como “estratégia multiplicadora das iniciativas de Justiça Restaurativa em curso, e consolidação desse modelo”, estabelecendo as seguintes recomendações: -a difusão e a incorporação de valores restaurativos, mantendo abertura quanto a variações metodológicas e procedimentais, sempre com vistas a potencializar a promoção de resultados restaurativos; - que todas as iniciativas de aplicação prática da Justiça Restaurativa sejam transparentes e participativas, e que incluam um componente avaliativo e a divulgação de relatórios de acompanhamento e resultados; - a ênfase na componente comunitária, em iniciativas de aplicação oficial das práticas restaurativas, e o zelo pelo não dirigismo de qualquer setor institucional; - a criação de Núcleos e Centros de Estudos em Justiça Restaurativa, abertos à comunidade, nas universidades,
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nas escolas de ensino médio, nas organizações; não-governamentais, nas Escolas Superiores da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da OAB; - aos poderes públicos federais, estaduais e municipais, e especialmente à Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça que promova a publicação de subsídios teóricos e práticos, em português ou traduzidos de outras línguas, incluindo relatórios de acompanhamento, avaliações dos projetos-pilotos e material instrucional para apoio a capacitações; - à Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça a promoção de um Encontro Nacional de Justiça Restaurativa, ainda em 2006, propondo por sede o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça, articulando o apoio dos Colégios de Presidentes de Tribunais de Justiça, dos Procuradores Gerais de Justiça, e dos Defensores-Gerais Públicos, das respectivas Corregedorias -Gerais, bem como dos Tribunais e Ministério Público Federais, de modo a viabilizar apoio a participação e respaldo às iniciativas restaurativas de Juízes, Promotores, Procuradores e Defensores Públicos de todo o País; - a realização do 3º Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa em 2007, preferencialmente na Páscoa, tendo por sede a cidade de Natal, RN; - a difusão e implementação da Justiça Restaurativa, simultânea, articulada e integrada entre suas vertentes institucionais e comunitárias, para gerar sinergia e promover, reciprocamente, renovação e empoderamento, respeito à horizontalidade, autonomia, isonomia e à diversidade na relação entre as pessoas envolvidas; - ao Ministério da Justiça o apoio técnico e financeiro à instalação de outros projetos- piloto e a delimitação de apoio a estes projetos por um prazo mínimo de cinco anos para possibilitar as experiências e o aprendizado necessários à consolidação de uma Cultura de Restauratividade. (CARTA DO RECIFE, 2006).
Já o programa de núcleos de mediação comunitária começou a ser implantado em 2011: Com o objetivo de Intervir na realidade social das comunidades, fortalecer a cidadania, e consolidar a mediação comunitária como instrumento de promoção de uma cultura de paz e resolução de conflitos através do diálogo, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSDH), por meio da Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), entrega amanhã (30), às 19h, na Associação de Moradores do Alto Antônio Félix, no bairro de Nova Descoberta, zona norte do Recife, o primeiro Núcleo de Mediação Comunitária de Conflitos. As comunidades de Nova Descoberta, Paulista, Pina, Peixinhos e Várzea receberão os primeiros Núcleos. Também Prazeres, Coque, Santo Amaro, Ibura de Cima e Ibura de Baixo terão seus núcleos inaugurados no início de dezembro, afirmou. Os Núcleos atenderão os casos relacionados a conflitos familiares, de vizinhança/ameaças, relação de consumo, trabalhista e conflitos de posse irregular de terreno. Pensão alimentícia, investigação de paternidade, regulamentação de visitas, heranças, dentre outros poderão ser resolvidos nos Núcleos. No caso dos conflitos que não possam ser resolvidos, as pessoas serão encaminhadas aos locais específicos de atendimento. (SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL, INFÂNCIA E JUVENTUDE, 2011)
Um ano antes, começava a se desenhar o Projeto Escola Legal, parceria entre o Tribunal de Justiça de Pernambuco, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e o Governo do Estado através de sua Secretaria de Educação. O projeto visa ao enfrentamento da violência em que crianças e adolescentes aparecem como vítimas ou autores. No plano de ação a escola tem papel estratégico, focando tanto a violência gerada dentro dela, quanto a que chega ao seu conhecimento. Nesse sentido, a contribuição de professores, gestores, funcionários e pais de alunos é determinante para o sucesso do programa. Para apurar e solucionar os conflitos, o Escola Legal faz uso da técnica de mediação. Sua estratégia inclui a formação de comitês integrados por representantes dos professores, pais de alunos, Conselho Tutelar e associações comunitárias. Sempre que um caso chegue ao conhecimento da escola, o comitê é acionado, ouvindo as partes e aplicando o método da mediação. Não havendo solução, o assunto é levado a outra instância: a Central Extrajudicial de Mediação e Conciliação, cujo resultado deverá ser homologado pelo juiz da Vara da Infância. (PROJETO ESCOLA LEGAL. TPJE, 2010).
Com essas iniciativas, ainda em 2006/2007, foi instalado um dos núcleos de mediação comunitária no 1.º Juizado Especial Criminal de Jaboatão dos Guararapes/PE, como experiência-piloto de práticas restaurativas no âmbito do Judiciário, “funcionando de modo integrado por meio de uma parceria entre a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, o Tribunal de Justiça de Pernambuco e o Centro de Mediação e Arbitragem de Pernambuco” (VASCONCELOS apud LUCIENNE; ARRAIS, 2015). 136
Mais tarde, em 2014, surgiram as primeiras iniciativas para o Projeto Justiça Restaurativas nas Varas da Infância e Juventude do Recife. Justamente dos diálogos entre o grupo de pesquisa e extensão em Justiça Restaurativa da UFPE e os Juízes Élio Braz, da Segunda Vara da Infância e Juventude da Capital, Sílvia Amorim, da Quarta Vara, e o Juiz Paulo Brandão, Terceira Vara da Infância, além dos servidores, Bruno Arrais e Carolina Brito, responsáveis técnicos do projeto. Segundo o professor Pelizzoli (apud LUCIENNE; ARRAIS, 2015): A proposta visa a introduzir, avaliar e, caso aprovado, validar a implementação na Vara da Infância e Juventude de PE do paradigma da composição de conflitos, prevenção e reação à violência baseada nos Princípios e Práticas da Justiça Restaurativa, em franco processo de difusão no país e em diversos países, como forma de qualificar os mecanismos de gestão de situações conflitivas e de controle social.
E, além desses exemplos outros tantos se configuraram ao longo das primeiras duas décadas dos anos 2000, sendo atualmente o estado de Pernambuco um dos mais atuantes no sentido da aplicação, exercício e debates sobre as práticas de justiça restaurativas no Brasil.
5. CONCLUSÕES Vale lembrar que essa pesquisa não identificou apenas um, mas vários conceitos e definições sobre Justiça Restaurativa. No entanto, o conceito aqui adotado foi o sintetizado por Daniel Achutti (2012, p. 14) ao dizer que: “a justiça restaurativa teria potencial para ser considerada um modelo distinto de gerenciamento de conflitos, com o abandono do paradigma crime-castigo e a inserção efetiva do diálogo na resolução dos casos”. Questionou-se ainda qual o modelo de Justiça Restaurativa melhor se aplicaria ao Contexto brasileiro, porém foram encontradas algumas divergências entre os autores. Por isso, compartilhou-se mais uma vez da ideia de Daniel Achutti (2013), que vem acompanhando o desempenho do modelo Belga e advoga: “A justiça restaurativa, na Bélgica, vem sendo ofertada predominantemente por meio da mediação vítima-ofensor (como é na maioria dos países europeus), e está disponível em todas as etapas processuais. (...)”, e ainda acrescenta o mesmo autor que, apesar de não servir como modelo direto para adoção no Brasil, o caso belga apresenta diversos aspectos que merecem uma maior atenção. Em resumo diz que se destacam no modelo belga: “(a) a forma como a justiça restaurativa foi instituída; (b) o local onde é realizada; e (c) a maneira como se relaciona com o sistema penal tradicional e os efeitos que gera no processo penal” (2013, p. 172). Diante disso, pode-se notar que o Brasil captou alguns desses pontos através da criação de núcleos e projetos em algumas cidades com destaque para Porto Alegre, São Caetano e Brasília, além de Recife. Por fim, questionamos quais as práticas e projetos restaurativos que vem sendo desenvolvidos no estado de Pernambuco, tendo encontrado através da pesquisa bibliográfica e documental alguns projetos preponderantes como o Escola legal e o Justiça Restaurativa nas Varas da Infância e Juventude; ambos atuantes na região metropolitana do Recife, com impacto direto nas comunidades que mais sofrem com a violência e o desafio da reeducação de crianças e jovens em contato com o mundo do crime. E, conforme Silva; Silva; Cavalcanti (2015), hoje, o Projeto Escola Legal, atua nas cidades de Olinda, Jaboatão dos Guararapes, Petrolina e Caruaru, como também na Capital do Estado e no Território de Fernando de Noronha. E, além disso expandiu sua atuação para a Rede Estadual de Educação, especialmente na cidade de Caruaru, além das escolas municipais dentre aquelas com os maiores índices de violência escolar desde 2009. 137
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A MÃE INFRATORA DA COLÔNIA PENAL FEMININA DO RECIFE: A DISSOCIAÇÃO ENTRE AS LEIS E A REALIDADE THE INFRATING MOTHER OF THE WOMEN’S PENAL COLONY OF RECIFE: THE DISSOCIATION BETWEEN LAW AND REALTITY Maria Luíza Maranhão Dias Cabral Advogada criminal
Resumo: O presente artigo científico tem como objeto uma análise da realidade do encarceramento das mulheres mães infratoras no âmbito da Colônia Penal Feminina do Recife, antigo Bom Pastor, e objetiva a comparação dessa realidade com a legislação brasileira latu senso. A fase investigatória procedeu-se por meio da pesquisa de livros, artigos, cartilhas e outros materiais, bem como da visita realizada na unidade prisional. A problemática veio à tona quando despertado na autora um interesse na pesquisa sobre o cárcere feminino quando da elaboração de sua monografia para conclusão do curso de Direito, pela qual pôde observar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres encarceradas em razão do sistema penitenciário do país não ter sido pensado, em sua origem, sob uma perspectiva de gênero. Palavras-chave: Mulher; Mãe, Infratora; Criança; Presa; Cárcere. Abstract: This scientific article has as an object an analysis of the reality of the imprisonment of female offenders in the scope of the Women’s Penal Colony of Recife, formerly Good Shepherd, and aims at comparing this reality with the Brazilian legislation latu senso. The investigation phase was carried out by means of the research of books, articles, booklets and other materials, as well as the visit to the prison unit. The problematic came to light when the author aroused an interest in the research on the female prison when drawing up her monograph to complete the course of law, by which she could observe the difficulties faced by women incarcerated because the penitentiary system of the country was not thought, in its origin, from a gender perspective. Keywords: Woman; Mother; Kid; Offenders; Prisioners; Prison.
1. INTRODUÇÃO A evolução da sociedade, mais notadamente a partir do final da Idade Moderna, contribuiu para que as mulheres iniciassem um processo mais organizado de luta por igualdade de gênero. As mulheres passaram a ocupar novos espaços nunca antes imaginados e o desenvolvimento dos centros urbanos fez crescer vertiginosamente a criminalidade feminina. Dentro desse contexto, deu-se início também ao processo de institucionalização do cárcere feminino em todo mundo; pois, até então, as prisões eram preparadas tão somente para receber homens delinquentes. Em sua origem, o sistema prisional feminino foi administrado pelas freiras da Congregação do Bom Pastor, fundada na França em 1835 por Santa Maria Eufrásia Pelletier. E, mais tarde, regulamentado integralmente pelo próprio Estado. Em Pernambuco, estado situado no Nordeste do Brasil, são cinco 141
as unidades prisionais destinadas às mulheres infratoras, dentre as quais terá destaque no presente artigo a Colônia Penal Feminina do Recife (CPFR). No âmago do cárcere feminino, até o momento presente, ecoam as sequelas provenientes do nascimento de um sistema que foi pensado, em sua origem, sem qualquer perspectiva de gênero. A maternidade, assim definida como estado e qualidade de mãe, é uma experiência quase que indissociável da qualidade de mulher, independentemente de ser essa mulher socialmente e juridicamente rotulada como transgressora da lei. A escolha do tema se deu em detrimento da relevância e da repercussão de todas as problemáticas relativas às constantes violações dos direitos fundamentais dessas mães infratoras quase sempre submetidas a uma situação carcerária degradante, que lhes fere a dignidade humana e acaba por transcender sua esfera pessoal, resultando em evidentes prejuízos para seus respectivos filhos. Nesse diapasão, buscou-se estudar a realidade das mães infratoras privadas de liberdade no ambiente da Colônia Penal Feminina sob a ótica da legislação brasileira, com o objetivo de constatar se o tratamento dispensado pelo Estado está em adequação com a vontade do legislador. Para tanto, a metodologia empregada na fase investigatória procedeu-se por meio da pesquisa bibliográfica, estudo descritivo da legislação pátria e estudo de caso.
2. PERFIL DA MÃE INFRATORA De acordo com o primeiro Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen Mulheres 2014)1, realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Justiça, o Brasil conta com uma população carcerária de 37.380 mulheres (Cf. BRASIL, 2015, p.5). Entre os anos de 2000 e 2014, período compreendido no relatório, o aumento da população carcerária feminina foi de 567,4%. A título de comparação, a média de crescimento da população masculino foi de 220,20% no mesmo período (Cf. BRASIL, 2015, p.5). O levantamento constatou uma taxa de crescimento constante no encarceramento de mulheres; tanto que, atualmente, o Brasil apresenta a quinta maior população carcerária feminina do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China, Rússia e Tailândia (Cf. BRASIL, 2015, p.8). Ao traçar o perfil demográfico e sociocultural das mulheres encarceradas, o supramencionado levantamento se vale dos seguintes fatores: nível de escolaridade, cor, faixa etária, estado civil, natureza da prisão, tipo de regime e os crimes pelos quais foram condenadas. Cumpre anotar que, em junho de 2014, três entre cada dez mulheres presas estavam custodiadas antes mesmo de suas condenações, o que se traduz, em números, em 11.269 mulheres (Cf. BRASIL, 2015, p.20). Entre as infratoras privadas de liberdade, 63% foram condenadas a pena de até oito anos. Daí já se nota uma desconformidade com a legislação que prevê, para esses casos, os regimes iniciais semiaberto e aberto (Cf. BRASIL, Decreto-lei nº 2.848, 2018, art.33). Paradoxalmente, tem-se que 45% do total das mulheres encarceradas estavam cumprindo pena em regime fechado. No que tange a faixa etária, o levantamento demonstrou que 50% dessas mulheres têm entre 18 e 29 anos (Cf. BRASIL, 2015, p. 22). Em relação à etnia, entre cada três mulheres presas, duas são negras, contabilizando 67% do total. Ao categorizá-las de acordo com o estado civil, o estudo constatou que 57%, das mulheres encarceradas são solteiras. Ao passo em que 26% delas vivem em 1 O Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN-MJ) publicou, em 2015, o “Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres – Junho de 2014”, última grande produção de dados oficiais e sistemáticos sobre o encarceramento de mulheres no Brasil. 142
união estável (Cf. BRASIL, 2015, p. 25). Quanto ao grau de escolaridade, pode-se afirmar que apenas 11% da população carcerária feminina concluíram o ensino médio e 4% do total são analfabetas. A metade, sequer concluiu o ensino fundamental e apenas 1% possuem formação superior. Por fim, o relatório demonstra que os registros das ações penais pelas quais respondiam as mulheres privadas de liberdade naquele período, algumas delas ainda respondendo processos e outras já condenadas, refletem que o crime de tráfico de drogas é o de maior incidência, ocupando o primeiro lugar com percentual de 68%. Em seguida, têm-se os crimes contra o patrimônio, a exemplo do furto e do roubo (Cf. BRASIL, 2015, p.29). Nesse sentido, com base em todos os dados coletados; o relatório apontou para um perfil comum entre as mulheres encarceradas no país, concluindo que: Em geral, as mulheres submetidas ao cárcere são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de estratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento. (BRASIL, 2015, p.5).
As mulheres infratoras que são também mães não fogem à regra. Em sua maioria, estão presas devido ao tráfico de drogas e aos crimes contra o patrimônio, motivadas, inicialmente, por questões de ordem econômica. Há uma notável evolução da estrutura familiar no Brasil e a família monoparental feminina é uma forma de organização familiar que ocupa posição de destaque em crescimento quantitativo (Cf. BRASIL, 2015, on-line). Ocorre que o constante desenvolvimento econômico e intelectual faz surgir novas ideologias e costumes, o que reflete diretamente na dinâmica das relações em sociedade. O que aqui se busca destacar é o cenário que se fixou a partir do século XIX, quando as mulheres começaram a ocupar espaço social com participação cada vez maior no mercado do trabalho; o que reverberou, também, nas novas formas de constituição de família. Devido à faixa etária e à condição social das mulheres presas, muitas delas já possuíam filhos antes de terem a liberdade restringida. A maioria foi presa ainda grávida, e outras engravidaram no cárcere, seja em virtude de uma relação sexual ocorrida nas visitas íntimas - ainda que raras -, seja nas ocasiões das saídas temporárias. Entre essas mulheres, um sentimento em comum é a dor da separação. É que, sendo a mulher a única responsável pela manutenção financeira, material e emocional da família, seu afastamento do lar pela restrição da liberdade faz gerar uma série de incertezas quanto ao destino e o amparo de seus filhos (Cf. SILVA, 2015, p. 13). A maior tristeza está no fato dessas mães não poderem acompanhar o crescimento de seus filhos, participar de fases importantes de suas vidas e, por conseguinte, não tendo elas cumprido seu papel na educação convencional, tornarem-se apenas uma vaga lembrança estampada em fotografias ou esperança de reencontro. A relação entre mães e filhos é, sem dúvida, uma das mais importantes no desenvolvimento de um indivíduo; e o cárcere torna, muitas vezes, difícil sua manutenção. As mulheres que são presas grávidas ou engravidam aprisionadas têm a certeza de que chegará o momento da separação. Quando as que já possuíam filhos, há toda a problemática que é relativa ao regime de visitação e, ainda, ao abandono.
3. UM BREVE HISTÓRICO DAS PRISÕES FEMININAS O baixo índice de criminalidade entre as mulheres fez com que, durante séculos, os Estados se mantivessem alheios à necessidade de criação de sistemas prisionais voltados exclusivamente para 143
mulheres. No ano de 1645, foi criado o primeiro presídio feminino do qual se teve notícia no mundo, denominado The Spinhuis e situado na capital holandesa Amsterdã. Mais tardiamente, no século XIX, foi criada Mount Pleasant Female Prision, a primeira penitenciária feminina dos Estados Unidos na cidade de Nova York que permaneceu sendo a única do gênero no país até 1870 (Cf. ANDRADE, 2011, p.23). No mesmo contexto, surgiram as casas de correções -também chamadas de reformatórios- lideradas pela Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor2, irmandade religiosa fundada num convento de Angers, na França, em 1835, por Santa Maria Eufrásia Pelletier. A Congregação do Bom Pastor atuou na administração de cárceres femininos nos quatro continentes do globo, desde o início do século XIX até final do século XX (Cf. KARPOWICZ, 2016, p.2). Frisou-se que essas casas de detenções eram entidades semiautônomas não sujeitas à regulação estatal que funcionavam à margem do sistema carcerário formal. Elas não eram apenas destinadas às infratoras, mas também abrigavam mulheres pobres, bêbadas, prostitutas, “mal comportadas”, por assim dizer, as que não respeitavam os maridos e os pais ou as de ideologia mais ousada, dentre outras chamadas pela sociedade de “desajustadas”. A institucionalização do encarceramento feminino no Brasil foi iniciada na década de 1930 em virtude de uma realidade que mostrava a necessidade do Estado tomar para si a responsabilidade pela regulamentação das cadeias femininas e da separação de homens e mulheres dentro do espaço prisional. As fortes transformações sociais ocorridas a partir do século XVIII influenciaram todo o esteio da sociedade mundial, que pouco a pouco foi tornando-se cada vez mais complexa. O capitalismo e o desenvolvimento dos centros urbanos fizeram crescer também os conflitos entre os indivíduos que disputavam recursos em face do sistema. Nesse sentido, pôde-se observar um aumento vertiginoso da criminalidade, inclusive entre as mulheres que, dentro desse contexto, passaram a se envolver com mazelas sociais de caráter criminógeno. Não obstante, o fator determinante para que o Estado passasse a se preocupar com a situação das presas se sobressai ao aumento considerável de detenções. Àquela altura, já estava evidenciada a urgência na separação, sobretudo visando atender às necessidades provenientes da condição do gênero feminino. A primeira penitenciária feminina foi fundada apenas no ano de 1937 pela Congregação, sob a denominação de Instituto Feminino de Readaptação Social; vindo, mais tarde, em abril de 1970, a se chamar Penitenciária Feminina Madre Pelletier em homenagem à Madre fundadora da Congregação. Com um modelo de internato religioso cuidando dos “bons costumes” e da “moral”, as freiras buscavam, sobretudo, a conversão das mulheres estigmatizadas como sendo aquelas que não eram adaptadas aos padrões sociais promovendo forte vigilância quanto à sua sexualidade. Para a maioria das mulheres infratoras, a Madre Pelletier era mais que uma prisão, era um espaço de tortura, no qual, após ingressarem, tornavam-se invisíveis. Até então, as mulheres brasileiras condenadas por cometer crimes cumpriam suas penas em cadeias mistas. Por cadeias mistas entendam-se presídios masculinamente mistos, afinal o sistema prisional foi criado e desenvolvido por homens e para homens. Não havia qualquer regulamentação legal que exigisse que as celas fossem separadas em contingentes femininos e masculinos, de modo que, a prática se dava conforme os desígnios das autoridades responsáveis no ato da prisão e de acordo com as condições físicas para tal (Cf. ARTUR, 2009, p.1). Heidi Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária, indagou sobre o tema e constatou que “para o Estado e a sociedade, parece que existem somente 440 mil homens e nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês, aproximadamente 28 mil desses presos menstruam. ” (apud QUEIROZ, 2017, folha de epígrafe). 2 Na França, chamada de Notre-Dame de Charité du Bon Pastor D’Angers. 144
Então, foi a partir da década de 1930 que o Estado começou a promover algumas reformas com a finalidade de regulamentar em caráter geral as prisões brasileiras. O governo federal, por sua vez, de pronto, implementou o Regimento das Correições3, que pretendia reorganizar e disciplinar os serviços da Justiça; criou o Fundo e o Selo Penitenciário, atual Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) cuja finalidade era arrecadação de verba para as reformas; aprovou o Código Penitenciário da República, legislação subsidiária ao Código Penal que tinha como fim unificar a forma de tratamento prisional; e, por fim, em 1940, criou o novo Código Penal (Cf. ARTUR, 2009, p.2). Quarenta e quatro anos mais tarde, foi aprovada pelo então Presidente da República João Figueiredo a Lei nº 7.210/84 chamada de Lei de Execução Penal (LEP), que tem como preceito maior o respeito dos direitos dos condenados e o alcance da ressocialização pelos apenados. Esses diplomas legais acabaram por fazer incontestável a obrigação do Estado na separação dos estabelecimentos prisionais segundo o gênero. Destarte, deu-se início ao processo de tomada de medidas efetivas para acomodação legal de mulheres infratoras, de modo que a preocupação em dar um tratamento digno a essas mulheres passou a ser uma constante por parte do poder público. De acordo com o Relatório Mulheres, resultado de pesquisa do Ministério da Justiça de 2010, há, no Brasil, 508 unidades prisionais com mulheres encarceradas; dessas, somente 58 são exclusivamente femininas e 450 são compartilhadas entre homens e mulheres (Cf. PASTORAL CARCERÁRIA, 2012, on-line). No estado de Pernambuco, as mulheres infratoras são distribuídas em 5 unidades prisionais, das quais são exclusivamente femininas: a Colônia Penal Feminina do Recife (CPFR) – O Bom Pastor, a Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima (CPFAL) e a Colônia Penal Feminina de Buíque (CPFB).
4. A DISSOCIAÇÃO ENTRE A PROTEÇÃO LEGAL DA MATERNIDADE DA MULHER PRESA E A REALIDADE DA MÃE INFRATORA DA COLÔNIA PENAL FEMININA DO RECIFE (CPFR) O retrato da mulher presa em Pernambuco muito tem a dizer sobre o insucesso do Sistema Penal brasileiro. É que, um Estado Democrático e Social de Direito, assim definido por meio de uma Carta Maior de viés essencialmente democrático, somente estará concretizado quando, além das prestações positivas que servem para assegurar um mínimo existencial aos seus tutelados, estabelece um Direito Penal Democrático como ultima ratio. A realidade social brasileira é, sem dúvida, a principal causa da delinquência. O país, embora designado Estado Democrático de Direito, tem falhado manifestadamente em seu papel assistencial, figurando entre os dez países mais desiguais do mundo, segundo o ranking de desigualdade social da ONU. O art. 1º da Constituição Federal brasileira de 1988 estabelece que o Estado Democrático de Direito tenha fundamento na dignidade da pessoa humana tendo uma base principiológica pautada na proteção dos direitos e garantias que objetivam a sua concretização e que se caracterizam pela universalidade, a inviolabilidade e a historicidade. Ingo Wolfgang Sarlet traz o seguinte conceito jurídico de dignidade da pessoa humana: Qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
3 Decreto elaborado pelo interventor do estado de São Paulo, o Coronel João Alberto Lins de Barro, em 1930 e tinha o intuito de arrecadar dinheiro e impostos com vistas a investimentos nas prisões. 145
propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais elementos humanos (2008, p.63).
Os direitos fundamentais estão reunidos em três gerações ou dimensões. A primeira abrange os direitos individuais, civis e políticos; a segunda, os sociais, econômicos e culturais; e, por fim, os difusos e coletivos. Dentre esses, guardam pertinência com o presente trabalho, principalmente, os direitos individuais à vida, à igualdade e à dignidade e os direitos sociais à maternidade e à infância. O art. 5º da Constituição Federal destaca o direito à vida como valor supremo da ordem constitucional, sendo a vida o bem jurídico tutelado de maior relevância, uma vez que dá sentido a todos os demais direitos. O direito à igualdade, por sua vez, visa assegurar que todos os indivíduos sejam tratados de forma isonômica em todos os sentidos, dentre os quais o gênero e socioeconômico. Todavia, mister salientar que a igualdade que se busca aqui é uma igualdade além da formal, de modo que se permite tratar com desigualdade os desiguais à maneira de sua desigualdade no intuito de que seja efetivamente alcançada uma igualdade material. Nesse sentido, legitima-se a necessidade de um intervencionismo do Estado Democrático de Direito para garantia dessa condição. Um país que se rege por princípios e direitos fundamentais, mas que não respeita a dignidade humana tem grandes chances de que seus cidadãos estejam fadados à marginalidade. No Brasil não poderia ser diferente. Esse estado de constante afronta ao direito humano é o que essa autora entende como causa social original, primária, da delinquência feminina. De dimensão social, o direito à proteção da maternidade e da infância está incluso na segunda geração de direitos fundamentais, que veio a caracterizar uma nova compreensão de relacionamento entre sociedade e Estado, tendo sido imposto a este último um papel ativo na justiça social (Cf. MENDES; BRANCO, 2013, p. 137). O direito à proteção à maternidade e à infância é garantido pela seguridade social em seu ramo da previdência social conforme prevê o art. 201, II, da Constituição Federal (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Assim também o é pela assistência social, por meio da qual o Estado visa atender às necessidades básicas do indivíduo e que, segundo o art. 203, I da CF, tem como alguns de seus objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito (1987), apresenta o formato de hierarquização das normas de um país. Para Kelsen, a Constituição Federal se apresenta como lei suprema do Estado no campo do direito positivado que forma o sistema jurídico do país, ao qual a referida norma confere validade e também prevê os fundamentos de existência àquelas acima transcritas (Cf. KELSEN, 1999). Seguindo a sistemática do ordenamento jurídico nacional, serão analisados inicialmente os direitos previstos na Constituição Federal, Constituição do Estado de Pernambuco, o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com destaque também para Regras e Tratados dos quais o Brasil é signatário. No escopo da temática aqui abordada, merece destaque a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que foi ratificado pelo país em 25 de setembro de 1992, tendo o Congresso Nacional aprovado pelo Decreto Legislativo de nº 27 de 26 de maio de 1992 e seu cumprimento determinado pelo Decreto nº 678 de 06 de novembro de 1992 (Cf. CUNHA; BALUTA, 1999, p.23). O Pacto de São José da Costa Rica tem como finalidade precípua a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, independentemente de sua nacionalidade, tanto no seu próprio Estado de origem, quanto nos demais Estados internacionais. Desse modo, ao aderirem ao tratado, os Estados assumem várias obrigações com os indivíduos que estejam sob sua jurisdição. O tratado é reconhecido no Brasil como sendo integrante de seu ordenamento jurídico 146
constitucional e, portanto, os direitos humanos definidos no tratado demandam aplicação imediata. Apesar de o Estado brasileiro possuir uma agenda política pautada na defesa dos direitos da pessoa humana, a realidade carcerária da CPFR destoa. O perfil da mãe infratora do Bom Pastor se coaduna com o perfil geral das mulheres encarceradas. São, em maioria, mulheres jovens, de etnia negra, com baixo nível de escolaridade, pobres e enquadradas, principalmente, em crimes que guardam relação como o tráfico de drogas e contra o patrimônio. Daí a conjectura de que o sistema punitivo atual adota uma política criminal discriminatória e seletiva impactando de forma desproporcional as mulheres pobres e suas famílias, em uma constante ofensa ao princípio da isonomia. Esse perfil denuncia que o Estado Maior, neste esteio representado em segundo plano pelo Estado de Pernambuco, tem falhado em seu papel assistencialista dando vez a um alto índice de desigualdade, ou melhor, a um verdadeiro abismo social. Nessa esfera, insta trazer à tona a questão da educação, que cumpre importante função social e cuja falta ou carência constitui um dos fatores exógenos de criminalidade já mencionados. Das mães infratoras do Bom Pastor à ocasião da visita, todas possuíam ensino médio incompleto e algumas delas sequer haviam concluído o ensino fundamental. Dentro do contexto de proteção à figura da mulher e do princípio da individualização da pena, a CF traz a previsão de que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, em razão da natureza do delito, da idade e do sexo do apenado. Na ordem estrutural, CPFR se serve a cumprir o preceito constitucional, também reproduzido pela legislação penal infraconstitucional, que impõe que as penas devem ser cumpridas em estabelecimentos distintos em razão do sexo do apenado e da idade tendo em vista que a unidade é exclusivamente feminina e as mulheres lá detidas já ultrapassam a maioridade. Entretanto, falha no critério “natureza do delito”, pois atipicamente abriga mulheres em regime sumário, semiaberto e fechado. Cumpre dizer que esse cenário, no qual infratoras não sentenciadas dividem o mesmo espaço físico com mulheres já condenadas pela justiça criminal, afronta diretamente o princípio da presunção da inocência. Como reflexo dessa irregularidade, tem-se um déficit de 484 vagas na unidade, denotando as graves violações de direitos humanos sofridas por estas mulheres, pois é objetivamente impossível que essas mulheres estejam abrigadas adequadamente nesse cenário de superlotação. No que tange à garantia do direito à maternidade: A Constituição Federal de 1988 inovou ao prever a garantia de condições de permanência da presidiária com seus filhos durante o período de amamentação. Pelo princípio da simetria correlacionado ao modelo constituinte brasileiro, as constituições estaduais refletiram essa regra (VENTURA; SIMAS; LAROUZÉ, 2015, p. 611).
