Dramaturgia vol. 1

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DRAMATURGIA VOL.

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Esta obra foi financiada pela Prefeitura de Manaus, com recursos do Prêmio Manaus de Conexões Culturais 2017, da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult)

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FRANCIS MADSON

DRAMATURGIA VOL.

SOUFFLÉ

DE

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BODÓ 3


Edições Soufflé de Bodó Coordenação editorial: Francis Madson e Rosiel Mendonça Contato: souffledebodocompany@gmail.com Manaus • Amazonas • Brasil

Copyright © 2019 by Francis Madson

CAPA - Alessandra Pin e Wheligton Filho REVISÃO - Rosiel Mendonça DIAGRAMAÇÃO - Rosiel Mendonça PRODUÇÃO EXECUTIVA - Denis Carvalho e Klindson Cruz

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor.

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) FICHA CATALOGRÁFICA FEITA PELO EDITOR

M178d Madson, Francis, 1985 Dramaturgia / Francis Madson. Vol. 1 - Manaus: Edições Soufflé de Bodó, 2019. ISBN 978-65-901039-0-1 1. Teatro 2. Teatro brasileiro 3. Teatro amazonense I. Título CDD: 792 CDD: B869.2

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Eu desenhei uma cadeira vermelha no teu peito, Rosiel. (ROSTO, 2014)

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Agradecer ao deus Dionísio e aos inúmeros artistas, amigos e colegas de profissão que, ao longo de quase duas décadas, leram, debateram e montaram estas e outras dramaturgias. Aos meus pais, pela destreza de gente simples em criar um ser em tempos tão duros. E, também, à Soufflé de Bodó Company, na figura do irmão Denis Carvalho, por juntos construirmos essa belíssima trajetória no Teatro Amazonense. Ao companheiro “olhos de azeviche” Rosiel Mendonça, que sempre vetoriza todas as ações na qual estou envolvido. Envolvendo-nos! É de fato um grande amor!

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SUMÁRIO Apresentação .................................................................... 11 Borboletas Carnívoras ..................................................... 13 ETC - Estória Tecnicamente Construída ........................ 33 No fundo preto tudo se escreve ...................................... 57 Dedos Tortos ..................................................................... 89 hÉroi ................................................................................ 103 Trajetória das peças ........................................................ 113 Sobre o autor .................................................................. 115

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APRESENTAÇÃO Há sempre uma dobra na dobra. É algo do barroco de Leibniz, que atravessa Deleuze e se inscreve na contemporaneidade no exercício de escrever o próprio tempo. Escrever um livro é dobrar a si, a palavra e a linguagem. São tentativas, na verdade. Cava-se para dentro e para fora ao mesmo tempo, em si, na dinâmica da língua. O que é apresentado aqui com as obras Borboletas Carnívoras, ETC - Estória Tecnicamente Construída, No fundo preto tudo se escreve, Dedos tortos e hÉroi são justamente flashes de tempo-espaço de dramaturgias escritas nos últimos anos. São fonemas, sílabas, palavras, frases e sentidos revelados elipticamente. Há escuridão e saturação de algo, no modo, na forma, na poética. E simplesmente esquecimento. Cada texto desse volume carrega noções de mundos nômades e de dramaturgias: ideia de personagem, de tempo, de categorias e classificações. Ao responder à sua maneira o percurso-convite de cada texto teatral, o leitor poderá perceber o caminho percorrido do menino Francis, filho de Francisca e Antônio, desse autor em busca de escrever – falar – muscular as palavras, macular, bacantiar as palavras. Só é possível escrever com o corpo inteiro cheio de pequenos buracos, onde as palavras só fazem moradas efêmeras, pequenas miragens. É um exercício de retina, de músculo e pensamento. É poético, mas também é uma ética por meio da qual NÓS, trabalhadores do Teatro, devemos dia a dia convidar o mundo a repensar o mundo: a ética-poética. Boa leitura! O autor 11


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Borboletas Carnívoras

(2003)

Duas cabeças, uma voz. O exercício da metalinguagem. Personagens: Siameses Vamos escrever um texto? Ao mesmo tempo em que ele for extremamente sutil em sua essência, deverá nos possibilitar uma reflexão profunda sobre o homem. Eu não quero educar. Já que estamos envolvidos em uma mesma situação, vamos então escrever uma Bíblia? Falácia. Quero estabelecer critérios de conhecimento profundos sobre o ser humano, não superficialidade. Aula, aulinha de linguagem e gênero. Não quero trabalhar com as lamúrias do princípio da humanidade. Quero a cognição primitiva... Complicadíssimo! Tentemos escrever uma comédia de costumes ou talvez uma do tipo pseudo-inteligente de cunho imperialista e com referências estilísticas com um tom de modernidade. Assim fica muito complicado escrever um texto! Temos que ficar calmos, porque a espontaneidade e a criatividade, aliadas à inteligência, nos banharão. Vamos ficar parados que 13


o texto vai sair. Como se escreve um texto com anedotas sobre a criação da Bíblia? Podemos falar disso... Um sonho! Colocaremos dois ou três personagens? Discutindo, invariavelmente, sobre as bravuras e as contracepções de expormos uma ideia, ou seja, romancearemos o ato de escrever! Em dois atos e 23 cenas! Não, não! Preferiria copiar Shakespeare! Transcrição... Assim não chegaremos a lugar nenhum! Precisamos denominar ideias, tópicos e depois dividi-los em ideias-base. Tudo fazendo parte de um todo! Isso é uma estrutura. Comecemos a escrever agora. Pegue papel e caneta. Mas assim cairíamos naquilo anticonceitual. Temos que criar um novo e sublime texto. Ele tem que ter peso e nos possibilitar ir além da interpretação. Você não ajuda muito me alfinetando dessa forma. Nunca fui autor de verdade. Só sei traduzir. Não há verdades aqui. Escreva... Desculpe! Não foi de forma alguma minha intenção, mas se não escrevermos em cima de uma estrutura... o que faremos? Tem que ter binarismo. Enredo, drama, conflito, bolo, forma, comida e circo. Já começamos a escrever a Bíblia citada por nós. Duas consciências de caráter fluído. Vejo maniqueísmo! Somos de natureza binária. Travaremos inúmeras tensões entre o ser 14


humano e o cosmo, Deus e a razão da nossa simulacrização. Oremos! Queres mesmo perder o tempo falando de sutilezas inábeis? Subjetivismo da inabilidade. Gostei disso. É um chavão! Posso até perder nosso tempo com essa ideia, mas como dizer algo pesado, com estrutura esquelética essencial, se não falarmos da tríade? Que tríade? Escolhe você a tríade. Qualquer uma? Sim! Azul, vermelho e amarelo. Não! Chega... Deus, você e o cu de João e Maria São quatro. Tríade! Cu de João e Maria prediz que eles cagavam pelo mesmo buraco cuspidor de gente santa. Isso. Ótima frase para o argumento inicial. Podemos usar o ato de pensar e criar. Gerar inúteis textículos e escrever 15


pequenas frases que juntas darão uma visão global da peça escrita. É o nosso enredo sendo gerado... Podemos deixar pra amanhã, agora tenho que ir! Vou-me. Como é que você vai...? Você mora em mim. Somos ambos moradores de nós. Não! De forma alguma pode me deixar... Nós andamos juntos e juntos ficaremos até terminarmos esse texto. São 13 páginas. Podemos também falar sobre uma poeira defronte a Deus, e sua pequenez impiedosa faz com que Deus se ajoelhe. Deus com uma patela gigante. O que você acha? É uma ideia boa, mas temos que sustentála em outra criando um ar de normalidade! Porque será uma grande situação. Poeira, Deus de joelhos e uma patela gigante. E o que faremos... Será um Tchecov? Comédia grega. Porque Deus pedirá que a poeira escute os seus pecados e começará uma ação picante de sexo, amor, traição, fornicação! Poeira goza. Deus coloca as duas patelas viradas para ele. Vai se sentir atraído pela areia. Loucura! Depois podemos colocá-los em uma cena com duração de um segundo e distribuiremos aos dois atores que 16


farão Deus e a poeira uma bandeira verde. Heresia a bandeira verde. Como? A bandeira! Faz de conta que é de outra cor. Mas a bandeira verde é uma heresia. Retiremos a bandeira, Deus e a poeira. Estamos criando um diálogo. Podemos falar de uma ociosidade macro que é Deus. E falar sobre os anseios que nós temos ao criarmos a ociosidade! Entendeu? Não! Não quero nada diáletico. Eles não entenderão, depois mandarão cartas de repúdio para a sua casa e você não gostará! Tenha cuidado com os críticos. O público nunca é burro. Tão engraçados e sórdidos! Quem? O diálogo! Os homens? O verde? Eu e você? 17


Escreveremos textos por osmose perto dos autores infantis. Todas aquelas abstrações, cores, um ambiente onírico. A versatilidade em criar asneira infantil! Podemos deturpar mais a cabeça da criança. Estou falando de lavagem cerebral. É quase certo que as pessoas que escrevem textos infantis igual àquele que lemos ontem são pessoas mais cruéis. São vendedores de simulacros. O que você pensa? Esqueci. Não quero falar. Vou dormir! É! Faz tempo, hem? Nunca mais comemos um cérebro pensante, não é? Somos proibidos pela ética. Mas tem muita gente que explora a mente. Se for pra comer, que seja literalmente. Neurônio por neurônio. Pedaço por pedaço. Tudo. Não tenho vontade desenvolvimento.

alguma

de

comer

córtex

em

Somos escritores, temos esse direito, não é? Mas mudemos de assunto, porque temos um texto para 18


escrever e ele tem que ser ímpar na ideia e no contexto. Vaidoso. Sulista. Quando começar a escrever sobre o que alguns escritores estão fazendo com a ideia de infantil, me interrompa! Perco muito tempo com essa bobagem. Acabamos caindo em abreviaturas e pensamentos miúdos, sem caráter estético, não é? Muita dialética. Já falei pra você parar de enxertar tanta inteligência no nosso relacionamento criativo. Fica muito cansativo e sem expressão! Precisamos logo ditar estas palavras para juntos criarmos uma peça. Sim! Mas nos falta inspiração, o que falta na maioria dos escritores. Você foi muito pedante; menos, por favor! O que os críticos irão falar sobre nós se ouvirem você desgarrar o seu ego dessa forma? Com toda a certeza irão agarrá-lo sem dó. Irão comê-lo como fazem com muitos outros... para isso é que servem as biografias futuras. Para delinear todas as barbaridades que falamos! Que bom, porque nosso ato de criar é sombrio e frio. Vai que alguns desses críticos nos observam e tentam escrever algo sobre nossa ideia, ou mesmo sobre a nossa vida...

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Vivida ou escondida? Nenhuma das duas, já que nenhuma é real, não é? É tudo meta. Você que afirma isso. E você que vive isso. O que é pior? Aborta! Muita dialética? Vamos brincar de dialética? Não! Muito cansativo e faz tempo que não como nenhum... Trata-se de referência. Idiota! Não! Se não fosse o dialético, o que faríamos? Realmente! Acho que fui muito cretino e ignorante na minha observação! Certo! Mas mesmo você se desculpando não arranjamos nenhuma ideia, não é? O que faremos? Vamos roubar alguma! É digno, todo mundo faz. Não seríamos os primeiros. Podemos fazer um texto de roubo de essência criativa! Basearemos tudo em duas ordens. Criação e recriação.

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Você não se cansa mesmo, não é? Criação e recriação? Tenho certeza que uma das poucas criações humanas que têm verdadeiro apreço pelo desconhecido é tu e eu. E não precisa de muito conhecimento para criar e nem para acreditar. Copiar. Copiei. Realmente. Então temos que ser criação no nosso texto. Assim faremos um ótimo texto e todos poderão apreciar? O que eu acabei de falar? Que não precisa de muito conhecimento para criar e nem para acreditar. Trata-se de fé. É lógico! Nós andamos criando cada coisa! Daqui a pouco criaremos o quê? Vamos perder mais tempo fazendo o quê? E se nós não conseguirmos? Perderemos todas as nossas regalias! Onde eu poderei tomar a minha xícara de chá se não for no chalé, nas montanhas? E outra: onde poderei comer um bom prato de cérebro com arrobas da boa literatura russa? Estamos vulgarmente falando: Fedidos! Fudidos! Que seja! Não é tudo palavrão! Será que dá? Vamos falar sobre a etimologia da cultura do palavrão em sua essência. 21


No seu poder de comunicação de massa. Não é uma ótima ideia? É! Como nós começaríamos? Filho da puta! Filho de uma égua. Escroto. Vai pro diabo que o carregue, mais o quê? Péssimo! De extremo mau gosto, não acredito que fui capaz de criar e tentar escrever algo sobre o palavrão! Acredito que deve existir uma versão mais plausível para o palavrão. Obrigado. Não sei onde estou com a cabeça que não lhe como! Acho que sou um pouco indigesto! Você, indigesto? Você pode estar um pouco saturado emocionalmente, mas indigesto nunca! Sempre tentando me manipular! Eu? Não gosto de me sentir Deus, não! Por alguma razão, nós poderíamos criar uma comédia, gosto mais das comédias do que dos dramas. Você se lembra da última obra de alegoria que nós criamos? Comédia. Sim! Mas não deu muito certo, acho que nós erramos nos atores! E se nós formos os atores? 22


