DRAMATURGIA VOL.
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Esta obra foi financiada pela Prefeitura de Manaus, com recursos do Prêmio Manaus de Conexões Culturais 2017, da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult)
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FRANCIS MADSON
DRAMATURGIA VOL.
SOUFFLÉ
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DE
BODÓ 3
Edições Soufflé de Bodó Coordenação editorial: Francis Madson e Rosiel Mendonça Contato: souffledebodocompany@gmail.com Manaus • Amazonas • Brasil
Copyright © 2019 by Francis Madson
CAPA - Alessandra Pin e Wheligton Filho REVISÃO - Rosiel Mendonça DIAGRAMAÇÃO - Rosiel Mendonça PRODUÇÃO EXECUTIVA - Denis Carvalho e Klindson Cruz
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor.
CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) FICHA CATALOGRÁFICA FEITA PELO EDITOR
M178d Madson, Francis, 1985 Dramaturgia / Francis Madson. Vol. 2 - Manaus: Edições Soufflé de Bodó, 2019. ISBN 978-65-901039-1-8 1. Teatro 2. Teatro brasileiro 3. Teatro amazonense I. Título CDD: 792 CDD: B869.2
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Eu desenhei uma cadeira vermelha no teu peito, Rosiel. (ROSTO, 2014)
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Agradecer ao deus Dionísio e aos inúmeros artistas, amigos e colegas de profissão que, ao longo de quase duas décadas, leram, debateram e montaram estas e outras dramaturgias. Aos meus pais, pela destreza de gente simples em criar um ser em tempos tão duros. E, também, à Soufflé de Bodó Company, na figura do irmão Denis Carvalho, por juntos construirmos essa belíssima trajetória no Teatro Amazonense. Ao companheiro “olhos de azeviche” Rosiel Mendonça, que sempre vetoriza todas as ações na qual estou envolvido. Envolvendo-nos! É de fato um grande amor!
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SUMÁRIO Apresentação ..................................................................... 11 Queridinhos da mamãe .................................................... 13 M de Magdalena ................................................................ 49 A cáscara ........................................................................... 79 Vende-se! Motivo: falência ............................................... 89 Por que pular degrau se a gente pode voar? ................ 113 Trajetória das peças ........................................................ 163 Sobre o autor .................................................................. 165
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APRESENTAÇÃO Há sempre uma dobra na dobra. É algo do barroco de Leibniz, que atravessa Deleuze e se inscreve na contemporaneidade no exercício de escrever o próprio tempo. Escrever um livro é dobrar a si, a palavra e a linguagem. São tentativas, na verdade. Cava-se para dentro e para fora ao mesmo tempo, em si, na dinâmica da língua. O que é apresentado aqui com as obras Queridinhos da mamãe, M de Magdalena, A cáscara, Vende-se! Motivo: falência e Por que pular degrau se a gente pode voar? são justamente flashes de tempo-espaço de dramaturgias escritas nos últimos anos. São fonemas, sílabas, palavras, frases e sentidos revelados elipticamente. Há escuridão e saturação de algo, no modo, na forma, na poética. E simplesmente esquecimento. Cada texto desse volume carrega noções de mundos nômades e de dramaturgias: ideia de personagem, de tempo, de categorias e classificações. Ao responder à sua maneira o percurso-convite de cada texto teatral, o leitor poderá perceber o caminho percorrido do menino Francis, filho de Francisca e Antônio, desse autor em busca de escrever – falar – muscular as palavras, macular, bacantiar as palavras. Só é possível escrever com o corpo inteiro cheio de pequenos buracos, onde as palavras só fazem moradas efêmeras, pequenas miragens. É um exercício de retina, de músculo e pensamento. É poético, mas também é uma ética por meio da qual NÓS, trabalhadores do Teatro, devemos dia a dia convidar o mundo a repensar o mundo: a ética-poética. Boa leitura! O autor 11
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Queridinhos da mamãe
(2004)
Dois irmãos em uma absurda relação. Cenário: no palco, uma pequena sala, poltrona, criado-mudo, revistas, livros e um tapete. Personagens: Félix e Fernando Prólogo Félix - Tenho 24 anos. Nasci à 0h do dia 24 de novembro de 1980. Portanto, vivo minha vida mais ou menos (pausa). Meu irmão é totalmente diferente de qualquer ser humano. Fernando - Eu nasci no dia 24 de novembro de 1980, a 0h15. Venho vivendo ao máximo, 24 anos de muito prazer (pausa). Meu irmão é totalmente diferente de mim. (Cena aberta. A campainha toca. Félix com telefone nas mãos, como se tivesse acabado de falar) Félix - Espero que não seja a velha do 501, rabugenta atrás do aluguel... Todo mês é a mesma ladainha interminável. Quem é? Fernando - Félix, não vai me convidar para entrar? 13
Félix - Fernandes?! O que faz aqui? Fernando - Não vai me convidar para entrar? Félix - O que te faz acreditar que eu deveria deixá-lo entrar? (Abre) Fernando - Vim passar uns tempos... (joga uma mala no chão) Félix - O que é isso? Fernando - Malas, Félix! Félix, malas! Estão feitas as apresentações. Félix - Mãe... Fernando - Não começa com isso! Sei que a mamãe não mora aqui. Aliás, como ela está? Sabe se ela já parou de tomar aqueles antidepressivos? Félix - Ela vai muito bem. Fernando - Sempre ficava muito tapada depois... Félix - Olha o respeito... Fernando - Deve estar passando bem! Há tempos que não a vejo... Félix - Vai ficar chateada. Fernando - Eu levo um presente e fica tudo bem. 14
Félix - Nunca foi um dos filhos mais presentes. Fernando - Puxa saco! O que está faltando a ela? Félix - A geladeira pifou. Não gela mais. Fernando - Outra! Há dois anos, ela queria um microondas; há um ano, uma banheira de hidromassagem. Sempre achei que mulher sonha em ter uma banheira. É porque frequentou muito motel no passado. Ou será no presente? Já perguntou pra mamãe da vida sexual dela? Félix - Isso é pergunta que se faça à mamãe?! Fernando - Ela sempre perguntou com que tipo de mulher estávamos transando. Félix - Não se preocupe que vou dar a ela a melhor geladeira. Fernando - Daquelas que tem refrigerador e congelador separados? Félix - É... Fernando - Sempre sonhou com essa geladeira, mãe mimando filho é normal, mas filho mimando mãe! Para com isso, está gastando à toa. Depois do acidente do papai ela começou a ganhar uma grande pensão. Félix - Por que veio aqui em casa? Foi pra lembrar a morte do papai? Fernando - Não pode me culpar da morte dele. Ele morreu de forma trágica, mas foi patético. Foi triste, mas é patético. 15
Quem hoje em dia morre atropelado por um carrinho de churros? Félix - Mas foi tua culpa. Fernando - Me culpar é natural do seu caráter. Félix - Um idiota como você não pode... Fernando - Perceba que é um chato. Félix - O que está fazendo aqui? Tá parecendo Carnaval fora de época, vem a cada dois meses com as mesmas coisas... Está torrando o meu saco. Fernando - Posso me sentar? Félix - Não pode! Vai ficar por pouco tempo. Fernando - Quem determina o tempo sou eu. Félix - Claro que não. Mãe... A casa é minha. Fernando - Se eu resolver ficar terei que me acostumar com as suas chatices. Félix - E eu com a sua personalidade cavalar. Fernando - Vai deixar eu ficar ou não? Félix - Não! Fernando - Por quê?
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Félix - Por quê?! Como se eu tivesse a obrigação de acolhêlo. Pouco me importa se sua bunda vai ou não vai congelar na rua. Fernando - Pode ficar certo. Se eu não ficar aqui essa semana, mamãe vai ficar sabendo. Félix - Uma semana? Fernando - Levará uma semana até que eu resolva meus problemas. Félix - Quer que eu acredite que um espermatozoide defeituoso como você tem problemas? Fernando - Como se você fosse a única pessoa neste mundo com frustrações, dores e medos. Félix - Palmas! Por um erro biológico você nasceu. Agora está atravessando os problemas e os valores humanos. Fernando - Minha cabeça mudou... Félix - Espero que ela não esteja inchada como a cabeça do seu pênis. Fernando - Meu irmão intelectual falando palavrão. Félix - Tenho uma lista: vagabundo, pervertido, ordinário, demente, cretino, blasfêmia da sociedade organizada. Fernando - Elogios. Anda muito estressado. Há quanto tempo não transa ou ainda anda se masturbando pelos cantos com revistinhas? 17
Félix - Como se estas idiotices fossem me abalar. Foi-se o tempo. Fernando - Nós crescemos. Proponho que isso seja deixado de lado. Isso que todos os bons irmãos fazem. Félix - Mamãe pôs no mundo dois seres, o anjo e o diabo. Fernando - Sempre disse à mamãe que você precisava mesmo é de um bom psicólogo. Félix - Não me faça vomitar no seu rosto. Eu e você sabemos de quem a mamãe gostava mais. Fernando - Lógico! O puxa saco! Sempre espalhando para todos essa cara de CDF de subúrbio. Por isso ela fazia tudo por você. Félix - Mamãe nunca foi injusta! Sempre dividia o tempo. Que pena que era sempre engraçada comigo. Fernando - Não sabe da verdade, mamãe tinha medo que você no futuro bem próximo se tornasse um adulto fracassado e cheio de neuroses megalomaníacas. Félix - Uma coisa que a mamãe errou foi na tua educação. Penso que ela foi muito mais presente na minha, isso fica pelas barbaridades que você fala. Acho que deve ir antes... Fernando - Antes de quê? Sabe muito bem que todas as vezes que venho a essa cidade vou logo lhe dando um conselho: mude-se dela com a maior rapidez. Um homem de 24 anos marcado por um futuro brilhante não deveria morar numa espelunca minimalista como essa... 18
Félix - Minimalista? Por acaso virou político? Espero que não. Seria constrangedor tê-lo na nossa família. A mamãe é traumatizada com esse tipo de ser humano. Fernando - Pretensões políticas? Não seja ordinário, não tenho talento para mentir sobriamente. Nem sou ator que propaga a mentira de forma serena. Félix - Até que para um hippie fugitivo, você está filosofando bem. Acredito que não tenha sido abduzido por um óvni ou fumado uma boa erva boliviana. Fernando - Faz meia hora que cheguei. Já fui associado a várias enfermidades, mas agora foi o limite. Cansei de eufemismos baratos de colegial. Vou embora. Félix - Quer água? Fernando - Como? Félix - Deixe de jogo! Pare com essa psicologia reversa se fazendo de coitado! Isso não fica bom nos nossos diálogos. Fernando - Chama isso de diálogo? Quero ver quando vamos nos socar. Espero que tenha feito malhação. Da última vez acabei com suas obturações. Félix - Acabou me dando um belo prejuízo. Mas fique certo que se tentar me socar, meus 30 reais foram muito bem empregados. Fernando - Em quê? Félix - Em um taco de beisebol profissional. Se você tentar 19
me agredir, farei teus dois caninos caírem no meu tapete. Ouse. E verá. Fernando - Pode trazer a água? Félix - Não tenho água! Fernando - Tinha acabado de me oferecer um copo. Félix - Se quiser o copo trago sem problemas. Pode ser suco? Fernando - Traz então o suco. Félix - Não tem! Fernando - Está brincando? Acabou de dizer que tem! Félix - Só tem em pó; se não tem água, suco muito menos. Água, pó, suco. Fernando - Não me trate como demente. Félix - O que você disse, caro Watson? Fernando - Sabe que sempre odiei que me comparasse a esse personagem. Félix - Chama a mamãe para ouvi-la dizer: seu irmão tem razão! Fernando - Meu punho só não vai de encontro ao seu rosto porque não quero sentir nas costas a força de um taco de beisebol. Tem muita sorte de não ter trazido o meu canivete.
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Félix - Isso é uma ameaça velada. Sabia que é pecado e crime matar irmão?! Fernando - Velas serão o que vou acender no seu funeral. Duvido muito que o Ibama fará alguma coisa contra mim. Félix - Conversar contigo me dá sede. Preciso de água. Fernando - Havia me dito que não tinha água. Félix - E você acreditou! Fernando - Meu deus! Poderia ser só eu. Porque dois... O senhor deveria estar... Claro! Precisa do rascunho para construir a obra de arte. Félix - Por que me empurrou quando estava distraído? Fernando - Por que você tentou me matar no sexto mês. Félix - Quem manda tentar me enforcar dentro do bendito útero de nossa mãe?! Fernando - Porque eu errei o soco na sua coluna vertebral no sétimo mês. Félix - Devia ter colocado meu pinto na tua boca. Vai que você tivesse gostado, estaria fazendo isso com seus amigos moderninhos. Fernando - Devia tê-lo matado antes de entrar no óvulo. Félix - Esqueci de empurrá-lo naquela punheta no banheiro público. Foi um verdadeiro genocídio, nunca vou me 21
esquecer. Nem Hitler matou tanta gente inocente. Fernando - Por que não trouxe um gravador? Esses devaneios dariam um ótimo livro. Félix - Claro! Que não será escrito por você. Fernando - Por que não? Félix - Você antagonista!
nem
sabe
diferenciar
protagonista
de
Fernando - Suas atitudes são de um verdadeiro antagonista nesse teatrinho! Félix - Antagonista! O que te faz pensar que é o protagonista? Fernando - Realmente! Precisa ter cara de bundão para ser protagonista. Félix - Bundão! Cada um usa a máscara que tem. Cuidado, espero que o teu nariz não fique... você sabe onde. Fernando - (Pega um livro) O que você está lendo? Félix - Nesse livro tem um bundão?! Fernando - Como assim? Félix - Bento. Fernando - Machado de Assis. Dom Casmurro.
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Félix - Todo mundo sabe que Capitu traiu ele. Fernando - Até hoje nunca foi provado. Félix - Quem conta a história é Capitu. Como toda mulher, é mentirosa! Quer prova maior que essa? Fernando - Vamos ver até onde isso vai dar?! Félix - Parou de transar com aquela biscate que andava se jogando pra cima de você? Como e o nome dela mesmo? Fernando - Carla. Félix - Isso mesmo. Onde ela anda? Fernando - Me traiu! Félix - Outra Capitu. Então isso faz de você um bundão! Fernando - Não perde a oportunidade de fazer trocadilhos com minha promiscuidade! Félix - Que palavra bonita para definir sua galinhagem. Se alguém chegar a contar a mamãe dessa sua vida... Fernando - Acha que ela iria acreditar? Sou seu filho predileto. Acima de qualquer suspeita! Que mania doentia de me rebaixar. Mas entendo. Já vem de tempos. Félix - Pra mim você é tão baixo, rasteiro, que deveria deixálo morar debaixo do meu tapete.
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Fernando - O que faz pensar que vou me juntar a você? Félix - Não vou ligar para mamãe. Porque se eu ligar, vou criar esperanças na coitada. Fernando - Deixa que eu ligo. Félix - Para envenená-la e inventar historinhas é com você mesmo. Liga! Vai chorar na barra da saia da mamãe. Fernando - Vou fazer você chorar! Félix - Beisebol... Fernando - Golpe baixo! Félix - Se der mais um passo, eu te estouro. Fernando - Posso me sentar? Estou cansado. Félix - Senta! Mas não mexa em nada. Se eu o vir mexendo em algo, já sabe... beisebol. Fernando - Ainda não me perguntou o que estou fazendo aqui! Félix - Isso é problema seu... Fernando - Não sei por que toquei nesse assunto. Félix - Também não! Espero que não seja para forçar uma aproximação. Fernando - Forçar aproximação! Você é um demônio. Não 24
nascerá outro. Félix - Se eu sou demônio, você também é. Nós somos gêmeos! Temos o mesmo código de barra. Fernando - Humilha! Hum! lha! Garanta a sua superioridade. Félix - Pouco me importa. Fernando - Não ficarei aqui sendo humilhado dessa forma opressora. Félix - Opressor? Fernando - Claro! Sempre notei uma tendência sádica desde quando era criança. Félix - Para! Agora ultrapassou qualquer normalidade. Eu, sádico? Nunca gostei de bater! Fernando - Dá de vez em quando, uns tapinhas é normal. Agora ter debaixo da cama uma sex shop... Félix - Mãe... Quem permitiu entrar em minha privacidade? Fique certo que foi a única vez que mexeu nas minhas coisas. Fernando - Poderia ter falado que aqueles brinquedos eram emprestados! Claro que não acreditaria. Félix - Como estivesse estampado no meu rosto, “sádico”. Já no seu... Idiota, bêbado sem perspectiva alguma de futuro. Fernando - Começou novamente?
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Félix - Você quem pediu. Fernando - Eu? Félix - Então fui eu? Foi? Fernando - Claro! Eu sou convidado. Félix - Convidado?! Fernando - Visita. Félix - Invasor! Fernando - Invasor? Quem me dera! Félix - Um membro do MST. Que sai invadindo qualquer buraco e diz que tem direito. Fernando - Qualquer buraco. Félix - Muita audácia! Comparar meu lar com os puteiros que frequenta. Por acaso tenho cara de bêbado ordinário? Fernando - Tem algo pra beber? Félix - Quer jantar? Fernando - Posso ficar? Félix - Nem pensar! Fernando - Mas fui convidado para jantar.
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Félix - Caridade! Faria isso com qualquer pessoa! De qualquer forma, nós estamos ligados. Fernando - Alguma forma? Estamos totalmente ligados! Félix - Pensa que vejo algo de prazeroso nisso?! Fernando - Seu CDF babaca, comedor de coxinha... Félix - Beisebol... Fernando - Vamos ter o quê mesmo pra comer? Félix - Ainda estou decidindo! Vou comprar lã na esquina. Fernando - Eu espero! Posso usar o telefone? Félix - Público! Fernando - Não vou abusar. Félix - Tá bom! Será um minuto, contado! A partir de agora. (Quando a pessoa atende, Félix desliga) Fernando - Por que fez isso? Ela atendeu... Félix - Mas já havia passado o tempo. Fernando - Mas ela atendeu... Félix - Como sabe que é mulher? Fernando - Foi uma ficante. 27
Félix - Poderia ser o pai dela! Fernando - É, daí eu falaria com ele. Félix - Falando com o pai da pessoa que está transando. Fernando - Era o que me faltava, meu irmão se metendo na minha vida sexual. Félix - Só achei engraçado que meu irmão esteja seguindo regras. É de espantar. Fernando - Você não é o único ser humano que tem consciência. Félix - Consciência! Está cansado de quê mesmo? Fernando - Dessas situações que você está criando! Félix - Chama a mamãe. Fernando - Duvido que isso estaria acontecendo. Félix - Se ela estivesse aqui. Nós estaríamos na cozinha e você no banheiro se masturbando. Fernando - Ah! Ah! Não vem com essa, não! Sabemos muito bem que é ao contrario. Félix - Irônica essa cena! Eu cozinhando contigo e a mamãe se masturbando no banheiro. Fernando - Não sei o que Deus te reserva. Seria muito bom se ela estivesse aqui. 28
Félix - Está falando isso porque ela está bem distante, duvido que se ela estivesse ao seu lado, você estaria falando isso! Nem o papai aguentou. Fernando - Ele morreu... E daí? Félix - Foi suicídio! Fernando - Precisa ficar espalhando? Abre a janela e grita para os quatro ventos! Félix - Não ouse abrir a janela. Fernando - Não faria essa maldade. Mas seria bom se ela estivesse aqui. Félix - Quem? Fernando - Ela. Félix - A janela! Está aqui. Fernando - De quem estamos falando? Félix - Da janela. Fernando - Quem perderia tempo falando de janela? Félix - Preciso pintar a janela. Fernando - Você está me ouvindo? Félix - Que cor? 29
Fernando - Verde. Félix - Não! Muito natureza, acho que azul petróleo. Fernando - Não, creme! Félix - Azul. Fernando - Pra mim tanto faz, a casa é tua mesmo. Félix - Cadê a mamãe? Fernando - Que mania de trocar de assunto. Félix - Estava te testando. Fernando - Testes e mais testes! Pensa que sou um rato de laboratório, que pode me testar sem escrúpulos? Félix - Que pena! Fernando - Vou quebrar a tua cara! Félix - Beisebol... Fernando - Filho da... Félix - Mãe... Fernandes está falando palavrão. Fernando - Me fez lembrar da infância! Félix - Por um momento me senti feliz. É estranho ser feliz. Como é bobo ser feliz.
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Fernando - Bonito isso. Onde você leu? Félix - Não sei. Acabei de criar. Fernando - Você é um gênio. Félix - Não tem nada de genial nessas idiotices. Fernando - Você é muito grande pra essa cidade. Félix - Deus foi muito sensato ao colocar você em uma cidade e eu em outra. Fernando - Cale-se, senão procuro o taco de beisebol e estouro sua cabeça. Félix - Se tentar me matar eu chamo a mamãe. Mãe... Fernando - Como se ela fosse te ouvir. Félix - Mãe sente! É isso que elas dizem. Fernando - Eu acredito nelas. Félix - Tem que acreditar. Fernando - Você é muito descrente. Félix - Eu acabei de falar que acredito! Fernando - Acredita em quê? Félix - No que acabou de dizer, que é preciso acreditar?