Frisou-se que esse é um direito elencado no extenso rol de direitos e garantias do art. 5º da Carta Maior, mais especificamente em seu inciso cinquenta. Ademais, no mesmo rol do art. 5º, a CF prevê, da mesma forma que o faz o Pacto de São José da Costa Rica, que a pena não passará da pessoa do condenado, materializando o princípio da responsabilidade pessoal corolário dos princípios da individualização e intranscendência da pena, informando que a pena não pode transcender a uma pessoa além do próprio indivíduo apenado. Insta dizer que, embora as mães infratoras tenham transgredido a lei penal, sua prole não pode receber nenhum tipo de dano ou punição em nenhuma hipótese. A violação desse direito pode, conforme a previsão legal, ensejar a reparação do dano. A realidade da CPFR demonstra que ausência de condições propícias para o desenvolvimento da criança não só afeta sua capacidade de aprendizagem e de socialização, como também vulnera gravemente seus direitos constitucionais, legais e convencionais. Aliás, contrariamente, 147
o Estado deve envidar esforços para minimizar a experiência do cárcere para a criança, pois, conforme supramencionado, a CF traz em seu bojo o dever do Estado na proteção da família, materializando, na lei, o seu papel garantidor. Em se tratando dos direitos da prole da mãe infratora, cumpre destacar o art. 227, in verbis: Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 2018, on-line).
Por ser esse um impositivo que se consubstancia em um direito constitucional, é que se determina no âmbito do sistema carcerário que a interrupção dessa convivência familiar, sendo ela por meio de visitas ou até mesmo por meio virtual e por contato telefônico, nunca poderá ser utilizada como forma de punição disciplinar (Cf. DEPEN, 2016, p. 16). Quando se discute a importância do fortalecimento da convivência familiar e comunitária, observa-se na particularidade de mulheres encarceradas que a sentença a elas atribuída reflete diretamente em seus vínculos familiares, especialmente nas situações em que têm filhos nascidos nas unidades prisionais. (SÃO PAULO, 2015, p.1).
No mesmo sentido, o art. 19 do Pacto de São José da Costa Rica que dispõe que “toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da família, da sociedade e do Estado” (CUNHA; BALUTA, 1999, p.203). As Regras de Bangkok se traduzem como Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. São normas de caráter internacional que constituem uma diretriz legítima para as políticas públicas a serem adotadas pela Sociedade Internacional, traçada na ocasião da 65ª Assembleia da ONU. As regras se revelaram como principal marco normativo internacional a abordar essa problemática e propõem um olhar diferenciado para as especificidades de gênero no encarceramento feminino. Dentre os relevantes aspectos ponderados pelo documento, destacamos a garantia da não utilização das algemas durante o parto e puerpério. É fundamental que isso seja observado no atendimento cotidiano às mulheres grávidas nos estabelecimentos de saúde, como condição basilar de valorização de sua dignidade. (PASTORAL CARCERÁRIA, 2012, p.2).
O parto marca um período importantíssimo na formação do vínculo mãe-bebê e é um momento que a psicologia entende como sendo determinante na qualidade da ligação afetiva que irá se estabelecer entre esses sujeitos. Ele pode ser descrito como o primeiro contato físico, momento de identificação recíproca e despertar dos primeiros estímulos sensoriais e emocionais da criança (Cf. SÃO PAULO, 2015, p. 6). Por tudo isso, em respeito à dignidade dos sujeitos mãe e criança como protagonistas desse momento que requer uma atmosfera mais sensível e humana. É justamente buscando dar sustentabilidade e garantia a todos os direitos até então aqui expostos que as Regras de Bangkok evidenciam a necessidade de se preconizar dar preferência às penas não privativas de liberdade ou à prisão domiciliares às mulheres infratoras gestantes e com filhos menores. É da legislação penal pátria, onde se pode extrair um maior número de dispositivos que guardam relação com o tema do presente trabalho. O Código Penal vigente foi criado por meio do Decreto-lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas durante o período do Estado Novo. 148
Ainda na Exposição de Motivos da reforma de sua Parte Geral, essa datada de 13 de julho de 1984, os responsáveis pelo projeto entenderam por bem homenagear o princípio da individualização da pena sob uma ótica mais abrangente do que àquela antes restrita à aplicação do quantum penal. Tudo isso no intuito de oferecer uma gama de possibilidades à melhor aplicação da lei penal no seu mais precioso preceito ressocializador. O art. 37 da Parte Geral abarca a regra do regime especial direcionado à mulher alicerçado na CF, determinando que “as mulheres devem cumprir pena em estabelecimento próprio, observando os deveres e direitos inerentes à sua condição pessoal [...]” (BRASIL, 2018, online). Por direitos inerentes à sua condição pessoal compreendem-se todos aqueles provenientes de sua condição de mulher, incluído o direito à maternidade. O Código Processual Penal, criado pelo Decreto-lei 3.689 de 13 de outubro de 1941 até data recente não trazia em seu bojo qualquer previsão legal que amparasse a mãe infratora. Limitavase, porém, a garantir que as mulheres fossem internadas em estabelecimento próprio ou em seção especial no âmbito da execução das medidas de segurança. Somente no ano de 2016, com alteração promovida pela Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016, denominada de Estatuto da Primeira Infância, foi que o Código de Processo Penal passou a prever em seu art. 318 que, o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante ou mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Nesses casos: Após a prisão em flagrante ou por mandado, a mulher, caso deseje, deve poder realizar teste de gravidez antes da realização da audiência de custódia, para que possa lhe ser aplicada medida cautelar alternativa à prisão, conforme estabelecido pelo artigo 318, III e IV do Código de Processo Penal. (DEPEN, 2016, p. 9).
Mais uma vez, o legislador buscou preconizar a manutenção da convivência familiar entre a mãe infratora e sua prole. Recentemente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o órgão de cúpula do Poder Judiciário, a quem compete, precipuamente, a guarda da Constituição, conforme definido no art. 102 da Constituição da República, concedeu, no último dia 20 de fevereiro de 2018, ordem, no bojo do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641-SP de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres presas gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda. Dentre os fundamentos, estão todos os pontos de dissociação da realidade carcerária feminina e da legislação constante do ordenamento jurídico pátrio, sobretudo a evidência que a manutenção de prisão preventiva de mulheres e de suas crianças em ambiente inadequado e superlotado afronta sistematicamente os princípios da intranscendência, segundo o qual a pena não pode passar da pessoa do condenado, e da primazia dos direitos da criança. Colocou-se, pois, em enfoque uma possível saída para o cenário até então paradoxal (a separação dos sujeitos versus a institucionalização da criança) construído pelo ordenamento jurídico: a possibilidade de se deferir a prisão domiciliar à mãe infratora. Na ocasião da visita de campo, ocorrida em janeiro de 2018, haviam 11 internas gestantes e cinco mães infratoras acompanhadas de seus bebês. Por ter como escopo basilar a regulamentação da execução das penas e das medidas de segurança, a Lei de Execução Penal (LEP) é, sem dúvida, a codificação que traz mais proteções à maternidade e outros direitos a ela correlatos. Datada de 11 de julho de 1984, demonstra, em sua Exposição de Motivos, a preocupação na efetivação dos princípios e regras internacionais sobre os direitos da pessoa presa fazendo referência às Regras Mínimas para o 149
Tratamento de Reclusos da ONU, cujo reconhecimento coloca como sendo de exigência fundamental para o atual cenário de revisão de métodos e meios de execução penal (Cf. BRASIL, 2018, ponto 41, on-line). Em seu capítulo II, a LEP trata das variadas espécies de assistência de dever estatal. Nesse sentido, tem-se que a assistência material prevista no art. 12 da lei deve compreender o fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Não é prestada pelo Estado a assistência material adequada para atender às necessidades básicas das mães infratoras e de suas crianças que juntas estão também sob a tutela estatal, restando a essas recorrerem à ajuda de suas famílias e da sociedade civil atuante nessa causa. O art. 14 dispõe, em seu parágrafo 3º, com redação determinada pela Lei nº 11.942 de 28 de maio de 2009, que “será assegurado acompanhamento médico para a mulher, principalmente no pré-natal e pós-parto, extensivo ao recém-nascido” (BRASIL, 2018, on-line). Conforme explanado supra, o direito à saúde é garantido constitucionalmente e deve ser usufruído por todas as mulheres, estando ou não cumprindo a pena privativa de liberdade. As disposições legais da referida lei foram criadas justamente no intuito de assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência. O art. 120 resguarda o direito da criança que necessite de internação ou de tratamento médico ser acompanhada de sua mãe, desde que esta tenha permissão do diretor do estabelecimento no qual se encontre privada de liberdade (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Das mães infratoras da CPFR, todas afirmaram ter chegado gestantes à unidade e disseram que tiveram acompanhamento pré-natal e pós-parto dentro da CPFR, à exceção das sessões de ultrassom, que eram realizadas em hospital público externo. Todas as consultas ocorrem dentro da ala do berçário. Muito embora a carência na prestação de assistência médica não tenha sido uma reclamação pontual na unidade, a prestação precária acaba por ferir não só os direitos da mulher, mas passam a influenciar no quadro geral de saúde pública e infringir o direito de prioridade absoluta da proteção integral da criança. Insta salientar que essa assistência não se reduz a oferecer os cuidados médicos necessários, vai além, exige a capacidade estrutural de oferecer ambiente confortável que proporcione uma permanência saudável tanto para mãe como para seu bebê durante esse período, uma alimentação adequada, bem como a viabilização de outros fatores condicionantes de um desenvolvimento saudável. A LEP traz, ainda, no âmbito assistencial, a garantia de assistência jurídica integral e gratuita a cargo da Defensoria Pública com arrimo nos princípios constitucionais do acesso à justiça, da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. Na CPFR, a assistência jurídica é prestada por duas defensoras públicas e duas advogadas contratadas pelo estado duas vezes na semana. A assistência social garantida pela LEP, em seus arts. 22 e 23, guarda relação relevante com o presente tema, servindo para orientar e contribuir para a perfeita harmonia entre o preso, seus familiares e o Estado; para a reativação dos laços familiares entre o preso, sua família e amigos; para proporcionar a integração social (Cf. NUNES, 2016, p. 56). Pode-se afirmar que o capítulo da lei que trata das assistências cumpre seu papel muito timidamente, principalmente no que tange à assistência social. Foi muito simplista o legislador ao dedicar apenas dois dispositivos à complexidade de funções inerentes a esta estrutura assistencial. No âmago desse paradoxo que permeia a relação de mãe e filhos no cárcere, ordinariamente, é o setor psicossocial o principal organismo atuante nesse âmbito dentro de uma unidade prisional. Por concentrar tantas incumbências, reveste-se da qualidade interdisciplinar no exercício de seu papel fundamental na construção e manutenção dos vínculos desses sujeitos. É a equipe responsável pela assistência social, juntamente com a diretoria das unidades, que irá impulsionar todo esse processo de ressignificação da 150
maternidade no seio do sistema carcerário. Dentre suas incumbências, tem-se a orientação e auxílio da mãe infratora a favorecer a manutenção e desenvolvimento de seus vínculos familiares, a regulamentação das visitas, a construção de sua identidade como mulher e mãe, o amparo na tomada de decisões; sobretudo no momento da separação; dentre outros serviços e programas socioassistenciais. Em consonância com o fundamento constitucional da proteção à dignidade da pessoa humana, a LEP impõe em seu art. 40 a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Dentre os direitos do preso listados no rol do art. 41 da lei, destacam-se no bojo do presente trabalho: o direito à alimentação suficiente e vestuário; à assistência material, à saúde, jurídica educacional social e religiosa; à visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; o chamamento nominal; igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; atestado de pena a cumprir emitido anualmente (Cf. BRASIL, 2018, on-line). O parágrafo 2º do art. 83 da LEP, com redação determinada pela Lei nº 11.942 de 28 de maio de 2009, exige que os estabelecimentos destinados a mulheres sejam dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo até seis meses de idade (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Por seu turno, o art. 89 com redação também alterada pela Lei nº 11.942 prevê, in verbis: Art. 89 Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa. Parágrafo único: São requisitos básicos da seção e da creche referidas neste artigo: I – atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela legislação educacional e em unidades autônomas; e II – horário de funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e à sua responsável (BRASIL, 2018, on-line).
Essa alteração promovida pela lei de 2009, além de obrigar à criação em todos os presídios femininos do país de seção destinada exclusivamente à parturiente e à gestante, transformou em norma cogente a existência de creches e de berçários nas unidades prisionais femininas, o que antes era facultativo. A imposição legal que diz respeito à instalação de creches nas unidades prisionais femininas possibilita que a criança permaneça sob os cuidados maternos durante boa parte de sua infância. Na colônia, a seção destinada às gestantes e parturientes não oferece condições dignas de higiene e conforto necessários para mulheres que se encontrem nessa condição, infringindo assim os preceitos constitucionais de vedação de penas cruéis e do respeito à integridade física e moral da presa mãe. Existe uma ala reservada ao berçário, onde ficam três celas, cada uma delas com um banheiro, e um espaço reservado para atendimento médico, que se traduz em atendimento pediátrico, ginecológico, clínico, odontológico, além da enfermaria. A CPFR não conta com obrigatória estrutura de creche para abrigar as crianças que tenham idade de seis meses a sete anos cuja responsável estiver presa, muito menos atendimento pessoal qualificado para este fim. Assim, em que pese à legislação penal e as recomendações do sistema de saúde que evidenciam a importância do aleitamento materno, os bebês são obrigados a desmamar aos seis meses improrrogáveis. Diante dessa carência estrutural, os seis meses previstos na legislação acabou por converter-se em parâmetro máximo de estadia da criança no cárcere. Conforme já narrado, o elemento mais problemático dessa saída é a forma abrupta como a separação corpórea entre mãe infratora e filho se realiza. Os impactos desse acontecimento traumático sobre a saúde psicológica das mães encarceradas 151
não são dos melhores, pois essa separação se precede de um convívio de seis meses intensos com suas crianças quando passam a viver nas celas lotadas na ala do berçário isoladas dos demais espaços de convivência da unidade, dedicando-se exclusivamente ao cuidado dos recém-nascidos. De igual maneira, são evidentes os impactos no corpo físico e psíquico das crianças que passam a viver dia após dias imersos num estado de ansiedade na esperança de voltar a ter contato direto com suas genitoras. Contrario sensu, a cartilha de diretrizes para convivência mãe e filho no sistema prisional elaborada pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), vai além, amplia esse prazo de convivência e busca garantir que sejam levadas em considerações as especificidades de cada caso durante todo o processo. Constrói essas diretrizes de forma inovadora, estabelecendo que seja assegurado um prazo mínimo de um ano e meio de convivência. Por sua vez, o art. 83, parágrafo 3º, da LEP, afirma que os estabelecimentos penais destinados às mulheres devem ter agentes exclusivamente do sexo feminino (Cf. BRASIL, 2018, on-line). Contra legem, na unidade, operam agentes do sexo masculino. O art. 88 da LEP traz em seu parágrafo único os requisitos básicos da unidade celular, cuja área mínima deve ser de 6m² e a salubridade pela concorrência de fatores de areação, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana (Cf. BRASIL, 2018, on-line). O ambiente da CPFR de modo geral, é organizado, embora as celas pareçam não cumprir os requisitos de um ambiente saudável. O que, por não ter a autora efetivamente adentrado nas celas das presas que não estavam grávidas e por não conhecimento técnico adequado, não se pode efetivamente afirmar. Diante de tudo o que foi exposto, tem-se que, embora paire uma atmosfera de boa vontade por parte dos gestores e servidores do Bom Pastor, o tratamento dado às internas é, sobretudo, materialmente deficiente, em virtude do que, em alguns pontos, fere flagrantemente aos princípios norteadores desse sistema ressocializador.
5. CONCLUSÃO Diante de tudo o que foi elucidado no presente trabalho, restou evidenciado uma conjuntura prática em que há um descumprimento sistemático de regras constitucionais, convencionais e legais referentes aos direitos das mães infratoras e de seus filhos, não só no âmbito da unidade Colônia Penal Feminina do Recife (CPFR) ou Bom Pastor, mas em caráter nacional. Demonstrou-se que, não obstante o vasto conjunto de previsões legais que visam proteger à maternidade e os direitos da mulher mãe infratora e de sua prole, essas garantias não vêm sendo respeitadas pelas autoridades responsáveis pelo sistema prisional do país. Há, na realidade, um cenário de constante afronta aos direitos e garantias fundamentais desses envolvidos. Esse cenário, por todo o perfil e construção então traçados, remete a um Sistema Penal fracassado, pautado no que se conhece por “cultura do encarceramento” cuja aplicação tem contribuído para uma estrutura deficitária e totalmente deturpada de seu papel ressocializador. O perfil da mãe infratora permite listar inúmeros fatores endógenos e exógenos que contribuem para aumento da criminalidade geral no país, dentre os quais, importa destacar, no contexto Brasil e regional (Pernambuco), o fator sócio econômico. A desigualdade social; o baixo índice de escolaridade; o desemprego; a carência nas prestações de serviços básicos de saúde, transporte, saneamento e segurança pública; dentre outros, remontam a uma sistemática de marginalização imoral das massas pobres. Contraditoriamente, o Estado Social e Democrático de Direito tem como seus objetivos fundamentais a construção de uma sociedade 152
justa, livre, solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos sem discriminação de qualquer natureza. Tudo isso posto com clareza pela Constituição Federal de 1988. Para tanto, exige-se do Estado, uma vez investido de poder pelo povo que o legitima, o cumprimento de seu papel prestacional, intervindo com o fim de superar tantas desigualdades e a concretização da efetiva igualdade e da liberdade de seus tutelados. Percebeu-se que, por outro lado, ao Estado nada obsta quando se vale de seu poder punitivista para cobrar dessas pessoas marginalizadas o estrito cumprimento da lei. Utiliza-se de um direito penal do terror, autoritário, que se consubstancia em verdadeiro instrumento de opressão e higienização, no qual põe o infrator como inimigo da sociedade. Ocorre que, dentro de todo esse contexto, está também inserida a mulher, mãe e infratora que, quase sempre passa a delinquir para promover sua própria subsistência e de sua prole, pois muitas vezes é chefe de família monoparental feminina e não vê outra alternativa quando o Estado não lhe tem assegurado sequer um mínimo existencial. No escopo do presente artigo, constatou-se a iminente afronta aos direitos fundamentais mais básicos dessas mães infratoras como a proteção à dignidade da pessoa humana, a isonomia e a liberdade. Sobre essa última, destaca-se o alarmante índice de prisões de mulheres antes de serem condenadas nos processos criminais em que estão sendo acusadas da prática delitiva. Uma flagrante violação, também, ao princípio penal da presunção da inocência. Na Colônia Penal Feminina do Recife esse quadro não é diferente, onde boa parte das internas está aguardando julgamento. Recentemente, tanto a alteração promovida pela Lei nº 13.257 de 8 de março de 2016 no Código de Processo Penal, bem como a concessão do Habeas Corpus coletivo nº 143.641-SP de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, membro do Supremo Tribunal Federal, parecem anunciar uma mudança de perspectiva para essas mães infratoras no sentido de preconizar medidas despenalizadoras e alternativas à prisão sempre que apropriado e possível. Dessa maneira, ainda que a legislação disponha sobre a possibilidade de substituição, o que não as defere, portanto, um direito subjetivo às violações a tantos outros direitos, faz razoável que essas mães infratoras deixem de ser penalizadas também pela falta de estrutura estatal adequada para salvaguardar seus direitos de pessoa humana. Assim, coloca-se em destaque o papel do Poder Judiciário em exercer sua função típica revestida por uma ótica mais humana, pautada na proteção da maternidade e do melhor interesse da criança. Em contrapartida, no que tange à aplicação dessa prerrogativa, tem-se o obstáculo ao acesso à justiça, que guarda relação novamente com os fatores econômicos, sociais e culturas e acabam por tornar uma constante esse estado de violação de direitos. É que, por ser aquele já mencionado o perfil das mães infratoras no estado, dificilmente essas mulheres podem contar com uma assistência jurídica de advogados privados, ficando, por isso, na dependência da atuação da Defensoria Pública do Estado que, pelos mais diversos motivos, é muitas vezes ineficaz e insuficiente. Saliente-se que, no âmbito da Colônia Penal Feminina do Recife, a maioria das mães e gestantes estão presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas e crimes patrimoniais, delitos que, em regra, não envolvem violência nem grave ameaça a pessoa. A problemática é tão recorrente que o Brasil vem sendo amplamente rechaçado pela Sociedade Internacional que nas devidas ocasiões sempre tem pontuado a urgência por um olhar mais atento à problemática do cárcere no país, recomendando formas alternativas de lidar com mulheres infratoras. Resta, pois, acompanhar como se dará o deslinde da aplicação do julgado, que vem oferecer uma saída ao paradoxo (separação dos sujeitos versus institucionalização da criança), em atendimento às recomendações internacionais contra o uso de prisão as mulheres mães infratoras. Mas não é só integridade física que é violada pela deficiência da unidade prisional feminina, que quase nunca 153
obedece na integralidade os requisitos e condições estruturais previstos na legislação para acolher as especificidades do gênero. Observa-se que a sentença atribuída a essas mulheres reflete diretamente em seus vínculos familiares, especialmente nas situações em que têm filhos nascidos nas unidades prisionais. O ponto é que essas violações de direito acabam por adentrar numa outra esfera subjetiva, que é a pessoa humana dos filhos cuja existência e dignidade jamais poderiam ser atingidas pela condenação de suas genitoras. Não obstante, a realidade destoa. Ao tratar dessa afronta aos direitos e garantias inerentes à maternidade, duas individualidades se põem como sujeitos. Dentro desse contexto de precariedade estrutural e aparato necessário à garantia dos direitos da mãe infratora e de sua criança, conclui-se que uma melhor possibilidade de exercício de maternidade ocorrerá sempre fora da prisão. É reforçada, portanto, a importância de, numa crescente busca por uma maior igualdade de gênero conferindo atenção especial a essas mães infratoras.
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QUAL O DESTINO DO CONSTITUCIONALISMO? WHAT IS THE DESTINY OF CONSTITUTIONALISM? Ítalo Lustosa Roriz1 italolustosaroriz@gmail.com
RESUMO: A presente pesquisa possui o escopo de apresentar e analisar de forma histórica-linear o desenvolvimento e as principais características dos movimentos constitucionais, a fim de possibilitar uma melhor compreensão do que será o constitucionalismo do porvir, haja vista que o marco histórico do novo direito constitucional deva ser construído no sentido da globalização. Isto é, será realizada uma abordagem histórica a fim de conhecer as bases teóricas do constitucionalismo para, consequentemente, possibilitar melhor compreensão do fenômeno. Para tanto, partindo da Antiguidade e chegando aos dias atuais, serão abordados os marcos históricos e os principais documentos concebidos pelos acordos políticos e pelas revoluções burguesas. Serão analisados com maior ímpeto o movimento constitucional denominado Neoconstitucionalismo - concebido na idade contemporânea – marco da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, chancelado por sentimentos inovadores e por críticas ao positivismo exacerbado. E, na era da globalização, serão estudadas as ideias de Cosmopolitismo e Constitucionalismo Global, destacando-se, sobretudo, os ensinamentos dialéticos de Boaventura de Sousa Santos e Marcelo Neves teorizadores da Hermenêutica Diatópica e Transconstitucionalismo, respectivamente. Para a condução da presente pesquisa, foi escolhido como método científico, o hipotético-dedutivo, com a análise bibliográfica e de artigos científicos. Palavras-chave: História;Constitucionalismo;Neoconstitucionalismo; Transconstitucionalismo; Hermenêutica Diatópica; Cosmopolitismo.
1. INTRODUÇÃO Entendendo que o marco histórico do novo direito constitucional deva ser construído no sentido da globalização e do direito internacional, principalmente em afinidade com as teorias de cosmopolitismo ou de conversação entre constituições de Estados soberanos, como é o caso das teorias do transconstitucionalismo e da hermenêutica diatópica, será feita na presente pesquisa, evolução histórica-linear dos movimentos constitucionais para uma melhor concepção do constitucionalismo global ou do por vir. Nessa perspectiva, como ponto de partida, serão apresentadas as noções de constitucionalismo na Antiguidade, seguindo os ensinamentos de Karl Loewenstein, quando identifica, no povo hebreu 1 Bacharel em direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco – FACESF; Advogado – Escritório Carneiro Leão & Lustosa Advogados Associados; Especialista em Processo Civil Contemporâneo pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE; Mestre em Direito pela Faculdade Damas da Instrução Cristã – FADIC, professor da Faculdade de Olinda - FOCCA. 157
a concepção de normas, cujo o objetivo primário era o de mitigar os poderes dos juízes e monarcas despóticos. Ainda na Antiguidade, durante o século V a.C., o autor apresenta a noção de “democracia constitucional”, nas Cidades-Estados gregas. Seguidamente, na Idade Média, marcada sobretudo pelo despotismo exagerado, pelas arbitrariedades da monarquia e do clero, quando adveio o sentimento de revolta, de insatisfação, de injustiça e de inconformismo dos cidadãos. A Magna Carta de 1215 é o documento que melhor representa o marco do constitucionalismo medieval. As disposições contidas nessa Carta, eram no sentido de conferir limites aos poderes absolutistas e garantir alguns direitos individuais. Outros documentos que também foram importantes neste período foram os pactos, forais, cartas e franquias. Estes documentos buscavam resguardar direitos individuais de determinados homens, não possuindo a característica humanista de universalização dos direitos. Continuando o método inicialmente proposto, tem-se que a Idade Moderna resta caracterizada, principalmente pelas revoluções burguesas (Inglesa, Americana e Francesa), pela concepção de Estado de Direito e do liberalismo. Nesse sentido, com a finalidade de melhor abordagem, resguardamos tópico para elencar as revoluções liberais, bem como os principais documentos gerados por estas, como: Petition of Rights, writ of habeas corpus, Bill of Rights, Declaration of Rights e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Com o escopo de ultrapassar os ideais do constitucionalismo moderno - da ideia de constituição como limitação do poder político – para inferir mais força à Constituição, surge o Neoconstitucionalismo, ou pós-positivismo (em 1997, em conferência proferida pela professora italiana Suzan Pozzolo). Nesse panorama, apresentam-se os conceitos, características e críticas ao movimento neoconstitucional, mormente à adoção da terminologia de pós-positivismo, para isso, trazemos à baila os posicionamentos contraditórios de Robert Alexy, Friedrich Müller, Lênio Streck, Luís Roberto Barroso, Daniel Sarmento, entre outros. A pertinência ressaltada do estudo do neoconstitucionalismo é revelada pelo fato de ser este fenômeno o grande paradigma para a elaboração da atual Constituição brasileira. Os ideais norteadores do neoconstitucionalismo formaram os pilares da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Por ser um estudo voltado para o constitucionalismo global, entendendo que a globalização força a revisitação e a reconstrução de outros conceitos e princípios construídos em outros cenários históricos, acreditamos que apesar de conhecer a impossibilidade em esgotar os temas ora estudados, o marco histórico constitucional fora explorado de forma objetiva e sucinta com a finalidade de fortalecer o conteúdo e o tema para um debate e uma leitura mais coerente e agradável. E, para a condução da presente pesquisa, foi escolhido como método científico, o hipotético-dedutivo, com a análise bibliográfica e de artigos científicos. É cediço que as relações com fins comerciais ou exploratórios, ou ainda de povoação entre Estados soberanos ou particulares ocorrem desde os primeiros movimentos expansionistas. Porém, com o fim da guerra fria, a globalização (dos problemas), o fortalecimento dos direitos de terceira geração e a interrelação entre constitucionalismo e direito internacional, surgem as ideias de constitucionalismo global, sociedade global, sociedade cosmopolita, transconstitucionalismo, hermenêutica diatópica, entre outras teorias. O presente estudo, limita-se a analisar a noção do constitucionalismo global seguindo o viés das teorias do transconstitucionalismo e hermenêutica diatópica, abordando os principais argumentos de Marcelo Neves e Boaventura de Sousa Santos. 158
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO: A ANTIGUIDADE COMO PONTO DE PARTIDA. Partindo dos amplos conceitos de constitucionalismo, seguindo inicialmente os ensinamentos de José Joaquim Gomes Canotilho, na premissa de que constitucionalismo, em síntese, é a técnica de limitação de poder com fins garantísticos. E de Karl Loewenstein de que: la historia del constitucionalismo no es sino la búsqueda por el hombre político de las limitaciones al poder absoluto ejercido por los detentadores del poder, así, como el esfuerzo de establecer una justificación espiritual, moral o ética de la autoridad, en lugar del sometimiento ciego a la facilidad de la autoridad existente. (LOEWENSTEIN, 1986. p. 150).
A presente abordagem histórica parte da Antiguidade, período em que a sociedade era marcada, sobretudo, pela ideia de altruísmo familiar, pela força e abrangência do pater famílias2, de modo que a família era uma das partes mais elementares da sociedade, vigorava a ideia aristotélica de que “o todo há de ter prioridade sobre as partes”, consequentemente “a família sustentava a vida e o Estado a boa vida”. (ARISTÓTELES apud SAMPAIO, 2013, p. 08). O povo hebreu foi um exemplo dessa organização familiar, estruturado em tribos familiares, com o advento do êxodo (libertação dos hebreus) e a fixação deste povo na palestina, porém, inúmeras invasões e ataques demonstraram a fragilidade desse sistema estrutural. Dessa vulnerabilidade surge a ideia de escolher líderes, a fim de organizar e promover a defesa do povo hebreu contra os ataques dos povos circunvizinhos. Esses líderes (historicamente foram doze) eram chamados de juízes. Seguidamente, ocorreram as nomeações de reis escolhidos por profetas, através da vontade divina. Porém, com as nomeações dos juízes e, posteriormente, dos monarcas, verificou-se a manifestação de ações despóticas, arbitrárias, ações contrárias às vontades divinas, que fomentaram a necessidade por limitação do poder despótico. Nessa perspectiva, Loewenstein identificou nos hebreus a idealização do constitucionalismo, no momento em que o Estado teocrático impôs limitações ao poder político (poder absolutista), assegurando aos profetas a legitimidade/competência para fiscalização das ações governamentais (monárquicas) que extrapolassem os limites bíblicos. O autor germânico também identifica a presença do constitucionalismo na Antiguidade - como base para o Estado Democrático de Direito - mais precisamente, no século V a.C., com a experiência das Cidades-Estados gregas com a democracia direta, denominada pelo autor de “democracia constitucional”. Acerca desta democracia grega discorre o autor: “el único ejemplo conocido de un sistema político con plena identidad entre gobernantes y gobernados, en cual el poder político está igualmente distribuído entre todos los ciudadanos activos, tomando parte en el todos por igual”. (LOEWENSTEIN, 1986. p. 150). O rompimento do constitucionalismo antigo para o constitucionalismo medievo remonta à Europa feudal, durante a idade média, marcada pela superveniência da igreja, quando naquele período, a organização social feita em estados, Clero (primeiro estado), nobreza (segundo estado) e povo (terceiro estado). Nessa estrutura social, não havia espaços para o indivíduo, tampouco para reivindicação de direitos individuais. O terceiro estado era o mais heterogêneo, responsável pelo labor e pelo sustento do luxo e dos privilégios dos demais estados, através do recolhimento de altos e desumanos impostos. 2 Segundo a Lei das Doze Tábuas, o pater familias tinha vitae necisque potestas - o «poder da vida e da morte» - sobre os seus filhos, a sua esposa (em alguns casos apenas), e os seus escravos, todos os quais estavam sub manu, “sob sua mão”. Para um escravo se tornar livre (alguém com status libertatis), teria que ser libertado “da mão” do pater familias, daí os termos manumissio e emancipatio. (LONG, 1875). 159
Não era conferido ao povo a possibilidade de opção religiosa, aquele que pensasse de forma contrária aos dogmas da igreja, era queimado em praça pública, daí a nomenclatura de “Idade das Trevas”. Entretanto, foi durante a Idade Média, mais precisamente na Inglaterra, que fomentou-se o desejo em lutar pela concessão de liberdades e garantias fundamentais ao indivíduo, visando romper com o padrão absolutista e centralizador da época. Sabe-se que o período medieval foi caracterizado pelo despotismo exagerado, pela soberania dos governantes (tratados como deuses), uma verdadeira forma absolutista de governar, vez que não existiam limitações às suas condutas. Os monarcas aplicavam penalidades e impunham condutas desumanas não previstas em leis, não havia poder maior que o do próprio governante, que era imune a qualquer sanção. Além dos sobreditos, diversos outros fatores levaram ao que fora denominado de “invenção” do indivíduo, ou de “humanização” do constitucionalismo na Idade Média, dentre eles, destacam-se um de natureza religiosa e outro de natureza econômica que também deram força à corrente jusnaturalista. Na religião, as ideias luteranas de comunicação direta de cada indivíduo com Deus (sem a necessidade de haver uma intermediação clerical), promoveram uma crise na igreja católica, “abrindo o caminho” para que teóricos defendessem a ideia de que existe alguém acima das famílias, da igreja e do Estado: o indivíduo. No campo da economia, a validade de acordos entre indivíduos, fez om que os contratos ganhassem força enquanto instrumento de interrelação humana. O direito natural, presente nas elaborações jusfilosóficas desde os Antigos como espaço da justiça acima do direito positivo, converte-se, pelo trabalho de pensadores como Grotius (1583 - 1645), Pufendorf (1632 1694), Wolf (1679 - 1574), Locke (1632 - 1704) e Kant (1724 - 1804), em direitos naturais pertencentes aos indivíduos pela sua natureza humana e não meras concessões do soberano (como eram pensados os direitos ou privilégios medievais). Por isso, deveriam ser reconhecidos por todo Estado que se quisesse legítimo ou constitucional. (DUMONT apud SAMPAIO, 2013, p. 9).