Não te falei que somos autores medíocres? Mas pelo menos não acreditamos na humanidade. Ou jamais seríamos escritores de peças de teatro. Por que se acreditássemos, estaríamos perdidos. Vai que alguém nos chama de medíocres? Nós temos aversão a críticos, não é? Eu tenho aversão a pessoas que escolhem palavras para receber salário. Tenho medo do que ele escreve. Já que sua dimensão e suas palavras são mais lidas do que as nossas! A leitura tem várias ramificações... Por isso ficamos criando escudos! Mas é a nossa razão! Nem tem por que alguém se limitar a fazer comentários sobre o que o outro pensa! Mas então por que escrevemos? Quer que seja um ato de pura natureza egoica? Você foi grosso e instável. Faz quanto tempo que você não acredita, ou mesmo não faz nenhum tipo de comunicação? Seu chato! Falamos de escrever, de ideias, e você vem com piadinhas e comunicação. Não pude resistir! Estamos há quanto tempo sem sequer lambê-lo? Quero dizer que minha fome é colossal, daqui a pouco começo a comer os pés. Isso seria muito indigesto de comer, não é? Mas não temos 23


culpa, já que decidimos escrever para adultos. É nossa comédia! Não sei o porquê deste amor às comedias. Sempre senti um ardor quando você assistia a peças surrealistas. Pelo menos você sabe do que eu gosto, além de comer e me deliciar com um bom pedaço dos seus pés. Mas sabe do que eu gosto mesmo? É de passear pelo rio e me ver caindo correnteza a baixo! Pensamento meio bucólico, não é? Normal! Humano! Século 21. Daqui a pouco todo mundo começa a se comer? Comer é o que rola. É da natureza humana comer o outro. Você só poderá entrar em uma sociedade ou comunidade se deixar a grande maioria te comer! Comer seu sujeito. Comer em qual sentido? Que sentido existe dentro do comer? Literalmente comer? Sim! Meter a vara! Nosso ato de comer é diferenciado, mas eles metem o falo mesmo! Na mulher, a via de acesso é mais natural, já no homem... O que você acha de a gente falar sobre comer um ou outro? 24


Podemos colocar dessa forma: Pense! Já sei, descobri! Colocaremos quatro personagens. Todos discutindo sobre a forma de fazer sexo. Usaremos como base a Bíblia sagrada, é claro. O que você acha? Nessa discussão coloquemos o personagem um como mediador, já que o dois é cheio de pudores! Mas não é culpa do personagem dois. Patriarcado! O três, como é falocrata, ficará se masturbando e tirando fotos do seu pinto! O personagem um! Não o colocaremos como mediador porque ele tem um pau muito avantajado. Acabaria comendo os três. O um será o nosso mediador! Já que falam que ele é um ser divino e sem sexo! Gostei da ideia! Vamos fazer, vamos escrever com muita ironia o vasto campo do comer o outro e suas variações... É óbvio! Quero que você escreva para mim os diálogos da mulher e do anjo e eu do homem e do pederasta. Podemos usar o termo marginais? Tá. Façamos o seguinte: Como mediador da história, o um proclama que estará proibido o come-come no planeta. 25


Certo! O personagem três diz: Eu não posso participar dessa reunião porque meu marido está me esperando para cozinhar! E logo depois ele fará sexo comigo sem se lavar. Veja, senhor ou senhora um! Depois que começar a nossa seita minimalista com bases profundas no sexo e suas variações, está proibida qualquer saída de membro que não seja um pênis das calças! E o três fala: vou gozar! Ele é nossa participação autoral. O quatro fala: apesar de desfrutar de uma natureza polivalente, estou totalmente pelo gozo! Isso! E todos vão ao delírio! O dois fala: tenho que ir! Meu marido está em casa me esperando para cozinhar! Apesar de ser de quatro. Ela está totalmente perpetrada pelo pênis de seu marido idiota, diz o anjo! O dois reverbera: Alguém poderia me dar uma mão? Quero dizer, duas? Imediatamente, o um se dirige e indaga: Por acaso, minha senhora, seu marido é parecido com essa expressão sexual que está se masturbando ao nosso lado? Não, senhor e senhora um! 26


Pederasta indaga: Podemos ver neste ser humano, ou pelo menos no que resta dele, uma pessoa nivelada por baixo e sem dignidade de levantar os olhos e gritar! Mas eu grito, diz ela! Mas não é um grito de prazer, e sim de dor! Mas nem tudo está baseado no sexo! O anjo recrimina o pederasta! Se nesta reunião de nossa seita houver atitudes escusas e total preconceito, eu estou indo! O anjo: apesar de todas as nossas reuniões periódicas, não estamos chegando a nada! O que faremos? O homem, rapidamente: sexo e vocês! Mulher diz: deixa que na hora a gente decide. Anjo diz: vamos fazer nossa oração de viva ao sexo e ao ser humano sexualmente ativo. Obrigado por rezarem por mim, diz o homem. Esse foi o primeiro ato? O que faremos com o segundo e com as 12 cenas restantes? Vamos falar da mesma coisa; é simples, mas cansativo. Não é? Podemos caracterizá-los com roupas de sadomasoquismo! Só não sei se cenicamente uma roupa ficará boa no anjo. 27


Viagem demais, não acha? Será que podemos chamar outro personagem que seja totalmente apático ao sexo? Um assexuado! Ele é de qual planeta? Eu não te disse? Ele é de um mundo paralelo ao nosso, onde tudo é feito via mente, via energia mental. Não é sexual. Discordo! Sexual e mental estão ligados. Como? Ou vai tentar me convencer que eles não estupram um ao outro? É melhor ele não participar. Vai que depena o anjo? Mas seria interessante lidar com estas pessoas no mundo real. Pelo menos eles não são viciados em cérebro... só em sexo! Mas os outros do mundo paralelo são! Da mente! Da energia! Não da matéria! Somos únicos. É mesmo! Vamos deixar como está? Quatro personagens são uma ótima geometria! Não me faça rir, senão vou desconcentrar! Posso pedir uma coisa? Depois que terminarmos eu posso te comer? Não! De forma alguma! Achei seu aparelho encefálico belo! 28


Vai para o mundo paralelo! Vamos voltar a escrever nossa peça! Porra! Você me desconcentrou. Pronto, é isso! Vamos falar sobre a forma e descontrole de não se apegar a algo tão instintivo e primitivo como o sexo. Óbvio! Além disso, podemos concluir com palavrinhas pequenas e vazias. Comentários. Anjo diz: estamos descontrolados sexualmente e não poderemos mais fazer nossas seitas. Então dou por terminadas nossas reuniões. E este livro será queimado! Homem: és um herege que vem dos céus atormentar nossas vidas sexuais? Não entrarei nestes parâmetros, diz o anjo! O homem: não, de forma majoritário, peço anulação!

alguma.

Como

membro

Diz o anjo: meu querido, o único membro majoritário que você conhece é o seu pênis! Mulher: penso que não deveríamos nos atentar a coisas tão pequenas. Nem falar dos membros dos outros. Porque também sou falocrata! Viva a Falocracia! Pederasta: por fim, quero esclarecer que adorei estar aqui! Mesmo sabendo que bases sexuais angelicais, femininas e 29


machistas fazem parte e estão em comum acordo. Então viva o sexo dos anjos e dos humanos! O homem: mas vocês têm a mania de levantar bandeira. Levanta meu membro? Anjo: eu decidi junto com minha amiga que deveríamos fazer uma orgia para finalizar nossas emoções e nossas lamúrias. Ou seja, gozemos um na cara do outro e vamos pra casa! Risos Pronto! Terminamos! Estamos prontos para o ensaio. Será que podemos convidar aquele ator muito bom do Sul? Não! Vamos nos concentrar nas raízes. É isso que os bons escritores fazem. Deveríamos. Mas falando em escritores... Você me deve uma coisa. Posso te comer? Não! Porque deve me comer? Porque estamos ligados por uma força sexual... Escrever não tem nada a ver com sexo, mas sim com respeito! Virou um puritano hipócrita! Gostaria de sentir cada pulso do seu córtex... Cada sentimento de pura criatividade. Uma antropofagia!

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Não! De forma alguma, está ficando louco? Por que haveria de comer meu córtex cerebral? Não tenho sede de comer o seu! Podemos apenas nos entreter. Façamos o seguinte: me deixa lamber sua caixa encefálica! Suspiros. Deixo, mas só uma lambida! Se você me deixar dar duas, uma do lado esquerdo e outro direito, eu te darei a direção da peça! Claro! Mas não precisa me dar a direção. És mais competente do que eu! Você não vai se arrepender!

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ETC­ Estória Tecnicamente Construída

(2004)

Peça didática. Cinco vozes discutem a Idade Média. Personagens: 1, 2, 3, 4, 5 Parte I 1 - Olha a Idade Média chegando! 2 - Mentira! É um urubu rondando a História. 1 - Eles trazem má sorte. Vamos fugir? 3 - De jeito nenhum! Vamos encarar as trevas! 2 - A escuridão? 1 - Sim! Ela está voltando. Rezemos... (Pai Nosso) 5 - Por isso chama-se Idade das Trevas? 33


4 - Não! É florescência do saber! 1 - Está louco? Isso é invenção de historiador. 2 - Estão todos enganados! 3 - Estamos muito palpiteiros! 5 - Será? 2 - Vamos nos dividir? Todos - Vamos! 2, 3 - Seremos a Alta Idade Média! 4, 5 - Seremos a Baixa Idade Média! 1 - Posso ser a Igreja? 2, 3, 4, 5 - Jura distribuir o amor, a paz, e devolver nossas terras? 1 - Juro! 4 - O que vocês têm a oferecer? 2 - Podemos transar com vocês... 3 - Podemos transar com vocês... 5 - Pra quê? 2 - Vamos injetar em vocês o embrião político-cultural e 34


religioso... 1 - Mas com camisinha! 5 - Isso é de comer? 2 - Sem dúvida! 3 - Vamos formar futuros países? 5 - Pra quê? 2 - Para não dar certo, como o império muçulmano? 1 - Não se preocupe, foi um deslize! 3 - E vocês têm o que para oferecer? 4 - Podemos injetar em vocês...? 2 - Vai doer? 3 - Acho melhor não! 4 - Nós vamos devagar... 5 - Podemos injetar o florescer, o renascer? 2 - Acho melhor não! (Grande orgia) 3 - Por que o procedimento?

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2 - Eles produziram a decadência... 4, 5 - Dos Impérios! 2, 3 - Que nojo! 2 - Dos Impérios. 3 - Assassinos...! 5 - Matadores... 3 - Império Bizantino... 4 - Império árabe-muçulmano... 2 - Mentira! 4 - Mentira?! 3 - Especuladores! 4 - Vamos dizer tudo para a nossa mãe...! 2 - Você tem mãe? Nós não temos! 3 - Claro que tem, é a mesma! 1 - Mãe Europa ou mãe Joana D’Arc? 4 - Cadê ela? 2 - Está em transição!

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3 - Transição? 5 - O que é isso? 4 - Sua inteligência. 2 - No espírito. 5 - A Alta Idade Média só tem isso para oferecer? 2 - A Baixa Idade Média só tem isso para oferecer? 4 - Que pena, não vamos dar certo... 2 - Nós delineamos as línguas... 3 - Isso é uma besteira. 5 - Cadê ela? 1 - Cadê ela? 2 - Cadê ela? 3 - Cadê ela? 4 - Cadê ela? 1 - Joana D’Arc ou Europa? 2 - Joana lutando! 3 - Europa agonizando!

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1 - Que dor! 4 - Mesmo assim quando ela voltar vamos dizer que vocês querem nos comer... 5 - Canibais... 2 - Pra quê? 4 - Para ela brigar com vocês! 3 - Ela é mãe, ela não briga... 4 - Vamos falar mal da Alta Idade Média? 2 - Vamos falar mal da Baixa Idade Média? 3 - É muita coisa! 2 - Inúmeras crises. 4 - Capitalistas! 1 - Protesto! Heresia... 3 - Isso mesmo! 4 - A doença do mundo atual. 5 - Seus decadentes! 2 - Vocês morreram... 1 - Acho melhor nós pararmos! 38


2 - Realmente, aconteceram muitos problemas. 3 - Políticos... 4 - Sociais... 2 - Guerras... 5 - ...mais de cem anos... 2 - Estamos no limite... 3 - Podemos explodir... 2 - Também vamos crescer... 5 - E nossa população? 4 - Passará fome? 2 - Com certeza! 3 - E a Igreja? 5 - Vai dominar! 1 - Mentira! 2, 3, 4, 5 - Mentira?! 2 - Você é Joana D’Arc? 1 - Não! Não sou! 39


3 - Sim! É sim! Escutei em um vilarejo sobre sua conduta... má conduta! 1 - Mentira! 4 - Herege... Parte II 1 - Olha a Idade Média chegando! 2 - Mentira! É um urubu rondando a História! 1 - Cadê? É verdade! Nunca pensei que você falasse a verdade! 2 - Falo sempre a verdade. 1 - Não somos donos da verdade... 2 - Mas dentro da minha realidade o que eu falo é verdadeiro! 1 - Vamos brincar de jogo da verdade? 2 - Com certeza! Podemos apostar algo? 1 - O quê? 2 - Pode ser a literatura? 1 - Fora de cogitação! 2 - As obras de arte? 40


1 - Cinco séculos de silêncio! 2 - Não! 1 - Também, você só fala besteira... 2 - Isso é verdade! 1 - Pensei... Vamos apostar a vida de Joana D’Arc! 2 - Joana D’Arc? Quem é essa? Ótima escolha! 1 - Vamos jogar? 2 - Sim... 1 - Sempre gostei de jogar! 2 - Realmente! Sempre me disseram que o jogo da verdade era um jogo de intelectuais... 1 - Shiiiiii...! Silêncio! Essa palavra é proibida! 2 - Quem tem o poder de proibir uma palavra? 1 - Eles... os pensantes! 2 - Proibir uma palavra? Em que mundo estamos? Pensantes?! 1 - Tem outras... 2 - Mas não pode falar? Compreendo... intelectuais! Já passamos do tempo em que tudo era proibido... 41


