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O perfil do livro-documentário, de caráter histórico e biográfico, nas obras “Inês de Castro” de Ana Oom e “Inês de Castro” de A. Carmo Reis

Mestrado em Gestão da Informação e Bibliotecas Escolares Literatura para Crianças e Jovens Universidade Aberta

Trabalho realizado por: Maria Dulce Gomes (132596) Julho 2014 Julho 2014


Ă?ndice

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Resumo O conhecimento das caraterísticas do livro-documentário de caráter histórico é feita ao longo deste trabalho mediante a análise comparativa de duas obras da literatura infanto-juvenil sobre a figura histórica de Inês de Castro. Os tópicos orientadores para o conhecimento e identificação das particularidades da tipologia textual em análise visam dar conta da importância destes textos de não ficção na formação dos jovens leitores e das dimensões instrutivas e culturais por eles veiculadas. Estes textos resultam de um importante trabalho colaborativo entre especialistas na área do conhecimento em que se movimentam e dos ilustradores que reescrevem os textos não só na dimensão estética, mas numa outra leitura/interpretação que lhes é essencial e complementar.

PALAVRAS-CHAVE: histórica; biografia.

Literatura

infanto-juvenil;

livro-documentário;

narrativa

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Introdução O presente trabalho, intitulado «O perfil do livro-documentário, de caráter histórico e biográfico, nas obras “Inês de Castro” de Ana Oom e “Inês de Castro” de António do Carmo Reis», é produzido na sequência de uma sugestão apresentada pela Professora Doutora Glória Bastos, no âmbito da Unidade Curricular de Literatura Infantil e Juvenil. Com a sua realização pretendemos conhecer de perto as caraterísticas e o impacto do livro-documentário e a sua função instrutiva e cultural junto dos leitores infantis e juvenis. A investigação proposta reveste-se de muito interesse, uma vez que habitualmente trabalhamos a figura de Inês de Castro no segmento da literatura juvenil, enquanto texto de ficção, em intertextualidade com o episódio de Inês de Castro n’ “Os Lusíadas” de Luís de Camões (9º ano) ou pela sugestão de leitura recreativa com a obra de João Aguiar “Inês de Portugal” (9º/10º anos). A abordagem que agora escolhemos é manifestamente distinta, porque o nosso olhar está direcionado para as particularidade do livro-documentário e que, neste caso, pretende fornecer informações de caráter histórico e biográfico sobre Inês de Castro e a época em que viveu. Como estratégia metodológica, procedemos à leitura de ambas as obras, direcionando a nossa atenção para os aspetos que caraterizam o livro-documentário. A definição dos temas que compõem este trabalho segue de perto os tópicos identificativos desta tipologia textual, sugeridos por Renée Léon (1994). As demais referências teóricas e orientações de análise provêm das leituras propostas no tópico 4 da Unidade Curricular “Literatura Infantil e Juvenil” e outras pesquisadas pela discente.

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Tipologia textual De acordo com a classificação proposta por Jean Hassenforder, citado por Bastos (1999), o conceito de livro-documentário surgiu, no final do século XIX, em reação ao caráter ficcional e de mero entretenimento que caracterizava o romance. Com o desenvolvimento do espírito científico, a massificação da alfabetização e a necessidade de instruir as camadas mais jovens, começaram a surgir as biografias de personalidades ligadas a inventos, a viagens, a descobertas e a reabilitar o valor e importância de algumas figuras emblemáticas da História dos povos. Os primeiros livros desta tipologia servem propósitos instrutivos e didáticos, fazendo-se acompanhar por simples e bonitas ilustrações e capas mais elaboradas do ponto de vista gráfico. A este propósito, Soriano (1968) apresenta um importante contributo sobre o percurso histórico e editorial do livro-documentário, em França, onde destaca o valor científico, os métodos de apresentação da informação, as técnicas de difusão do pensamento e a extensão do público que se pretende abranger. Soriano refere com destaque a inclusão dos esquemas de pergunta-resposta que emprestam uma dimensão didática muito importante a estes textos. Não negligencia a questão do ensino indireto, porque é essa uma das funções do livro-documentário, bem como a permeabilidade entre as tipologias, nomeadamente entre a história romanceada e a biografia romanceada. Por seu turno, Bernard Devanne, citado por Céline Fillon (s.d.), sublinha a dimensão do acesso ao conhecimento, à curiosidade intelectual dos jovens leitores: “l’authenticité des informations recueillies et les occasions de communiquer son savoir sur le monde provoquent chez l’élève beaucoup de plaisir et d’étonnement, et renforcent son intérêt pour tout ce qu’il peut saisir de son environnement.”. Para muitos jovens leitores, estes textos vão ao encontro da sua curiosidade sobre factos reais, que lhes permitam desenvolver uma cultura geral, independentemente da área do conhecimento. O perfil documental, informativo, instrutivo e cultural desta tipologia textual é extremamente enriquecedor. Esta posição é 5