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Félix - Em quê? Fernando - Do que nós estamos falando? Qual assunto? Félix - Mamãe. Fernando - Mamãe. Por que precisamos falar de uma pessoa que está tão longe? Félix - Foi você quem começou. Fernando - Desculpe! Talvez isso volte a acontecer. Não se janta nesta casa? Félix - Na verdade, você veio dormir, comer, tomar ou falar da mamãe? Fernando - Eu vim ver você! Félix - Já viu, pode sair! Fernando - Posso usar o banheiro? Félix - Pra quê? Fernando - Vou urinar! Félix - Mas você não bebeu água. Fernando - Posso usar? Félix - Não pense em usar drogas lá dentro. Sabe muito bem que odeio qualquer tipo de drogas. Da última vez, a fumaça do cigarro impregnou no meu box que demorei dias tirando a 32
sujeira. Fernando - Parei de usar há anos. Félix - Faz um ano que você esteve aqui. Fernando - Na verdade, faz três meses! Estou tentando parar. Félix - Vou riscar drogado da minha lista. Fernando - Não dá mesmo para ter uma conversa contigo. Félix - Quero que em 10 minutos deixe minha casa. Fernando - Não vai me deixar ficar? Félix - Não! Fernando - Por quê? Félix - Quem decide quem fica sou eu. E não vou convidá-lo a ficar. Fernando - Durante alguns dias. Félix - Sinceramente! Espero que não venha pedir dinheiro. Porque já estou com compromisso com a mamãe. Fernando - Eu vim marcar a data do meu casamento, naquela igreja onde nós crescemos! Félix - Quem é a infeliz? Fernando - Não vai ficar feliz? 33
Félix - Estou sentindo pena dessa pobre mulher. Fernando - (Você) vai? Félix - Aonde? Fernando - Ao meu casamento. Félix - Que casamento? Fernando - Acabei de falar que vou casar! Félix - Essa piada é muito sem graça. Está usando drogas! Fernando - Vou casar! Casamento... Félix - A mamãe já foi avisada sobre essa loucura? Fernando - Não. Félix - Bastaria um telefonema. Perguntou os dados pessoais dela? Porque a mamãe vai querer saber. Aliás, em que orgia a encontrou? Fernando - Imbecil! Só estou aqui para avisá-lo. Félix - Já avisou, pode ir! Quer que eu te acompanhe até a porta para garantir a sua segurança? Fernando - Vai ao meu casamento? Félix - Não vou perder o meu tempo. Odeio o cheiro de crisântemos que enfeitam a igreja. 34
Fernando - Quero que seja meu padrinho. Félix - Por que essa escolha? Eu não te suporto, tenho certeza que mamãe não vai gostar dela! Fernando - Como você sabe?! Nunca quis saber do que a mamãe gosta! Muito menos do que gosto. Félix - Lição de moral! Não combina com sua estética. Vamos lá! Já terminou? Agora tenho que ir! Fernando - Vai aonde? Félix - Tua mulher é louca. Fernando - Aonde? Félix - Não vai ficar para o jantar? Vou comprar a comida! Fernando - Posso ligar para mamãe? Félix - Pra quê? Está tentando matá-la? Faz o seguinte: casa! Depois diz que começou a transar. Porque até hoje ela pensa que somos virgens!!! Fernando - Está brincando? Félix - Ela cai dura se for avisada assim de uma hora para outra. Ela está velha. Qualquer impacto ela morre. Fernando - Ela ainda crê que nós somos virgens. Deus! Cadê aquela história que mãe sente tudo? Félix - Balela. 35
Fernando - Eu sempre soube... Félix - O quê? Fernando - Lembra que ela dizia que sentia, sempre? Quando você ou eu me machucava. Félix - Foi boa nossa infância! Fernando - Que idiotice! Vamos ou não vamos comprar comida? Félix - Vamos?! Fernando - Então vamos! Félix - Alguma preferência? Fernando - Qualquer coisa serve! Félix - Se quiser, pode moer o meu taco de beisebol... Fernando - Se não tentar me acertar! Félix - Estou indo e te espero lá fora. Fernando - Vou usar por um momento o banheiro. Posso usar? Félix - Lembre-se de não fumar dentro do meu banheiro!!! Fernando - Deixe comigo. (Ele sai. Toca o telefone) 36
Fernando - Sim! Sou eu! Também senti saudades! Mãe, queria lhe falar algo! Claro que ele vai lhe dar a geladeira. Certo! Gelo seco. Mãe, vou casar... Mãe! (Tu-tu-tu) (Félix sai de cena e volta logo depois que Fernando atende o telefone) Félix - Esqueci a carteira! Tantos contratempos. Olha que você só ficará um dia. Imagine se fossem dias, semanas ou até mesmo um mês... Seria a própria morte. Fernando - Você aceitou o fato que vou me casar? Não me pareceu muito alegre com a ideia! Félix - Por que haveria de ficar? Não entendo o seu suicídio. Fernando - Suicídio? Félix - Casamento! Vai me dizer que acredita que o casamento é fruto doce no século XXI? É pura imbecilidade. Sua decisão... Fernando - Mas me apaixonei! Félix - Igual às paixões fugazes do seu passado? Que perda de tempo. Fernando - Quero entender até onde isso é normal. Vim aqui lhe avisar porque tive muitas saudades. Félix - Sim! É importante. Terminou? Agora vou comprar sua alimentação para logo depois você ir embora. 37
Fernando - Você tem algum apreço por mim, por meu casamento? Até mesmo pela mamãe? Félix - Dessa tríade? Apenas a mamãe. Tenho um amor indecifrável por ela. Félix - Mas foi ela que nos gerou! Estamos ligados de uma forma ou de outra! Félix - Nada é perfeito. De vez em quando alguém dá uma escorregada. Fernando - E você está dando uma agora, jogando-me porta a fora, meu irmão! Félix - Como é cansativo conversar com contigo. Você veio, falou, falou! Disse que vai casar, casar! Não tenho nada com isso, cada pessoa com seus devaneios. Aliás, que devaneio bobo. Fernando - Vai me dizer que não bateu uma gota de alegria em você? Félix - Se pintou, ela secou. Estou brincando, é claro que sim! Mas tenho pena da vida que levará a partir de agora. Problemas e mais problemas. Por acaso ela já sabe que você é meio drogado? Fernando - Meio drogado? Félix - Certo, totalmente drogado! Ou ela curte uma de vez em quando antes do sexo? Fernando - Sim! 38
Félix - Isso é um problema. Até ontem, as mulheres inventavam que estavam com dores de cabeça. Agora, já estão fumando maconha... Que evolução! Fernando - Tenha mais respeito por minha mulher. Ela não será motivo de piadinhas sarcásticas de sua mente maliciosa. Félix - Muito bonito como você se referiu ela. Minha mulher! Fernando - Como? Félix - Minha mulher! Você não a está comprando. Ela não é um pedaço de terra onde você pode fincar uma bandeira e dizer que é sua. Babaquice machista. Fernando - Eu? Pelo amor de Deus. Não perco tempo com bobagem. Sabe muito bem a postura que tenho com este tipo de gente. Félix - Não é o que seu passado diz. Não venha se fazer de santo, não! Você sempre foi um machista doente. Lembra do dia em que você terminou, mas antes deu uma bela surra na sua namorada de colegial? Uma verdadeira expressão de machismo, com atitudes machistas... Fernando - Pode até ser. Mas eu mudei. Deixei de ser aquele machista demente. Félix - O que a maconha não faz com a cabeça da pessoa. Acho que ela fragmentou a parte que sustentava o seu machismo. Que pena. Meios insólitos. Fernando - Agora você viajou... 39
Félix - Tirou de você um defeito e injetou essas doenças que são as gírias. Fernando - Vai ficar agora tirando onda com minha cara, meu irmão? Félix - Viajou, onda. Que contexto. Não posso acreditar que alguém queira se casar com você. Estando tão marginalizando é uma afronta ao bom costume. Sujo, hippie... Fernando - Não fale da minha postura política. Uma nova forma de encarar a vida, o mundo. Félix - Não sei como isso adentrou sua mente. Nem nessa época dos descamisados nós nascemos. E postura política é dose! Fernando - Que saco! Félix - Vai agora ficar falando palavrão na minha casa? Fernando - Mas você fica criticando a minha postura de encarar a vida! Félix - Nós nascemos um pouco depois. Não tem como entender essa vida de hoje. Pessoas que jamais participariam, absorvem essa postura! Coitados, engolidos pelo capitalismo. Fernando - Como você muda de assunto com tanta naturalidade. Até há pouco estávamos conversando sobre o meu casamento, minha vida, quero dizer, ex-vida de dependente químico. Por acaso você sofre de algum grau de 40
esquizofrenia? Félix - Estou apenas fazendo um comentário. Aliás, quem vai pagar o casamento do hippie e a participante de sodomia? Vocês são assíduos no canil municipal? Fernando - Baixou o nível, meu caro irmão? Nunca pensei que iria ouvir um absurdo desses! Sexo com animais? Félix - Por que acho que a pessoa tem que ser bem animal pra querer ter algum tipo de relacionamento com você. Um animal irracional. Fernando - Está falando de minha pessoa ou dos seus alunos de colegial? Félix - Pelo menos eles sabem ler. Fernando - Que evolução. Félix - Agora baixou o ser sarcástico neste ambiente. Fernando - Não! Este papel eu deixo para você. Por falar em sua pessoa, em que parte que você vai comprar a nossa alimentação? Félix - Vai ficar pondo banca? Fernando - Banca? Estou apenas fazendo uma pergunta que você, se não fosse estúpido e grosseiro, me responderia sem maiores excessos. Félix - Posso até passar dos limites, mas é normal ao meu caráter. 41
Fernando - Tudo bem, Félix! Você passa, às vezes, do limite. Vai criticar mais o que em mim? Félix - Acabei perdendo a minha lista. Mas que ótimo que tenho uma memória fenomenal. Quanto você vai precisar pra realizar esta desastrosa empreitada? Fernando - Como? Félix - Quanto vai custar essa afronta à nossa mãe? Fernando - De forma alguma vim pedir seu dinheiro suado. Félix - Que pena. Estava disposto a fazer esta caridade. Estava pensando em alugar até um bosque... Com passarinhos cantando ao fundo. Fernando - Que pena que essa visão bucólica que você está idealizando do meu casamento está totalmente fora de minha realidade. Vamos nos casar naquela igreja onde fizemos a primeira comunhão. Lembra? Félix - Não! Naquele centro de captação de recursos? Fernando - Dez por cento! Félix - É o que sobra. O tanto que nossa família já deu de dízimo para aquela igreja... Eles deveriam oferecer a igreja, o casamento, a viagem de lua de mel, tudo... Fernando - Que piadinha mais sem graça. Félix - Se for lá eu não vou. 42
Fernando - Então não vá! Mas espere para ouvir pelo resto de sua medíocre vida a mamãe ao pé do seu ouvido perguntando: por que, meu filho, você não foi ao casamento do seu irmão? Félix - Digo que tenho alergia a vela. Fernando - Mentira! Félix - A poeira? Fernando - Mentira! Félix - À falta de caráter cristão. Não é uma ótima justificativa? Ainda defino por ordem eclesiástica a alergia. Da mais suave à mais perigosa. Fernando - Meu irmão, você é doente! Félix - Doente é a sua atitude de querer casar! Fernando - Pelo menos tive coragem de ter algum relacionamento, não é? Félix - Pronto! Era o que bastava para acabar com meu dia. Vai agora dar uma dono de verdade? Isso não combina de forma alguma com sua estética suja. Fernando - Precisa ser almofadinha para fazer as indagações certas? Um absurdo. Félix - Absurdo? É o que você fala. Pelo menos um pouco de nível. Não custa nada a ninguém...
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Fernando - O que eu tinha que fazer aqui eu já fiz, pronto! Estou indo embora. Félix - Vai dormir na rua? Como um cachorro abandonado? Fernando - Qualquer ambiente é melhor do que essa arapuca que é a sua casa. Félix - Vá! E não tente mais aparecer, vir aqui! Sua presença é cansativa. Fernando - Com toda a certeza. Félix - Vai precisar de quanto para se casar? Fernando - Como? Esse assunto novamente? Que mania chata de ficar rondando. Basicamente um círculo vicioso... Félix - Nossa posição! Que hipocrisia. Nós, irmãos gêmeos, estamos automaticamente ligados a um círculo vicioso. É normal. Fernando - Certo! Somos doentes, agora? Félix - Eu por ser chato e você por ser instável. Fernando - Que mania de ficar me rebaixando, tem algum prazer? Félix - Depois sou eu que fico me apegando a círculos viciosos. É melhor nós não ficarmos ostentando toda essa baixaria minimalista! Estamos parecendo ativistas culturais provincianos.
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Fernando - Outra comparação! Félix - Desculpe! Agora foi longe demais. Tenho que ficar pedindo perdão pelas minhas asneiras? Não é normal do meu caráter. Fernando - Mas sim de raiva. Félix - Raiva? Fernando - Sim! É notável como a notícia do meu casamento o atingiu. Só falta você começar a enlouquecer. Como enlouqueceu quando a mamãe disse que estava namorando, não é? Félix - Ele era cafetão. Nossa mãe já passou da idade de ser gerenciada por um cafetão. Por esses vermes capitalistazinhos! Fernando - Concordaria com qualquer coisa que fizesse a mamãe feliz, novamente! Félix - Então por que você está se casando? Por acaso pensa que ela ficaria feliz ao saber de tamanha canastrice, essa apologia ao casamento? Fernando - Mas quem tem que ser feliz sou eu. Félix - Mas baseado na tristeza de nossa mãe? Que tipo de filho Deus pôs no mundo: drogado, hippie, doente por sexo com animais. Que variantes... Fernando - Não sei como ainda não quebrei a sua cara. Falta de vontade que não é! 45
Félix - Por acaso aguentaria um taco de beisebol no meio da cara? Olhe que coragem é o que não me falta! Fernando - Então venha e faça o serviço. Tenha coragem, se satisfaça! Sádico e masoquista infeliz. Félix - Quer saber de uma coisa? Eu já me vou, porque não ficarei vomitando barbaridades com sua pessoa. Fernando - Vai fugir? Como sempre fez durante toda a sua vida? Félix - Qualquer lugar é melhor do que estar dividindo o mesmo ambiente com sua mediocridade. Fernando - De mediocridade estamos no mesmo patamar, não é? Félix - Pode até ser, mas pelo menos tenho um pouco de caráter humano dentro de mim. Fernando - Que seja! Megalomania intelectual. Chatice ordinária, você por você! Félix - Quero quebrar a sua cara. Fernando - Vai comprar nossa comida que é bem melhor. Discutir de barriga vazia não é bom. Félix - Já falei que esqueci minha carteira e não sei aonde ela está. Fernando - Vamos fazer o seguinte: eu te empresto o dinheiro, depois você me paga. Certo? 46
Félix - E não era você que tinha todos os motivos para pedir dinheiro de mim? Um deles é seu ignóbil casamento, não é? Fernando - Não perderei tempo falando sobre isso, quer o dinheiro ou não? Félix - Me empresta, depois eu pago. Fernando - Você vai ao meu casamento? Félix - Vou pensar! Posso dar a resposta depois que voltar do restaurante com nossa alimentação? Fernando - Sem problemas! Félix - Estou indo e vê o que você fará da sua vida. Depois nós conversaremos. Fernando - Traga o troco. Félix - Não se preocupe. Aliás, atenda o telefone que a mamãe vai me ligar para saber da compra da geladeira. Fernando - Sim, não se preocupe! Félix - Falou! Fernando - Com gírias agora? Félix - Cada pessoa lidando com suas adversidades. Estou indo, depois nos falamos. Fernando - Tchau! 47
(Trin-trin-trin) Félix - Deve ser a mamãe. Fale com ela. Diz que está tudo certo com a sua geladeira. (Atendendo o telefone) Fernando - Oi, mãe! Não é? Engano? Sim, sem problemas!
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M de Magdalena
(2005)
O amor concreto de Jesus por Maria Madalena. Louca duas pausas e meia verdadeira dois osso furado com furadeira devassidão devir deleuziano em ópera anjo três tempo de mão de osso sobre corpo de evangelho inventado Gabrielou-se fudendovezesfudendo dois gerúndios e um xis orgia de olho caído morte de madeira encerada com pasta de abelha rei crucificação/ mente/ manipulação/ demência/ covardia/ Jesus/ amor/ recíproco/ odeio/ dor/ mente/ humor/ deus/ sexo/ asas/ puídos/ Pedro/ traição/ esquizofrenia/ atemporal/ destino/ excitação/ loucura/ alucinógeno/ pedra/ Maria / José/ espírito/ anomalia/ tortura/ beijos/ predestinação/ maquiavélico/ onipresente/ deus/ traídos/ sexo/ pudor/ dogmas/ caratê/ medo/ fluidez/ FIM/ retrocesso de útero. Personagens: Madalena, Jesus, Maria, José e anjo Gabriel Cena Um Maria e José - Jesus. Jesus. Jesus. Jesus... Maria – É da pior forma que me trai, Madalena? Madalena - Eu? Por que me tomas, Maria? Acaso tenho feito algo que não concordas? Diga-me, que farei o impossível 49
para mostrar que estás errada! Maria – Não é comigo, e sim com o filho de Deus! Jesus... Madalena – Vamos tocar novamente nesse assunto? Não cansas de ser manipulada? Maria – Por que esses excessos? Falo o que penso e o que o pai dele me ilumina. Madalena – Pedro! Maria – Pedro? Mas que blasfêmia! Como ousa falar do mais digno homem de Jesus, filho de Deus? Madalena – Não vamos nos apegar a insanidades. Sabemos muito bem o que Pedro pensa sobre minha postura com Jesus. É óbvio que pensaria que ele é o causador de tanta sordidez. Maria – Palavras fortes ditas a um irmão? Madalena – Estou cansada de tanta politicagem. Como não falaria dos absurdos que vêm acontecendo? E meu coração vem a cada dia sendo esmagado por tanta manipulação. Não só dele. Mas de todos. Falo de conspiração. Maria - Fala do pai de Jesus? José - Não deem ouvidos a uma prostituta, que só porque foi salva do fogo do inferno, vem querer nos mostrar algo que não existe. Como Pedro disse: És uma mulher de mil faces. Madalena – Palavras certas, mas na pessoa errada. Onde está 50
Pedro que nessa hora foge como um carneiro sujo? Maria – Não posso entender de onde nasceu tanta inimizade... Madalena – Ciúmes! Pedro tem medo que eu possa me tornar a principal discípula de Jesus! Maria – Mas você é? Madalena – Não é o que Deus quer! Ele quer que sua pureza se espalhe por todas as terras, de Norte a Sul, por todos os desertos. Jamais deixaria que Jesus se mostrasse interessado em ensinar o que sabe a uma mulher suja. Maria – Mas você é também filha de Deus, não com os mesmos moldes, mas é filha de Deus! Madalena - Sou uma pecadora! Maria – Jesus decidiu que não é, e não será mais... Madalena – Ele decidiu, não fui eu! Ele se atreveu a me ajudar sem perdir a minha permissão. Maria – Mas você iria morrer apedrejada como um animal bastardo. Madalena – Que me deixasse morrer e secar como uma cobra velha! José - Mal agradecida. Como ousa se tornar uma traidora dentro da própria casa do filho de Deus?
