A aposta cristiane schwinden

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A Aposta Cristiane Schwinden


Para minha querida Jessica Chastain, beijo, me liga.


- Daí te enfiaram em Presidente Goulart. - O nome da cidade é Presidente Figueiredo. – Respondi Nicolas ao telefone, com as pernas em cima da minha escrivaninha temporária. Passava das nove da noite e eu ainda estava no escritório. Pelo menos ali tinha internet, no hotel não tinha. - Até quando vai ficar trabalhando e sendo devorada por mosquitos gigantes nesse fim de mundo? - Nico, o que eu vi ontem parecia parente próximo do Godzilla! Fiquei com medo de ser picada e sofrer algum tipo de mutação. - Eu já falei que você precisa de um lança chamas, esse aerossol não dá conta destes monstros. - Dá não. - Tá Leandra, você não me respondeu, fica até quando no cu do Amazonas? Até a nova barragem ficar pronta? - É o que diz a lenda. – Suspirei. - Como você aguenta ficar nesses lugares remotos? Eu surtaria sem uma Starbucks por perto. - Acaba acostumando ao café fresco. E apesar de ser um tédio de modo geral, eu gosto do trabalho que estou fazendo aqui, eles me obedecem, você precisa ver, até me sinto chefe. Me ajeitei na cadeira e quase caí.


- Por falar em chefe, você viu seu WhatsApp hoje? – Nico perguntou. - Vi, por que? – Falei tirando os pés de cima da mesa. - Viu a aposta que tá rolando no nosso grupo lá? - Não olhei o grupo hoje, tinha 1589 mensagens não lidas, fiquei com medo. - Você tá perdendo! Nunca vi o grupo ficar tão agitado como está agora. – Nicolas falava, eufórico. - Que aposta? Ou você realmente quer que eu leia as 1589 mensagens? - Sobre qual time a chefona joga. - Eu nem sabia que a Jessica jogava futebol. - Acorda Leandra! - Ah... Entendi. Estão especulando a orientação sexual da diretora da empresa. Muito sábio da parte de vocês. - Até parece que alguém vai vazar isso, temos amor ao nosso emprego. E vai dizer que você não tem essa curiosidade? - Isso é feio. – Falei, o recriminando. Silêncio. - No que você apostou? – Perguntei. - Apostei que ela é assexuada. - Tem essa opção no bolão?


- Tem, é a que mais paga. Se eu acertar vou levar uma bolada, além de ficar de fora de todos os plantões de fim de semana, até o fim do ano. Tem mais: quem descobre fica com metade da aposta e sem plantões por um ano. Me inclinei para frente, interessada, com os cotovelos sobre a mesa. - Quem descobre? Como assim? - Quem descobrir tem que mostrar alguma prova. Me pegaram de jeito, eu sou movida por desafios, e este, mesmo não muito ético, havia me tomado a curiosidade. Eu não gostaria que especulassem minha vida íntima no meu ambiente de trabalho, não gostaria de ter sido o alvo, mas o alvo me despertava curiosidade, já me peguei elucubrando a vida pessoal dela com meus botões várias vezes. - Como faz para participar? - Manifeste-se lá no grupo, e deposite cinquentinha na conta do Souza. - Hum... Acho que vai ser dinheiro jogado fora, não tenho como ficar por dentro dos acontecimentos aqui tão longe. Eu rabiscava tornados no bloquinho de anotações. - Leo, você tem uma vantagem que não temos. - Qual? - Você já viajou com ela várias vezes, vocês são próximas, já pode observá-la fora do trabalho, até já ficaram no mesmo quarto uma vez, não ficaram? - Sim, mas Jessica é discreta, eu realmente não faço ideia em qual time ela


joga. - No que você vai apostar? - Não sei. - Vai, fala aí, você entende de Jessica, sua opinião é importante. - Acompanhe o grupo e você saberá. – Falei. - Você é um monstro. - Moça, vamos fechar. – Me falou o segurança do escritório, com a mão no meu ombro, me matando de susto. - Por que o grito? – Nicolas perguntou assustado. - O segurança me mandou embora. Amanhã nos falamos, ok? Naquela segunda-feira à noite o motorista me levou até o único hotel da cidade, onde eu já mofava por onze dias. Enquanto me digladiava com a antena interna da TV, fiquei relembrando meus contatos mais próximos com a chefe, se ela havia dado algum sinal, falado alguma coisa, algo que eu deixara passar. E levei essas conjecturas para a cama. Almocei e jantei algumas vezes com ela, mas nunca prestei atenção analisando com esses fins. Uma noite ela me convidara para sairmos para dançar, depois de jantarmos numa noite fria em Curitiba, mas recusei porque tinha que modificar um projeto. Eu deveria ter ido. Acordei ainda sem saber ao certo no que apostaria, nem se realmente apostaria. Não concordava com esse tipo de especulação da vida alheia, e mesmo Jessica sendo um demônio de saias, mais grossa que papel de enrolar prego, eu


gostava dela, apesar das broncas homéricas que já levei. A moça da copa me trouxe um copo enorme com café fresquinho e moído na hora, infinitamente superior à qualquer Starbucks, e enquanto me deleitava com tal preciosidade, lia as mensagens no grupo da empresa, no celular: “Souza vai fugir para o Caribe com nossa grana.” “Com essa grana não consigo nem ir até Mossoró visitar minha mãe.” “Só o idiota do Nico apostou em assexuada, deixa de ser zé mané, a coração gelado não é freira!” “Não é freira mas coloca todo mundo de joelhos kkkkkkk” “A segunda melhor aposta é em bissexual, mas como a pessoa prova que a outra é bissexual? Faz foto dela ficando com homem e mulher? Difícil provar isso aí.” “Não precisa de foto, pode ser alguma coisa comprometedora nas redes sociais, depoimentos de pessoas próximas, tá valendo até tirar a prova pessoalmente! Hauhauhauauha” Esse era o nível da conversa. Resolvi entrar. “Vocês são patéticos. Souza, me passa sua conta.” “Oooopa, olha quem vai participar! A isolada em Manaus! Tá de castigo aí?” “Não tô em Manaus, tô numa cidade próxima.” Respondi. “Leo, boto fé em você! Eu comentei com o Bigode ontem que você é a pessoa mais íntima da Jessica, tem tudo pra ficar com metade da bolada!”