Assim, o antropocentrismo constante do pensamento renascentista, baseado nas duas vertentes ora invocadas (religião e economia) foi a impulsão para alocar o homem como centro das organizações sociais e políticas. [...] é ainda na Idade Média que o constitucionalismo reaparece como o movimento de conquista de liberdades individuais, como bem o demonstra a aparição de uma Magna Carta. Não se limitou a impor balizas para a atuação soberana, mas também representou o resgate de certos valores, como garantir direitos individuais em contraposição à opressão estatal. (TAVARES, 2004, p.3-17).
As doutrinas de resistência à opressão ganharam refúgio nos dogmas protestantes, partindo da premissa que a legitimação do poder não era algo emanado por uma divindade, porém, deveria ser pelo consentimento (escolha) dos governados, membros da sociedade. Nesse sentido, contrapondo às teses de poder divino dos reis, as teorias acerca do contrato social começaram a amadurecer, aprimorando o posicionamento dos estoicos, de que os homens nasciam livres, senhores de si, mas pela precariedade ou insegurança, recorriam, voluntária ou forçosamente, ao Estado, por meio do contrato social. Por meio deste contrato, os homens renunciavam de seu direito de liberdade ilimitada em troca da segurança estatal. Durante a Idade Média a Magna Carta de 1215 ou Magna Charta Libertatum, representa o grande marco do constitucionalismo medieval. As disposições contidas nessa Carta, eram no sentido de conferir limites aos poderes absolutistas e garantir alguns direitos individuais. Alguns dispositivos da Magna Carta foram copiados da Carta de Liberdades do Rei Henrique I, este documento também possuía 160
o escopo de impor limites à realeza. Pactos, forais, cartas e franquias também foram documentos marcantes na Idade Média, documentos estes, que buscavam resguardar direitos individuais de determinados homens, ou seja, não possuíam a característica humanista de universalização dos direitos. A travessia da Idade Média para a Idade Moderna restou caracterizada pelos ideais renascentistas e pela radicalização do pensamento racionalista. A exaltação destes ideais somados à evolução da filosofia, do direito, da política e do desenvolvimento capitalista tiveram suma importância decisiva no surgimento do constitucionalismo moderno. Na Modernidade, o constitucionalismo significou o triunfo do “rule of law”, do Estado de Direito, da “juridificação” da política. Diferentemente da “Idade das Trevas”, em que o soberano era imune às leis. Com o constitucionalismo moderno, o soberano haveria de respeitar as leis e, mais ainda, a supralegalidade da Constituição. A constituição passou a definir as formas de investidura, as competências, os modos de exercício e os controles das autoridades e dos poderes públicos. A organização constitucional supramencionada, fora desenvolvida a partir de interpretações sucessivas do Corpus Juris Civilis, construção do direito canônico, que visava proteger o indivíduo “dos desmandos e abusos do Estado: era o freio para o exercício da política. Esse foi um processo que se projetou ao século XIX e XX com a progressiva aceitação e emprego do controle de constitucionalidade das leis”. (SAMPAIO, 2013, p. 13).
3. AS REVOLUÇÕES BURGUESAS E A ELABORAÇÃO DE IMPORTANTES DOCUMENTOS CONSTITUCIONAIS É possível considerar que os movimentos que caracterizam a ruptura entre os sistemas constitucionalistas da Idade Média para a Idade Moderna, e desta para a Idade Contemporânea, foram as revoluções burguesas, da Inglaterra, Americana e Francesa. O primeiro grande movimento de ruptura ocorreu na Inglaterra. Uma revolução em dois tempos se deu por lá. Uma tipicamente moderna e violenta, a guerra civil; outra mais transicional e whig, a Revolução Gloriosa. Na França, as mudanças se fizeram de modo virulento, tanto em seu momento originário quanto com o terror dos anos seguintes, para assumir formas mais graduais com a reação termidoriana e o 18 de Brumário. Nos Estados Unidos, os movimentos inaugurais de guerra frente ao colonizador inglês se encaminharam, depois, para institucionalização jurídica, por meio, inicialmente, dos Atos Confederados e, enfim, da Constituição. (SAMPAIO, 2013, p.14).
Existiram em todas as revoluções, motivos de natureza econômica, política e religiosa. Porém, diante da limitação inerente à natureza do presente estudo, resguardamo-nos para uma abordagem mais superficial, abordando os principais motivos e documentos produzidos por cada revolução. Na Inglaterra, a burguesia diante dos desmandos e arbitrariedades dos monarcas, encontrava-se inconformada também com a venda de monopólios e com a regulação de mercado exercida pelas corporações de ofício. Na religião, o ambiente estava marcado pelas disputas entre Calvinistas e Anglicanos. Porém, foi a tensão e disputa de poder entre o rei Carlos I e o parlamento que concebeu o Petition of Rights (1628), o parlamento inglês condicionou o custeio da guerra requerido pelo rei ao sancionamento da Petição de Direitos, pacto que abolia as prisões arbitrárias, vedava a acomodação de militares em casas de particulares, proibia a lei marcial em tempos de paz, ratificou o instituto do writ of habeas corpus, e estabeleceu a necessidade de autorização do parlamento para a criação e aumento de impostos. 161
Outro importante documento foi o ato de habeas corpus ou habeas corpus act (1679), foi a reafirmação das prerrogativas concedidas pela Petition of Rights, importante instrumento disponibilizado ao cidadão contra as detenções arbitrárias que vinham sendo cometidas, mormente da nomeação do rei Carlos II, que pretendia ampliar os poderes reais outrora limitados pelo parlamento. Em 1689, Guilherme de Orange assumiu o trono real, após a abdicação de James II por pressão do parlamento, que não aceitava um católico como autoridade máxima do Estado, no mesmo ano, o rei Guilherme aprovou o Bill of Rights, ou Declaração de Direitos, que assegurava/ratificava direitos individuais, limitações ao poder real, independência do Poder Judiciário e competências ao parlamento. “Previa-se, dentre outras garantias, a vedação de penas cruéis, ilegais ou desproporcionais, a legalidade tributária, o direito de petição e a liberdade de portar armas. Foram asseguradas ainda eleições parlamentares (sem interferência real) e a imunidade de fala e debate no parlamento”. (SAMPAIO, 2013, p.17). A institucionalização/consolidação do constitucionalismo na Inglaterra ocorreu na forma Sttlement Act, ou Ato de Estabelecimento ou, ainda, Lei de Instauração de 1701. Por meio desse ato, excluiuse da sucessão da Coroa Inglesa os católicos, assegurando-a aos membros da família protestantes, descendentes da casa de Hannover. Em suma, o conjunto de atos ou documentos acima mencionados, constitui-se o Rule of Law inglês. Em meados do século XVIII, as treze colônias inglesas fincadas na América, apesar de gozarem de um certo grau de liberdade, autonomia política e econômica, se rebelaram contra a mudança política nas colônias, foram instituídos novos impostos a fim de angariar fundos para custear os gastos havidos com as constantes disputas na Metrópole, tornou-se obrigatório aos colonos a concessão de abrigo e sustento das tropas inglesas na América e estipulou-se diversas medidas de restrição de práticas econômicas, como proibição de fabricação de tecido ou fundição de ferro. Diversos atos ensejaram a inconformidade dos colonos ingleses, a título de informação podemos citar: os Atos de Townshend de 1767 (tributação de bens essenciais), “Leis Intoleráveis” de 1774 – Massachusetts Government Act (alteração de direitos civis dos cidadão de Massachusetts), Administration of Justice Act (apenas a Metrópole possuía competência para julgar soldados britânicos), Boston Port Act (Fechamento do porto de Boston), Quartering Acts (obrigava os cidadãos a cederem suas casas aos soldados). Em reação aos atos julgados injustos e arbitrários, os colonos organizaram o I Congresso Continental da Filadélfia (1774), quando decidiu-se pela interrupção de comercialização com a Inglaterra enquanto os direitos anteriores à 1763 não fossem restituídos, nesse sentido o Congresso redigiu uma Declaração de Direitos. Ante a inércia da Metrópole, organizou-se o II Congresso Continental, reiterando-se os requerimentos de suspensão das “Leis Intoleráveis” baseados na Declaração de Direitos/Declaration of Rights dos Colonos, requerendo ainda o fim dos impostos abusivos e da limitação comercial e industrial. Vale ressaltar que na declaração de direitos da ex-colônia inglesa da Virgínia (1776) “os direitos fundamentais passaram a ser simultaneamente a base e o fundamento (basis and foundation of governament), afirmando assim a ideia de um Estado que, no exercício do seu poder está condicionado aos limites fixados na sua Constituição”. (SARLET, 2015, P.60). Do indeferimento dos requerimentos realizados pelos colonos, foi-se criado exército para a guerra da independência (liderado por George Washington). O II congresso aprovou em 1777 os Artigos 162
da Confederação, ratificados formalmente pelas treze colônias em 1781, a guerra perdurou até 1783, quando o Tratado de Paris reconheceu a independência dos Estados Unidos. Chega-se a mais representativa das revoluções, a francesa, que significa a ruptura com a Idade Moderna, o direito divino dos reis concede espaço à soberania popular e ao contrato social. Mudou-se da monarquia absolutista para um governo baseado nas leis do Estado de Direito, sistematizado na separação de poderes e nos direitos do homem e do cidadão. Outro marco da revolução francesa é o protesto pela universalização dos direitos, nesse sentido, acredita-se que o lema “liberdade, igualdade e fraternidade” seria um ideal para a humanidade, não se restringindo aos cidadãos franceses. Assim como as demais revoluções, a francesa possuiu como fundamento importante e motivador, o caráter econômico, uma vez que a França passava por considerável crise financeira, escassez de alimentos e alta inflação em decorrência dos altos custos do reino, mormente pelos gastos da corte na Guerra dos Sete Anos (1756 - 1763). A solução encontrada pela coroa foi aumentar a tributação, porém, para esse aumento seria necessário a autorização dos Estados Gerais, em assembleia formada pelos seguintes estados: a) primeiro estado: Alto Clero; b) segundo estado: integrante das cortes, grupo provincial e nobreza; c) terceiro estado: burguesia, camponeses, artesãos, proletariado, etc. Sabendo que a carga tributária ora sugerida (imposta) seria suportada única e exclusivamente pelos integrantes do terceiro estado, estes rebelaram-se em 1789, reivindicando a votação de uma Constituição francesa. Quando após saques, batalhas, ocupações, em 26 de agosto foi aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, reconhecendo o governo limitado pela Constituição, a separação dos poderes e os direitos chamados de primeira dimensão, enfim, tratavam-se de elementos formadores da concepção de constitucionalismo liberal. As ideias da Declaração dos Direitos de 1789 influenciaram na elaboração da Constituição da França de 1791, transformando-se, seguidamente, em seu preâmbulo. Como bem resume José Adércio Leite Sampaio (2013, p. 27): A Revolução Francesa fechou a tríade das revoluções que deram nova feição política e jurídica ao Ocidente. Mais universalista e racionalista, a prova de que a humanidade progredia em direção à liberdade, como dissera Kant, ela é a mais lembrada do período. Se a Revolução Inglesa deu supremacia à política do parlamento e a norte-americana priorizou a formalidade de uma Constituição, a Francesa teve um pouco das duas. Não deixou formalmente o legislativo acima da Constituição, mas deu a ele o papel mais importante no sentido de concretizá-la. Claro que também foi caracterizada por um ingrediente econômico e político: a afirmação da burguesia como nova classe no poder. O voto Censitário e a manutenção do regime de escravidão nas colônias, findo em 1793, embora mais no papel do que na prática e restabelecido por Napoleão, demonstram que a liberdade, a igualdade e a fraternidade não eram nem de, nem para todos.
Percebe-se então que a concepção liberal, tão almejada pelo terceiro estado, gera concentração de renda e exclusão social, fazendo com que os cidadãos clamem ao Estado a imposição de limites aos abusos decorrentes do poder econômico. Destas perspectivas surgem os chamados direitos de segunda dimensão, marcados pela Constituição do México de 1917 e de Weimer de 1919. Após as desagradáveis experiências das duas grandes guerras mundiais, surge, no século XX, uma perspectiva comunitária de direitos, uma ideia de solidariedade e fraternidade mais objetiva, tratamse dos direitos de terceira dimensão, ou direitos transindividuais destacando-se “os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação” (SARLET, 2013, P.58). 163
4. NEOCONSTITUCIONALISMO Já no século XXI, período pós-guerra, a doutrina apresentou uma nova perspectiva para o constitucionalismo, chamando-o de Neoconstitucionalismo ou constitucionalismo pós-moderno, ou ainda, pós-positivismo (termo demasiadamente criticado). Esta corrente, teve por objetivo, ultrapassar os ideais do constitucionalismo moderno - da ideia de constituição como limitação do poder político – para inferir mais força à Constituição, deixando de ser um texto de caráter meramente retórico e passando a ser mais concreto, conciso, mormente ao tratar da vinculação ou aplicação dos direitos fundamentais. O neoconstitucionalismo tem por base a concretização e efetivação das prestações materiais prometidas pela sociedade, servindo como importante ferramenta para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito. “Dentre suas principais características podem ser mencionados: a) positivação e concretização de um catálogo de direitos fundamentais; b) onipresença dos princípios e das regras; c) inovações hermenêuticas; d) densificação da força normativa do Estado; e) desenvolvimento da justiça distributiva”. (AGRA, 2008, p. 31). A expressão neoconstitucionalismo surgiu em 1997, em conferência proferida pela professora italiana Suzan Pozolo, que posteriormente, aprimorou seus conceitos em sua tese de doutorado em 2001, intitulada de Giuspositivismo e neocotituzionalismo. “Tal expressão encontrou forte aceitação do direito constitucional espanhol e, a parir daí, influenciou fortemente a doutrina ibero-americana, tendo sido apresentada, no Brasil, com ares do novo paradigma científico para estudarmos o direito constitucional”. (BARROSO apud ABBOUD; OLIVEIRA, 2015, p. 201). Luís Roberto Barroso nos aponta três marcos que influenciaram/determinaram a trajetória do constitucionalismo para essa nova “feição” de “novo”, ou “neo”: o histórico, o teórico e o filosófico. O neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito. (BARROSO, 2005, p. 07).
Antes de 1945, prevalecia o modelo jurídico de prevalência do Parlamento, reduzindo significativamente as funções e competências do Poder Judiciário, que não conseguiu se impor e conter os desmandos políticos dos regimes totalitaristas (assim como as transgressões perpetradas contra a ética, a moral e a dignidade da pessoa humana). Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2a. Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito. [...]Antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do Parlamento e da concepção francesa da lei como expressão da vontade geral. A partir do final da década de 40, todavia, a onda constitucional trouxe não apenas novas constituições, mas também um novo modelo, inspirado pela experiência americana: o da supremacia da Constituição. (BARROSO, 2005, p. 05, 08).
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Nesse sentido, Barroso nos evidencia que o neoconstitucionalismo surgiu como remédio para dois grandes problemas enfrentados pelo constitucionalismo: o modelo formalista/positivista, que equiparou o direito à lei, mostrou-se ineficiente considerando que as atrocidades causadas pelos regimes totalitários foram acobertadas de legalidade e que a supremacia do parlamento (poder político) põe em risco a segurança jurídica esperada pelo sistema constitucionalista. [...] por mais estarrecedor que seja, Hitler não praticou muitas ilegalidades ou inconstitucionalidades; quase todas as atrocidades eram legitimadas por normas jurídicas”. Com efeito, a própria Constituição de Weimar, em seu art.48, outorgava “poderes ao Presidente do Reiche seu governo para adotar medidas necessárias à restauração da segurança e ordem pública[...]valendo-se para isso, se necessário, das forças armadas, bem como suspendendo, temporariamente, o exercício, total ou parcial, de direitos fundamentais. (GUERRA FILHO, 2009).
Quanto à supremacia parlamentar, acredita-se que trata-se mais de um desenvolvimento, movimento dinâmico da separação de poderes do que uma “descoberta da supremacia judicial”. Segue-se a fórmula de Montesquieu: “Poder que controla o poder”, trata-se de limitação efetiva do poder político, pelo Poder Judiciário. A origem teórica do neoconstitucionalismo, bem como suas demais denominações - neopositivismo, ou pós-positivismo - têm demonstrado incoerências no que tange ao pensamento de autores que supostamente teriam embasado o surgimento do movimento neoconstitucionalista, conforme descreve Daniel Sarmento: Os adeptos do neoconstitucionalismo buscam embasamento no pensamento de juristas que se filiam a linhas bastante heterogêneas, como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Häberle, Gustavo Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino, e nenhum desses se define hoje, ou já se definiu no passado, como neoconstitucionalista. Tanto dentre os referidos autores, como entre aqueles que se apresentam como neoconstitucionalistas, constata-se uma ampla diversidade de posições jusfilosóficas e de filosofia política: há positivistas e não positivistas, defensores da necessidade do uso do método na aplicação do Direito e ferrenhos opositores do emprego de qualquer metodologia na hermenêutica jurídica, adeptos do liberalismo político, comunitaristas e procedimentalistas. Neste quadro, não é tarefa singela definir o neoconstitucionalismo, talvez porque, [...] não exista um único neoconstitucionalismo, que corresponda a uma concepção teórica clara e coesa, mas diversas visões sobre o fenômeno jurídico na contemporaneidade, que guardam entre si alguns denominadores comuns relevantes, o que justifica que sejam agrupadas sob um mesmo rótulo, mas compromete a possibilidade de uma conceituação mais precisa. (SARMENTO, 2009, p. 114).
As principais críticas ao neoconstitucionalismo surgem no sentido de sua terminologia e ideologia indicarem ou corresponderem contraposição ao formalismo positivista que predominou até o final da Segunda Guerra Mundial. Considerando que os neoconstitucionalistas concordam com ditames alexianos de força normativa concedida à Constituição e que recebem acriticamente a jurisprudência dos valores, a teoria da argumentação (método da ponderação) e o ativismo judicial norte-americano. Os opositores dessa corrente afirmam que os neoconstitucionalistas “erram no diagnóstico de que o principal problema do direito no período imediatamente anterior à 1945 dizia respeito ao formalismo derivado de uma concepção jurídica baseada em um legicentrismo que apartou os problemas jurídicos das questões ligadas à justificação filosófica do direito, da ética e da justiça”. (ABBOUD; OLIVEIRA, 2015, p. 211) Os opositores da corrente neoconstitucional afirmam que a formação do neoconstitucionalismo fora baseada em um modelo teórico anti-formalista, mais propenso ao desenvolvimento de problemas morais no seio das questões jurídicas e não em um modelo pós-positivista. 165
O antiformalismo estava também presente no período entre-guerras, tendo sido um dos componentes que abasteceram os teóricos do direito partidários do nacional-socialismo com munições teóricas para promover uma liberação das amarras jurídicas oriundas do regime anterior, possibilitando interpretações judicias mais adequadas aos ocupantes do poder político. (ABBOUD; OLIVEIRA, 2015, p. 211).
Nesse sentido são as críticas de Friedrich Müller: Tal procedimento (a ponderação) não satisfaz as exigências, imperativas no Estado de Direito e nele efetivamente satisfazíveis, a uma formação da decisão e representação da fundamentação, controlável em termos de objetividade da ciência jurídica no quadro da concretização da constituição e do ordenamento jurídico infraconstitucional. O teor material normativo de prescrições de direitos fundamentais e de outras prescrições constitucionais é cumprido muito mais e de forma mais condizente com o Estado de Direito com ajuda dos pontos de vista hermenêutica e metodicamente diferenciadores e estruturantes da análise do âmbito da norma e com uma formulação substancialmente mais precisa dos elementos de concretização do processo prático de geração do direito a ser efetuada, do que com representações necessariamente formais de ponderação, que conseqüentemente insinuam no fundo uma reserva de juízo (Urteilsvirbehalt) em todas as normas constitucionais, do que com categorias de valores, sistema de valores e valoração, necessariamente vagas e conducentes a insinuações ideológicas.( MÜLLER apud ABBOUD; OLIVEIRA, 2015, p. 210 – 211).
Nessa perspectiva Friedrich Müller, procura anotar que o pós-positivismo não se refere a um “antipositivismo” qualquer, mas representa uma postura teórica que, sabedora do problema não enfrentado pelo positivismo – qual seja: a questão interpretativa concreta, espaço da chamada “discricionariedade judicial” – procura apresentar perspectivas teóricas e práticas que ofereçam soluções para o problema da concretização do direito. O neoconstitucionalismo pode, de certa forma, ser encarado como algum tipo de teoria anti-positivista. Mas isso, por si só, não significa pós-positivismo. Quanto à terminologia, neoconstitucionalismo, defende o professor Lênio Streck: É preferível chamar o constitucionalismo instituído a partir do segundo pós-guerra de Constitucionalismo Contemporâneo (CC), para evitar os mal-entendidos que permeiam o termo neoconstitucionalismo. Nessa medida, podese dizer que o CC representa um redimensionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no plano da teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático de Direito; e no plano da Teoria do Direito, no interior da qual se dá a reformulação das teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição); na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios — atenção: princípios não como valores e, sim, operando no código lícito-ilícito), na teoria da interpretação, que, nos termos que proponho, representa uma blindagem às discricionariedades e ativismos, a partir da construção de uma teoria da decisão judicial e em uma teoria da decisão, que complementa a teoria da interpretação. (STRECK, 2014).
Streck também é crítico do método da ponderação, como ampliador do poder discricionário do juiz, pois não há como falar de ponderação de valores, uma vez que estes possuem características intersubjetivas. “Ora, um juiz não pode impor aos jurisdicionados os seus próprios valores, não pode construir sua decisão com base em argumentos da política. Isso não é democrático. O campo de atuação do juiz deve ser o normativo”. (STRECK, 2014).
5. CONSTITUCIONALISMO GLOBAL E MULCULTURALISMO: TANSCONSTITUCIONALISMO, HERMENÊUTICA DIATÓPICA E O COSMOPOLITISMO Solidificando diretrizes constitucionais, principalmente no que se refere à soberania estatal e consequentemente constitucional, sabendo que as relações entre diferentes povos, culturas, órgãos internacionais, com fins comerciais ou exploratórios, ou ainda de povoação entre Estados soberanos ou particulares tornam-se necessárias. Exsurge a necessidade de comunicação entre os entes internacionais e até mesmo entre as constituições. 166
O processo de globalização econômica, bastante acentuado após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo a ideia de eliminação de fronteiras nos mercados, o que se refletiu paralelamente no campo jurídico. Disso, questiona-se a tendência de flexibilização e de relativização da soberania do Estado em prol da universalização dos Direitos Humanos. (PEREIRA, 2013).
Com o fim da guerra fria, e a crescente proteção e ideologia que formavam os direitos humanos de terceira dimensão (direito à paz, ao meio ambiente equilibrado, ao desenvolvimento, etc) como universais, supranacionais, passou-se a defender que tais direitos deviam ser reconhecidos independentemente da nacionalidade do cidadão. A globalização dos problemas (meio ambiente, energia nuclear, grandes epidemias), a instituição da Organização das Nações Unidas (1945), a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, a organização de convenções e a criação de órgãos internacionais fortaleceram as ideias de sociedade global, de cidadania mundial, de democracia internacional e consequentemente de constitucionalismo mundial, ou seja, a universalização dos direitos. O século XX, é responsável pela concretização da globalização, movida inicialmente por questões de cunho econômico, fortemente influenciada pelo capitalismo, pelo liberalismo político e pelo regime de democracia constitucional. Por ser a globalização um fenômeno interdisciplinar, “são interdisciplinares na medida em que não limitam suas análises a parâmetros estritamente legalistas” (AFONSO; CASTRO, 2015, p. 525) abrangendo perspectivas históricas, filosóficas, políticas e sociológicas. Trata-se assim, de um fenômeno multifacetado, seus efeitos são experimentados por diversas esferas: a política, jurídica, cultural, bélica, econômica, etc. Para Häberle, desta interdisciplinaridade, advém a necessidade de que “(…) hoje o Estado Constitucional e o Direito Internacional transformam-se em conjunto. O direito constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional. Também é válido o contrário, ou seja, o Direito Internacional não termina onde começa o Direito Constitucional”. (HÄBERLE, 2007, pp. 11 e 12). No plano constitucional brasileiro a globalização fora apresentada com a Emenda Constitucional nº 45/2004, submetendo-o à jurisdição do Tribunal Penal Internacional e equiparando os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos às emendas constitucionais (desde que aprovadas com o quórum de Emenda Constitucional). “Com efeito, a adesão de um número significativo de Estados aos grandes pactos internacionais de direitos humanos se enquadra no que pode se denominar constitucionalismo global”. (CANOTILHO apud CAMBI, 2009, p. 66). Nico Krisch, faz com primor associação entre o fenômeno da globalização com o já abordado constitucionalismo e com o direito internacional. O constitucionalismo, pedra angular do imaginário jurídico-político ocidental por mais de dois séculos, emergiu na década de 90 (pós-Guerra Fria) sem rival e se tornou o modelo político fundamental não apenas da Europa central e oriental, mas para a maior parte do mundo. Ao mesmo tempo, o direito internacional público se transformou em um farol de esperança capaz de cumprir com a promessa de um mundo melhor e mais justo. A arena internacional pareceu se mover da anarquia para a ordem, com novas instituições e Cortes estruturando o novo cenário e valores comuns provendo uma moldura principiológica para ele. (KRISCH apud SOLIANO, 2014, p. 10).
Desta inter-relação de globalização com o constitucionalismo e com o direito internacional, surge o Constitucionalismo Global, que vem ganhando espaço desde o início da década de 19903. Nesse sentido, é indispensável a criação de órgãos internacionais/supranacionais com competência e poder para promover o controle jurisdicional da supranacionalidade dos direitos humanos. Porém, a ausência 3 Apesar de Kant, em A Paz Perpétua (1795), apresentar a ideia de Constituição de uma Federação de Estados livres, ou seja, de uma constituição universal. 167
destes órgãos com autoridade centralizada, poder de imposição e vinculação legal, permite disputa pela legitimidade na resolução de importantes questões e, por se tratar de fenômeno neoliberal, capitalista, é temerário que pequeno número de nações, imponha novas formas de opressão ao resto do mundo. No entanto, a construção de um constitucionalismo mundial (universalismo) vai além da existência de instituições internacionais adequadas, pois depende de uma sociedade civil global, que esbarra nas profundas diferenças culturais (multiculturalismo) entre os povos (diferentes tradições, línguas, religiões, condições e estruturas jurídicas, econômicas e sociais), agravadas em um contexto econômico transnacional. (SANTOS apud CAMBI, 2009, p.66).
Para a concepção de uma sociedade civil global, necessário se faz a promoção dos valores da solidariedade internacional, com a imposição e regulamentação de ajudas e intervenções capazes de garantir a validade dos direitos humanos (especialmente às populações carentes). Boaventura de Sousa Santos, nesse sentido, apresenta a teoria da hermenêutica diatópica, com diálogo intercultural sendo a troca de diferentes saberes, de diferentes culturas que consistem em construções de topoi4 fortes. “No caso de um diálogo intercultural, não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentidos diferentes e, em grande medida, incomensuráveis”. (SANTOS, 1997, p. 23). Acredita Boaventura de Sousa Santos que o procedimento adequado para enfrentar as dificuldades ou necessidades na área dos direitos humanos e da dignidade humana seria a hermenêutica diatópica, como uma mobilização de apoio social para elucidar possibilidades e exigências emancipatórias inerentes aos direitos humanos que foram apropriados e absolvidos pelo contexto cultural local, gerando uma “canibalização” cultural. Neste sentido, requer-se um diálogo intercultural para uma hermenêutica diatópica. A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topói de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão complexos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude - um objectivo inatingível - mas, pelo contrário, ampliar o máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu caráter dia-tópico. (SANTOS, 1997, p. 23).
Assim, condição sine qua non, para validade de um diálogo intercultural é reconhecer as incompletudes mútuas de cada cultura. “A Hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na identificação local como na inteligibilidade translocal das incompletudes”. (SANTOS, 1997, p. 26). A hermenêutica diatópica ou diálogo intercultural visa oferecer um campo de possibilidades para debates que ocorreram, ocorrem, ou hão de ocorrer nas diferentes regiões culturais do sistema mundial, dialoga-se acerca de temas gerais e universais, como multiculturalismo, relativismo, pós colonialismo, tradicionalismo, quadros culturais da transformação social e renovação cultural. Para Sousa Santos o multiculturalismo pode ser o novo rótulo de uma política reacionária, nessa esteira, como forma de prevenção, articulou-se dois imperativos interculturais, o primeiro disserta da seguinte forma: “das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro”. O segundo, possui o seguinte enunciado: “uma vez que todas 4 Topois são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e troca de argumentos. (SANTOS, 1997, p. 23) 168
as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”. (SANTOS, 1997, p. 30). Visa a hermenêutica diatópica transformar a afirmação dos direitos humanos (considerados universais) em uma política cosmopolita, ou contra-hegemônica, ligando línguas nativas, tornando-as inteligíveis e traduzíveis visando a emancipação social de um estado plurinacional, contrapondo-se ao localismo globalizado que produz um “choque de civilizações” em decorrência da globalização verticalizada, marcada pelas forças bélica e econômica. Outra alternativa teórica, construída com o escopo de enfrentar as dificuldades de comunicação de ordens jurídicas/atores internacionais da sociedade mundial é a noção de transconstitucionalismo, elaborada pelo professor Marcelo Neves. Em síntese, a proposta lançada por Neves constitui na possibilidade de estabelecer diálogos baseados em acoplamentos estruturais e pontes de transição (com uma abordagem significativamente complexa), com a finalidade de enfretamento de problemas constitucionais comuns. Nesse sentido, discorre: A sociedade moderna multicêntrica, formada de uma pluralidade de esferas de comunicação com a pretensão de autonomia e conflitantes entre si, estaria condenada à própria autodestruição, caso não desenvolvesse mecanismos que possibilitassem vínculos construtivos de aprendizado e influência recíproca entre as diversas esferas sociais. (NEVES, 2009, P.34).
Os requisitos estabelecidos por Neves como mecanismos para a concepção dos ideais transconstitucionais referem-se com a linguagem, o entrelaçamento dos discursos político e jurídico na teoria dos sistemas, com base no conceito sociológico desenvolvido por Niklas Luhmann5, de acoplamento estrutural. Esse acoplamento serviria à promoção e filtragem de influências e instigações recíprocas entre sistemas autônomos diversos, de maneira duradoura, estável e concentrada, vinculando-os no plano de suas perspectivas estruturais, sem que nenhum desses sistemas perca a sua respectiva autonomia. Os acoplamentos estruturais são os que excluem certas influências e facilitam outras. Há uma relação simultânea de independência e de dependência entre os sistemas acoplados estruturalmente. (NEVES, 2009, P.35).