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Madalena – Não serei a primeira! José – Do que falas? Está juntando devotos a sua errônea causa? Maria – Que causa? José - Não percebeu que Madalena ama Jesus? Maria – Madalena, não! Isso, não! Está louca, desvairada? Moléstia humana! Por acaso o diabo perpetrou sua alma insolente? Madalena – Como soube, verme sanguessuga? Não dei motivos para que desconfiasse do meu segredo. Maria - Me trai, dentro de minha casa? Dentro do lar que acolhe o filho de Deus? Madalena – Não tenho culpa! Maria – Tem sim! Por que não guardara esse sentimento medíocre e imundo para si? Algum motivo em especial? Não ouse tirar o meu filho do seu caminho sagrado, senão lhe matarei! José – Não se preocupe, pois ela não terá forças contra a mão de Deus! Madalena – Não posso estar acima do poder de Deus, mas tenho o sentimento mais sublime de todos. Aquele que fez com que Jesus nascesse. Aquele que Jesus teve ao me salvar! Maria – Não fale o que não é verdadeiro. Ninguém nunca a 52
amou e nunca vai amar. Não este amor que pensa que existe entre você e Jesus... José – És uma pecadora e merece ser expulsa do nosso ambiente. Madalena – Expulsariam a mulher que lhes deu apoio quando mais vocês precisaram? José – Apoio de uma cobra invejosa e apaixonada? Maria – Tenho que expulsá-la de minha casa ou você sairá sem que eu tenha que me levantar do meu canto? José – Eu a amaldiçoo por toda a eternidade! Madalena – Não me julguem! Amaldiçoados estão vocês por situações que virão pelo vento soprado dos céus. Mas haverão de me pedir desculpas... E eu não as aceitarei! Cena dois (Maria e Jesus) Maria – Você me amaria, Jesus? Jesus – Por que me faz esta pergunta? Amo-te porque és filha de Deus e eu, como seu filho, a amarei. Maria – Não, este amor é pequeno demais! Não está dentro da minha dimensão de amor. Jesus – Achas que seu amor é maior que o de Deus, do meu pai? 53
Maria – O amor indestrutível!
de
uma
mulher
é
incomparável,
Jesus – Não sei até onde esse amor é verdadeiro. Madalena – Como não há de saber? Você me entende como ninguém neste mundo, como ninguém jamais me entendeu. Sinto seu ideal ao longe. Sinto seu sonho a distância da memória. Abraçaria cada nervo do seu corpo, como uma mãe abraça e acalenta seu filho! Jesus – Me beija! Madalena – Como esperei ouvir essas palavras. Sonhei dias e dias! Tenho a sensação que vou voar! (Eles se beijam) Maria – Madalena, acorde... Isso é pura alucinação! José – Ela está ficando esquizofrênica! Esperar que Jesus a beijasse... (risos) Maria – Coitada, está enlouquecendo! Será a nossa companhia? Não somos loucos... Temos cara de loucos, José? José – Eu penso que você tem, mas é normal! Quem não tem? Até Jesus tem! Maria – Está alucinada de amor! José – Maria? Maria? Estou com um problema! Estou cego! O que aconteceu...? 54
Maria – Gabriel? Isso é hora de chegar na casa dos outros? (Neste momento, Gabriel está no proscênio do palco, à direita. Ele fará a simulação dessa alucinação com José) Gabriel – Depois os humanos que são tachados de loucos? Me dá uma vontade louca de rir... Mas temos que ser sérios! José – Outro filho? Maria – Jesus é único! Dois políticos no mundo? Não teríamos sossego! José - Escuta! Você sabe como o Gabriel é um puxa saco daqueles... Gabriel – Mas que tipo de especulação é essa? Uns despautérios. Vamos ver quem tem mais poder? Eu já existia antes do próprio Deus criar Jesus, Maria e a pobre imaculada Madalena. José - Escuta! Ele está me falando algo... Maria - Besteira! José – Isso é coisa que se fale? Cada pessoa tem que ter seu animalzinho de estimação, e Gabriel se presta a esse trabalho com maestria. Gabriel – Me dê a sua mão que veremos como é viver a sensação de total ignorância... José – Maria, Gabriel vai me levar para ver Deus!
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Maria – Estando cego... Será uma perda de tempo. José – Perceba que somos membros de fácil manipulação, ovelhas neste pasto enorme que é o quintal de Deus! Maria - Cale-se! Não ficarei aqui discutindo os valores que Deus tem. Ele é pai do meu filho... Isso basta para que eu acredite que ele seja onipresente. José – Não estão falando de valores. Ele nem tem ideia disso! Ele não criou os excessos que decidimos ter, mas sim a ignorância! Lembra? Criou a terra, os animaizinhos... Adão e Eva! Maria - Ele é bom de construção. É um ótimo engenheiro. Madalena, acorde, é hora de ir para o trabalho. José – Onde já se viu? Contratamos uma empregada dessas? Acho que ela deve ter um passado bem escuso... Maria – Passado escuso? José – Não se preocupe, mas às vezes me dá uma vontade louca de jogar pedra nela. Maria - Quero brincar com ela de tiro ao alvo. Podemos algum dia realizar isso? Cena três Madalena – Se não tens nenhum pecado, que atire a primeira pedra! Você! Maria de Fátima! Vai, joga! Maria da Conceição! Vai, joga! Maria das Dores! Vai, joga! Maria do Perpétuo Socorro! Vai, joga! Façam-me chorar e derramar as lágrimas 56
que nenhuma de vocês derramariam por Jesus. Um bando de prostitutas santas. Prostitutas, sim! Por que não? Eu só queria que ele me amasse. Não esse amor hipócrita que ele sente pelos outros. Sacrifício, bondade, pena? A maior manipulação. O pai escreve e distorce a vida do filho do nascimento até a morte. Proibiu-o de amar. Olha que ele ostenta pela vaidade a criação do amor e de todos os sentimentos humanos. Por isso somos tão pequenos, carneiros! Queria o amor de homem, mulher! Carinho, ternura, tudo! Era pedir demais? Claro que foi curto o tempo, as horas. Sempre envolvidos por uma atmosfera de propagação. Não sabem como era ser jogada ao canto pelos seus discípulos, machistas. As horas que destinei a ele, de pura devoção ao nosso amor, à sua causa... E onde ele estava? Fazendo política! Política foi e sempre será seu sobrenome! Diplomata Jesus Cristo! Conhecem? Maria de Fátima, você deve conhecer. Escreveram em algum lugar, acho que foi nos classificados... Madalena representa, então, a redenção da Eva original, principalmente comigo, a possibilidade de restauração do ser andrógino original. (Neste momento, José e Maria quebram a cena) Maria e José – Madalena, menos! Estamos em um país católico! Desculpem (ao público). Maria - Para os ouvidos mais sensíveis esperamos que fiquem. Porque quero ver até onde o sacrifício do meu filho foi válido. Vamos ver se conseguem aguentar? (Uma pequena intervenção do anjo Gabriel nesta cena de pura alucinação) José – Maria, está vendo? Estou delirando. Gabriel está 57
brincando com minha mente. Acolhe este ser que está se perdendo... Ele esta aniquilando minha memória. Não, não! (em surto) Maria – Como você esta? José – Quem é o Espírito Santo? Alguém com asas longas e brancas me confirmou que você terá um filho dele... Maria – Acorde, José! Nós já falamos sobre isso. O filho é Jesus! E você é corno mesmo! Madalena – Dias e dias mergulhados no desejo de sermos felizes! Mas cada um com um destino mais adverso que o do outro. Lutei, lutei! Como uma mulher deve lutar pelo seu amor. Mesmo que derramasse sangue dos meus olhos, como uma santa de gesso, não deixaria de amá-lo. Ainda tenho na memória o dia em que ele me salvou. Mesmo sabendo que aquele ato traria problemas, ele me salvou. Foi perseguido pelos olhares inescrupulosos da demência humana. Mas não conseguiria mais entender a sua causa... Política! Política, pura! Um dia a gente se beijou repetidamente na boca e os discípulos perguntavam: porque a queres mais do que a todos nós? E meu amado respondeu: a que se deve isso, que não vos quero tanto quanto a ela? Queria eu naquele momento prova de amor maior que esta? Naquele instante, ele abriu o peito e pude ver o seu coração pulsando, o líquido rubro incomparável que só os amantes têm. (Outra quebra de José e Maria) José – Madalena! Você está passando dos limites. Chega, daqui a pouco começa a delirar com tantos sonhos!
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Maria – Quero falar com Jesus e perguntar sobre essas sandices. José – Maria, precisamos ir dormir. Não sei por que, mas estou realmente cansado. Madalena – Depois que Jesus me ajudou, fiz de tudo para ajudar Maria. Beijava seus pés se fosse necessário. Como eu o fiz! Lavei seus pés da mesma maneira que lavei o de Jesus como prova da minha total devoção. E o que ele significava pra mim? Fui abraçada por Maria como uma filha e amiga! Usei isso como um anjo usa as suas asas para alcançar seus mais límpidos objetivos. E segue-se assim... Sustentada e apoiada por Maria foi que me aproximei mais de Jesus. Mas porque haveria de me silenciar? Um covarde se silencia à beira da morte ou da sorte! Maria e eu choramos ao pé da cruz, como anjos puídos pelas costas chorando ao horizonte. E ele fazendo política. Cada grito que dava de dor, ao ser flagelado, era um artifício calculado de política. Diplomacia! Enquanto o sangue jorrava pelo seu santo rosto, ele se acalmava e projetava no silêncio o seu maior artifício: a coragem! Lutamos juntos. Pedi a ele que me deixasse falar em seu nome e ele deixou, mas uma pessoa não ficou tão feliz. José – Meu Senhor! Nós não podemos aguentar esta mulher, pois ela tira a nossa oportunidade e não deixa nenhum de nós falarmos. Madalena – Sempre soube e sempre foi declarado o ódio de Pedro sobre nosso sexo! Maria – Sexo?
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Madalena – Sobre a relação de troca e bondade que tenho com seu filho! José – Isso não é sexo! “Meu senhor, nos não podemos aguentar esta mulher, pois ela tira a nossa oportunidade e não deixa nenhum de nos falarmos”. Maria – Deixe de repetir essas palavras! Se Jesus ou Pedro o ouvirem... Receberá represálias! Madalena – Deixem que ouçam. Vamos pôr tudo em pratos limpos. Cena quatro Jesus – Por que me pede uma coisa que não posso dar? Madalena - Claro que está ao nosso alcance. Tenho total devoção por você! Jesus – Mas tenho que cumprir o meu papel aqui! Meu pai ordenou que fizesse e farei. Madalena – Mesmo indo contra o amor? Se for contra, estará indo de encontro com a razão mais sublime que seu pai criou! Iria contra o que ele criou? Jesus – Madalena, como se atreve a manipular o filho de Deus?! Madalena - Manipular você com ingenuidade? Não faço isso por maldade! Nem porque estou inundada por um colérico sentimento, mas quero que me ouça e pense. Não estou pedindo que você me escolha no lugar de nada. Mas como 60
viveremos pra sempre sem nosso amor pela eternidade do reino dos céus? Jesus – Palavras que me deixam ébrio, mas devo pensar mais! Madalena – Não pense, sinta! Como posso pedir isso de você se não és uma mulher! Se por um instante soubesse o que é estar na alma de uma mulher, entenderia o que é possuir este macro sentimento que é o amor de devoção. Jesus – Você não é a mulher que me gerou, ela sim tem este sentimento. Madalena – Passado recente. Hoje é uma esquizofrênica. Depois de sua morte ela não se recuperou. (Quebra de José e Maria) Maria e José – Especulação! Maria - Que mania de ficar fazendo especulação. José, ela está nos chamando de loucos. José – Deixa pra lá. Ela é uma prostituta, mesmo! Eu não sabia, mas foi Pedro que me contou. Madalena - Falam como loucos enfurecidos. (Maria e José riem) Madalena – Ele foi covarde quando não me aceitou como sua esposa. Aquela que geralmente é digna e honrada. Não cansaria jamais dele, onde quer que ele fosse. Como um ser devoto ao nosso amor. Pedro estava lá, cercando-nos! Era o 61
que formava opiniões sobre a minha postura. Postura de mulher da vida. Que postura haveria de ter? Por acaso não sou uma virgem compadecida? Maria – Olha o preconceito! José – Cale a boca. Fale, minha querida! Maria - Está agora do lado dela? José - Não é isso! Madalena – Mas digo uma coisa, não mudei jamais, amei Jesus e amarei para sempre! Maria – Mas esse amor é trivial! Esse amor tem base em ideologias românticas, jamais dará certo... Madalena – Mesmo nestas circunstâncias amo! Maria – Então sofra, cobra! Madalena – Cabe a mim saber até onde poderei alcançar. Por acaso sentarei ao lado direito do seu filho no céu? Quero que nosso amor sobreviva aos percalços desta terra! Pedro? Por que me envolver em teias nojentas? José – Alucinação! Não tem vergonha de ficar nos ameaçando? Madalena – Ameaçando? Em quais circunstâncias você afirma isso? Crápula! Madalena - Não adiantaram todas as conversas que a 62
eternidade pudesse ocasionar entre Jesus e Pedro. Pedro jamais teria e sentiria o que nós dois juntos, e até mesmo afastados, tivemos. Sempre inaudíveis nossas conversas, diálogos que vinham do coração como rosas ao deleite de um corpo feminino. Especularão muito sobre as horas a fio que tirávamos para conversar debaixo de uma oliveira seca, que por um instante estava em toda a sua pompa e beleza. Mas isso não chegava ao nível de sentimento que nos tornava cada vez mais próximos. Por inacreditável que possa parecer, ele contava lamúrias e infortúnios da vida que levávamos. Tudo em troca de política (quebra da personagem). Isso! Ele fazia o papel de mediador. E eu querendo e sendo por alguns minutos a ministra de todo esse peso... Talvez Maria e José estejam certos: o homem que eu procurava não estava nele, mas sim escondido por trás daquela pele de cordeiro. Um dia nos vimos a sós e, por um instante, bateu nele uma vontade louca de me beijar, e nossos rostos se mantiveram pálidos e perplexos ao som dos anjos. Claro que foi mentira, não havia anjos, mas ele pálido e deturpado me beijou! Jesus – Você quer me assustar? Não podemos fazer isso, meu pai está de olho em tudo que nós estamos fazendo. Tenho medo da ira do meu pai... Madalena - Não têm medo dessa ira e porque haveria de ter? Que Deus é esse que castiga? Se ele nos castigar estará provando que somos apenas ovelhas! Jesus – Como ousa falar assim do meu pai? Não tem vergonha? Mesmo sabendo que o que você fala é verdadeiro, não podemos ainda... Madalena – Mas poderemos sempre...
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Jesus – Sabe, já passei por tantas tentações, mas esta está sendo a mais tentadora... Gabriel - Coitado, não sabe de nada. Ele não ouviu falar sobre Adão e Eva e a historinha da tentação de Eva? Madalena - Não concordo em você fazer tal comparação. Não se atreva a fazer este desaforo! Jesus - Tenho que ir. Madalena – Para onde? Por que foges? Não gosta mais de minha companhia? Por acaso está chateado comigo? Jesus – No momento você não entenderia, mas há de vir e verás a provação que precisamos passar. Madalena – Vejo que seu brilho no olhar está ficando mais lúgubre, tem algo a ver com o propósito do senhor seu pai? Jesus - Depois Maria! (José e Maria quebram a cena de romantismo) Maria – Chamou-me, Jesus? José - Jesus! Já fez a mesa que mandei fazer? Quero aquela bem alta com quatro cadeiras... Maria - Você não acha que Jesus está muito ocupado com seus pensamentos? José – Mas tem que fazer a mesa! Fui muito longe pegar as toras de madeira. Pode imaginar o que eu tive que fazer para 64
comprar esta madeira? Madalena - Pedro ainda me pagará! Não posso ser vingativa, mas não deixarei o patriarcado linear vencer, especialmente neste ponto. Jesus me trata como uma discípula. Por que não haveria de me aceitar como tal? O que faremos caso aconteça o que está previsto? Só porque fui uma mulher da vida, prostituta, rameira, vagabunda? E sua mãe não é rameira do seu pai? Merda! O que acontecerá caso nós tenhamos que ir pregar seus pensamentos pelo mundo? Teremos que dividir, uns irão com Pedro, outros comigo? Os que forem com eles serão melhores do que os outros que forem comigo? Caso Jesus venha realmente a ser chamado por Deus no dia do juízo, nós estaremos ao seu lado! Eu, Maria. Chorando... (Alucinação) Gabriel – Não sei por que perguntas tão simples de respostas fáceis. Porque não pergunta a verdadeira razão de Deus nos ter criado? Perguntas de alto nível filosófico ou pelo menos perguntas com caráter e personalidade humanas, ou seja, idiotices atemporais. Madalena - Que tipo de ser divino você se tornou? Alguma aberração entre o que é divino e altivo? Como um ser dito como altivo tem problema marcante de caráter? Gabriel - Creio que você não é a pessoa mais indicada para delinear o caráter dos outros. Já que você tem um passado bem marcante... Madalena - Ainda vem com ironias e contravenções ao que acredito...
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Gabriel - Acredita em tanta coisa. Penso que não seria muito saudável acreditar em tanta baboseira ritualística. Madalena - És mesmo o anjo Gabriel que esteve ao lado de Deus na criação do mundo, das coisas belas que existem? Gabriel – Você realmente é engraçada. De que prostíbulo você é? Madalena – Me respeite, aberração covarde. Não sei realmente se Deus sabe que você anda rondando a terra. Por sinal, por que tomou sua forma verdadeira? Pensa que Jesus não me falou? Aliás, ele desconfia dos seus passos. Gabriel - É você... Madalena – Consegui entender o motivo pelo qual você está aqui... Gabriel – Podemos falar depois só eu e você... Madalena – Está tentando me manipular? Gabriel – Eu? Jamais. Você é uma mulher emancipada, não cairia no papo de um ser -como você mesmo diz - não-divino ou de personalidade escusa. És uma mulher inteligente... De todas as mulheres que vi nesse mundo e em toda a História você é a mais instigante em sua essência prevaricadora e no amor ao filho de Deus... Madalena – Então você me entende! Sabe que meu amor por Jesus é verdadeiro... E que ele tem que nos possibilitar viver esse macro sentimento!