“Pessoal, não vale mudar de aposta depois que a Leandra fizer a aposta dela, ok?” “Gente, tô com essa moral toda?” Me surpreendi com a credibilidade em escrutinar a vida alheia que estavam me dando. “Anda guria, diz aí teu palpite!” “Calma, eu ainda tenho dúvidas.” Falei. “Ela é chegada num cara mais velho, não é?” “Tem essa opção?” Perguntei confusa. “Não, só o otário do Mário que acha que tem chances com ela.” “kkkkkkk Mário ela não curte essa pança toda aí não! Nem tua careca sexy!” “Leo, são cinco opções: hetero, lébisca, bissexual, assexuada e transexual.” “É lésbica, Souza.” O corrigi. “Leo fez a escolha!” “Não, eu só estava corrigindo o Souza, ele falou errado.” Falei. “Eeeeeeu vou ganhar uhuuuuu Eu também escolhi lésbica, se a Leandra acha que é, então já era, ganhei!” “Leo vai ganhar e ainda por cima vai conseguir provas kkkkkk” “Que merda, eu sabia que deveria ter escolhido essa opção do velcro, posso trocar Souza?” “Souza, também vou de lésbica, te deposito a tarde.”


“EU NÃO FIZ MINHA ESCOLHA AINDA!!!!” Odeio caps lock, mas precisava gritar. “Nem vem Leo, já escolheu sim, não pode mudar de aposta espertinha.” “Pronto Leo, já anotei aqui no Excel, tua opção é lébisca então né?” Souza digitou. “LÉSBICA! SE ESCREVE LÉSBICA” “Viu, ela acabou de confirmar a aposta eeeeeeeeeeeeeee eu vou ganhaaaaaar!” “Aff cala a boca Selton.” Falei. “A corrida ficou bem mais emocionante agora, tava todo mundo esperando o voto da Leandra kkkkkk” “Vocês deveriam estar trabalhando, seus desocupados.” Digitei. “Contamos com você, amiga.” “Maiara, vai catar coquinho.” Larguei o celular e me pus a arrumar os projetos que levaria para a barragem ainda naquela manhã. A tarde fiz o depósito na conta do Souza. De certa forma eu entendia o que aguçava a curiosidade dos quarenta e tantos funcionários daquela empresa de engenharia, Jessica nunca falava da sua vida pessoal, tudo que se sabia dela é que a empresa de argamassa que nos fornecia era de um antigo namorado, mas isso não quer dizer muita coisa, poderia ser apenas uma lenda urbana.


A coração gelado era uma ruivona de olhos verdes, que caminhava com passos firmes e rápidos pelo escritório da nossa sede no Rio, tinha um olhar que podia tanto fulminar como um raio destruidor, bem como um sorriso aberto que fazia você se sentir bem e recompensado. Ela era uma boa diretora. “Já derrubou algum funcionário malcriado de cima da barragem?” Recebi por mensagem no celular, na noite daquela terça-feira. Era Jessica. “Três, mas apenas mentalmente.” Respondi. Já estava com meus pijamas e quase adormecida, na cama vendo TV. Não era frequente essa nossa troca de mensagens despretensiosas, mas também não era raro. Talvez o pessoal tivesse razão, acho que sou a funcionária mais próxima dela, mas não sei até que ponto eu poderia usar isso para ganhar a aposta. “Eu já derrubei alguns, mas nunca ninguém descobriu.” Eu ri. Se bem que vindo dela, até poderia ser verdade, vai saber. “Às vezes tenho vontade de matar alguns lá da empresa mesmo, mas isso acho que você também deve ter vontade.” Respondi. “O tempo todo. Já quis matar você umas três vezes.” “Poxa chefe, só três?” “Sem contar as vezes que tive vontade de te torturar, quando você deixa pilhas de papel em cima da minha mesa.” “Já teve vontade de me demitir?” Provoquei.


“Sim, quem sabe assim você pare de me chamar de chefe.” “Você pode me chamar de funcionária se quiser. Ou pelo número da minha matrícula.” Ela não respondia de bate pronto, levava uns vinte minutos entre cada mensagem, acabei dormindo, e só no dia seguinte vi a resposta: “Ok 91695355.” Essa realmente era minha matrícula. O desafio fervilhava no grupo online, várias teorias estapafúrdias, gente querendo criar boato, tinha de tudo naquele rolar frenético de mensagens, mas até agora nada consistente havia aparecido. Algum babaca fez uma montagem tosca dela na cama com um homem e uma mulher. Mais um início de noite no escritório naquela quarta-feira, fazia de tudo para fugir dos mosquitos parrudos e para ter um pouco de internet, o grupo estava num frenesi. - Nada ainda, Leo? Quanta incompetência. – Nicolas me ligou. - Não tive tempo para correr atrás disso, eu não estou de férias na Amazônia, tenho uma barragem para construir. - Quanta pretensão. Já analisou o Instagram e o Facebook dela? - Já, ela quase nunca atualiza, tem poucas informações. A única coisa suspeita que achei, se é que posso chamar de suspeita, é que ela curtiu Cássia Eller e Ana Carolina.