1 - Normas... 2 - Normas! Não tem vergonha de seguir normas? Quer saber de uma verdade? Isso é uma sistematização do pensar! 1 - Verdade! 2 - Verdade verdadeira! 1 - Mas para pensar existem normas. Não podem ser físicas, mas químicas. 2 - Na verdade somos todos grandes sistematizadores do pensar. 1 - Somos então pensantes? 2 - Quadrúpedes! 1 - O que fará com Joana D’Arc, se ganhar? 2 - Estou pensando! Venderei como escrava para um navio negreiro que estiver indo desbravar as Índias... 1 - Isso é crueldade! Ela é branca! 2 - Ah... Ela é branca? Por fora. Sua alma é negra. Lutadora ... Que pena que somos tão sistematizados! E o que você fará? 1 - Farei uma doação! 2 - Doação?! 1 - Doarei Joana D’Arc à Inquisição... 42


2 - Deixará ela ir para a fogueira? 1 - Sim. Fui aconselhada a vendê-la. 2 - Quem aconselhou? 1 - Não posso falar! Vamos nos concentrar no jogo... 2 - Posso saber da verdade? 1 - Não! Você quer ou não jogar? 2 - Quero... mate a minha curiosidade... 1 - Fui proibida! 2 - Quem a proibiu? 1 - Eles... 2 - Eles quem? 1 - Os... 2 - Por que toda essa insanidade? 1 - Insanidade!? 2 - Fazemos parte do mesmo processo, não podemos crer que nos trairá... 1 - Traição? 2, 4 - Traição? 43


Todos - Traidora! Atearemos fogo em sua cabeça! 1 - Os intelectuais! 2 - Prepotentes! Sórdidos! 1 - Silêncio! Quer ser queimada como Joana D’Arc? 2 - Isso não é conclusivo! 1 - Todo o cérebro racional dos pensantes é conclusivo... 2 - Não dependerá da gente... 1 - O sistema está fazendo conspiração... 1, 2 - Queima... (4x) Parte III 5 - Joana D’Arc! Pelos seus pecados e revolta contra a Igreja... 2 - Morrerá... 1 - Não! Eu não tenho culpa. Fiz o que meu coração pediu... 3 - Bruxa! 4 - Coração não fala... 5 - Demônio... Todos - Vai queimar na fogueira santa... 44


2 - E a Igreja? 3 - Vai dominar! 4 - Governar! 5 - Esconder para matar! 1 - Somos todos seres culturais... 2, 3, 4, 5 - Culturais! 1 - Sou a Igreja! 2 - Não podemos culpá-la! 3 - Reinará para sempre! 5 - Será...? 4 - Acho que não! 2 - Encontrará outra revolução... 3 - O capitalismo? Vence, vence! 5 - Estamos cansados... 3 - Vamos dormir. 1 - Encontrei a luz... achei Deus! 2 - Cadê?

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1 - Aqui... 3 - Vamos matar como os bárbaros! 5 - Degolar como a Igreja! 1 - Vamos guerrear! 2 - Estamos mortos! 3 - Vamos fugir?! 5 - Êxodo... 3 - Rural?... Mentira! 2 - Fraude... 3 - Iremos invadir as cidades? 4 - Vamos passar fome! 1 - Mentira! 2, 3, 4, 5 - Mentira? 2 - Crescimento agrícola... 1 - Garantirá o abastecimento... 3 - 40 milhões de seres! 2 - Humanos!

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3 - Quadrúpedes! 2 - Humanos! 3 - Quadrúpedes! 2 - Humanos! 1 - Que vergonha! 3 - Dos humanos! 2 - A mamãe aguenta tudo isso? 5 - Ela é forte! 2 - Como podemos definir a Alta Idade Média? 5 - Loucura! 4 - Como podemos definir a Baixa Idade Média? 3 - Loucura! 1 - Somos todos loucos! 2 - Falando de nós e dos outros! 3 - Quadrúpedes! 2 - Humanos! 1 - Pelo menos não estamos em guerra...

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5 - Será? 2 - Isso é uma guerra! 1 - Intelectual? 5 - Não fomos tão inteligentes... 2 - Gostamos é de guerra... 3 - Isso mesmo... Guerra! 2 - Bárbaros... 5 - Capitalismo... 2 - Igreja... 5 - Europa... 3 - Monarcas... 2 - Agricultura... 3 - Feudalismo... 2 - Burguesia... 1 - Ódio... 5 - Cidades... 3 - Crescimento...

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2 - Renascer... 4 - Espírito... 1 - Mortes... 5 - Comércio... 3 - Cem anos... 4 - Peste negra... 1 - Apodrecemos... Todos - Etc... 5 - Há cultura? 3 - Medieval... 2 - Igreja 1 - Mandava... 4 - Esculturas... 3 - Literatura... 2 - Vagos! 3 - Não muito! 1 - Estavam preocupados...

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5 - Com as guerras... 1 - Etc... 2, 3, 4, 5 - Etc?! Parte IV Filha – Mãe, por que a senhora separou do papai? Mãe - Não se envolva em assunto de gente grande! F - Mas eu tenho direito. Tudo dando certo e de um dia para o outro a senhora resolve dar as contas do papai... M - Seu pai sempre gostou de inventar estórias. Esse era seu pior defeito. Além de fumar, é claro! F - Mas a senhora não queria que ele inventasse coisas, estórias? M - Pra mim o que ele fez não tem perdão. Onde já se viu o homem inventar uma rachadura na história por mais de anos... F - Qual era o tamanho dessa rachadura? M - Colossal! F - Mas a senhora conhece o papai melhor do que eu... sabe que ele é capaz de tudo, o papai não tem escrúpulos! M - Menina! Isso é coisa que se fale do seu pai?

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F - O papai é historiador. Tem nas veias o sangue gélido dos mentirosos. M - Mentiu pra mim durante muito tempo... onde aquele homem estava com a cabeça quando inventou toda a Idade Média? F - Então todas aquelas histórias da Idade das Trevas são mentira? M - Sim! F - Mas ele sempre contou com muitos detalhes... M - Quem conta algo com muitos detalhes, tem sempre um espírito mentiroso. Isso é regra. É como claro e escuro. F - Ele deve estar fazendo o que agora? M - Imaginando o Renascimento. Depois de romper o cretinismo com a Idade das Trevas, tentará pedir perdão com a Renascença. F - Mas a senhora tentará perdoá-lo? M - Não terei tempo... F - A senhora estará fazendo o quê? M - Estarei apagando as poucas verdades da História. F - A senhora falou que foi tudo invenção, mentira do papai...

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M - Todas as mentiras têm bases verdadeiras. Se não for na mente é no coração. F - Filosofando, mamãe? M - Me fez lembrar de outro assunto que tenho que apagar... F - O quê? M - Meia dúzia de filósofos. Viciados na vaidade da mente humana! F - Sempre odiei filósofos. Lembra do tio... M - Sócrates. Sim! F - Ele tinha a mesma prepotência do papai. M - Pra mim, filósofo e historiador sempre estão lado a lado... como dois cavalos puxando uma carga. F - A senhora foi muito pejorativa, mas tem razão. Será que algum dia iremos parar de criar anedotas históricas? M - Se depender dos historiadores... A maior anedota da História é a criação do mundo! F - Não comece a narrar que começo até a chorar... Realmente é uma grande anedota. Anedota-mor. M - Sem dúvida. Mas essa não foi seu pai quem criou. F - A senhora conhece quem a fez?

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M - Não. Viraram lenda, mito e fé. F - Espero que papai não vire nem lenda, nem mito, nem fé... M - Seu pai não tem poder pra isso. F - Mãe, eu posso voltar a brincar? M - Sim! Parte V 2 - Etc... e tal! 5 - Etc... e guerra! 3 - Etc... e feudalismo! 4 - Etc... e guerra! 2 - Etc... e morte! 1 - Etc... 2 - Etc... 5 - Loucos! 2 – Vocês! 5 - Vocês! 3 - Alta Idade Média!

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4 - Baixa Idade Média! 1 - Vamos rezar? Todos - Vamos! 1 - O que seu merdinha vai ser quando crescer? 2 - Depende muito das circunstâncias? 1 - Depende do quê? 2 - De minha decisão! Não é a mãe que decide cinquenta por cento da educação do seu merdinha? E seu merdinha vai ser o que quando crescer? 1 - Quero que ele seja historiador! 2 - Porque essa escolha? Não é uma das mais sensatas decisões que a humanidade já ouviu! Mas tudo é válido na criação de um merdinha. 1 - Não quero ter problemas, então decido seu futuro antes que nasça. Isso é normal! 2 - Porque o que nós planejamos acaba dando errado. Há de concordar comigo que não é uma das profissões mais privilegiadas. Quero que o meu seja um merdinha de renome? 1 - Sim! Entendo, mas o que é de renome na hierarquia dos merdinhas? 2 - Não faremos comparações triviais. Não quero ostentar 54


essa idiota ideologia. 1 - Com toda a sua petulância, é óbvio que o seu merdinha será o seu reflexo. Somos modelos vivos e expressivos para nossos merdinhas! 2 - Receberei sua inveja como fator natural da sua raça. E apenas comentários ardilosos e sórdidos de uma futura mãe... 1 - De merdinha! 2 - Claro! Mesmo que o meu merdinha esteja intelectualmente acima, ele é apenas um feto saudável. Merdinhas saudáveis! 1 - Mesmo sabendo que seu merdinha terá um futuro melhor do que o meu. Admiro sua eloquência, mesmo que ela seja verborrágica e inútil! 2 - Seria admirável se todas as parideiras tivessem a nossa disposição intelectual... a humanidade estaria a salvo. 1 - Apegada a sonhos? Que atitude arbitrária ao que você decidiu que seu filho terá... 2 - Uma pequena derrapagem. Mas estou bem, minha gravidez não teve problemas físicos! E durante a sua, houve algum problema? 1 - Problemas naturais de dilatação! Mas é normal quando a gente está gerando um merdinha. Temos que viver com esses abdicativos, já que decidimos ser parideiras de merdinhas obsoletos. 55


2 - Sabia que tenho muito medo? Perder meu merdinha de uma hora pra outra! Como ficaria nesta situação? Este sentimento às vezes me assola. 1 - Um merdinha a mais ou a menos... Isso não é decisão nossa. Nosso carma é produzi los e estamos fazendo isso bem há anos. Um historiador a mais, um filósofo a menos, matemática inábil. 2 - Gerar um merdinha é totalmente gracioso. 1 - E seu merdinha vai ser o que quando nascer? 2 - Vai virar gente! 1 - Como a gente? 2 - Não! Seria uma derrota. 1 - Quase uma maldição. 2 - Isso! Uma maldição religiosa, de caráter amador... (Dores, aborto).

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No fundo preto tudo se escreve

(2004)

Quatro personagens de William Shakespeare se encontram num lugar. Personagens: Romeu, Julieta, Hamlet e Lady Macbeth Cena única (Famosa cena de Romeu e Julieta) Romeu - Julieta… Não renegue a energia vital. Acorde para apreciarmos a alvorada e o orvalho ao amanhecer. Sentiremos as gotas orvalhadas das flores… (pausa longa). Desisto! Refarei essa estória. É um absurdo passar a eternidade parafraseando barbaridades sentimentais. Acorde! (aos gritos) Julieta! Dormindo novamente?! Acorde… Não deveria, mas está me cansando com este assunto que tanto me chateia. Onde está meu pai? Só ele poderia me direcionar e equilibrar minha mente que está tão calejada de patologias. Acorde, Julieta. Não acredito que essa demência… (Hamlet entra trajando uma vestimenta clássica) Hamlet - Filho?! 57


