DOM TIMÓTEO AMOROSO ANASTÁCIO Ilustrações de
SANTE SCALDAFERRI
DOM TIMÓTEO AMOROSO ANASTÁCIO Ilustrações de
SANTE SCALDAFERRI SALVADOR, BAHIA, 2010
05 08
SONETO
S
im, eles pensam. Pensar maduro, pensar de sinos fi rmes na torre! Nós somos leves, eles pesados, eles cativos, e nós tão livres! Mas, quem terá alma assim cheia de sonhos, boca com esse canto? E a calma espera, apenas tremente, diante do mar com suas angústias? E essa leveza, oculta no peso, própria de estrêlas, própria de rosas, fi ltro que a noite concede às coisas? Vêde as gaivotas. Nasceram dele. Consubstanciais? oh! pólen que o vento, pródiga abelha, deixou no ar.
O’
ODE À SERRA DO CURRAL expulsa de ti mesma e, contudo, ondulante. tranqüila muralha,
ó vaga adormecida, Crista de onda, onda exposta pelo mar ansiado, entre os braços da terra. No teu rapto suspensa em repouso de prece, do dorso fascinado dum mar caído em transe rolas, despojada, ao assalto do ser. Só te defende a profundeza maternal que consagra ao encontro, à pilhagem, na espera duma essência mais alta, dum grau de ser imóvel, com raízes nas águas turbulentas. O mar não é montanha degradada, mas montanha é o mar pacifi cado. Cordilheira em silêncio, oceano arrependido, espuma alienada às histórias do vento e calma solidez à beira dos abismos. Entras na comunhão dum mundo novo. És humus nutritivo de corolas em susto sob o olhar estupefato de espécies nunca mais oferecidas. Tuas penhas descansam jovens astros doentes de fobia do oceano. Impregna-te um silêncio consolado por conchas em surdina à mão da Noite que distrança em teus fl ancos os cabelos donde rolam os sonhos e as estrêlas e o orvalho que goteja as madrugadas. Em ti o dia tem nascença e morte.
SIGÉ
Sou teu pai, teu pastor e sou teu fi lho, e esposo-te, montanha, e me recebes na surda aspiração duma oferenda. O’ tranqüila muralha, ó mar coagulado em calma solidez, em calma solidão, roxo pressentimento de picadas ascendentes de assombro e de oblação à nova comungante em véus de noiva.
D
uma profundeza feminina do PAI nasce o Verbo. Silêncio é o nome desse materno abismo. Hoje, pois, silêncio, te prefi ro em grego: Sigé, feminino. Fertilidade permanente no limiar das ação dos homens (que seria tão pobre, ridícula, e - por que não dizer? - inútil). Estás presente, e te vimos ontem ao nosso lado e te vemos sempre ao nosso lado. (do lado do Evangelho porque o Verbo sai do Silêncio), do lado de cá ou de lá desta porta, ó Silêncio de roxo, ó Silêncio num gesto que tanto pode ser de acolhida como (e acho ser o caso) de entrega, Silêncio maternal força e estrutura de nossa ação maternidade de serviço e fonte da Palavra encarnando o ponto de emanação o ôlho d’água donde brota neste mundo cansado um outro espaço e um outro tempo e um outro AMOR e uma esperança.
ESTRÊLAS CADENTES
M
iríades de estrêlas palpitando na solidão da abóbada tranqüila... Corre um frêmito pelo espaço brando, E há em cada peito um astro que cintila. Brilha a Crença, a Alma voa... A perseguí-la, A ânsia da Perfeição passa cantando. O Espírito, ante o Imenso, se aniquila, Sua eterna miragem procurando. De súbito, um relâmpago... Uma gema — (O céu fl orido de astros é um diadema) — Toma no caos, pela amplidão presaga... É uma estrêla cadente... Ai! a alma é o Espaço, Em que, às vezes, também, refulge o traço De algum sonho impossível que se apaga.
CONTO PARA EURÍDICE
E
m vão eu tentei ensinar meu coração a calar. Em vão lhe disse: “Há cantores do que tu muito maiores”.
