CONTOS DE
SABEDORIA
Contos de Sabedoria
Dom Jair Rodrigues
HISTÓRIAS RECONTADAS E ILUSTRADAS POR 1
DOM JAIR RODRIGUES
Contos de Sabedoria
Dom Jair Rodrigues
Contos de
Sabedoria Histรณrias recontadas e ilustradas por Dom Jair Rodrigues
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Dom Jair Rodrigues
Para Rafaela, Manu e Renata.
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Sumário Apresentação O primeiro narrador de histórias O leão e o príncipe Uma fábula Como surgiram as estrelas Chico Rei O caçador e o cego Carne de Língua O autor
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Apresentação Escolhi com muito carinho estes contos da tradição oral que tenho narrado para diferentes pessoas ao longo de minha carreira enquanto narrador e pesquisador das histórias que passam de geração a geração. É bastante prazeroso ver as histórias contagiarem as pessoas enquanto são compartilhadas. Aqui dou início ao grandíssimo desafio de dar às histórias uma versão escrita e ilustrada, num ofício de escriba e ilustrador. Fico bastante agradado de estar em contato com estas histórias tradicionais que tanto amo. A primeira história que compartilho neste livro, “O primeiro narrador de histórias” é a história que mais reverbera em mim, ao lado de “Carne de língua”, da qual falo em breve. Acredito que essa história, conta a minha própria história. Todas as muitas vezes que a narrei, sinto que vou em busca da própria essência de narrar: o ir ao outro. Este conto me veio durante a leitura do livro O Ofício do Contador de Histórias (2005) de Gislayne de Avelar Matos e Inno Sorsy. Neste importante livro, que trata sobre o ofício de narrar, a história que compartilho tem outro título e é um pouco diferente da versão das autoras. Isso acontece com todas as histórias que são de boca, que são contadas ao som de nossa voz, elas nunca são as mesmas. Assim como um dia não é como outro. Eu creio que sou um descendente do primeiro narrador de histórias, daí meu fascínio por essa história. 5
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Em seguida, compartilho “O leão e o príncipe”, uma história que recolhi no livro Contos de Sabedoria e Encantamento (1998) de Hugh Lupton. A narrativa de um príncipe e o enfrentamento de seu medo me encanta, pois é na fuga e no posterior enfrentamento que está a sabedoria. Uma história linda e mágica. O conto “Uma fábula” narra como a verdade usando a sabedoria e a astúcia feminina consegue entrar pelos portões do grande sultão Harun al-Rashid. Conheci esta história pela voz de Regina Machado, referência como narradora e pesquisadora, na época minha professora na USP. A forma como ela narrou a história se fixou em minha memória de forma, que não pude esquecer desde então. Para mim, a Regina Machado é a própria Fábula em corpo de mulher. “Como surgiram as estrelas” é um conto de origem indígena que conheci numa atividade de narração de histórias com meus colegas professores. Lembro-me que narramos essa história ao som de música e cada um de nós ficou encarregado de uma parte. Foi uma atividade tão significativa, que a história dos curumins que viram estrelas chegou ao meu coração para não mais sair. “Chico Rei” parte de uma história real vivida pelos africanos que foram trazidos ao Brasil. Embora a história dos escravos seja triste, esta história trata da superação de um rei africano que foi escravizado e trazido para o Estado de Minas Gerais. Chico Rei é uma história sobre lealdade, persistência e muita sabedoria. Conheci esta história em rodas de conversa do movimento negro na cidade de São Bernardo do Campo e sua essência de luta, 6