Romeu - Pai?! O que está fazendo aqui novamente? Com que tipo de propósito o senhor vem nos visitar?! Hamlet - Novamente, meu filho?! Deveria estar cansado de… Romeu - O que o senhor está fazendo aqui? Não devo acreditar que saiu novamente do seu martírio cênico para ouvir os meus problemas seculares. Acontecerá como sempre, como uma commedia dell’arte, onde todos os personagens estão definidos e sólidos. Reclamarei, reclamarei, mas os corruptores de mentes virão com mil situações e colocarão ao chão minhas lamúrias e terei que refazer a cena novamente. Enfim, senhor meu pai, estou cansado! Há séculos aguento tanto absurdo. Hamlet - Acalma-te, meu filho! Para que abdicar? Reflita! O que poderia acontecer a Julieta caso resolvesse de uma hora para outra afastar-se da história na qual vocês estão envolvidos? Romeu - Ela nunca se preocupou em ser deixada jogada horas a fio no chão de um teatro sujo. Julieta sempre foi relapsa. Hamlet - Depois que inventaram esse tal de domínio público… Romeu - Não venha com diplomacia, senhor meu pai! Depois que caímos em domínio público, qualquer corruptor de mentes fica almejando colher os louros em nossas cansadas omoplatas. Estou exausto, e essa montagem na qual estou envolvido com Julieta é uma das piores que já me deparei… Hamlet - Não seja tão prepotente, meu filho! Tem apenas 58


alguns erros pequenos de maestria… Romeu - Não seja delicado! Aqui foi e será o pior lugar onde já se produziu Romeu e Julieta. Julieta não liga nem um pouco para essa situação desagradável… Hamlet - Sempre a achei uma pessoa estranha, esdrúxula. Meu filho, sempre desaprovei a escolha dessa menina. O mundo das ideias não estava em seus melhores dias. Enfim, ela não está de acordo com nossa postura, muito menos com nossa postura política nos palcos. Romeu - Esdrúxula? É uma lunática que foi escolhida por acaso… Uma pseudoninfeta sem atrativos. Hamlet - Não seja rude, meu filho! Você terá séculos para poder ensiná-la! E ela aprenderá com muita facilidade o que ensinar, porque toda dançarina de rendez-vous aprende rápido o ofício da interpretação. Romeu - Sou muito crítico! Levaria uma eternidade para educá-la. Ela poderia ter sido abortada, pelo menos não causaria tanta vergonha. Dê mais tempo e ela começará a emitir pequenos gromelôs pela garganta. Eu deveria ter escutado a mamãe… Hamlet - Sua mãe é sempre muito preocupada. É difícil não acreditar que ela ainda não saiba dessa sua decisão abrupta. Romeu - Às vezes, mamãe atrapalha. Com aquela forma grosseira e imponente de falar, já atrapalhou inúmeras possibilidades de acordo que comecei. Graças a Deus ela não está aqui. Creio que deva estar na coxia ainda, porque você sabe que toda atriz, para interpretar minha mãe, necessita de 59


horas de concentração. Mamãe é um demônio para ser interpretada. Eu queria mesmo era poder perder a paciência e crucificar todos esses corruptores de mentes. Hamlet - Onde eles estão? Romeu- É difícil acreditar, mas eles só aparecem no final da apresentação! Precisam da ovação final dos aplausos. Hamlet - E sempre vomitando as mesmas frases. E os atores são ovacionados pelos diretores e pela plateia, porque nós somos deixados de lado. Abrem os braços e dizem: “Foram ótimos, parabéns”! Romeu - Sabemos que esses aspirantes jamais nos interpretarão de forma competente! Hamlet - Espero que seu destino não seja deparar-se com esses cretinos! Nós temos um álibi infalível… Romeu - Julieta, acorde! (tom alto) Julieeeta! Estou cansado, escute-me! (Julieta começa a grunhir) Hamlet - O que é isso? Vai chover? Romeu, eu não estava sabendo dessa nova sonoplastia no seu espetáculo. Romeu - Está vendo?! É minha cara-metade. Isso pode varar a madrugada… Hamlet - Acho melhor acordá-la! (gromelôs) O que posso fazer para abrandar seu sofrimento? Posso afastá-la para o outro lado do palco. Posso colocá-la embaixo daquele PC e 60


rezaremos juntos para que ele caia. Romeu - Creio que não adiantará! Não podemos fazer movimentos bruscos. Porque todas as nossas marcações estão definidas por uma partitura definida por nossos corruptores de mente. Hamlet - Não vai adiantar! Teremos que assumir atitudes mais fortes, enérgicas! Pegue lenha e vamos atear fogo nela… Romeu - Pai! O senhor sempre foi famoso pela sua diplomacia? O que está fazendo nos seus tempos vagos? Creio que seu contato com a mamãe não está lhe fazendo nada bem, não é? Acho que o senhor está absorvendo por osmose as nervuras psicóticas da mamãe... Hamlet - Sinceramente? No nosso núcleo de peças dramáticas, nós sempre odiamos a Julieta. O melhor é atear fogo. Sem escrúpulos… Romeu - Não podemos! Como explicaria ao diretor do núcleo das ideias essa barbaridade com tal baixo ser? Hamlet - Eufemismos, meu filho?! Julieta - Romeu? Hamlet - Está acordando! Romeu – Pequenos delírios! Julieta - Romeu, meu amor! Hamlet - Dormindo?! Mesmo dormindo ela não consegue ser 61


criativa. Em que período ela vive, Idade das Trevas? Romeu - Todos os corruptores de mentes pensam que Julieta é refinada. Hamlet - Refinada? Romeu - Só nós dois sabemos de onde ela deriva! Foi bem educada naquele prostíbulo medieval. (Boas gargalhadas) Hamlet - Cuidado, meu filho! Se alguém ouvir essa história...! Vamos garantir o mínimo de reputação a Julieta. Romeu - O meu problema não é com ela, mas com os corruptores de mentes. Aquelas aberrações macabras. Hamlet - Pare, Romeu! Algum dia toda essa energia poderá voltar contra você! E o que aconteceria a Julieta sem sua presença? Romeu - Estou sendo egocêntrico, pérfido! Hamlet - Cautela é a palavra chave! Vai que os poderes dos corruptores de mentes sejam mais fortes? Romeu - Eles não podem fazer nada contra nossa postura! Eles não têm ideia de como se organiza o nosso núcleo cênico. Nós estamos no papel! Preto no branco! Saímos de uma mente geradora. Portanto, fazemos parte de uma história. Hamlet - Você sabe muito bem o que eles poderiam fazer 62


com nossa imagem. Eles são perigosos e articulados, são bons diretores. Os deuses que me perdoem. Romeu - Por isso, eu gosto mais da mamãe, ela não é submissa. Uma mulher de porte soberano, rainha. Hamlet - Isso é diplomacia. Quero ver as represálias que sofrerá e quando os parasitas chegarem... Romeu - Caberá a eles decidir. Ou muda-se a forma, a linha teatral dessa historia, ou me recusarei segui-los. Hamlet - Lembra-se da última reunião que tivemos? Decidimos que não daríamos mais nenhum problema para os atores que estão nos representando ou tentando nos traduzir! Por isso, não devemos ficar disseminando estas energias. Romeu - No desespero, cada usa a força que tem! Hamlet - Deveria ser um pouco cauteloso, pois quando atrapalha um ator em cena, pode estar destruindo um sonho, um ideal. Romeu - Não sou os deuses que ficam realizando sonhos e ideias baratas. Farei o que for necessário, mudarei essa história e essa linha teatral, mesmo que tenha que ficar esperando os corruptores de mentes na coxia. Farei o que for necessário... Hamlet - Sua mãe já atrapalhou tanta gente que, até hoje, é pouco aceita pela sociedade onde vivemos. Romeu - Não estou pedindo permissão a vossa senhoria, 63


porque farei acontecer o que tenho decidido em minha mente. Hamlet - O que você está querendo é muito grave, gravíssimo. Sabe muito bem o que esses corruptores de mentes fazem para aparentar-se intelectualizados. Por isso, seguem certas regras. Romeu – Mas regidas por um criador! Hamlet - Creio que eles não são capazes. Não é melhor perguntar o que a Julieta acha sobre esse assunto? Romeu – Este ato já não habita na consciência dela. Hamlet - Ato?! Romeu - Ato de pensar, meu pai. Há muito tempo essa dádiva deixou de existir nela. Aliás, temos que esperá-la acordar. Não posso simplesmente perguntar... Julieta - O que foi, Romeu? (Dormindo) Romeu - Acordou? Julieta - Romeu, quem está aí contigo? Romeu - O senhor Hamlet veio nos visitar. Julieta - Como estão as coisas, senhor meu sogro? Hamlet - Na medida do possível. Só o ator que está tentando 64


me incorporar é que é a problemática. Julieta - Que pena! Graças aos deuses, nesses séculos só venho sendo interpretada por gente competente. Romeu - Como sempre mentindo. Apenas dançarinas de rendez-vous! Julieta - O que está acontecendo, Romeu? Vejo certa turbulência nas coxias e creio que esteja acontecendo algo no fundo do teatro. São os corruptores de mentes, creio eu! (Em sono profundo) Romeu - Julieta?! Hamlet - Caiu em sono profundo? Será difícil ela voltar agora. Como ficou decidido? Romeu - Como sempre, ela não me ajudou em nada. Julieta é um incômodo cênico. Hamlet - Que ser maravilhoso o nosso criador foi lhe arranjar. (tom irônico) Romeu - Espero que não volte, que entre em sono profundo e entre em coma. Hamlet - Que maldade... Romeu - Quem há pouco tempo propôs que a melhor solução era atear fogo na coitada? O que mamãe falaria sobre isso?

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Hamlet - Sua mãe daria uma bela gargalhada e falaria: “Queima aborto, ideia mal sucedida”. Quando ele nos criou, sabia que passaríamos por essas dificuldades, não foi? Romeu - Se soubesse que seria esse pandemônio, preferiria ter sido abortado, como inúmeras outras ideias são. Deve ser uma provação divina, os deuses que regem o mundo das ideias não me disseram que existiam barreiras tão agressivas neste mundo paralelo. (Entra Lady) Lady - Romeu? Romeu - Mãe?! Lady - Pare já com essas arrobas de existencialismo! Onde já se viu, sendo filho de quem é, ter atitudes retardatárias? A propósito, como tem passado o senhor meu marido? Romeu - Onde a senhorita estava? Lady - Conversando no fundo preto com os corruptores de mentes! Romeu - Quais são os problemas agora? Lady - É que não desejo fazer simbiose com aquela atriz, uma verborrágica jogada às traças. Passando neste tabladinho, acabei ouvindo a conversa e resolvi... Romeu- A senhora não crê que essa linha de introdução cênica onde estou mergulhado está saturada?

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Lady - Você está sendo polido, meu filho! Esses corruptores de mentes estão usando nossas mentes de formas errôneas e, além de tudo, levando inúmeras pessoas para o mesmo caminho. Bobagem hierarquizada, uma verdadeira merda. Hamlet - Eu acho... Lady - Não dei espaço para que você verbalizasse sua opinião, dei? Não! Senhor meu marido, faria um grande favor se ficasse no canto do proscênio, ao lado do ponto. Pessoas como você, sensatas e democráticas, devem sucumbir à mediocridade e ficarem quietas, como todo abastado. Algo a dizer contra, senhor meu marido? Romeu - Desculpe, mas quero que ele participe do jogo teatral que quero fazer. Lady - Posso concordar parcialmente com sua proposta, mas não me venha com jogo teatral. Deixe esse papel para os corruptores de mentes. Eles sim conseguem manipular com maestria o jogo da cena neste tablado. (Julieta em cena) O que a dançarina de prostíbulo está fazendo aqui? Romeu - O que ela estaria fazendo? Estamos ligados incondicionalmente, mas parece que ela está tão abitolada com essa cena final, que acabou caindo em sono profundo. Lady - Sempre esqueço dessa junção absurda que o nosso criador fez, uma lástima! Ainda o encontrarei para termos uma prosa e resolvermos este holocausto. Está explicado, sem problemas! Notei abutres rondando o teatro. É a putrefação da alma dessa mulher! Hamlet - Acho que o momento não é propício e nem 67


oportuno para ficamos com brigas internas entre familiares. Romeu - Tem toda razão, senhor meu pai. Lady - Como se ele pudesse ter ou não ter razão. Faremos o seguinte, para chamar atenção: atearemos fogo na dançarina assim, sem escrúpulos. Romeu - A senhora não acha um pouco desvairada essa conduta? Além disso, foi uma ideia que o papai também teve. Lady - (gargalhada) Está mentido para sua mãe, Romeu? Já lhe disse que odeio mentiras e sordidez. Onde que o Sr. Hamlet teria uma ideia absurda? Não me tome com mentiras! Romeu - A ideia foi dele... Lady - É! (desdenho) Hamlet - Estou ao seu lado. Não fale como se eu não estivesse aqui. Lady - Atearemos fogo na bruxa. Faremos uma fogueira, daquelas medievais. Assim, os corruptores de mentes perceberão que não estamos brincando. Romeu - Posso contar com sua presença, senhora minha mãe? Lady - Apenas uma matriarca faria isto. Seu pai sempre foi um covarde. Julieta - Mentira! 68


Lady - Cale-se, sua dançarina. Julieta - A senhora continua irritante, sem escrúpulos. Lady - Pense bem antes de entrar numa discussão comigo. Romeu - Meninas... Lady - Alguém poderia me dar uma rolha de vinho vagabundo para que eu possa calar a boca dessa dançarina? Julieta - Não perderei meu tempo discutindo com você. Lady - Claro. Tenha a honra de ser inerte, dançarina de rendez-vous. Romeu - Mamãe, menos! Lady - Estou sendo culpada por estar delineando algumas mediocridades desse aborto? Não podemos deixar nosso tablado ser riscado por essa sórdida. Julieta - Não vou perder meu tempo. Enfim, cena para mim. (Volta a dormir) Lady - Não foge! Volte, dançarina barata, covarde... Hamlet - Há necessidade dessa interpretação visceral? Que tipo de atriz está fazendo simbiose com ela? É daquelas que não sustentam nenhum tipo de sentimentos, daquelas que enlouquecem fazendo Lady Macbeth, pensando que é o maior papel feminino da história? Grande bobagem, essas atrizes! Nunca acreditei em incorporação. 69


Lady - Só dessa forma poderemos resolver nossos problemas. Hamlet - Sua mãe tornou Julieta em um problema. Essa história não está começando nada bem. Lady - Eu não tornei ninguém em uma problemática. Estou afirmando que a dançarina sempre foi, e sempre será, um problema. Não posso acreditar que a mente que nos criou, aquele fundo preto, pode também ter criado um ser tão aberrante. Romeu - Concordo plenamente com a senhora. Hamlet - Desta maneira não podemos exigir nada dos corruptores de mentes. Vocês são intolerantes... Lady - Alguém poderia me dizer quem deu razão a você? Romeu - Pelos deuses! Conseguiremos impor nossas regras se não estivermos em harmonia? Não poderemos trilhar dessa forma uma revolução. Quero quebrar este mundo paralelo, onírico e desvendar o que tem no mundo dos corruptores de mentes. Lady - Sinceramente?! Seria de bom grado se seu pai saísse de cena, tome o rumo da coxia, senhor meu marido. Hamlet - Egocêntrica. Senhora minha esposa, você não é dona desse espaço cênico, muito menos desses diálogos ou da sua vida. És um sopro... Romeu - Papai, se eu fosse o senhor não pegaria tão pesado. Hamlet - Não queria guerra?! Haverá guerra! 70