Mas quando subi a grande montanha e me vi entre as estrêlas, e os lábios puros do vento vieram beijar meus cabelos, palavras e mais palavras subiam do fundo do homem e tombavam e tombavam, cinzentas folhas do outono. Em vão tentei o gemido do coração sofrer. Ela vem. Sim, ela vem, mas não quando o Dia brilha nas rosas. Vem, mas não vem enquanto, Orfeu, as mãos tu não pousas. Ela vem junto com a Noite, e quando rolam do mar as grandes vozes afl itas. Quando as fragâncias exalam, moldando as ternas lembranças com toques de mãos peritas. Amor, esperei por ti num barco cheio de estrêlas. Esperei, esperei, vi num sonho, às apalpadelas, a tua face ao luar, que tentei advinhar.
Minha delícia era a tua, passear mos, dois anjos branco s, nas alamed as da noite, por archote o coraçã o pulsan do de mais em mais ao longo da hora eterna. Só o amo r pod e dize r ond e
nasce o céu e o mar; por que um átomo sabe a qual outro se juntar; como, a despeito da morte, é doçura respirar, e, apesar do desespero, viver, viver e viver. É ser como um vaso etrusco — uma urna funerária — que conserva sobre as cinzas a doce imagem das faces.
Pois debaixo dos canteiros em que agonizam as fl ores há raízes sempitemas cravadas na terra dura onde dormem as sementes dos nossos renascimentos. Ouço teus passos, mas onde a tua face se esconde? “Chamai-a, Eco, ela some. Chamai-a, Eco, chamai-a, Eurídice é o seu nome!” V ô o a
n o i t e a s d i s t â n c i a s d a n o i t e v o u v a r a
n d o V o m e u c o r a ç ã o e s t á a o l o n g e d o a m
o r q u e v i g i a à b o r d a d o m a r . C r e s c e m e
c r e s c e m a s e s t r ê l a s e t e l e f o n o a o a n j
o q u e l h e d i g a a s p a l a v r a s a s p a l a v r a s
d e s i l ê n c i o q u e f a z e m e m u d e c e r o m a r
e d e s a b r o c h a m a s l á g r i m a s . C o n h e ç o a s
hor as que dor mir am nos ca min hos me us olh os são lav ado s do pra nto das dist ânc ias que jorr a du ma lua soli tári a part ida ao mei
o
te as dist ânc ias da noit e vou var and o me u olh ar fi xo à bor da do mar .
p o r s o l u ç o s . V ô o a n o i
MÊS DE MARIA Quanta alegria neste mês da luz; mês de Maria, a luminosa Santa; mês de fl ores, místico, se encanta, Para a glória da Mãe do meu Jesus!... Mês em que o incenso, doce, se levanta, E as almas puras até o céu conduz... Mês das Virgens de branco, em quem reluz A inocência do berço e o riso canta... Tudo celebra as festas da Senhora, Tudo que sofre, e geme, e vibra, e chora, Sente as lágrimas feitas um sorriso... Mês da virgem, de maio... Que possamos, com toda a pomba com que nós sonhamos Festejá-lo também no Paraíso.
IDEAL RADIOSO
A
Eucaristia, a santa Eucaristia É um místico Thabor que transfi gura a alma mais negra na mais branca e pura, A tristeza na mais suave alegria. É alento, é vida, é canto, é melodia, É paz que em nossos corações perdura, Oásis espiritual na vida dura, Mais doce que um sorriso de Maria. Sacramento de amor imenso e santo Que enxugais as torrentes do meu pranto, Triunfando entre cânticos de luz. Quero um dia gerar-Vos nestas mãos E repartir-Vos entre meus irmãos, Repetindo o que outrora fi z Jesus!
OFERENDA DA TARDE Esta fl or te ofereço, meu amor, gôta de sangue que tirei do peito, sílaba tonta dum perfume antigo, murmurada por mim na hora eterna que, madura, solou das mãos do tempo. Nas pétalas do seio, guarda a fl or, pois só rosa é de rosas advinha e conhece o segredo que uma rosa é capaz de exalar a outra rosa.
A MOÇA E A ROSA
Ó
semente, semente, fecunda semente de rosa, virgem múltipla, virgem ávida, solta os cabelos, que os pássaros se abrigam! mergulha-os nos lagos subterrâneos, que estes venham à fl or da terra, brotem por teus olhos, e possam amar a lua e banhar as estrelas cadentes, crispar-se ao beijo áspero dos ventos.