defendida por Armand (s.d.), quando afirma que os textos informativos “sont parfois considérés comme des livres «sérieux», enracinés dans le réel, des livres porteurs de savoir et non libérateurs de l'imaginaire.”. Nesta perspetiva, cabe à escola, aos professores, à biblioteca proporcionar um acesso facilitado a este tipo de textos para que o leitor em formação escolar contacte com uma panóplia variada de tipologias textuais e que, neste caso, conheça a importância e o papel da função informativa da linguagem e alargue os seus conhecimentos culturais. Segundo Escarpit et al. (1988): “Estas crianças recusam a ficção literária, demasiado distante do seu ancoramento no quotidiano. Em contrapartida, reservam melhor acolhimento aos livros-documentário, que sentem como adjuvantes ou como estimulantes dos seus centros de interesse pessoais ou como ferramenta entre outras ao serviço das suas preocupações.”.

O livro-documentário apresenta vários formatos, consoante o público a que se dirige, o teor da informação é normalmente fundamentado com fontes de caráter científico ou histórico e a abordagem temática é muito diversificada. Não sendo uma leitura para todos os níveis de proficiência leitora, deve ser facultada pelos educadores aos leitores com orientações/estratégias para rentabilizar a sua compreensão. Lemercier (2004) aconselha: “Quel que soit le support, la méditaion de l’adulte demeure indispensable. Il s’agit donc de vulgariser une science, de répandre une connaissance auprés d’un public néophyte.”. Nas listas de obras recomendadas pelo Plano Nacional de Leitura para leitura complementar, nos primeiros três ciclos de escolaridade, os textos informativos de caráter histórico ou científico representam uma percentagem muito reduzida em relação aos textos de ficção e alguns carecem de modernidade ao nível das edições ou não estão disponíveis para aquisição no mercado editorial. A ALA recomenda também que as coleções das bibliotecas possuam 60% de documentos do tipo não ficção, o que não se verifica na generalidade. À semelhança dos livros-documentários sobre outras temáticas, estas obras são elaboradas por uma equipa de especialistas, ou seja, tal como afirma Lemercier (2004): “un auteur (historien si possible) et un illustrateur, autour d’un directeur de collection qui propose le sujet.” Esta frutuosa colaboração enriquece significativamente a lisibilidade e o grafismo dos textos, mas tem a desvantagem de encarecer os livros.

As obras em análise

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As obras escolhidas para este trabalho são ambas contemporâneas (1989 e 2007), mas difíceis de encontrar nos circuitos comerciais, tendo sido necessário recorrer ao empréstimo domiciliário em bibliotecas municipais. Ambas pertencem à tipologia do livro-documentário, no campo da historiografia, em contexto nacional. A sua temática recai sobre a figura histórica de Inês de Castro. Esta personalidade, não tendo sido uma mulher de preponderante papel político, nem histórico, encarna a desventura de um belo caso de amor, entre elementos da nobreza, talhado em circunstâncias moralmente condenáveis, cuja crueldade e injustiça dos homens acabaram por imortalizar e mitificar como uma heroína. A figura de Inês de Castro ocupa com grande destaque várias obras da literatura ficcional e não só, desde o século XV à atualidade. De acordo com a classificação decimal universal, ambas as obras em análise estão etiquetadas na classe 9, na subclasse da História de Portugal (946) e das biografias (929), porque complementam o texto biográfico com informação histórica sobre o contexto socioeconómico, cultural e político da época (séc. XIV). Sendo álbuns profusamente ilustrados, as obras em análise contêm algumas partes ficcionadas, ainda que predomine o texto informativo. Podemos afirmar que estamos perante obras de tipologia híbrida, dado que há uma interpenetração da função informativa com a função conotativa e literária, como iremos analisar, com mais detalhe, na rubrica sobre os factos históricos e a biografia ficcionada.