- Hum, isso é interessante, diria até revelador. - Mas ela também curtiu Marisa Monte e Vanessa da Matta, talvez ela apenas goste de MPB contemporânea. - É... – Nicolas suspirou desmotivado. - Eu vi no grupo que estão investigando a vida do dono daquela empresa de argamassa, o suposto ex dela, até já o cutucaram no Facebook, acho que estão indo longe demais, se ela descobrir vai rolar demissão coletiva. O meu também está na reta. – Disse preocupada, mordendo a tampa da caneta. - Então torça para que resolvam esse quebra cabeças o quanto antes, faça algo. Silêncio. - Acho que vou mandar umas mensagens para ela, essa semana trocamos mensagens, mas acabei caindo no sono. - Vocês trocam mensagens? - Raramente. Acho que quando ela fica entediada naquela cobertura de dois milhões começa a mandar mensagens para toda a lista de contatos. - Nunca recebi uma vírgula dela. E ela não está aqui no Rio, acho que está no sul, viajou ontem. - Pensarei em mensagens especulativas, nada invasivo. – Meu cérebro do mal começava a se animar. - Me mantenha informado, eu sou seu melhor amigo, tenho privilégio nas


informações. Naquela noite fiquei até tarde no escritório, cheguei no hotel e capotei, deixaria para formular mensagens investigativas na noite seguinte. O que me movia nessa aposta? Foi a última frase que passou pela minha cabeça antes de adormecer. Eu não tinha uma resposta satisfatória ou clara. A quinta-feira começou vagarosa como a moça da copa, que se movia em câmera lenta fazendo o café, moendo os grãos, o café fresco que me traria a seguir. O pessoal nessa cidade tinha um ritmo desacelerado e eu estava começando a gostar disso. Meu celular tocou e atendi achando que era Nicolas. - Bom dia! - Falei efusiva. - Bom dia por quê? - Jessica respondeu. - Ah, bom, é que está um lindo dia lá fora, mas posso retirar o bom dia se quiser. - Bom dia para você também. Como estão as coisas aí no interior? - Caminhando a contento. As obras estão dentro do prazo, está chovendo até menos que o esperado, ah, e não houve nenhum assassinato até o momento. - Eu perco o emprego, mas não perco a piada. - Leandra, quero que você venha para Brasília hoje, preciso de você aqui. - Você está em Brasília? - O que você acha?


- Ãhn... Então, faço as malas e viajo para Brasília, é isso? - Quero você aqui ainda hoje. - Tentarei, porque estou bem longe, e já estamos no meio da manhã. - Quando chegar me procure na câmara dos deputados, me ligue. O jogo havia mudado. A meu favor. Fui para o hotel e arrumei a mala em tempo recorde, cheguei esbaforida no aeroporto de Manaus e corri para o guichê da companhia aérea, descobri que todas as grandes companhias não tinham mais voos para Brasília naquele dia, me indicaram procurar uma companhia aérea menor, e foi o que eu fiz. Cheguei no balcão onde a atendente conversava alegremente com uma amiga e não queria prestar atenção em mim. - Moça. Moça! - Pois não senhora? - Ela falou, ainda rindo do que a amiga falara ao seu lado. - Preciso de uma passagem para Brasília, o próximo voo que você tiver para lá. - Tem um voo saindo em 20 minutos, mas o checkin já encerrou. - É esse, você tem que me colocar nesse voo, eu pago o que for preciso, mas me coloque lá. - Ok, a passagem é 540,00. Selmaaaaaa! - Ela gritou. - Tome. - Lhe entreguei o cartão. - Selma, coloque essa menina no voo 2398, antes que ele decole.


Corri para o embarque, cheguei a tempo ao avião. Coloquei meus fones e relaxei, teria três horas de voo pela frente. Quando o avião pousou passavam dez minutos do meio-dia, comecei a descer as escadas anexadas à aeronave quando percebi que havia algo estranho. Me dei conta que por ser uma companhia aérea pequena, provavelmente o desembarque deles não seria no pátio principal, e sim em algum lugar menor e remoto do aeroporto, isso justificaria o lugar estranho onde eu estava desembarcando. Terminei de descer as escadas e avistei um funcionário da companhia, me dirigi até ele para perguntar como chegar até a saída do aeroporto, quando destampei na fachada com um letreiro branco enorme que dizia: "Bem-vindo à Marília" Sabe aquela sensação ruim que sobe a espinha quando você se dá conta da merda que acabou de acontecer? Então. - Moço, eu estou em Brasília? - Não, você está em Marília, São Paulo, bem longe de Brasília. - Como faço para ir para Brasília? - Ãhn, acho que tem que pegar outro voo, vá até o guichê da nossa empresa. Nem preciso contar o quanto corri até o guichê desta pequenina empresa, arrastando minha mala verde-dói-os-olhos. - Daqui não tem nenhum voo para Brasília, você precisa voar até algum


aeroporto que tenha voos para lá. - A atendente me informou. - Ok. - Ok? - É, ok, me enfie em algum voo para algum aeroporto decente. - Certo, tem um voo daqui 40 minutos para Campinas, lá talvez você tenha mais sorte. Depois de mais dois voos, finalmente cheguei à Brasília. Às cinco da tarde. Tomei um taxi até a câmara dos deputados, peguei meu celular para ligar para Jessica, já caminhando dentro do pavilhão, e a avistei conversando com alguém que carregava uma pilha de projetos enrolados. Ela me viu e abriu um sorriso, dispensou a pessoa com quem falava e veio na minha direção. - Isso são horas? Se aproximou e me deu um abraço. - Você demorou. - Ela disse, após o abraço. - Alguém com déficit de atenção confundiu Brasília com Marília, e precisei de três voos para chegar aqui. - Como assim? - É uma longa história. - Ok, venha comigo, vou te mostrar o escritório onde estaremos alocadas nos