Em ti vêm palpitar a terra e as águas. És dois mundos, que em ti se abraçam para existir, ó tenro sustentáculo, ó frágil subsistência! Conheces, afi nal, o livre País dos Ventos, só tu podes encarar o Príncipe das procelas, e atrair a tempestade de fogo e de granizo que rasgará a terra com violência, que erguerá as águas para que a terra se fenda e a inocência da semente comece a criação
ELEGIA Ah! liberdade de vida, Ah! liberdade de morte! Porque, em lugar da Presença, é a Soledade que engendras? Poder desfolhar a fl or que em minha mão se aninhou, a pobre rosa indefesa da terra-mãe arrancada como dos seios copiosos uma criança infeliz. Poder apagar a estrela que veio pousar nos ombros como o pássaro cansado num velho tronco entre escombros. Ah! liberdade de vida, Ah! liberdade de morte! Porque é que fazes a cova e só semeias a Ausência? Porque fazes o vazio, só para enchê-lo de nada? Toldar o brilho da gema que Deus guardou muito tempo, envolta num véu de trevas, no velho cobre de estrelas caidas do céu, brincando, no quarto dia do mundo. Em mil pedaços desfeitas, como a poeira de luz que nas noites de luar a danç a pura dos astr os, o bran co carr
o da lua, leva nta m na Via Láct ea, até
que os vent os, bail and o, ven ham lava r essa rua. Tudo é tão frágil no mundo, um nome escrito na praia, um coração numa folha, a rosa dá seu aroma que as brisas nunca devolv em. O sorriso em sua
fonte já nasce entre dois soluços . Ah! liberda de de vida, oh! liberda de de morte! O mundo incomu nicável no teu olhar é fi ltrado, está na ponta dos dedos, na palma branc a dos pés, na pedra mesm o que brota como um
esguic ho da terra, no fogo que tudo troca, nas águas que tudo iguala m, sem as linhas confu ndir. O ar é espaç o comu m que vibra dos coraç ões, as águas canta m cantig as ouvid as em outras praias
, no mar os pranto s chora dos hume decem outras costas , os risos també m viaja m na náu etérea dos ventos . Ah! quant a vez somos tristes de dores que erram no ar. O riso nos vem do mar, de algum
a curva ensea da, e m c u j a s o n d a s a s a v e s m e r g u l h a r a
m s u a s a s a s c o m q u e n o s v ĂŞ m a s p e r g i r .
N o f u n d o e s c u r o d a s f o n t e s , f i
l h o s p e n d i d o s c o m o f l o r e s d e
c a r a m
v e l u d o
o
O
h
s
v i d a ,
d o
s a n g u e d e D e u s , c o m u m n a s v e i a
m u n d o ! D a n รง a c o m i g o e s t a n o i t e , c
o m u n i c a m e t e u
s i l ê n c i o , p a r a
r i t m o ,
f i
q u e r o
b e m
b e b e r t e u
c a r
v a z i o , n a S o
l e d a d e d e v i d r o , s e m
m b o . A h ! l i b e r d a d e d e
a p r e s e n รง a d e c h u
v i d a , p o r q u e o s
v e n t o s t e r e s p e i t a m , e a s
m u d e c e m ? B e m s a b e s f a z e r a
a v e s p e r t o
A u s ê n c i a ,
e
m
a s u m a a u s ê n c i a d e v i d r o , a u s ê n c i a q u e
é m a i s o m u n d o s i l ê n c i o d u m a P r e s e n ç a
,
a n t e
o i m e n s o
a i m i n e n t e
r i s o a b a f a d o
s u r p r e s a
ROSA DOS VENTOS D e i t e m e ,
p r i m e i r o , a o p e i t o , o c o r a รง รฃ o l รก p u l s
a v a O u v i o p u l s o d e m o รง o b a t e n d o h รก m a
i s d e m i l a n o s c o m o u m v i n h o q u e b o r b u
l h a , a h a r m ô n i c a p u l s a ç ã o q u e v i b r a m u
s i c a l m e n t e e m o n d a s p e l o u n i v e r s o . D e
o n d e o b a i l a d o d a s c o i s a s t e m s e u r i t m
o c o m p a s s a d o . A Ã , e n f i m , e n c o n t r e i o
q u e p e r d i e o q u e a c h e i . E aprendi o que ĂŠ amar. S u b i d e p o i s
a c a b e รง a , p a s s a n d o a s f i x a s e s t r e l a s .
