O SER, O CIBERESPAÇO E A PRODUÇÃO DO TEXTO
Eduardo de Castro Gomes
Manaus, julho, 2006
O SER, O CIBERESPAÇO E A PRODUÇÃO DO TEXTO
Eduardo de Castro Gomes
Dissertação de Mestrado submetida à aprovação do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, sob orientação da Profª Drª Zeina Rebouças Corrêa Thomé.
Manaus, julho, 2006
Agradecimentos
Ao Verbo Vivo, que escreveu a minha história de vida. A conclusão desta dissertação é um milagre dEle. À minha esposa Cleise, e meu filho Felipe, minha maior motivação e as únicas companhias físicas nos momentos mais difíceis. E quantas ausências tiveram que suportar! À Professora Zeina Rebouças Corrêa Thomé, exemplo de persistência e conquistas, minha orientadora. Aos meus amigos Carlos Henrique e Célia. Além da minha família, os mais incentivadores nesta caminhada. Obrigado pela tradução do abstract, Célia. À professora Márcia Gomes, minha irmã, que viabilizou contatos com professores e alunos do Instituto de Educação do Amazonas À Professora Tereza Cristina Rodrigues de Sena, por disponibilizar seus tempos de aula e seus alunos em favor desta pesquisa. Aos alunos do terceiro ano das turma 6 e 9 do IEA, e em especial aos que se dispuseram a participar do grupo focal, com os quais pude retornar aos meus tempos de ensino médio. Ao diretor e pedagogas do Instituto de Educação do Amazonas, que gentilmente permitiram a realização da pesquisa nas dependências do IEA. À professora Eunice Silveira que nos últimos momentos deste trabalho me forneceu valiosas direções e incentivo. À minha mãe, Maria Ivanilda, que neste momento está em Jerusalém, com certeza orando pela família.
À memória de Anne Frank, adolescência interrompida, oralidade emudecida, escrita universalizada em tempos de histórias apagadas
À banca examinadora
Profª Drª Zeina Rebouças Corrêa Thomé Presidente
Profª . Drª Beatriz Helena Dal Molin Membro
Prof. Dr. Alberto Nogueira de Castro Júnior Membro
Prof. Dr. Evandro Cantanhede de Oliveira Membro
Tecendo a manhã João Cabral de Melo Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Sumário Lista de apêndices ....................................................................................................................................8 Lista de anexos .........................................................................................................................................8 Resumo .....................................................................................................................................................9 Introdução ..............................................................................................................................................11 Capítulo 1 - A Terra: os mitos e os ritos “por trás das letras” ................................................................16 Sobre conceitos e pré-conceitos da gramática........................................................................................20 Direto da redação ...................................................................................................................................27 Sobre a motivação para escrever ............................................................................................................31 Primeiro elemento do processo: a causa da motivação ..........................................................................32 Segundo elemento do processo: limites influenciadores na motivação para escrever ...........................34 Terceiro elemento do processo: motivação renovada. ...........................................................................37 Capítulo 2 - Território e mercadoria: os sujeitos da escrita e a Internet ........................................40 Que (ciber)espaço é este? .......................................................................................................................41 Opiniões de especialistas sobre a escrita e o ciberespaço ......................................................................43 O professor e um tempo do espírito .......................................................................................................51 Capítulo 3 – Uma atividade no Espaço do saber ...............................................................................61 Processo metodológico da atividade com os alunos ..............................................................................63 a) A escolha do colégio para campo de pesquisa ...................................................................................64 b) Contato com as turmas .......................................................................................................................65 c) Aplicação do questionário ..................................................................................................................66 d) Explicação sobre grupo focal .............................................................................................................73 e) Escolha do grupo ................................................................................................................................75 