A linguagem, nesta teoria, permitiria a instigação e influência recíproca entre comunicação e representação, excluindo alguns fluxos de sentido e admitindo a incorporação de outros, em sistemas acoplados. (NEVES, 2009, P.35). A sociedade mundial pode ser entendida doutrinariamente como um grande sistema que envolve diversos grupos sociais dotados de elementos comunicativos, que por sua vez produzem outras comunicações e assim geram um sistema comunicativo global. Dentro desses grupamentos sociais existem os “sistemas funcionais” que aparecem como ambiente uns para os outros. Como exemplo de sistemas funcionais têm-se o jurídico, o político, o econômico, o cultural, o artístico, dentre outros. O sistema jurídico representa o sistema imunológico das sociedades, preservando-as de conflitos surgidos entre os seus membros no âmbito dos demais sistemas sociais. (LUHMANN apud NEVES, 2009). Parece plausível que uma certa simetria num nível de desenvolvimento dos respectivos Estados-membros é uma condição decisiva para construção de uma supranacionalidade, que implica normas e decisões abrangentes
5 Luhmaann teve como base a teoria biológica de Humberto Maturana e Francisco Varela. 169
nas dimensões social, material e temporal, vinculando diretamente os cidadãos e órgãos estatais. Nos casos de condições orçamentárias, níveis educacionais, sistemas de saúde, situação de trabalho e emprego etc. muito díspares, fica obstaculizada ou, no mínimo, dificultada a incorporação normativa e imediata (sem ratificação) que caracteriza uma ordem supranacional.[...] Outrossim, o surgimento e a realização de uma constituição supranacional como instituição capaz de servir à racionalidade transversal entre política e direito no plano regional pressupõe que os sistemas político e jurídico diferenciados territorialmente nos respectivos Estados-membros estejam vinculados construtivamente mediante constituições transversais. (NEVES, 2009, pp. 99, 100).
Conforme Neves, as Constituições transversais referem-se ao entrelaçamento dos sistemas do direito com a política. A teoria levantada pelo autor, consiste no ideal de que a relação entre sistemas funcionais, produza o aprendizado recíproco e intercâmbio criativo, de forma que implique na troca (externalização e internalização) de informações entre grupos sociais com base em códigos binários. Nesse deslinde, o autor concebe a ideia de transconstitucionalismo como forma de delinear as relações entre ordens jurídicas diversas, uma vez que dentro do sistema mundial, surgem ordens jurídicas diferenciadas, subordinadas ao mesmo código binário (lícito/ilícito), mas com diversos programas e critérios. “Dessa maneira, uma pluralidade de ordens jurídicas, cada uma das quais com os seus próprios elementos ou operações (atos jurídicos), estruturas (normas jurídicas), processos (procedimentos jurídicos) e reflexão da identidade (dogmática jurídica)”. (NEVES, 2009, P.116). Os tratados jurídicos internacionais são ferramentas que caracterizam a independência das formas de intermediação política, nos entrelaçamentos entre a pluralidade de ordens do sistema jurídico mundial. As formas como ocorrem os relacionamentos (formais ou informais) entre os atores globais, multiplicam-se no âmbito do direito. Vale ressaltar que nem todo entrelaçamento de ordens jurídicas ocorre entre tribunais e que muitas vezes existe a incorporação de normas de ordem diversa, sem a intermediação dos diálogos. Mas o peculiar ao transconstitucionalismo não é a existência desses entrelaçamentos entre ordens jurídicas, o chamado “transnacionalismo jurídico”. No caso do transconstitucionalismo, as ordens se inter-relacionam no plano reflexivo de suas estruturas normativas que são autovinculantes e dispõem de primazia. Trata-se de uma “conversação constitucional”, que é incompatível com um “constitucional diktat” de uma ordem em relação a outra. Ou seja, não cabe falar de uma estrutura hierárquica entre ordens: a incorporação recíproca de conteúdos implica uma releitura de sentido à luz da ordem receptora. (NEVES, 2009, p. 118).
O transconstitucionalismo em primeiro momento trata-se de uma “fertilização constitucional cruzada”, no sentido de que as cortes constitucionais se invocam reciprocamente como autoridade persuasiva, com caráter motivador, não como precedente, uma vez que tratam-se de cortes de Estados soberanos. Em segundo momento, revela-se como forma de resolução de litígios transnacionais, com uma combinação de cooperação ativa entre as cortes nacionais envolvidas. As ordens estatais, internacionais, supranacionais, transnacionais e locais, consideradas como tipos específicos, são incapazes de oferecer, isoladamente, respostas complexamente adequadas para os problemas normativos da sociedade mundial. (...) O transconstitucionalismo, como modelo de entrelaçamento que serve à racionalidade transversal entre ordens jurídicas diversas, abre-se a uma pluralidade de perspectivas para a solução de problemas constitucionais, melhor adequando-se às relações entre ordens jurídicas do sistema jurídico heterárquico da sociedade mundial (NEVES, 2009, p. 131).
Percebe-se que o transconstitucionalismo não possui o escopo de instituir uma unidade constitucional no sistema jurídico mundial, não interessa saber em que ordem encontra-se a Constituição, nem ao menos defini-la como privilégio do Estado. Pretende-se, porém, anotar que os 170
problemas constitucionais surgem em diversas ordens jurídicas e exigem soluções sobrelevando o contexto da sociedade mundial através do entrelaçamento entre as constituições. Há de se ressaltar que relações transconstitucionais não resultam apenas das prestações recíprocas, interpenetrações e interferências entre sistemas em geral, mas sobretudo de que as diversas ordens pertencem ao mesmo sistema, qual seja, sociedade mundial, que pretende produzir-se com base no código binário. Porém, a principal crítica dirigida à presente teoria é no sentido de reconhecer que os critérios jurídicos de cada uma das ordens jurídicas, com pretensão de afirmar sua identidade e seu poder, manipulem internamente o código binário com a preferência do direito interno, possibilitando a alteração dos códigos binários. A grande expectativa de Marcelo Neves é a de que os Estados necessitem de diálogos estabelecidos, colocando-se um na posição do outro e incorporando elementos constantes das outras ordens jurídicas, contudo, necessário se faz, a atuação cooperada dos entes envolvidos no sentido de garantir a autonomia de cada uma das ordens jurídicas internacionais. [...] a obra de Neves coloca-se como uma crítica aguda à tendência manifestada pelos Estados nacionais de permanecerem muito próximos à preservação de uma semântica de soberania, menos aberta ao diálogo transconstitucional e mais relacionada a uma argumentação estratégica ou retórica de referência às demais ordens. Essa postura se caracterizaria pela ausência do comprometimento em estabelecer uma racionalidade transversal complexamente adequada para tratar dos fenômenos de inclusão e exclusão em escala global. (GRIMM apud CARVALHO, 2015, p.21).
A teoria transconstitucional, observada pela perspectiva da conversação ou do diálogo entre Estados internacionais, numa forma de “mediação de conflitos”, nos parece uma utopia, uma vez que é de considerável dificuldade propor que Estados abram mão de suas soberanias em prol da concretização dos Direitos Humanos. Acredita-se, contudo, que “o ideal de um direito cosmopolita é uma alternativa razoável e autêntica para a transformação da espécie humana em seu conjunto. Mas essa utopia não pode ser compreendida como um ingênuo otimismo antropológico, muito embora toda experiência histórica confirme que não se consegue o possível se, por vezes, não se tiver recorrido ao impossível.” (PISARELLO, apud CAMBI, 2010, p 77).
6. CONCLUSÃO Da evolução histórica aqui explorada, é possível extrair que os movimentos constitucionais sempre foram carregados por desejos de mudança, produzidos por revoltas, revoluções, sempre em busca da igualdade e do desenvolvimento humano. Constantemente estes fenômenos carregaram o espírito de utopias, de direitos que jamais seriam alcançados. E foi esta a motivação que nos guiou durante o presente estudo. Nessa perspectiva, os elementos engajadores para a produção do presente trabalho, foram, principalmente, o fato de que hoje ao tratarmos de globalização, de cosmopolitismo, de internacionalização e universalização dos direitos, estes movimentos também são observados com uma certa desconfiança e como utopias. Nesse ínterim, foram escolhidas as teorias da Hermenêutica Diatópica de Boaventura de Sousa Santos e do Transconstitucionalismo de Marcelo Neves. Num balanço entre estas duas proposições teóricas, por tratarem-se de teorias que buscam, sobretudo, a conversa, o diálogo, o reconhecimento do multiculturalismo, percebe-se que a gênese dos novos modelos constitucionais reformadores é maximizar as discussões interculturais, políticas e jurídicas. 171
Observa-se que a hermenêutica diatópica se apresenta como uma ferramenta a fim auxiliar as incompletudes culturais, ampliando ao máximo a consciência dos povos de que suas culturas também são incompletas, para isso utiliza-se sempre o diálogo. A perspectiva de Sousa Santos é que a hermenêutica diatópica transforme os direitos humanos em uma política cosmopolita, ligando em rede línguas nativas de emancipação para torna-las mutuamente inteligíveis e traduzíveis. Quanto às proposições de Neves, o transconstitucionalismo articula a construção de pontes de transição, para que possam servir de acoplamentos estruturais entre ordens jurídicas distintas que se disponham ao aprendizado mútuo. Desta feita, diversas ordens jurídicas entrelaçadas na solução de problemas constitucionais buscariam nas constituições transversais formas de solucionar os problemas, em favor da concretização e universalização dos Direitos Humanos. Acrescenta Neves que o transconstitucionalismo não é apenas forma de solução de controvérsias, mas também é um fenômeno de prevenção. Finalizo o presente estudo, com as palavras de Sousa Santos, citando Sartre: “antes de ser concretizada, uma ideia tem uma estranha semelhança com a utopia”. (SANTOS, 1997, p. 30).
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ÉTICA ENQUANTO DEVER DE TODOS: O INÍCIO DA RECONSTRUÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ETHICS WHILE DUTY OF ALL: THE BEGINNING OF CITIZEN´S RECONSTRUCTION IN BRAZIL FROM THE 1988 FEDERAL CONSTITUTION Bruno Loureiro Cavalcanti Batista1 brunolbatista@gmail.com
RESUMO:A ética tem por base valores que envolvem diretamente a sociedade. Dentro deste contexto, podemos notar em diversas passagens contidas na Constituição Federal de 1988 a presença de inúmeros mandamentos éticos. O presente artigo traz uma série de conceitos históricos, filosóficos e legais contidos no nosso ordenamento jurídico maior, a fim de destacar a ética enquanto dever de todo profissional. O nosso objetivo é apresentar um panorama geral retratando para os leitores as mais diversas mudanças de pensamentos ao longo do tempo desde a origem histórica, passando pela visão filosófica, sem deixar de lado alguns conceitos importantes inerentes ao relacionamento profissional e também a regulamentação legal existente nas mais diversas profissões. Aqui, nos utilizamos de pesquisa bibliográfica com método dedutivo para chegar à conclusão de que sem o mínimo conhecimento legal não é possível relaciona-se pautado dentro de um comportamento ético. Palavras-chave: Ética; História; Filosofia, Conceitos; Dever. ABSTRACT: Ethics is based on values that directly involve the society. We can notice in several passages in the Federal Constitution of 1988 the presence of several ethical commands. This article brings a series of historical, philosophical and legal concepts contained in our larger legal system in order to highlight ethics as a duty of every professional. Our objective is to present a general panorama portraying to the readers the most diverse changes of thoughts over time from the historical origin, through the philosophical vision, without leaving aside some important concepts inherent to the professional relationship and also the legal regulation existing in the professions. Here, we use a bibliographical research with a deductive method to reach the conclusion that without the minimum legal knowledge it is not possible to be based on an ethical behavior. Keywords: Ethics; History; Philosophy; Concepts; Duty.
1. INTRODUÇÃO Com a evolução da espécie humana, quando passou a conviver em comunidade, surgiu à necessidade de regulamentação do comportamento. A partir de então, criaram-se princípios e normas 1 Advogado, mestrando em Direito Empresarial pela Universidad de Ciencias Empresariales e Sociales (UCES) em Buenos Aires na Argentina; Pós-graduado em Direito Tributário pelo (IBET); Professor dos cursos de Administração, Direito, Ciências Contábeis, Tecnólogos e Especializações da FOCCA- Faculdade de Olinda. 175
que disciplinaram a forma de conduta, possibilitando a convivência de acordo com os anseios do meio social. Dentro deste contexto a Constituição Federal (BRASIL, 1988) trouxe uma série de mudanças nos âmbitos cultural, institucional, político e social, sendo fato que foi a partir dela que passamos a ter um novo cenário democrático com a introdução de diversas garantias e direitos fundamentais. No entendimento de Kant apud Bittar (2006): A função do Direito, dentro da lógica da construção de relações sócio-humanas condizentes com o espírito do convívio pacífico e racional, é dispensar elementos que favoreçam a independência ética dos indivíduos e reequilibrem as desarmonias comportamentais decorrentes do entrechoque de arbítrios.
Nos dias atuais, em face do mercado altamente competitivo, existe uma grande preocupação nos resultados da produtividade. Daí, na grande maioria das vezes, deixam-se de lado as questões éticas e o pensamento social. É preciso ter em mente que os nossos atos influenciam na vida de todos e que a profissão nada mais é do que o exercício de uma tarefa para outra pessoa. Esta relação traz benefícios para todos e, por esse motivo, deve haver uma preservação na forma de conduta que deve sempre pautar-se em princípios éticos condizentes. Esta é uma realidade que alcança todas as estruturas sociais, sendo um grande desafio repensar os valores tradicionais, ajustando-os ao mundo globalizado. Por esse motivo, a ética vem sendo assunto constante nos debates jurídicos. Portanto, segundo Sá (2009, p. 156), “O conceito profissional é a evidência, perante terceiros, das capacidades e virtudes”. É preciso ter cuidado, pois existe uma tendência de que este conceito venha a ser desvirtuado, a depender do campo de atuação. Assim, da mesma maneira que um ato pode vir a enobrecer o profissional, este mesmo ato pode vir a ser desmoralizado, com a quebra de paradigmas por conduta inconveniente. O que se percebe é que, na dinâmica profissional, a teoria é bem diferente da prática, pois muitas vezes o que observamos são profissionais atuando de maneira diversa da qual seria a conduta tida como sendo a mais adequada. Aqui, não é nosso propósito esgotar a matéria, mas demonstrar o avanço jurídico trazido pelo texto constitucional de 1988 de nosso país e, para tanto, houve mudanças radicais que obrigaram os mais diversos setores a se adaptarem aos novos conceitos éticos contidos no nosso ordenamento jurídico. Dentro deste contexto, a importância do presente trabalho se dá para difundir ainda mais o tema, pois todo cidadão tem a obrigação de sempre pautar sua conduta com base na ética e moral, independentemente da sua área de atuação.
2. ORIGEM E HISTÓRIA DA ÉTICA 2.1 VISÃO FILOSÓFICA A ética foi baseada a partir de valores religiosos, os quais orientam a forma mais adequada da conduta, a partir da razão. Vários foram os filósofos que estabeleceram códigos prescritivos para a sociedade, cada qual na sua época e de seu jeito. Dentre eles, destacamos: Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Hobbes, Hume, Hegel, Kant, Bérgson, Heidegger, Habermas. Para, com o passar dos tempos, a questão da ética passou a ser estudada como uma ciência, assim entendida como ciência que trata do fim que deve orientar a conduta dos homens e dos meios para atingir 176
tal fim. É o ideal formulado e perseguido pelo homem por sua natureza e essência (ABBAGNANO apud JORGE, 2017). Já para Boff apud Claudia Jorge (2017), acredita que a ciência que trata do móvel da conduta humana e procura determinar esse móvel visando dirigir a própria conduta. Liga-se ao desejo da sobrevivência. No Ocidente, o pai da matéria foi Sócrates. Enquanto que já no Século IV, a.c., o seu mais promissor e famoso discípulo Platão pontificava no seu texto a República o que para ele seria a sociedade ideal, onde tratava da ética como sendo uma virtude, Aristóteles pregava que a racionalidade da conduta, onde o ser humano deveria sempre buscar a felicidade. Já Hegel apud Jorge 92017), destacou o Estado como sendo a principal fonte de interação, tratando a ética como sendo a filosofia do Direito. Havia ainda o conceito defendido por Pródico apud Jorge (2017), que nos contemplava com o seguinte ensinamento: “Se desejares ser honrado por uma cidade deves ser útil à cidade”. Ele pregava o respeito aos semelhantes e a equidade nas decisões como sendo fatores primordiais para o bom convívio. Kant apud Jorge (2017) pregou, para que se consiga fazer o bem, deve prevalecer à razão como ponto de partida para Ética, evitando-se os interesses individuais. Para nós seres humanos, a ética deve ser balizadora da conduta, pois o homem é o único ser capaz de pensar e medir os seus atos. Segundo ARICÓ apud Jorge (2017), a Ética “[...] representa também a relação do indivíduo com as instituições [...] com a sociedade”. Assim, quando falamos em ética, queremos dizer que preferimos nos referir como sendo um valor moral de conduta para com o próximo.
3. AS MUDANÇAS DE PENSAMENTO AO LONGO DO TEMPO Com o passar dos tempos, houve a evolução natural dos pensamentos. Daí, desde os primórdios, foram várias as crises comportamentais, as quais, geraram mudanças nos conceitos. No passado, aquilo que antes era considerado um absurdo, hoje não é mais tido como uma infração ética, moral e aos costumes. A primeira grande crise foi à mudança do mitológico para o filosófico, pois para os gregos o que antes era sobrenatural passou a ser factível do natural, ou seja, do nosso próprio mundo. Nesse caso, deixou-se de lado as possíveis causas físicas, passando a ter uma maior preocupação com o destino do próximo enquanto ser humano, surgindo, assim, os valores morais. Neste contexto, Aristóteles, apesar de distanciar-se dos seus mestres e percussores, influenciou diretamente a ética como meta para a felicidade e não mais como unicamente lógica. Outra revolução acontece a partir da proliferação no ano I do Cristianismo. Surge um novo pensamento pelo qual o homem deixa de ser o centro e Deus passa ser o comandante da vida, pois detém alma eterna. Outro fator que contribuiu para diversas e radicais mudanças no pensamento foram à queda do Império Romano, com o desaparecimento do até então maior centro cultural. Com isso, restaram apenas as preocupações dos filósofos e seus pontificados que pregavam a problemática religiosa a partir de pequenas seitas que asseguraram a manutenção do sistema, até que Constantino fulminou com essas teses ao declarar como cristão o Império Romano. Até o Século XIV a igreja Romana com todo o seu poderio econômico dominou a Europa, até o ponto que conseguiu recriar um novo conceito para ordem moral. Após o Século, XVI, mudam novamente os conceitos, pois o homem passou a ser o responsável pelo seu futuro, com a adoção da política e da arte. Pouco antes, em 1469, surge o pensamento de Maquiavel, que pontifica que o pensamento surge a partir da coação, onde não prevalecia a tradição, religião, ou vontade popular, mas sim, o poder soberano. 177
A partir do Século XIX, surge a modernidade através do pensamento de Descartes. Com ele, houve uma separação entre o corpo e a alma, ou seja, do pensamento, espírito e raciocínio lógico que deixou o corpo para um segundo plano. Já Kant apud Jorge (2017), volta suas atenções para a forma de conhecimento da ação humana. Segundo ele, o problema está na forma de agir para com o próximo, estudando diversas formas comportamentais de que como seria possível alcançar a felicidade. Para Kant apud Jorge (2017): “O imperativo categórico kantiano é puramente racional e vazio e desvinculado de qualquer condição ou empiria: Age de tal modo que a máxima de sua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal”.
No entendimento de PEGORATO (2010, p. 9): “Muitas são as maneiras de se ler as teorias éticas produzidas desde os gregos até nós.[...] o nascedouro da ética é a natureza humana que, por sua vez, se insere no cosmos também regido por leis naturais ou pelas divindades como a Justiça”.
Se todos os problemas, questionamentos e dúvidas não fossem suficientes, surge mais um pensador: Freud que foi o fundador da psicanálise e a sua nova teoria da personalidade. Assim, surge um novo homem solidário, justo e ético, capaz de ser obediente as normas prescritivas de conduta.
4. CONCEITO DE ÉTICA PROFISSIONAL Precisamos distinguir os conceitos de Ética, Moral e Direito: a ética objetiva a dignidade da pessoa humana na construção do bem-estar que deve ser comum a todos que exercem uma profissão. Neste sentido, não poderíamos deixar de ratificar o caráter jurídico e regulamentador, a partir de códigos e estatutos profissionais. Seja qual for à área de atuação, toda ela deve deter a sua normatização específica. De uma forma geral, toda e qualquer profissão transpõe o seu campo de atuação, pois precisa de uma análise mais ou menos detalhada do profissional, a depender do caso concreto. Neste caso, seja qual for o tipo profissional, é necessária a utilização de técnicas exigidas, equiparando-os aos pensadores antigos que buscavam soluções para questões morais. Assim, a ética e a moral andam juntas na vida de todos os profissionais, pois estes devem se basear em valores inerentes a dignidade da pessoa humana, inclusive, esse foi um dos preceitos fundamentais inseridos na Declaração Universal dos Direitos dos Homens da ONU. Já a moral, também é originária dos romanos e procura estabelecer regras de conduta ética – convivência social para todos, independentemente da localização em que vive. E o Direito é o veículo pelo qual são estabelecidas as regras de convívio de uma determinada localidade, pois a sua área de abrangência é local, sendo um ente derivado da moral.
5. A ÉTICA NA RELAÇÃO PROFISSIONAL Antes de decidir por uma profissão, o cidadão deve procurar conhecer os preceitos fundamentais que a regulamentam. Assim, uma escola técnica ou faculdade de qualidade deve antes procurar difundir quais são as competências e habilidades necessárias para o desempenho daquela determinada profissão. 178
Ao se formar, todo profissional presta um juramento que deixa claro o comprometimento com a sua categoria e a sociedade e é justo por esse motivo que várias das mais importantes categorias, a exemplo da medicina e do direito, possuem um código de ética e disciplina. No meu humilde entender, esta é a forma clássica de Ética Profissional. Normalmente, ao trabalhar, a pessoa não escolhe livremente aquela profissão, mas sim, é preparada ao longo do tempo para desempenhá-la de acordo com as boas técnicas. Isto é, todo e qualquer profissional, independentemente da área de atuação, tem o dever legal de cumprir com o que fora pré-determinado na regulamentação da categoria. É de extrema importância saber que nem tudo está regulamentado, mas sim, é pautado nos costumes ou em regras de convívio. A vida é um contínuo aprendizado, onde a cada dia que passa as técnicas vão ficando mais apuradas e as regulamentações vão evoluindo. Daí a necessidade do profissional estar sempre atualizado. As leis são criadas para proteção de ambas as partes, principalmente da sociedade, mas de fato não conseguem regulamentar absolutamente tudo, sendo factíveis ao comprometimento do profissional. Em verdade, algumas vezes o ser humano busca auto valorizar-se em detrimento do próximo, mas esta situação não deve ser tida como via de regra, pois na maioria dos casos ainda existem profissionais comprometidos em fazer a coisa certa. Muitas vezes, temos condutas profissionais agressivas e ou inconvenientes, mas estes tipos de procedimento são um dos principais focos de combate dos códigos de ética e órgãos de classe na busca pela efetividade de suas ações. Para os interesses da sociedade, devem sempre prevalecer às normas, princípios e virtudes. Assim, a Ética Profissional é o único meio para o bom convívio social, trazendo benefícios de uma forma geral.
6. A ÉTICA EM ALGUMAS PROFISSÕES 6.1 NA ADMINISTRAÇÃO O profissional administrador é aquela pessoa que pode atuar dentro de uma vasta gama de possibilidades e, por este motivo, está sujeito a uma série de tentações no mercado. Segundo Maximiano (1992), a organização é a união das forças entre indivíduos para realizar algum objetivo comum. Nessa toada, ele defende que ela consegue fazer aquilo que uma pessoa por si só não conseguiria. Inicialmente, a Lei n° 4.769, publicada no Diário Oficial da União em 9 de setembro de 1965 regulamentava a profissão de Técnico de Administração, mas agora recentemente em 22 de março de 2018 o Conselho Federal de Administração- CFA publicou a Resolução Normativa n° 537, a qual, finalmente aprovou o Código de Ética dos Profissionais de Administração. A resolução Normativa n. 537 do Conselho Federal de Administração assim define: “De forma ampla a Ética é definida como a explicitação teórica do fundamento último do agir humano na busca do bem comum e da realização individual. O exercício da atividade dos Profissionais de Administração implica em compromisso moral com o indivíduo, cliente, empregador, a sociedade e a sustentabilidade das organizações, impondo deveres e responsabilidades indelegáveis. O Código de Ética dos Profissionais de Administração (CEPA) é o instrumento que regula os deveres do profissional de Administração para com a comunidade, o cliente e o outro profissional”.
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E assim dispõe a Resolução: no seu Art. 1º: “O exercício das atividades abrangidas pela Lei nº 4.769/1965 exige conduta compatível com os preceitos deste Código e com os demais princípios da moral individual, social e profissional”. O Código de Ética Profissional do Administrador, então, aparece com a finalidade de propor princípios éticos para a conduta do administrador dentro das companhias onde trabalham estabelecendo-lhes uma série de regras fundamentais, tipificação das infrações, direitos, honorários, deveres em relação aos colegas e à classe e a fixação das penas em caso de violação dos preceitos. 6.2 NA ADVOCACIA O advogado, por ser o meio para efetivação da justiça, garante a ordem e os direitos do cidadão. Dentro deste contexto, o art. 133 da Constituição Federal de 1988 assim estabelece: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Pela relevância do serviço que presta a sociedade, desde 1994, existe o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (EAOAB), Lei n° 8.906 que é o dispositivo legal que confere ao advogado a missão de assegurar a cidadania e fazer valer os comandos da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, além do EAOAB acima citado, a Ordem dos Advogados do Brasil criou um Código de Ética e Disciplina que assim determina: “Art. 1º - O exercício da advocacia exige conduta compatível com os preceitos deste Código, do Estatuto, do Regulamento Geral, dos Provimentos e com os demais princípios da moral individual, social e profissional. Art. 2º - O Advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único – São deveres do advogado; I – preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo seu caráter de essencialidade e indispensabilidade; II – atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé; (...) VIII – abster-se de: utilizar de influência indevida, em seu benefício ou do cliente; Art. 3º - O advogado deve ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos”.
Como se vê, ao desempenhar o seu ministério privado, o advogado presta um serviço público e exerce função social (art. 2°, §1° do EAOAB) e, como auxiliar na aplicação da justiça, deve pautar-se em princípios básicos, agindo sempre com base nos princípios elencados no art. 2°, Parágrafo único, II acima citado, destacando-se a necessidade de agir com honestidade, decoro, veracidade e boa fé, não só na advocacia, mas em todas as relações. 6.3 NA CONTABILIDADE Já que o Brasil é considerado o país das leis e dos tributos, devido a grande concorrência no mercado, ao abrir o seu escritório, muitas vezes o profissional contador é tentado a exercer uma série de condutas delituosas, ou ainda, para ampliar a sua carteira de clientes, abrem mão de receber uma remuneração justa, prejudicando assim o conceito de toda uma categoria. 180
Pensando nisso, em 20 de novembro de 1996 o Conselho Federal de Contabilidade publicou a Resolução CFC n° 803 que é o Código de Ética Profissional do Contador (CEPC). Nela, constam 15 artigos dentre os quais destacamos o seu art. 1° que traz os objetivos: “Este Código de Ética Profissional tem por objetivo fixar a forma pela qual se devem conduzir os Profissionais da Contabilidade, quando no exercício profissional e nos assuntos relacionados à profissão e à classe”. Sabemos que toda e qualquer profissão tem um risco técnico e um resultado final a ser atingido, mas qualquer pequeno erro na contabilidade pode vir a arruinar a estabilidade financeira da empresa, causando prejuízo para o cliente. Por este motivo, o Código de ética Profissional do Contador (CEPC) é um instrumento balizador o qual todo profissional deve seguir, sob pena das imposições previstas no artigo 12 (doze) em seus três incisos, quais sejam: I- advertência reservada; II- censura reservada e III – censura pública. 6.4 NA MEDICINA Esta profissão detém uma das maiores responsabilidades por trabalhar com o corpo, saúde e a vida dos seres humanos e, por menor que seja qualquer erro, ele pode vir a causar grandes problemas. Assim, com o objetivo principal de aprimorar o exercício da medicina em benefício da sociedade, o Conselho Federal de Medicina publicou no Diário Oficial da União em 24 de setembro de 2009 a Resolução CFM n° 1.931 que é o atual Código de Ética Médica que traz uma série de direitos e deveres que os profissionais são obrigados a respeitar. O Código de ética Médica já traz em seu preâmbulo: “I – O presente Código de Ética Médica contém as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício de sua profissão, inclusive no exercício de atividades relativas ao ensino, à pesquisa e à administração de serviços de saúde, bem como no exercício de quaisquer outras atividades em que se utilize o conhecimento advindo do estudo da Medicina”.
O Código de Ética Médica detém 25 princípios, dentre os quais, destacamos: “IV - Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão”. Infelizmente, sabemos que muitos dos princípios ali contidos não são seguidos, mas cumpre destacar que o Código de Ética Médica não é só dedicado aos médicos, mas também aos pacientes, trazendo uma importante contribuição para a sociedade ao possibilitar o direito a informação, de recusar a escolha do seu tratamento. 6.5 DEVERES PROFISSIONAIS DO EDUCADOR Lamentamos o fato de uma das mais importantes categorias profissionais – professor – pela responsabilidade que detém na transmissão do conhecimento, não possuir até a presente data qualquer tipo de regulamentação, mas é preciso iniciar já os debates pois existem muitos deveres profissionais a serem avaliados e regulamentados de comum acordo. Em verdade, consideramos uma utopia, mas é fato que esta categoria profissional necessita urgentemente de uma regulamentação, pois é este profissional que detém a responsabilidade de promover um serviço de qualidade para que o aluno possa desenvolver naturalmente o seu potencial. Daí surge à imperiosa necessidade de uma regulamentação ética na atividade destes profissionais. 181
7. ALGUNS MANDAMENTOS ÉTICOS CONTIDOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Segundo Bobbio (2002, p.188), a política se desenvolve a partir de conflitos que jamais são resolvidos em definitivo, mas sempre existe a possibilidade de resolução por acordos simultâneos ou tréguas e, dentre estes, os mais duradouros são as constituições. Dentro deste contexto a Constituição Federal (BRASIL, 1988) trouxe uma série de mudanças nos âmbitos cultural, institucional, político e social, sendo fato que foi a partir dela que passamos a ter um novo cenário democrático com diversas garantias e direitos fundamentais. Logo de início destacamos os princípios trazidos no preâmbulo da nossa Carta Magna (BRASIL, 1988), a saber: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
Este texto inaugura a Constituição Federal (BRASIL, 1988) e é uma verdadeira carta de intenções do nosso legislador ao apresentar uma série de preocupações éticas com o objetivo de uma pacificação social. Assim, não restam dúvidas de que foi a partir deste documento fundamental que criou-se em nosso país a cultura da cidadania. Atualmente, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) possui 114 (cento e quatorze) artigos, dentre os quais, destacamos que no artigo 3° estão inseridos os princípios fundamentais e estes são os “objetivos da República Federativa do Brasil”, pelos quais o Estado deve atender aos anseios da sociedade: “I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- garantir o desenvolvimento nacional; III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Já o artigo 5° consagra a isonomia e a legalidade como sendo princípios basilares dos direitos coletivos: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Um dos grandes problemas que assolam os princípios éticos no nosso país são as constantes crises, pois é a partir delas que o legislador causa instabilidades, pois muitas vezes mexe no nosso ordenamento jurídico maior. Dentro deste contexto, o Prof. Ivo Dantas (1996) leciona que atualmente vivencia-se uma normatividade conflitante com a Lei Maior: a não atualização ou reinterpretação da legislação, já em vigor, de forma compatível com a materialidade do atual texto da Constituição.