A s t ê m p o r a s l a t e j a v a m s o b a c o r o a r e a
l . O d i a e a N o i t e a a d o r a v a m , e a s h o
r a s v i n h a m u n g à l a c o m u m n a r d o e m a l a
b a s t r o q u e a N o i v a d e o l h o s r a s g a d o s ,
P e n é l o p e i n f a t i g á v e l , v a i q u e b r a n d o e m
e s p e r a n ç a . E aprende o que é reinar. G i r e i u m d i a n o e s p a ç o , d
o n a s c e n t e a o o c i d e n t e , c o m o u m a p l u m a
e n g a s t a d a n a s l i v r e s a s a s d o v e n t o , c
o m o u m p รก s s a r o a s s u s t a d o n o i n s t a n t e d
a c r i a ç ã o . ( N ó s t e m o s t a n t a s a u d a d e das frias pregas do caos!) Lá nesses pontos extremos, encontrei as duas
mãos. Seguravam sem esforço as duas pontas do arco-iris, e as chagas, as róseas chagas empurpuravam o horizonte,
às mãos da Aurora e do Poente. Do régio gesto dos dedos deprendia-se um aroma. E aprendi o que é agir. Caí do cavalo azul, (alado de asas de prata) como um penhasco que rola num negro poço de sangue. Queda perpendicular, sem tempo, sem luz, sem dor, como um letargo anestésico nas dobras de um véu sem fi m. Ainda aí encontrei os pés a que me abracei, os pés, os dois pés chagados, no puro nada pousados. Como dois pássaros na vida. E aprendi o que é mistério.
AS ÁGUAS DO PARAÍSO 1 — Tractus
C
omo o cervo que tem sede e a fonte d’água procura, com que sede, ó Deus, te pede minh’alma cansada e impura!
minh’alma tão ressequida tem sede d’água corrente, tem sede d’água de vida, tem sede d’água inocente. Senhor, até quando deixas que digam: — “Onde o teu Deus?” — “É meu pranto, são as queixas a água viva dos teus?!” Quando virei ao Deus vivo e os seus olhos me verão? Quando este pranto afl itivo cessará de ser meu pão? Um pão que a fome não mata, um pão que mais me devora, um copo que mais dilata a sede devoradora!
II — Oremus A sede d’água viscosas em que me deito e deslizo, em que nunca, alma, repousas, — transforma, ó Deus, esta sede! seja sede de águas leves como um primeiro sorriso e a essência frágil das rosas; das águas, Deus, em que pousas como num muro de vidro, como num fl úido piso. Por Cristo Nosso Senhor. (As vozes) Amém.
III — Sursum corda Das águas da grande Esfera em que a Luz se difundiu, e a aurora da primavera diafanamente se abriu.
Das águas castas de dantes donde as estrelas brotaram; das águas fertilizantes em que as coifas das raízes primeiro se abeberaram, e as corolas iniciantes cobriram-se de matizes. Das águas de antigas eras em que o Espírito fez ninho, vogando como as galeras de fi nos mastros de pinho. Das águas em gestação, De Homero desconhecidas, levando no coração a sementeira das vidas. Dos rios que ouvi contar, onde o Sopro errou de Deus, como as estrelas do mar, como as estrelas dos céus. Dos lagos da era primeva, côncavos como patenas, como as palmas das mãos de Eva, como duas açucenas que a Mãe dos vivos eleva entre ignotas cartilenas Da lagoa hoje proibida, de puras águas
sem sal, em que Eva viu refl etida a imagem primordial, e na alvorada da vida pousou os lábios sem mal. Da doce fonte nascente que brinca como as crianças, na qual Eva adolescente deitou o aroma das tranças como um lotus na corrente, e espreitou, sorrindo, as danças dançadas no céu clemente. Da bruma hesitante e rôta, tangida pelo aquilão, do orvalho que, gôta a gôta, ungiu os olhos de Adão. Da névoa que se desfi a em fl ocos como algodão, e na manhão desse dia roçou na face de Adão; da névoa da teofania para a qual a onda se erguia dos rios em convulsão. Dos mares de voz possante, em fatos ascensionais, (Uma voz) Mirabiles elationes em plásticas espirais, com a cabeleira espumante destrançada nos corais, com os alvos cachos de espuma rolando aos areais, e gráceis como uma pluma que os ventos não trazem mais. Do rio da jovem vargem que mais tarde ouviu Orfêu e ouvindo: “Eurídice!” a margem, — “Eurídice!” — respondeu. (E destes sons que se espargem uma sombra, soluçando, aos ecos mortos colheu). Das velhas águas polares do universo adolescente, destinadas a ser mares no dia da grande enchente; das águas diluculares do puro licor nascente, brilhando em longínquos ares como um olhar inocente.