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Gabriel - Tudo que é bonito e com essência verdadeira eu acredito e defendo. Ou você acha que acredito nessa disposição na qual Deus me colocou? Eu queria poder amar, da mesma forma que vocês humanos amam... Madalena – Mas você pode... Gabriel – Não fale besteira. Isso foi feito para você que é humana. Não tenho esse direito de ter minhas próprias consensualidades do mundo, da minha vida divina, de nada. Um anjo uma vez quis esse poder, e o que aconteceu a ele? Foi jogado nas profundezas do inferno e se tornou um ser sem luz e sem atrativos. Porque eu, você e todo ser humano ou divino temos esse direito. Madalena - Isso é crueldade? Gabriel - Maior do que todas que já presencie em todos os tempos. Maior mesmo que a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Madalena - Cuidado! Como você tem coragem de delatar o que vem acontecendo e como vocês seres divinos estão sendo podados? Gabriel – (risos) E você acreditou nessa baboseira toda? Pelo amor em meu Deus. Pensaria que falaria sobre como nós vivemos nossas vidas eternas? Você não é digna de saber sobre o nosso procedimento político... Madalena - Mais política? Realmente, você deve estar envolvido em muita politicagem. Mas se pensa que me fará desacreditar do que acredito, está muito enganado. Mas veremos quem realmente vai sobreviver... 67
Gabriel – Sobreviver? Você é passageira! Superficial em sua essência e postura. Madalena – Entendo em que aspecto você está tentando me manipular. Mas será que conseguirá esse feito, já que não acredito em você? Gabriel – Que pena. Mas se acreditasse, você conseguiria o que quer! Madalena - Suas palavras vêm com o devido mal do diabo, de Satanás, do escroto que ousou trair Deus. Gabriel – Esses adjetivos caem muito bem em você! Já que você vem tendo várias atitudes de verdadeira erroneidade! Madalena – Eu? Você pensa que está muito bem informado sobre minhas atitudes com o filho de Deus?! Gabriel – Isso é outro aspecto que Deus olhará com muito carinho. Mas vamos mudar de assunto, pois quero ser dono do mundo e precisarei de sua vida! Madalena - Está tresloucado? Isso é impossível. Como se estabeleceria essa definição, já que Deus criou você? Gabriel – Usurparão seu lugar! Você vai ajudar fazendo com que Deus olhe definitivamente para você e Jesus... Adotando essa postura, conseguirei o lugar d’Ele! Madalena - Pensa que conseguirá executar o que Lúcifer tanto vem sonhando pela eternidade? Gabriel – Você jamais terá essa resposta. Já que você não 68
poderá e nem estará vagando pela eternidade, sua alma se perderá no tempo. (Madalena muda de postura, voz macia) Madalena - (insinuando) Nós poderemos nos juntar. Imagine o que conseguiríamos... Gabriel – Isso! Imagine o que podemos ter? Tudo! O mundo, o universo, as pessoas, as almas... (Insinuante, Madalena envolve o anjo Gabriel em uma cena de pura sensualidade. Nessa cena eles trocam beijos e carícias. Cautelosamente, Madalena arranca as asas de anjo). José – Louca! Prostituta! Maria – Prevaricadora! Por que você fez isso? Queria ter sido uma mulher da vida. Será que Deus me escolheria como mãe do seu filho divino? Madalena - Vamos perguntar a ele.... Maria – será que ele me responderia? Madalena- Já que é um ser divino, espero que também seja democrático em suas ações... porque tenho total direito de saber! José – Democracia divina? Creio que não é uma das mais eloquentes virtudes que Ele tenha... por que até no céu deve ter uma hierarquia? Ou Deus não estaria acima de nós e sim ao nosso lado, materializado, tentando responder todos os problemas do mundo? 69
Madalena – Então, Deus, onde quer que você esteja, responda: se Maria fosse uma mulher da vida, você a escolheria como mãe do seu filho divino? (Todos esperam por uma resposta vinda dos céus) Gabriel - Ignorantes... Ignorantes! Não aprenderam com a vida, nem com os ensinamentos de Jesus? Deus jamais se colocaria defronte a seres tão imundos e que perderam todo o valor filosófico e espiritual. Para responder uma pergunta de expressão superficial? Madalena – Então porque ele não se materializa e vem nos responder esta pergunta tão sem valor? Gabriel – Por razões óbvias! Deus é fé! Madalena - Nossa fé nele é grande e eterna. Gabriel - Acredito que seja passageira e sem apreço. Porque todos os três cairão no fogo do inferno... Maria – Não é você que definirá o que tem ou não tem valor para Deus, mas sim o nosso coração e nossa fé! Fiz uma pergunta simples, e Deus com sua eterna onipresença poderá me responder sem problemas... Madalena – Não gastaremos mais nenhum verbete com esse verme que quer trair a teu pai... Gabriel – (uma grande gargalhada) Não sou eu que quero tirar seu filho do caminho que foi proposto a ele! Madalena – Proposta é quando Deus resolve esclarecer tudo 70
a seu filho, as razões de ele estar vindo a Terra, tudo! Não simplesmente aloja um ser dentro de um útero e o denomina como o salvador de um mundo em declínio. José – São palavras dela, meu pai? Madalena – Pedi perdão, por quê? Não basta termos que viver que nem nômades nos arrastando por desertos e montanhas rochosas? Gabriel – Mas repletas de oliveiras? Madalena – Vai querer me dar um Sermão da Oliveira? Não perca tempo... Queremos uma resposta imediata à nossa pergunta tão simples, feita a um mente tão ociosa e divina mente... Gabriel – Mas você é uma prevaricadora e pecadora das maiores que já vi. Só Eva do paraíso foi tão corajosa a tal ponto de querer se defrontar com a sabedoria de Deus! E você já sabe o que aconteceu a ela... Madalena - Mas ele não me expulsará! Porque estamos no reflexo da sua má administração. Isso é seu Éden errado, às avessas. Não há sequer um pedaço que se possa aponta e dizer que não foi corrompido, e Jesus é seu último suspiro. Porque se Jesus não fizer o que ele quer, a Terra será banhada por inúmeras aberrações que ele, em sua infinita sabedoria, diz serem efeitos do diabo - ou da sabedoria que a maçã nos deu... Maria – Um pensamento reduzido! José – Não venha com delírios. Daqui a pouco vai querer se 71
rebelar contra o pai do seu filho? Gabriel – Espero que se rebelem todos. Só assim poderão ver qual é o valor de vocês e sua verdadeira existência nessa situação. Madalena – O que você vomita não tem valor para mim! Gabriel – Mas continua acreditando no seu instinto, no seu coração? Vamos ver até onde esse coração aguentará tanta pressão antes de explodir e definhar para o esquecimento. Madalena – Eu sei o valor dele, mas você jamais entenderá porque não tem um... Você é filho do vácuo! Gabriel – Você infringe as leis divinas? Mas isso não ficará assim... Eu mesmo com minha espada farei o que deve ser feito: a sua ida imediata à terra do enxofre! Madalena - Então me mande! Gabriel – O caminho está traçado! Madalena - Por acaso querem me fazer desistir do meu destino? Mesmo sabendo do que passaram, não o farei! Talvez possam me fazer derramar algumas lágrimas, mas todas errôneas, iguais às que esta mulher derramou neste dia. Que absurdo! Não tens vergonha na cara de demonstrar anos a fio uma força que jamais se manteve e foi estabelecida na covardia? Por que sentiste tanta pena no momento que ele foi crucificado? Maria - Porque ele é meu filho! Sou mãe de um ser divino!
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Madalena - Isso não a faz melhor que qualquer outra mãe! Maria - Prevaricadora, prostituta, demente! Madalena - Covarde! Se fosse eu no seu lugar, teria encaminhado-o a outro rumo que não fosse este de morrer como um parasita desumano. Maria - Ele salvou a humanidade! Culpa-o por este feito, ou é porque você não conseguiu tê-lo? (risos) Madalena - Inveja? Não sou seu principal discípulo, que se deixou amedrontar por um simples corpo e mente feminina! Não me faça perder tempo com essas arrobas de esquizofrenia! Maria - Ainda por cima me chama de louca de... Madalena – Covarde. José - Manipuladora! Maria - José? Como podes? Lutamos para que essa situação na qual Jesus se encontrava não nos enlouquecesse! Pensas que é fácil lidar com uma figura divina, de alojá-la dentro de seu ventre? Maldita peste silenciosa. Por que não foi viver seu carma na demasiada vida mundana? Não nos faça perder tempo com sua falta de moralidade. Madalena - Deixe-me por um instante! (Jesus e Maria) Jesus – Por que me perguntas sobre Pedro? 73
Madalena - Nada! Não posso criar inimizade em vossa casa! Jesus - É sobre a forma como Pedro a trata? Não o culpe, mas às vezes ele se sente pressionado. É natural do homem. Acanha-se perto de uma mulher de seu porte e de sua eloquência! Madalena - E você? Também acanha-se ao meu lado? Jesus - Vamos mudar de assunto, não posso lhe confirmar o que tenho no meu coração, não seria correto com você e meu pai! Madalena - Pense em nós por algum instante! É pedir demais? Maria – Chega! Não se cansa de pura alucinação! Por acaso a vida noturna está lhe deixando ansiosa? Madalena - Velha bruxa! José – Você é uma mulher que tem demônios no espírito. Madalena - E você um homem que tem demônios na mente e no coração! José - Não me calarei em nome de ninguém, nem de Deus! Madalena - Não és de forma alguma o principal discípulo de Jesus, não é, Pedro? José - Não ouse proferir meu nome em vão! Madalena - Não és Deus! 74
José - Mas filho d’Ele. Madalena - Engolido pela soberba! José - Não me coloque em sua situação! Prostituta! Madalena - Não me culpe por aquilo que não fiz! Além de criar abdicativos na casa de Jesus, aprecias descabidamente a sua situação de filho de Deus? José - Como foi muito bem instruída, teria você vivido muito com algum homem sábio? Madalena - O único homem sábio que conheço é Jesus! José - Vai me dizer que você não quer se deitar com ele, rameira? Madalena - Blasfêmia! José - Não somos acostumados a ouvir palavras desse teor. Madalena - Não tenho remorso de ter vivido a minha vida como Deus a moldou! José - Culpa Deus por você ser rameira? Madalena - Claro! Ele encaminhou a vida de seu filho, e não manipularia a minha. Uma simples mulher? José - Acusa Deus de manipulador? Madalena - És tu que dizes! 75
Maria e José - Palavras bíblicas. Não podem ser direcionadas! Madalena - Então me podam de maneira insignificante? José - Como perdemos tempo trocando nossas vidas com sua sujeira incomum. Madalena - Trivial? José - Não percebe que sua existência em nossas vidas é um erro! Madalena – Para quem se julga o dominador de todas as palavras de Deus e de suas moralidades... Moralidades? Que pandemônio! José - És uma vadia e se julga a dona do coração do ser mais divino que já pisou na Terra! (Neste momento, Maria percebe que José/Pedro passa dos limites e logo depois estapeia) Maria - Passamos momentos de pura devoção a Deus e à causa de Jesus! (Gabriel quebra essa situação) Gabriel – Está feito! Felizmente eles enlouqueceram! Não conseguem mais definir a realidade do onírico! Então caberá a mim fazer-lhes dormir um sono eterno e a Deus caberá o futuro deles... Madalena - Sim! Então faça o que deve ser feito, já que não posso lutar contra o que está definido para eles. Mas, neste 76
instante, eu me recondiciono a outro ângulo, mesmo que seja onírico. Não tenho culpa que no futuro venha a me tornar um ser enigmático, mas modestamente me recolherei ao meu íntimo como uma mulher que amou um ser divino. Isso para a humanidade é sem precedentes. Olharei todos, e todos olharão os soluços dos meus olhos chorosos que naquele dia, no dia da crucificação, derramei sem me envergonhar do amor que tenho por Jesus. Entre as três pontas do triângulo. Onde a tríade do tempo se interliga e eu me ponho no meio e me comparo a Deus. Porque tenho útero, gero, crio e amo. Nesta exata condição animal. Eu sou meu próprio Deus!
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A cáscara
(2006)
Em coautoria com Elcias Villar. PAI, SE É DE TEU AGRADO, AFASTA DE MIM ESTE CÁLICE, NÃO SE FAÇA, CONTUDO, A MINHA VONTADE, MAS A TUA MEU PAI, SE É POSSÍVEL, PASSE DE MIM ESTE CÁLICE, TODAVIA, NÃO (SE FAÇA) COMO EU QUERO, MAS SIM COMO TU QUERES MEU PAI, SE ESSE CÁLICE NÃO PODE PASSAR SEM QUE EU BEBA, FAÇA-SE A TUA VONTADE Camuflagem definia meu pai, nunca gostou de levar-me à escola, nunca tinha tempo para ser pai, só o era nos momentos em que assolava o remorso e sentia que negligenciava seu único filho. Íamos, não de mãos dadas, pois sempre carregava uma pilha de livros, sina de professor de faculdade, professor de História. O percurso era pequeno de casa até a escola. Seguia ao lado dele e, de vez em quando, olhava seu rosto macilento, barba, bigode, cabelo oleoso escorrendo pela face até a altura do ombro. Um homem forte. Alto. Olhava sempre no horizonte de seus pensamentos. Percebia minha presença, mas ignorava minha 79
existência ao seu lado. Nada se falava, apenas caminhava-se. Na frente da escola, beijava-me a testa e apontava em direção ao portão principal. Jardim de Infância Maria Leopoldina. Camisa de botão, calção xadrez vermelho e branco e tênis conga vermelho. Eu entrava vagarosamente enquanto o portão fechava-se às minhas costas; virava, então, e comprimia meu rosto nas grades para vê-lo partir, sem olhar para trás. E eu gritava no silêncio. Íamos, não de mãos dadas, pois sempre carregava uma pilha de livros, sina, professor de História. O percurso era pequeno de casa até a escola. Seguia a seu lado. Olhava seu rosto. Nada falávamos, apenas caminhávamos. Na frente da escola, beijou-me a testa e apontou em direção ao portão principal. Entrei vagarosamente enquanto o portão fechava-se às minhas costas; virei, então, e comprimi meu rosto nas grades para vê-lo. PAI. (Música Michelle, dos Beatles) - VOCÊ QUER COCA-COLA? - NÃO, EU GOSTO DE KI SUCO DE MORANGO. - EU NÃO POSSO TOMAR, QUEIMA A MINHA BOCA. - QUER BISCOITO? MINHA MÃE QUE FEZ. Enquanto ouvia o barulho ensurdecedor do portão batendo, sirenes e freios e gritos. Ele cai. Um chute na perna. Ele cai. Sentado. Um chute na boca. Ele cai sobre os livros. Agora no chão, vermelho de livros, de sangue. PAI. Ele sangrava pela boca. Um braço puxava o meu. Vem pra cá, vem pra cá, menino. PAI. Ele levanta, batem nele e o jogam no carro. Dentro do carro. Os livros. O chão em vermelho. O sangue. Meu sangue. Meu pai. Comprimia meu rosto nas grades para vê-lo partir, sem olhar para trás. Pedro, pedrinha Virando mulherzinha 80
Chorando pelos cantos Teu pai come criancinha Minha mãe, sorriso sereno e feliz, nunca fizera nada além de ser dona de casa. E foi o que lhe restou fazer. Ser empregada doméstica. E de um bairro de classe média. Fomos morar em um cubículo onde mal cabia a cama em que dormíamos. A dona da casa tinha pena de mim e sempre deixava que eu almoçasse com minha mãe na cozinha, desde que nunca saísse de lá, mas obrigava minha mãe a lavar os nossos pratos com desinfetante e guardava à parte nossos talheres. Nunca lhe dirigi a palavra a não ser para agradecer, sempre com os olhos baixos e com as mãos para trás. No dia da prisão de meu pai, ela foi buscar-me, pegou-me pela mão e atravessamos o portão. Aparentava estar transtornada. Fizemos um percurso bem maior até em casa. Não nos falamos, fitava o horizonte sem nenhuma perspectiva, um olhar, frio e sem vida, estava na linha da navalha prestes a sucumbir àquela situação. Um dia sombrio para nós, para ela e minha mãe. Vagávamos pela torturante atmosfera cinza que rasgava, dissimulava e censurava a alegria que minha mãe tinha. Quando sentei na cadeira do barbeiro e olhei para o espelho, vi no canto um desenho de um garotinho que tinha a bandeira nacional nas mãos e dizia: Brasil, ame-o ou deixe-o. Meus cabelos foram cortados tipo militar. Minha mãe prometera comprar um tambor para eu desfilar no Sete de Setembro se eu ficasse quieto enquanto aquele senhor de aparência boliviana cortava. Eu cantava a música para o desfile que a professora ensinou: Eu te amo meu Brasil, eu te amo. Meu coração é verde, amarelo branco, azul anil, Eu te amo meu Brasil, eu te amo, Ninguém segura a juventude do Brasil. Era um dia de Sol, as fitas verde-amarelas presas na 81
baqueta voavam toda vez que eu batia no meu tambor. O campo do quartel estava cheio de gente, eu cantava com o peito cheio de orgulho porque eu não ia deixar o Brasil. Um general ia à minha frente marchando com sua espada na mão e a professora gritava cantem alto. Eu batia com força meu tambor e cantava e sorria. Procurando minha mãe. Quando o desfile acabou, fiquei parado olhando para todas as direções até que senti uma mão segurar o meu ombro e virar-me. Vi aquele rosto macilento, com barba e bigode por fazer, cabelo quase raspado. Um homem magro. Não tão alto. Olhou minha roupa, sorriu com desdém. Deu um beijo na testa e disse para minha mãe que escreveria assim que chegasse. No ano seguinte, fui matriculado em um colégio de semiinternato. Passava lá todo o meu dia, entrando às sete da manhã e só saindo depois das seis da tarde. Um amigo de meu pai conseguiu uma vaga para poder aliviar preocupações de minha mãe comigo. Pertencia aos padres. Silêncio em tudo que se fazia, ao rezar, ao comer e até mesmo ao estudar. O pior era ter que se confessar, ter que dizer os meus pecados. PECADOS. Como um adolescente poderia não ter pecados? Acho que não deviam ter me tirado nunca daquele confessionário, mesmo porque nunca disse os meus verdadeiros pecados e inventava bobagens como: não fiz minha tarefa de casa, falei um palavrão hoje. “Égua”. Não emprestei o meu lápis para o Aderbal Junior. MANDEI TODOS VOCÊS PARA A PUTA QUE O PARIU. Só em pensamento, é claro. Recebi uma carta de meu pai. Estava em Cuba, descobrindo as maravilhas da Revolução Comunista. Encantado com um país que lhe acolheu como um herói. Levei a carta para o colégio e, quando a lia no intervalo, tiraram-na da minha mão e ficaram brincando de BOBO. Até que saíram correndo com ela. Falei para os padres, mas ninguém encontrou a carta. Estava tomando 82
banho quando os garotos da oitava série entraram. Eu estava sozinho. Seguraram minhas mãos de encontro à mureta que separava o banheiro da privada e seguraram meus pés de forma que não conseguia mexer. Enquanto o maior deles tirava a roupa, ele segurava com a mão seu pênis duro e cuspia nele dizendo que a escória comunista tinha que ser fodida e expulsa do País. Ele abriu a minha bunda e penetrou. Senti seu pênis abrir com força o meu ânus, rasgando e doendo. Eu gritava para os padres, mas os garotos riam como se soubessem que ninguém no mundo iria me ouvir. E um após o outro foi metendo em mim. Sentia escorrer pela minha perna o sangue misturado ao esperma. (“Michelle” entra. Silêncio) - Shiuuu! (Lê uma poesia). Largaramme no chão do banheiro com a torneira aberta jorrando água em cima de mim. Serviço militar aos dezoito anos. Minha primeira ordem. Conter passeata de protesto. Estávamos enfileirados um ao lado do outro como uma enorme parede de soldados. A passeata estava a cem metros. Suava frio, as ordens eram apenas de contenção, mas um estudante idiota se aproximou de mim com uma bandeira brasileira na mão e um isqueiro na outra dizendo que ia queimá-la. - VOCÊ NÃO VAI FAZER ISSO. Ele mostrava a bandeira e rebatia. - EU VOU SIM. - VOCÊ NÃO VAI QUEIMAR A BANDEIRA. Ele mostrava a bandeira e o isqueiro. - EU VOU. E VOU FAZER NA TUA FRENTE. E tocou fogo na bandeira quando, no mesmo momento, enfiei a baioneta do FAL que eu carregava no seu estômago. Ele olhava para mim, incrédulo, segurando o cano da arma 83
enquanto seu sangue banhava meu coturno e a bandeira queimava em suas mãos. Salve lindo pendão da esperança, salve símbolo augusto da paz. Tua nobre presença à lembrança a grandeza da pátria nos traz. Recebe o afeto que se encerra em nosso peito varonil. Querido símbolo da terra. Da amada terra do Brasil. Após três meses de prisão fui enviado para o batalhão de operações especiais. Um grupo que trabalha na eliminação de guerrilhas na fronteira do País. Serviço de escória. Nada se questiona, apenas obedece-se às ordens. Sim senhor, não senhor, sim senhor, não senhor. Até o dia em que fui chamado pelo meu superior e informado que um grupo de comunistas havia tentado atravessar a fronteira do País, e que alguns teriam reagido e foram mortos, mas outros apenas capturados e enviados para prestar depoimento no quartel onde eu estava servindo. Não entendi do que se tratava, pois me parecia ser uma atividade normal do batalhão, e quando tentei perguntar o porquê daquela informação, o meu tenente, parecendo ter ouvido minha mente, respondeu que um dos soldados havia identificado um prisioneiro que teria se enforcado na cela com os próprios cadarços para não ter que falar nada e que este prisioneiro seria o meu pai. Fui levado para o necrotério e, ao ver o rosto, logo identifiquei seus traços macilentos, mas nada caracterizava enforcamento, a não ser os cordões do cadarço ainda amarrados no pescoço. Olhei para o corpo e percebi seus mamilos estourados do choque elétrico, seu estômago com hematomas de pauladas e seu escroto todo puxado e arrebentado. Apenas tive o tempo de virar para o lado e vomitar no chão. - ESTE HOMEM É SEU PAI, SARGENTO? - NÃO SENHOR, SIM SENHOR, NÃO SENHOR, SIM 84
SENHOR. ESTE HOMEM NÃO SE ENFORCOU, SENHOR, ESTE HOMEM FOI MORTO POR TORTURA. - VOCÊ FALOU ALGUMA COISA, SARGENTO? - SIM SENHOR, NÃO SENHOR, SIM SENHOR, NÃO SENHOR. - VOCÊ ESTÁ DISPENSADO, SARGENTO. Em silêncio me retirei, mas sabia que daquele momento em diante tinha me tornado persona non grata no Exército. Avisei a minha mãe. Que meu pai havia tentado entrar no País, mas como se ela já soubesse, começou a chorar desesperadamente com as mãos cobrindo o rosto, tendo espasmos de falta de ar. Abracei seu corpo trêmulo. E disse apenas que houve luta armada e que ele e outros não se renderam até o último morrer. Nunca mais vi seu sorriso, nunca mais vi minha mãe. Uma semana depois, fui enviado à fronteira. Ordens: localizar e eliminar grupo de guerrilheiros agindo na fronteira do Mato Grosso. Depois de duas horas de caminhada em mata fechada. Percebi a movimentação à minha frente, mas não deu nem para dar a ordem de se proteger, uma saraivada de metralhadora veio enquanto me jogava no chão e via meus comandados serem executados sem poder de reação. Corri na direção oposta sentindo as balas passarem por mim. Durante duas semanas fugindo com um guerrilheiro no meu encalço, pensando no que acontecera até que uma epifania me ocorreu e deslumbrei o que eu não podia acreditar. Fui enviado para a morte. Uma emboscada. Premeditada, mas sobrevivi. Atravessei a fronteira, fui resgatado por um grupo de vigilância e mandado de volta para o meu batalhão. Quando desci do avião, vi meu tenente me aguardando com um gesto de continência e respondi. Missão cumprida, senhor. Daquela 85
missão, nada foi registrado, e todos, inclusive eu, fomos dados como mortos para a minha pátria amada, idolatrada, salve, salve. Depois disso, fui transferido para a espionagem. Tinha que me infiltrar entre os grupos de comunistas que promoviam encontros clandestinos em zona urbana. Identificar o líder. Comunicar ao grupo de operações e desaparecer. O grupo era formado por 12 pessoas. Cinco mulheres e sete homens. O líder era uma mulher. Michele, 25 anos. Estudante de História. Abria as reuniões cantando a Internacional Comunista e nos despedíamos com Hasta la victoria siempre. Contava histórias sobre Lênin como se o tivesse conhecido e fosse amiga íntima dele. Após a Revolução de Outubro, Gorki lamentou-se com Lenine que a polícia política investigava e prendia intelectuais em Petrogrado. São as mesmas pessoas que prestaram favores aos seus companheiros e a você pessoalmente, Vladimir Ilitch, que os esconderam em seus apartamentos, etc. Lenine respondeu com uma risadinha; sim, trata-se de gente boa e corajosa, mas bem por isso é preciso investigar as suas casas. E bem por isso, de má vontade, prendê-las. Elas são bravas e boas, a sua simpatia sempre é voltada aos oprimidos, e sempre se colocam contra as perseguições. E o que elas enxergam diante de si? Os perseguidores são a nossa polícia política, os oprimidos são os constitucional-democráticos e os socialistas-revolucionários, os quais buscam dela fugir. É evidente que o dever, como eles o entendem, lhes prescreve aliar-se a eles, contra nós. E devemos capturar e tornar inofensivos os contra revolucionários ativos. O resto é claro. Vladimir Ilich deu uma grande risada, com muito bom humor. Percebi nela a presença de meu pai. Nunca estive tão próximo dele. Pela primeira vez, foi-me permitido entrar em seu mundo débil, infantil, utópico. 86
- QUER CASAR COMIGO? - TEREMOS DOIS FILHOS, UM MENINO E UMA MENINA, QUE SERÁ A MAIS VELHA. - VIVEREMOS BEM LONGE DAQUI. - TEREMOS UMA CASA DE MADEIRA. - COM VARANDA NA FRENTE. - UM CACHORRO PASTOR ALEMÃO. - CHAMADO TCHÊ. Enquanto ouvia o barulho ensurdecedor do portão batendo, sirenes e freios e gritos. Ela cai. Um chute na perna. Ela cai. Sentada. Um chute na boca. Ela cai sobre os livros. Agora no chão, vermelho de livros, de sangue. Ela sangrava pela boca. Um braço puxava o meu. Vem pra cá, vem pra cá, menino. Ela levanta, batem nela e a jogam no carro. Dentro do carro. Os livros. O chão em vermelho. O sangue. Meu sangue. Comprimia meu rosto nas grades para vê-la partir, sem olhar para trás.