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8. CONCLUSÃO Aparentemente, Ética e Moral andam juntas, todavia, há uma enorme diferenciação entre ambas, pois a primeira está ligada aos costumes e a segunda seria uma ciência objeto da primeira. Partindo desse pressuposto, o Direito valeu-se da sua força ao prescrever regras de condutas de forma positiva e a Constituição Federal de 1988 trilhou neste sentido renovando o nosso ordenamento jurídico ao trazer uma série de direitos e garantias fundamentais pautados em preceitos éticos. Aplicar a ética implica, dentre outras coisas, observar condições filosóficas, políticas, econômicas, sociais, religiosas e culturais locais. Neste contexto, não podemos esquecer que a regra geral estabelece a todos a obrigação de sempre estarem pautados na dignidade moral. Assim, observamos que a ética nada mais é do que uma regra moral de conduta, pois é essencial no comportamento profissional. Não obstante o seu caráter prescritivo, a ética não cria normas mas, tão somente, as desvenda ou esclarece. Ela procurar mostrar a todos da sociedade a sua razão de ser através da proliferação de princípios morais que devem influenciar na conduta profissional. Foi a partir do descobrimento da Ética e da moral que o homem passou a tomar decisões profissionais pautadas em valores pré-estabelecidos, os quais tinha como objetivo único a valorização dos sujeitos enquanto cidadãos. A palavra ética tem vários significados, pois não tem só a ver com os cuidados profissionais que temos que ter, mas também, com o ambiente que está em nossa volta, com o nosso corpo, com aqueles em que em convivemos, em suma: com as nossas vidas. É importantíssimo que todos os profissionais se preocupem com o social, mas cabem as escolas e universidades, como veículo de transmissão do conhecimento, difundir informações com atitudes responsáveis, pois a conscientização é fator primordial para o bom convívio social. É de fundamental importância a ética na vida de todos, sendo esta um princípio ordenador que acontece a partir da conscientização humana. O grande desafio é repensar a forma de atuação profissional na vida em geral, justamente, para que possamos conviver relativamente bem em sociedade. Dentro desta linha de raciocínio, primeiro é preciso que o cidadão comum conheça minimamente os direitos contidos na Constituição Federal de 1988 para, em seguida, poder relacionar-se pautados dentro de um comportamento ético com base na moral.
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KANT: ÉTICA DEONTOLÓGICA, DIGNIDADE HUMANA E CONSTITUIÇÃO DE 1988 KANT: DEONTOLOGICAL ETHICS, HUMAN DIGNITY AND THE 1988 CONSTITUTION Marcelo Rocha Bezerra1
RESUMO: O objetivo principal deste artigo é discorrer sobre a importância da ética deontológica e dos postulados kantianos e sua relação com a dignidade da pessoa humana que perpassa toda a Constituição de 1988. Para isso, utilizamos uma metodologia qualitativa, realizada através de pesquisa bibliográfica, havendo a necessidade de retrocedermos ao passado histórico e analisarmos alguns aspectos da filosofia de Aristóteles, na antiguidade, assim como pontos principais do cristianismo da Idade Média, notadamente as filosofias de Sto. Agostinho e São Tomás de Aquino. Na contemporaneidade, observamos as relações existentes entre a dignidade do homem em Kant com a Constituição Federal Brasileira, tida como Constituição cidadã. Palavras-chave: Kant, ética, dignidade, direito, Constituição Federal
1.INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é relacionar os preceitos e postulados da ética deontológica kantiana com a dignidade da pessoa humana, que a nosso ver, por ser um ideal absoluto, vertical e infinito que perpassa toda a Constituição Federal Brasileira, notadamente a de 1988, está implícita no ápice de suas cláusulas pétreas. Para tanto, no percurso desta humanização ou amorização de que falava Teilhard de Chardin,(1881-1955) faz-se necessário recorrer à tradicional filosofia grega, com suas virtudes cardeais, às virtudes teologais da idade média e, na modernidade, a partir de René Descartes, com a autonomia da razão diante dos afetos e dos sentimentos pelos quais aduzia Blaise Pascal e que, mais tarde serviria como preâmbulo da tropicália e dos movimentos artísticos, culturais e políticos brasileiro através da Música popular Brasileira (MPB). A vontade que move o ser humano para a ação, mesmo que disfarçada em bons propósitos, acaba invariavelmente buscando finalidades segundo as preferências individuais. Assim, normalmente o que se encontra é a ação egoísta, desvinculada de uma ação guiada por uma boa vontade. A ação não é boa, ou seja, não é guiada pela boa vontade porque está presa a um ciclo egocêntrico: 1) a razão determina a ação visando atingir determinada finalidade; 2) para tanto, escolhe os meios que empiricamente demonstraram-se mais eficazes na consecução da finalidade; 3) o problema é que desde o começo a razão elegeu a finalidade segundo inclinações e preferências subjetivas do ser, portanto egocêntricas, razão pela qual se pode concluir que o indivíduo possa utilizar-se de coisas e pessoas como meios eficazes na consecução de seu objetivo. (RIBEIRO, 2012)
1 Me. e Professor de Filosofia da Faculdade de Olinda (FOCCA). 185
O homem, como um ser dotado de razão e linguagem coerente, encontrava-se, neste período, segundo o filósofo francês, diante das leis do coração que tinha suas razões pelas quais a própria razão desconhecia. Sabe-se que no âmbito antropológico, fazem parte indissoluvelmente da natureza humana, a razão e a violência, a racionalidade e a animalidade, os sentimentos, as paixões, os desejos, enfim, aquilo que Sigmund Freud chamava de instintos, cabendo ao homem distinguir a que trajeto deveria percorrer. Caso fosse levado às pulsões instintivas de uma maneira desarrazoada, ou através de uma “razão acorrentada” dentro de um corpo animal, indigente de necessidades cegas e de paixões, de que enfatizava o filósofo alemão Eric Weil, e infringisse as leis vigentes, poderia ser punido pelas tipificações contidas na legislação penal. Não obstante todo o raciocínio construído sobre a natureza humana e suas repercutidas condutas sociais, é próprio citar as leis penais vigentes no Brasil, que igualmente consideram a animalidade humana - em todos os casos, típicos de crimes - atenuando as que, inevitavelmente, são provenientes da paixão cega, sem freios ou medidas racionais, impulsos movidos pela sede voraz de externalizar o que dentro lhe é lancinante.
2. A ÉTICA DEONTOLÓGICA Segundo Kant (1724-1804), os preceitos fundamentais da ética do dever (ética deontológica) e dos postulados da razão estão interligados com a dignidade da pessoa humana a iniciar-se com a concepção do homem (nascituro) como um ser que desfrutaria dos direitos fundamentais implícitos na Carta magna de 1988, ou seja, os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança , à propriedade como os demais direitos, por estarem presentes na dicotomia entre a potencialidade (dynamis) e a ação (ato) da filosofia aristotélica, nos quais os direitos acima mencionados encontram- se implícitos na justiça como virtude. De acordo com Bittar, a justiça de Aristóteles, compreendida em sua categorização genérica, é uma virtude (areté), “...e como toda virtude, qual a coragem, a temperança, a liberalidade, a magnificência..., é um justo meio (mesótes). Não se trata de uma simples aplicação de um raciocínio algébrico para a definição e a localização da virtude (um meio algébrico com relação a dois polos opostos), mas da situação desta em meio a dois outros extremos equidistantes com relação à posição mediana, um primeiro por excesso, um segundo por defeito ou escassez” ( 2010, p. 127)
Aristóteles, na Ética a Nicômaco, afirmava ser a justiça “aquela disposição do caráter a partir da qual os homens agem justamente, ou seja, é o fundamento das ações justas e o que as faz ansiar pelo que é justo. De modo oposto, a injustiça é a disposição do caráter a partir da qual os homens agem injustamente, ou seja, é o fundamento das ações injustas e o que os faz ansiar pelo injusto”. (2004, p.107)
Para o Estagirita, a “justiça concentra em si toda a excelência”. É, assim, de modo supremo a mais completa das excelências. É, na verdade, o uso da excelência completa. É completa, porque quem a possuir tem o poder de usá-la não apenas só para si, mas também com outrem. (2004, p. 109) Levando em consideração a justiça e a dignidade do homem em relação ao Estado, posto que segundo Aristóteles a justiça é fundamental para que o homem, como um animal gregário, político, 186
possa viver e se distinguir plenamente em sociedade, a Ministra Cármem Lúcia Antunes Rocha, Presidente do Supremo Tribunal Federal enfatiza que a dignidade é o fundamento da ideia de justiça. “... Dignidade é o pressuposto da ideia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como um ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal” (1999,p.03).
Para Kant, o homem nasce como o mais frágil dos animais, mas é dotado de razão. É preciso que os outros façam por ele uso da razão. Os cuidados garantem sua sobrevivência animal, mas é a disciplina e a perseverança direcionadas ao bem que “transformam a animalidade em racionalidade”. Para o filósofo de Konïgsberg, o homem é a única criatura que deve ser educada. O homem só pode se tornar homem pela educação. Ele não é senão o que a educação faz dele. Sem a educação, a instrução, o homem não seria apenas reduzido a um animal qualquer, mas ao pior deles, oscilando entre as ações mais sublimes e as mais odientas. É neste período, o período iluminista ou da ilustração, que o filósofo desenvolve a ética deontológica, posto que para ele a razão é insuficiente para alcançar um modelo ideal de realização da felicidade humana, sendo necessários a determinação de uma boa vontade como elemento a priori na construção de seus objetivos. Neste contexto, Kant não segue os preceitos subjetivos de sua ética, uma vez que eles poderiam levar o homem a cometer ações prejudiciais, destrutivas ou mesmo regressivas, como aquelas contidas na máxima: “Vinga-te de toda ofensa que receberes”. Se assim o fizesse, seria, por exemplo, um retrocesso aos Código de Hamurabi, da Babilônia, da Assíria e o Código de Manu, na Índia, apesar do filósofo reconhecer que na antiguidade estes códigos representavam de alguma maneira os primeiros passos de defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana.
3. ÉTICA E DIGNIDADE NA IDADE MÉDIA O autor não enfatiza também os imperativos hipotéticos da ética teleológica da filosofia grega e cristã, na qual o homem apenas seria feliz mediante uma condição, um “se” que poderia não ter um sentido real. Por exemplo, apenas seremos felizes, do ponto de vista cristão, se seguirmos as leis de Deus. Para Kant, independente de seguirmos as leis de Deus ou não, seremos felizes no cumprimento das leis justas. Seria como se ao cumpri-las, a felicidade estivesse presente no percurso da ação virtuosa. Quando se discute direito, dignidade da pessoa humana e justiça, é imprescindível analisar as influências que as Sagradas Escrituras produziram sobre a cultura ocidental. Para Bittar (2010, p.188), “as tradições, os hábitos, os costumes, as crenças populares, a moral, as instituições, a ética, as leis... estão profundamente marcadas pelas lições cristãs”. Segundo a visão cristã, a concepção de dignidade relaciona-se a algo interior, subjetivo. Sarlet aponta o conceito de dignidade oriundo da Bíblia Sagrada, que traz em seu corpo a crença em um valor intrínseco ao ser humano, não podendo ser ele transformado em mero objeto ou instrumento. De forma que, a chave-mestra do homem é o seu caráter, imagem e semelhança de Deus”; tal ideia, trazida da Bíblia, explicaria a origem da dignidade e sua inviolabilidade. Basta lembrarmos a força das palavras de Paulo na Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, cap. VI, v. 10) para refletirmos melhor sobre nossas ações: 187
“Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus” Em outra passagem avulta ainda mais diretamente a questão da justiça, de seu descumprimento e dos maus comportamentos humanos, todos em desacordo com as leis divinas: “Néscios, infiéis nos contratos, sem afeição natural, irreconciliáveis, sem misericórdia” ou “Os quais, conhecendo a justiça de Deus que são dignos de morte os que tais coisas praticam) não somente as fazem, mas também consentem aos que as fazem”(Paulo, Epístola de Paulo aos Romanos, cap. I, vv. 30 a 32). A dignidade do homem em Sto Agostinho parte da sua concepção de justiça: A justiça e o dar a cada um o seu. Considerado um dos maiores teólogos e filósofos da Idade Média, na base ontológica do homem encontra-se o amor, daí a sua conhecida máxima: “Ame, e faça o que quiser!” Mas este amor passa necessariamente por amar a si mesmo, os seus semelhantes e a Deus, sendo o amor a Deus, logicamente, o amor maior. Para o fundador da Patrística, o amor e o egoísmo, a justiça e a injustiça, o bem e o mal, o céu e o inferno existem e habitam tanto na interioridade quanto exterioridade do homem, ou seja, na sua alma e no Estado. Compete ao mesmo viver em equilíbrio com as leis de Deus, da sua consciência e as leis positivas. Tudo vai depender do livre arbítrio e do caminho a percorrer. “Não vás para fora, não saias de ti: a verdade, o amor, o bem, a justiça habita na interioridade do homem”, afirmava Sto Agostinho. A dignidade do ser humano para Sto Agostinho existe na dimensão desta busca. Em São Tomás de Aquino, outro expoente da Igreja católica, seguidor de Aristóteles,a dignidade humana relaciona-se na perspectiva do encontro do homem com Deus, uma vez que o homem “ É uma essência derivada da Essência Absoluta - de Deus”. E nesta busca, razão e fé, fé e razão estão interligadas em seu trajeto para o Absoluto. Na hierarquização das leis, devemos seguir a lei eterna em primeiro lugar, depois a lei natural e por fim, as leis positivadas. Outra preocupação do filósofo é fundamentar a prática moral não na pura experiência, mas em uma lei aprioristicamente inerente à racionalidade universal humana. Ele quer garantir a absoluta igualdade aos seres racionais ante a lei moral universal, que se expressa por meio de uma máxima, o chamado imperativo categórico, que se resumem nos postulados contidos em sua obra “Fundamentos da metafísica dos costumes”. “O imperativo categórico é, pois, único, e é como segue: age só, segundo uma máxima tal, que possa querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”(KANT, 1995, p. 42) “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 1995, p.42) “... O homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para qualquer uso desta ou daquela vontade” (KANT, 1997, p.78) e finalmente, “O imperativo prático será, pois, como segue: age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio” (KANT, 1997, p. 79)
Com o Imperativo categórico e seus postulados, o filósofo de Konïgsberg encontrou um meio por ele chamado “universal” de elaborar ações que fossem moralmente aceitas por todos e ao mesmo tempo não influenciadas pela religião, política ou pela ciência. Segundo o autor, a moral abrange 188
tanto a ética como o direito, posto que ética e direito apesar de apresentarem aspectos diferentes, são complementares. Assim, enquanto a ética relaciona-se com a interioridade, a liberdade interior e o cumprimento do dever pelo dever, tendo, portanto uma característica autônoma; “o agir jurídico, além de suas características de exterioridade e liberdade exterior, pressupõe outros fins, outras metas, outras necessidades interiores e exteriores para que se realize” (KANT, 2010, p.331). Pode-se encontrar diante da lei positiva, inúmeros móveis, como: o temor da sanção, o desejo de manter-se afastado de repreensões, prevenção de desgastes inúteis e da penalização de pessoas públicas, além do medo de escândalo. Isto caracteriza a heteronomia do direito. Para Kant é fundamental que o homem, neste contexto, na qual a ética e o direito interligados procuram, de certa forma, normatizar e/ou punir sua conduta, dando-lhe um sentido à sua vida, que ele saia de sua menoridade através da ideia do que seja o Esclarecimento. Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma condição estranha, continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a vida. (KANT, 1985, p. 140) Para Kant, a única saída do homem desta condição de menoridade é a reivindicação de autonomia da capacidade racional como expressão de maioridade. E isto, para o filósofo, todo ser humano é capaz de fazer. Esta ação é própria e inerente de todo ser humano. Todo ser humano é digno pelo simples fato de ser humano. “O caráter unilateral da concepção puramente científica do direito em que ela se compraz – concepção que, em poucas palavras, encara o direito menos a partir do aspecto realista, como forma de poder, mas antes a partir do aspecto lógico, como sistema de normas abstratas – influenciou o direito de forma pouco condizente com a dura realidade dos fatos” (IHERING, 2000, p. 28)
É necessário se avistar adiante do homem o seu desejo à conquista da felicidade. É somente para isso que vive, que trabalha, que constrói, forma sua família, se casa e tem seus filhos, unicamente por desejar a felicidade para si. Como parte de um interminável ciclo de busca pelo sentimento de satisfação pessoal, o homem é determinado a se adequar – por que não – a qualquer situação ou circunstância, tudo em prol de um objetivo maior de contentação e superação. A concretização do que lhe é digno é considerada uma fonte de felicidade, que é ligada ao sentido de bem-estar (aquele mesmo bem-estar estatal, welfare state que tanto sublimou a persecução do Estado à satisfação social). Essa felicidade é uma sensação de prazer subjetivo, da satisfação daquilo que supre as necessidades de cada um, em seu universo considerado. É claro, desta premissa somente se extrai que o homem, buscando sua felicidade, apenas se interessa pelo que lhe desperta prazer. O objetivo do Estado, nesse diapasão, é formar na consciência do homem que o ciclo que ele cumpre é suficiente, é cristalino, é coerente e lhe proporciona tudo o que ele precisa na sua formação familiar. A elevação dos direitos sociais, a exemplo dos próprios direitos trabalhistas, a um patamar nunca antes alcançado foi um fator de felicidade para a grande massa operária. As indústrias sempre foram formadas por máquinas e homens, mas jamais tiveram em seu capital humano tamanha relevância. Os direitos dos homens e mulheres trabalhadores foram ouvidos e expressos de maneira mais democrática possível à época. 189
Cansados de repressão e ditatorialismo, os brasileiros se sentiram acolhidos pela Constituição cidadã, que efetivou os clamores há muito repercutidos no eco social do vazio em sua importância. Não há dúvidas de que foi um grande passo, e muitos restam ainda de que outros grandes passos ainda são necessários. A moralidade, por não ser necessariamente relacionada com a felicidade, relaciona-se, sim, com a possibilidade de sermos dignos dela. Na Crítica da razão pura, Kant realiza uma distinção entre lei pragmática, enquanto lei prática que possui como motivo a felicidade, e a lei moral, possuindo esta um único móbil, ou seja, indicar-nos como podemos tornar-nos dignos da felicidade. Para que o ser humano possa verdadeiramente ser digno de ser feliz, deverá promover incessantemente o seu aperfeiçoamento moral. Kant, inclusive, menciona o uso do método socrático, a Maiêutica, composta de três fases: ignorância, ironia ou refutação e Maiêutica propriamente dita, para ensinar, através de questionamentos constantes, ao seu pupilo como ser feliz. Essa busca pela felicidade, no entanto, não torna o homem independente e livre de qualquer amarra ou convenção. Pode buscar sua felicidade, mas condicionado à lei. A dignidade humana serve de limitação à autonomia da vontade. Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant assinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana.(SARLET, 2002, p. 47)
4. A DIGNIDADE HUMANA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 A partir dos postulados do Imperativo Categórico, Kant enfatiza a natureza racional do ser humano. Com essa concepção, a autonomia da vontade, considerada como a faculdade de determinar a si mesmo e agir com a representação de certas leis, constitui-se em um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana. A dignidade humana, como vimos no decorrer deste artigo, é algo intrínseco, próprio a cada ser humano, existente nele pelo simples fato de existir com todas as suas potencialidades, ações e que devem ser assegurados pela Constituição a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos seguintes termos: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei; III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; Iv – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. (...) Aloísio ( 2010, p.10) A Constituição Federal de 1988, segundo Graça Silva Mourão, surge num contexto de retorno ao país aos seus ideais democráticos voltados a garantir ao ser humano padrões que o levassem ao exercício da dignidade e da cidadania. Neste cenário, a definição de “retorno” se refere a algo que remonta a uma sociedade que extrapola as fronteiras do nosso país, o iluminismo. Esse, enquanto processo, tem por base o renascimento do homem como centro de todas as situações, necessidades e ações conferindo ao ser humano um lugar de direito. Nesse cenário, de acordo com o vetor legal da atualidade a “dignidade apresenta-se, pois como uma conquista da razão ético-jurídica” (2012), cabendo ao Estado zelar para a efetivação da condição constitucional de direito. 190
Exatamente por zelar pelo cidadão, a Constituição Federal de 1988 é chamada de Constituiçãocidadã. O elemento normativo superior do Estado de Direito sai da esfera estatal para abraçar os direitos dos cidadãos, mas sempre sob a égide da lei, que nomeia todas as pessoas com direitos iguais. O Estado que se esvai na ditadura, se reencontra no povo, dissolvendo seus antigos preceitos, elencando direitos e prerrogativas, construindo novos modelos sociais, enaltecendo a vida (com qualidade), a propriedade (com destinação social), a saúde (como direito de todos), o trabalho (com várias percepções sociais jamais sonhadas em um Brasil temeroso por seu futuro). Por conseguinte, a liberdade do homem e a liberdade de agir consoante a própria vontade, baseiam-se no fato de possuir ele razão bastante para instruí-lo na lei, que terá de ser seu rumo dando-lhe a saber até que ponto estará ao sabor da própria vontade. (LOCKE, 2010, p. 48)
Outro aspecto importante na filosofia de Kant é a visão do direito no âmbito da Cosmologia. O Estado se constitui com vista na preservação de direitos, pelo que os homens abandonaram o estado inicial para constituir algo mais equilibrado e conforme a razão. A racionalidade permeia as relações do Estado com os cidadãos, bem como com outros Estados, formando uma cadeia racional de persecução do bem comum, lastreada no direito. Se a paz é a finalidade de toda a humanidade em sua História Mundial, é a junção de todas as vontades dos Estados, em uma espécie de federação conjunta, que vai formar essa busca unívoca. Se por um lado o Estado, com o exercício de seu Poder de Polícia, dilacerava direitos, impondo deveres, agora, sob seus olhos, com uma visão democrática, igualitária, impõe a todos o direito de ser, de existir, sob as asas da lei, ainda na continuidade do exercício do mesmo poder, mas de forma humanística, mais coerente, menos incisivo, mais compreensivo, menos totalitário. Essa perspectiva isonômica causa no cidadão a busca pelos direitos que possui, abrindo precedentes para a corrida em prol dos inúmeros direitos trabalhistas provenientes da semente que a nova constituinte concebeu. Se a vida é um direito, a vida digna transcende a existência para o existir e ser consciente. Em Kant, a dignidade não tem preço. Trata-se, pois, de um valor absoluto, não fazendo parte da relatividade das coisas, como afirmava o principal representante dos Sofistas, Protágoras de Abdera: “O homem é a medida de todas as coisas”. “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade” (KANT, 1997, p. 80)
“O resultado da analogia entre Estado e indivíduo é que o problema da justiça remonta ao problema da razão: age de forma justa quem age guiado pela razão. O conteúdo da justiça, objeto da investigação, é o conteúdo da razão”. (KELSEN, 1995, p. 470)
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo realizado sobre a ética deontológica kantiana e os postulados de seus imperativos analisados na crítica da razão prática e na Fundamentação da metafísica dos costume, mostram-nos que a autonomia da razão, própria de todo homem, como o sentido de universalidade de suas ações e o exercício da alteridade, no sentido de identificar no outro um fim último, jamais um meio, traduz-se como uma 191
excelência da ação ética. Tal postulado se encontra subtendida nas ideologias abraçadas nos direitos e garantias fundamentais onde imperam o respeito, a compreensão e o entendimento de que o outro, exatamente por ser diferente, resguarda direitos por sua diversidade do ser que o observa. Este é o verdadeiro espírito da lei suprema do Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal nacional.
REFERÊNCIAS ALOÍSIO, Sandro (Diretor Editorial). Constituição Federal do Brasil: atualizada 2010. São Paulo: Escada, 2011. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Antônio C. Caeiro. Lisboa: Quetzal editores, 2004. BITTAR, Eduardo. Curso de filosofia do direito. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2010. CHARDIN, PierreTeilhard. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1995. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002. _____________. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _____________Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento? Petrópolis: Vozes, 1985.
KELSEN, Hans. A ilusão da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1995. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martin Claret, 2010. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista de Interesse Público. São Paulo, p.26, 1999. SARLET, Ingo Wolfgand. Dignidade da pessoa Humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001. _____________Dimensões da dignidade: Ensaios de filosofia do direito Constitucional. Porto Alegre: livraria do advogado, 2005. RIBEIRO, Bruno. A dignidade da pessoa humana em Immanuel Kant. Endereço: https://jus.com.br/ artigos/21605/a-dignidade-da-pessoa-humana-em-immanuel-kant. Capturado em: 14/07/2018.