Das águas dos grandes gelos, num relicário guardadas, como os eternos cabelos das que morreram amadas.
onde nada se consome da doce infância das águas, e mudos astros sem nome deixam rolar suas mágoas.
Das águas enregeladas, em que nem brota a edelmeiss que os Anjos têm amarradas (gigantes frágeis de mais) por um fi o de cabelo, e aguardam aprisionadas o inebriante degelo.
Águas que nada desatam, do universo alvorescente, ainda guardais, intata, a moça estrela cadente, a Alfa de diadema, que como um jorro de prata mergulhou incandescente nas virgens águas da mata dum mundo inexperiente Dá-nos, ó Deus, dessas águas. Por Cristo Nosso Senhor.
JORGE VIVO Rente às praias do tempo, às móveis dunas formadas muito antes de ter sido, corre um ébrio arrepio nas lagunas que beberam do mar desconhecido. Aventuro-me. Sou. Vento, me esfumas, com teu rosto em que nuvens escondido! meu silêncio é o delírio das escunas a cantigas sopradas ao ouvido. “Busco uma ilha”! Guardas do universo, abri-me o mundo aéreo ou submerso na lagoa embriagada pela espuma. É meio dial saio atrás de auroras. Alguém me passa o cálice das horas, dum trago o Apocalípse se consuma.
SINOS À BORDA DO MAR
A
ntes de transplantados ao jardim suspenso, os sinos nascem fl ores d’água. Uma voz encantou-os ainda em botão. Traz o mar, para vê-los, seu rebanho de ondas que se vão aos corcovos a pastar no rochedo. Amadurecem sino corolas na torrente que transpôs, fascinada, as fronteiras dos reinos, na hora pura em que o mundo era só doração, sequer milagre havia porque tudo era invento.
Única perfeição à força de ser simples, os ventos atiçavam a universal obediência. Voam libertos de algum frasco dos Dátilos, a soprar sobre as coisas inexperientes o odor concentrado que tonteia rosas. Pisas um chão juncado de ensaios, em cada gema uma estrela hesitou. O céu noturno é quadro-negro de esboços por crianças rabiscados de brinquedo. Doce orquídea, borboleta que pousou para sempre, abres no tronco os olhos cegos de espanto. No céu desfi lam cordilheiras que hão de ser, no mar refaz-se, a todo instante, a invenção do mundo. Cabisbaixas se dobram as campânulas dos sinos, para tomar pasmadas no seu próprio aroma. Eras, ó bronze, a terceira raça de Hesíodo, entre a Hybris de prata e os pios heróis. Pax tibi, ambígua criatura renascente das águas, a reentrares tua própria substância, salmão em viagem às cabeceiras de si mesmo. Varas em transe um deserto de espectros, de ero em eco remontas-te o silêncio. Não penseis, com efeito, que o silêncio é o Nada do som, o grande Cisma excomungado da igreja das vozes. Pois é nele que a voz transpõe em êxtase o seu reino e expira o ar sutil e vibra esse perfume, que ondula das vogais saturadas de espírito. Silêncio é fruto escondido entre folhas de vozes, é preciso mordê-lo com os dentes de bronze, reinventar o sabor das raízes de verbo. Pax tibi, infância agraciada com a ciência da voz, a cruz de óleo amolece a mordaça de bronze. Uma nuvem de incenso impregnada de salmo te funde o coração ao calor das profecias. Se a urgente madureza frutifi ca silêncio, a imprevista nascença é semente de canto. Desenrolar a pauta instantânea do espaço, e o primeiro balbucio é um acorde tão grave que os arquejos fi nais sucumbem de pasmo. Abres, ó bronze, a badaladas o portal de nuvem, tuas claves libertam vias-lácteas de sons que o oceano imita em contraponto nos balanços. De tua alma alçam vôo gaivotas mediatadas nas torres hirtas de estupor pelo mar. Da badalada emerge o cogumelo gigante, abre sobre a cidade alheiada a umbela protelora que o vento desintegra em farrapos de pluma, ave livre, um instante, da gaiola do instinto. Jorram pela alameda nebulosas sem começo, em que morrem, nascendo, sistemas solares.