f) Atividades com o grupo......................................................................................................................75 g) Observações sobre os textos ..............................................................................................................77 h) Observações sobre a atividade ...........................................................................................................79 Considerações finais .............................................................................................................................83 A engenharia do laço social na produção de texto .................................................................................83 Uma troca de idéias ................................................................................................................................85 Referências ..........................................................................................................................................118 Bibliografia ..........................................................................................................................................118 Periódicos .............................................................................................................................................119 Webgrafia .............................................................................................................................................120
Lista de apêndices Apêndice 1 – O blog “Ciber-Texto”.......................................................................................................89 Apêndice 2 – Conteúdo para o blog sobre a história da escrita............................................................106
Lista de anexos Anexo 1 - Tem uma redação no meio do caminho...............................................................................105 Anexo 2 - Os jovens e a internet...........................................................................................................109 Anexo 3 - Conselhos do Bill Gates.......................................................................................................114 Anexo 4 - Alguns exemplos de “pérolas”.............................................................................................116 Anexo 5 – Trechos do Diário de Anne Frank.......................................................................................117
Resumo
Abordando o tema da dificuldade de produção da escrita de alunos do ensino médio, associado ao suposto fascínio que a Internet exerce sobre o adolescente, aqui se discute acerca de possíveis elementos do ensino-aprendizagem da escrita que tem ocasionado essas dificuldades para os alunos. Pondera-se, em quatro capítulos, a forma como tem sido tratado o ensino da gramática e da redação, a motivação que o adolescente recebe para escrever; a visão generalizada de especialistas da área do ensino-aprendizagem da escrita sobre o trabalho da educação com a Internet, e o comportamento de um grupo de alunos do terceiro ano de uma escola do Nível Médio do Ensino Público na prática da redação através de uma oficina de texto on-line. Com a preocupação de não afirmar ser a Internet um determinante de um melhor desempenho da escrita, a prática de uma oficina de texto on-line foi considerada útil aqui também por se considerar inegável o papel da rede mundial de computadores na sociedade. Conclui-se com uma reflexão dos caminhos que poderiam ser trilhados para um melhor desempenho dos alunos na redação, a partir das constatações aqui expostas, à luz dos conceitos do filósofo Pierre Lévy sobre a engenharia do laço social.
Palavras-chave: adolescente, ciberespaço, educação, Internet, redação.
Abstract
Approaching the subject of the difficult to the high school students to the writing, associated with a alleged fascination that the internet exercised about the teenagers, here we’ll deal about possible facts in the writing that cause these difficulties to the students. Reflect on, in four chapters, the way that have seen taken care the grammar and the assignment, the teaching that the teenagers get to write; the generalized vision from specialists of the writing area about work from the education with the internet and the behavior of the students from the third grade from a Public High School in practice the assignment through a text workshop on-line. With a worry don’t say to be the internet a fact that determine a better writing, that practice was considered useful and so considered undeniable the part of the world web in the society. Concluded with the reflection of the way that can be covered to a better performance of the students in the assignment, from the proof show in here, from the concept of the philosopher Pierre LÊvy about the engineering the social ties.
Key-words: cyberspace, education, writing, Internet, redaction, news technologies.
Introdução “Engenharia do laço social” [...] é a arte de suscitar coletivos inteligentes e valorizar ao máximo a diversidade das qualidades humanas. Pierre Lévy