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A FUNÇÃO SOCIAL DO DANO EXISTENCIAL: PARA ALÉM DO DANO MORAL THE SOCIAL FUNCTION OF THE EXISTENTIAL DAMAGE: BEYOND THE MORAL DAMAGE Elaine Buarque1
Resumo: visa-se, com este artigo, fornecer uma contribuição acadêmica, no sentido de mostrar um novo olhar sobre o dano à pessoa, que pode advir de uma lesão existencial, que, apesar de se iniciar no centro do sentir humano, prolonga-se em seu existir (dirigido a si próprio) e nas suas relações coexistenciais (dirigida aos demais membros da sociedade). A partir do recorte epistemológico, derivado do conceito da vontade geral em Rousseau, da teoria contratualista em relação à formação da sociedade, do movimento de Constitucionalização do Direito Civil e da repersonalização das relações, foi desenvolvido o estudo de um dano que contemplasse não apenas à pessoa, mas, de forma ampla, os direitos democraticamente consolidados pela Constituição Federal, representados pelos princípios da sociabilidade, solidariedade e dignidade da pessoa humana. A problemática girou em torno da viabilidade e concretude da aplicabilidade de um conceito jurídico do dano existencial ao ordenamento pátrio. Partindo-se da premissa de que o dano existencial se irradia, é externo e fere um interesse individual, mas capaz de ocasionar a alteração da vida de relações da vítima com as demais pessoas e vice-versa, chega-se à conclusão de que a sociedade como um todo é prejudicada pelas consequências do dano existencial. O objetivo maior do ordenamento jurídico é a proteção da pessoa humana contra qualquer tipo de dano. Sob a ótica do dano existencial, essa proteção é ampliada, e deve voltar-se também para a proteção da coletividade, como um todo. Todos aqueles que sofrerem, ainda que de maneira oblíqua (ou em ricochete) com as lesões provocadas pelo dano existencial merecem ser ressarcidos, guardada as proporcionalidades de cada caso concreto. A maior ou talvez a mais importante característica dessa nova modalidade de dano, neste artigo proposto, sob a denominação de dano existencial, é a ampliação da função social do instituto da responsabilidade civil. Palavras-chave: Vontade Geral no Contrato Social; Direito Civil Constitucional; Dano existencial; Função Social. Abstract: the meaning of this article is provide an academicals contribution in order to develop a new perspective about the personal damage, that could be cause by an existential wound, that, in spite of had begun on the human sensible center, extends to the person’s existence (himself) and in his coexistential relations e (he with other selves). Beginning from an epistemological approach, derivate from the “general volition” in Rousseau’s landmark, the contratualism theory towards the society generation, the Constitutionalisation of the Civil Law manifestation and by the relationships’ repersonalisation, has been developed a different kind of injury that may be applied to a singular person but also, in a larger sense, the democratic constitutional laws, represented by the humans principles as the sociability, the solidarity and the dignity. The main problem was to prove the viability and the concrete applicability of a juridical concept about the existential damage in our legal system. Taking into account from the premise that the 1 Mestre e doutora em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, bolsista Capes pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior - Università di Camerino (Itália), advogada e professora universitária da Faculdade de Olinda (FOCCA) e Faculdade Salesiana do Nordeste (FASNE). 193
existential damage irradiates from inside to the outside and causes an injury to an individual interest, but also capable to disturb the victims ‘relationship life with anybody else in the society and vice versus, the conclusion that could be achieved is the society as a whole is impaired by the existential damage consequences. The legal system main concern is the human protection against all kind of injury. Through the existential damage perspective, this protection is amplified to protect the collectivity as a whole. Each one that suffered, even in an obloquie way by the injuries cause by the existential damage deserves to be compensate, towards the proportionality analyses of the real case. The biggest or maybe the most important characteristic of this new specie of damage, in this article proposed, by the existential damage denomination is the enlargement of the social duty, applied into the civil law responsibility institute. Key-words: General Volition on the Social Contract, Constitutional Civil Law, Existential Damage, Social Duty
1. INTRODUÇÃO Antes de adentrarmos no tema da função social, trataremos brevemente acerca do princípio da sociabilidade ou simplesmente socialidade, tratado na obra “O Contrato Social”, de Jean Jacques Rousseau. Este filósofo foi o primeiro contratualista a utilizar a terminologia “Vontade geral”, como valor que deve se sobrepor à vontade individual. Afirmava Rousseau que quando vários homens reunidos se consideram como um só corpo, possuiriam uma única vontade, direcionada à preservação do comum e ao bem-estar geral.2 Contrariando as teses dos filósofos que o antecederam, Rousseau apontava para a situação de opressão em que se encontrava a maioria dos homens, sustentando que, normativamente, independentemente da maior ou menor opressão existente nas mais diversas sociedades, o povo tolera que os representantes deliberem e legislem em seu lugar. O povo, neste caso, ao elegeram os membros do parlamento, torna-se escravo desses. Entretanto, uma vez emancipados, os indivíduos poderiam gerir contratualmente a sociedade da qual fariam parte.3 Rousseau defendia, portanto, que o comando dos assuntos de interesse coletivo deveria obedecer à voz dos que integravam o coletivo político. Voz essa correspondente à expressão fiel e estrita do querer em conjunto de todos os cidadãos. Os interesses da coletividade eram garantidos por um pacto que, firmado pela associação coletiva, funcionava como recurso garantidor de autênticos princípios fundamentais, tais como: a liberdade e a igualdade. sociedade política. A sociedade política, por sua vez, era entendida como o ente responsável pela manutenção da igualdade, da liberdade e por assegurar o “bem público” no seio da sociedade civil.4 Por isso, concluía aquele filósofo, o objetivo do pacto era formar uma associação de indivíduos que tivesse como fundamento a superação das necessidades impostas pela natureza. Para que não perecessem diante dos obstáculos e desafios a que eram expostos pela natureza, os homens formaram um corpo político e moral. 2 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social/ Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 115. (Coleção os Pensadores). 3 TORRES, João Carlos. Apresentação in ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Porto Alegre: L&M Editores, 2007, p. 12. 4 PONTEL, Evandro. Considerações sobre a Política em Jean-Jacques Rousseau e Alain Badiou. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/semanadefilosofia/XI/32.pdf. Acesso em: 12/04/2018. Publicação em19.08. 2007, p. 2. 194
Rousseau afirmava que era necessário “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”. 5 As forças individuais, portanto, deveriam ser orientadas de forma a fortalecer a coletividade. Mas, como seria possível unir as forças e a liberdade de cada indivíduo? Como se daria a conservação de todos os direitos da coletividade se o indivíduo em si considerado estaria sendo lesado em sua liberdade e em seus interesses? A associação livre de vontades tinha em vista um consenso, ela emerge do Pacto, visando defender e proteger individualmente cada um dos seus associados, seus bens, e tudo mais que pertence a cada um enquanto agente do pacto. O indivíduo socializado passava a ter a liberdade civil ou convencional, entendida esta como a garantia na igualdade de direitos entre partícipes, concedendo-lhes as condições de iguais - no que tange a direitos – a limitação dos desejos individuais, além de obedecer à Vontade Geral, direcionava-se ao bem da coletividade.6 A liberdade se concretizaria em obedecer à Vontade Geral, tendo em primeiro plano o bem comum. Para Rousseau: Só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem comum, porque, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou [...] somente com base nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada.7
A Vontade Geral expressaria sempre o interesse coletivo dos associados que, além de ser a garantia do bem comum, é a única força que, de acordo com o seu fim, pode dirigir o Estado. A Vontade Geral seria, necessariamente, a expressão e sinônimo de interesse público. A Vontade Geral diferenciava-se da Vontade de Todos e da vontade particular ou privada: a) a Vontade Geral corresponde às vontades que dizem respeito ao interesse e ao benefício de todos, sempre tendente ao coletivo. Corresponde ao que há de comum em todas as vontades individuais, de forma a representar o substrato coletivo das consciências; b) a Vontade Particular ou privada tende apenas à vantagem pessoal de cada indivíduo; e c) a vontade de todos, possui uma estreita ligação ao interesse privado, não ultrapassando a soma das vontades particulares. A vontade de todos seria, tão somente, a convergência de interesses particulares, onde um cidadão exporia sua vontade, com a finalidade precípua de persuadir os demais, a fim de persuadir a vontade da maioria à sua, essa vontade da maioria não se configura enquanto Vontade Geral, pois, esta última tende sempre à utilidade pública. O homem, ao identificar o bem comum, deve expressá-lo na Vontade Geral e, posteriormente, obedecer esta como regra superior, ainda que para tanto ele deva abrir mão de seus desejos particulares.8
5 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social/ Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 32. (Coleção os Pensadores). 6 PONTEL, Evandro. Considerações sobre a Política em Jean-Jacques Rousseau e Alain Badiou. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/semanadefilosofia/XI/32.pdf. Acesso em: 12/04/2018, p. 2. 7 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social/ Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 43. (Coleção os Pensadores). 8 PONTEL, Evandro. Considerações sobre a Política em Jean-Jacques Rousseau e Alain Badiou. Disponível em http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/semanadefilosofia/XI/32.pdf, p. 121. 195
Segundo Rousseau, (...) não se deve mais perguntar a quem cabe fazer as leis, pois são atos da vontade geral, nem se o príncipe está acima das leis, visto que é membro do Estado; ou se a lei poderá́ ser injusta, pois ninguém é injusto consigo mesmo, ou como se pode ser livre e se estar sujeito às leis, desde que estas não passam de registros das nossas vontades.9
As Leis seriam “atos da Vontade Geral”, expressos no exercício do interesse público. Caberia, pois, ao legislador, como ser dotado de experiência superior, fixar as regras da sociedade conveniente às nações, e às paixões dos homens sem participar, no entanto, de nenhuma delas. O poder legislativo pertenceria ao povo, não podendo o legislador ser estranho àqueles que faziam parte do Contrato Social.10 As Leis teriam por finalidade o benefício da coletividade, ou seja, o povo estatui algo para todo o povo”.11 Para Santillán, Rousseau descrevia a lei como “declaração pública e solene da vontade geral sobre um objeto de interesse comum”.12 Já nas anotações de Pontel, acerca da obra O Contrato Social, menciona que: (...) percebemos o esforço de tornar o indivíduo um cidadão participativo na vida da República, integrado na sociedade. A saber, tornar cada cidadão parte do corpo coletivo no qual se reconheça enquanto súdito a lei, porém, por outro lado, enquanto Soberano porque o conjunto de leis emana de sua vontade presente na Vontade Geral, isto é, transformar a natureza humana de cada indivíduo em uma natureza que se entenda parte do todo social. Assim, fica evidenciado que Rousseau tem por propósito a cidadania do indivíduo, capaz de ir além dos interesses particulares, tornando-o parte ativa e partícipe do corpo social e coletivo que visa o bem comum.13
Ao interpretar a obra “O Contrato Social”, Soëtard afirma: Enquanto muitos homens reunidos se consideram como um só corpo, têm uma só vontade que se refere à conservação comum e ao bem-estar geral. Então todos os móbeis do Estado são vigorosos e simples, suas máximas são claras e luminosas, não existem interesses confusos e contraditórios, o bem comum mostra-se por toda a parte com evidência e não exige senão o bom senso para ser percebido.14
1.1 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A JUSTIÇA SOCIAL, SEGUNDO OS CONTRATUALISTAS E A TENTATIVA DE HARMONIZAÇÃO DOS VALORES SOCIAIS E O BEM-ESTAR INDIVIDUAL, COMO FORMA DE COMPATIBILIZAR A CONVIVÊNCIA PACÍFICA E SOLIDÁRIA ENTRE OS INDIVÍDUOS Segundo Rousseau, o surgimento da propriedade privada deu origem aos conflitos, aos males e às guerras. O endeusamento da propriedade levou às desigualdades, os homens passaram a se sujeitar a uma autoridade, cujo poder lhe fora atribuído pela sociedade através do Contrato Social, que deveria 9 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato Social/ Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.55 (Coleção os Pensadores). 10 Op. Cit. p.73 11 Op. Cit. p. 55 12 Op. Cit. p. 92 13 PONTEL, Evandro. Considerações sobre a Política em Jean-Jacques Rousseau e Alain Badiou. Disponível em http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/semanadefilosofia/XI/32.pdf, p. 5. 14 SOËTARD, Michel. Jean-Jacques Rousseau.Trad. Verone Lane Rodrigues Doliveira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 59 – (Coleção Educadores) 196
manter a paz e a justiça por meio das leis. Guiada pela vontade geral, a sociedade garantiria o bem comum se a elaboração de atos ou a edição de leis contivessem em seu conteúdo apenas interesses comuns a todos os cidadãos. Desta forma, reinariam apenas os interesses de todos.15 Partindo da ideia da vontade geral, declarada por Rousseau, verifica-se que pela primeira vez, mesmo antes da Revolução Francesa, tem-se a elaboração de uma tese no sentido da prevalência do interesse comum ou coletivo sobre o interesse particular ou individual. Conceito hoje usado para tentar definir o princípio da função social. Reale questiona se o Direito tem fundamento contratual e conclui que “o Direito terá fundamento contratual? Esta última é uma pergunta mais importante do que se pensa, visto como o contratualismo ocupa campo vastíssimo na história da cultura jurídico-política, e ainda hoje está implícito em doutrinas que se vangloriam de pureza metódica”.16 O valor fundamental para a esfera jurídica, é o valor do justo. Este é resultado da consonância de outros valores, tais como a liberdade, a igualdade etc. O Direito é formado por valores fundantes, cuja harmonia em unidade resulta na composição do justo. A Justiça social, nas palavras de Reale, “é uma composição harmônica de valores sociais, de maneira que cada homem possa realizar a plenitude de seu ser, e a sociedade atingir o máximo de bem-estar, compatível com a convivência pacífica e solidária”.17 Em lugar da vontade empírica inicial dos contratantes, de difícil reconstituição, o que deve prevalecer desde a assinatura do contrato são as cláusulas convencionais determinadas em face da legislação vigente, a certeza não está na vontade das partes contratantes, mas na “vontade” do contrato. Para Reale, A tendência de nossos dias é no sentido de solução menos formal e mais aberta, graças à interpretação social dos contratos. Compreende-se que o fato contratual não pode ser erradicado do domínio das circunstâncias em que as duas partes se situaram e se situam, por traduzir antes um fenômeno que deve ser enquadrado no plano social e econômico. Um contrato não pode, em suma, ser desligado da trama de interesses e de estimativas que condiciona sua gênese e desenvolvimento, de modo que o laço contratual deixa de ser uma relação abstrata entre dois sujeitos, isolados do todo social a que pertencem, para inserir-se nas conjunturas histórico-sociais, que muitas vezes alteram em sua substância o alcance das declarações de vontade.18
A teoria da cláusula rebus sic stantibus surge atualizada a fim de que contratos possam atender os fluidez das relações sociais e atente-se às exigências que porventura se tornem supervenientes à formação do mesmo, em nítido avanço no tocante a necessidade emergente da sociedade e possa adequar-se à função social a que todos os contratos devem estar submetidos. Assim, se dois indivíduos contrataram, baseados em certa situação econômica e social e durante o seu cumprimento viesse a ocorrer uma profunda e imprevista alteração dos valores econômicos, o rigoroso cumprimento do contrato nos exatos termos em que o mesmo havia sido anteriormente celebrado, tornar-se-ia 15 BETIOLI, Antônio Bento. Introdução ao Direito. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 43. 16 Ao fundamentar o Direito, contratualmente, Rousseau refere-se ao “pacto social” como um modelo ideal, um pressuposto da convivência humana. Doutrina esta que depois foi reapresentada por Emmanuel Kant, que concebeu um contrato originário de puro valor transcendental. Segundo Kant, os homens, mesmo antes de se encontrarem, eles vivem em comum e permutam utilidades. Para os contratualistas, dentre os quais destacamos apenas Rousseau, os homens são governados por um contrato condicionante da vida social que, apesar de ter um valor puramente lógico, nós vivemos “como se” tivesse havido um contrato. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 308. 17 Op. Cit. p. 309. 18
Op. Cit. p. 665 197
impossível e iria na contramão do princípio da função social. Este deve servir de base e de obrigatória observância à realização e ao alcance do bem comum. Cabe, portanto, ao juiz atenuar os efeitos do formalmente contratado, por não representar mais a intenção real das partes, mas sobretudo em função de imperativos de ordem social e econômica que se tornaram supervenientes e imprevisíveis. Do equacionamento social dos contratos houve a superação da contraposição abstrata das duas teorias referidas anteriormente (estritas ao âmbito da relação obrigacional), com olvido da função social que o vínculo contratual desempenha. Logo, deve haver correlação e complementariedade entre o que foi a intenção originária das partes e aquilo que fora expressado objetivamente pelas cláusulas contratuais, prevalecendo a compreensão do laço obrigacional que represente a natureza das coisas e as conjunturas histórico-sociais. 1.2 O INDIVIDUALISMO, PERSONALISMO E TRANSPERSONALISMO NA CONCEPÇÃO DE MIGUEL REALE: TEORIAS QUE VISAM A EQUALIZAÇÃO DO PROBLEMA ENTRE OS BENS DOS INDIVÍDUOS E O BEM COMUM PARA A CONSECUÇÃO DAQUILO QUE É JUSTO Reale afirma que o justo ou é a realização do bem comum ou é o bem enquanto fim intersubjetivo do agir. Sob este prisma, apresenta aquele autor, três grandes posições possíveis.19 a) O individualismo, sustenta-se na ideia de que a ordem social justa não seria outra coisa senão o resultado da satisfação do bem do individuo como tal. Sob o ponto de vista político e econômico, no individualismo existe a tese de que, a partir do momento em que cada homem cuidar de seu interesse e de seu bem, mediante automático equilíbrio dos egoísmos, estará, consequentemente, cuidando do interesse e do bem coletivo, representados pelo bem social ou o bem comum. O Estado, sob esta perspectiva, deve ter uma função primordial e essencial, direcionada apenas para a tutela jurídica das liberdades individuais, proporcionando ao indivíduo a realização plena do seu bem, resultando, como consequência inevitável, a felicidade comum, o denominado individualismo social ou individualismo jurídico. Assim, segundo Reale, Se em um país dominar a concepção individualista, tudo se fará no sentido de interpretar a lei com o fim de salvaguardar a autonomia do indivíduo e de sua vontade em toda a sua plenitude. Ao se interpretarem os códigos, cuidar-se-á sempre de preservar o indivíduo contra as interferências do Poder Público, por se reconhecer que cada homem é o juiz maior e melhor de seus interesses e que, no fundo, cuidando de si mesmo, saberá satisfazer às exigências lícitas da coletividade como tal.20
b) Os defensores do transpersonalismo afirmam que o bem do todo é condição sine qua non da felicidade individual, e que, na realidade, os valores coletivos devem sempre se mostrar preponderantes. A autenticidade e plenitude da existência humana só seriam adquiridas quando os bens do todo fossem postos a serviço do bem social. Para Reale, Se, ao contrário, predominar em uma sociedade a concepção coletivista, que der ao todo absoluta primazia sobre as partes, a tendência na interpretação das normas jurídicas será́ sempre no sentido da limitação da liberdade em
19 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999, pp. 277-278. 20 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999, pp. 277-278. 198
favor da igualdade. Não se põe, com efeito, o problema da composição entre o indivíduo e a sociedade, sem que concomitantemente não surja o problema das relações entre a liberdade e a igualdade (1999, p. 278).
c) Buscando superar as duas primeiras teorias, os personalistas afirmam que, entre os termos indivíduo e sociedade não existe nem a harmonia espontânea, idealizada pelos individualistas, nem a inelutável subordinação apontada pelos transpresonalistas. Esta terceira teoria afirma que, se de um lado não há possibilidade de se pensar em uma combinação harmônica e automática dos egoísmos individuais; de outro lado haveria de se reconhecer que, a satisfação do que interessa à sociedade como um todo, nem sempre está representada na satisfação de cada indivíduo, visto que este mesmo indivíduo pode se mostrar irredutível ao social. Os valores do indivíduo estão sob uma tensão constante com os valores da sociedade. Daí a necessidade permanente de composição entre esses grupos de fatores, de forma a reconhecer aquilo que toca ao todo e aquilo que cabe ao indivíduo e, posteriormente, através de uma progressiva ordenação possibilitar mecanismos capazes de harmonizar essas duas forças. Conforme o conceito que se tenha da justiça, a Política e o Direito se comportarão, de modo a condicionar toda a dinâmica jurídica, através da análise de suas diferenças básicas, a fim de balizar a compreensão e a interpretação do Direito a uma ou a outra modalidade de interpretação. Quando o intérprete imbuído pelo desejo de estabelecer, em concreto, em cada caso ocorrente, aquilo que representa a harmonia possível dos dois fatores, estar-se-á diante de uma terceira maneira de interpretar-se a regra jurídica. Essa terceira corrente não estabelece a priori uma tese no sentido do predomínio do indivíduo ou do predomínio do todo, o seu objetivo é o de, apresentada uma atitude aderente à realidade histórica, deve se buscar, em cada circunstância, no plano concreto, resultante da análise de cada caso, aquilo que deve ser posto e resolvido em harmonia com a ordem social e o bem de cada indivíduo. O personalismo reconhece, em regra, que no trabalho de composição entre os valores do todo e os dos indivíduos destaca-se, de forma dominante e constante, o valor do justo. Este está representado no valor da pessoa humana. O indivíduo deve ceder ao todo até o limite de não vir a ser ferido seu valor como pessoa. O homem enquanto homem é pleno. Haverá arbítrio a partir do momento em que se ultrapasse a esfera da “personalidade”. Na apreciação do bem social ou do justo, prevalecerá ora uma atitude individualista, ora uma atitude coletivista, ora de cooperação personalista.21 Segundo Reale, A ideia de pessoa representa um elemento ético, que só se revela quando o indivíduo entra em relação com os demais indivíduos e, ao afirmar o seu próprio “eu”, é levado a reconhecer, concomitantemente, o valor do “eu” dos demais, transcendendo os limites biopsíquicos de sua individualidade. Assim como a relação entre o sujeito e o objetivo é o fundamento da Ontognoseologia, a relação de “um eu” com “outro eu” (alteridade) é o fundamento da Ética. Poder-se-ia dizer que a pessoa a medida da individualidade, pois quando um indivíduo se coloca perante outro, respeitando-se reciprocamente, ambos se põem como pessoas.22
Feitas algumas breves digressões filosóficas, resta claro que a avaliação do bem (individual ou comum) será decidido casuisticamente, apesar da máxima (abstrata) que o interesse comum deverá prevalecer sobre o interesse individual. No entanto, uma das mais importantes formas de se afirmar 21 A atitude de colaboração personalista, aqui referida, não deve ser confundida com o personalismo (em seu sentido mais comum e depreciativo). O personalismo ora tratado representa o reconhecimento do valor intocável do indivíduo enquanto pessoa. 22 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 279. 199
a função social é a proteção da pessoa contra danos que venham a lhe ser causados. Proteger o indivíduo é, sobretudo, permitir que cada um se desenvolva em sociedade, segundo suas perspectivas e potencialidades. Desenvolvendo-se em sociedade, existindo e coexistindo com os demais, homem torna-se apto a tornar-se cidadão e ter a legitimidade na escolha de seus representantes, estes, por sua vez, serão responsáveis pela elaboração das leis que tenham como finalidade a vontade geral, o fim social, a solidariedade, o bem comum, a justiça e a paz. Diante do cenário acima exposto, foi escolhido o tema da função social do dano existencial como elemento pertencente à responsabilidade civil. Os anseios da sociedade pela reparação, ressarcimento ou a indenização pelo dano causado à pessoa, deve garantir um espaço na teoria dos danos, a fim de justificar que danos até então inexistentes, passaram a requerer uma maior atenção dos elaboradores e aplicadores das leis, pois a busca pela maior garantia de uma reparação integral do dano, traduzido neste texto, por meio do dano existencial, traduz a vontade geral da sociedade que anseia pela máxima do nemimem laedere.
2. DA PATRIMONIALIZAÇÃO AO RECONHECIMENTO DA PESSOA COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO: A METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL No período de codificação liberal a propriedade era tida como um valor necessário à realização da pessoa. As Constituições liberais no Brasil apenas estipularam o conceito do Estado mínimo e outra coisa não fizeram a não ser estabelecer regras para as liberdades privadas, sem tratar das mesmas. As relações civis tinham na propriedade um valor individual e nada disciplinavam sobre as relações interpessoais. As regras ditadas pelos particulares imprimiam aos contratos celebrados o status de verdadeira lei entre as partes, devendo ser cumpridas, sob qualquer hipótese. Neste cenário, os primeiros Códigos Civis foram influenciados pela codificação napoleônica e eram reconhecidos pelo seu forte aspecto patrimonial, representado nos contratos e na propriedade como modo de circulação de riquezas. O Código Civil, que antes era visto como a “constituição do homem comum”, (em especial após o processo de codificação liberal), foi considerado o ramo do direito que mais se distanciava do direito constitucional, em clara oposição à constituição política.23 Durante mais de dois mil anos, mesmo após mutações sociais, políticas e econômicas, a todos parecia que as relações jurídicas interpessoais e co-existenciais continuariam a permanecer intactas às alterações que ocorriam ao seu redor. A realidade social, distanciada dos fundamentos ideológicos do Estado Liberal e do individualismo jurídico que inspiraram o Código Civil e as Constituições de 1824 e 1891, deu lugar ao Estado Social. Depois da Segunda Guerra Mundial, diante da nova democracia ocidental, foram firmados compromissos políticos, em relação aos princípios fundamentais. Os valores de justiça social e de solidariedade, inerentes à ideologia do social, dominaram a realidade constitucional do século XX. O Estado Social, presente a partir da Constituição de 1934 e das demais que se seguiram democráticas e autoritárias, adotou como características essenciais a incorporação da organização política, dos direitos individuais, e da organização social e econômica, refletindo-se imediatamente nas relações privadas.24 23 LÔBO, Paulo. Constitucionalização do Direito Civil. Revista Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal: nº 141, jan/março, 1999, p. 100. 24 LÔBO, Paulo. Constitucionalização do Direito Civil. Revista Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal: nº 200
O Estado Social passou a intervir no exato contexto em que a desigualdade fosse estabelecida pelo próprio Estado — no exercício de seu poder de império e de acordo com normas por ele predeterminadas — em relação ao particular que deve permanecer a ele submisso. Foi chamado a intervir nas relações que continuavam a ser estritamente civis. Com reflexos inegáveis das novas dimensões materiais inclusos na Constituição, o Estado Providência dirige-se à regulação da ordem econômica e social, à limitação ao poder político e à projeção, para além dos indivíduos, da tutela dos direitos individuais e sociais. Dentro destes últimos direitos está o princípio da função social, cujo objetivo é alcançar o bem comum. O Estado passa a ser visto como ente necessário à garantia da prevalência dos interesses coletivos, devendo evitar abusos e garantir o espaço público de afirmação da dignidade da pessoa humana. Para isso, a solidez do poder estaria, substancialmente no econômico e, relativamente, no político.25 O cenário constitucional passou a ser dominado pelo desenvolvimento da pessoa humana e de suas formas associativas (formando os sujeitos coletivos), que tomados por ideologias sociais refletiam os valores de justiça social ou distributiva. Destacando-se a defesa da liberdade, da igualdade material e a busca pelo reconhecimento de novos direitos, ainda não completamente adequados à codificação civil existente à época. O reconhecimento de que a Constituição Federal é o vértice de harmonização, de elaboração e aplicação de qualquer legislação causou uma importante mudança sob a perspectiva hermenêutica, atitude que resultou na sobriedade epistemológica em estabelecer o dever de interpretar o Código Civil à luz da Constituição. No plano infraconstitucional, os sujeitos de direitos passaram a ser considerados iguais (formalmente), imperando, na prática, as desigualdades reais. A patrimonialização das relações civis passou a se tornar incompatível com os valores renovados pelo Estado Social e Democrático de Direito, que adotou a pessoa como fonte de todas as normas jurídicas. O patrimônio deixa de ser absoluto, é reconhecido o seu papel derivado e prescindível. Este passa a servir à pessoa, em obediência ao princípio da função social. A emancipação da pessoa humana no direito civil ressalta que o indivíduo não é apenas titular de bens e de patrimônio. A pessoa é o pressuposto indispensável da ordem jurídica e é a fonte da elaboração, da aplicação e da adequação das normas. As normas são criadas para servir de meio ao desenvolvimento da pessoa. A sociedade é o lugar destinado à evolução do indivíduo, é nela que a pessoa buscará extrair todas as suas próprias potencialidades. A sociedade contemporânea deve se voltar à evolução do humanismo e à realização dos valores existenciais da pessoa. Ao adotar como prioridade os valores humanos, o texto constitucional assegurou não só o destaque à pessoa, mas fez ainda com que a perspectiva jurídica passasse à “repersonalização”. 26 A igreja, o Estado e o Exército que estiveram sob a posição de domínio em relação às escolhas individuais, perderam seu espaço de regência para ao Direito. Este tem o poder de garantir que cada pessoa tome suas próprias decisões, desde que assumam a responsabilidade de tê-las tomado, ante e pelos demais. 141, jan/março, 1999, p. 102. 25 Op. Cit. p. 101 26 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Tradição patrimonialista do Direito Civil e as tendências da repersonalização in Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 59. 201
O Direito assume o papel de proteger e possibilitar que o homem faça livremente suas escolhas, de maneira individual ou mediante sua interação com o mundo em que vive, através da elaboração de seu projeto de vida. Segundo Bruno Miragem: Trata-se da repersonalização do direito civil, que, como consequência direta, observa a atenção e o reconhecimento de novos interesses da pessoa, e, mediante eventual violação destes, a identificação de novos danos. Em um primeiro momento, essa situação se apresenta pela afirmação apenas dos danos exclusivamente morais, ou seja, aqueles que produzem lesões ao estado anímico, de saúde ou psíquico da pessoa, como indenizáveis. Em nosso direito, eventual resistência quanto à indenização desses danos dissipou-se completamente a partir da vigência da Constituição de 1988, que expressamente prevê (art. 5o , V). Ocorre que a partir daí, o traço de maior proteção da pessoa passou a indicar, igualmente, o reconhecimento de interesses específicos, dentro da abrangente classificação de danos patrimoniais e não patrimoniais /extrapatrimoniais, de modo a tutelar de maneira mais efetiva os interesses na hipótese de dano. Utiliza-se hoje, em diferentes sistemas jurídicos, de diversas classificações, como, por exemplo, dano existencial, dano à saúde, dano genético. 27
A partir do conceito, do significado e do alcance do que é pessoa, o legislador passou a produzir as leis, que devem ter no sujeito, o objeto da mais ampla tutela jurídica. No final do século XX a constitucionalização do direito civil brasileiro tornou-se um fenômeno também doutrinário. Segundo Gustavo Tepedino: O percurso evolutivo da doutrina do direito brasileiro encontra-se intrinsicamente relacionado ao advento da Assembleia Constituinte, instalada em 1987, e ao clima do engajamento político que marcou o período de redemocratização do Brasil. Tal circunstância histórica propiciou intensa reflexão no âmbito do direito privado, influenciando de maneira decisiva sua produção acadêmica. Os constituintes trouxeram à baila questões que se encontravam na ordem do dia na sociedade brasileira dos anos 80, demonstrando profunda preocupação coma democracia em construção. Revisitou-se, pouco a pouco, a partir de então, a metodologia do direito privado, mediante reconstrução de seus conceitos fundamentais, e procurou-se fazer do compromisso para com a pessoa humana e a justiça social, a fonte de inspiração para produção intelectual, preocupação que se refletiva inevitavelmente na jurisprudência. 28
Os juristas já se viam preocupados com as interferências trazidas pelas mudanças sociais e a adequação destas aos valores consagrados na Constituição de 1988. Esta buscou regular e controlar os poderes privados, tendo como seu objetivo a persecução da justiça material. O Estado passou a destinar a elaboração de suas leis a serviço da proteção e desenvolvimento da pessoa humana (o indivíduo em si considerado) e do bem comum (sob o ponto de vista da solidariedade). No dizer de Maria Cristina De Cicco: (...) Vale dizer, que estão no centro do sistema e representam o eixo em torno do qual gira todo ordenamento, com a consequente subordinação das relações patrimoniais aos valores existenciais.29
27 MIRAGEM, Bruno. Direito Civil. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 30. 28 TEPEDINO, Gustavo. O Direito Civil-Constitucional e suas perspectivas atuais in O direito civil contemporâneo. Novo problema à Luz da Legalidade Constitucional. Anais do Congresso Internacional de Direito Civil – Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Atlas, 2008, pp. 356-357. 29 CICCO, Maria Cristina De. A pessoa e o Mercado in O direito civil contemporâneo. Novo problema à Luz da Legalidade Constitucional. Anais do Congresso Internacional de Direito Civil – Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2008, p. 106. 202
A lógica da justiça retributiva foi substituída pelo distributivismo e a responsabilidade civil foi inspirada nos princípios da dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e na isonomia substancial. Além de ter representado uma conquista determinantemente transformadora de toda norma jurídica privada, a consagração da dignidade da pessoa humana, em último grau, consolidou também o predomínio das situações jurídicas existenciais, sobre as relações jurídicas patrimoniais. Em se tratando dos fundamentos do direito civil, estes foram elevados ao status constitucional, baseados na promoção da justiça social e na solidariedade. Já os fundamentos jurídicos das relações privadas foram representados na personalidade, na família, no contrato, na propriedade e no dano. O direito civil-constitucional foi consagrado através da hermenêutica extensiva dos princípios e dos direitos fundamentais da Constituição ao Código Civil, migração que resultou na maior efetividade dos direitos já assegurados civilmente.30 O civilista, ao verificar e observar as categorias fundamentais da Constituição, passou a tê-la como referência. O direito civil passou a aplicar concretamente os valores, os princípios e as normas constitucionais às relações privadas e ao projeto de vida em comum, deixando de levar em consideração os locais reservados às pessoas, em razão de seu patrimônio. Com relação ao Direito Civil- Constitucional, afirma Maria Celina Bodin: Uma das características fundantes do direito civil- constitucional é a aplicação direta dos princípios constitucionais às relações privadas. Isto significa dar grande peso aos princípios no processo de interpretação –aplicação do direito. Sua importância decorre, evidentemente, do reconhecimento do caráter normativo dos princípios ao lado das regras, na já consagrada distinção de Dworkin. No contexto atual, dito pós-positivista, os princípios são o pedestal normativo do sistema. Eles concretizam os valores reputados, ou melhor, democraticamente estabelecidos como os mais essenciais àquela comunidade.31
A interpretação do Código e das leis civis se sujeita aos valores, aos princípios e às normas constitucionais, devendo ter como objetivo o alcance ao projeto de vida de cada uma das pessoas que compõem a sociedade, impostos constitucionalmente. Nas palavras de Perlingieri: Os principais pressupostos teóricos da doutrina do direito civil na legalidade constitucional- concebida como consequência inevitável da incidência do constitucionalismo contemporâneo sobre o fenômeno da produção legislativa e, particularmente, das codificações- referem-se: (a) à natureza normativa das constituições; (b) à complexidade e ao caráter unitário do ordenamento jurídico e ao pluralismo das fontes do direito; (c) a uma renovada interpretação jurídica com fins aplicativos.32