Apresentação e organização interna Nesta secção iremos proceder à leitura das obras seguindo de perto os aspetos que caraterizam o livro-documentário apresentados por Renée Léon (1994). A inclusão deste tópico no nosso trabalho faz todo o sentido, porque estes aspetos de ordem paratextual fornecerem informações essenciais e complementares para a compreensão/interpretação do texto. Segundo Cerrillo (2007), “esas informaciones paratextuales son aportadas por los adultos, con el ánimo de «orientar».”. Este autor divide os aspetos paratextuais em “peritextos” e “epitextos”, correspondendo os primeiros aos que estão no interior do livro e os segundos aos que estão fora. Quanto ao interior, devem ser analisados os seguintes aspetos: a capa e contracapa, o autor e o ilustrador, a coleção, as ilustrações, o prólogo, o índice, o formato e tipografia, a dedicatória e a idade recomendada. Quanto aos aspetos exteriores, considera os catálogos, a crítica, a publicidade, os agentes

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comerciais e os cadernos de atividades. Na sequência desta orientação, também quisemos fazer uma leitura possível desta informação. A análise dos elementos paratextuais surge comentada de forma independente, dado que as suas características são diferentes e os elementos a destacar merecem ser descritos separadamente. A informação referente ao formato merece destaque quando se fala de livros para crianças e jovens. Os livros escolhidos para este trabalho possuem um formato médio, cerca de 22cmX25cm, com reduzido número de páginas (30 a 40), de fácil manuseamento, resistentes, com capa impermeável, de cores brilhantes, em suma, bastante apelativos. A obra “Inês de Castro”, da escritora Ana Oom, é um álbum profusamente ilustrado por Sandra Serra, com revisão técnica da Associação de Professores de História, possui uma capa dura branca, cartonada e ilustrada, que contém o título em letras magenta de caixa alta, a ilustração infantil da figura feminina de Inês com uma indumentária colorida da época em que viveu, a referência à coleção, à autora do texto, à ilustradora, à revisão técnica e, no canto inferior esquerdo, o logotipo/ nome da editora, “Zero a Oito”. Esta obra dirige-se a um público dos 8 aos10 anos de idade. Na contracapa, também de cor magenta, está redigida uma breve sinopse do texto, em tom coloquial, dirigindo-se à criança leitora e apelando para o seu interesse pelo conteúdo da história. A meio da contracapa, ao centro, indicam-se os outros títulos que fazem parte da mesma coleção “Nomes com História”. Na primeira guarda do livro, de fundo magenta, surge, em letras brancas, um texto bastante longo (23 linhas), sobre a importância desta e das restantes narrativas que são abordadas nos vários livros que compõem a coleção “Nomes com História”, acentuando as preocupações de rigor científico e dando destaque a alguns elementos didáticos que completam a informação. A guarda traseira, de cor magenta, contém a ficha técnica do livro. O texto, composto por narração e recorrentes diálogos, está dividido em 8 capítulos. A maioria das páginas com texto tem pequenas ilustrações e há páginas exclusivamente ilustradas. A obra contém duas secções finais que são ocupadas com informação histórica e atividades de verificação da leitura. A primeira secção, com um friso intitulado “No tempo de…”, apresenta datas e acontecimentos sobre três tópicos: Inês de Castro, Portugal e o Mundo. Segue-se uma secção didática, com 10 questões de