Duas observações aleatórias motivaram este trabalho, e culminaram numa busca de elementos que valorizassem as diversidades qualitativas dos atores envolvidos no ensinoaprendizagem da escrita. A primeira se refere a notícias publicadas em jornais impressos e sites educacionais, e a comentários feitos no talk show “Programa do Jô”, exibido pela Rede Globo de Televisão. Tais notícias e comentários expunham frases extraídas de redações de vestibular, e consideravam essas frases maus exemplos de construções textuais. A segunda observação consiste também em notícias, em revistas e sites, sobre um suposto avanço da utilização da Internet nas escolas, que estaria contribuindo com o ensino-aprendizagem da redação de forma excepcional. A metamorfose do aleatório para a investigação científica iniciou quando se percebeu que a maioria das notícias não apresentava uma proposta de estudo sobre as causas das dificuldades nas composições dos textos. Também, tais publicações, igualmente ao talk show global, atribuíam mais conotação hilária ao assunto, do que o valorizavam como uma manifestação da realidade em que se encontram os alunos do ensino médio quanto ao domínio não só da redação dos próprios textos, como em relação aos temas sobre os quais deveriam escrever. Um dos riscos dessa conotação é sugerir que as frases não teriam outra finalidade senão a de serem exploradas como denunciantes da ignorância de seus autores. Como o fato apresentava dois problemas, ou seja, o não domínio da escrita e o não domínio do tema, delimitou-se nesta pesquisa a problemática da escrita, por razões de necessidade metodológica e afetividade com o assunto. Definiu-se, assim, a questão norteadora da pesquisa: por que o ato de escrever constitui uma dificuldade para o adolescente? Considerou-se a hipótese de que os exemplos compilados das redações de vestibular, mais do que uma exposição do pândego, se constituíam em expressão de uma parcela estudantil que, de alguma forma e em algum momento, foi submetida a uma situação crítica na própria aprendizagem ao longo de toda uma vida escolar. Portanto, esses estudantes não deveriam ser apenas qualificados como algozes do vernáculo, sujeitos ignorantes da forma culta da escrita e alienados dos assuntos-temas de redação, sem se tecer uma análise
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sobre as possíveis condições de ensino às quais foram expostos e, assim, vislumbrar alternativas de reconstrução do processo da aprendizagem da escrita. Assim, começou-se uma busca na Internet e em livros por temas sobre a problemática do aluno adolescente para redigir, principalmente os que estariam prestes a se tornar candidatos a um curso superior. Ao longo dessa busca, especificamente nos ambientes virtuais, percebeu-se que o assunto “escrita”, em alguns casos, denotava um antagonismo entre os educadores, que se manifestavam em pelo menos três grupos: um de indivíduos a favor, outro contra e outro ponderado, sobre as influências da Internet na forma culta desse tipo de linguagem. Por sua vez, os livros sobre redação sempre apresentavam semelhança entre as regras, orientações sobre como escrever e que tipos de texto deveriam ser exercitados, mas não teciam nenhuma consideração às questões de deficiência textual em pauta. Não se expunham observações ou preocupações sobre a diversidade de realidades dos leitores, como, por exemplo, qual o domínio já adquirido sobre a escrita, ou que bases escolares anteriores sustentavam seus conhecimentos de gramática ou lingüística, para que naquele momento o leitor pudesse apenas complementar seus conhecimentos e, a partir do conteúdo do livro, inclusive com as “dicas” sugeridas, aprimorar sua escrita. Os conteúdos de tais livros supunham uma receita pré-aprovada a ser seguida pelos pretensos escritores. Ora, deve-se supor que, mesmo ao ler um livro específico de redação, o indivíduo menos conhecedor de regras gramaticais não terá a mesma desenvoltura que um leitor possuidor de maior domínio da gramática, no caso sendo ambos submetidos às mesmas orientações de um mesmo autor e no mesmo período de tempo. Outra forte impressão causada pela busca bibliográfica é a da discussão da aprendizagem da escrita parecer mais voltada para a alfabetização de crianças, quando muitos adolescentes, e até mesmo adultos graduados, carecem de uma perspectiva de aperfeiçoamento na forma de escrever. E não se está falando aqui de educação de jovens e adultos, mas, sim, de jovens em fase de conclusão de ensino médio, ou jovens e adultos inseridos no mercado de trabalho, bem conceituados socialmente, mas que apresentam extrema dificuldade ao redigir. Dentre os sites com algum teor sobre as redações, catalogados para esta pesquisa, apenas os portais “Por trás das Letras”1, “Educacional”2 e “Espaço Acadêmico”3 traziam
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Portal coordenado pelo professor, escritor e jornalista Hélio Consolaro, destinado aos estudantes do ensino médio e vestibulandos, “e atende, em parte, às expectativas dos estudiosos de língua portuguesa” (mais informações: www.portrasdasletras.com.br).