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sabedoria e gratidão me inspiram. A sexta história que compartilho, “O caçador e o cego” é sobre um cego muito sábio que desafia e encanta um caçador. Também a recolhi a partir do livro de Hugh Lupton. Dela fico com a frase: ele enxerga com o coração. Uma história inspiradora sobre verdade. E finalmente, o sétimo conto de sabedoria, que fecha este trabalho é “Carne de Língua”, a história que mais me encantou, ao lado de “O primeiro narrador de histórias”. Neste conto, um rei africano busca a cura para sua rainha e é no mistério da carne de língua e nos ensinamentos do Griô que o rei Karite buscará a cura para sua amada rainha. Tive contato com essa história, a partir do livro de Ilan Brenman As narrativas preferidas de um narrador de histórias (2007) e desde que a li, ela entrou para meu repertório de histórias e creio que enquanto houver fôlego, seguirei narrando esta maravilhosa história. Desejo que estas narrativas, passadas de geração a geração, possam despertar em você leitor diversas sensações, assim como ocorrem em mim até hoje. Sei que poderia ter compartilhado outras histórias de sabedoria que fazem parte do meu repertório, mas me interessou o número sete. Que possamos nos encontrar assim, partilhando histórias de sete em sete por vez. Seria grandioso. Dom Jair Rodrigues
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O primeiro narrador de histórias Há muito, muito tempo o mundo era vazio, ninguém sabia dizer a razão. Mas o fato é que faltava algo para a humanidade daquela antiga época. As pessoas se perguntavam: - Quem há de ir por nós? – Quem nos ajudará? Havia um homem por nome Marabu, seu nome foi herdado do grande pássaro sagrado. Ele levantou sua mão, e saiu de sua casa. Marabu sabia o que tinha que fazer para combater o vazio da humanidade. – Eu vou sair pelo mundo e ser o primeiro narrador de histórias! Ora, se Marabu saiu pelo mundo para ser o primeiro narrador, onde ele encontraria as histórias? Não havia livros onde pudesse encontrar as histórias. Mas, Marabu bem sabia onde as histórias moravam: no coração das pessoas. Foi em busca do coração das pessoas, das histórias no coração guardadas, que Marabu iniciou seu longo caminho de recolher as histórias. Consigo ele levou um kalimba,, para que pudesse tocar afastando a solidão dos longos caminhos. E assim iniciou sua jornada para ser o primeiro narrador de histórias de todo mundo. Em sua viagem, Marabu visitou muitíssimos lugares e conheceu todo o tipo de gente: altas e 9
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baixinhas, ricas e pobres, guerreiros bem fortes e aqueles que se dedicavam a arte da música e da pintura. Conheceu diferentes lugares, estes muito distantes de sua terra. E conheceu todo o tipo de gente, e nisto, não fazia distinção a ninguém. E como Marabu fazia para encontrar a história em cada pessoa? Como Marabu as encontrava no coração das muitas pessoas que conheceu? O valente Marabu, que não conhecia fronteiras, se apresentava como o primeiro narrador de histórias e dizia a que veio. Marabu olhava bem no fundo dos olhos da pessoa, assim ele encontrava a história guardada no coração. Marabu assim fez durante sua longa jornada que durou muitos anos. Um dia Marabu, enquanto tocava sua kalimba, pensou: – O que fazer com tantas histórias e como as guardarei em meu coração? Pensando assim Marabu adormeceu e teve um sonho revelador: Em seu sonho o grande mestre Griô lhe contava ao pé do ouvido, numa língua antiga o maior segredo de sua vida. Marabu deveria escrever toda a história que recolheu e depois guardá-las dentro da kalimba e depois adicionar um pouco da água do rio que corre ao contrário e no dia seguinte deveria beber aquela água de histórias para que elas, enfim, fossem para sempre guardadas em seu coração. Em seu sonho o Griô se despediu: – Adeus, adeus valente Marabu. Venha me visitar quando quiser no reino do sonho e das histórias. 10
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Dom Jair Rodrigues Ao
acordar,
Marabu
fez
exatamente como o Griô lhe ordenara. Ao
beber
aquela
água,
água
de
histórias, todas as histórias bebidas tornaram-se Então
histórias
Marabu
poderia
de ser
coração. o
que
sempre quis: O primeiro narrador de histórias de todo o mundo. Ele então continuou sua jornada agora narrando a todos as histórias. Depois de Marabu, vieram muitos outros narradores de histórias e vim eu que te narro esta história e após mim, oxalá que venha você e muitos outros!