Lady - Em uma coisa eu posso concordar com contigo. Romeu - Até que fim! Hamlet - Sou todo ouvidos! Lady - Espero que não faça ouvido de mercador. Posso não ser dona desse espaço, desse tablado, mas estou nele e é nele que estarei verbalizando minhas lamúrias àquelas aberrações manipuladoras. E outra coisa, se este espaço fosse meu, aquele verme bastardo não estaria atrás de nós. Não faria nem parte do nosso contexto! Hamlet - Eu decido não entrar mais em discussões contigo. Não perderei mais nenhum tempo precioso. Vamos canalizar para podermos fazer a revolução dos espectros do mundo das ideias... Lady - Podemos perder todo nosso tempo, mas não podemos deixar que estes imundos sorrateiros façam da nossa imagem uma desordem cruel. Nós temos a eternidade como horizonte. Hamlet - Belas palavras, mas na boca da pessoa errada, senhora minha mulher! Romeu - Não ficarei mais presenciando esta discussão. Lady - Neste jogo cênico, você seria mais útil se fosse procurar lenha. Vamos queimar a vadia. Como atearemos fogo na dançarina? Não posso fazer tudo, não é? (Saída de Romeu) 71


Hamlet - Autoritarismo impera nas suas veias, não é, senhora minha mulher? Toda mãe que se preze... Deixe pra lá! Lady - Termine! Tenha coragem de concluir os seus objetivos. Hamlet - Isso não me incomodará mais, estou cansado dessa sua forma. Lady - Os deuses foram sensatos quando nos colocaram separados por duas histórias. Hamlet - Você é tão egocêntrica que não consegue ver que não são apenas os corruptores de mentes que nos manipulam, mas existe uma ordem maior de fatores que contribuem para que fiquemos nessa pangea cênica interminável, ao lado da dançarina e aguentando as lamúrias pueris de Romeu. Lady - Não posso acreditar. Do que está falando? Hamlet - Uma mente muito maior que pode nos eliminar sem precedentes ou razão. Lady - Então.... Hamlet - O quê? Lady - Sempre notei aqueles sons! Hamlet - Sons? Lady - Daqueles fortes e hemorrágicos de quando nós fomos gerados. 72


Hamlet - Do que você está falando? Poderia por um momento parar de delirar? (Julieta dá um grande grito) Lady - O que ela tentou nos comunicar com esse grunhido? É uma porca! Matemos o porco, então! Hamlet - O que você tem contra a pobre? Lady - Ela está por trás de tudo isso. Tenho quase certeza que esse verme está montando essa ordinária revolução para proteger aquela atriz nojenta e fedida que a está interpretando. Hamlet - Agora não! (Sofre uma vertigem) Lady - O que foi? Tem alguma coisa que você ainda não me contou... Hamlet - Lady, pare de delirar! Ela é inofensiva. Além de tudo, nós temos que estar preparados para um poder gigantesco que pode nos dizimar em poucos minutos. Os corruptores não são nada ao lado do poder megalomaníaco do ser. Lady - Este diretor deve ser novo. Com certeza é contemporâneo. (Entra Romeu) Romeu - Creio que trouxe lenha suficiente. Podemos 73


começar quando a senhora quiser. Lady - Depois, Romeu! Estou conversando com seu pai, não está vendo? (ao proscênio) Romeu sabe? Hamlet - Ainda não! Mas não sei se deveria contar, é muito jovem para saber. O que você acha? Romeu - O que eu devo saber, meu pai?! É alguma forma de pegar os corruptores de mentes? Estou de prontidão... Lady - É apenas uma relação bipolar meu filho, coisas de casal. Creio que nosso assunto não lhe interessa em nada. Hamlet - Ainda não sei! Estou pensando se Romeu deve ou não saber! Romeu - Vou ficar ouvindo uma conversa paralela? Lady - Creio que deveríamos contar! De qualquer forma, precisará saber. Talvez estejamos lutando com as pessoas erradas. (ao fundo da plateia) Esses corruptores de mentes! Hamlet - Sem sombra de dúvidas. Mas... Lady - Mas o quê? Romeu - O que está acontecendo aqui? Não posso ficar compactuando com isso. Vamos, me digam! Qual é o problema? Lady - Poderia causar um choque nele. Ele ainda é jovem, não tem maturidade cênica e empírica suficientes para lidar com essas adversidades esdrúxulas. 74


Hamlet - Poderíamos causar sérios problemas psicológicos. Lady - O que é isso...? Hamlet - O quê? Lady - Problemas psicológicos? Nunca ouvi falar neste tipo de trauma. Hamlet - Desculpe, minha mulher! É que quando fui representado nos teatros alemães, ouvi falar muito sobre isso, mas nada que pudesse ficar... Lady - Troquemos de assunto! Não posso acreditar que não temos livre-arbítrio! Hamlet - Em nossa condição não temos livre-arbítrio nenhum... Romeu - Não estou entendendo, estou cansando! A senhora vai ou não me ajudar na minha paralisação? Lady - Dentro dessas circunstâncias não posso! Eu não posso fazer com que me percam em algum buraco do córtex cerebral do nosso criador. Romeu - A senhora sempre foi muito decidida, mas agora adquiriu essa atitude...! Não é a senhora que entrou de cabeça nas guerras contra os corruptores de mentes durante 50 anos seguidos? Não estou lhe reconhecendo mais, minha mãe. Quem é você? Se não me ajudar, farei questão de deitar ao lado da dançarina de rendez-vous e dormir o sono tranquilo dos imbecis. 75


Lady - Então, quem são os corruptores de mentes? Eles não existem? Romeu - Não fale uma barbaridade dessas, mamãe! Então, quem nos faz passar por essas situações eternas? Cansei de ser interpretado, não me acostumei a morar fora no nosso criador. Lady - Não posso lhe responder! Romeu - Exijo uma resposta. O que o senhor andou fazendo com a mamãe? Vejo que foi o senhor que alienou minha mãe dessa forma, não é? Hamlet - Não temos poder sobre nada, filho! Vou explicar uma coisa que vai lhe chocar muito. Lady - Acho melhor não contar! Romeu - Deixe ele contar, mamãe! Posso sentir que virão idiotices descabíveis! Lady - Respeite! Deixe-o contar, ouça-o! Hamlet - Bom, meu filho, não podemos culpar os corruptores de mentes... Romeu - Por quê? Que absurdo é esse? Cadê a força visceral da senhora, minha mãe? Como pode deixar a sensatez penetrar seu espírito, meu pai, está louco? Lady - Existe um poder muito maior que nos aprisiona, meu filho! Aprisionou-nos com tanta força que jamais conseguiremos sair dessa situação. Fomos talhados em um 76


tablado forte e sem falhas! Viveremos séculos em cima deles, e o pior: perderemos aos poucos nossa identidade e daqui a 10 séculos deixarei de ser Lady e serei um projeto artesanal do contemporâneo! Morro agora! Romeu - Do que vocês estão falando? Não podemos culpar os corruptores? Hamlet - São apenas peças desse jogo. Um jogo sórdido de enxadristas. Onde todos são dissimulados. Essa força quer nos destruir: o rei, a rainha e o bispo. Romeu - E onde fica Julieta? Lady - Ela é o cavalo. Na escala de cima para baixo. Romeu - Como a senhora pode ser tão cruel numa hora dessas? Lady - Não posso expor meus conhecimentos verticais sobre o poder. Sejamos mais objetivos, vamos queimá-la e pronto! Desculpa, saiu sem eu notar. Romeu - Mas veio com o mesmo tom sórdido e cruel. Dizeme agora que não foi pensando, articulado. Tudo que sai da sua mente é altamente pensado, não é? Hamlet - Concordo plenamente! Tudo que nós pensamos e agimos está amplamente planejando como um balé clássico. Romeu - Estou tonto, meu pai! Explique melhor! Creio que não posso entender coisa alguma sobre o que o senhor e a senhora estão falando.

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Lady - Então cale-se! Hamlet - Sem querer, estamos vivenciando um jogo que não é teatral. Eu, você, minha mulher... Romeu - E Julieta! Lady - Quem? Romeu - Meu carma! Lady - Claro! Esqueci que a dançarina estava em cima do tablado. Por sinal, seria de bom grado que uma bambolina dessas caísse em cima dela e fizesse um estrago sem tamanho. Hamlet - É ele! O dono da força superior que nos manipula. Romeu - Estão os dois loucos varridos. Não posso dar crédito a essas sandices desorientadas sem base. Com que bases estão alegando isso? Hamlet - Não sei, meu filho! Mas se soubesse lhe contaria. Romeu - Meu intuito era apenas chamar atenção daqueles monstros, aqueles que estão sentados ao fundo do teatro, corruptores de mentes. Lady - Estamos há anos cometendo erros agudos. Romeu - Não posso crer que a pessoa que eu achava mais desprendida dessa realidade se pôs a acreditar neste louco. Atearei fogo nela e acabarei com tudo isso...

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(Julieta levanta e dita o empolgante texto, em inglês. Monólogo de Hamlet) Hamlet - O que aconteceu? Por que ela fez todo o meu monólogo? Meu texto não foi feito para ser destratado por essa indecente! Romeu - Não sei o que está acontecendo, mas acabarei com isso agora! Hamlet - É o que ele quer, não faça. Romeu - Me explique uma coisa, meu pai? Se existe um grande manipulador neste espaço, porque faria com que matasse Julieta? Estaria destruindo um dos seus seres, não é verdade? Lady - Realmente! Ele não poderia ir contra. É destrutivo. Não creio que seja idiota ou suficientemente burro. Hamlet - Brincar! Lady - Brincar?! Romeu - Então o passatempo dele é brincar? Ele é uma espécie de Deus? Hamlet - Para provar que nós não somos racionais e que o que lutamos, brincamos e falamos não tem ligação nenhuma com livre-arbítrio. Lady - Isso é crueldade! Não pode existir tal ser! Hamlet - Eu não estou aqui para dissimular nenhum espaço 79


ou jogo dionisíaco, mas creio que sua mãe é a pessoa que ele usa como meio para estar mais perto da gente, Romeu. Ela é um elo entre nosso mundo e o córtex cerebral dele. Enfim, sua mãe... Lady - Não pode ser, não pode me acusar dessa barbaridade! Seria muito mais óbvio se apontasse a dançarina como mediadora desse acontecimento, porque de todos nós ela está mais ligada a ele, em relação ao tempo. Enfim, ela está mais ligada ao córtex cerebral e à energia vital que nos criou do que qualquer um aqui. Percebam que a ideia de Julieta está sendo interpretada por um homem. É uma ideia elisabetana, não é? Meu raciocínio é lógico! Romeu - Mamãe não participa dessa ditadura! Lady - Você passou dos limites! Romeu - E se fosse verdade? Então, o que seria Julieta? Julieta - Hã?! Hamlet - De todos os personagens, creio que ela talvez seja a mais sensata. Ela está num mundo paralelo e nós estamos brigando por algo que não temos a mínima ideia do que seja. Julieta - É! Lady - Como esse verme poderia estar vivendo em um mundo paralelo? Nós, que somos mais articulados, vivemos no mundo paralelo. Enfim, não vejo nada de límpido nesta história absurda de Julieta ser um espectro que vive em outra dimensão!

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Hamlet - O senhor que nos criou acha que ela é inofensiva. Por isso, nós formamos as três peças principais do jogo. Romeu - E como será o fim, já que os corruptores de mentes não têm nada com esses entrelaçamentos de mundos? Lady - Temos uma saída. Hamlet - Acho improvável. Lady - Podemos fazer o seguinte: cada um voltará a sua urna e esperaremos pelo final. Quando esse joguete sórdido acabar, perceberemos quem é mais forte. Hamlet - Ele provará que é mais cruel do que qualquer corruptor de mente ou ator de tablado furado. Ele nunca nos deixará chegar ao final, porque seria uma espécie de fuga, não de realidade, porque o real não existe para ele. Mas o medo dele é que possamos criar nódoas em seu córtex cerebral. Isso de forma alguma é interessante para sua partitura de personagens. Romeu - Por isso ele criou os corruptores de mentes. Eles são fictícios? Hamlet - Em nossa mente, os corruptores são reais e podem nos fazer mal. Mas, na ideia do nosso criador, eles são apenas impulsos elétricos numa rede negra. Lady - Com isso nunca poderemos chegar ao segundo ato. Hamlet - Por isso todos os atores não conseguem demonstrar veracidade nas cenas finais de todos os textos do W.