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abordagens sobre o estudante e a escrita. Convergindo para o conceito de Lévy sobre “engenharia do laço social”, expresso na epígrafe, essas abordagens iniciam os comentários desta dissertação, ao longo do primeiro capítulo, apresentando observações de Marcos Bagno4 sobre o ensino da gramática, de Mário Osório Marques5 sobre a redação, e de Luis Carlos Cagliari6 e Maria Augusta Sanches Rossini7 sobre a falta de motivação para o estudante se empenhar na escrita desde a alfabetização, incorrendo-se com isso em sérios problemas para o restante da vida escolar. O site e a bibliografia de Bagno apresentam discussões muito mais além do problema das deficiências do aluno. Falam da necessidade urgente de revisões sérias nos conceitos da gramática, uma vez que as mudanças nessa área de ensino têm sido ignoradas pelos próprios gramáticos, o que vem gerando, segundo Bagno, um preconceito contra os indivíduos que não detém o conhecimento da norma culta da língua. O segundo capítulo discute a utilização da Internet no envolvimento do estudante com a escrita. Comenta-se aqui o trabalho da “Oficina do Texto” do portal www.educacional.com.br, a pesquisa "Sites construídos por adolescentes: novos espaços de leitura, escrita e subjetivação", da professora Maria Teresa de Assunção Freitas, e reportagens em periódicos com teor voltado para a Internet nas escolas. Pondera-se neste capítulo as relações entre os sujeitos que interagem no ambiente virtual e o uso do ciberespaço como meio de estímulo para a escrita, configurando-se supostamente em novo espaço onde se desenvolve o saber. O terceiro capítulo apresenta um experimento de construção de textos com um grupo formado por dez alunos do ensino médio, sob as perspectivas discorridas nos capítulos anteriores. Esta atividade foi realizada no intuito de responder a seguinte questão: como a Internet pode representar um estímulo para um melhor rendimento do processo ensino-
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O www.educacional.com.br é “um ambiente de conhecimento, ensino e aprendizagem com milhares de informações organizadas e avaliadas sobre Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, além de recursos de administração escolar, comunicação entre usuários, assessorias, artigos, atualidades, entre outros, ao qual sua escola pode associar-se, tornando-se parceira no projeto” (extraído do Portal). 3 A Revista Espaço Acadêmico-REA (www.espacoacademico.com.br/), criada por um grupo de docentes da Universidade Estadual de Maringá (UEM), reúne artigos com teores de diversas disciplinas. 4 Professor do Departamento de Lingüística da Universidade de Brasília (UnB), onde atua na graduação e nos programas de pós-graduação em Lingüística e em Educação. Coordena atualmente o projeto IVEM (Impacto do Vernáculo sobre a Escrita Monitorada: mudança lingüística e conseqüências para o letramento escolar). 5 Mario Osorio Marques é sociólogo, doutor e pesquisador em Educação com artigos e livros publicados, entre eles: Sociologia Geral (1974); Universidade Emergente (1984); Pedagogia, a ciência do educador (1990); Conhecimento e Modernidade em Reconstrução (1993). 6 Prof. Dr. do Dep. de Lingüística do IEL- UNICAMP 7 Pedagoga, especialista em Administração Escolar em ensino fundamental e médio, professora de pósgraduação em Pedagogia e Psicopedagogia.
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aprendizagem da redação? Na busca de um norteamento para esta indagação, determinou-se fazer a comparação entre o comportamento dos alunos frente às atividades tradicionais de construção textual, com contato presencial (quando das visitas à sala de aula) e depois, ante a inclusão dessas atividades no ambiente virtual, utilizando-se a web como instrumento de troca de informações para esses exercícios. Para a experiência, foi construído um blog no qual os alunos pudessem publicar seus textos. Além de se configurar como campo virtual de estudo, sugeriu-se que o blog sirva posteriormente como fonte de consulta para professores e alunos da escola e de outros colégios, mas somente a turma escolhida participou ativamente como objeto de estudo, a fim de garantir a praticidade de acompanhamento das publicações e análise de resultados da composição dos textos. Uma vez que os contatos com os alunos foram mantidos presencialmente e através da web, este trabalho apresentou dois campos de pesquisa, um virtual e um físico. A Internet constituiu o campo de pesquisa virtual, onde se publicaram os textos e se tentou estabelecer os contatos com os alunos. O campo físico configurou-se em uma sala de aula de um estabelecimento escolar que já foi considerado um Centro de Excelência, o Instituto de Educação do Amazonas – IEA. Neste campo foram mantidos contatos com os estudantes e com a professora que atua na área de língua portuguesa. No capítulo final, são sintetizados os assuntos abordados nos capítulos anteriores, a fim de entretecer as considerações sobre possíveis novas formas de se ver o ensino da gramática e da redação através do ciberespaço, ambiente onde todos os agentes envolvidos com o ensino da escrita exerceriam sua condição de participantes da engenharia do laço social na produção do texto. A bibliografia se fundamenta no filósofo Pierre Lévy, cuja ótica situa as hodiernas relações humanas no ciberespaço, valendo-se dos conceitos de “inteligência coletiva”, “espaço do saber” e “engenharia do laço social”, neste caso em relação ao ensino da gramática e da redação, e aos efeitos da escrita e do ciberespaço para a sociedade. Assim, trabalha-se com o conceito de escola como o estabelecimento geográfico em que se ministra ensino de ciências, letras ou artes, e ampliamos para a idéia de que o saber não está apenas nesse estabelecimento, mas também nos ambientes do ciberespaço onde processos e práticas educativas são desenvolvidos e novas formas de se relacionar estão sendo estabelecidas. É importante observar neste trabalho a preocupação de não depreciar o conceito e atuação tradicionais do professor, nem de se atrever a afirmar serem totalmente obsoletas as já conhecidas metodologias e técnicas de ensino. Inicialmente o intuito era apenas o de
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questionar se os recursos da Internet acrescentam aos exercícios de redação, observando-se se os alunos estimulam em si mesmos o interesse pela descoberta de suas potencialidades criativas, livrando-se de possíveis estigmas de improdutividade textual. Ao final, atreveu-se discorrer aqui uma perspectiva de engenharia do laço social para o desenvolvimento da escrita em sala de aula e no ciberespaço.