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escolha múltipla, que interpela o leitor, “Será que sabes?”, com o intuito de verificar a compreensão da leitura da obra. Por sua vez, o livro “Inês de Castro”, da coleção História Júnior, de 1989, editado pelas Edições ASA, com texto de António do Carmo Reis (Licenciado em História pela Universidade do Porto) e com desenhos de José Garcês, é um álbum profusamente ilustrado, possui uma capa dura de fundo colorido a laranja forte, cartonada e ilustrada, que contém o título em letras roxas, de caixa alta. Vemos nesta ilustração, em grande plano, de traço fotográfico, a figura feminina de Inês junto de três crianças. Num plano recuado, estão outras figuras masculinas e no topo da página estão representados alguns cenários alusivos à época. Constam ainda a referência à coleção e, no canto inferior esquerdo, o logotipo/ nome da editora. Quanto à presença de índice, o livro de Ana Oom está organizado por capítulos com numeração árabe, sem título e sem um índice que guie o leitor numa pesquisa específica. Este livro tem a particularidade de incluir, logo no início, um poema de Inês Pupo, composto por 7 tercetos, sem rima, que alude à vida amorosa de Inês de Castro. O livro escrito por António do Carmo Reis tem um índice com os títulos dos capítulos na parte final do livro. Esta obra possui um glossário muito completo, com referências a figuras da História de Portugal, a objetos, profissões, acontecimentos coevos e um friso cronológico no canto superior esquerdo das páginas pares. Sob o friso cronológico, há a presença de subtítulos que dão ao leitor um apontamento orientador sobre o que será abordado no texto. O glossário, presente na maioria das folhas, está localizado à esquerda de cada página par e elucida o leitor sobre o significado das palavras assinaladas a negrito no texto. Quanto à presença das ilustrações, podemos afirmar que a proporção global do texto com a imagem é bastante equilibrada em ambas as obras, sendo que as ilustrações ocupam cerca de 50 a 70% da mancha gráfica das páginas. Os desenhos de José Garcês são mais realistas, com o domínio do contorno das figuras a cor preta, quer em relação às personagens, quer aos cenários onde se enquadram. Por ser um livro mais antigo (1989), as ilustrações seguem os padrões da ilustração da década de 80-90. São desenhos fotográficos e com expressões faciais corporais bastante autênticas. Com a inclusão dos desenhos que acompanham este texto, há nitidamente uma preocupação em comunicar informação histórica complementar sobre os lugares, as vivências, as indumentárias, os objetos, a arquitetura, os transportes. Esta obra destina-se a um público leitor entre os 10 e os 14 anos. 9


As ilustrações do livro de Ana Oom são mais acriançadas, com formas geralmente arredondadas, com cores vivas e menos reais, ou seja, são mais fantasiadas, dirigidas a um público mais infantil. Este tipo de ilustração é mais atual, pois o livro tem cerca de 7 anos. Predominam as cores rosa, amarelo, azul e verde. Não há intenção de a imagem enriquecer o texto com informação histórica; a preocupação é de ordem estética e serve para embelezar o texto, centrando-se sobretudo nas figuras humanas com o objetivo de recuperar motivos da história. Genericamente, podemos afirmar que, na obra de António do Carmo Reis, as ilustrações têm um grande potencial comunicativo, porque ajudam a ler o texto e vice-versa. Nenhuma das obras faz alusão às fontes históricas ou literárias consultadas, nem incluem bibliografia. Para finalizar este tópico, gostaríamos de voltar a citar Cerrillo (2007), quando sintetiza a importância e mais-valia dos aspetos paratextuais: “ayudará a una mejor comprensión del texto, porque puede establecer predicciones sobre lo que el niño o el adolescente leerá y le ayudará a elegir adecuadamente el título.”.

A lisibilidade do texto O contacto das crianças com obras de índole informativa funciona, segundo Azevedo (s.d.), como uma experiência estética e literária que amplia os seus conhecimentos, neste caso, sobre a História do seu país, as figuras que protagonizaram grandes eventos e que se imortalizaram na memória coletiva de um povo. Como já destacámos, quando caraterizámos a apresentação e a organização interna, ambos os livros, mesmo sendo de décadas diferentes, têm ilustrações apelativas e, sobretudo, informação histórica rigorosa, que num caso é feita pelo próprio autor, cuja formação científica é na área da História e no outro é garantida pela Associação dos Professores de História. A intemporalidade dos temas que giram à volta de Inês de Castro é um aspeto que consideramos de relevo. Sendo uma figura da História nacional, que protagoniza um romance de amor com o Rei D. Pedro, esta mulher ganha um destaque singular, sobretudo pela forma como foi morta. Mais significativos se tornam os episódios que precederam a sua morte, tendo ficado imortalizada num monumento nacional, no 10