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O leão e o príncipe Esta é uma história de muito, muito tempo atrás. Ela conta sobre um rei e seu filho querido. O jovem príncipe que era bom filho, além de leal e destemido guerreiro. Como era tradição naquele reinado, o velho rei sentia necessidade de passar o reino para seu filho. Mas, este deveria provar seu valor passando por um ritual secreto. O rei chamou seu estimado filho e disse: – Filho querido, chegou a hora de você ser o novo rei e eu de descansar após longos anos de dedicação ao povo. O príncipe se viu satisfeito e honrado por seu pai confiar a ele o poder de todo o reinado. - Porém, continuou o rei. Você deverá enfrentar uma prova de coração. Se você vencer, então poderá tomar o lugar de seu pai. Me encontre ainda hoje, por volta da meia-noite, que eu te levarei ao seu desafio. Desde essa fala de seu pai o príncipe não teve paz em seu espírito. Ele ficara em seu quarto pensando em qual seria o grande desafio. Pensava se deveria usar suas armas, se seria ocasião de batalha. Ou se deveria usar um elegante traje especial ou se apenas deveria usar uma roupa que demonstrasse sua humildade. O pensamento do jovem príncipe estava confuso. Por fim, quando chegou a meia-noite o ansioso príncipe se apresentou apenas com uma túnica demonstrando sua humildade e lealdade ao pai. 13
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O velho rei estava sozinho sentado em seu trono justamente à espera de seu filho. Quando se encontraram o rei lhe deu um forte abraço e lhe desejou boa sorte, disse também que ele, quando jovem teve de vencer o mesmo desafio para tornar-se rei. E foi levando o filho na escuridão do caminho, iluminando o trajeto com uma tocha. Ao chegarem no lugar o velho rei lhe disse: – Meu filho amado. Eis o seu desafio, você deverá entrar nesta caverna e passar a noite com um grandioso leão que aí vive. Amanhã pela manhã, voltarei para buscá-lo com sua coroa. O rei disse isso e deixou o filho lá com seu grande desafio. Assim que o rei partiu, nasceu no coração do jovem um terrível medo. Quando o leão percebeu que o jovem estava à sua porta,
deu
um
grandioso
rugido.
Aquele
som
terrível
e
ensurdecedor fez o príncipe fugir o mais rápido que pôde. Ele só parou de correr ao amanhecer e quando se viu longe de seu reinado. O rugido do leão tinha sido gravado em sua mente e coração como um verdadeiro ferro em brasa. Ali, longe de seu reinado o príncipe era apenas mais um homem. Tanto que foi pedir abrigo no palácio do grande sultão Harun al-Raschid. Assim que o sultão pôs os olhos nele, percebeu que se tratava do príncipe herdeiro e o recebeu com muita alegria. O príncipe ficou como hóspede do grande Haroun al-Raschid por dois ou três dias. Numa noite de lua cheia, o coração do príncipe se encheu de medo e tremor ao ouvir o forte rugido de um leão. O grande sultão lhe disse que há tempos o seu reino era assolado por este leão solitário e disse que tudo daria para aquele 14
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guerreiro que livrasse seu reino de tal fera. O príncipe não pode esconder seu medo do leão. Agradeceu ao grande Haroun al-Raschid e se despediu. O medo o impediu de tornar-se um herói. Nada havia para ele, senão a fuga e o medo do leão que crescia em seu coração. Assim nosso príncipe seguiu andando pelo mundo, para longe de seu maior medo. Em suas andanças, ele chegou ao reinado de um grande rei. Acontece que este rei também era amigo de longa data de seu pai. Este rei o acolheu como a um filho, e disse que esperava por alguém valente como ele. Contou que tinha a intenção de casar sua filha com um guerreiro especial e já que ele, filho de seu velho amigo, havia chegado, talvez fosse a hora de realizar seu sonho de ver a filha casada com um guerreiro. Ao ser apresentada à princesa, nosso príncipe fiou apaixonado ao olhar nos olhos de tão bela moça. E o mais surpreendente é que foi recíproco. Ambos estavam apaixonados. A única condição que o rei impunha era a de que o guerreiro que quisesse desposar sua filha princesa deveria encarar um leão frente a frente e desarmado. Apenas com a coragem e a fé. Mais uma vez um leão na vida de nosso príncipe. Mais uma vez um leão o impedia de encontrar a felicidade. O jovem príncipe procurou as melhores palavras para dizer ao rei Fausto que ele era um covarde, portanto indigno de ser chamado de filho de seu pai. O rei Fausto, no entanto, disse que confiava que ele seria o 15