Capítulo 1 - A Terra: os mitos e os ritos “por trás das letras”8 Por que os alunos vão tão mal na redação? Eis um belo mote para dissertação, com ingredientes de sobra para um debate acalorado. Por muito tempo, porém, em vez de procurar argumentos, defender pontos de vista e buscar soluções, muita gente preferiu fugir do tema. www.portrasdasletras.com.br
À luz da interrogativa da epígrafe, e tendo como referenciais teóricos principais nesta primeira análise os professores Marcos Bagno9, Mário Osório Marques, Luis Carlos Cagliari e Maria Augusta Sanches Rossini, este capítulo pondera os seguintes elementos: o tratamento dado ao ensino da gramática e da redação, e o que a escola apresenta em relação à motivação10 para o aluno despertar em si o interesse pelo exercício da escrita. Esses elementos foram definidos para a presente discussão a partir de um comentário do consultor do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) Reginaldo Pinto de Carvalho11, na entrevista intitulada “Tem uma redação no meio do caminho” 12, publicada nos portais “Educacional” e “Por Trás das Letras”. Antes de iniciarmos a discussão, considerou-se necessário um esclarecimento sobre a pergunta “por que os alunos vão tão mal na redação?”, incluída no texto de abertura da entrevista como uma frase de impacto, para chamar atenção sobre um caso freqüente de despreparo dos alunos nas redações. A pergunta inicia o parágrafo, que segue comentando a 8 A respeito do título deste capítulo, utiliza-se o conceito de Lévy sobre os quatro tipos de organização pelos quais o mundo passou, denominados por ele de “espaços antropológicos”. No primeiro tipo de organização, ao qual Lévy chama de “Terra”, os modos de conhecimento estavam centrados em mitos e ritos (2003, p. 23). Conforme se verá neste capítulo, o autor Marcos Bagno defende a idéia que existem mitos na lingüística e na gramática geradores de preconceitos sociais contra os indivíduos que não detém a norma culta da língua. Outro autor consultado para este capítulo, Mário Osório Marques, afirma que “fomos ‘alfabetizados’, em obediência a certos rituais”, e que há necessidade de se rever a forma como se tem ensinado a prática do escrever (1997, p. 13). 9 Bagno obteve o título de Doutor em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) com uma tese sobre as discrepâncias entre a língua realmente utilizada pelos brasileiros e a norma-padrão conservadora, veiculada pelas gramáticas tradicionais, pelos livros didáticos e pela mídia, que se baseiam em doutrinas ultrapassadas e não refletem a realidade da língua viva. A tese, orientada pelo Prof. Ataliba de Castilho e coorientada pela Profa. Marta Scherre, foi publicada em agosto de 2000 pela Ed. Loyola com o título Dramática da língua portuguesa (atualmente em 3a. edição). (http://paginas.terra.com.br/educacao/marcosbagno/arq_quememb.htm). 10 Os termos “motivação” ou “estímulo” não são tratados aqui como categorias a receberem explicações aprofundadas de psicopedagogia. Sua utilização neste trabalho deve ser considerada nos limites da idéia de despertar no indivíduo um interesse que o impulsione a se exercitar de maneira a expressar suas idéias coerentemente através de textos. 11 Coordenador de correção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)e professor de Língua Portuguesa. Dirige o Centro de Línguas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É também membro da diretoria da Associação de Professores de Língua e Literatura (APLL). Tem obras publicadas sobre o ensino de Língua Portuguesa e é pesquisador na área de Estilística (www.educacional.com.br). 12 Anexo 1 (Não consta no site o autor e a data da entrevista).