Mosteiro de Alcobaça, junto ao seu amado. Se quisermos aprofundar mais conhecimentos sobre o acervo bibliográfico que se tem produzido, basta aceder à base de dados da Fundação Inês de Castro. É espantosamente vasta a quantidade de textos ficcionais e de estudos literários sobre a vida de Inês de Castro. Detenhamo-nos, em seguida, sobre as particularidades da escrita textual: a composição frásica dos textos é marcadamente distinta, porque se aplicam a níveis etários diferentes e diferem bastante na extensão das frases, no vocabulário, nos termos técnicos e no tom. “Inês de Castro” de A. do Carmo Reis é um texto rigoroso do ponto de vista da construção frásica e do vocabulário e com ampla informação histórica. O autor procura pormenorizar os acontecimentos e registar os nomes das personagens históricas intervenientes, dando informação complementar na coluna lateral onde está localizado o glossário. Há uma atenção cuidada com as datas, os episódios de guerra e os seus protagonistas, incluindo mesmo 4 páginas duplas (8-9 e 22-23) dedicadas ao contexto histórico com os seguintes subtítulos: “mantenedores, defensores e oradores” e “pestes, fomes e guerras”. Nestas páginas duplas são fornecidas informações sobre a vivência de todas as classes sociais. Claudine Hervouët (2009) refere a inclusão da página dupla como sendo uma característica sistemática dos livros-documentário dos anos 80, permitindo ao jovem leitor encontrar-se com o texto sem uma estrutura fortemente hierarquizada, com vários níveis de leitura e de acesso. Apesar de as frases serem pouco extensas e essencialmente coordenadas, o vocabulário

é

rigoroso,

técnico

e

predominantemente

concreto:

“intento”,

“matrimónio”, “estratagema”, “força de combate”, “desavenças”, “gualdrapas”, “mavioso”, “congraçaram-se”. Os vocábulos de caráter abstrato, principalmente os adjetivos, servem quase sempre para realçar qualidades psicológicas ou reações emotivas: “carinhosa”, “peito generoso”, “lar ameaçado”, por exemplo. Há inúmeras recorrências a palavras coevas sobre as vivências na corte: “aias”, “paços régios”, “cabriolas do bobo”, “archotes”, “ricos-homens”, “coutos”. A comparação e a metáfora também estão presentes e emprestam ao texto vivacidade, realismo e um nível mais literário: “como flores de esperança no vale”, “Uma garça de ternura e elegância”, “ateou o coração”. Quanto à escrita textual da obra “Inês de Castro” de Ana Oom, estamos perante um texto redigido com frases curtas, simples, com recurso a vocábulos usuais do léxico de uma criança de 8-10 anos e que se referem a um universo que lhe está próximo: “11


Não achas Inês muito bonita?”; “- Desculpe, Senhor, não percebi que estava aqui a ouvir-me.”. Nesta obra, a decisão de D. Afonso IV mandar executar Inês surge aligeirada do dramatismo que habitualmente a caracteriza: “- Eu já não sei nada… Voume embora e, quanto a vocês, façam o que ainda há para fazer!”. A organização espacial e temporal é sempre muito precisa: “Uma manhã, quando regressava ao palácio, depois de uma ausência de três dias”, “Saiu do palácio a correr, montou o seu cavalo e partiu.”, “Durante anos perseguiu os conselheiros de D. Afonso IV”. Assegurar a coerência e a coesão textuais, através de um esquema narrativo por encadeamento, contribui decisivamente para otimizar a compreensão do texto junto de um público leitor em formação. Quanto à lisibilidade do texto, consideramos que ambas as obras estão ajustadas ao público a que se destinam e doseiam com equilíbrio os aspetos vocabulares, de sintaxe e semântica.

Factos históricos e biografia ficcionada - uma composição urdida Na obra “Inês de Castro” de António do Carmo Reis, as incursões pela biografia ficcionada são recorrentes, tornando a narrativa mais densa, com uma leitura exigente, em tom sério, com o uso de uma linguagem elaborada, que obriga o leitor a consultar o glossário ou o dicionário. Este texto permite uma leitura não linear, ou seja, propõe múltiplas entradas, onde o leitor pode escolher, em função das datas, os tópicos orientadores do índice ou mesmo as páginas com referências ao contexto/vivência históricas. A obra “Inês de Castro”, de Ana Oom, é um texto que flui numa linguagem mais simples, recorrendo a um vocabulário de fácil compreensão. A integração frequente de diálogos enfatiza a proximidade entre as personagens, focando-se mais nas questões amorosas e afetivas que os unem, emprestando ao texto um tom mais coloquial e de fácil lisibilidade. As referências históricas são menores e expressamente imprecisas, porque não se pretende contar uma história com o rigor dos factos, mas relatar, de forma ficcionada, a biografia de uma mulher apaixonada que viveu num determinado contexto histórico. A chancela da revisão técnica da Associação do Professores de História garante a qualidade científica, sobretudo pela inclusão de referências a datas que dizem 12