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Vendese! Motivo: falência (2007)
Um casal em escrombos relembra o seu rosto perdido. Cenário: Um médio fundo branco, ao fundo do palco, uma janela feita de iluminação, ou melhor, um pôr-do-sol feito de luz laranja. A parte dianteira do palco deverá conter uma enorme pilha de calçados, dos mais diversos tipos e tamanhos, incluindo um sapatinho infantil, que é fundamental no contexto do espetáculo. Por fim, uma breve iluminação e um figurino que não chame muita atenção, em cores neutras, já que o foco do texto são os sapatos. Personagens: Paulo e Márcia Cena única (O casal deverá sair do camarim em uma pequena discussão) Paulo - Eu tenho uma coisa pra te mostrar... Márcia - Não! Qualquer coisa que seja ao seu respeito eu não quero mais saber! Já se passou muito tempo. Eu não consigo 89
mais nem lembrar do seu rosto... Paulo - Eu também não consigo mais lembrar do seu! E o pior é que não sei explicar o porquê dessa falta de respeito e de memória! Márcia - Falta de respeito? Por que afirma que o fato de não lembrar do seu rosto caracteriza um ato de desrespeito? Não se cansa de ficar me jogando nas suas paranoias? Sim, vamos?! O que me traz à nossa antiga casa? Paulo - Nossos objetos íntimos! Márcia - Que objetos íntimos? Eu não consigo mais lembrar do seu rosto, e você vem me falar sobre objetos esquecidos. Que fiquem no esquecimento! Não posso mais ficar vivendo abruptamente no passado, o presente é muito mais recolhedor. O futuro...? Eu me darei, já que você tentou tirálo de mim. Paulo - Tudo isso causou o nosso desmoronamento! M - Particularmente o quê? Sempre falando através de enigmas. Dentre muitas coisas ditas por você, talvez, essa talvez seja a menos original! Você já inventou mentiras muito mais originais sob o pretexto de querer transar! P - Então me acusa que o único interesse aparente é sexo. Tento lutar contra esse mau sistema que adentrou nossa memória e vem me dizendo que estou sob o pretexto simples do coito. M - Como sua testosterona é ridícula! Poderia te meter a mão na cara se soubesse onde ela está! 90
P - Talvez escondida ao lado da sua, em um lugar onírico e acolhedor! M - O que o seu pênis não faz por sexo, não é? Só falta me dizer que minha vulva anda enlouquecida por sexo. Sexo com ex-marido é sexo anedótico. P - Então transar comigo é engraçado? Eu sempre fui para você um homem-palhaço! Posso receber isso como um elogio ou meu pequeno notável... M - Queria poder olhar seus olhos para perceber o cinismo grudado em sua fronte como o pecado em uma freira-falsa. P - Com tudo me acusa! Não pode em nenhum momento abrandar essas rígidas críticas, e simplesmente olhar o que tenho a mostrar? M - Não! Eu preciso procurar um novo rosto, porque o meu você desfigurou com sua mediocridade que chamou de amor! Mas, vamos lá, nem tudo está perdido, hei de encontrar meu rosto, mesmo que em uma lata de lixo! Porque não posso me olhar no espelho e vê-lo. Porque ele foi apagado por nossa relação! P – Então o culpado do apodrecimento dos nossos rostos é o amor? M - Se é assim que quer entender...! P - Você sempre muito dramática! Isso é um dos defeitos que ainda alimenta? Você poderia tê-lo perdido junto com seu semblante. Lembra, jogado na lata do lixo? Não poderia mais ficar culpando ninguém por escorregões vitais que acabou 91
cometendo durante os anos que estivemos em crise. M - Nossa grande relação foi baseada no grande equívoco! P - Poderia me dizer? M - Por quê? P - Quero saber dos equívocos que andamos cometendo! Já que nossa relação foi baseada em um grande equívoco! M - Eu não posso dizer! Primeiro: porque não haverá final feliz! Nossa simultaneidade já deu a felicidade que tinha que dar! P – Chamando nosso relacionamento de extremo ato de simultaneidade? Isso é muito grave, não acha? Espero que haja uma boa explicação para esse adjetivo! Eu não posso ficar escutando uma mulher sem rosto me dizer que todo nosso amor do passado é um ato discrepante de simultaneidade. Por acaso, a senhora tem ideia do que é um ato de simultaneidade? M – Tenho, ou não haveria dito e nem usado em hipótese alguma tão necessário verbete! Porque nosso “casinho” de amor é um ato incondicional de simultaneidade! P – Casinho? Um palavrão... M - Um palavrão? Falta-lhe semblante para pôr para fora esse palavrão! Será que deixou de ser homem, não tem mais os testículos expostos, como duas laranjas enrugadas? Porque se não tem coragem de falar um palavrão, isso prova um pouco da sua falta de masculinidade, logo deixando um 92
pouco de lado seu ato de simultaneidade. P - Não posso ficar sendo acusado de forma tão banal, vulgar e errônea a respeito de tal coisa que nem mesmo eu sei o que é! Já está provado que a progesterona é mais inteligente que a testosterona, não há necessidade de ficar me alfinetando de forma altamente vulgarizada. Já que esse hormônio impera em seu organismo, espero que tenha um pouco de discernimento, não acha? M - Não! O que tinha que ser achado se perdeu por tempo indeterminado! Há civilizações inteiras que perdem o semblante, ou mesmo uma simples expressão fácil, e ficam séculos procurando um caminho de retorno! P - Mas nós somos um pouco diferentes! Nosso amor não está baseado apenas em “um ato de simultaneidade”, como você bem colocou o termo. M - Não precisa me agradar! Eu uso esse termo porque é necessário ser usado! Porque senão seu pinto adentra o meu canal vaginal e me estupra como um neurótico. Porque é assim que as testosteronas se comportam. É assim mesmo! P - Não ficarei definindo como os homens se comportam! Esse não é meu objetivo aqui! M – Eu não sei por que nossos objetos de simultaneidade foram se cruzar! Porque nem sequer se tem um esboço de humor! P - O que seria um esboço de humor? Nem sempre o sorriso quer dizer felicidade. Estão enganados os que pensam que o sorriso é um ato pleno de felicidade! Por muito tempo não 93
pude olhar meu sorriso no espelho e afirmar que estava sorrindo por felicidade! Tive a ideia do sorriso, mas de alguma forma sistemática meu corpo não conseguia obedecer minha mente e, por muitíssimo tempo, achei que o destino de uma pessoa que não ria era a morte. Mas, depois que te conheci, descobri que nem tudo precisa ser esboçado, incluindo a minha felicidade! Você me ensinou a não expressar mais o que sentia. Talvez isso seja o ato de simultaneidade! M - Boas letras, boas palavras... Mas para uma boca que não se pode ver e uns olhos que não possam olhar os sentidos e texturas do som, não posso confirmar se é verdade ou mentira! P - Talvez você pudesse ter sido um pouco mais humorada! M - O que você entende por ser um pouco mais humorada? Fazer macaquices para o companheiro? É ser bem-humorada deixá-lo chamar você de “amorzinho”, “benzinho” e “xoxotinha-marrom”? Ou deixá-lo gozar na sua cara, talvez, não que esteja afirmando. Isso é ser bem-humorada para vossa senhoria sem rosto? P - Mas você gostou por muito tempo! Não vou ficar aqui lembrando quantas vezes me pediu para gozar no seu rosto! M - Cala a boca! A palavra gozar fica vulgar na sua boca... P - Já na sua, não! (Os dois riem) M – Bem, faz um tempinho que não dava uma boa 94
gargalhada, exatamente dez anos! Há dez anos eu perdi meu semblante! P - Não me lembro da minha última gargalhada! Isso me leva a uma sensação que não estou acostumado a ter! Por isso, não quero mais ter esse tipo de sensação! Não estou acostumado... M - Nunca pensei que você fosse tão rápido e sagaz a tal ponto de fazer uma breve anedota sobre nossos joguinhos de casados! P - Como nossos jogos eram divertidos! M – Infelizmente, você só se apegou ao lado bom da coisa! P - Para mim, a coisa tem todos os lados bons! Que lados: geometria, abertura, orquídea... M - Chega! Eu não estou aqui para ficar falando de atos de simultaneidade. Estou aqui para saber o que realmente você quer - além de atos, é claro! P - Tem ideia do que nós guardávamos hà anos por toda nossa casa? M – Sim, tenho ideia! Adoro, sempre adorei! Que pena que tenhamos que ficar sem ele! Era um lindo labrador, não é? P - Não seja cretina! Falo de algo muito mais importante do que apenas um animal! M - Não tenho ideia alguma! Como se pudéssemos ter tido algo de importante nos últimos anos. Só tenho me lembrado 95
de coisas banais! Uma delas é estar aqui com o senhor sem semblante! Tento procurar minhas memórias, mas vejo que meu córtex cerebral anda engaiolado por alguma armadura rígida de fugacidade, de impulsos instáveis de uma realidade que se foi, ou que é, ou que será. Tem ideia do que estou falando? P - Não tenho! Mas imagine que embaixo desse Sol laranja, de um horizonte tolo, eu não poderia ter guardado os nossos sapatos. M - Porra! P - O quê? M - Sapatos! P - Qual o problema dos nossos sapatos? Estão todos aqui! M - Não! Eu saio de casa para encontrar o meu ex-marido sem rosto para juntos cheirarmos chulé? Chorar por memórias obsoletas é lugar comum, mas ficar aqui fazendo terapia do couro, não tem ser onisciente que me faça ficar! Bom, como sempre, não é um prazer estar e nem ficar com vossa senhoria sem rosto, já que você é de baixa coloração intelectual e muitos outros adjetivos! Porém, agradeço pelo único sorriso sem dente que nós acabamos tendo! P - E isso ficará assim? Não pode ir sem antes se lembrar do que aconteceu conosco! M - Lembrar de quê? P - Do que aconteceu conosco! 96
M - Não me faça rir duas vezes consecutivas! Uma foi o bastante para nossa existência! (Em um surto de raiva, Paulo acaba espalhando todos os sapatos) P - Não posso culpá-la! Não a culpo, porque não posso olhar no seu rosto e reprová-la! Mas, infelizmente, também não posso ficar abreviando um sentimento! Que não é de amor, de garantir um retorno ao ato de simultaneidade, muito menos de fazer qualquer outra coisa, mas sim de tentar, através de um contato, uma breve recapitulação dos fatos para lembrar em que aberrações humanas nós nos tornamos. M - Isso é comovente! Não posso ficar contraindo de você mais uma patologia que eu sei que vai me fazer mal! Tenho provas expressivas que patologias criadas por casais são quase irreversíveis! Uma delas é a deformação paulatina dos nossos rostos! P - Então me culpa da deformação dos nossos rostos, especificamente a mim? M - Eu perco todos os meus atrativos de beleza e não deveria culpá-lo por isso? P - O assunto se limita à estética, à simples flexão de se fazer caricaturas? Você é muito inteligente. Sabe que jamais usaria uma caricatura estética contemporânea. Por isso, veio aqui, por que eu ainda alimento o seu ideal de ter o rosto novamente... M - Poderia ter me convencido com esse argumento, mas você deixa escapar uma alternativa muito mais centrada, muito mais óbvia! A questão é envolvida eternamente por 97
nossos rostos sem semblantes. Somos uma casca sem nervuras, um cérebro sem impulso! P - Não tem coragem de se afastar de tal pensamento? Não posso ficar me atrelando a esse teatro psicológico, para não dizer quase pedagógico! M - Isso lhe importa em algo? Já que me trouxe aqui, com certeza tem algo a me dizer, ou devo estar enganada? P - Tenho, sim, posso te dizer! Quero mostrar como nós podemos nos lembrar dos nossos rostos! (Pega um par de sapatos) Lembra-se onde estávamos quando calçamos esses sapatos? M - Não tenho a mínima ideia de onde estávamos! Tenho que ter alguma ideia para alimentar seu devaneio? P - Talvez você tenha uma lembrança vaga! Mas desse aqui tenho certeza que lembrará. (Pega outro sapato) Esse sapato foi aquele que você usou quando nós fomos jantar pela primeira vez, lembrou? Naquele restaurante de comida italiana que fazia um macarrone de tirar os olhos da cara! Lembrou? M - Lembro-me vagamente! O restaurante era italiano? Não me lembro se realmente nós comenos em um lugar chique ou foi em um boteco de periferia! Isso é uma coisa que está bem claro na minha cabeça. Só íamos comer em lugares legais quando eu escolhia o lugar! P - Sempre teve um ótimo gosto para escolher restaurantes, hotéis, motéis... M - Já vem você com atos de simultaneidade! Não se cansa 98
disso, não? Vamos ter pelos menos um pouco de respeito! Estou muito cansada dessas pequenas e inúteis lembranças! Eu venho aqui atrás de algo e encontro esse paralelismo de lembranças inúteis em sapatos velhos e desajustados! P - Pelo menos tentei ajustá-la em alguma lembrança que faça com que você lembre do absurdo ser humano achatado que se tornou! Não tenho demagogia existencial como padrão da minha vida! É apenas um sapato, um momento, um símbolo, uma pequena razão! Isso não quer, de forma alguma, impor uma única e plausível verdade sobre nossa existência! Pode entender isso, por mais intransitivo que possa parecer? M - Chega! Estou realmente cansada de tanto abuso! Você me liga, eu venho. Agora vem tentando distorcer algo tão planejado, cristalizado em minha mente? Não vou ficar aqui ouvindo devaneios de muito mau gosto! Porque se você fosse pelo menos um pouco mais “homem”, deixaria que nossas vidas seguissem ao horizonte! P - Minha atitude é de salvação! De apego material e espiritual a algum sentimento que deixamos se perder no passado! M - Você se perde aí... P - Como? M - Não existe sentimento no passado, presente e muito menos no futuro! O amor é atemporal! Não aprendeu isso, não? Poderia ter aprendido. Com que tipo de espectros você foi educado? Ensinaram-lhe essa relação inábil de presente, passado e futuro? Essa educação de placenta te destruiu, 99
como um meteoro ao atingir uma selva! Acabou perdendo sua originalidade macacal! P - (Os dois riem) Uma das definições mais engraçadas que já ouvi! “Perdendo sua originalidade macacal’’?! Isso não quer dizer muita coisa vindo de uma pessoa que por natureza perdeu suas atitudes macacais? M - Eu tenho plena consciência disso, mas mesmo assim não fico tentando me lembrar de algo que já está perdido. Basta de tanta saturação, não se cansa de ficar oxigenando um corpo morto? Nosso relacionamento foi um ser vivo! Hoje é um pedaço de matéria! P - Isso! Eu necessitava desse desajuste emocional para mostrar algo que você vai gostar! Espero que sua memória esteja a favor do meu merecido esforço. M - O que está aprontando agora? Não quero mais ficar lembrando coisas inúteis! Já não disse que estou moída por dentro e você não está nem um pouco diferente? Isso já definiu muita coisa, não acha? P - Espera um pouco! Deixe-me pegá-los! Espero que fique chateada com meu modo desajustado... M – Por que ficaria? Uma das únicas lembranças que tenho é desse desajuste irritante! (Gargalhadas incontroláveis) P - O que foi? Espera mais um pouco! M - Lembra-se do dia em que resolvemos ter um livro? P - Lembro-me, com certeza! Por que não lembraria? 100
M - Como gostaria de ter tido um livro! Eu cuidaria dele como ser fosse perfeito! Zigue-zaguearia cada dobrinha do seu corpo, cada nervinho de celulose que pudesse pegar, debruçaria seus braços sobre meu busto e poria para dormir, contando as mais invariáveis histórias que conheço! Por não conseguimos ter um livro? P - Posso dar a mais fria das respostas? M - O que seria a mais fria das respostas? P - Porque até hoje você não conseguiu assumir que não se fala livro, mas sim filho! Seres humanos têm filhos! Gênios escrevem livros! Pronto, achei! Esse é, indiscutivelmente, um belo par de sapatos! M – Não, eu não quero vê-lo depois desse absurdo que você me disse! Quer realmente que eu curta contigo uma memória? Não tente me fazer acreditar que em lugar de um... um livro nós temos essa outra palavra! P - O sapato que você usou no nosso casamento! (O salto da sapato deve estar quebrado) Sei, com certeza, que ficará emocionada! M - Você planejou tudo, não foi? Nesse momento me contaria sobre o livro que não tivemos e pegaria o sapato mais lindo que já tive, não é? P - Sem dúvida alguma! Porque se jogasse corretamente contigo, não estaria aqui para juntos lembrarmos do nosso casamento, felicidade... M - Tem outros sapatos? 101
P - Inúmeros! Esse é da nossa primeira festa! Lembra-se? Esse é de quando eu fui ao emprego pela primeira vez. Esse outro é de quando você brigou com aquela mulher pensando que ela estava dando em cima de mim, naquela festa de família ridícula! M - Não sei como nós aguentamos tantas patologias juntas. P - Será porque as nossas são maiores? M – Não, creio que não! E esses, são de onde? P - Esses eu não posso falar! M – Por que não pode me falar? Além de tudo, é um sapato feminino, e não me lembro nem um pouco! P – Vai ficar com ciúmes? M – Por que ficaria? Não temos mais nada há muito tempo! Tudo bem se você me traiu, isso é normal. P - O problema não é esse! Na verdade, eu não cheguei a te dar esse sapato! Por que? Não consigo explicar! Nosso relacionamento não ia muito bem! Comprei no sentido do agrado e pensei que esse presente não faria mais qualquer efeito! M - Espero que não esteja me culpando! Não me lembro da grande maioria desses sapatos! E a culpa não é minha! P - Mas eu posso dá-lo agora? M - Não quero! Por que o aceitaria agora? Seria um acortesia 102
da sua mediocridade ou um laço vermelho para nosso fim de relacionamento? Acho melhor nós nos despedirmos logo, quero poder chegar em casa e tomar os meus remédios... P – (Pega Márcia e a beija, um longo e forte beijo no pescoço, na parte de trás) Você gostou do beijo! M - Que beijo? Você não tem ideia alguma de onde me beijou, não é? P - Na boca, não foi? M - Poderia ter sido, mas como não sabemos onde está, ficamos meio perdidos! Você deve ter beijado meu pescoço! P - Isso é um problema! Nós não temos rosto! Fica muito difícil um beijo entre pessoas que não tem ideia do que elas realmente são! M - Isso talvez não seja o pior! O pior é tentar lembrar-se de um beijo bom, mas o gosto não vem! Isso deve ser um absurdo maior, não acha? P - Também acho! Mas nesse beijo, esse que acaba de se concretizar, me fez pensar em uma coisa! M - Em quê? Não venha mais me beijar! Porque se não temos semblantes, você pode acabar beijando algum lugar do meu corpo que não seja naturalmente uma boca! P - Então podemos experimentar outros...? (Caem na gargalhada)
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M - Canalha! (Ele encontra um sapato e tenta esconder dela) M - Só você para me fazer dar quatro gargalhadas em um dia só. No lugar onde está meu rosto tem uma boca rindo! Ultimamente, estou rindo a cada dois anos! O que é isso que você está escondendo de mim? P - Isso você não pode ver de forma alguma! M – Por que não posso ver? P - Porque ficaria muito mal e, com certeza, seu semblante, onde quer que ela esteja, ficaria triste. E não quero ter que imaginar um semblante ao horizonte chorando! M - Para de romantismo e me fala logo! O que você está escondendo de mim? P - Não há necessidade que você saiba! M – Por que não há essa necessidade? Poderia parar de ditar as regras aqui, meu querido ex-marido?! Se o assunto tem a ver comigo, preciso saber... P – Não, não vou te falar. Vamos mudar de assunto! Tenho outro sapato, que com certeza você vai lembrar. Lembra-se daquele que usou no batizado do seu sobrinho? Que dia horrível, reclamou muito. Estava usando um dos mais bonitos sapatos que dei... Vou buscá-lo para você vê-lo. M - Vou-me! Chega, não vou ficar aqui ouvindo tanta asneira! Poderia me dizer do que você está falando? Não me 104
lembro de batizado nenhum. Sobrinho, que sobrinho? Creio que isso é um devaneio absurdo! Você realmente não vai me responder o que está escondendo de mim, não é? Pois bem, meu querido ex-marido, estou indo e espero que não corra nunca mais atrás de mim! P - Então vai... M - Mas antes quero ver o que você está escondendo de mim! Vamos, mostre-me... P - Esqueça! Você já desistiu das suas lembranças, mas eu ainda não desisti das minhas! Por fim, (subindo a escada) espero que seu córtex cerebral definhe e que suas lembranças não façam mais parte de nenhuma região do seu cérebro... M - Como? P - Ouça-me! E quero que essas regiões não consigam mais expressar nenhum sentido e muito menos um sentimento! Terá apenas direções insólitas, mas cujo destino será uma dimensão indivisível e aparentemente doentia! M - Faço minhas as suas palavras! Porque o mesmo sopro de amor que nos anima, nos faz ouvir essas barbaridades desumanas. O sopro nos aleija da mesma forma que seus grunhidos vocais. Sua palavra tem peso, tem dor, tem ódio... Como poderia não me lembrar de palavras e sentidos tão destrutivos e doentios como os seus? Nós somos o nosso próprio sentido e doença! P - Não creio que o amor que nós alimentamos nos fez criaturas tão desiguais...