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negligência dos profissionais em relação ao assunto. Portanto, o próprio texto inicial da entrevista sugere que pelo menos algumas perguntas girariam em torno do despreparo dos alunos e da falta de interesse em se discutir esse problema. Porém, em nenhum momento do texto publicado nos dois portais a pergunta foi feita ao consultor do Enem e, portanto, não há uma resposta de Carvalho sobre o tema. Assim, acaba-se por não haver um aprofundamento no assunto e o texto se inclui, embora não intencionalmente, entre os que “fogem do tema”, como o parágrafo de abertura da própria entrevista adverte, pois os questionamentos prosseguem mais voltados para a exigência da redação nas provas do Enem e para os procedimentos adotados para corrigir tais redações. Há, contudo, um comentário de Reginaldo Pinto de Carvalho que sugere suficientes desdobramentos a respeito do tema desta pesquisa. Na opinião do consultor, a exigência da redação nas provas do Enem e nos vestibulares, “poderá fazer com que a sociedade exerça pressão sobre a escola para que ela cumpra sua obrigação de dotar os alunos das competências para produzir um texto coerente" (4º parágrafo do texto de abertura da entrevista). Dessa opinião pode se abstrair que as dificuldades de aprendizagem da escrita não tem sido exclusivamente um problema dos alunos. Talvez o fato de a escola não estar cumprindo corretamente sua função de ensino da Língua Portuguesa esteja contribuindo com essa situação. Isso não significa absolutamente que bastaria um maior empenho por parte das instituições escolares na aplicação de exercícios de redação para resolver o problema. Existem outras questões a serem evidenciadas, como o próprio ensino e a capacitação e atualização dos professores. Essas duas questões esbarram na reflexão sobre como os conceitos da gramática têm sido ensinados ao longo dos anos e o que precisaria ser repensado nesse ensino. Os processos históricos de sistematização da língua falada reduziram-na aos poucos signos da escrita, através dos vários alfabetos dos vários idiomas, visando uma construção correta e simples, de fácil compreensão do elemento escrito, que guardasse as informações com fidedignidade. Tal processo redundou, no entanto, em um sem-número de regras gramaticais, hoje dificilmente aprendidas por muitos alunos, e até mesmo por muitos professores. Pode-se então inferir que as tais regras criadas para facilitar os processos de registro da língua falada, tornaram-se complexas e talvez não fossem tão pouco assimiladas se houvesse maior competência da escola para promover um ensino no qual essas regras fossem transmitidas pelos professores de forma mais eficaz, e recebidas pelos alunos de maneira mais compreensível. Porém o que ocorre é que o modo como a escola vem se encarregado de
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trabalhar com este tema, tem deixado os alunos com dificuldade de escrita e compreensão dos textos, além de as instituições de ensino não oferecerem alternativas de estímulo ao empenho do estudante à prática da redação, senão o de produzir textos com o único objetivo de alcançar uma nota que o possibilite ser aprovado em uma avaliação. Coincidentemente, uma afirmação da epígrafe deste capítulo confirma uma constatação feita durante a pesquisa bibliográfica e webgráfica para este trabalho: foram encontrados poucos autores que tratam do assunto com um senso crítico aguçado e que apontem caminhos diferentes na busca de soluções para essas dificuldades de construção de textos, principalmente quando se trata de adolescentes. A maioria sempre mostra sugestões de como fazer uma redação seguindo as mesmas regras da gramática ou usando recursos auxiliares que apenas reforçam técnicas repetitivas, como “se ater a um tema delimitado”, “ter um bom dicionário”, “uma boa gramática”, “não usar gírias”, “não usar vícios de linguagem” etc. A reportagem
“Redação: o eterno bicho-papão do vestibular”, de Werciley Silva,
confronta a repetição das sugestões para uma boa redação e a continuidade de textos mal estruturados:
São Paulo - A fórmula parece bem simples: leia com atenção o tema proposto, apresente argumentos convincentes, não use vocabulário rebuscado, evite clichês e preocupe-se com ortografia e pontuação. Seguindo essas dicas, é possível fazer uma redação nota 10 nos principais vestibulares do País, garantem os professores. Mas se a receita é mesmo tão fácil, por que eles passam anos tentando fazer seus alunos escreverem melhor e, ainda assim, a redação continua a ser o bicho-papão do vestibular? (EAD - virtual - terça, 27 dezembro 2005).