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Romeu – Lutamos dois séculos nesse país e eles não ouviram nada? Lady - Não ouviram porque eles nem sequer podem nos ver. São todos uns coitados. Sempre achei os corruptores de mentes os piores dos seres, sejam eles reais, irreais ou apenas nós. Porque, sinceramente, eu não estou resguardada por nenhuma dessas duas possibilidades. Nós somos um eterno estranhamento. Enfim, um delírio pulsante e atemporal. Romeu - Pobres são os corruptores de mentes. Hamlet - O que deve ser feito é não demonstrarmos que estamos em harmonia. (Julieta em seu ronco suíno) Lady - Vaca! Romeu - Cautela, mamãe! Como faremos isso? Hamlet - Teremos que ser sensatos e democráticos! Lady - Isso não! Não vai dar certo por inúmeros fatores! Hamlet - Qual é o problema agora, Lady? Lady - É simples! Depois que resolvermos toda esta situação, não quero que a dançarina participe da nossa liberdade! Romeu - Liberdade?! Lady - Não vou ficar jogando com um demônio só para 82


depois ela se satisfazer com a liberdade. Antes que isso aconteça, atearei fogo na cadela. Hamlet - Não há necessidade para tanto, acho que a preocupação não é Julieta! Romeu - Qual seria a função de Julieta neste espaço, já que ela não participa do jogo? Lady - É apenas uma coadjuvante, uma escada, um ponto neutro neste espaço enlouquecido. Não concordo com tal soberania sobre nossas omoplatas, este demônio praticamente engoliu o livre-arbítrio. Hamlet - Há uma coisa mais grave. Todos os nossos atos são pré-moldados, fabricados. Romeu - Impossível! Não posso concordar com isto. Lady - Desisto de tentar entender. Atearei fogo na vadia. Não posso entender se isso que falei é meu, inerente, ou préfabricado (pausa). Vou parar! Posso entrar em crise e, sem escrúpulo nenhum, queimar a vaca. Ok? (em sotaque em inglês) Hamlet - Tive uma ideia! Acho que com essa conseguiremos fugir. Ficaremos imóveis, inertes, pensando em absolutamente nada. Dessa forma, ele não poderá nos manipular completamente. Romeu - Talvez isso possa dar certo. (Todos em silêncio. Ronco de Julieta ou pequeno solilóquio) Lady - Desculpe, Hamme! 83


Hamlet - Lady, você acaba de quebrar o nosso sistema de libertação. Espero que não seja por querer! Romeu - Então é a senhora que ajuda esse ser maligno a nos manipular? Lady - Não, meu filho! Não tive culpa, num instante qualquer saiu um pensamento miúdo, mas saiu! Desculpeme! Senhor meu marido, conheci tantos atores nestes cinco séculos de existência que eles dariam a metade da alma por um pensamento saudável ou mesmo miúdo como o meu. Romeu - Teremos que encontrar outra forma. Hamlet - Outra forma? A qualquer instante ele nos rompe ao meio com inúmeros impulsos de ideias. Ele é um demônio. Faria isso sem pestanejar! Mandaria uma descarga elétrica nas nossas colunas vertebrais que nos faria e ao chão, em choque. (Apêndice de gromelôs) Romeu - Uhhhhhhhg! (grunhidos graves) Lady - Responda, meu filho, qual é o problema?! Hamlet - Ele está sabendo! Já percebeu nossas ideias de rebelião! Romeu - Uuuuuuuuuhg! Lady - Não! É apenas um ataque cardíaco, totalmente passageiro... 84


Hamlet - Não sejamos tão ingênuos! É aquele demônio dizimando nosso filho. O que podemos fazer? Lady - Vamos afastá-lo do palco, talvez fora deste ambiente ele não poderá nos manipular facilmente. Romeu - Uhhhhhhhg! Hamlet - Se tivesse estirpe, seria um cavalheiro e apareceria para lutar pela sua honra. Porque estou para lutar pela vida de meu filho. (Julieta e Romeu começam a fazer os mesmos sons) Lady - O que é isso, uma ópera? Ele jamais lutaria com um verme obsoleto como você, senhor meu marido! Desculpeme! Eu não quis dizer isso! Hamlet - Entendo, arrogância! Não foi... Lady - O que podemos fazer? Romeu - Uhhhhhhhhhg! Hamlet - Vamos empurrá-lo do palco. Talvez lá embaixo, nas poltronas, ele Urrrrggggg... Lady - O que está acontecendo? Não o leve também... Hamlet - Não se preocupe! Antes de ele me levar faremos um Uhhhhg. Já foi o bispo! Lady - Então eu serei a última! Então o jogo Uhhhhhhhhgg!

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Romeu - Não! Lady - Meu filho, está voltando a falar? Senhor meu marido, Romeu voltou Uhhhhhhhg... Hamlet - Uhhhhhhg...! Está sucumbindo! Julieta - Deixe-me! Não tenho nada com esses problemas internos! (Vira-se e dorme) Lady - Não, vaca! Dançarina de Uhhhhhhhg... Hamlet - Como? Romeu - Uhhhhhhgggg. Lady - Dançarina medieval... Hamlet - Cadê? Lady - Ele está brincando com nossas vidas! Romeu - Uhhhhhhgggg. Hamlet - Uhhhhhhgggg. Romeu - Uhhhhhhgggg. Lady - Não posso mais… Uhhhhhhgggg. Romeu - Uhhhhhhgggg.

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Hamlet - Uhhhhhhgggg. (Julieta dita o pequeno fragmento de “ser ou não ser” de “Hamlet”) (Luz em resistência. Cai o pano ou black-out)

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Dedos Tortos

(2005)

É uma história dos dedos convidando o útero para sair. Personagem: Mulher (Apêndice do vocabulário pessoal) - Eu sempre odiei a palavra, principalmente quando ela é vomitada sem apreço nenhum. Eu encontrei muitas pessoas que vomitavam as palavras: mas as piores delas são o padre e o pastor. Estou hoje um protofoucault. Vomitavam o que não podia ecoar em canto nenhum. Quase como uma linguagem podre. Acéfala. Própria do dia de hoje. Há as palavras que nascem para serem usadas por essas pessoas e há outras que as amo que inundam tudo. Assim, de uma só vez. Fala dita por mim no viés - Vem mamãe fazer sexo escondido com papai na cama podre de prestação da cidade de Buritis. Sentir Mãe... Fala dois de mim para ela - Minha mãe, sim, sabia usar as palavras. Uma sílaba doida prematura em boca de gente devota de deuses. Há as pessoas boas que usam as palavras para o bem e existem as pessoas más que usam as palavras pra o mal. Um puro cristianismo tricotado no peito murcho de mãe poli. Fala de nós eu – Mãeeee prepara bodó? Minha mãe sempre dominou as palavras com uma certa maestria, 89


uma sintonia com o surreal que me fazia gelar as entranhas. Eu sempre via o que ela falava, tinha sabor e desejo de vento. Mãe convidadeira demais para lugar de poesia. Ver e ouvir palavras dita por ela, porque só quem domina a palavra convida. Pequei até aprender que palavras cedidas por útero podem ser respondidas, brincadas, delineadas, deixadas... Abandonei por três dias aquilo que machucou – Outra ação. Fala três eu – Pai, vem comigo? Me coloca no cangote? Envergadura de dois anos só pensa voar no colo de pai velhão. Enfim, aprendi que palavra se aprende, pode doer, mas que palavra sem dor não existe, porque o amor das palavras é difícil. Euzinha mínima atrás do sofá. Mãe briguenta diz - Sou a fusão da testosterona e a progesterona em um corpo e mente de Deus! Minha buceta de mim eu Latejo-Penso que estou sendo gerada tão violentamente como um impulso elétrico, que permeando os assombros da consciência pareço emitir uma luz efêmera, e que seu conteúdo não está para dizer nada. O meu nada abraça cada impulso e gera um turbilhão de energia que faz minha cabeça doer, dor que aliena minha alma e fica sendo somatizada ao meu corpo. Porém, energia que lamenta não ter um mecanismo capaz de conduzi-la a algo com verdadeiro apreço, ou razoavelmente tranquilo. Ela é emitida, desorientada e é latejante. Desarticula os meus neurônios e aniquila o estável. Eu confesso à mãe – Para de demagogia. Vai lavar a louça. Última vez que ela falou bobagem de quilo. Palavra... 90


Não acredito que a vida esteja sendo escrita em linhas tortas! Quero saber de quem é mão? Se elas têm dedos? Espero que os dedos não sejam tortos, como os nossos. Não há coisa mais imperfeita do que uma mão bela. Tenho mãos bonitas, mas consigo escrever beleza, feiura, passado e presente. E finitude... Ode às perguntas Aceito somente o imperfeito. Creio que basta de perfeição. A minha mente é cheia de perfeições. Por isso, ando tão calejada de anomalias. Cadê o sonho que deixei escrito aqui? Onde ficou o sentido do amor deixado ali? Meus sentidos estão cheios de nervuras, estão marejados de seiva inodora. Permeia cada milésimo do córtex cerebral e o trapézio também. É uma brincadeira de lugar. O grão que lateja faz metástase-filho e faz rodear cada invólucro que, para mim, guarda centenas de milhares de sentidos ainda a serem desvendados. Chave... Quero uma chave... Alguém pode me fornecer uma chave? Não precisa ter mãos tortas... Eu aceito, no desespero, uma chave... Quero engolir! Alguém com a chave? Há uma chave. Eu sei... Minha cabeça tem ideia dela. Sim! Somos um a cada milésimo de segundo, imaginou quantos somos em um minuto? Quantos “eus” e outros nascem em cada milésimo? Se é que existe tudo isso de sujeito. Em um desses milésimos nascem mundos, e como os mundos: ideias, alegrias, infortúnios, amor, ódio... Cadê os mundos que eu tenho direito? Quero poder ensaiar em um deles, ou pelo menos quero poder explodir um. Como se quebra um átomo. Quero destruir o amor, como se destrói um átomo. Eu quero uma 91


vida hemorrágica, com dor, com vibrações exteriores. Nasci de um pote perfeito, a rainha equilibrava meus arrojos de esquizofrenia com uma geometria que me doía os ouvidos e minha alma almejava um silêncio que apenas a morte poderia me dar. Deu? Não deu! Não deu! Por que daria? É o silêncio onde sofrimento se apoia de forma contínua, e é muito interessante. Não sou masoquista e não sofro de nenhuma dessas patologias urbanoides, mas meu pote era geometricamente cheio de perfeição e equilíbrio. O apêndice do pote Um dia desses, daqueles em que o dia não tem crepúsculo, e não chega e não morre, estava sossegada, mas meus sentidos começaram a desgarrar em uma velocidade sem tamanho. Uma manada me fez um oximoro entre minha consciência e o corpo. Era potência celular clamando o eu. Foi tanta energia que me vi sufocada pelos impulsos. Era como amar pela primeira vez. Naquele instante, nasceu uma vontade de sair daquele maldito pote, queria rasgá-lo por dentro e vê-lo vomitar toda a secura de vida que eu necessitava. Eu estava sendo um seco, como um filho daquilo outro fora. Quando acordava, rigorosamente, às seis da manhã, era preciso compor um ritual, que foi-me imposto quando tinha apenas poucos anos de vida. Era uma grosseria com meu corpo e alma. Ao mesmo tempo em que meu todo me chamava para o histérico, minha mãe me chamava para o geométrico. Era um caminhar matinal pela casa ao redor de 92


tapetes e criados-mudos postos com uma maestria doente que só uma rainha poderia colocar em sua casa. Foi um dos períodos mais estranguladores da minha vida. Não me ensinaram a andar... Ensinou-me a não ter consciência. Isso sim é holocausto de si. Porque ela destruiu todos os meus bons mundos. Não me ensinaram a ter consciência. Eu permeei toda as possíveis nervuras da minha mente, mas não tenho ideia do que é estar em estado de consciência. Eu nunca aprendi a sentar. Minha mãe, quando era pequena, colocava talas de madeira nas minhas pernas para que não pudesse de forma alguma sentar. Porque ela dizia: “Uma pessoa que se sentar perde muito tempo com sua consciência. Não há necessidade nenhuma de sublinhar sua demência, minha filha”. Tenho os joelhos rígidos. Minha mãe... Minha mãe tinha uma placenta enorme e foi dela que nasci. Uma placenta rubra, mas que ao poucos foi morrendo. Arrancar uma placenta. Eu vou arrancá-la com a ponta de uma chave! Quero abrir este mundo com a ponta de uma chave. Eu quero uma chave! Eu tenho ideia dela! Cadê a minha chave? O almoço... Quando era criança, sempre tive medo das horas de almoço, porque o que mais me mantinha inquieta era a possibilidade de estar ao lado de minha mãe. Sempre me perdia em seus olhares, que eram profundos e agridoces. Eles me mantêm perplexa. Olhares que desnudavam irritantes sentimentos 93


que uma pessoa poderia manter. Minha mãe poderia manter um sentimento errôneo com tanta exatidão, uma possibilidade matemática fundida com um sentimento. Padecia em ver aquela íris me mastigar com uma destreza de um animal feroz, sem tamanho. Os sentidos se formavam em mundos paralelos e eram todos apocalípticos. Enfim, ela ao meu lado, nas horas de minhas refeições, me fazia ter um melodrama na alma. Todos em sentidos opostos. Ter: Eu sempre pude ter um quarto perfeitamente arrumado. Tinha cama, mesa de centro, onde escrevia “minhas odes”, os meus infortúnios, e meu tapete, que mais me parecia um grande oceano seco. Por isso guardo, tenho medo do mar! Meu mar secou há muito tempo. Estou mergulhada em sal. Minhas lágrimas são pedras de sal, assim como todo meu sangue. Tenho certeza que não morrerei, porque o sal conservará minha carne, mas minha alma estará elástica em alguns anos. Quando expressei ao meu primeiro amor a idéia de ter uma alma elástica, me matei como uma suicida sem causa. Estou sem fim. Poderia me fornecer meu fim. Chave... Quero a minha chave. Lá dentro está guardado todo o meu fim, que não é a morte, mas estou querendo morrer, sim. Morrer, sim! Mata-me, sem sal. Porque tenho medo que o sal me cegue e eu não possa mais ver quem são os esquizofrênicos que mastigam minha ideia de placenta. Todos querem mudar o ritmo da minha placenta. Como é simples ter uma placenta.