próximos dias. Enquanto caminhávamos, percebi que ela não estava no costumeiro ritmo acelerado. - Muito trabalho aqui? - Perguntei. - Não, está tudo tranquilo, só reuniões chatas, aquela coisa burocrática. - Então porque você me tirou do projeto da barragem, se aqui está tranquilo? Ela balançou a cabeça hesitante, como alguém que não tem uma resposta satisfatória para dar. - Gosto de trabalhar com você, estou entediada aqui. Não soube o que responder. A noitinha ela me chamou para ir embora, fui logo procurando taxi. - Não, não precisa, estou com carro alugado. - Preciso ligar para a Maiara para perguntar qual hotel devo ficar. - Não precisa, é o mesmo que o meu, sua reserva foi feita ontem. Ontem? Chegamos na recepção do hotel, entreguei meu documento e o moço não achou nenhuma reserva no meu nome. - Jessica, você disse que havia uma reserva, tem certeza que a Maiara fez? – Perguntei para ela. - Não, eu que fiz.


- Bom, temos uma reserva no nome da sua empresa, deve ser esta então. - O moço disse. - Deve. - Está em nome de "funcionária", é você? Percebi Jessica segurando o riso discretamente. - Sim, eu sou a tal funcionária. Peguei o cartão-chave e fomos para o elevador, eu ainda arrastava minha mala verde neon. - Funcionária? - Perguntei com sarcasmo, no elevador. - Você disse que eu poderia te chamar assim. - Sim. Chefe. Eu já colocava o cartão na fechadura, quando ouvi Jessica falando, ela já estava a caminho do seu quarto. - Você deve estar cansada e com fome. - É, foi um dia longo. - Ok, você tem duas horas para descansar e tomar um banho, vamos sair. - E seguiu para seu quarto. Eu poderia ter me manifestado contra, ter dito que estava cansada demais para sair, ou que simplesmente não queria, mas eu queria. Ela bateu na minha porta as nove, verifiquei se ainda tinha bateria no meu


celular enquanto descíamos o elevador, pois se algo revelador acontecesse essa noite, eu precisaria dele para registrar. Eu não tive tempo de bolar um plano, então meu plano seria empurrar bebidas até ela se soltar. E ver no que daria. Jantamos fast food, e fomos para um desses bares de happy hour, que depois das dez viram semi-boates, com algum DJ e TVs passando clipes. Jessica era menos grossa quando estava a sós comigo, na verdade era até atenciosa, diferente daquela diretora coração gelado que convivíamos durante o expediente. - Eu deveria ter te levado num restaurante decente, não é? Ao invés de te dar hambúrgueres. - Ela disse, quando sentamos numa das mesas redondas do bar. - Também gosto de hambúrgueres, não tem problema. - Talvez aqui tenha comida, quer ver o cardápio? - Não, daqui só me interessa o menu alcoólico. Ela riu e pedimos drinks. O plano estava começando. - Deixa eu adivinhar: duas paulistas perdidas em Brasília. - Um dos caras de uma dupla que se aproximou de nós tentou adivinhar. - Duas cariocas, você errou. - Respondi para o bonitão de cabelos negros brilhosos que vestia uma camisa gola polo de duas cores, com brasão e número, parecia o uniforme dos caras naquele lugar. - E vocês não parecem brasilienses, pelo sotaque. - Jessica disse. - Mineiros, estamos a trabalho aqui.


- Nós também. Ficam até quando? - Jessica perguntou. - Até amanhã, mas dependendo da noite de hoje... Tudo pode mudar. - O loiro de cabelo curto respondeu, com um sorriso malicioso, esse estava claramente dando em cima dela. Os dois partidos continuaram em nossa mesa, conversando animadamente conosco, o loiro comia minha chefe com os olhos. Dezenas de drinks depois, Jessica já estava extrovertida, tipo, bem extrovertida. Fomos para a agora pista de dança. Eu não estava dando mole para o moreno que tentava umas mãos bobas quando dançava perto de mim, mas o clima estava mais quente entre o outro casal. Bom, havia um clima, e eu estava com meu celular a postos, pronta para registrar a prova tão desejada. - Mais um drink, chefe? - Ofereci. - Sim, vou com você buscar. - Dois Cosmopolitans. - Pedi no balcão. - Everton disse que o Emerson quer conhecer você melhor. - Jessica soltou. E eu começava a me sentir culpada por embriagá-la, várias vezes trazia um drink não alcoólico para mim, e um alcoólico para ela, para que achasse que eu estava a acompanhando. Parecia coisa de vilã de filme óbvio. - Everton e Emerson? São uma dupla sertaneja? – Perguntei. - Sim, amadores ainda. - Mas eu não quero nada com o Everton.


- É Emerson. - Que seja. - Respondi, pegando minha taça. Ela pegou a taça dela e me olhou. - Como você acha que essa noite vai terminar? - Ela me perguntou, com um ensaio de sorriso. - Não sei para você, mas para mim espero que termine no zero a zero, não pretendo ceder para o Everton. - Emerson. - Nenhum dos dois. Pelo semblante quase sorridente dela, seus planos eram diferentes, acho que Everton daria sorte, e estenderia sua estadia em Brasília. E eu continuava com meu celular na mão, na expectativa da foto ou vídeo que me daria um ano sem plantões. Voltamos para a pista, onde nossa dupla sertaneja nos esperava ansiosamente, e com sorrisos receptivos. - Oi loirinha, você demorou. - Emerson me sussurrou no ouvido. - Emerson, se você não quer ter sua mão decepada, é melhor tirá-la da minha bunda. - Respondi. Ele apenas me olhou assustado, e em alguns minutos nós quatro estávamos dançando, no meio do povo também animado. Era surreal estar naquela situação, na balada com a temida diretora com fama de ser fria e agressiva dançando descontraidamente na minha frente. Ela estava se