Na reportagem da qual foi extraída a citação, vários professores se manifestam quanto a situação do vestibulando sob a pressão do tempo-limite para discorrer sobre um tema sugerido na hora da prova do vestibular, mas não se anuncia que em algum momento houve bons resultados por se seguir os conselhos para se fazer uma prova aceitável dentro dos parâmetros da norma culta, além de se comentar a situação do exíguo limite de tempo estabelecido. No cenário da busca de uma norma culta revisada, encontra-se Marcos Bagno defendendo a urgente discussão no sentido de se tentar uma mudança em toda essa situação. Tal discussão diz respeito aos mitos que envolvem a lingüística e que se tornaram fator de discriminação entre os que “conhecem a norma culta” e os que “não conhecem”. Bagno se mostra um crítico que vai além das correções e sugestões gramaticais:
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A gramática tradicional, que vem norteando o ensino da língua há quase dois mil anos, não é uma ciência: é uma doutrina. Como toda doutrina, ela tem seus dogmas, que devem ser aceitos sem contestação e transmitidos intactos às gerações futuras. A nomenclatura gramatical, por exemplo, que usamos até hoje – sujeito, objeto, advérbio, subjuntivo, pretérito, antônimo, preposição, artigo etc. – é a mesma proposta pelos gregos antes de Cristo. O que o ensino gramatical faz, então, é repetir esses mesmos termos, conceitos e definições, sem submetê-los a uma análise profunda (Bagno, 2003, p. 82-3).
Não há pretensão aqui de se fazer uma apologia aos conceitos de Bagno e afirmar ser este autor o único expoente lingüístico a ser utilizado a partir de agora nos ensinos da língua portuguesa. Apenas se considera a visão polêmica do autor sobre o domínio da gramática tradicional. Para Bagno, as dificuldades não estão apenas no ensino ou na aprendizagem. Antes de tudo, os conceitos vigorantes da gramática estão carentes de uma revisão urgente. O lingüista afirma na palestra “Preconceito contra a lingüística e os lingüistas”13 que:
A Gramática Tradicional, funcionando como uma ideologia lingüística, foi e ainda é, como toda ideologia, o lugar das certezas, uma doutrina sólida e compacta, com resposta única e correta para todas as dúvidas. Por isso, o que não está na gramática é "erro" ou simplesmente "não é português"! A Lingüística moderna, ao encarar a língua como um objeto passível de ser analisado e interpretado segundo métodos e critérios semelhantes aos das ciências naturais, devolveu à língua seu lugar de fato social, abalando as noções antigas que viam a língua como um valor ideológico. Assim, a Lingüística, como toda ciência, é o lugar das surpresas, das descobertas, do novo. Ora, o novo assusta, o novo subverte as certezas, compromete as estruturas de poder e dominação há muito vigentes. Não é por acaso que, mesmo entre profissionais que deveriam ter a Lingüística como seu corpo teórico e prático de referência, a doutrina gramatical tradicional ainda encontre muito apoio e defesa. (http://paginas.terra.com.br/educacao/marcosbagno/arq_quememb.htm).