Deixai, deixai fl uir esse sangue dos salmos do fl anco aberto do silêncio derramados. Ele é que estende à tarde o manto violeta que alivia as montanhas e as dissolve no mar. Deixai jorrar o sangue outrora coagulado, rasga-se a veia inconsutil do silêncio, corre em gotinhas que a madrugada condensa, corre em golfadas que a maré vem beber.
POEMA PARA O IV DOMINGO DA QUARESMA (Grão que morre)
T
u és a pressentida identidade, em que sou mais eu mesmo no que faço. Serei tu? serás eu? dizer quem háde, pois eu tu nasces, quando tu eu nasço?
Saturar-me do bálsamo que invade o meu possível do teu próprio espaço. És em mim, sou em ti uma saudade, que se transubstancia a cada passo. O’ Personalidade transcendente, que me individualiza e multiplica, em pura intimidade e em doação.
Já és fruto em ti mesma; em mim demente; és madura e inda tenra, pobre e rica, ó minha Identidade, ó eu em grão.
LAMENTAÇÃO DA ONDA
S
em a humilde enseada, que seria do mar, e onde o sossego da onda cambaleante? Vaga fl or sem raízes desfolhada nas margens, veleiro doido que o vento, afi nal, ancorou numa curva enseada.
onda hipertensa em regime de sal, lábios sedentos, na areia soçobados, sugando a linfa inocente às entranhas da terra, em que deixa o
ressaibo das vagas e apazígua o confl ito das ondas, essa angústia de mar sem raízes, presa fácil dos ventos, eterno fascinado das estrelas. Sem a humilde enseada o mar seria o trânsfuga cativo de si mesmo, majestoso deserto, estepe fria, náu sem destino, caravela a esmo, com suas inextricável agonia e a regorgitação de amaro absinto, fl utuando num Gênesis extinto. Rude corpo de terra que balizas a tonteira do pélagos, e ancoras a salsugem de angústias imprecisas... Sem o silencioso abraço das dunas, que seria do oceano com todos os seus lamentos, despetalado malmequer à mão dos ventos, inconseqüente, desarvorada escuna?
O CANIÇO DE OURO Ah! este caniç o de ouro em minhas mãos! — medida de homem ou de anjo? —
décima milion ésima parte do raio de uma estrela extinta ao nascer. Por que solicitar às coisas o seu nome conheci do só dos ventos que o cantara m, bailando ante as portas do nada? medi-as em números-luz, e, rendidas, pousaramme nas mãos com a ignota elegância que um astro adormecido tem nas retinas da infância. Vi-as despetaladas como a onda verde que se
desmancha, quando o mar, criança a gemer de bruços, vem abafar de encontro à areia os seus soluços. Mas, quem conhece sem pavor a face dos seres, sua face de morte, que é de natividad e? Mal a entrevem os no espalho, é para já esquecêla no perfi l fabuloso, no rosto quiméric o que desenha m no mar os pedaços de estrela.
Inumerรกveis noites enrolam o universo e sรณ uma pode iluminar-lhe os traรงos escondidos. Em vรฃo ensopa as nuvens o sangue das auroras, debalde o sol acomete uma copa de folhas douradas: p a l p i t a m t r a n s p a s s a
d a s , p a r a l o g o t r a g รก l o c o m o u m v i n h o
e t é r e o n o c á l i c e d a s s u a s m ó v e i s s o m b r
a s . Mun do chei o de pó e cobe rto de sang ue, ó doce rost o ang ustia do, end urec ido à espe ra! Proc uro o peso ,o núm ero, a med ida,
a proporção antiga e novíssima, desconhecida, que ainda exalam as rosas e as pedras preciosas. Os ricos da plebe buscamte os olhos, quem sabe encontrei, caniço de ouro à mão, no fundo da caverna, onde a lua estende os braços numa carícia eterna, a face adormecida e sempre jovem de Eudimião?