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Como está? Bebe um pouco do líquido. É preciso ter uma pequena chave, assim, naturalmente, poderemos ter um útero e uma placenta onde o fim e o começo não existam. Almoço... Eu tinha 12 segundos de almoço. Tinha que mastigar rigorosamente 40 vezes casa pedaço de alimento. Era uma sinfonia agonizante. Minhas mandíbulas não aguentavam tanta repetição. Tenho dentes frágeis, não me alimentei do leite de minha mãe. Por isso, não podia estar vivendo aquilo. Hei... Cala a boca! Eu mandei calar a boca. Sua voz é demasiadamente ritmada. É insolente. É matemática! Eu não ouço vozes matemáticas. Gosto do arranhado, do esdrúxulo. Não há som mais perfeito do que uma explosão de uma placenta ao nascer de um ovo! Ao nascer de um mostro! A chave... Cadê minha chave... Eu não vou sentar! Não tenho por que sentar. Consciência? Não! Eu não sento há anos. Com dois anos de idade eu não sentava e tinha medo de sentar. MIM tenho feito quatro cirurgias na rótula esquerda e cinco 95


cirurgias na rótula direita. Eu não sento. Porque o ato de sentar, para minha vida, é um sacrifício de consciente sem tamanho. Qual é o sentido de sentar? Nenhum! Sabe por que minha mãe...? Deixa pra lá. Doeu... Grito longo e dolorido. Porque a senhora me pariu da mesma forma que uma vaca. Puxaram-me pela cabeça por um pedaço de aço cirúrgico que roçava em minha cabeça, e eu não tinha consciência daquele acontecimento. Por isso, hoje eu quero o direito de EU me gerar. Eu quero gerar minha consciência e no assopro construir meu subconsciente e você será abortada. Sem pecado e nenhuma dor. Porque você é uma parte de um tudo que naturalmente foi envelhecendo. O único valor que você tem no meu viver é sua placenta e quando eu estiver preparada eu a engolirei e farei minha gestação com a eloquência de um deus. Não seu deus. Mastiga pra mim n’eu? Eu não quero mastigar. Mastiga agora, sem mover um só músculo. Quero expressão matemática na sua cara. Quero mecanicidade. O porquê disto minha mãe? Eu quero uma obstrução na vida. Eu quero uma vida hemorrágica, sem contornos geométricos. É nesse momento que a consciência NOS pega desprevenidas 96


e arranca silenciosamente nossa memória que lateja com fatos contemporâneos que nos faz sentir coagidos e medrosos. O ato de sentar é um pecado. Sabiam? Estão todos sentados. É mais prudente viver de pé. Nós somos um cordão entre terra e céu. A chave... Cadê minha chave? Mãe! Eu não vou deixá-la sair. Já está dito. Não sai! Eu quero seu colo. Sempre gostei do seu colo arredondado de égua! E ela movimentava aquela geometria sem intervalo. E eu não tinha colo e nenhuma chave. Eu queria um molho de chaves onde eu pudesse abrir seu corpo e ao poucos pudesse arrancar dela aquela placenta que me deu tanto prazer na gênese da minha vida. Eu quero um sentido simples e em toques arrancarei sem odor o que é meu por direito. Porque antes de ser filha dela eu sou filha de uma placenta. Que naturalmente é maior do que ela. Têm mulheres que não tem ideia do valor de sua placenta. Nós poderíamos iluminar 100 mil pessoas humildemente com apenas uma placenta! Mãe... Grita pra mim! Grita comigo? Chama-me de filha de uma puta, chama? É simples! Escreve uma ode pra mim cheia de palavrões?! Daquelas que só a senhora sabe fazer, vamos?

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Um dia desses, minha mãe escreveu um livro com sua placenta, era algo de extraordinário, sem comparação, uma odisseia sem monstros. Um pecado aqui, um sonho ali, e ia escrevendo palavras ao vento e fazendo com cada gota de sangue um vocabulário. Um extenso e brilhante retrato da sua vida. Ninguém sabia mais do que minha mãe retratar a vida que levávamos. Ela sabia tanto da nossa vida que eu me perguntava se minha mãe era deus. Sim, deus! Diga-me se uma mulher que pode explodir um espectro pela vulva não pode ser comparada a deus? Ele nos cria com a mente e nossa mãe nos gera com o útero. É simples; engenhoso, mas bem simples! Somos uma natureza morta. E guardamos uma alma latejante por um fio de natureza viva. Enfim, é assim, nós podemos... Cadê? Hei... Você! Eu quero um pouco do seu útero. Quero poder me gerar. Por isso rasguei o útero da minha mãe e a partir de hoje vou me gerar. Farei como um maestro: vou tramar minha partitura e nascerei como uma fênix; assim, naturalmente, estarei me gerando e será por mim mesma. Não é por ninguém que farei isso, não! Vou quebrar o tom do expressivo do parto e farei meu próprio parto em silêncio. Porque só as santas conseguem parir em silêncio. Estou pura como um punhado de sal...

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Começam a sair barulhos e palavras. Abre a gaveta. Sim, mãe, fale! Nos já conversamos sobre isso, minha mãe! Não vou tirá-la daí enquanto não me der seu útero. Não! Já falei, não ficarei mais me humilhando às suas geometrias e patologias. Eu quero seu útero, ou farei um furo nele e roubarei o que é meu por direito. Devolve minha casa. Não quero comer, mãe! Muito menos sentar! Não posso sentar. Lembra-se que não me ensinou a sentar e é por isso que minhas pernas não dobram. Eu quero algum dia poder dobrá-las, mas noto que só conseguirei quando a senhora me der o seu útero. O irmão... Brincamos de sonhos. Quando éramos crianças perguntava para ele sobre sonhos. Ele me dizia que queria ser autodidata. Eu perguntava o porquê dessa escolha. Ele dizia: Quero poder aprender sobre o mundo, sozinho. Só hoje posso notar o poder dessa frase. Nunca nos deixaram sermos autodidatas. Ele sempre foi um irmão, daqueles nojentos e agudos. Todos nós temos irmãos agudos, daqueles que martelam sem tamanho em nossas vidas. Eu fiz com ele o mesmo que fiz com minha mãe. Coloquei-o dentro de uma gaveta. Faz um tempinho que ele não fala comigo. Um dia desses, enfiei um pedaço de ferro na gaveta e ele não me respondeu. Eu fiquei horas empurrando um pedaço de ferro e nada. Consegui uma chave em minha mente. E abri a gaveta. E ele havia morrido. Eu sentei a parte superior do meu corpo e me senti inutilizada. Ele poderia ter vivido apenas uns dias para poder ver o que eu estava 99


tramando para levar minha casa-útero de mamãe. Cadê minha chave...? O que eu poderia fazer para ele, fiz: peguei duas pás de sal e joguei sobre o corpo. Abre a gaveta do criado-mudo. Quero poder mostrar para ele quando eu mesma me gerar. E preciso que seus olhos fiquem brilhantes quando vir meu acontecimento. Todas as placentas escrevem odes com apenas uma gota de sangue! Escreve pra mim, mãe? Deixa que minha palavra eu escrevo sem mãos. Quero mãos perfeitas que possam junto à minha placenta mastigar o verbo sem dor. Eu não quero aqui poetizar minha vida, mas vejo que todos vocês são carentes de poesias e, tranquilamente, são envolvidos pela minha criminalidade. Confesso. Sou um ruído de vocês. Sou uma metáfora daquela senhora que sentou ali. Diferente de vocês, o meu pasto é feito de sal. Por isso, estarei viva. E contarei a seus filhos a medonha avestruz que foram. Chave... Quero uma chave... Alguém pode me fornecer uma chave? Não precisa ter mãos tortas... Eu aceito, no desespero, uma chave... Quero engolir! Alguém com a chave? Há uma chave. Eu sei... Minha cabeça tem ideia dela. Sim! Achei. Quero sua placenta, agora! Quero poder sangrá-la neste 100


instante, vamos! Quero aqui. Quero que você veja, meu irmão. Espero que esteja com seus olhos limpos. Estou no momento de parir. Vou-me parir, sim! Arrasta o pote até no meio do palco. Farei de mim uma nova possibilidade. Eu tenho direito de me gerar, ninguém tem esse direito. Enfim, meu irmão, poderemos brincar de sermos autodidatas. Por que você não teve a coragem que eu tive? Eu estou me gerando. Tenho a escrever. Não sou mais um avestruz. Quero o começo de mim-si.

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hÉroi

(2010)

Falo das crianças inundadas pelo deserto. É – personagem Um Outro – personagem Dois (Um criado-mudo com quatro gavetas. Uma gaveta escrita “Mãe”, outra “Pai”, outra “Irmã” e a última “NÃO ABRA”. Do outro lado da cena, uma pequena escrivaninha com uma cadeira simples e papéis. Uma escada reta ao fundo direito do conjunto fazendo ligação com um segundo piso no ambiente). (Segundo ambiente deverá ser plano e suspenso dando a impressão de flutuar. Um personagem varre desse espaço quantidade suficiente de flocos de isopor para cobrir até os joelhos do personagem na parte inferior. O espaço é varrido com uma vassoura simples e artesanal durante todo o espetáculo). (O personagem desenha no pedaço de papel. Levanta-se com dificuldade para fixar na lateral do criado-mudo. Ele realiza essa ação 5 ou 6 vezes com muita dificuldade, já que suas pernas são imobilizadas por estruturas de aço [órtese]. Ele é deficiente físico. Parece ser frágil, mas tem força necessária para executar essas ações). É – (Fixa o último desenho. Passa pelo criado-mudo. Tenta abrir, mas a coragem não se completa, assim, desiste e, ao tentar voltar para a 103


escrivaninha, cai) – Mãe... Pai... Júlia..?! Alguém pode me ajudar? (Silêncio. Ele se levanta. Senta na escrivaninha e um barulho acontece na parte de cima) – Júlia...? É hora de brincar...? Você trouxe a rã. Eu sou muito destro com as mãos. (Insight) É – Eu poderia ter sido um esportista de esgrima. (Tenta realizar uma pequena manobra descuidada, mas acaba tropeçando perto da escrivaninha e abre a gaveta “NÃO ABRA” – sons onomatopeicos “saem” da gaveta) – (incômodo) – Eu sei mamãe. Você me disse. Com certeza, eu não voltarei a fazer esse pedido a Deus. ChateaÇÃO. Pai...! Júlia... Irmã. Me ajuda. Traga a rã. Vamos dissecar suas pernas para compor as minhas. (Fecha a gaveta com raiva. Um barulho rompe o silêncio abruptamente. Ele indentifica o espaço. Vai até o pé da escada). É – (Olhando para a escada) – Quando é que vou ser igual a vocês, pai? A Júlia sabe voar! Ela mergulha no vento. Ai de mim, mãe. Me ajuda a caminhar, ser igual a você. (Mesa inaugural de cirurgia) - Júlia, por favor, me traga a tesoura sem pontas. A cola em bastão. Uma fita daquelas que cola. Vou fazer a incisão... (Pega dois pedaços de tira de papéis e imagina uma perna longa de rã). Viu, Júlia. São as minhas pernas do futuro. Eu não te falei! São elas, são perfeitas. Longas e alvas. Esperando a única função... Ir para frente. (Ao brincar com as pernas de papel, elas se rasgam e ele revoltado senta e desenha. Cola novamente na lateral da escrivaninha) É – Ter família é tão dolorido, mas nao tê-la é tão árido. (Corre até a gaveta do “NÃO ABRA”). Quantas pernas há em 104


uma centopéia...? Para que servem todas...?! Mãe, fala para mim. Pai... eu quero ter pernas fortes e saber ler de trás para frente com a destreza da Júlia. (tempo) – (de frente para uma porta imaginária) - Eu sempre tenho que ficar em casa. Por que vocês não morrem...? (Brincando com os dedos) – Eu ando com os pés descalços, porque ser de alma evidencia meu presente. (É interrompido por um barrulho no assoalho. Ele curioso tenta subir, mas acaba caindo. Breve pausa, um silêncio. Caem muito flocos de neve). (Abre a gaveta “NÃO ABRA” – sons estridentes e onomatopeicos saem. Apoplético e triste ele fica até cair e chamar por todos) – Estou “morrido”, pai. Me lavanta, mãe...! (Fechando paulatinamente a gaveta) – Eu tenho um desenho especial para hoje. Vou falar das mortes da flores... É assim: Vou usar cores fortes e misturadas para criar essa paisagem. (Um vídeo abrirá no espaço um momento onde serão mostrados vários desenhos de paisagens distorcidas. Começa um desenho com linhas distorcidas e sem harmonia na escrivaninha) – Eu aprendi a desenhar para contar as dores das minhas pernas. (Começa a colar pequenos papéis nas pernas) – Hoje, eu desenho meu futuro, mãe. Eu quero ser assim como vocês. Ter um músculo gritado é meu dejà vu e não vou aceitar morrer logo depois... Eu quero reinventar a nossa história. Quero história do lado de cá, porque aqui é mais colorido. Quero poder limpar essa linha de vida... Não há mais tristeza que eu não possa redesenhar. (Música ao fundo. Pula, mas não consegue, acaba caindo) – Chega... Mãe, pai, Júlia parem de falar isso. Eu quero ir com vocês, não estarei a salvo sozinho aqui. Estar só é malversar a presença do outro, de vocês. Se vocês forem, quem vai cuidar de mim...? Eu não sei ficar sozinho, não aprendi a ser só. (Pega a gaveta e joga no chão. Sons fortes saem da gaveta. Três gravadores em cena. Ele fica olhando os gravadores e não consegue indentificá-los. São, na verdade, 105


a família) – Por que vocês se foram...? É um desenho de vida horrível e cruel. Posso ajudá-los a reafazer, mas teriam que ter me levado. (Pega eles no colo e faz uma espécie de acalanto) – Não precisava me proteger dessa maneira. Eu quero poder ir com vocês. Vamos reformar nossa família! (Recoloca a família dentro da gaveta). (Cemitério de Vozes) É - Me ensina uma vontade de voz? (Recolocando todos os gravadores dentro da gaveta). P – a – i. M – ã – e. Júlia... (risos) – Você é mais fácil em letras... Por que tudo é apenas fonema? FO-NE-MA? É – Pai, venha até aqui. Mãe... Eu inventei outra história. Me ajuda, Júlia. (Sentando em cima da mesa da escrivaninha) – São três seres distintos. É assim que começa a estória: eles têm três pares de pernas enormes. Há apenas um problema. Precisa ter um problema, não é? A Júlia me falou que precisa ter senão fica besteira. Eles tinham problemas no sangue. É, pai, de sangue! Não faltava sangue ou algo parecido. As pernas eram enormes e isso acarretava problemas, eles viviam pouquíssimo tempo, porque o sangue que circulava pelo corpo demorava muito tempo para ir até as pernas. Então, eles não podiam sentar, senão eles morriam. Sentar dá morte na vida deles. Todos dormiam em pé e quem ousasse se sentar, morria no ato. Não, mãe, Espera! Não vai acabar de forma triste... Volta! (Batidas no assoalho do segundo piso) – (silêncio – quebra da narrativa) – Essa maldita lembrança que não me deixa. (Fica no pé da escada, mas não sobe. Começam a cair muitos flocos de neve através da escada e do buraco no espaço superior). 106