respeito a D. Inês, a Portugal e ao Mundo e que ocupam as páginas duplas no final da obra. Esta biografia responde à caracterização apresentada por Escarpit et al. (1988), quando se refere às três funções do livro documentário: lúdica, informativa e relacional. Para ilustrar melhor o processo como é urdida a composição dos factos históricos com a biografia ficcionada, procedemos à construção de uma grelha que nos permite visualizar com clareza as distintas opções em ambas as obras. As alianças narrativas, mais ou menos ficcionadas, e os factos históricos conferem à diegese um perfil didático e pedagógico que contribui para o enriquecimento cultural e informativo das crianças e jovens. Pela análise comparativa das grelhas correspondentes às duas obras, percebe-se claramente que a obra “Inês de Castro”, de António do Carmo Reis, contém mais informação de caráter histórico e os recursos ficcionais são mais extensos e detalhados. “Inês de Castro”, de António do Carmo Reis Factos históricos (1336-1361) Ficção - Filha natural de D. Pedro de Castro, “encantos do seu corpo”; bisneta de D. Sancho IV de Castela;

“olhos brilhantes”;

- Proveniente de Castela;

“rosto prendado”;

- Dama de honor de D. Constança;

“cabeleira abundante”;

1340: Inês de Castro acompanha D.

“tronco roliço torneado pelo corpete de

Constança;

linho”

- Torna-se amante de D. Pedro;

“figura esguia de moça trigueira”;

- Madrinha do infante D. Luís, filho de

“porte sereno”;

D. Pedro e de D. Constança;

“andar suave”;

- Por ordem de D. Afonso IV, foi exilada

“uma garça de ternura e elegância”;

em Albuquerque, região da raia entre

“o amor de Pedro e Inês, longe de

Castela e Portugal;

perturbar-se ou amortecer, se tornou mais

1350/1352: habitava em Santa Clara, nos

sólido e capaz de superar quaisquer

Paços, na margem esquerda do Mondego; obstáculos e adversidades”; - Nascimento dos infantes: Afonso, João,

“a força do amor que unia, de modo

Dinis e Beatriz;

irresistível, o Príncipe à mulher da sua paixão”; “A existência de D. Pedro e da linda Inês era imensamente feliz”; 13


Representava uma ameaça para a Coroa

“nobre família dos Castros, de fidalguia

Portuguesa se viesse a ser rainha;

ambiciosa”;

1355: D. Afonso IV reúne-se com os

“tragédia de sangue”;

conselheiros de Estado (Diogo Lopes

“a pobre Inês sem vida, degolada

Pacheco, Álvaro Gonçalves e Pero

friamente pelo machado do algoz”;

Coelho), em Montemor-o-Velho;

“crime de horror tão inclemente”;

7 de Janeiro: Inês é decapitada nos Paços

“ o rei não poupou requintes de horror no

de Santa Clara;

castigo implacável. Mandou o carrasco tirar a um o coração pelas costas e a outro o coração pelo peito”;

1360 - Declaração de Cantanhede: D. Pedro havia casado, clandestinamente, com D. Inês, em Bragança; Construção de dois túmulos no Mosteiro

“ um para Inês e outro para ele, quando a

de Alcobaça;

morte o levasse”;

1361 - Trasladação dos restos mortais de

“homenagem merecida a D. Inês, rainha

Coimbra para o túmulo de Alcobaça.

de Portugal”; “cortejo fúnebre de imponência nunca vista”; “a perda da rainha foi pranteada por grupos de carpideiras que soltavam gritos lancinantes e entoavam melodias plangentes”; “Nunca houvera paixão assim! Até nasceu a lenda de que o rei se desvairou a ponto de fazer coroar Inês, depois de morta, e obrigar a nobreza a beijar-lhe a mão de rainha.”.