divertindo, e as coisas ali evoluíam. Por duas vezes cheguei a ligar a câmera do meu celular, acreditando que aconteceria. Mas nada aconteceu. Quando finalmente percebi que as coisas aconteceriam de fato entre o casal à minha frente, que dançava com grande intimidade, algo assoprou no meu ouvido. "Guarde o celular." Era minha consciência. De repente me dei conta que estava torcendo para que eles não ficassem, indo contra meu grande plano de vencer o desafio. Eu não queria que ela beijasse aquela metade loira de dupla sertaneja. Olhei para o aparelho em minha mão, e o guardei na bolsa, tomada por uma sensação desconfortável. Acho que era culpa, e das grossas. O loiro de nome Everton (finalmente gravei os nomes deles) dançava atrás dela, com as mãos em sua cintura, ela estava de frente para mim, e como se acordando de um transe, me fitou. Se tivesse permanecido assim, apenas me olhando atrelada ao Everton, tudo bem. Mas depois de algum tempo, ela tirou as mãos dele e veio até mim. - Você não parece estar se divertindo, quer ir embora? - Falou em meu ouvido. - Não, eu estou me divertindo, e você também. - Sim, esse é o objetivo. E o Emerson, como estão? - Lutando contra a mão boba dele. Mas se você quer ficar com o seu cara, fique à vontade, ok?


- Meu cara? - O Everton. Ela continuou com a boca próxima ao meu ouvido, e alguns segundos depois respondeu: - Eu não quero ficar com um cara. E saiu. Foi até a mesa e pegou sua bolsa. Veio novamente na minha direção. - Vamos embora? Ou você acha que vou aliviar amanhã? Quero você de pé as oito. No taxi, em direção ao hotel, tentei mais um pouquinho. - Jessica, se amanhã não trabalhássemos, você teria ficado com o sertanejo mineiro? - Talvez. Encerrei o assunto. Eu continuava sem provas e com mil suspeitas. Trabalhamos normalmente no dia seguinte, tirando a ressaca e o sono que aparecia às vezes, distraindo minha atenção. Tudo que eu queria era voltar para o hotel e dormir dez horas seguidas. Mas aquela sexta não terminaria tão simples assim. Jessica guiava de volta para o hotel, no final da tarde. Eu seguia distraída, com a cabeça caída, observando aquele céu roseado à nossa frente.


- Você deve estar achando um saco essas reuniões, não é? Estava acostumada a bater com projetos na cabeça dos funcionários da barragem, vivendo uma aventura na floresta amazônica. – Ela disse, me tirando daquela letargia sonolenta. - Ãhn... Até que não, estou aprendendo bastante aqui. – Olhei ao redor, não reconheci onde estava. - Licitações, burocracia, contratos... Eu admito, é um saco. – Ela respondeu. - Acho que não estamos a caminho do hotel. - Não? – Ela também olhou para todas as direções. - Não passamos por aqui ontem. - Acho que errei a rua. – Ela parou o carro e fez a volta. - Hum... É, agora sim, chefe. Lembro dessa rua, você vai pegar a esquerda, e depois a esquerda de novo naquele posto. Ela me lançou um olhar sério, como se me censurando por algo. Acho que ela não gostava que lhe dessem ordens. - Leandra, posso te pedir uma coisa com toda sinceridade do mundo? - Claro. - Não me chame de chefe. Sério. Parece que cria um abismo entre nós. - É hábito, mas prometo que vou me policiar. Caminhávamos pelo corredor de nossos quartos, quando ela disse, sem se virar.


- Durma um pouco, peça algo para jantar. Sairemos as onze. Se você quiser, é claro. Ontem ela não me deu essa opção de recusa. - Vamos onde? - Sair. - Ok. Estava em sono profundo quando Nicolas ligou, querendo as informações privilegiadas. - Nada ainda, Nico. - Como nada? Vocês foram para a balada ontem! Não esconda o jogo, ela pegou uns três homens e cinco mulheres, não foi? - Aff que linguajar. Não, não vi nada de mais, ela não ficou nem com o cantor sertanejo. Quem sabe hoje as coisas sejam diferentes. Eu acendi a luz e fui pegando as coisas para começar a me arrumar. Decidia se usaria a tática do álcool hoje de novo. - Vão onde? - Não faço ideia, ela é a big boss, ela decide. Aliás, ela pediu que eu não a chamasse mais de chefe. - E por que? - Ela não gosta. E como tenho amor à minha vida, vou evitar.


Silêncio. - Acho que você vai perder a aposta, mas terá a prova. – Nicolas disse. - Não sei... – Já não sabia o que eu queria dessa situação toda. Talvez eu não quisesse mais ter uma prova, mas ainda assim eu continuaria com o jogo. - Fique com ela e tire uma foto. - Ah Nico, sério, vá dormir. – Este era Nicolas colocando minhocas na minha cabeça. As onze ela me buscou no quarto. - Jantou, não jantou? Eu só havia dormido. - Ahan. Quando entramos no taxi percebi que só tinha 8% de bateria no celular, exclamei um “merda” baixinho. - O que foi? – Ela perguntou. - Meu celular tá quase sem bateria. - O que tem? Você não vai precisar de celular. E se você ficar mexendo no celular o tempo todo como você fez ontem, eu jogo na privada, ok? Jessica e delicadeza não cabiam na mesma frase. Uma pena, porque a grosseria não combinava com ela, que tinha traços realmente delicados. Às vezes eu a olhava e me perguntava se ela não tinha uma