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guerreiro a encarar um leĂŁo. Mas ainda assim o medo do leĂŁo
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valente que derrotaria o leão. Mas o medo paralisava nosso príncipe, e ele mais uma vez partiu, fugindo de seu medo. Por quanto tempo mais ele fugiria e para onde mais? Talvez chegaria ao fim do mundo? Foi aqui que a coragem nasceu no coração do príncipe. Ele resolveu voltar e encarar de frente o medo do leão e seguir a tradição de seu velho pai. Ele estava decidido a enfrentar o temível leão de uma vez por todas. Se não vencesse, era decerto melhor morrer pelas garras do leão, que viver fugindo para sempre como um covarde. Quando enfim regressou e se apresentou ao pai temeu por sua reação. Porém, seu pai muito feliz disse: – Meu filho que estava perdido regressou! Façamos uma festa porque meu coração se alegrou. Ao chegar a noite, nosso príncipe decidiu que iria sozinho e sem armas para enfrentar seu leão e tentar alcançar enfim, a felicidade. Ao caminhar para a caverna onde vive o leão, o príncipe rememorou toda a sua vida. Relembrou da alegria e confiança do pai, da princesa que poderia ter sido sua e de como passou como covarde perante os reis amigos de seu pai. Ao chegar à frente da caverna, fechou os olhos e entrou. O leão percebeu que ele se aproximou e foi ao seu encontro. Por fim, nosso príncipe encontrou a felicidade com bastante riso ao perceber que o leão na verdade era manso. Já que estava 17
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na família desde a geração de seu pai. No dia seguinte, seu pai foi recebê-lo com muita alegria. Agora sim, ele poderia passar seu reinado, pois tem um príncipe valente como herdeiro. E o reinado de nosso rei durou anos e anos, até que ele teve que preparar seu filho para o ritual do leão. Mas essa já será uma próxima história.
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Uma Fábula Deus criou a mulher e junto com ela, a fábula. Foi assim que uma vez a Verdade desejou conhecer o palácio do grande sultão Harun al-Raschid. Assim como veio ao mundo ela se achegou à porta do grande palácio. Ao ver uma mulher assim tão bela e nua o guarda ficou desconcertado. Ele se concentrou e perguntou quem ela era. E a Verdade respondeu: – Eu sou a Verdade e desejo encontrar-me com o grande Haroun al-Raschid. O guarda entrou correndo para falar com o grão-vizir e muito maravilhado disse: – Senhor, meu senhor! Está lá fora está uma mulher lindíssima e nua! Ela deseja falar com o senhor... – Quem é ela?! Quis saber o sultão. O guarda ainda emocionado com tanta beleza respondeu: – Ela disse que se chama Verdade! O grande sultão ficou estupefato e disse: – A Verdade está aqui? Imagine o que seria de mim e de todos aqui se a Verdade entrasse?! Pode mandar essa mulher embora. Porém, Deus criou a mulher e junto com ela criou a teimosia. Assim, a Verdade não se deu por vencida. Ela vestiu-se com peles grosseiras, deixando apenas os olhos de fora e foi direto, é claro, para o palácio do sultão Haroun al-Raschid. O guarda, ao ver uma mulher tão horrivelmente vestida, perguntou seu nome e o que ela queria. Com voz severa ela 20
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respondeu: – Sou a Acusação e exijo entrar pelos portões desse palácio! O guarda horrorizado foi até o seu Senhor dizendo: - Meu senhor, está no portão uma mulher coberta em feiura e
deseja falar com o senhor. Ela se chama Acusação. O grão-vizir ficou muito abalado e disse: – O que seria de mim, de todos aqui, se a Acusação entrasse nesse palácio? Mande essa mulher embora, imediatamente. Porém, Deus criou a mulher e junto com ela criou a beleza. A Verdade se cobriu com as vestes mais bonitas e perfumosas que já se viu, e ficou mais que linda. Então foi novamente até os portões do grande palácio e disse com voz de rosas: – Eu sou a Fábula e gostaria muito de ver o grandioso sultão deste palácio. O guarda ficou enamorado pela Fábula: – Meu Senhor, nos portões do palácio está uma mulher tão bela, mas tão bela, que mais parece uma rainha. Ela disse com voz de anjo que quer falar com o meu senhor. E disse ainda que se chama Fábula! O coração do grão-vizir se encheu de alegria. Ele ordenou imediatamente: – Meus amados e leais súditos. A Fábula entrará em nosso palácio! Ordeno que cem jovens a esperem com cem presentes num caminho com pétalas das mais perfumosas flores. E foi assim que a Verdade, vestida como Fábula, finalmente entrou pelos portões do suntuoso palácio. 21