Pela básica estrutura narrativa e pela forma simplista como são apresentados os factos, por encadeamento, na obra de Ana Oom, a combinação entre a biografia ficcionada e o contexto histórico é abreviada e de conteúdo acessível. 14


“Inês de Castro”, de Ana Oom Factos históricos (1325-1361) Ficção 1325 - Nasce Inês de Castro; “linda rapariga”; 1340 - Inês de Castro vem para Portugal

“pele clara e luminosa”;

como aia de D. Constança Manuel, futura

“donzela tão bonita”;

rainha de Portugal;

“a elegância do seu corpo”;

1344 - Inês de Castro é convidada por D.

“os dois passavam muito tempo juntos e

Constança para ser madrinha do infante

passeavam apaixonadamente”;

D. Luís. O infante morre uma semana depois; 1345 - Inês de Castro vai viver com D.

“- Mas, Senhor, nós amamo-nos, amamo-

Pedro para o Palácio de Santa Clara, em

nos de verdade!”;

Coimbra; 1355 - 7 de janeiro - Inês de Castro é assassinada por ordem de D. Afonso IV;

“- O que dizes, Senhor? Terei de

1361 - 2 de abril - Trasladação do corpo

morrer?”;

de Inês de Castro do Convento de Santa Clara para o Mosteiro de Alcobaça. “Inês foi e seria, para todo o sempre, a rainha do seu coração.”.

Considerações finais Com a realização deste trabalho tivemos oportunidade de perspetivar os fundamentos que enformam o conceito do livro-documentário, tendo, com o estudo comparativo de duas obras infanto-juvenis destinadas a dois escalões etários distintos, ficado circunscrito apenas ao domínio da História e da biografia histórica. Verificámos que se trata de uma tipologia textual muito complexa, por vezes de composição híbrida, que pressupõe a intercomunicação das dimensões do texto e da imagem. Este trabalho é quase sempre o resultado do contributo de especialistas dos diferentes domínios do

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saber e conta com a participação artística dos ilustradores, desenhadores e/ou fotógrafos. Para os educadores, estes textos são de grande valor didático, pois permitem a realização de uma mediação extra e abrangem um vasto leque de conhecimentos em várias áreas do saber. São obras instrutivas, recreativas e muito ancoradas no domínio concreto. Para os jovens leitores são uma importante opção em relação à ficção, que veicula informação, cultura geral e valores no longo percurso da Humanidade. Para além disso, são livros com formatos facilmente manuseáveis e com grafismo muito apelativo. A singularidade textual e estética dos livros-documentário como álbuns profusamente ilustrados estão em expansão no mercado editorial e procuram responder aos conteúdos programáticos, adaptando-se igualmente aos novos formatos que têm mais procura por parte de um público mais jovem e que não dispensa a presença da imagem a acompanhar os textos.

Bibliografia Armand, F. (s.d.). Littérature de Jeunesse. Obtido em 1 de julho de 2014, de Télémaque: http://www.cndp.fr/crdp-creteil/telemaque/formation/theorie2.htm Azevedo, F. F. (s.d.). A literatura infantil e o problema da sua legitimação. (U. Minho, Ed.) Bastos, G. (1999). Literatura infantil e juvenil. Lisboa: Universidade Aberta. Cerrillo, P. C. (2007). Literatura infantil y juvenil y educación literaria - Hacia una nueva enseñanza de la literatura. Barcelona: Ediciones Octaedro. Escarpit, D. et al. (1988). La littérature d'enfance et de jeunesse. Paris: Hachette. Fillon, C. (s.d.). Centre de formation des Instituteurs et des Institutrices d' El-Jadida. Obtido em 1 de julho de 2014, de http://cfijdida.voila.net/documents/livreDoc.htm Hervouët, C. (2009). Les ouvrages documentaires pour la jeunesse: un genre, une offre éditoriale. Obtido em 1 de julho de 2014, de http://www.documentation.acversailles.fr/IMG/pdf/atelier-documentaires-chamarande.pdf Lemercier, F. (2004). L'apprentissage de l'histoire à travers les documentaires jeunesse. Obtido em 1 de julho de 2014, de http://bbf.enssib.fr/consulter/bbf-2004-020117-010 16


Léon, R. (1994). La littérature de jeunesse à l'école. Paris: Hachette. Soriano, M. (1968). Les livres pour la jeunesse. Enfance, 21, nº 5. doi:10.3406/enfan.1968.2469

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