30 FACHIN, Luiz Edson. A Construção do Direito Privado Contemporâneo na experiência Crítico-Doutrinária brasileira a partir do Catálogo Mínimo para o Direito Civil- Constitucional no Brasil. Gustavo Tepedino (org). Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2008, p. 17. 31MORAES, Maria Celina Bodin de. Perspectiva a partir do Direito Civil-Constitucional in O direito civil contemporâneo. Novo problema à Luz da Legalidade Constitucional. Anais do Congresso Internacional de Direito Civil – Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Atlas, 2008, pp. 38-39. 32 PERLINGIERI, Pietro. A doutrina do Direito Civil na Legalidade Constitucional in O direito civil contemporâneo. Novo problema à Luz da Legalidade Constitucional. Tradução de Carolina Tomasi e Jõao Bosco Medeiros. Anais do Congresso Internacional de Direito Civil – Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Atlas, 2008, pp. 38-39. 203
A aplicação dos princípios constitucionais e a metodologia utilizada na sua ponderação, sob a ótica dos estudos da teoria geral do direito, determinaram a mudança da antiga concepção cristalizada da Constituição, como carta política endereçada apenas, ao legislador.33 A aplicação da regra específica ao fato apresentado cede lugar e se complementa pelo procedimento de avaliação do intérprete, feita caso a caso, subordinando-a aos princípios jurídicos nele envolvidos. A proteção dos valores existenciais passa a ser o norte da nova ordem pública instaurada pela Constituição. Todas as situações jurídicas, portanto, passaram a ser comprometidas com a realização do programa constitucional.34 As normas devem ser produzidas e direcionadas ao indivíduo, e ao seu pleno desenvolvimento em sociedade. Indivíduo é visto não só em sua individualidade, mas como um alguém que interage com os demais seres humanos e com o próprio Estado. O desenvolvimento da pessoa no mundo em que vive passa a ser o eixo e o centro gravitacional das normas e dos princípios constitucionais. Não há redução quantitativa dos espaços da autonomia privada, mas sim uma forte intervenção do poder público, vinculado à opção valorativa constitucional. Ao legislador, à magistratura e à doutrina competem à construção de bases objetivas para a realização de um direito civil convergente à tabua de valores axiológicos, previstos constitucionalmente, tendo como base técnicas os critérios interpretativos e uma dogmática renovada, capazes de atender aos desafios suscitados pelo sistema de fontes. É no momento da interpretação da norma aplicável ao caso concreto que o juiz, baseado na equidade, deverá dar a concretização aos princípios e aos direitos fundamentais, previstos constitucionalmente.35 A partir de uma aplicação concreta, aberta e plural das normas é que se respeitaria, sobretudo, a diversidade, desprovendo-a das chamadas verdades insertas em dogmas.36 O princípio da dignidade da pessoa humana como cláusula geral de tutela da pessoa, foi direcionado à prevenção e à reparação dos danos causados às pessoas, e teve sua tutela ampliada às situações jurídicas existenciais. A indenização resultante do dano nem sempre resultaria na sua monetarização, porque há danos de natureza essencialmente existencial.37 O Direito deve tutelar a pessoa no que ela tem de mais valioso, pelo o que ela significa e pelo que ela é. A pessoa não é apenas um Ser que vive para a sociedade, que gera riquezas, que produz trabalho e que é fonte de utilidades. Como sanção civil a ser aplicada ao autor do dano há a aplicação da indenização ou da reparação em dinheiro, podendo ocorrer a retratação do agente, o direito de resposta, multa e a busca e apreensão, auferível a partir das consequências do dano sofrido ou de tudo que razoavelmente deixou de se obter proveito. A realidade reclamava por uma nova modalidade de dano, conhecida pela doutrina internacional como dano existencial, dano ao projeto de vida ou lost enjoyment of life. 33 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa uma Leitura Civil- Constitucional dos Danos Morais. 4ª tiragem. São Paulo: Renovar, 2009, p. 233. 34 TEPEDINO, Gustavo. O Direito Civil-Constitucional e suas perspectivas atuais in O direito civil contemporâneo. Novo problema à Luz da Legalidade Constitucional. Anais do Congresso Internacional de Direito Civil – Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Atlas, 2008, p. 5. 35 BILBAOS UBILLOS, Juan María. Direito Civil Contemporâneo. Gustavo Tepedino (org). São Paulo: Atlas, 2008, p. 468. 36 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa uma Leitura Civil- Constitucional dos Danos Morais. 4ª tiragem. São Paulo: Renovar, 2009, p. 21. 37 Op. Cit. pp. 19-21 204
3. O DANO EXISTENCIAL COMO UMA NOVA MODALIDADE DE DANO NÃO PATRIMONIAL: AMPLIANDO A FUNÇÃO SOCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL ATRAVÉS DA BUSCA POR UMA REPARAÇÃO INTEGRAL DO DANO À PESSOA Diante dos principais detentores de capital, devem ser asseguradas pelo Estado condições ambientais, físicas, políticas e econômicas para que a pessoa possa influenciar e ser influenciada pelas reformas necessárias ao seu amplo desenvolvimento e realização. Em certos casos, o dano à pessoa pode gerar consequências apreciadas economicamente e ressarcidas monetariamente, e pode não ter efeitos patrimoniais negativos, mas somente morais. Os danos não suscetíveis de valoração econômica repercutem diretamente sobre a pessoa em seus direitos invioláveis, essenciais e inatos, que constituem sua personalidade. Aos poucos as categorias dos danos não se destacavam mais pela sua qualidade, mas pela proporção e dimensão do evento danoso e de como este se reflete no ser, nas coisas necessitando de um maior assistencialismo e nas pessoas que convivem com a vítima da lesão.38 A proteção aos bens não patrimoniais é uma questão que acompanha o processo civilizatório e, quanto mais desenvolvido for o processo civilizatório, maior é a consciência social. Quanto maior for a consciência social, maior será a exigência quanto à ampliação de tutela dos bens juridicamente protegidos.39 Um dano não pode deixar de ser reconhecido ou de ser aplicado por não haver previsão legal explicita, de forma que, qualquer lesão causada à pessoa deve ser ressarcida, ainda que para isso seja necessária a criação de uma nova categoria de proteção de danos à pessoa. Para Silvio Romero Beltrão: O problema dos direitos da personalidade atípicos pode ser resolvido satisfatoriamente pela adoção do numerus apertus de direitos especiais da personalidade, tendo como ponto de partida a cláusula geral. Ou seja, a partir da cláusula geral é possível delimitar novos direitos da personalidade, fundamentando o novo tipo nas manifestações da dignidade da pessoa humana. Contudo, não se quer atribuir à cláusula geral o sentido de direito pertencente à natureza humana, como instrumento de reação ao poder estatal, tal como advertia Adriano de Cupis, onde o direito inato não tem como consequência o controle dos poderes do Estado; tal atribuição é da declaração dos direitos do homem e do cidadão. O fundamento dos direitos especiais da personalidade está na cláusula geral, como emanação do princípio da tutela da dignidade da pessoa humana, com a imposição de que todas as manifestações desta sejam juridicamente tuteladas. Assim, o reconhecimento do regime aberto dos direitos da personalidade fundamenta-se no princípio da dignidade da pessoa humana, onde todos devem respeitar esse princípio, objetivando sua caracterização como direito absoluto.40
A gravidade, o momento em que o dano foi causado, o cerceamento, o impedimento ou modificação do projeto de vida e dos relacionamentos sociais da vítima, devem ser julgados mediante a apresentação de uma prova concreta, que ateste a permanência e a irreversibilidade do dano existencial, de modo a torná-lo plenamente justificável de ser aplicado pelo ordenamento jurídico brasileiro, através da doutrina, e da jurisprudência. Ao analisar o dano à pessoa, comprova-se que as modalidades de danos existentes não são mais suficientes à reparação integral da vítima. O novo fenômeno do dano à existência, o dano existencial 38 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto Editora PUC Rio, 2006, p. 166. 39 CHRISTANDL, Gregor. Il diritto privato oggi. La risarcibilità del danno esistenziale. Milano: Giuffrè Editore, 2007, p. 69. 40 BELTRÃO, Sílvio Romero. Direitos da personalidade. De acordo com o novo Código Civil. Atlas: São Paulo, 2005, p. 55. 205
tomou cada vez mais corpo, pois, a pessoa visa a concretização de um projeto de vida de caráter global, que não se exaure no desenvolvimento do aspecto exclusivamente econômico. O alcance da proteção da pessoa na Constituição e a proteção dos valores de caráter pessoal são postos como objetivos prioritários à elaboração das normas, por meio dos quais se tem em vista a garantia do desenvolvimento, da personalidade e o pleno desenvolvimento da pessoa humana. Os limites da tutela de certas situações, além do prejuízo à integridade psicofísica, passam a ser questionados. Pois, começam a surgir novos danos à pessoa, a singularidade destes novos danos emergem como decorrência do complexo de ligações e interligações entre as pessoas pertencentes a uma sociedade, em um determinado tempo e em um dano momento histórico. Ações de indenizações, cujas queixas eram até então desconhecidas, terminaram chegando aos tribunais. O dano à pessoa não se restringe ao dano moral e não é sinônimo de dano não patrimonial. O interesse pessoal protegido e as consequências que advierem do prejuízo causado ao bem tutelado fazem parte da liquidação do dano, e devem ser levados em consideração.41 A lesão permanente da integridade psicofísica, sob o plano da existência da pessoa, induz uma piora na qualidade de vida, que vai além da sua permanência no tempo, representa muito mais que um estado de angústia, esta piora na qualidade de vida da vítima representa um dano às relações sociais, sendo também pública a natureza do interesse protegido. O danno esistenziale passou a integrar a tipologia da responsabilidade civil italiana, a par e além do dano moral, em razão de sua extensão, de sua permanência e da natureza dos direitos violados. Um dano cujo reconhecimento é indispensável à proteção e ao respeito ao ser humano, em sua tranquilidade existencial, e em suma, em sua dignidade. A Itália foi o primeiro país a reconhecer judicialmente este tipo de dano, seguido depois pela doutrina italiana e hoje defendido por alguns raros autores brasileiros, porém sem a profundidade com que aqui será tratado. O dano existencial é uma nova categoria de dano não patrimonial, ao lado do dano moral e com este não se confunde, pois, enquanto o dano moral é inerente à condição humana; já o dano existencial está representado na lesão dos “afazeres domésticos”, das “atividades realizadoras da pessoa”, do “perturbamento da vida cotidiana”, de um “diverso relacionamento com o tempo e espaço”, da “quantidade da vida” ou perda de “ocasiões felizes”42. Enquanto o dano moral é um “sentir”; o dano existencial é mais que um “fazer”, aliás é um “não poder mais fazer”, um “dever agir de outro modo”. O dano moral está ligado à natureza “interior” da pessoa, à esfera emotiva; destina-se à consideração do que se sofreu, das angústias. O dano existencial, por sua vez, relaciona-se com o “externo”, o tempo e espaço da vítima; traz uma reviravolta forçada nos compromissos anteriormente firmados ou que ainda estavam por vir a ser estabelecidos. Do ‘fazer não remunerado’ da pessoa e do seu existencialismo surge a necessidade pela busca de uma terceira modalidade de dano, para além do dano moral, porque a pessoa não vale pelo que ela produz e sim pelo que é, em sua existência. É através da existência que a pessoa se projeta e inicia a formação dos vínculos sociais. 41 MORAES, Maria Celina. Perspectiva a partir do Direito Civil-Constitucional in O direito civil contemporâneo. Novo problema à Luz da Legalidade Constitucional. Anais do Congresso Internacional de Direito Civil – Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo, Atlas, 2008, p. 74. 42 Expressões utilizadas indiscriminadamente pela doutrina italiana, reunidas com a finalidade de se fornecer uma visão geral das nomenclaturas aplicáveis quando da aplicação do dano existencial. 206
Com o transcurso do tempo fica mais clara a necessidade de se ampliar a prevenção e a repressão em relação aos danos causados à pessoa, em defesa da dignidade humana e da persecução do bem comum. Torna-se perceptível que a reparação integral do dano causado à pessoa, que dá sentido a todo sistema ressarcitório precisa ser revisto e atualizado a fim de se adequar a regra, segundo a qual, os interesses coletivos, representados na prevenção e repressão aos danos estejam acima do interesse individual de exercer, por vezes, de forma ilimitada, o seu livre arbítrio. Nos dias atuais verifica-se que o dano moral é incapaz de contemplar e reparar todas as lesões causadas às pessoas. Assim, diante da necessidade da busca por um maior atendimento à realização da função social, no que tange ao instituto da responsabilidade civil, faz-se imprescindível a elaboração de dispositivos de lei e a aplicação pelos juízes e juristas do dano existencial, como uma nova modalidade de dano capaz de ampliar as possibilidades de atender aos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Não há razão lógica para eventual restrição quanto a possibilidade de indenização ao dano não patrimonial. Pelo contrário, como afirma Caio Mário da Silva Pereira: Na atualidade o dano adquiriu papel central na responsabilidade civil. A consagração constitucional dos princípios da dignidade da pessoa e da solidariedade social associada ao acelerado desenvolvimento tecnológico, deslocou a ênfase da conduta do agente para o dano ressarcível, assistindo-se ao surgimento de formidável tipologia de novos danos, na esteira do incremento de riscos e do potencial danoso trazido pelas novas inovações. Não parece exagerada, neste cenário à era dos danos.43
O dano existencial, de natureza hedonista, está consubstanciado na lesão ao prazer de viver do indivíduo, que se realiza e se desenvolve na sociedade em que está inserido. O dano existencial é provocado em um determinado momento da vida da vítima, mas se irradiará por toda ela - a partir do evento danoso em diante - quer na sua relação existencial, quer nas suas relações com seus familiares, possivelmente com o seu cônjuge ou seu companheiro(a), em relação ao seu (s) empregador (es) e nas suas relações sociais externas através das quais a pessoa se relaciona com o que existe ao seu redor. Partindo-se de uma interpretação extensiva dos direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal foi possível verificar que o dano existencial pode ser inserido no ordenamento jurídico brasileiro, como uma nova modalidade de dano não patrimonial, pertencente à teoria dos direitos de danos. O dano existencial é representado por dois elementos constitutivos, o dano ao projeto de vida e o dano à vida em relações, abaixo elencados. a) Dano ao projeto de vida (chamado ainda de: prejudice d’agrément — perda da graça ou lost pleasure of life): no dano ao projeto de vida está inserida toda e qualquer lesão que venha a comprometer a liberdade de escolha, que possa vir concretamente destruir o que a pessoa lesada idealizou para sua realização enquanto ser humano. Toda e qualquer pessoa tem um projeto, voltado à sua autorrealização44. Precisamente por viver no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo “projeto” encerra em si toda uma dimensão temporal. O conceito de projeto de vida tem um valor essencialmente existencial. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, que cada um pode fazer as opções que lhe parecem acertadas ao seu alcance, em busca da realização de seus ideais. 43 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Atualizador: Gustavo Tepedino. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 53. 44 A autorrealização decorre de um lento e complexo processo do despertar, desenvolver e amadurecer psicológicos da pessoa, no que diz respeito às suas potencialidades íntimas e latentes no ser humano. Surge como consequência das experiências e realizações ético-morais, estéticas, religiosas, artísticas e culturais do indivíduo. Equivale a todo esforço direcionado para a realização do ser, do profundo empoderamento de si mesmo, enquanto pessoa. 207
A busca da realização pelo projeto de vida revela um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. A ruptura dessa busca, por fatores alheios, como a violência, a injustiça, a discriminação, que alterem e destruam arbitrariamente o projeto de vida de uma pessoa, reveste-se de particular gravidade, — e o Direito não pode se quedar inerte a isso. O projeto de vida dependerá do relacionamento entre as pessoas humanas, como um ser que se relaciona com os outros seres no mundo ou seres coexistenciais, da interação de uma pessoa com as outras, da forma que se inserem no mundo, de suas adaptações e de suas readaptações às atividades desenvolvidas em conjunto na sociedade em que vive. O projeto de vida é o direcionamento que uma pessoa dá a suas escolhas interiores, com a finalidade de assegurar sua concretude. As escolhas interiores serão desenvolvidas de acordo com o contexto espaço-temporal em que o ser se encontra inserido, nas metas traçadas, nos objetivos e nas ideias intrínsecas que serão responsáveis por dar sentido à sua própria existência. O dano ao projeto de vida é um dano especial, transcende ao que se conhece e se designa como integridade psicossomática da pessoa. É um dano radical e profundo que compromete as expectativas existenciais do indivíduo. O dano ao projeto de vida é visto como um dano em consequência, ele causa a perda do sentido que a pessoa empregou para seu viver e se relacionar com as demais pessoas e coisas. O dano que frustra esse destino (impede a sua plena realização), obriga a pessoa a resignar-se com o futuro que lhe fora imposto como consequência do dano em si. Dano à vida em relações: o indivíduo, como ser humano, pode, uma vez inserido em diversas relações interpessoais, nos mais diversos ambientes e contextos, vir a estabelecer sua vivência e seu desenvolvimento pela busca constante do êxito no seu projeto de sua vida, do gozo dos direitos inerentes à sua personalidade, de suas afinidades e de suas atividades. A pessoa objetiva seu crescimento através da continuidade no contato, por meio dos processos de diálogo e de dialética com os demais membros, que participam com ele da vida em sociedade.
O dano existencial, em medida mais ou menos relevante, causa uma alteração que vem se demonstrando cada dia, de forma mais substancial, nas relações familiares, sociais, culturais, afetivas, etc. O dano existencial corresponde, desta forma, todo acontecimento que venha a incidir de forma negativa, sobre o cotidiano, sobre as atividades normalmente desempenhadas pela pessoa humana, suscetível de vir a repercutir, de forma consistente e permanentemente, sobre a sua existência. Destaca-se que há casos em que o pagamento não é a melhor forma de reparar, ressarcir ou indenizar, pois a sentença pode indicar a retratação pública, a fixação de cotas periódicas a serem pagas à pessoa lesada (podendo ser vitalícia), o fornecimento de um tratamento adequado à lesão causada, o fornecimento de assistência médica e acompanhamento do quadro de saúde, o reenquadramento em outra função, o fornecimento de emprego, etc.
4. A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO E A APLICAÇÃO DO DANO EXISTENCIAL EM CONSONÂNCIA COM AS PREVISÕES CONTIDAS EM SEUS ARTIGOS Apesar do Código Civil brasileiro não dar tratamento explícito ao dano existencial, da interpretação sistemática da legislação jurídica pátria, foram possíveis ser encontradas fundamentações legais à sua aplicação. Portanto, a seguir, citem-se como premissas conclusivas para a aplicação do dano existencial os seguintes artigos do Código Civil Brasileiro, seguindo-se das justificativas apresentadas: 208
O artigo 949 trata da lesão ou ofensa à saúde, cuja indenização do ofendido será calculada de acordo com as despesas do tratamento e dos lucros cessantes, até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.
Ao se referir às despesas com o tratamento e aos lucros cessantes, o código tutelou em parte uma indenização que pode ser liquidada através da demonstração do que foi gasto com o tratamento e do valor relativo a tudo que a vítima deixou de lucrar devido às lesões. Sob este ponto de vista é presente o aspecto material do dano; mas, ao tutelar a possibilidade de “algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”, pode-se incluir a aplicação do dano existencial.Como exemplo, uma pessoa hemofílica que adquire o vírus HIV através de uma transfusão de sangue contaminado, por erro do banco de sangue, não terá apenas lucros cessantes, mas o agravamento de sua saúde e a aquisição de uma doença incurável que pode limitar a vítima em suas atividades mais comuns e ainda conduzi-la a uma vida de discriminação na sociedade em que vive. Ou, por exemplo, se em decorrência de uma vacina fornecida e aplicada por meio de uma campanha nacional de saúde, a pessoa contrair um estado de paralisia total do corpo, de maneira comprovadamente irreversível, não haverá apenas um dano moral ou dano estético, e sim um dano existencial, nos termos do mencionado artigo ao destacar a expressão “além de algum outro prejuízo que a vítima prove ter sofrido”. Ademais, o dano existencial para ser reconhecido como tal e para que seja indenizado, depende de prova da sua existência, do direito lesado e da extensão do prejuízo causado. b) O artigo 950, trata da indenização que tenha como consequência um dano que resulte na diminuição da capacidade laboral, nos casos em que o ofendido não possa mais exercer o seu ofício ou profissão, devendo a indenização incluir as despesas com tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, mais pensão correspondente à importância do trabalho para que ficasse inabilitado, ou da depreciação que ele sofreu. O Código se preocupou em proteger a vítima capaz de produzir atividade remunerada, recompondo o seu patrimônio em razão do que ela perdeu e do que deixou de ganhar. Porém, mais que isto, a indenização deve ocorrer até o fim da convalescença, se esta for permanente. A indenização, nos casos de dano existencial, deve, então, ser por toda a vida daquele que sofreu o dano. Abrindo abertura para a aplicação do dano existencial, pois se não houver a convalescença da vítima, a indenização será paga de modo continuado no tempo. Mas esta indenização será indefinida, possibilitando as pensões vitalícias, como forma implícita de denominação do dano existencial, assim, por exemplo, se alguém vem a perder a visão em razão de uma substância – que, devendo estar isolada do contato humano, encontrava-se em local inapropriado – altamente nociva à saúde a qual indevidamente (sem culpa sua) teve contato, não haverá convalescência para sua cegueira, não se trata de mera aplicação de dano estético ou de dano moral, mas de um dano existencial. No caso mencionado acima há exata aplicação do art. 950 do CC, pois a vítima não pode mais exercer o seu ofício e, portanto tem direito à pensão correspondente à importância do trabalho para o qual se inabilitou. Conclui-se que o Brasil já aplica o dano existencial, nos casos em que a condenação se dá por meio de pensão vitalícia. Apesar de não ser utilizada a terminologia “dano existencial” a indenização através da pensão vitalícia é um exemplo real do dano existencial a ser reconhecido e aplicado implicitamente no nosso ordenamento jurídico. c) O artigo 951, versa sobre a indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. 209
Ao estabelecer a necessidade de inabilitação da vítima para o trabalho, para fins de indenização, o Código Civil ressaltou novamente os lucros cessantes, ou seja, um dano à capacidade de gerar renda, mas também previu a condenação ao pagamento de uma indenização a ser aplicada ao profissional de saúde que inabilite a pessoa para o trabalho. No ano de 2016, um avião que transportava um time de futebol brasileiro e sua delegação caiu, matando quase a totalidade de seus passageiros. O laudo técnico da ANAC comprovou que o acidente aéreo se deu por negligência da companhia aérea, em razão da insuficiência de combustível, levando a aeronave a colidir ao solo antes de sua chegada no local do pouso. Uma das vítimas do acidente aéreo foi goleiro brasileiro do time da chapecoense, sobrevivente à queda do avião teve sua perna amputada, ele não poderá mais jogar, nas mesmas condições e da mesma maneira que fazia antes, profissionalmente, por toda a sua vida. Caso semelhante ou pior é o do paciente que, ao se operar de uma hérnia inguinal teve o seu testículo esquerdo atrofiado, primeiro veio a ficar impotente e depois em nova cirurgia teve o mesmo amputado, perdendo definitivamente a possibilidade de projetar-se como pai biológico e de uma vez por todas foi cerceado da prática de relações sexuais (direta) com sua esposa, afetando esta não só de maneira indireta, mas também direta, pois a mesma também não manterá mais relação sexual com o marido. d) O parágrafo único do artigo 953, dispõe: “Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, equitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso”. O dano existencial está implícito no parágrafo único do artigo 953, cite-se como exemplo os danos sofridos pelos antigos donos da Escola Base, acusados injustamente de terem cometido crime de pedofilia e de aliciar os alunos da escola primária do qual eram proprietários, foram expostos à mídia e à sociedade, por circunstâncias jamais existentes. Tiveram a escola fechada e apedrejada, suas casas invadidas e seus projetos de vida interrompidos, não possuem mais o mesmo relacionamento social de antes, porque até hoje há quem acredite nas informações negativas e irresponsáveis divulgadas. e) O artigo Art. 954 do Código Civil: que traz implicitamente a previsão do dano ao projeto de vida, representada na ofensa à liberdade pessoal, conforme será discorrido no tópico a seguir.
5. UM DOS MAIORES CASOS DE DANO EXISTENCIAL OCORRIDO NO BRASIL EM QUE NÃO HOUVE A APLICAÇÃO CORRETA DE SUA TERMINOLOGIA O Sr. Marcos Mariano teve sua liberdade individual tolhida por uma prisão indevida, irregular e ilícita. O preso (vítima) permaneceu por 19 anos preso, sem que sequer lhe fosse dado o direito ao devido processo legal; ou que existissem provas que o apontassem como acusado; ou muito menos que comprovassem ser ele penalmente responsável pelo crime de homicídio. O Sr. Marcos Mariano, sem que houvesse cometido qualquer delito foi preso irregularmente e ilicitamente, no lugar do real autor do ilícito. Durante o cumprimento da pena ele contraiu tuberculose e após seus olhos terem sido atingidos por estilhaços de bala de borracha, durante uma rebelião na penitenciária, ele ficou bilateralmente cego. Não foi apenas a integridade psicofísica da vítima que foi irreparavelmente lesada, mas de toda a sua família, porque ambos foram privados de suas convivências recíprocas. Como reparar o que não se pode mais restituir, como o tempo que já passou? A indenização do dano existencial é calculada sobre os prejuízos às atividades de realizações do lesado, que implique consequentes alterações de conteúdo apreciável monetariamente. Seja sob o ponto de vista pessoal ou relacional, portanto, com consequências externas na vida daquele que sofreu o dano existencial. 210
Para demonstrar o efetivo prejuízo sofrido, a vítima pode utilizar como prova das presunções dos “fatos notórios” ou das noções de “experiência comum”; ou mesmo das situações reais baseadas na realidade sintomática em que o lesado se encontra. Em todos os casos, deve haver a verossimilhança ou elevado grau de probabilidade daquilo que se alega ter sofrido. Para o arbitramento da indenização, por exemplo, dever-se-á ter em conta, fatores como a personalidade do sujeito lesado, o interesse violado, a atividade desenvolvida pela vítima, as repercussões do dano sobre a personalidade do sujeito lesado e as alterações provocadas pelo dano, no âmbito familiar social da vítima.
6. CONCLUSÃO Em tempos recentes, a doutrina e a jurisprudência comparadas, a codificação latino-americana e em particular a legislação italiana, passaram do conceito genérico do dano à pessoa, à reparação dos prejuízos causados aos direitos sociais. As relações internas (da pessoa consigo mesma) e as relações externas (da pessoa com o mundo em que vive e com as demais pessoas com quem se convive), deveriam ocorrer de modo pacífico e harmonioso. A coexistência deve ser garantida pelas normas existentes no tempo e no espaço em que as pessoas convivem em sociedade. As normas jurídicas devem servir à prevenção a eventuais danos causados à pessoa e à repressão das lesões provocadas indevidamente, a fim de que se promova a justiça, a paz e o bem comum. O fato do dano existencial atingir valores fundamentais da vida humana (integridade física, saúde, paz, alegria, reputação e a própria vida, entre outros), diversos dos direitos da personalidade, faz evidenciar sua autenticidade, o seu caráter inovador e o seu ineditismo. Os aspectos jurídicos do dano existencial estão correlacionados com o direito à vida de relações e com os conceitos do ser-no-mundo, ser-com-os-outros. O dano existencial se irradia, ele é externo, de um lado ele fere um interesse individual, mas de outro lado ele ocasiona uma alteração em todas as demais pessoas que estão em uma vida de relações com a vítima. A sociedade como um todo é prejudicada, pois as relações interpessoais são afetadas e modificadas, o objetivo de proteger a pessoa humana contra os danos deve voltar-se também para quem sofre indiretamente com as consequências do dano existencial. O reconhecimento do dano existencial cumpre, pois, uma relevante função social, pois, além de ampliar as modalidades de danos já existentes, é um dano não patrimonial diverso do dano moral, podendo-se cumular as duas espécies de dano, e protege a vítima de um dano causado em suas relações pessoais, sociais, profissionais, afetivas, etc. Possibilitando àquele que sofreu o dano em ricochete ser indenizado, na exata proporção da lesão que lhe fora causada. Repercutindo interesses individuais e coletivos em relação à sua aplicabilidade concreta, promovendo uma maior consciência quanto à obrigatoriedade das regras de responsabilização civil a que todos indivíduos estão submetidos. O dano existencial é representado pela lesão ao prazer da pessoa, ao levar em consideração que a motivação é uma consequência do prazer de viver e a razão primordial do existir das pessoas. Sem motivação, o indivíduo perde o sentido da sua existência e da busca de realizações e conquistas pessoais. O dano existencial pode provocar à vítima a perda da simples qualidade de apreciar as coisas e pessoas que estão ao seu redor. A existência fomenta a ação humana e esta é a razão de ser e de existir do Direito.
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A TRANSGRESSÃO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO NO DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA EM RAZÃO DA OBRIGATORIEDADE DO COMUM ACORDO José Pandolfi Neto1
RESUMO: O presente estudo tem como objeto o Poder Normativo da Justiça do Trabalho, enquanto processo jurisdicional de formação de norma. Objetiva enfrentar as diretrizes traçadas pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que desfigurou a sua natureza e impôs obstáculos para o acesso à justiça nas hipóteses dos dissídios coletivos de natureza econômica. Traça inicialmente um panorama das alternativas de solução dos conflitos e a estrutura dogmática desse modelo de procedimento para, em seguida, demonstrar a sua importância no contexto da Teoria Geral do Processo. A partir de uma nova pauta hermenêutica e se valendo de uma bibliografia atualizada e multidisciplinar, enfrenta o conteúdo da referida emenda e defende que o seu enunciado fere vários Princípios Constitucionais Processuais, especialmente o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição. Com base em tais argumentos, conclui fazendo a defesa do Poder Normativo e propõe o reconhecimento da inconstitucionalidade emenda constitucional n. 45/2004. Palavras-chave: poder normativo; inafastabilidade da jurisdição; princípios constitucionais processuais; Justiça do Trabalho; emenda constitucional.
1. INTRODUÇÃO A doutrina detalha a diferença entre os conflitos coletivos e os conflitos individuais de trabalho, sendo certo que de forma sintética, três devem ser os critérios para fixar essa distinção, quais sejam: partes, objeto e finalidade. As partes de um conflito coletivo, diferentemente do dissídio individual – que são empregado e empregador, a princípio identificáveis e individualizados, salvo raras exceções (ex. ações de cumprimento) – são grupos de trabalhadores ou empregadores, não individualizados. Grupos esses, via de regra, representados pelos sindicatos. Os grupos estariam caracterizados em ambos os pólos da relação conflitante ou em pelo menos um deles. Na primeira hipótese, ter-se-iam as convenções coletivas de trabalho, ao passo que, na segunda, estar-se-ia diante de um acordo coletivo de trabalho. Apresenta Pedro Paulo Teixeira Manus a exata definição do interesse coletivo e demonstra sua real significação para o processo coletivo laboral, diferenciando-o dos dissídios individuais. O interesse coletivo, no direito do trabalho é aquele de que é titular a categoria, ou uma parcela da categoria, como o grupo de empregados de algumas empresas, de uma empresa, ou grupo de empregados de um ou alguns setores de uma empresa. Esse interesse ultrapassa as pessoas que a integram porque é indeterminado,
1 Advogado, Mestre em Direito Processual- UNICAP/PE e Professor da Faculdade de Olinda- FOCCA. 215
sendo titular o grupo, cujos integrantes podem vir a ser determinados a cada momento e estão ligados entre si por pertencerem à mesma empresa, setor ou categoria profissional2.
O objeto do conflito coletivo seria a discussão de interesses abstratos das categorias profissionais e econômicas, e o objeto dos conflitos individuais representa interesses concretos dos indivíduos3. O último dos critérios, ou seja, a finalidade do conflito coletivo de trabalho se resume na criação, modificação ou na interpretação em tese de uma norma jurídica, ao passo que o fim específico do conflito individual consiste na composição através da aplicação ao caso concreto de norma jurídica preexistente4. Antes da Emenda Constitucional nº 45/2004, se observava que o postulado constitucional inferia uma amplitude do poder normativo da Justiça do Trabalho. O preceito constitucional autorizava à Justiça do Trabalho produzir normas. A única observância era no sentido de respeitar as disposições legais e convencionais mínimas previstas no ordenamento jurídico. Ou seja, os Tribunais Trabalhistas não sofriam qualquer limitação ou restrição no seu poder criador5. A referida emenda desfigurou essa prerrogativa ao limitar a atuação do poder judiciário trabalhista a decidir conflitos e não a produzir norma. No Brasil, utilizam-se duas modalidades de ações coletivas, os denominados Dissídios Coletivos de Natureza Jurídica (ou de direito) e os Dissídios Coletivos de Natureza Econômica (ou de interesse). O Tribunal Superior do Trabalho, órgão máximo da Justiça Trabalhista, inclusive já se posicionou sobre a classificação dos dissídios coletivos, corroborando inclusive com a classificação apontada pela doutrina de modo majoritário. O dissídio pode ser de natureza econômica (para instituição de normas e condições de trabalho e principalmente fixação de salários); ou de natureza jurídica (para interpretação de cláusulas de sentenças normativas para interpretação de cláusulas de sentenças normativas, acordos e convenções coletivas). Pode ser ainda originário (quando não existirem normas e condições em vigor decretadas em sentenças normativas); de revisão (para rever condições já existentes); e de greve (para decidir se ela é abusiva ou não) 6.
A doutrina também aponta o conceito e espécies do Dissídio Coletivo, denominando-os da mesma forma que o Tribunal Superior do Trabalho, de dissídios de natureza jurídica e dissídios de natureza econômica7. Dissídio coletivo é um processo judicial de solução dos conflitos coletivos econômicos e jurídicos que no Brasil ganhou a máxima expressão como um importante mecanismo de criação de normas e condições de trabalho por meio dos tribunais trabalhistas, que proferem sentenças denominadas normativas quando as partes que não se compuseram na negociação coletiva acionam a jurisdição8.
2 MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Negociação coletiva e contrato individual de trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 27. 3 GIGLIO, Wagner D.; CORRÊA, Claudia Giglio Veltri. Direito processual do trabalho. 16. ed. ver. amp. atual. e adaptada. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 407. 4 Ibidem, p. 407. 5 ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Dissídio coletivo. São Paulo: LTr, 1993. 6 Disponível em: <http//www.tst.gov.br/ASCS/glossário.html>. Acessado em 18/05/2010. 7 Segundo LEITE, “o dissídio coletivo é uma espécie de ação coletiva conferida a determinados entes coletivos, geralmente os sindicatos, para a defesa de interesses cujos titulares materiais não são pessoas individualmente consideradas, mas sim grupos ou categorias econômicas, profissionais ou diferenciadas, visando à criação, interpretação de normas que irão incidir no âmbito dessas mesmas categorias”. VER: LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2007. p. 1030. 8 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do Trabalho. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 769. 216
Esse também é o entendimento de Alice Monteiro de Barros: Classificam-se os dissídios coletivos em econômicos e jurídicos. Os dissídios coletivos de natureza econômica têm em mira a criação de novas condições de trabalho. Já os dissídios coletivos de natureza jurídica têm em vista a aplicação ou interpretação de norma preexistente 9.
Ives Gandra Martins Filho também corrobora com a classificação ora apontada, fazendo inclusive referência ao fato de que tanto a doutrina quanto a jurisprudência são unânimes, neste aspecto. Com efeito, a doutrina e a jurisprudência são unânimes em reconhecer a possibilidade do dissídio coletivo visando não à fixação de normas e condições de trabalho, mas à delimitação exata das já existentes, no sentido de interpretar as leis, acordos coletivos, convenções coletivas e sentenças normativas incidentes sobre as relações de trabalho de uma dada categoria. Trata-se do denominado dissídio coletivo de natureza jurídica, que se contrapõe ao dissídio coletivo de natureza econômica, em que se estabelecem normas de trabalho, majorando salários e conferindo vantagens econômicas para os trabalhadores 10.
Tais argumentos demonstram uma unanimidade tanto da doutrina quanto da jurisprudência a respeito do estudo do tema em questão.