versão mais leve escondida ali dentro, porque de vez em quando ela parecia deixar isso transparecer, um pouquinho de açúcar naquele café amargo. - Que lugar é esse? – Perguntei ao entrar numa balada com algumas pessoas que pareciam estar fantasiadas de alguma coisa. - É um lugar alternativo, me indicaram, nunca estive aqui. Hoje tem uma festa temática, de cinema. Uma Mary Poppins e uma Dorothy passaram por nós, nos olhando com sorrisos. Algo me dizia que elas voltariam em breve. Estávamos num canto, no bar, sentadas em banquinhos altos, bebendo. - Me arranje algo para comer, pelo amor de Deus. – Eu implorava discretamente para o barman. Meia hora depois ele me colocou no balcão à minha frente uma tigela com amendoim, na mesma hora que Mary e Dorothy apareceram, puxando papo com a gente. Aquele ambiente era o ideal para ter êxito em minha empreitada, haviam garotos e garotas de todas as sexualidades possíveis, alguma coisa teria que atrair a bendita da Jessica. Porém desta vez eu não a incentivei com os drinks, eu não gostara de como havia me sentido ontem no final da noite, não queria aquela culpa de novo. Apesar de que eu ainda estava ali com o celular a postos, firme no desafio. “Ibagens, eu quero as ibagens” Era a mensagem engraçadinha de Nicolas, no celular.


“Não tem foto de nada. Ainda.” Respondi. “Ainda? Quer dizer que essa noite vai rolar algo aí? Ela já está com alguém?” “Nico tenho 4% de bateria e não vou gastar falando abobrinhas com você, tchau.” Jessica pareceu gostar da Dorothy, e engataram uma conversa animada. Mary Poppins aproximou-se de mim, encostando na minha perna, suando com seu sobretudo negro e cachecol de lã. Eu tenho pavor de gente suada. - Por que não guarda o cachecol no bolso? – Eu tentava convencê-la, enquanto atacava o amendoim como se fosse uma iguaria, o pouco que eu havia bebido de estômago vazio havia me pegado de jeito. - Faz parte do figurino. Você gosta mesmo de amendoim, hein? - É afrodisíaco. – Eu falei rindo. Ela não riu. - Quer ir lá fora comigo, para fumar? - Não, não fumo. - Hey Leo, a música que você gosta! – Jessica disse para mim, interrompendo o que Dorothy falava com ela. Ela lembrou da vez que comentei que gostava dessa música, numa das vezes que dividimos um táxi. E ela só me chamava de Leo quando estava de muito, muito bom humor. Ou quando ia me mandar para alguma vistoria de obra, que eu odiava fazer. - Nossa, você lembrou!


- Quer ir... Mary Poppins a interrompeu, me chamando para acompanhá-la ao banheiro, me levando pela mão. - Eu percebi que sua amiga deixa você tímida, por isso te trouxe aqui em cima. Ela disse, guardando o cachecol no bolso. - Não deixa não, é impressão sua. – Eu já imaginava o que aconteceria a seguir. – O ar condicionado aqui é forte né? Gostei. Ela caminhou na minha direção e me recostei na parede, então nos beijamos. Foi assim que fiquei com a Mary Poppins suada. Quando terminou, me dei conta que o mesmo deveria estar acontecendo no andar de baixo, e o amendoim quis sair do meu estômago. - Eu preciso descer. – Falei para a garota, que infelizmente não havia guardado também aquele chapéu brochante da Mary Poppins. - Já? - Não é de bom grado deixar minha amiga lá sozinha, ela que me trouxe para cá, justamente para ter companhia. - Suzana está fazendo companhia para ela. - Quem? - A Dorothy. - Ah. Mesmo assim, eu vou descer.


Pulei as escadas de dois em dois degraus, e encontrei Jessica ainda no mesmo lugar, porém sozinha. Ela me viu e deu um sorriso encabulado. - Por que está rindo? - Tem batom da Mary Poppins em você. - Tem? – Falei, passando um guardanapo na boca. E olhei atentamente para ver se tinha batom da Dorothy nela, mas não havia sinal. - Pronto, já saiu. - Ela disse, me olhando com a cabeça de lado. - E a Dorothy, onde está? - Passou um furacão aqui e a levou. E a Mary? - Saiu voando com seu guarda-chuvas. – Me sentei ao seu lado, pedi outra bebida, apenas para mim. Eu estava feliz que ela não havia ficado com a garota. Mas resolvi espetar a ruiva. - E então, não vai rolar nada com sua garota? – Perguntei, com um sorriso debochado. - Minha garota? Você tem alguma fixação com pronomes possessivos, não? Eu ri. - Modo de falar. Estávamos há umas duas horas naquela festa, uma série de músicas que eu sabia que ela gostava estava tocando, e resolvi levá-la para dançar, tirá-la daquele desânimo silencioso. Desta vez não havia nenhuma intenção da minha parte de


empurrá-la para alguém, para conseguir minha “prova”. Eu queria que ela se divertisse comigo. - Anda, levanta desse banco, vamos para a pista, eu sei que você gosta dessas músicas. – Falei, já de pé a sua frente. Ela estava recostada no balcão atrás de si, segurando seu copo, me fitou de forma analítica por alguns segundos antes de responder. - Leo, eu vou embora, estou cansada e a bebida não está caindo bem. Mas se quiser continuar aqui, fique à vontade, não precisa me acompanhar. - Já quer ir? Ela apenas confirmou com a cabeça. - Eu prometo que não te deixo aqui sozinha de novo. – Insisti. - Eu realmente quero ir, ok? Desculpe ter te trazido e agora resolver ir embora, mas por hoje chega para mim, estou exausta. Fomos em silêncio no táxi, aquela balada era longe do hotel onde estávamos. Enquanto o carro seguia eu pude ficar a sós com meus pensamentos, foi quando uma verdade incômoda surgiu. E se tornou exponencialmente mais incômodo quando olhei para o lado e enxerguei o motivo daquele monte de sensações diferentes dentro mim. Jessica estava com o olhar perdido pela janela do carro, os olhos baixos, cansados. E percebi o quanto gostava dela. Mas ela era minha chefe, isso tudo era uma loucura impensável.