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M - Na verdade, ele nos fez pessoas altamente iguais! Não tenho lembranças, e você também não! Somos fusão da mesma forma! P - Isso nos fez doentes! Perdemos nossa identidade? M - Sim! O que alimentava nosso amor do princípio eram as nossas diferenças, nossas agudas diferenças. Com o passar do tempo, nos tornamos iguais, unilaterais... P - Mas a máxima diz que... M - Que máxima?! Meu amor... P - Amor? M - Não se preocupe! Isso foi apenas um impulso não condicionado de uma região do meu cérebro! Isso é normal quando tentamos matar sentimentos da nossa memória, mesmo não tendo noção nenhuma da lembrança que precisa ser esquecida. P - Você é suicida! Nesse contexto, é melhor ficarmos longe, porque ainda acredito na minha felicidade! M - Chega! P – Por quê? Não quer mais escutar? M - Não! P - Farei você lembrar. M - Não! 106
P - Sim! Ao perceber que está errada em sua própria existência, talvez você morra, mas não me sentirei culpado. Prefiro que morra... (descendo a escada, ele deixa cair um pequeno sapatinho de bebê) M - O quê? (pequena pausa) Então é isso que estava escondendo de mim? Não tem vergonha de fazer... P - Você vai ficar com raiva de mim? M - Claro que sim! P - Porque está lembrando o seu maior medo? Não tenho culpa nenhuma e, além de tudo, não estou aqui para fazer o que você precisa ter! Estou aqui para fazer você lembrar que nós precisamos de um novo sopro. Um sopro de cunho celestial! M - Eu me canso! Todos os dias, escuto impulsos elétricos informando que estou destruindo a coisa mais preciosa que tenho, e isso me faz infeliz, é claro, mesmo não acreditando no infortúnio da infelicidade! P - Desculpa! M - Desculpa uma merda! Você me faz lembrar o assunto que mais tenho medo de lembrar? P - Mas você tem que lembrar! Talvez seja o sopro divino que estamos precisando! M - Como você me pede para lembrar que tenho uma placenta? Isso é invariavelmente doloroso para mim! Estou aleijada, estou inundada de ódio pela minha placenta! 107
P - Não! Pensar dessa maneira não aleija mais a sua condição? M - Mas a culpa não é apenas minha! P - Eu sei disso! Eu não deveria ter te culpado pela morte do nosso filho. Ainda não estava no nosso colo! Isso me fez sofrer... M – Por que me culpou pela perda do nosso livro? P - Porque se ele tivesse nascido nós estaríamos escrevendo nossa união genética por toda a eternidade! Seria uma projeção do nosso amor! M - Isso não é desculpa! Não terá jamais ideia do que é perder um livro, e junto com ele... P - Mas eu te fiz lembrar a importância disso... M – Você me fez lembrar a importância do sofrimento para nossa evolução! P – Então... (subindo as escadas e jogando inúmeros sapatos) M - (Ela começa a ficar em choque) Isso me lembra da primeira viagem que fizemos! Quebrei o salto quando entrava no carro, lembra? P - Esse meu sapato sempre foi o preferido! Uma das anedotas mais engraçadas que já aconteceu conosco! Lembra-se da foda que tivemos dentro daquela repartição pública? 108
M - Lembro. P - Foi depois daquela foda que tive que trocar de sapato, porque tivemos que sair correndo logo depois que os funcionários públicos acordaram do seu transe vespertino. M - (Risos, grandes risos) P - Talvez essa seja uma das risadas mais lindas que já ouvi! M - Nunca! Me diz uma coisa... P - Digo inúmeras... pode falar! M - Se nosso livro tivesse sido gerado por inteiro, nós saberíamos educá-lo com maestria? P - Não sei se com mastreia, mas como pai e mãe, sim. M - Às vezes, penso que poderíamos ter adotado outros livros? P - Mas nosso casamento foi definhando junto com nossa alma! Pessoas desprovidas de duas instituições tão sólidas não podem educar ninguém... M - Obrigado! P – Por quê? M - Por isso tudo! P - Então terminamos aqui!
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M - Não! P - Tem ideia de onde poderíamos terminar isso...? M - Não sei! Podemos começar isso logo depois que eu achar o valor da minha placenta e poder senti-la dentro de mim novamente! P – Mas, para você ter uma nova placenta, precisa de uma ajuda minha, não acha? M - Claro! Mas preciso de um tempo pra poder digerir tudo isso... P - Ainda tenho lembranças que farão você enlouquecer! M - Mas creio que não preciso de mais nenhuma, já tenho as principais! Tenho que realojá-las dentro de mim novamente! P - Isso leva um tempo! M - Eu não acredito no tempo! P - Pois bem... Tenho uma coisa que você vai adorar! Vamos começar tudo do zero... M – Melhor: vamos começar sem destruir mais nada! Começar do zero me leva até uma leve sensação de estar destruindo um passado! P - Mas precisamos ter uma nova identidade! M - Na verdade, vamos desarticular a identidade errônea que temos! Me beija? 110
P - Como? M - Me beija? P - Assim? Na frente de todas as nossas lembranças? Isso não vai ficar muito bem... M - Cala a boca e me beija! (Beijos na boca) P - Posso te mostrar uma coisa? M - Agora? No meio das nossas lembranças? Adoro seu rosto machucado... P - Também adoro seu rosto machucado! M - Teremos que aprender a tê-los! Sim, vamos, mostre-me. P - Eu tenho algo guardado para você! (subindo a escada) M - Cuidado pra não cair! (Paulo começa a brincar com a escada, equilibrando-se) M - Cuidado! Não! Ei... por favor! Tenha cuidado... P - Terei! (Pega um sapato novo) Calça, por favor! M - Eu não me lembro desse sapato! P - Eu queria ter tido tempo para fazê-la lembrar tudo que é necessário, mas pelo menos o essencial foi feito... 111
M - Sim! Mas esse sapato é de quando, onde, ocasião...? P - Ele é novo! Vamos começar uma nova jornada de lembranças... M - Obrigado! Um pouco apertado, mas é lindo! P - Não dá para apagar tudo, infelizmente! M - Me beija! P - Tenho outro que quero que você lembre! Esse você lembra! É daquele churrasco que fomos... E esse... não? Esse eu tenho certeza que vai lembrar! Esse tem um sentido embutido lindo dentro dele... (Luz em resistência) E esse? Me beija mais uma vez... Esse é lindo... (Tenta subir na escada, mas acaba caindo do terceiro degrau) M - Cuidado, meu amor! Posso te falar uma coisa? P - Sim... (luz apagando) M - Vamos fazer livro?! P - Na frente de todas as nossas lembranças? Bem, um ótimo lugar! (Blackout)
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Por que pular degrau se a gente pode voar?
(2010)
Paulo e Raquel vivem grandes histórias de descobertas. Cena I (A cena começa com uma enorme escada sem vida e cor) Paulo – (Entrando em cena) – Corre. Corre, Raquel. Eu te obrigo... (Obrigar tem que parecer uma espécie de brincadeira infantil) Raquel – Obriga a que? Paulo – A correr. (tempo) - Vamos brincar nessa poça d’água? Raquel – Não. Eu não quero pular. Aliás, temos que voltar, já está tarde, meus pais ainda não voltaram... 113
Paulo – Seus pais foram aonde? Raquel – Eu não sei. Devem estar em algum restaurante. Eles sempre vão para algum restaurante quando estão em crise. Paulo – Crise de quê? Raquel – Crise no casamento. Talvez, a pior delas. Paulo – Pronto! Eu te obriguei a correr e você tem que fazer, senão eu vou te molhar. Raquel – Eu já falei que não quero. Estou me sentindo um pouco cansada. E sua avó? Como ela está? Paulo – Deve estar dormindo... Raquel - ... E de boca aberta? Paulo - ... E quando ela dorme dá para fazer tudo. Raquel – De tudo mesmo? Paulo – Eu sou o dono do mundo, sabia? Raquel – Somos bem diferentes, porque só saio de casa quando meus pais deixam. Por que você se acha o dono do mundo? Paulo – Eu sempre saio, com minha avó deixando ou não, porque eu sou o mais inteligente. Sou um garoto esperto e sempre acho uma forma de passar a perna nela e saio. Raquel – Então é assim que nos sentimos donos do mundo? 114
Enganando uma idosa? Paulo – Deixa disso, Raquel. É tudo brincadeira. Eu só aproveito quando ela está dormindo, vou passear e nunca saio do prédio. Raquel – Mas você já é super independente. Bem diferente de mim. Paulo – Que nada. Você é independente também, mas uma independência diferente. Como dos heróis de revistas em quadrinhos. E, assim, você e eu somos os donos do mundo. Como nos quadrinhos e nos contos. Raquel – Eu não gosto de contos de fada! Paulo – Eu também não. Mas nós temos o mesmo futuro deles... Raquel – ...Mas falta muita coisa. Somos muito jovens e não vivemos para sempre felizes. Paulo – Eu te obrigo! Raquel – Ai, Paulo. Assim, você me mata. Paulo – Vai dizer que não quer mais brincar? Raquel - Qual obrigação? Paulo – Vamos ser felizes juntos? Raquel – E como é que se faz?!
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Paulo – É assim. É sempre bem fácil sermos felizes e não ficarmos cansados. (ensinando) – Você tem que olhar para o teto! Olha?! Faz junto comigo. Me dê as mãos! Pronto. Olhando para o seu pedaço de teto. Tem que se concentrar. Concentra... Raquel – Que obrigação mais esquisita. Faz outra obrigação... Paulo – Não. Você quer participar ou não da minha obrigação? Se concentra.... Raquel – ...E como é que se concentra?! Paulo – Pensa em algodão doce e circo. Raquel – (Pensativa) Eu não posso imaginar um circo, porque nunca fui. Meus pais disseram que os circos estão deixando de existir. E depois, eu penso em quê...? Paulo – Pensa então em algodão doce e... e... caderno novo! Raquel – Que engraçado. Tá. Vai. Vou fazer... “Olhando para o teto e pensando em algodão doce e caderno novo”. (Começa a rir) Paulo – Pare de rir. Concentra. Raquel – Está bem! Essa obrigação é para sermos felizes. Paulo – É uma obrigação de amor. Você não quer me amar? Raquel – Eu não sei. Meus pais se amam e só vivem brigando. 116
Paulo – É normal. Eu já li muito sobre isso. Vamos, deixa de papo e começa logo a obrigação que te dei, acho melhor a gente se amar desde agora, porque vamos ficar mais tempo juntos. Agora, pensando naquelas coisas, você deve girar e concentrar... Raquel – Ok. Eu vou fazer... Pensando em algodão doce e circo, mas eu não fui ao circo ainda; pensando em caderno novo... (Iniciando o giro. Os dois começam a girar e gritar) Raquel – Meu Deus. (Ela cai na poça de água) Paulo – E aí, você gostou?! Eu sempre faço isso quando tenho saudades dos dias felizes ao lado da minha mãe. Raquel – Eu me machuquei... Paulo – É lindo porque tudo se mistura. Talvez, seja a minha melhor obrigação e só a faço para você. Raquel - Estou molhada. Paulo – Nesse mundo misturado, de algodão doce e circo, os pássaros são feitos de açúcar e eles não voam quando chove... Raquel – ...Você consegue me escutar? (brigando) – Se me ama, me escuta! Paulo – ...Eles têm medo de cair. Os animais têm casas como os humanos. Os peixes flutuam e bem sei que peixe não pode ficar fora d’agua, mas esses usam capacetes de mergulhador. 117
Raquel – Eu vou embora. Paulo – Eu não contei do melhor... Raquel – (grita) Pare! Eu já estou cheia das suas historinhas. Você é um grande mentiroso. Paulo – O que foi? Não conseguiu ver o que eu vi? Raquel – Não. Estou cansada e com sono. Daqui a pouco, meus pais entram de carro nessa garagem e eu vou fazer o quê? Paulo – E os peixes, e os pássaros feitos de açúcar? Raquel – Nada. Paulo – Deu alguma coisa errada. Raquel – Claro que sim. Eu não te falei que nunca estive em um circo? Acho que ir ao circo é um ingrediente fundamental. Por isso, eu não consigo imaginar o que você consegue. Paulo – Pode ser! Raquel – Pode ser?! Eu não acredito. Meninos são todos iguais. Você parece o Ícaro lá da escola. Paulo – Ele ainda fica te enchendo com aquelas histórias sobre amor? Raquel – Não, parou. 118
Paulo – Eu cortei suas asinhas. Raquel – Não precisava. Eu sei me defender muito bem. Paulo – É o que toda mulher diz... Raquel – Eu ainda não sou uma mulher. Meus pais explicaram isso para mim e você não sabe de nada. Paulo – Pelo menos, você tem alguém para lhe explicar as coisas... Raquel – Desculpa! (tempo) - Eu te obrigo... Paulo – Aceito! Raquel – Você tem que me fazer feliz. Assim como nos contos de fada... Paulo – Eca! Raquel – Porque o nojo?! Paulo – É que nos contos de fada que minha vó conta pra mim, eles sempre se beijam no final. Raquel - ...E qual é o problema?! Paulo – Eu não quero te beijar! Raquel - ...E por que não? Não tenho mau hálito e não sou feia, tá?! Não é assim que se trata uma dama. Eu sou uma dama! (Categoricamente)
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Paulo- Tá! Desculpa. Eu vou te fazer feliz e para sempre, mas sem beijo. Raquel – Você sabe pelo menos o que é beijo? Paulo – Sei sim, eu sei de tudo. Raquel – Como é que é? Paulo – Deixa para lá. Muito complicado. Precisa de muito músculo. Raquel – Muito músculo? Paulo – Pelos menos, eu li isso no livro de ciências. Raquel – E como é que se faz? Paulo – Eu não vou te beijar. Não é certo. E vamos trocar de assunto, quero apenas te amar, não quero te beijar. Você é minha amiga. Raquel – Como é que nós vamos ser felizes se não tiver beijos? É dessa forma que se ama. Paulo – Beijos? Não era apenas um, agora são vários. Eca! Não se ama apenas por causa dos beijos. Raquel – Ei... deixa para lá. Está ficando tudo muito estranho. Eu deixo você me amar sem beijos. Acho que assim brigaremos menos. Porque meus pais vivem se beijando, mas nas suas brigas quebram todos os pratos de casa. Acho melhor a gente voltar para casa...
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Paulo – Vamos mudar de assunto? Deixa eu continuar contando como são as coisas no mundo misturado? Raquel – Não quero saber. Eu quero o meu mundo misturado. Não o seu. Estou cheia de histórias. Vamos pegar o elevador? Paulo – Você está muito estranha. Só porque tocamos no assunto de beijos. Tenho certeza que você nunca beijou um menino... Raquel – Já beijei, sim. Eu acho que você nunca beijou. Paulo – Eu já beijei centenas de meninas. Raquel – Até parece. (Neste momento a luz cai em blackout) Raquel – E agora?! O que vamos fazer? Paulo – Vamos subir de escada?! Raquel – Vamos demorar muito. (Cai um molho de chaves no chão) Raquel – As chaves! Procura junto comigo?! Como eu vou voltar para casa... Paulo - Vocês não guardam as chaves debaixo do tapete?! Raquel – Meus pais têm medo.
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Paulo – E agora?! Nós precisamos ir logo, porque a luz de emergência só dura três minutos! Raquel – Como assim?! Nós moramos no décimo segundo andar e com certeza a luz de emergência não vai durar até lá. Paulo – Raquel. Corre. Você fica na minha casa e quando voltar a energia eu desço e pego a chave. (Começam a subir) Paulo – Segura na minha mão que eu te protejo. Raquel – Como?! Eu tenho que segurar no corrimão. Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Paulo – Corre. Nós temos pouco tempo. (A luz vai minguando) Raquel – A luz está indo. Paulo – Corre. Corre. Vem devagar pra não cair. (Vão subindo paulatinamente) Raquel – Estou confusa. Corro ou vou devagar?! Me dá sua mão. (Ela grita) Acabou... Paulo – Calma, vamos conseguir chegar. Sua mão está suando... Raquel – Estou nervosa.
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Paulo – Não solta minha mão. (Começa a escorregar) Raquel – O que é isso molhado?! Paulo – Sua mão! Raquel – Eu acho que é a escada. Esse prédio é muito antigo. Paulo – Minha vó tinha minha mãe no colo quando veio morar aqui. Pelos menos, essa é a história que ela me conta. Raquel – Estou escorregando. (Raquel cai – Blackout) (Nesse momento a escada se abre ao meio e se transforma em uma escada-castelo. Está uma figura sentada. Uma grande Rainha. Raquel e Paulo na frente da escada, ela torceu o pé). Paulo – Raquel, você se machucou?! Raquel – Está doendo muito, Paulo. O que eu vou fazer agora...? Como eu vou subir a escada? Paulo - Calma. Vamos esperar que daqui a pouco a luz chega e nós vamos de elevador! Raquel – (Chorando) Qual é a explicação que eu vou dar para meus pais? Paulo – Fala a verdade!