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Como surgiram as estrelas Numa grande aldeia indígena todos tem seus afazeres. Uns pescam e caçam, outros fazem o alimento, uns ensinam a cultura, outros pintam os corpos e muito mais. Acontece que os afazeres das crianças são dois o de aprender e o de brincar na natureza. Nesta aldeia que lhes falo não é diferente. Lá, os curumins (com são chamadas as crianças) brincam e aprendem. Porém, neste dia, após se esbaldarem de brincar na natureza, tiveram muita fome. Assim resolveram voltar para a aldeia para se alimentarem. Foi aí que viram que suas mães haviam feito um gostoso bolo de milho. O bolo, de tão suculento, parecia que brilhava ao sol. Foi então que o mais velho deles, que parecia ser mais esperto e corajoso disse: – Hei, vamos comer esse gostoso bolo?! – Não. Nossas mães vão nos castigar! Disseram os outros. – Vamos, não sejam medrosos! Disse o corajoso. Os curumins pegaram o bolo e acabaram com ele rapidinho. Afinal, era um gostoso e belo bolo de milho ainda quentinho. Mal
eles
terminaram
de
se
empanturrar,
as
mulheres
chegaram à aldeia e os curumins tiveram muito medo. Eles resolveram fugir com medo dos castigos. Em meio à fuga, avistaram um bonito cuitelinho e lhe pediram ajuda. – Cuitelinho, nos ajude! Temos medo de nossas mães! 23
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Assim os garotos se agarraram a um cipó que o cuitelinho levava em seu bico e assim foram subindo, subindo e subindo. As índias, quando viram aquilo clamaram ao pássaro que trouxesse seus curumins de volta, mas já era tarde, a noite estava chegando e quanto mais alto subia o passarinho, mais choravam os curumins e a cada lágrima deles, era uma estrela que surgia no céu e no fim, os curumins viraram as estrelas mais brilhantes. E foi assim que surgiram as muitas estrelas.
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Chico Rei Esta é a história do grande Chico Rei, um rei africano que se tornou um rei brasileiro e que viveu nas Minas Gerais. Uma história verdadeira de lealdade e grande sabedoria. Contam nossos antepassados que havia nas terras da grande África um rei que governava com sabedoria e era adorado pelo povo, era um tempo justo de reinado e felicidade, um reinado cheio de vida, cores, danças e festas. É verdade também que durante esse mesmo tempo os reinados europeus invadiam as terras africanas e faziam prisioneiros os povos africanos. Assim aconteceu com o reinado de Chico Rei e sua família. O rei e todo seu povo foram aprisionados pelos homens portugueses impondo a injustiça à força das armas. Durante o longo caminho no terrível navio negreiro, muitos do reinado não resistiam e caiam mortos diante de tão cruel tratamento. Chegando ao Brasil, o rei e sua família foram levados para Minas Gerais e por lá vendidos como escravos. O senhor que o comprou deu-lhe o nome de Francisco, e o rei passou a ser chamado de Chico Rei. Conta a história que Chico, humilde e sábio trabalhou tanto nas minas de ouro dos senhores que conseguiu a muito custo e muito tempo comprar a liberdade de seu filho, e ele e seu filho juntos conseguiram comprar sua própria liberdade e assim por diante num grande esforço e união compraram a liberdade de boa parte de seu reinado das mãos dos terríveis senhores. 26
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Juntos e liderados por Chico Rei, conseguiram fundar seu reinado africanos em terras brasileiras. Foi a volta da alegria, das danças e festas, ainda que por pouco tempo, devido a maldade e cobiça dos homens. Esta história de Chico Rei, tão verdadeira é, que ainda hoje é possível encontrar nos Estado de Minas Gerais, descendestes vivos de Chico Rei. Viva Chico Rei! Viva Chico Rei! Viva Chico Rei!!!