No elevador, ela subia de braços cruzados, evitando cruzar o olhar com o meu. - Almoçamos juntas amanhã? Ou vamos embora? – Perguntei. - Você pode ir para casa se quiser. Aquela dureza nas palavras me atingiu em cheio. - Não precisa mais de mim aqui? A porta do elevador se abriu, e seguimos pelo corredor. Parei em frente à minha porta e peguei o cartão de entrada na bolsa. Ela parou um instante ao meu lado, me deu boa noite, e seguiu para seu quarto. - Boa noite, obrigada pela noite. – Respondi. Antes que eu enfiasse o cartão na porta, percebi que ela havia mudado de ideia e voltava na minha direção. Parou na minha frente, por um instante achei que ela me demitiria. - Qual o seu problema? – Ela me indagou. - Oi? - Qual seu problema comigo? - Ãhn... A qual âmbito você está se referindo? - Se eu te demitisse, você me olharia diferente? Entendi o que ela queria dizer, e uma onda quase elétrica passou por meu corpo. - Eu não tenho nenhum problema com você.


- Você não respondeu minha outra pergunta. Olhei para baixo pensando se deveria responder essa pergunta. Eu sabia que se respondesse, seja qual fosse a resposta, as coisas entre nós nunca mais seriam as mesmas. - Jessica... Você quer mesmo levar a conversa para esse lado? - Não. – Ela desviou o olhar, e fez menção de ir na direção do seu quarto. A impedi, a tomando pela mão, e trouxe para o meu quarto. Larguei minha bolsa na poltrona e fui até ela, na frente da cama, ela me encarava surpresa. Fitei por um instante aquele belo rosto anguloso mal iluminado pela luz que vinha da janela. Eu já havia tomado a decisão, mas hesitava. - Jessica, nesse momento eu não enxergo você como chefe. – Coloquei minhas mãos em seu rosto e a beijei. Foi assim que fiquei com a coração gelado. Antes de cairmos na cama, depois dela praticamente arrancar os botões da minha camisa, no meio daquele fulgor ofegante, eu fiz a pergunta de um milhão de dólares: - Você é, não é? Ela respondeu com um sorriso. E caímos na cama, só adormecemos quando o sol despontou lá fora. Algum barulho do lado de fora me fez acordar poucas horas depois, mais perdida que surda em bingo.


Procurei meu celular tateando a mesinha ao lado da cama, lembrei que o celular estava na bolsa, provavelmente sem bateria, e ploft, caiu uma ficha de uma tonelada na minha cabeça, lembrei de tudo, absolutamente tudo. Virei apavorada para o lado, e me deparei com aquelas costas brancas, o cabelo ruivo caído no travesseiro, eram as costas alvas e nuas da minha chefe. A olhei dormindo por algum tempo, apesar de estar confusa, estava sentindo aquela ponta de satisfação, aquela sensação gostosa pós noite incrível de sexo. Daí lembrei do resto, da aposta, do sertanejo, da Mary Poppins, do fato dela ser a diretora da empresa onde eu trabalhava, todas as coisas que me impulsionaram a sair da cama, me vestir e ir embora dali. Antes de sair da cama, ainda dei uma última olhada, um pensamento estúpido passou pela minha mente: - Uma foto agora daria uma ótima prova. Deletei imediatamente o pensamento, começava a me vestir quando me dei conta que eu não tinha para onde fugir, eu estava no meu próprio quarto. - Bom dia... – Olhei para a cama e vi de onde vinha o cumprimento largamente sorridente. - Desculpe ter acordado você. - Vai onde? Hoje é sábado. - Ãhn... – Não fazia ideia do que falar. - Volta pra cama.


A consciência pesou de forma decisiva. Ao vê-la assim na minha cama, nua, pacífica, totalmente desarmada, me recriminei pela minha caçada de provas, aquilo não deveria ter acontecido, eu havia jogado sujo e me arrependia agora. O que estavam fazendo com ela era cruel, e eu me sentia um lixo por ter participado disso. Havia uma batalha interna dentro de mim. Metade de mim queria voltar para a cama e para ela. A outra metade, a culposa e racional, me dizia para sair dali de forma digna. E foi o que fiz. Ou tentaria fazer. - Eu não posso... – Falei com um semblante consternado. – Eu adoraria voltar para a cama agora, mas não devo. - Por que? - Eu fiz uma coisa antiética, e muito errada. - Voltou a me enxergar como chefe, não é? – Ela disse, com um suspiro desapontado. - Não, quer dizer, você é. Mas não é isso. Ela não falou nada, esperava minha explicação. - Nós temos um grupo no WhatsApp, dos funcionários, e estávamos fazendo uma aposta para descobrir... droga, isso é tão patético... - O que? - A aposta era para descobrir sua orientação sexual. Ela franziu a testa, e ergueu-se um pouco na cama, se cobrindo com o lençol. - Por que isso?