É – (fazendo gestos de esgrima) – Eu te mato lembrança de dor. Assim, você só vai ficar com algo do bom da nossa família. Lembrança só tinha que ser bela. Existir já é o todo ruim. (Tirando as pernas de ferro) – (Brincando pelo espaço) – Um Sol. Hoje é um dia de Sol. Vamos andar, pular, gritar e criar poesias concretas ao lado do saco de gordura. Mãe... Pai... Júlia. Corram até aqui. Eu quero mostrar. Eu ando e, daqui a pouco, quando completar 15 anos (tempo de purgação) - Eu quero minha fantasia. (Vai até a escada) – Mãe, cadê minha fantasia...? No lugar de sempre...?! (Silêncio) É – Lembra daquele dia que vocês me propuseram a dor sem fazer nada a respeito? Hoje, com uma liberdade pueril, eu não me deserto desse instante e reanimo minha vontade de fazê-lo, porque assim eu sei que vocês me amarão apenas por estar vivo. Ai de mim, pai, mãe e Júlia. Eu apenas queria poder morrer junto de vocês para poder ser livre. A natureza nos fez assim. Colocar suas esperanças na minha derme e nos meus sonhos como uma formiga com seu peso, mas sem sua força é amor? Por quê...? (Pegando a gaveta “MÃE”) – Sintetiza para mim os sonhos...? (furioso) (Desenhando um caminho com os dedos, com as duas mãos) – Lembra do dia em que a senhora me levou para conhecer os campos áridos onde uma dia se plantou árvores e flores...? Bem, naquele dia, eu tive certeza. Eu vou existir sem vocês, porque sua alma tinha uma relação com a terra que era de morte. Chorei tão silenciosamente que resolvi cair para prestigiar a terra de perto. (Tentando andar sobre a terra. Rindo e alegre. Recoloca sua armadura) 107


É - ... e caindo, eu aprendi a andar e, também, te amei mais... (voltando à escrivaninha para desenhar) É - (Depois de fixar o papel na escrivaninha) – Tornou-se herói do outro e esqueceu-se de si...? E nada falou durante tanto tempo que sua voz perdeu total sentido para um ouvido oco. Ai, meu pai. Te guarde sozinho o som. Me faz pequeno novamente para eu tentar rever minha existência, porque aqui eu não tenho sentido de presença e, talvez, a minha humanidade se desfaça como gelo. Quero, juntos, poder recolocar uma nova areia no ponto de partida dessa história mal cuidada. Por que se cuida da vida, não é? Principalmente, quando se tem UMA. Talvez, seja para deixá-la mais confortável. (Batidas no assoalho) – Se eu não escuto meu pai, por que vou escutá-lo? Esqueça... seus sons não parecem soerguer a verdade dos meus pais. Você é um conjunto vazio. Me deixa, por favor. Está esquecido de si... (Levanta da cadeira. Vai até um espaço do ambiente) – Eu aprendo a andar sozinho, meu pai. Por que nossa família nunca andou junto...? (Tentando andar, mas com muita dificuldade) – Pai...?! (Pegando a gaveta “PAI”) – Como o senhor é quadrado e sua eficiência é de dor, meu pai. Tenho boas lembranças suas, de como fazia sentido tê-lo ao meu lado. Papai, pai, paizinho, paizão. Oh, Héroi torto. Por que não me ensinou a ser hÉroi...? Deixa eu me banhar com sua sabedoria e humanidade de carne queimada de gelo, meu pai. Assim, eu sei, com uma delicadeza de alma que vou aprender a ser héroi, mesmo que nunca possa sê-lo. (Procurando um som) – Júlia... Júlia...?! Você trouxe a nova rã?! Aquela da semana passada se desfez após as minhas 108


andanças. O que faço agora? As pernas de rãs são muito frágeis! Traz... traz. (Segundo espaço inaugural de cirurgia) – Traga as tesouras, a cola e o bisturi. Quero fazer uma incisão perfeita... Essas serão as minhas pernas únicas...? (Brincando dentro da gaveta “IRMÔ). (Barulho dentro do assolho) – Eu estou cansado hoje, minha irmã. O que podemos fazer...? (Brincando com as pernas de rã) – O que é isso...? (Dentro da gaveta tem um roupa de boneco de gelo) – Uma roupa...? Uma fantasia...?! Pai, mãe... (Surpreso, tenta disfarçar. Pega e deixa em cima do criado-mudo. Assustando, não consegue lidar com aquela informação. Volta a desenhar compulsivamente. Olha para o objeto, mas não acredita que é possível. Pega a roupa-fantasia e coloca dentro da gaveta. Volta a desenhar e fixar na lateral do criado-mudo. Volta e pega a roupa. Fica brincando com as pernas de rã feitas de papel. Volta e experimenta a roupa, mas, no descuido, acaba caindo. Vai para perto do pai e da mãe – AS GAVETAS -, manipula os objetos dentro das gavetas – areia e papel -, e volta a sentar. Escuta um barulho no assoalho. Vai até a escada. Olha para o teto e nada vê. Tenta subir, mas não consegue e cai. Olha novamente para a roupa e resolve utilizá-la como objeto qualquer). É – Eu não aceito esmola, minha família. Eu quero ser igual, não quero ser casca de ninguém. (Joga a fantasia fora). (Começa a “chover” mais flocos de isopor. Ele vira o criado-mudo) – Eu não aceito essa esmola. Eu quero ir com vocês. Tenho esse direito e ele, assim como tudo, foi roubado de mim. Que natureza é essa...? Me ajoelha! Mente para mim?! Pai, mãe, Júlia... Minha querida, Júlia. Por que as contas de cada um não são cobradas de forma sagrada...? Eu quero meu destino familiar.

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(Tirando todos os desenhos fixados no criado-mudo) – Cansei. Quero morrer, agora! Eu não aguento essa carestia de vida. Me calo e não falo mais com ninguém. (Rasgando todos os desenhos) – É assim que vou lembrar de vocês, em fragmentos. (Em síncope tenta refazer todo o processo, desenhando todos os pequenos papéis. Sofre com a ideia de perdê-los e os fixa na parte lateral do criado mudo. Uma espécie de enxurrada de papéis sai das gavetas). (Após a enxurrada de papéis, pega a gaveta “IRMÔ e entra em soluços repentinos) – Júlia... Hoje, eu decidi não VIVER o que é decidido a todos que vivem. Quero morrer sentado e derretido como vocês. Assim, sozinho estarei recriando os elos que nos fizeram existir aqui nesse presente tão monocromático. (Uma brincadeira de criança no espaço) - Quando eu crescer, serei o GRANDE herói de todos, porque quero esquecer de mim. Poderei salvar todos de todas as mazelas do mundo. Ninguém morrerá de soluço preso pelas dores escondidas. Quero reaprender as línguas das vidas esquecidas, meu pai. (Invenção de um gromelô. Inventa uma pequena jornada em gromelô) – (Risos) – Mentir é salvar sem medidas os perdidos, nao é? O senhor me ajudou a corromper os perdidos com as palavras. Sou uma criança do presente! (Percebe a roupa. Hesita, mas acaba colocando-a. O corpo dele torna-se forte e viril. Torna-se um hÉroi. Ele mergulha numa vontade louca de subir. Sobe as escadas e nada vê no segundo plano. É dono de si) - Eu sou minha família. Dói. Decido sair desse espaço – não sou uma barata – sou um herói e decidi viver salvando as pessoas de todos os 110


desmandos do mundo. (Gaveta “PAI”, “MÃE” e “JÚLIA”) – Obrigado pela oportunidade milagrosa de ser igual a vocês. Tentarei honrar todas as suas virtudes de gente! (Coloca três cruzes de papel em cima das gavetas. Passa a mão em frente do rosto como se fosse um sinal da cruz – movimentos circulares e se coloca a andar pelo espaço) – O que salvar...? Minhas pernas são fortes. (Coloca-se sob a escrivaninha e a levanta com as duas pernas. Tenta ir até o criado mudo, mas acaba tropeçando e cai rente às três gavetas) – Desculpa, família. Sou de uma perfeição imprecisa. (Levanta-se e se coloca a andar pelo espaço) – Hoje, me coloco para fora na certeza de algo. (Morte crepuscular. O boneco-humano de neve sai do espaço da escrivaninha e fica para fora desse espaço tentando procurar algo para fazer e salvar aparentemente. No entanto, nada acontece. Uma contra-luz forte e em resistência faz ampliar a silhueta. A roupa de Boneco de Neve se desfaz, a impressão é de derretimento. Volta para dentro do espaço e coloca sua órtese–armadura, senta-se e baixa levemente a cabeça na ideia de decepção. Executa todos os movimentos de uma incisão cirúrgica, mas desiste e deixa a cabeça pender para a mesinha). Vídeo da história da família Héroi de Neve (deverá ser uma animação tosca) Uma família completa. Pai, mãe, irmã e o filho. Aparentemente, uma família como qualquer outra. Trabalho de pai, trabalho de mãe, trabalho de irmã, mas uma coisa era diferente. Enquanto os três executavam tarefas distintas, o terceiro era colocado à margem. Os três eram Hérois natos. A família foi se perdendo. Uma vez foi o pai, outra a mãe e só ficaram a irmã Júlia e o irmão. Ele jamais poderia ser hÉroi PORQUE a natureza o escolheu para realizar outros afazeres. Ele e a irmã tornaram-se íntimos, mas como era natural da família, 111


um dia ela saiu de casa e não voltou. Ele passou 45 anos sozinhos, sem crescer, sem ver e sem notar-se. Recebia em casa apenas caixas de terra. Começou a retratar a família em pequenos desenhos e sua ideia de HÉROI - de ser hÉroi – foi crescendo. (Ele se recolhe. Uma música alta e estridente volta a soar pelo espaço. Nada acontece. Nada se move. Apenas um ser descendo a escada, que pega-o e coloca dentro da escrivaninha). (Luz em resistência) – Mãe, arrumei toda a casa. Aparentemente, um fim.

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Trajetória das peças ETC - Estória Tecnicamente Construída Apresentada no Festival Municipal de Teatro de Porto Velho (recebeu prêmios de melhor espetáculo, texto, atriz e direção), no Festival Estadual de Teatro de Rondônia e no Festival de Teatro do Acre. Selecionada para a Mostra Sesc Aldeia Guaporé das Artes (RO). hÉroi Estreou em 2014 em montagem da Soufflé de Bodó Company, com os atores Denis Carvalho, Israel Castro, Richard Harts e Felipe Maya Jatobá no elenco. No mesmo ano, foi selecionada para o 11º Festival de Teatro da Amazônia na categoria infantojuvenil. Em 2017, a Soufflé remontou o espetáculo, desta vez em formato de solo com o ator Denis Carvalho.

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Sobre o autor Francis Madson Ator, diretor, dramaturgo e produtor cultural Natural de Porto Velho (RO), onde iniciou a carreira no teatro, escreve dramaturgias adultas e infantis de comédia e drama desde 2000. Já teve nove textos montados por companhias de Rondônia e do Amazonas. Mora em Manaus desde 2008, cidade em que foi um dos fundadores da Cia. Cacos de Teatro. Em 2013, fundou a Soufflé de Bodó Company, grupo que tem no seu repertório os espetáculos “Casa de Franciscos, quem nasce Antônio é rei”, “Herói”, “O Dragão de Macaparana”, “Curuminzado” (dança), “Vestido Queimado” (teatro de papel) e “Alice Músculo +2”. Também assinou o roteiro e a direção dos curtas-metragens “Jardim de Percevejos”, “No céu da boca cresceu Saturno” e “Banho de cavalo”. Em 2019, atuou como Diretor dos Centros Culturais e Teatros da Secretaria de Estado de Cultura (SEC/AM). É formado em Teatro pela Universidade de Brasília (UnB) e em Dança pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com mestrado em Ciências Humanas também pela UEA.

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Esta obra foi composta em Iowan Old Stl BT pela Soufflé de Bodó

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