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Raquel – Eles nunca mais vão me deixar em casa sozinha. (Rainha olhando de longe) Paulo – Eu queria ser um grande doutor para mudar tudo isso e fazê-la voltar. No meu mundo, as pessoas e os animais, não se machucam e a morte é algo que se decide ter ou não. Raquel – Aqui é o mundo real, Paulo. Estou machucada. Paulo – ...E tudo que faço é para você. Rainha - “Amor”? Maus crepúsculos para vocês! O que estão fazendo nas minhas terras? Paulo – Quem é a senhora?! Raquel – Quem é a senhora e por que está vestida desse jeito? Paulo – Eu não devo falar com a senhora. Não a conheço. Rainha – Meu nome é Clarice. Rainha Clarice. Meus súditos... Paulo - Não somos súditos de ninguém. Rainha – Todos os seres que vivem neste mundo são meus súditos. Aqui, a grande rainha sou eu. Vocês têm ideia de onde estão? Paulo – Sabemos. Estamos na garagem do nosso prédio. A senhora que é uma figura estranha, nós nunca a vimos passear por aqui. 124
Raquel – Não a conhecemos e não sabemos de onde a senhora veio. Vamos chamar o guarda... Paulo – Seu guarda! (Chamando) Rainha – Xiiii... (Silêncio) Não se preocupe, não vou fazer nada de “mau” com vocês. Claro que isso vai depender de vocês. Além disso, não faço mal a paupérrimas crianças. (risos) – Querem que apresente meu mundo? Raquel – Não, muito obrigada. (olhando) – Que lua linda. Paulo – Então não se aproxime de nós. Nós podemos ser muito maus. Rainha – Sem problemas. Meu objetivo não é fazer mal a vocês, estou aqui para uma pequena conversa. “Não gosto mesmo de crianças insolentes”. (Para a plateia) E vocês fedem a suor. Raquel – Paulo está doendo muito! Paulo – Já, já a luz chega e eu resolvo isso. Raquel – Vamos esperar mais um pouco. Rainha – Certo. Vamos começar logo. Raquel – Começar com quê? Paulo – Deixa para lá. Ela deve ser uma louca. (Durante todo esse tempo a Rainha Clarice não se aproxima) 125
Raquel – (Gritando) Está doendo muito, Paulo. Socorro. Paulo – Eu não posso fazer nada. Rainha – Eu posso... Paulo – No que a senhora pode nos ajudar...? A senhora não parece ser médica, muito menos enfermeira. Seu guarda!... Rainha – Sou doutora de todas as enfermidades. Paulo – Isso não existe. Ninguém sabe de tudo. Rainha – Eu sei menino. Eu posso curar a sua namoradinha... Raquel – Ele não é meu namorado. Rainha – Certo. Você quer que eu a cure ou não? Não posso ficar perdendo o meu tempo. Paulo – Claro que quero. Rainha - Mas a cura terá um preço. Quero algo em troca... Paulo – Dinheiro eu não tenho, mas posso pedir para minha vó. Rainha – Não, seus tolos. Eu não vivo de níquel. Nesse mundo não precisamos de dinheiro. Raquel – Você está no mesmo mundo que a gente? Rainha – Não. Eu não sou do mundo de vocês. Vocês humanos suam e detesto suor. Eu sou dona deste mundo. O 126
meu mundo é como uma maçã cortada ao meio, como vocês podem ver na lua, que a linda garotinha achou bonita. É o único planeta que tem sua forma espelhada pela lua. Aqui só vivem seres encantados e desencantados. Encantados, como eu; e desencantados como todos os outros. Raquel - Que mundo?! Uma garagem...? Paulo – Esse é seu castelo? E como são os outros? Rainha – Sim, é meu castelo-escada e não há outros castelos nesse mundo. Os que tinham, eu fiz questão de destruir. Aqui há seres de grande porte como eu e a feiticeira-sapa, além dos seres inferiores, como os cordas de violino, os gatos de olhos de prata, os pássaros que nevam, a Senhora com Rosto de Leque e, é claro, o Lord River, que são vermes. Raquel – A senhora deve ter muitos desamores e desafetos. Rainha – Você quer morrer, pequena menina? Estou tentando ajudar e você é insolente como os pássaros que nevam e não pedem licença para sujar o espaço por onde passam. Querem ajuda ou não? Paulo – No que a senhora poderia nos ajudar? Rainha – Eu posso consertar o pé dessa menina e em troca... Paulo – E em troca... Raquel – Não temos nada para oferecer, mas agradeceria muito se a senhora resolvesse meu problema. Paulo – O que a Senhora Rainha Clarice quer em troca? 127
Rainha – Uma coisa simples. Paulo – O que seria uma coisa simples? Rainha – Bem. Eu não tenho muito ideia do que poderia ter de vocês. Porque já tenho tudo no meu mundo. Raquel – Se a senhora já tem tudo, no que poderíamos ajudar? Rainha – Já sei. Algo que talvez não tenha tanto valor para vocês! Paulo – O que, por exemplo? Minha coleção de revistas velhas? Raquel – O que seria? Rainha - Talvez o seu mundo misturado. (com nojo) – Onde os pássaros são feitos de açúcar. Paulo – Nunca. E porque razão a senhora quer algo que só é real para mim? E como a senhora sabe da existência dele...? Raquel – Isso não existe. Paulo – Existe sim... Raquel - É pura imaginação. Rainha – Se vocês não querem, não posso fazer nada. Eu quero uma simples troca: o pezinho da sua namorada pelo seu mundo misturado. E, aliás, a falta de energia pode durar dias, semanas e meses... Quando vocês entram para esse 128
mundo, naturalmente, eu começo a ter poder sobre o de vocês. Paulo – Vamos esperar pelos pais dela, daí resolvemos tudo e você será expulsa daqui. Rainha - Vocês ainda não entenderam que não estão no mundo de vocês? Aqui estão sob minha jurisdição. O tempo é meu. Enquanto vocês estiverem aqui, os pais da garotinha vão ficar no restaurante para sempre e sua vóvó ficará dormindo para toda eternidade e de boca aberta. Paulo – Chata! Raquel – Eu posso aguentar. Não há necessidade de fazer uma troca tão absurda. Com certeza ela não tem poder nenhum, está brincando com a nossa cara. Que troca idiota: o mundo misturado pela cura do meu pé? Paulo está doendo muito. Rainha – Apenas uma troca simples. Paulo – Se esse mundo é o que ela quer, eu posso oferecer! Rainha – Eu o quero para mim. Mas não posso tê-lo se for oferecido dessa maneira. Raquel – Não entendo. Paulo – Podemos fazer o seguinte: Você cura a minha amiga... Rainha – Namoradinha! Paulo - ...Amiga! E eu deixo você ficar com parte dele. 129
Rainha – Insolente. Vocês como namorados que são não tem obrigações para cumprir? Qual é sua obrigação? Não é salvar sua namoradinha? Beijar e amá-la? Então, podemos fazer da minha maneira: Eu salvo sua amiga e vocês terão a oportunidade de se salvarem. Entendem...? Raquel – Como assim? Rainha – Eu proponho um jogo... Paulo – E o que nós podemos fazer para jogar? Rainha- É um jogo pesado, mas as regras são simples. Raquel – E o que seria esse jogo? Rainha – Apenas três tarefas. Nada de muito absurdo. Raquel – Como todo jogo, se nós perdermos o que acontecerá conosco? Rainha - Se vocês não conseguirem terminar o jogo vão virar escravos no meu mundo e nunca mais voltarão para suas casas e eu terei direito a uma das mãos de cada um. Paulo – Como perder uma mão? Raquel – Perder uma das mãos? Não. Não vamos participar desse acordo. Rainha – As regras são simples. Desejam ou não? Ou você acha que vai aguentar por muito tempo a dor? Raquel – Podemos pensar?! 130
Rainha – Claro. Vocês têm todos os tempos do mundo. Raquel - Acho que as possibilidades de perdermos são grandes, Paulo! Paulo – Mas antes disso, do acordo, eu preciso saber que história é essa de perder a mão. Rainha – Vamos fechar logo o contrato... Quero saber se estão dispostos ou não. Estou cansada e preciso saber qual é a sua resposta. Paulo – Preciso pensar. Rainha – Não há o que pensar. É tudo muito simples e as regras são claríssimas. Aceita ou não? Raquel – Meu pé está ficando dolorido demais, já não consigo sentir os dedos. Paulo - Está aceito. Caso a Senhora Rainha Clarice perca, nós estaremos livres e poderemos voltar para o nosso mundo... Raquel – E com certeza não ouviremos mais nada sobre a senhora. Rainha – Acho tudo isso muito chato, crianças. A causa já está perdida para vocês e, se não estão sabendo, é quase certo que dê tudo a meu favor. Espero que estejam preparados para se juntar aos meus meninos e meninas sem mãos do lago verde. São escravos e catam diamantes para minha coroa. Porque é para lá que vocês estarão indo depois que eu terminar com tudo aqui... 131
Raquel – Lago Verde? Meninos sem mão? Diamantes para coroa? Rainha – Vamos fazer logo o acordo! Raquel – Eu não quero virar um zumbi sem alma! Paulo – Eu faço tudo por você, Raquel. Se você quiser, eu aceito a proposta. Raquel – Porque tantos desafetos, senhora Clarice? Paulo – Acho que a senhora precisa é de um príncipe. Raquel – Como nos contos. Através de um beijo os sapos viram príncipes. Rainha – No meu reinado, nunca um sapo virou príncipe. Estão todos na minha capa. Os transformei em tecido. Vejam... Raquel – Esqueça, Senhora Clarice! Não estamos preocupados com a senhora e o fato da senhora nunca ter conhecido o amor, é uma mulher má. Rainha - ...Rainha Clarice é como eu gosto de ser chamada! Vamos logo aos presentes! Serão três etapas simples, tendo em vista que será necessário que sejam feitas em sete luas de ferro. Raquel – Quais são essas luas...? Paulo – (Apenas para Raquel) No meu mundo misturado, eu conto o tempo com 12 roedores que vivem em um baú de 132
vidro. Rainha – Apenas sete luas de ferro... Paulo – ...Não é preciso se preocupar já que nós faremos isso o mais rápido possível e nunca mais olharemos para sua cara. Rainha – A primeira será pelos espaços dos gatos de olhos de prata. O que quero é muito simples. Apenas um pelo. Mas atenção: eles são altamente rápidos e espertos. Raquel – Apenas isso? Vai fazer feitiçaria com um pelo de um animal...? Precisamos ter um pelo de um gato?! Rainha – Sim. Parece uma tarefa simples, mas não é! Porque eles são intocáveis. Em momento algum vocês poderão tocar nesses seres, porque eles absorvem os anos de vida de quem os toca. Paulo - Segunda etapa... Rainha – Vocês precisarão passar pela casa da mulher de rosto de leque e roubar apenas um pedaço de fita de seu vestido. Todos esses encontros poderão levar vocês à prisão eterna ou à morte. Paulo – Não se preocupe. Somos bem espertos. Passaremos pelas duas etapas tranquilamente. Raquel – Apenas isso...? Paulo – Quero saber por onde podemos começar. Raquel – Para que lado? 133
Rainha – Eu mostrarei o primeiro passo e vocês seguirão o restante. Eu vou dar um olho da maior vidente que já existiu entre nossos mundos e será com ele que eu poderei saber onde estão. E ele precisará estar sempre com vocês, por isso, ele irá com um cordão. Paulo- E qual é o último trabalho...? Raquel – O que precisaremos fazer para sairmos o quanto antes daqui? Rainha - Eu torço para que não saiam nunca. Não há melhor mundo do que este. Paulo - ...E por que você quer o mundo misturado? Rainha – Isso é um problema meu. Raquel – Qual é o motivo para você nos dar essas dicas? Paulo – Porque ela precisa alcançar os objetivos dela. Ela não quer que a gente se perca e não consiga achá-los. Rainha – Muito bem, garoto insolente. Aliás, a última etapa é excelente. Vocês precisarão chegar até o rio de chaves. Quando chegarem lá precisarão mostrar ao rio porque vocês querem o favor dele... E essa tarefa, não é para mim, mas para vocês, ou seja, é de lá que vão conseguir a chave da casa da sua linda namorada. Raquel – Essa tarefa é muito simples. Mas o que ela tem em relação aos seus interesses? Rainha – Calma... que explicarei nada. 134
Paulo – Vamos conseguir realizar tudo em menos de duas luas de ferro. Rainha – Mas ainda não falei o mais difícil. Vocês precisarão fazer algo para terem a passagem definitiva para o mundo cheio de suor de vocês. Raquel – Sim, fale, conte-nos logo, porque não podemos ficar perdendo o precioso tempo das luas. Rainha – Muito simples. Vocês terão que matar o Lord River. Paulo – Matar? Somos crianças e não temos direito de matar ninguém. Raquel – A senhora é uma louca. Eu prefiro ficar para sempre aqui a ter que matar uma pessoa. Rainha – Creio que vocês não tenham mais escolhas... Paulo – Um pelo, um pedaço de fita, nossa chave e a morte. Rainha – Um pelo, um pedaço de fita de cetim e a morte. Assim, vocês conseguirão a chave. Raquel – Três objetos, uma morte e sete luas. Rainha – Ok, ok, não posso ficar perdendo meu tempo. Agora, vão... Paulo - Como eu posso ir se a Raquel não está melhor do pé? Raquel - Impossível, eu serei um peso morto. 135
Rainha – Mortos vocês estarão comigo (à parte). Paulo – Deixe-a curada. Rainha - (Ela se aproxima da garota, passa a mão pela perna) Pronto! Espero que possam terminar o trabalho e quero que os objetos sejam entregues pelas suas mãos. Agora, vão... Por sinal, o tempo está passando... (Eles começam a seguir um caminho. Rainha Clarice aciona as sete luas e o tempo começa) (Saem de cena) Cena II (Luz baixa, gatos feitos de madeira, com olhos brilhantes) (Entram em cena) Raquel – Há quanto tempo estamos andando? Paulo – Não sei, o relógio está girando ao contrário. Por que será? Raquel – Meus sapatos estão sujos. Acho que nos perdemos quando passamos por aquela lagoa suja. Paulo – Qual será o problema desse relógio? Gato – (Voz alta e imponente) E nunca mais fará tic, tac, tic, TAC! Paulo – Quem é você? 136
Raquel – Estou com medo. Gato – Os relógios deixam de fazer tic, tac quando alguém faz um acordo com a Rainha Má. Eles começam a fazer tac, tic, tac, tic revelando o tempo de vida de alguém ou um prenúncio de morte. (mudança de humor) – Não precisamos que tragam suas sujeiras para dentro do nosso espaço! Raquel – Como assim? Não estamos sujos. Gato – Esses sapatos estão imundos. Somos gatos e gostamos de limpeza. Tire-os já, senão não vão poder ficar aqui. (Raquel tira o sapato e fica com ele na mão) Gato - Assim é melhor. Garota, tome muito cuidado para nenhuma parte dessa sujeira cair no nosso chão. Paulo - Nós precisamos de algo e não sabemos onde encontrar... Gato – Não podemos ajudar em nada. Raquel – Não vejo nada. Não sabemos se são vários ou apenas um. (Começam a parecer sombras enormes de gatos) Gato – Isso responde sua pergunta minha garota? Raquel – Como você é bonito. (Tenta ir ao encontro dele) Paulo - Não toca. 137
Gato – Quem contou o nosso segredo? (furioso) Paulo – Foi a Rainha Clarice. Gato – Então, estão de acordo com aquela mulher? Não são bem vindos aqui. Vão embora agora... Paulo – Por quê? Gato – Vocês não sabem no que estão envolvidos. Ela é uma pessoa má. E todos os acordos que alguém já fez com ela, não acabaram bem. Raquel – O que aconteceu...? Gato – Uma história muito longa. Acho que não devo contar e, além disso, vocês não têm tempo suficiente para eu contar essa história trágica. Quantos tempos vocês tem? Paulo – Um pouco mais de seis luas! Raquel – O que aconteceu com a Senhora Clarice? Paulo – Você pergunta muito o que “ACONTECEU”... Raquel – Nós precisamos saber o que está acontecendo! Gato – Pois bem, é uma história que começa com uma feiticeira-sapa e o poder que ela lançou sobre a Senhora Rainha Clarice. Ela e o senhor Lord River eram apaixonados e a sapa lançou uma maldição sobre o castelo da Rainha, onde todos os dias o casal choraria as dores dos mortos. Raquel – E por quê? 138
Gato – Só acabaria no dia em que eles se separassem! Lord River e a Senhora Rainha Clarice brigaram porque Lord queria amenizar os efeitos do feitiço e assim resolveu morar perto da montanha. Sendo que a Senhora Clarice nunca mais poderia revê-lo, porque sempre que estavam juntos, alguém morria. Raquel – Que história triste. Gato – Diferente de todos os outros seres, a Senhora Rainha Clarice não era imortal, ela é de uma linhagem diferente da gente. Por isso, ela sempre tenta roubar os nossos pelos, porque ela precisa de anos de vida que só as crianças têm. Ela pediu para entregar nas mãos dela, não é? Paulo – Sim. Gato – É neste momento que ela extrairá toda a sua vida. Por isso, cuidado. Ela, com certeza, mandou vocês matarem o Lord River, não foi? E vocês nunca conseguirão... Paulo – Por quê? Gato – É que sua imortalidade é feita pelas nuvens, por isso, é infinita. Com isso, vocês não conseguirão cumprir essa etapa do desafio. Raquel - Então poderemos ficar aqui para sempre? Gato – Sim, menina Raquel. O Lord é imortal, mas a rainha Clarice não é. A feiticeira-sapa, que hoje é apenas um olho, ofereceu a vida eterna a ela. Mas pediu algo em troca. Raquel – Qual foi o pedido? 139
Gato- Que a Rainha Clarice e o Lord River nunca fiquem juntos. Por isso, enquanto existir o feitiço, a Rainha Clarice é imortal. Caso o feitiço seja desfeito, ou a feiticeira-sapa morra, a rainha morrerá. Paulo – Uma escolha difícil... Raquel – Esse olho que está no meu pescoço é a feiticeirasapa? Gato – Sim. Façam o seguinte: escondam o olho para a rainha não ver o que vocês fazem, entenderam?! Paulo – Sim. (Colocam o olho no bolso) Raquel – Mas precisamos de um objeto seu... Paulo – De um simples pelo. Gato – Não posso oferecer isso para vocês. Vocês, garotos, não sabem o que ela irá fazer com este pequeno objeto? Irá tirar a vida de vocês... Paulo – Já sabemos, mas estamos totalmente desesperados. Precisamos voltar para casa e, além disso, minha amiga estava com o pé torcido e foi ela que a fez andar novamente. Gato – Que cúmulo. Se vocês estão dispostos a sair desse mundo precisam aprender coisas certas. Raquel – O que podemos fazer? (quase perto dele) Que pelo lindo. Você escova todos os dias? Eu tenho um lindo gato em 140
casa, sabia? Gato – Solte-o. Eles não precisam estar presos nessas casas. Paulo – O que o senhor pode fazer para nos ajudar? Gato – Vamos... Eu preciso que todos vocês miem para que possam interferir no olho e ela não perceba o que estamos fazendo. Raquel – Ele já está escondido. Gato – Melhor assim... (Gatos começam a miar) Gato – Eu lhes darei um pelo, mas esse fará com que ela envelheça. Raquel – Porque ela quer o seu pelo? Gato – Porque ela precisa de um pelo para viver mais um milênio. Paulo – E ela sempre conseguiu? Gato – Sim. (Ele dá um pelo a eles) – Mas vocês, que são garotos de bom coração, farão tudo ao contrário. Raquel – Quantas crianças já passaram por aqui? Gato – Milhares. Mas não vou falar das histórias horríveis para vocês não ficarem assustados.