- Curiosidade, pura curiosidade. E falta do que fazer. Você sabe como é, falar do chefe é esporte nacional, e especular sua vida privada faz parte desse esporte. Não foi ideia minha, mas eu entrei nessa, e me arrependo até a alma por ter entrado nisso, na verdade estou morrendo de culpa e vergonha, e não achei justo continuar escondendo isso de você. Ela ficou um tempo pensativa, e eu continuei: - Acho compreensível se quiser me demitir, mas poupe os outros. Apenas eu fui longe nessa aposta. Tinha um prêmio para quem conseguisse trazer a prova concreta, e nos últimos dias eu estava tentando arrancar alguma prova de você. – Balancei a cabeça contrariada. - É feio, eu sei, é bem feio e não me orgulho nem um pouco disso. - Quanto você levaria? - Ãhn... Acho que esse prêmio está em mil, e tinha também o lance das folgas de plantões, um ano sem plantões de final de semana para quem trouxesse a prova. O restante seria dividido entre quem acertasse o bolão. - Bom, acho que seria mais fácil ter me perguntado... - Desculpe, isso foi algo totalmente reprovável da minha parte, foi desrespeitoso com você. - Você conseguiu sua prova. O que fez, tirou uma foto enquanto eu dormia? Fez um vídeo? - Não, claro que não! Eu não quero mais saber dessa aposta, não tenho e nem quero ter provas, ok? – Eu permanecia de pé ao lado da cama, de calça e sutiã,


tentando parecer uma pessoa séria. - Então... Essa noite, tudo isso fez parte do jogo? - Não, parei de jogar ontem, antes de voltar para cá. O que aconteceu essa noite não tem nada a ver com a aposta. Mas me sinto péssima por ter participado, e justamente pelo que aconteceu essa noite que me senti na obrigação de te contar. Ela ficou um tempo em silêncio, cabisbaixa. - Você se vendeu por tão pouco... – Ela disse, com uma voz pesarosa. - Eu sei. – Respondi também cabisbaixa. - Eu ganharia 250,00 apenas. Ergui o rosto e a fitei confusa. - O que? – Perguntei, sem entender. - Vocês não eram os únicos a ter uma aposta, nós também tínhamos uma, com o mesmo tipo de objetivo. Claro, nosso grupo é bem menor, tem apenas a diretoria e a gerência, umas dez pessoas, por isso o prêmio era menor também. - Do que você está falando? – Indaguei, incrédula. - Eu sabia da aposta de vocês. Nós da diretoria e gerência sabíamos desde semana passada. Eu fiquei possessa, claro, mas resolvi não interferir, apenas acompanhar. - Você sabia? Sabia também que eu estava querendo provas? – Eu estava estarrecida.


- Claro. – Ela respondeu, calmamente. As coisas não poderiam ficar mais absurdas. Ou poderiam? - Vocês resolveram criar um bolão para se vingar do nosso? - Hum... Mais ou menos, é... Um pouquinho. – Ela estava com um sorrisinho cínico estampado no rosto. - E quem era o alvo da aposta? Ela riu. - Você. Arregalei ainda mais os olhos. - Eu? Vocês estavam especulando minha vida pessoal? - Sim, de leve. Na verdade, acho que só eu levei essa aposta a sério. - Tem mais de quarenta funcionários na empresa, por que eu? - A ideia da aposta não foi minha, eles vieram me perguntar se eu toparia participar, eu respondi que sim, mas que eu escolheria o alvo. E eu achando que estava ludibriando a pobre coração gelado. - Por que me escolheu? Ela tirou o sorriso do rosto, voltou a ficar séria. - Eu tinha segundas intenções. - Desculpe, mas ainda não entendi. – Não estava entendendo mesmo.


- Achei que seria uma boa oportunidade para saber mais sobre você. Minha resposta foi franzir as sobrancelhas. Ela baixou a voz e continuou: - O que aconteceu essa noite... Eu queria isso desde o dia que contratei você. Ouch. - Há dois anos?? - Mas nunca tive grandes esperanças porque sabia que você namorava o Nicolas. - Eu nunca namorei o Nicolas! - Sim, e eu só descobri isso no mês passado, quando ele entrou na minha sala e me entregou o convite de casamento. Abri e vi que a noiva não era você. – Ela riu. – Haviam me dado informação errada sobre você esse tempo todo. - Seu informante é ruim. - Sim, por isso troquei de informante, esse agora é ótimo, tem me repassado um boletim diário da aposta de vocês. - Aquela aposta é ridícula, eles têm falado muitas asneiras lá... – Falei envergonhada com o teor daquele grupo nos últimos dias. - Concordo, inclusive o tema de ontem foi interessante, estavam discutindo se eu era ruiva por completo. Morri mais um pouquinho de vergonha, deixei transparecer pelo meu semblante constrangido.


A propósito, ela era. - Eu peço desculpas em nome deles. Vou encerrar aquilo ainda hoje. - Eu farei o mesmo. – Ela respondeu. Apenas balancei a cabeça concordando, eu processava aquilo tudo que ouvira dela. Ela deu um suspiro longo e falou: - Estamos quites? Olhei para ela e não soube o que responder. Fiz uma gesticulação hesitante e falei: - Sim, acho que sim. Acho que um crime anula outro... - Leo, qual foi a primeira coisa que te pedi hoje? - Hum... Não sei... Que eu voltasse para a cama? – Perguntei confusa. - Ahan. – Ela disse com um sorriso convidativo. Correspondi ao sorriso. E voltei para a cama. Tivemos um dia agitado. FIM


Sobre a autora Cristiane Schwinden cresceu numa cidadezinha de Santa Catarina, e reside atualmente no estado mais cultural do Brasil: Bahia. Começou a escrever aos 30, e não pretende parar nunca, tem histórias demais na cabeça. Com foco na literatura lésbica e feminista, escreveu três romances: A Lince e a Raposa, uma aventura com toque de fantasia e romance. Amigos de Aluguel, uma comédia romântica nada convencional. E 2121, uma distopia feminista com críticas sociais, e claro, com o bom e velho romance. Todos estão disponíveis em seu site: www.schwinden.com.br É também fundadora do portal de literatura lésbica Lettera, que reúne centenas de romances das melhores autoras nacionais, com milhares de leitores fieis. E é tudo de graça. Conheça o www.projetolettera.com.br


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