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O caçador e o cego Esta é a história de um extraordinário homem que existiu há muitos anos. Trata-se de um cego que conquistou o coração de muitos devido à sua sabedoria, humildade e suas habilidades. Seu nome era Benjamin. Todos os dias ele acordava bem cedo e se punha à frente do portão de sua casa onde morava com sua irmã mais jovem. Ele, como era simpático, cumprimentava todas as pessoas e era muito respeitado por toda a aldeia em que vivia desde que era criancinha. Para Benjamin, a vida estava boa assim. Mas, o tempo é uma roda que gira sem breque nem freio, e quando foi ver, já passou. E não é que sua irmã acabou se casando com um forte e corajoso caçador. O homenzarrão foi morar na casa com a irmã e seu irmão Benjamin. Assim, desde o primeiro dia que percebeu sua presença através de seu cheiro e seus braços fortes, nasceu em Benjamin um desejo de ir à caça. Sendo assim, quando teve oportunidade Benjamin lhe pediu: – Por favor irmão, deixe-me caçar com você amanhã? Para o caçador, o cego era uma espécie de estorvo, um peso morto que vivia pela casa, causando trabalhos para sua esposa. Porém de tanto insistir, o cego conseguiu dobrar a impaciência do caçador. Assim que fez sua pergunta diária: – Por favor irmão, deixe-me caçar com você amanhã? 29
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O caçador vencido pela persistência de Ben, disse: - Tudo bem. Porém, se você cair eu não vou te carregar e se você se perder deixarei você para as feras. - Muito obrigado, meu irmão querido. Amanhã de manhã nos vemos! E deu um grande abraço no caçador. - Boa noite querida irmã, boa noite querido irmão! Durante a noite o caçador pensava consigo: O que um cego pode fazer numa caçada? O que um cego sabe? Não sabe nada. É só um ceguinho indefeso. Na manhã seguinte, Ben estava pronto antes do sol nascer e do cunhado caçador levantar. Assim que o caçador se pôs de pé e viu que Ben estava pronto, rapidamente se arrumou e assim saíram para a caçada. Quando entraram pela floresta o cego apoiou sua mão no ombro do caçador e assim foram andando. Para espanto do caçador, o cego não tropeçava e tampouco caía. Em determinada parte do caminho o cego percebeu um perigo e disse sussurrando: - Calma irmão, fique bem quieto e tranquilo, logo a frente está um rinoceronte muito bravo, vamos contornar o caminho e assim não o encontraremos. Quando o caçador ouviu aquilo imaginou ser uma grande besteira, mas por prudência fizeram uma grande volta e o caçador pôde ver ao longe o rinoceronte se afastando. Nesse momento o caçador ficou muito impressionado com a habilidade do cego, mas não quis dar o braço a torcer. Quando enfim chegaram ao local da caça, o caçador ensinou ao cego como montar uma armadilha para pássaros e disse que no dia seguinte eles voltariam para ver o que 30
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pegaram. Para a surpresa do caçador, o cego veio andando sozinho, sem nunca tropeçar ou errar o caminho e ainda por cima, os salvou, ao perceber um leão dormindo à sombra de uma árvore. - Irmão, pare um pouco. Fique calmo, em frente está um leão dormindo, mas tudo bem porque ele já devorou sua presa. Mas ande bem devagar para ele não acordar. De fato, quando passaram pelo leão este roncava alto e eles, em silêncio, passaram em segurança. Mais uma vez o caçador ficou impressionado e até com inveja, mas nada disse. No dia seguinte, o cego não só andou sem a ajuda do caçador, como foi à frente do caçador. Quando chegaram ao local das armadilhas, o caçador percebeu que havia dois pássaros presos nas armadilhas. Na armadilha feita pelo cego, havia um grande pássaro de muitas cores e na do caçador um pequeno pássaro cinzento. Nesta hora, o caçador entregou o pássaro cinza ao cego e disse: - Irmão, esta noite tivemos sorte. Você e eu pegamos lindos pássaros! Vamos para nossa casa. No caminho de volta, o remorso pela mentira afligiu o coração do caçador. Tanto o afligia que ele confessou ao Bem sua mentira: - Irmãozinho, perdoe-me, fiquei com seu pássaro e você com o meu. Menti e me sinto envergonhado! - Eu já sabia disso irmão, mas eu te perdoo, pois você tem um grande coração! - Obrigado por sua bondade irmãozinho! Mas, me diga uma coisa, como você sabe tanta coisa sendo um homem cego? 31
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– É que eu vejo com os olhos do coração. O caçador passou a amar e a considerar muito seu cunhado Ben. Tanto que dizia a todos. – Ben, é um homem muito especial, pois vê com os olhos do coração e por isso conhece segredos que ninguém mais conhece. Viva o Ben! Viva! E a amizade deles durou muitos e muitos anos.