CLAUSTRO DE S. BENTO Doces curvas de pedra e de terra, ó corolas de lírio, cândida fl oração dos severos pilares, céu de névoa embebi da de
luz primogênita, a velar em silêncio as lages tumulares, como um difuso luar adormecidos mares. Nobre arcada remana de pedra e de cal, branca nuvem de incenso há muito coagulada, feita para abrigar a lenta caminhada que roça com tremor teu sacro pedestal. Ó arestas deixadas pelo encontro invisível de círculos bailantes traídos pela argila, fi na crista de vaga a refl uir na enseada, a quebrar-se em profundezas, em côncavos de
ausência, onde se engolfa para sempre a onda tranqüila, das neumas, das passadas e do riso, como um eco encantado na neve e na fosforecência do petrifi cado paraíso.
or ao sol, donde baixa nos muros o sudário de linho sobre os restos mortais em negro sepultado s.
Ó mú ltip lo arc oiris int erp en etr ad o, du m mu nd o tod o bra nc o, ant eri
Nobre herdeiro do átrium da mansão romana, aberto para o céu e as fl ores do compluvium , onde se guarda o lar e a longa tradição, onde se espalha sobre a máscara dos mortos o esbanjament o de ouro que o sol faz ao nascer, o mar de sangue que ele jorra ao
morrer .
dormem a teus pés de pedra, em fi la militar, estendidos na rocha,
Feliz es os que
bem à raiz das árvores cheias de ninhos,
MATÊ, MATÊ bebendo as tuas águas, teu sol, tuas luas, vibrando
aos ventos verticais caídos sobre as ramas.
Ó i n c o n s ci e n te , tr a ç a n d o a b ê n ç ã
o a n ti g a m ã o q u e e s c r e v e, ó t u. C o n s o la d o r a Só fi zeram lutar por esses sete palmos rasgados no penhasco emergido das águas. sobre as coisas que a noite regenera. Foi para essa aderência de ostra, insensível às ressacas, que vogaram,
chorando, no mar da humana mágoa, Livras, num gesto de regente mágico, que beberam, cantando, a esperança dos salmos, a música que ordena, o cando inscrito sob o vôo circular das gaivotas, no escaninho dos seres, a supérfl ua à doce arfagem das marés. seiva imemorial que se transforma Faces pacifi cadas na solene Expectativa; em fruto, sobre os lábios do poeta sob a curva de pedra e a curva do capuz, atento, ó mão, ao teu longíquo aceno. com o imenso oceano dominado a seus pés! D e s p e r t a s o u n i v e r s o p a r a o s o n
h o , รณ d o c e A m i g a , รณ M n e m e , q u e m e a c o r
d a s p a r a o a v e s s o d o m u n d o , e m e r e v e l
a s s u a f a c e s e c r e t a e t r a n s p a r e n t e . E s
p u m a n t e d e e s t r e l a s s o b e a n o i t e , m a r
q u e t r a n s b o r d a d a s l a g u n a s m o r t a s , d o r
m e n t e m a r d o s b a r c o s d e s i l ê n c i o . Tudo se põe à escuta, só a noite fala. E m u
d e c e m f l o r e s t a s c o m s e u s b i c h o s . O o r
á c u l o d a n o i t e , s ó , r e s p o n d e à i n t e r r o
g a ç ã o q u e f a z à a u r o r a o c o m e t a t r a n s l
ú c i d o e m t r a n s e , e v a n e s c e n t e c a b e l e i r a
, a s t r o e m p r o c u r a d a p r รณ p r i a i d e n t i d a
d e a d v i n h a d a n o s i g n o t o s a r q u i v o s d o n
a s c e n t e . T u d o s e p õ e à e s c u t a , s ó a n o
i t e f a l a , “ M a t ê ” , “ M a t ê ” , c o m e t a a p a z i
g u a d o p e l o s d e d o s d e r o s a , a m ã o q u e e
s c r e v e , C o n s o l a d o r a i n c o n s c i e n t e .