2. O CARÁTER REVOLUCIONÁRIO DO DISSÍDIO COLETIVO E A TEORIA GERAL DO PROCESSO É por intermédio do poder jurisdicional que o Estado põe à disposição de toda a sociedade – ou pelo menos a rigor deveria colocar – a denominada prestação jurisdicional, com a finalidade precípua de solucionar lides e pretensões resistidas. Isso é necessário para que se faça valer os interesses gerais da sociedade como a segurança pública, a integridade física, o patrimônio e os interesses coletivos e individuais indisponíveis. Existe ainda uma outra atividade, que é a função criadora da atividade jurisdicional Estatal, como se evidenciará mais adiante. Diante das diferentes modalidades de ações, tanto em relação à classificação quanto à sua natureza jurídica, é de se destacar a ação coletiva de trabalho que, no Direito positivo pátrio, denomina-se Dissídio Coletivo, por não se poder enquadrá-la no rol das ações pertencentes ao processo civil, independentemente de estarem vinculadas à jurisdição voluntária ou mesmo as que compõem a estrutura normativa da jurisdição contenciosa. Nessas ações não se busca tão somente um pronunciamento declaratório, muito menos tão só um constitutivo, ao menos no modelo da teoria geral aplicável no processo civil. Da mesma forma, não se persegue uma sentença que se evidencie como título judicial executório. Não se coaduna em nenhum desses procedimentos ordinários, especiais ou cautelares. Não possuindo também a natureza das ações penais (sejam públicas ou privadas). Seu caráter é revolucionário pelo fato de que o exercício da função jurisdicional estatal é realizado no sentido de criar regras a serem obedecidas no âmbito de categorias de trabalhadores e empregadores. Mas, além dessa função de caráter legislativo, é importante ressaltar que também atuará na interpretação de normas já existentes. Dito caráter revolucionário será devidamente explicado nos subitens seguintes, onde será demonstrado de forma específica e aprofundado porque seria assim considerado o Dissídio Coletivo. 9 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006. p. 1224. 10 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Processo coletivo do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2009. p. 70. 217
3. OS DISSÍDIOS COLETIVOS ENQUANTO FONTE JURISDICIONAL DE FORMAÇÃO DA NORMA Ao descrever e prescrever modos de conduta, poderes, prerrogativas, competências, estará a norma autorizando, impondo, proibindo. Assim, sua eficácia e bilateralidade pressupõem a coação a ser descrita pelo ordenamento jurídico, para aqueles que vierem a desobedecer as condutas normadas11. Em se tratando de ações coletivas, a sociedade é quem se encarrega da função jurisdicional Estatal, pedindo ao Poder Judiciário que produza direito novo, com a finalidade de reger as relações individuais trabalhistas. Isso se deve ao fato de que o Estado verificou que não teria condições de acompanhar a dinâmica e a complexidade das relações trabalhistas, sempre tendo que convocar o Poder Legislativo e esperar que esse venha a produzir normas que deveriam reger as relações de trabalho, bem como solucionar os conflitos, no momento em que eles surgissem. Por tal motivo transferiu para as partes envolvidas e interessadas (trabalhadores e patrões), no caso brasileiro, através dos acordos e convenções coletivas de trabalho, a responsabilidade de elaborarem regras gerais, abstratas e coercitivas. Por tal motivo, as normas coletivas e as sentenças normativas possuem, como toda norma, âmbito de validade (pessoal, material, espacial e temporal). Trata-se de instituto peculiar do processo do trabalho em que visa aos direitos e interesses de categorias, cujos titulares são grupos de pessoas que figurarão no processo representados geralmente pelos sindicatos das respectivas categorias, na busca de obterem um procedimento jurisdicional a respeito de interesses gerais e abstratos. Everaldo Gaspar Lopes de Andrade destaca que a ação coletiva constitui modalidade de procedimento destinada a uma determinada categoria (profissional ou econômica), ou a ambas, por intermédio de suas respectivas entidades sindicais, objetivando a interpretação ou produção de uma norma de caráter geral e abstrata, bem como a solução de um conflito coletivo de trabalho12. José Augusto Rodrigues Pinto entende se tratar de uma atribuição extravagante do Poder Judiciário, justamente pelo fato de que ele estaria atuando no sentido de criar regras a serem observadas no âmbito de uma categoria13. Esse processo típico criador de normas foi explicado com bastante lucidez por Calamandrei14: “la Magistratura del trabajo juzga “em La formulación de lãs nuevas condiciones de trabajo, según equidad, contemporizando los intereses de los dadores de trabajo con los de los trabajadores, y tutelando, em todos los casos, los intereses superiores de la producción”. Ainda sob o respaldo do entendimento de José Augusto Rodrigues Pinto, existem dois fundamentos que concorrem para sustentar a presença do poder normativo no ordenamento jurídico, o social e o político15: 11 KELSEN Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. p. 113. 12 ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Dissídio coletivo, Op. Cit., p. 24. 13 Essa atribuição extravagante do Poder Judiciário é denominada poder normativo porque confere ao órgão jurisdicional estatal um duplo alcance de atuação: solucionar litígio – o que lhe é próprio – e criar norma geral e abstrata de conduta – o que é reservado a outras esferas de poder do Estado, ocupadas pelo Legislativo e Executivo. VER: PINTO, José Augusto Rodrigues. Direito sindical e coletivo do trabalho, Op. Cit. p. 348. Grifos do autor. 14 CALAMANDREI, Piero. Instituciones de derecho procesal civil.Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1973. p. 207. 15 Conforme nos parece, dois fundamentos, em tese até incompatíveis entre si, terminam concorrendo para sustentar a presença do poder normativo em nosso ordenamento jurídico. O primeiro, social, é a longa manus da tutela estatal para a proteção do hipossuficiente econômico, buscando neutralizar a resistência patronal para negociar a normatização das condições gerais de trabalho, sob o influxo das reivindicações operárias. 218
O fundamento social é consistente na necessidade de se proteger o trabalhador, a parte economicamente mais fraca na relação de emprego. O Estado então se colocaria nessa posição, no sentido de evitar a pressão da classe patronal para pressionar a classe trabalhadora a aceitar suas imposições.
4. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO § 2º DO ART. 114 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA Não se pode olvidar que o ingresso da supra referida norma em nosso preceito constitucional restringiu a garantia fundamental de índole pétrea de acesso à Justiça (Poder Judiciário Trabalhista), materializado na exigência do comum acordo em sede de ajuizamento do Dissídio Coletivo, instrumento próprio à efetividade do Direito Coletivo do Trabalho, desprestigiando a justiça social tão almejada num Estado Democrático de Direito, como no Brasil. As relações jurídico-trabalhistas são, em decorrência de sua própria história e essência, ontologicamente desiguais, e não raras vezes injustas, tendo em vista que, via de regra, a classe economicamente forte se sobrepõe à classe trabalhadora, economicamente mais fraca. Em vista disso, nasceu a Justiça do Trabalho para tutelar o lado mais frágil das relações de trabalho, indubitavelmente, o trabalhador. Diante de uma possível frustração das tentativas de negociação coletiva ou da arbitragem, entre as classes conflitantes, onde, diante do conflito, não haverá espaço para o estabelecimento do comum acordo, irá se verificar uma inutilidade do instrumento até então a ser manejado pelas partes. Percebe-se que o que se pretende, não resta qualquer dúvida, é o completo esvaziamento instrumental do dissídio coletivo, que seria o meio necessário à defesa dos interesses coletivos, inspirado inclusive no ideal de justiça social, peculiar do Direito Coletivo do Trabalho. Ao se considerar a constante coação econômica subjacente às relações laborais, que permeiam o mundo fático nesse âmbito social, observa-se que o legislador constituinte não guardou a necessária “razoabilidade como congruência” devida, uma vez que tal postulado exige a harmonia das regras com as condições externas de sua aplicabilidade16. A situação de fato escolhida pelo legislador como inexistente diz respeito exatamente à exigência praticamente inalcançável do mútuo consentimento para instauração do dissídio coletivo de natureza econômica. Nesse aspecto, Humberto Ávila ressalta a importância do dever de congruência e de fundamentação na natureza das coisas17. A interpretação das normas exige o confronto com parâmetros externos a elas. Daí se falar em dever de congruência e de fundamentação na natureza das coisas (Natur de Sache). Os princípios constitucionais do Estado de Direito (art. 1º) e do Devido Processo Legal (art. 5º, LIV) impedem a utilização de razões arbitrárias
Seu exercício produz uma fonte imperativa estatal, que irá preencher o vazio normativo aberto pela falta da fonte imperativa profissional, não completada através das tratativas diretas dos grupos interessados na relação de emprego. O segundo fundamento, de índole totalitária pouco disfarçada, é a infiltração do poder político nas relações entre sindicatos, um dos meios de tornar dependente, pela oferta da tutela, a atividade da representação profissional, ao mesmo tempo em que facilita a oposição patronal ao avanço das reivindicações trabalhistas. Ver: PINTO, José Augusto Rodrigues. Direito sindical e coletivo do trabalho, Op. Cit., p. 349. 16 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2006. p. 142. 17 Ibidem, p. 142. 219
e a subversão dos procedimentos institucionais utilizados. Desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do Devido Processo Legal.
No caso específico, é justamente isso que sucede, ou seja, um completo afastamento da situação fática, da realidade. Como se conceber a existência de um “comum acordo” entre partes conflitantes, entre partes onde, via de regra, impera a desigualdade de armas, sobretudo no aspecto econômico. Tal situação seria absolutamente surreal. Verifica-se como já apontado, a intenção clara do Estado de negar o conflito de classes.
5. A TRANSGRESSÃO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO O tema ora em discussão é bastante amplo e sua evolução no tempo demonstra de forma efetiva que ainda não foi possível estabelecer de forma precisa qual a maneira mais acessível de se promover a Justiça, ou seja, de acesso à justiça. Teoricamente, o amplo acesso à Justiça deve ser concedido através de instrumentos fornecidos aos jurisdicionados que lhes proporcionem meio de postularem em Juízo sem maiores entraves burocráticos, como também se defenderem com todos os meios de defesa em direito admitidos, respeitados os preceitos legais atinentes à matéria. Entretanto o conceito do acesso à Justiça vem sofrendo constante modificação, pois fazer uma digressão e proceder a uma breve evolução histórica desde a época do Estado Liberal dos tempos da Revolução Industrial (que se pode considerar como surgimento das primeiras regras no âmbito trabalhista), onde o Estado era até então abstencionista, verificou-se a necessidade de intervir na relação entre trabalhadores e empregadores, no intuito de proteger àqueles, por serem economicamente mais fracos em tal relação18. Ocorre que os custos para o enfrentamento da Justiça eram muito altos, e, de fato, para a parte mais necessitada da população, ainda o é. E não se está aqui tratando apenas do custo financeiro, pois se deve levar em consideração ainda a morosidade de um processo judicial, o que acarreta na grande maioria das vezes em prejuízo irreparável para o jurisdicionado. Como outras despesas, por exemplo, honorários advocatícios. Se levar em consideração que a verba trabalhista é de natureza alimentar, em que o empregado necessita dela para sustento próprio e de seus familiares, não é possível conceber que o trabalhador fique sem acesso a tais direitos por período de tempo considerável, pois estaria impossibilitado de prover o sustento de sua família. A grande problemática aqui seria como alcançar, obter a solução para tal situação de maneira ágil, eficiente, rápida e eficaz. Ainda mais importante tal situação nos dissídios coletivos, onde se envolve interesses de toda uma categoria. A resposta para tal indagação, de fato, ainda não foi encontrada na prática em nosso ordenamento jurídico, na medida em que não se encontra essa solução efetiva através dos mecanismos que são colocados à disposição dos jurisdicionados. A Constituição da República de 1988 estabelece que nenhum cidadão será afastado do amplo acesso à Justiça, garante a todos os indivíduos esse acesso de modo formal, que entretanto ao se deparar com a prática encontra vários óbices a serem ultrapassados. Apesar de encontrar essa garantia constitucional na Carta Magna, existem outros preceitos previstos na própria norma ápice que impõe vedações ao acesso a essa ordem jurídica justa, como 18 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça.Porto Alegre: Fabris, 1988. 220
é o caso do art. 114, § 2º que será analisado logo adiante mais amiúde. À medida que o texto constitucional impõe às partes o comum acordo para o ingresso da medida judicial, estaria de tal maneira afrontando o tão propalado amplo acesso à Justiça, ante o óbice a ser transposto. Dessa maneira, não havendo a concordância da parte adversa, restaria prejudicado o cumprimento de um dos requisitos do acesso à Justiça. Em vista disso, encontra-se diante de um confronto entre os conceitos de acesso à justiça formal e acesso à justiça material. Já que teoricamente é permitido, respeitado, consagrado, entretanto na prática, ele não se configura. O entendimento doutrinário se configura exatamente nesse aspecto, onde se verifica, na grande maioria dos ordenamentos jurídicos pátrios, o respeito a esse tão propalado acesso à justiça formal que, na prática, em várias hipóteses, encontra óbices muitas das vezes intransponíveis19. Daí surge outra problemática que seria justamente a da efetividade do acesso à justiça, ou seja, a efetividade perfeita ou igualdade de armas, como propalado por Cappelletti, que seria, como defendido pelo próprio autor, uma verdadeira utopia20. Têm-se obstáculos a serem transpostos que se colocam muitas repetidas vezes como barreiras intransponíveis, onde raramente se alcança o objetivo que se busca. Tais obstáculos podem ser considerados como as custas processuais, os honorários advocatícios e o tempo da demanda. Fatores esses que devem ser ponderados tendo em vista que muitas das vezes não vale a pena ingressar com uma ação judicial, a depender de tais fatores. Não raras vezes o cidadão se depara com situações de monta econômica pequena que não justificaria o dispêndio da máquina judiciária, já que lhe acarretaria uma despesa maior que o resultado esperado do processo. Nessas situações, as custas processuais e os honorários advocatícios extrapolariam o valor a ser recebido pela parte autora, e assim não lhe seria vantajoso buscar o aparato judicial. Diante disso, resta demonstrado em várias situações que o tão propalado amplo acesso à justiça, em muitos casos, não passa de um respaldo formal do cidadão que, ao tentar transpor tal formalidade, se depara na prática com obstáculos que o faz desistir na grande maioria dos casos, de lutar para defender seus direitos. Poder-se-ia, diante de tais divagações, fazer referência à jurisdição constitucional, que é composta não apenas do que está prescrito na Carta Magna, mas também de textos, decisórios, argumentações e decisões. Este texto constitucional encontra-se muitas vezes numa posição genérica, que deveria ser interpretado por normais inferiores ou até mesmo pela doutrina ou jurisprudência, como no caso da problemática aqui enfrentada, em torno do art. 114, § 2º da CR/8821. Traça-se desta maneira um paralelo entre a questão do amplo acesso à justiça com a jurisdição constitucional. Poderíamos a princípio constatar que, em nosso ordenamento jurídico, o amplo acesso à Justiça está consagrado constitucionalmente, mesmo que encontre óbices a serem transpostos que estão configurados no próprio texto constitucional, surgindo como um verdadeiro contra-senso, numa contradição difícil de ser transposta. Mas cuja transposição deverá ser alcançada, inclusive mediante estudos doutrinários e decisões judiciais. 19 Ibidem. 20 Ibidem. 21 ADEODATO, João Maurício. A retórica Constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva, 2009. 221
É nessas situações que, na grande maioria das vezes, deparar-se-á com sérios problemas, tendo em vista que o julgador passa a legislar, o que torna, não raras as vezes, bastante frágil o sistema jurisdicional, uma vez que os jurisdicionados se deparam com situações absolutamente discrepantes, criadas pelos representantes do Poder Judiciário. No momento em que o Estado se separa, se afasta desse poder decisório, transferindo para terceiros tal responsabilidade, como no caso da arbitragem, mediação, dentre outras formas extrajudiciais de solução dos conflitos trabalhistas. O que causa maior preocupação na sociedade, à medida que se estaria retroagindo ao Estado Liberal da época da Revolução Industrial. No caso, a classe patronal, economicamente mais forte, sempre iria impor a solução do conflito, ante a fraqueza da classe trabalhadora, que tinha de se submeter ao império do patrão, ante o medo de perder o seu emprego, garantia do sustentáculo de sua família22. Analisando o aspecto processual da aplicação do art. 114, § 2º da Constituição da República de 1988, relativamente à obrigatoriedade do comum acordo para ajuizamento do Dissídio Coletivo, de logo surge a dúvida ou o problema: ingressando a parte interessada com uma ação dessa natureza perante o Tribunal Regional do Trabalho competente, ou mesmo perante o Tribunal Superior do Trabalho, sem a concordância expressa da parte adversa, estar-se-ia diante de um óbice processual a decretar de imediato a extinção da ação sem julgamento do mérito, ou haveria a possibilidade de perquirir a parte contrária sobre a aceitação ou não do processamento da referida demanda judicial? De logo se pode esclarecer que a resposta para tal indagação não é tão simples, nem ao menos consensual em nosso ordenamento jurídico, já que tanto a doutrina quanto a jurisprudência ainda não chegaram a um consenso em relação a tal problemática. Tanto a jurisprudência quanto a doutrina não têm um entendimento sedimentado quanto à aplicação do art. 114, § 2º da CR/88, como demonstrado. Entretanto, em homenagem ao princípio constitucional da inafastabilidade do poder jurisdicional estatal, os mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos não podem ser colocados como óbice ao enfrentamento judicial, ou seja, as partes não devem necessitar de quaisquer condições para que venham a se socorrer do exame estatal de seus litígios. Nos dias atuais, enfrenta-se exatamente a mesma situação, o mesmo problema. Tal modo de agir do Estado fragiliza a sociedade, e os cidadãos, diante de tal insegurança, tendem cada vez mais a se afastar do Poder Judiciário, que seria o órgão que, pelo menos a princípio, estaria na qualidade de guardião instransponível de seus direitos. Infelizmente, não é dessa maneira que as coisas vêm acontecendo atualmente. Muito pelo contrário. Normas expedidas nessa direção (art. 114, § 2º da CR/88) demonstram que a “Jurisdição Constitucional” afasta do Estado o seu Poder de solucionar as controvérsias existentes ao atribuir tal responsabilidade aos litigantes, que devem decidir como se daria a solução de seus conflitos. Isso fatalmente fará com que o posicionamento do mais forte sempre venha a prevalecer diante daquele que esteja numa posição hierarquicamente inferiorizada. E é justamente nesse aspecto, que se estaria regredindo aos tempos da Revolução Industrial. Caberia, portanto, ao Estado, criar mecanismos mais efetivos de solução dos conflitos judiciais, para chamar definitivamente para si a responsabilidade pela solução de tais conflitos. Na sua posição de inércia, de imparcialidade, teria condições, se utilizado exclusivamente para fins lícitos, morais e éticos, de se chegar a uma conclusão justa do conflito. 22 BARROSO, Fabio Tulio. Extrajudicialização dos conflitos de trabalho. Op. Cit., p. 56-57. 222
O amplo acesso à justiça deve ser respeitado de forma que não haja grande sacrifício das liberdades individuais (princípio político do processo). Entretanto, não é bem isso que se verifica em nosso ordenamento jurídico. Além dos entraves postos pela própria lei, ainda há problemas outros, como o alto custo de se ingressar com uma ação judicial, ao se considerar o valor das custas processuais, os honorários advocatícios e ainda a morosidade em relação à entrega da prestação jurisdicional23. Além de aspectos referentes ao respeito às liberdades individuais, como é o caso do princípio político do processo, deve ser ressaltado ainda o respeito a outros princípios constitucionais, como é o caso do princípio da unidade da constituição, da força normativa, da máxima efetividade, da conformidade funcional, do efeito integrador e da harmonização24, embora esses não sejam aprofundados, tendo em vista a análise específica se referir ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Daí se verifica que são vários os aspectos que envolvem o acesso à justiça de forma plena e efetiva, tendo em vista que isso não se daria simplesmente pelo fato de estar previsto em texto legal ou mesmo constitucional o amplo acesso à justiça. Portanto, apesar de estar alçado em nosso ordenamento como princípio constitucional, a inafastabilidade da jurisdição não se concretiza de forma prática, materialmente falando, a encontramos 23 “Ora, ser cidadão é mais do que ser titular de direitos políticos. A cidadania é um princípio fundamental do regime democrático de direito, regime jurídico adotado pelo Brasil, conforme consta da Constituição de 1988. Pressupõe que as ações do Estado têm por finalidade o bem-estar coletivo” GOMES NETO, José Mário Wanderley; HOLANDA, Maria Lucicleide Cavalcanti da Silva. Cidadania e acesso à justiça: o modelo de assistência jurídica oferecido pelo Estado de Pernambuco, a partir da Constituição de 1988. In: SEVERO NETO, Manoel (Org.). Direito, cidadania e processo, vol. 2. Recife: FASA, 2006. p. 81. 24 Princípio da Unidade da Constituição: segundo ele as normas constitucionais não devem ser interpretadas isoladamente, pois dessa forma poderiam estar elas descumprindo a Constituição. A Constituição deve ser vista como um todo, um sistema de normas, procurando compatibilizar suas diferentes normas. Para Luís Roberto Barroso “Na colisão de normas constitucionais, especialmente de princípios – mas também, eventualmente, entre princípios e regras, e entre regras e regras – emprega-se a técnica da ponderação. Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre as normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham. [...] Princípio da força normativa: todas as normas constitucionais possuem eficácia. Não podem ser consideradas letras mortas. Se constam do texto da Carta Magna, possuem força normativa, caráter cogente. Princípio da máxima efetividade: como as normas constitucionais possuem força normativa, o intérprete deve extrair delas sua máxima efetividade [...] Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade Constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não-auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador.” VER: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, Op. Cit., p. 374-376. “Princípio da conformidade funcional: Deve-se respeitar a competência dos poderes estatais (legislativo, executivo e judiciário). Deve ser observada e preservada a distribuição das funções conferidas pela Constituição aos poderes do Estado”. Princípio do efeito integrador: no entendimento de Sylvio Motta Filho e William Douglas Santos, esse princípio “informa que, na resolução das questões sobre a Constituição, é preciso optar pelos caminhos de interpretação que favoreçam a integração e unidade política e social”. VER: MOTTA FILHO, Sylvio Clemente da Motta; SANTOS, William Douglas Resinente dos. Controle de constitucionalidade: uma abordagem teórica e jurisprudencial. 3 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004. p. 23. Princípio da harmonização: segundo o qual se exige coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito, para que se evite o sacrifício de um em relação aos demais. 223
apenas no texto legal, já que ao transportá-la para a vida real, em diversas oportunidades ela esbarra muitas vezes em próprios dispositivos legais, constantes em outros textos normativos existentes no ordenamento pátrio25. Além do aspecto processual, anteriormente analisado, deve-se analisar ainda outros aspectos, como o político, no que diz respeito à aplicação do art. 114, § 2º, da Constituição da República, como se mostrará logo adiante. O Dissídio Coletivo trata de uma forma heterocompositiva de solução dos conflitos coletivos de trabalho, e, em nosso ordenamento jurídico, sempre que a negociação coletiva é frustrada, as partes vão buscar a solução para o litígio através desse meio judicial. Os sindicatos representativos das categorias profissional e econômica devem possuir força política na tentativa de impor perante a parte contrária suas condições, de modo que estas prevaleçam e passem a se tornar regra naquela categoria. Diante desse fato, é preponderante e fundamental que a categoria dos trabalhadores esteja constituída por um sindicato forte e representativo, que não venha a sucumbir diante das pressões sofridas pela classe patronal. Um sindicato profissional independente não permite que fatores externos venham a refletir na sua gestão, na sua participação diante da classe trabalhadora e na sua relação com a categoria econômica. Para que se tenha essa independência é necessário que os líderes sindicais não sejam coniventes com interesses das empresas nem do Estado, o que muitas vezes se percebe e faz desvirtuar a real finalidade do sindicato profissional. O aspecto político que envolve esta questão está diretamente ligado ao fator social, até porque não se pode vislumbrar uma classe profissional avançada politicamente, se no aspecto social os trabalhadores são absolutamente dependentes de seus patrões. Não está se falando da subordinação decorrente do contrato individual de trabalho, já que esta é inerente a toda e qualquer relação de emprego. Entretanto, diante da instabilidade econômica e social vivida por nossos trabalhadores, não há como se atingir um equilíbrio nesse particular, o desemprego estará sempre batendo à porta desses trabalhadores. O Estado precisa atuar proporcionando uma maior estabilidade aos seus cidadãos no mercado de trabalho, com medidas que venham a torná-los cada vez mais independentes do predomínio econômico patronal. Sob o ponto de vista do aspecto econômico, apresenta-se também um problema fundamental, para impor o requisito do art. 114, § 2º da Constituição Federal de 1988. Isso pelo fato de que a classe patronal vale-se de sua preponderância econômica para coagir a classe trabalhadora a aceitar as condições por ela impostas. Se o Estado não fornece à classe profissional condições de litigar em pé de igualdade com a classe patronal, não pode estipular regras de igualdade entre eles, quando na verdade não estão em pé de igualdade. 25 Dentre esses instrumentos, o direito de acesso à justiça é um dos mais importantes por constituir meio de promover a resolução dos conflitos de interesse; contudo, não é efetivo para todos. Limitações sociais, culturais e, principalmente, econômicas impedem que grande parcela da população usufrua a tutela estatal, ficando à mercê dos métodos não-convencionais. Vale ressaltar que, apesar de ser do conhecimento geral, não pertence ao escopo do presente estudo a menção aos meios não-oficiais de resolução dos conflitos, os quais são os mais acessíveis e cada vez mais utilizados pelos menos favorecidos. VER: GOMES NETO, Mário Wanderley; HOLANDA, Maria Lucicleide Cavalcanti da Silva. Cidadania e acesso à justiça: o modelo de assistência jurídica oferecido pelo Estado de Pernambuco, a partir da Constituição de 1988. Op. Cit., p. 81-82. 224
O próprio princípio da proteção ao hipossuficiente consagra que não se pode tratar de forma igual os desiguais, pois dessa maneira sempre ocorreria a preponderância do mais forte da relação. Numa relação desigual, o tratamento tem que ser também desigual, exatamente na medida da desigualdade das partes, para que seja possível buscar um equilíbrio entre os conflitantes. Se não há equilíbrio entre as partes, já que economicamente estão bem distantes, via de regra, o Estado não lhes pode atribuir um tratamento igualitário, pois isso irá tão somente acentuar cada vez mais a desigualdade, e por conseguinte beneficiar a parte mais forte, ou seja, a classe patronal26. O posicionamento do Estado liberal ou neoliberal, quando permite que classes desiguais estejam em igualdade de condições no momento de decidirem seus conflitos, é temerário e perigoso. Fragiliza a classe trabalhadora, enfraquecendo-a cada vez mais diante de seus empregadores. Se o Dissídio Coletivo de natureza econômica apenas poderá ser ajuizado se houver concordância das partes, caso a negociação coletiva seja frustrada, e a classe patronal se negar a ajuizar a ação, alguns direitos já conquistados pelos trabalhadores poderão não mais ser respeitados, diante da inexistência de norma que os consagrem. A classe patronal terá condições de pressionar a classe trabalhadora a aceitar as condições que estejam por ele sendo impostas, pois do contrário, não existirá norma coletiva, e aqueles direitos até então consagrados, não mais prevalecerão, num flagrante prejuízo para os empregados. As constituições modernas começaram a prever a atuação da justiça numa concepção ampla. O inciso XXXV, do artigo 5º da Constituição do Brasil estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”. Entendo que, diante da regra contida nos arts. 5º, XXXV e 8º, III, da CF/88, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: [...] III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.
Mesmo malogrando o acordo entre as entidades sindicais, não se pode afastar o exame do litígio por parte do Poder Judiciário Trabalhista, que continuaria a exercer o seu poder normativo. Tal imposição do dispositivo constitucional, além de ofender diretamente o princípio da inafastabilidade jurisdicional, ainda se apresenta como flagrante afronta ao conflito de classes à medida que promove a negativa desses conflitos, impondo o comum acordo entre os litigantes. 26 “Por outro lado, a indigitada norma constitucional aviva ainda mais a teleologia negocial dos sindicatos ou a exacerbação da teoria da vontade, tão evidente na realidade liberal, com conseqüências danosas aos trabalhadores, como a flexibilidade e a precarização. Observa-se que, para se chegar ao judiciário, se faz necessário um “pré-contrato”, um acordo entre as partes, que possuem interesses contrapostos, para que, juntos, batam às portas deste poder específico do Estado. Ora, se não houve uma autocomposição prévia, que naturalmente elide a possibilidade conjunta de busca da solução pela via judicial, o tão só causísmo constituinte secundário é que determina um malsinado prévio acordo para que a controvérsia se transforme em litígio, tendo como agravante a crítica realidade sindical”. VER: BARROSO, Fábio Túlio. Extrajudicialização dos conflitos de Trabalho. Op. Cit., p. 74. 225
Como já visto acima, quem está litigando, diante de um conflito de interesses, não tem como entrar num consenso a respeito de uma disputa judicial. E nesse aspecto particular, não há dúvida que a classe patronal vai tentar se sobrepor à classe profissional, e esta apenas teria a alternativa da greve. Entretanto, por questões já mencionadas anteriormente, a classe trabalhadora atualmente cada vez mais vem se eximindo do exercício do direito de greve, com medo do desemprego. A imposição do comum acordo, além de fragilizar a classe obreira pelo impedimento de buscar a solução jurisdicional do conflito, ou seja, impedir o amplo acesso à justiça, constitucionalmente consagrado, ainda aumentará a vantagem da classe patronal na negociação, já grande pelo poderio econômico, e agora ainda maior pelo fato de que ter-se-á plena convicção de que se os trabalhadores não aceitarem suas condições, não poderão se socorrer do Poder Judiciário para tal fim. Agora, passa-se a examinar a ordem jurídica justa, que tanto se busca, pelo menos é o que se fala, mas ainda se encontra tão distante. De nada adianta um ordenamento jurídico onde se verifique a presença de leis que tratem de amplo acesso à justiça, de inafastabilidade da jurisdição, mas que, na prática, não viabilize tal condição. Numa ordem jurídica justa seria indispensável a presença de elementos que apresentasse para as partes de uma relação processual meios realmente acessíveis de se discutir uma demanda em juízo, de modo não oneroso e com o dispêndio de tempo razoável, de forma a viabilizar a decisão final. Em muitas vezes, de nada adiantará uma decisão favorável, após longos anos de espera, pois se se tratar de um direito urgente, a morosidade na entrega da prestação jurisdicional seria praticamente a negativa dessa efetivação. Na seara trabalhista, é necessário que se esclareça que, via de regra, o que se discute é pagamento de salário ou de qualquer outra parcela que tenha natureza salarial. Na seara do direito coletivo, esses bens serão perseguidos por toda uma coletividade. Portanto, serve de sustento tanto para o trabalhador quanto para sua própria família. Assim, o retardo no cumprimento de sua obrigação, em muitas das vezes, lhe trará prejuízos irreparáveis, de ordem financeira e pessoal. Para que se obtenha uma ordem jurídica justa, não basta a entrega correta da prestação jurisdicional. É necessário e indispensável que o bem da vida, almejado pelo litigante lhe seja entregue. Ou seja, aquele objeto perseguido, seja ele qual for, como, por exemplo, recebimento de uma indenização trabalhista, reintegração de um imóvel, dentre outros, possa efetivamente lhe ser retribuído. Não basta a obtenção da ordem jurídica formal, se não se consegue vislumbrá-la materialmente. E ela apenas seria vislumbrada materialmente, se fosse efetivamente entregue a seu detentor, sendo esse reconhecido através de uma decisão judicial correta e justa em todos os aspectos, legais, éticos e morais. Portanto, é necessário que se criem mecanismos no sentido de se solucionar questões dessa natureza, para que se evite que o hipossuficiente preste serviços para um empregador, uma empresa, e, após longos anos de dedicação a esse empregador, se depare com uma demissão. Além disso, sem recebimento das verbas rescisórias. Em boa parte das vezes, esse seria o início de uma verdadeira via crucis a ser submetida pelo empregado, pois terá que contratar um advogado e esperar a solução definitiva da demanda. Alexandre Moraes27 comentando o princípio da inafastabilidade da jurisdição afirma que: Importante, igualmente, salientar que o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade de ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade
27 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 83. 226
da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue.
Consagrado constitucionalmente, o princípio em comento encontra óbices no ordenamento jurídico, como já apontado. Demonstra-se inclusive a contradição de nossa Carta Constitucional, ao analisá-lo em conjunto com o art. 114, § 2º da CF/88.
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