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Carne de Língua Num tempo distante existiu um bom rei africano, ele era adorado por seu povo, mas era triste, pois, vivia só. Um dia, porém, o bondoso rei apaixonou-se por uma linda moça e se casou com ela. Houve, então, muita festa e dança e comidas por mais de três dias sem parar. Mas quando o rei entrou em seu palácio com sua rainha amada, ela, assim que adentrou no palácio, subitamente adoeceu. O rei então mandou chamar todos os curandeiros de todo o reino para encontrar a cura para sua amada querida. Nenhum deles nada pôde fazer pela rainha, que a cada dia estava mais magrinha. O rei era uma tristeza só. Até que, em meio ao choro ele teve uma ideia, andar pelo mundo em busca da cura. De tanto andar, viu ao longe um grande baobá, 34
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quando lá chegou, encontrou o sábio griô Karite sentado debaixo da sombra do imenso baobá. O rei pediu ajuda: – Grande Griô! Por favor me ajude, minha rainha está doente, ninguém pode curá-la! – Se quiser fazer alguém ficar feliz dê carne de língua! Dê carne de língua a ela e a todo o seu povo. O rei se despediu e voltou refletindo sobre o mistério da carne de língua. Quando chegou, não pensou duas vezes e mandou logo chamar caçadores e cozinheiras para prepararem uma grande sopa com a carne de língua de todos os animais da África. Assim que as cozinheiras voltaram com aquela sopa repleta de língua de leões, hipopótamos, búfalos e toda a sorte de animais africanos, ele deu uma boa colherada para sua amada. Agora, vocês pensam que a rainha ficou curada? Não. Na verdade, ela ficou mais doente ainda…. também pudera, com uma sopa ruim assim, seria muito difícil mesmo! O rei não parava de pensar sobre essa tal de carne de língua, então voltou para o baobá para encontrar o mestre Griô. E perguntou: – Qual é esse mistério da carne de língua? Minha rainha está morrendo. O Griô respondeu: – Meu bondoso rei, carne de língua significa contar belas histórias paras as pessoas todos os dias! Por isso as pessoas ficam felizes e seus olhos brilham! O rei compreendeu o mistério da carne de língua. 35
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E desde então passou a contar para sua rainha e seu povo grandes e belas histórias que havia aprendido com Marabu, o primeiro narrador de histórias. Então e só então sua rainha ficou curada e seu reino ficou conhecido como o reino dos olhos brilhantes. Brilhantes de alegria. Daí em diante, o rei e todo o seu povo soube: Se quiser fazer alguém feliz conte histórias!
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O autor Sou Dom Jair Rodrigues e nasci em São Bernardo do Campo em 1980 e atualmente resido em Santo AndréSP. Sou professor Mestre em Educação e especialista em Linguagens da Arte. Sou ator e narrador de histórias, como essas do livro. Como professor, atuo nos anos iniciais do ensino fundamental na rede de São Caetano do Sul, e tenho muito orgulho de trabalhar com crianças. Trabalhei também na alfabetização de jovens e adultos (trabalho que amei demais) e como arte educador teatral em Instituições do terceiro setor. Como disse, sou narrador e pesquisador de histórias da tradição oral, bonequeiro e ator teatral, além de autor de artigos científicos da área de formação de professores e leitores. Escrevo livros literários (poemas, contos e romances) e ilustro minhas obras. Sou apaixonado por ouvir e narrar histórias e pela leitura literária. Trabalho com educação e com arte porque acredito em seu poder de transcender, de encantar e de alcançar novos horizontes. Também porque aprender e ensinar nos motiva a não conformação com o mundo nos rumos em que está. Creio num mundo melhor para todos com equidade e boniteza. Às vezes me pego num dilema: Se sou um professor que narra histórias ou um narrador que ensina por histórias, humildemente inspirado em como fazia o grande Mestre da eternidade. Mas é assim, inspirado em seus passos que caminho compartilhando histórias e saberes. Este texto mostra um pouco de mim e da minha missão.
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Contos de Sabedoria é um livro de contos de tradição oral passados de geração a geração através dos tempos. Aqui encontrarás a sabedoria Contos afro-brasileira, de Sabedoria Jair Rodrigues das culturas indígena e árabeDom recontadas e ilustradas pelo narrador de histórias Dom Jair Rodrigues, direto de suas apresentações para este livro. Quero dizer, direto da palavra de boca para a palavra literária.
São sete contos em que enfrentamos medos terríveis, mistérios e descobrimos como a sabedoria pode 38 estar contida em cada palavra, em cada história. Afinal, desde Marabu, o primeiro narrador de histórias, as histórias conversam com o que somos e acreditamos e por isso são tão queridas.