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Paulo - ...E porque ela falou que nós poderíamos perder uma das mãos? Gato – Porque o nosso pelo apenas dá o poder para ela absorver os anos que ela precisa. O pelo precisa ser entregue pelas mãos de uma criança, só assim ela conseguirá tomar os anos de vida. Sejam espertos. Raquel – Claro, seremos! Paulo – O nosso caminho agora é procurar certa senhora com cabeça de leque. Gato – Senhora Rosto de Leque! Sorte e bravura para vocês, porque o que tinha que fazer já está feito. No caminho, vocês perderam duas luas. Cuidado com ela, porque ela vai perceber todas as verdades e todas as mentiras e, além disso, vocês deverão entrar no espaço dela com as mãos e braços para trás do corpo. (Rainha Clarice no topo da escada) Rainha – Gatos imundos. Violentos! Ainda estão virando os buracos de lixo do meu castelo? Paulo- Não precisa disso, senhora Clarice! Estamos fazendo tudo da melhor forma possível! Clarice- Estou aqui, porque não pude mais visualizá-los do meu castelo. Cadê o olho da feiticeira-sapa? Raquel – Ele está aqui. Clarice – Não falei para deixá-lo no pescoço? Assim, não 142
poderei acompanhá-los. Gato – Continua amarga como sempre, não é? Clarice – Por que dirige suas palavras a mim...? Gato – Porque somos seu maior objeto de desejo, ou não somos mais? Clarice- Ainda farei um casaco de pele com vocês! Quero que devolvam o olho! Estou cansada disso... Paulo - Desculpe, senhora Clarice. Guardamos sem querer o olho. Raquel, coloca de novo no pescoço o cordão. Clarice - Se vocês estiverem me enganando, eu mandarei atirá-los no lago verde. Espero que esses gatos não tenham feito a cabeça de vocês como fizeram com a dos outros desencantados. Estão todos contra mim... Paulo – Não tem por que se preocupar, e não podemos ficar muito tempo. Raquel – Estamos indo para nossa próxima tarefa... Gato – Creio que seja a forma mais sensata de pensar, senhorita Raquel. Além disso, não tem necessidade de ficarem aqui. Vão e façam tudo! Paulo – Algum problema, senhora Clarice? Clarice - O único problema que observo é a relação de vocês com esse gato, mas espero que não tenha que me preocupar com isso. Já estou cansada de mandar pôr roedores 143
envenenados nos buracos da lixeira do castelo. Raquel – Mas eles são imortais. Não morreriam com veneno. Paulo – É, sem dúvida, isso não aconteceria. Clarice – Mas o tipo do veneno que coloco é para eles perderem boa parte de sua pelugem, assim eu não precisarei de crianças para pegá-los. Enfim... Gato – O que você faz à nossa linhagem é de uma crueldade sem tamanho. Diferentemente de você, nós somos imortais e veremos sua derrota. Garotos, está no momento de vocês irem. Clarice – Eles só irão quando eu mandar. Gato – Eles irão agora, não precisam perder mais tempo. Clarice – Que afronta. Por acaso, vocês, gatos imundos, acham que têm poder contra sua maior rainha? Gato – Conheci a senhora pequena, Rainha Clarice. Seus pais não ficariam contentes com esse horror em que se tornou. Clarice - É um mentiroso. Não ficarei aqui ouvindo tantas sandices. Paulo – Vamos andando, Raquel! Não podemos perder mais tempo. (Caminham para o outro lado do palco) (Saem caminhando) 144
Cena III (No centro do palco, uma mulher de costas com um lindo vestido medieval. Quando as crianças entram, ela se vira e, no lugar da cabeça, há um lindo leque com desenhos de olhos amendoados) Leque – Quem deseja falar? Paulo – Queremos falar com a Senhora Rosto de Leque. Raquel - ...Acredito que seja ela, Paulo. Leque - (Assusta a gritos) Eu não acredito! Vocês não podem fazer isso comigo! Maldosos. Crianças más. Paulo – Esquecemos. Precisamos colocar as mãos e os braços para trás do corpo. Ela não pode perceber nossos braços. Leque – Lindo. O amor... Faz um bom tempo que não me deparo com um amor juvenil. Faz séculos que não vejo um amor assim... Paulo – Bom dia, senhora rosto de leque. Leque – Não é bom dia. É um dia crepuscular hoje... As nuvens estão amontoadas ali perto da montanha fazendo festa a algum deus. Não repararam quando estavam vindo pela alameda? Raquel – Você é linda. Leque – Então, porque está com medo? O amor de vocês é lindo. 145
Paulo – Precisamos de algo seu... Leque – Eu sei disso. Eu sei de todas as verdades e todas as mentiras. E sei, também, que vocês não terão coragem de matar o Lord River. Raquel – Parece meus pais. Leque – Sobre qual aspecto? Raquel – Em saber de tudo! Leque – Você me acha chata como seus pais? Raquel – Você é linda. Paulo – Vai nos ajudar ou não? Leque – Não é assim, menino Paulo. Paulo – Como você sabe meu nome? Leque – É você o dono do mundo misturado, não é? “Onde os pássaros são feitos de açúcar e eles não voam quando chove...”. Já dei uma olhada por lá... Paulo – Que louco. Você vai nos ajudar ou não? Leque – Vou. Faz um bom tempo que nenhuma criança vem a estas bandas. Estão perdidos ou meus amigos gatos ajudaram vocês? Paulo – Sim, eles ajudaram, mas estamos a serviço da Senhora Rainha Clarice... 146
Leque – Ela continua cega? Paulo – Senhora Rosto de Leque, não fale assim. Ela pode nos escutar. Leque – Não se preocupe senhorio Paulo. O olho da feiticeira-sapa apenas dá o poder para a Senhora Clarice ver ao longe, mas não de escutar. Raquel – Por isso, quando escondemos o olho no território dos gatos olhos de pratas, ela veio nos encher? Leque – O amor de vocês é lindo. Vocês viverão para sempre juntos... Paulo – Somos apenas amigos. Bons amigos... Raquel – Isso, amigos. Leque – Falo apenas a verdade. O que vocês precisam de mim? Já que estão bem adiantados no trabalho e ainda faltam três luas para terminar as tarefas. Raquel – Precisamos de um pedaço de renda da sua saia... Leque – Não. Isso eu não posso dar. Sou muito vaidosa. Assim, como você Paulo. Os meninos são tão vaidosos como as meninas no mundo dos humanos, não é Raquel? Raquel – Sim, senhora rosto de leque. (Sem querer, ela mostra um das mãos) Leque – Que horror! Como você é uma pessoa má. Não 147
deveria mostrar as suas mãos, garotinha. Os dedos me dão medo. Tenho horror aos dedos. Esconda-os... Paulo – Rápido, Raquel! Então, você não nos ajudará? Leque – Aprenda a ouvir menino Paulo. Eu falei que vou ajudá-los, mas de outra forma. Assim como os gatos não deram nenhum fio do seu pelo precioso, e nunca dariam, eu também vou fazer o mesmo. Raquel, já que você me achou bonita, preciso que pegue um pedaço de estopa que está debaixo da minha saia principal de seda. Você tem coragem? Raquel – Eu posso fazer isso?! Leque – Mas você terá que tirar sem eu perceber seus braços e mãos. Raquel – Como eu poderei fazer isso, se vou precisar rasgar o pedaço de tecido? Paulo – Vamos fazer o seguinte. Venham até aqui perto. Eu vou subir nesse pedaço de muro e vou fechar seus olhos, assim ela poderá rasgar a tira sem você perceber seus braços e mãos. Leque – Muito bem, senhorio Paulo. Braços eu não tenho. (tempo) - Ela quer esse pedaço de tecido da minha roupa, porque ela precisa saber como estão seus súditos, se estão mentido ou não, e do pedaço da minha roupa ela fará lentes para os óculos que poderão alcançar as verdades e mentiras das outras pessoas, dos desencantados. Ela é uma pessoa que não tem confiança em ninguém. Vamos, menina Raquel, pegue!
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(Raquel pega o pequeno pedaço de estopa) Paulo – Muito obrigado. Leque – Não precisa agradecer. Eu percebo as suas verdades. Uma verdade é única. Lindos vocês são. Paulo – Somos apenas amigos, senhora rosto de leque... Leque - ...Acho que vocês precisam ir logo, porque as luas estão indo, caindo. Dê-me seu pulso... Paulo – Para quê? Leque – Eu preciso arrumar logo o seu relógio, porque o seu relógio faz tac, tic, tac, tic. E, isso, não precisa ficar assim. Porque conta as horas da morte de alguém. Raquel – Não discuta e faça o que ela pede. Leque – Coloque o seu pulso atrás da minha cabeça. (Fecha e abre o leque rapidamente) Leque – Eu consertei o seu tempo. Seu relógio voltará a bater tic, tac. Isso não quer dizer que eu quebrei o encanto, vocês ainda precisam cumprir essas tarefas. Eu, Senhora Rosto de Leque e os gatos olhos de prata, estamos lutando há um bom tempo e creio que com ajuda de vocês nós poderemos fazer. Adeus... corram logo para a última tarefa, antes que o tempo acabe. Paulo e Raquel – Adeus.
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Paulo – Posso fazer uma última pergunta? Leque – Pode... Paulo - Nós vamos conseguir sair dessa? Leque – Isso não dá para responder, porque vocês precisam viver essas histórias para crescerem. Nas verdades e mentiras, nós precisamos ora da verdade ora da mentira, mas a verdade é sempre única. (Começam a andar) Cena IV Raquel – Quanto tempo nós temos? Paulo – Pouco mais de uma lua e meia! Raquel – Você acha que vamos conseguir?! Paulo – Eu não sei! Quem poderia nos dar essa resposta, não deu. Raquel - Quanto tempo falta para chegarmos ao rio? Paulo – Pouco. (Avistam um longo e galante homem. Uma das mãos é grande que chega ao chão dando uma impressão de bengala) Paulo – Quem é aquele homem? Raquel – Tudo indica que seja Lord River. 150
Raquel - Nós temos o pelo, o tecido de estopa e já, já teremos a chave. Paulo – Mas como faremos sobre a morte? Raquel – Isso já está resolvido. A Senhora com Rosto de Leque e os gatos de olhos de prata disseram que é impossível isso ser feito, porque Lord River tem uma mente astuta e inteligente e, além disso, ele é imortal. Paulo - ...E se, na verdade, nós estivermos sendo enganados por essas pessoas. Ele me parece um velho, está quase morto. Raquel – Você mataria sua vó? Não, né? Por que vamos matar uma pessoa que está assim, logo porque sofreu tanto pelo amor? Ele a Rainha Clarice têm uma bela história, mas o problema é que eles não podem ficar juntos. Paulo – Olha (percebe algo brilhante) – Que rio lindo. Raquel – Como vamos mostrar que precisamos dele... Paulo – Eu não sei... Raquel – Estou ficando cansada. Não sei o que podemos fazer para tentar acordar esse rio ou como nós poderemos fazer para termos a chave. O que é necessário? Paulo – Eu não sei. Tem alguma coisa que não estamos sabendo. Algum detalhe que nós perdemos... Pensa, Paulo, pensa, Paulo. Raquel – Pegar a chave no rio. Esse rio é lindo e profundo, 151
com certeza, não é aí dentro que está a chave. Paulo – (Assustado) Já sei, Raquel! O Lord River deve ser a solução. Lord – Solução?! Raquel – Claro que ele é a solução. Rio de Chaves é o Lord River. Ele deve ter a solução para nós encontrarmos nossa passagem de volta para casa. Paulo – Com licença, senhor Lord River. Estamos aqui a mando de... Lord – ...A Senhora Rainha Clarice! Ela tenta há muito tempo. Raquel – É isso mesmo. Lord - Vocês não são os únicos que partiram a mando dela ao meu encontro. É a forma de ela me olhar de longe, vocês estão com o olho da feiticeira-sapa? Porque é através desse olho que ela pode me ver de onde está, por isso ela manda tantas crianças nessas aventuras. Paulo – Já sabemos que não somos as únicas crianças que vieram até aqui. Raquel – Por que vocês não se falam mais? Você a ama? Paulo – Isso é pergunta que se faça? Desculpe... Lord – Os gatos de olhos de prata já devem ter contato sobre nossa história. 152
Raquel – Sim. O senhor sabe me dizer por que ela quer o mundo misturado do Paulo? Lord – Não tenho certeza, mas tenho ideia. Acredito que... Paulo – Nós estamos atrás da chave da nossa casa. (interrompendo) Lord – (Gargalhadas) Não há chave comum nenhuma. A única coisa que eu tenho é esse molho de chaves. Que na verdade é desse mundo, não dá para abrir uma porta do mundo dos humanos. A chave que vocês querem deve estar escondida na imaginação, na minha ou na sua. Paulo – Então, a Rainha Clarice nos enganou! Lord – Ela fez tudo isso para que pudéssemos nos encontrar! Raquel – Você ainda gosta dela? Lord – Sim, mas nosso amor é impossível. A feiticeira-sapa jogou um feitiço que nos obriga a não nos encontrarmos, senão as pessoas ao nosso redor morrerão. Por isso, moro tão longe dos outros seres. Raquel – O que nós poderemos fazer para ajudá-lo? Lord – São apenas crianças, ou seja, nada. Raquel – Já passamos por muita coisa. Podemos ajudar sim. Você não sente falta da sua vida ao lado da Rainha Clarice? Lord – Entre ela e eu só há morte e tristeza. 153
Paulo – Então, por isso que ela quer o mundo misturado. Lord – É por isso mesmo. Porque nesse mundo misturado, nós poderemos viver nossa história de amor. Mas isso seria injusto com você, porque esse mundo lhe pertence. Paulo – Como você pode nos ajudar a sairmos daqui? Lord – Eu posso abrir uma porta para vocês partirem. E vocês poderão viver no mundo de vocês enquanto nós ficaremos aqui. Paulo – E você não vai viver o seu amor com a Rainha Clarice?! Lord - Não podemos. Isso causaria uma desgraça. Paulo – Se for por causa do mundo misturado, eu o doarei a vocês. Lord – Você não pode fazer isso. Paulo – Posso sim! Além disso, eu poderei criar muito outros. Lord – Devo fazer isso. (Ele tira da cartola molhos de chaves) Qual chave deve ser... Raquel – Nós temos pouco tempo. É quase insuficiente para voltarmos e entregarmos tudo a ela. Paulo – Eu já sei... (Cochichando no ouvido dela. Eles pegam o olho que tudo vê e o jogam 154
no chão) Raquel – Eu te obrigo! Paulo – Obriga a que? Raquel – A jogar fora o pelo e o pedaço de tecido. Paulo – Está bem! Lord – O que vocês estão fazendo? Paulo – Estou pensando em jogar tudo fora, Lord! Tenho certeza que esses objetos têm muito valor para a Senhora Rainha Clarice, e acredito que jogando fora ela ficará furiosa e tentará nos impedir de fazer. Assim, nós poderemos fazer com que ela e o senhor se encontrem e doarei o mundo misturado onde vocês poderão viver para sempre. Lord - Não, menino Paulo. Isso é um erro. Não podemos ter o mundo misturado, porque ele é algo pessoal, da sua imaginação e da sua vida. Precisará desse mundo para poder viver uma eterna felicidade. (Um grande relógio bate os ponteiros e a ultima lua cai) Rainha – Então vocês estavam tentando me enganar? Vocês foram espertos, juntaram-se com aquelas bolas-de-pelo preguiçosas e com a Senhora sem Rosto, mas que pena que não podem conter o meu poder. Eu domino todo este mundinho. Lord – Deixe de ser infeliz. Eu lhes darei a chave e eles poderão ir embora. 155
Rainha – Você sabe muito bem que não podemos estar juntos, pois há uma maldição que é prenúncio de morte. Lord – Há quantos tempos não nos encontramos? Rainha – Sete séculos. Paulo – E o que a senhora irá fazer conosco? Rainha – Cale-se. Vocês não têm ideia do que fizeram, eu não posso ficar aqui. Paulo – Mas o objetivo não é nos matar? Lord – Não. Isso não pode acontecer. Estamos proibidos de ficarmos juntos. A feiticeira-sapa nos deixou essa carga enorme. Rainha – Meu objetivo era fazer com que vocês desistissem das tarefas e eu pudesse ficar com o “seu mundo misturado”. (Raquel cai no chão) Raquel – Paulo, meu pé. Lord – Vocês têm que voltar. Rainha – Não vou voltar. Eles me enganaram e precisam sofrer por isso. Lord – Você precisa voltar para seu lugar. A garota irá morrer caso você não volte. Paulo – Se é apenas o mundo misturado que a senhora quer, 156
eu lhe darei. Rainha – Então faça logo a passagem e me dê logo o seu mundo misturado. Lord – Eles são apenas crianças. Se você ficar aqui mais tempo, a Raquel morrerá e, logo depois, o menino Paulo. Além disso, não temos o direito de usufruir do mundo misturado dele. Rainha – Mas eu quero. Lord - Já vivemos o nosso mundo misturado. Rainha – Eu quero os objetos! Apenas com eles eu poderei continuar imortal. Lord – Para vivermos brigando para sempre? Rainha - Para eu te amar de longe. Lord – Eu quero que vocês peguem essa chave e abram o caminho da realidade. Vamos, Paulo, senão ela vai morrer. Raquel – É a chave. Rainha - Não tem como correr e facilmente vou acabar com tudo isso. Mande logo para cá os objetos que mandei pegar. Vamos... o tecido e o pelo. Com os dois eu continuarei imortal e com o mundo misturado poderemos viver nossa história de amor. Lord - Nossa história de amor pertence a este mundo. Não podemos ficar com o mundo do garoto. É um particular 157
dele... Raquel – Não entregue a ela, Paulo. Rainha – Entregue, ou ela vai morrer. Eu só sairei daqui de perto do Lord River quando você me der os objetos. Paulo – Mas foi um acordo que fizemos... Rainha – Você quebrou o acordo e não fez nada. Paulo – Peguei a chave. (A chave cai na mão de Raquel) Rainha – Vamos, seus moleques. Quero agora meus objetos, o mais rápido possível. Paulo – De forma nenhuma. (Tentando fugir) Raquel (pensativa) – Entrega tudo para ela. Vamos confiar na Senhora Rosto de Leque. Paulo – Mas e se não der certo? Rainha - Acho melhor vocês me entregarem logo os objetos. Paulo – Eu entregarei com uma única condição: que você deixe em paz meu mundo humano e misturado. Lord - Faça isso, minha amada. Poderemos viver nosso amor à distância, sim. Deixe- os ir. Rainha - Eu preciso que você entregue o quanto antes... Eu 158
preciso viver mais um milênio. Já estou cansada de brincar com vocês, seus insolentes! (voz grave) Raquel – Entregue logo, Paulo. Lord – Entrega, Paulo. Eu sei o que fazer... Paulo – Eu vou deixar aqui. Eu não posso entregar o pelo nas mãos dela, senão eu posso perder os tempos da minha vida. Rainha – Vamos logo seu inábil! (Um grande silêncio. Rainha Clarice começa a fazer suas feitiçarias) Paulo – Vamos esperar no que vai dar, senhor Lord. (Neste momento, a Rainha Clarice pega seus objetos e vai para o meio da escada-castelo. Raquel e Paulo percebem que ela está ficando louca e que o feitiço não está dando certo) (Lord e Rainha dentro do castelo-escada) Rainha - Como vocês se atreveram a me trair desta maneira? Estou ficando velha... Vocês vão perder as suas almas. Eu vou pegá-los. Não poderão fugir, porque encontrarei vocês. Lord – Eles são apenas crianças. Rainha – Isso não me importa. Quero minha vida imortal. Eu sofro pela ideia de morrer sem ter você. E você não faz nada para me ajudar? Lord – Esses são os seus caminhos. Não é a nossa estrada. Caminhe sozinha, quando estiver melhor andarei com você. 159
Corram, corram! Vamos, menino Paulo, feche o castelo. Vocês não são obrigados a passar pelos nossos pesadelos. (Os dois correm e fecham a escada-castelo) Paulo – Vamos fechar a escada. Rainha – Como você pode me maltratar dessa forma, Lord River?! Lord – Nos já tivemos a nossa oportunidade de amor. Agora, é a vez deles. São crianças e precisam do amor. (Blackout) Cena V Paulo - Vamos correr para o elevador. Já voltou a energia. Raquel – Me conta a história do seu mundo misturado de novo? Paulo – Pega a chave. Eu te conto a história na frente da porta da sua casa. Assim, quando a gente perceber que o elevador está subindo você corre para dentro e eu vou para casa. Raquel – Vamos entrar lá em casa. Quero te mostrar o leque enorme que minha mãe comprou de uma cigana e uns gatos entalhados. Algum dia você me deixa brincar com a bengala da sua avó? Paulo – Sem dúvida! Vamos inventar história de amor um para o outro? 160
Raquel – Vamos! (Saem de cena)
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Trajetória das peças Queridinhos da mamãe Montada em 2004 com direção de Elcias Villar. Vende-se! Motivo: falência Texto apresentado na Mostra Aldeia Guaporé das Artes (RO) e no Festival de Teatro de Rondônia. Circulou pelo projeto Sesc Amazônia das Artes 2009. Por que pular degrau se a gente pode voar? Apresentada no Festival de Teatro da Amazônia 2010, em Manaus, onde recebeu os prêmios de Melhor Texto (Francis Madson), Melhor Atriz (Carol Santa Ana) e Ator (Dyego Monnzaho).
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Sobre o autor Francis Madson Ator, diretor, dramaturgo e produtor cultural Natural de Porto Velho (RO), onde iniciou a carreira no teatro, escreve dramaturgias adultas e infantis de comédia e drama desde 2000. Já teve nove textos montados por companhias de Rondônia e do Amazonas. Mora em Manaus desde 2008, cidade em que foi um dos fundadores da Cia. Cacos de Teatro. Em 2013, fundou a Soufflé de Bodó Company, grupo que tem no seu repertório os espetáculos “Casa de Franciscos, quem nasce Antônio é rei”, “Herói”, “O Dragão de Macaparana”, “Curuminzado” (dança), “Vestido Queimado” (teatro de papel) e “Alice Músculo +2”. Também assinou o roteiro e a direção dos curtas-metragens “Jardim de Percevejos”, “No céu da boca cresceu Saturno” e “Banho de cavalo”. Em 2019, atuou como Diretor dos Centros Culturais e Teatros da Secretaria de Estado de Cultura (SEC/AM). É formado em Teatro pela Universidade de Brasília (UnB) e em Dança pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com mestrado em Ciências Humanas também pela UEA.
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Esta obra foi composta em Iowan Old Stl BT pela Soufflé de Bodó
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