Bagno também faz uma comparação do ensino da gramática com outras áreas, a fim de que se possa, seguindo o exemplo de outras disciplinas, repensar uma visão histórica das evoluções ocorridas na língua, e assim se atualizar os conceitos gramaticais: É muito comum o ensino das outras disciplinas fazer uma abordagem crítica dos saberes do passado, mostrando de que maneira a evolução do conhecimento e da ciência levou o ser humano a abandonar velhas crenças e superstições. Em livros didáticos de Biologia, Física, Química, História, Geografia, etc., é freqüente encontrar afirmações do tipo: "Durante muito tempo se acreditou que [...], mas os avanços da pesquisa e do conhecimento revelaram que [...]". [...] Isso só não acontece nas aulas de língua! Os termos e conceitos da Gramática Tradicional – 13
Proferida na mesa-redonda "Língua e discriminação" (17 de julho de 2001) 13º COLE (Congresso de Leitura do Brasil), Campinas-SP. (http://paginas.terra.com.br/educacao/marcosbagno/arq_quememb.htm).
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estabelecidos há mais de 2.000 anos! – continuam a ser repassados praticamente intactos de uma geração de alunos para outra, como se desde aquela época remota não tivesse acontecido nada na ciência da linguagem. O ensino tradicional opera assim uma imobilização do tempo, um apagamento das condições sociais e históricas que permitiram o surgimento e a permanência da Gramática Tradicional. (Bagno, http://paginas.terra.com.br/educacao/marcosbagno/art_preconceito_linguistas.htm), (intervalo entre colchetes originais).
O autor não se considera um defensor do “vale-tudo” (expressão do próprio) na língua portuguesa falada no Brasil. Para o lingüista, “não se trata de negar a existência das formas padronizadas tradicionais, mas de descrevê-las com honestidade, mostrando sua obsolescência e o lugar restrito que cabe a elas na língua, enquanto não desaparecem de vez...” (Bagno, 2003, p. 176). Devido a observações que confrontam principalmente as posturas de gramáticos e da mídia em relação ao conceito de “certo” ou “errado” na língua portuguesa falada – e escrita – no Brasil, as opiniões de Bagno fundamentam a discussão sobre o ensino da gramática, no sub-item a seguir.
Sobre conceitos e pré-conceitos da Gramática
Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiálas, mas por entendê-las. Spinoza apud Bagno, 2004, p. 5
Bagno coloca em dúvida o conceito de “certo” ou “errado” na gramática, defendendo a idéia das diferenças históricas e culturais entre o Português do Brasil e o de Portugal e das variações do Português nos vários grupos dentro da sociedade brasileira. Segundo o autor, esses conceitos dependem muito de quem, quando e onde os utilizam, e enredam até mesmo os próprios profissionais envolvidos com a língua falada e escrita, como lingüistas, gramáticos, jornalistas, escritores. Defensor militante de uma revisão nos conceitos gramaticais, Bagno é incisivo ao afirmar que “o ensino da gramática [...] não acompanha os progressos da ciência da linguagem” (2003, p. 66). Para exemplificar essa afirmação, Bagno comenta no discurso “Preconceito contra a lingüística e os lingüistas”:
Qualquer pessoa bem informada acharia no mínimo estranho [...] se um professor de Ciências dissesse que a Terra é plana e o Sol gira em torno dela, ou ainda se um professor de Química afirmasse que a mistura dos "quatro elementos" (ar, água, terra
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e fogo) pode resultar em ouro! São idéias mais do que ultrapassadas e que começaram a ser substituídas por novas concepções mais verossímeis a partir do período da história do conhecimento ocidental conhecido como o nascimento da ciência moderna (século XVI em diante). Ninguém se espanta, porém, quando um professor de língua ensina que os substantivos são "palavras que representam os seres em geral", ou que sujeito é "o ser do qual se diz alguma coisa", ou que pronome é "a palavra que substitui o nome". São afirmações tão imprecisas e incoerentes (para não dizer francamente falsas) quanto a de que as avestruzes enterram a cabeça na areia ou que apontar para as estrelas faz nascer verruga nos dedos! E no entanto elas continuam sendo estampadas nos manuais de gramática, nos livros didáticos, nas apostilas, e cobradas em testes, exames e provas de vestibular! (http://paginas.terra.com.br/educacao/marcosbagno/art_preconceito_linguistas.htm).
De acordo com a citação, as mudanças no ensino requerem antes a necessidade urgente de revisões históricas nos conceitos dos elementos da gramática. Essas revisões implicam averiguar o que é normativo no português e o que caiu em desuso, pois, segundo o autor, muitas normas consideradas “cultas” no Brasil ainda se atêm a uma ortodoxia da língua que não admite olhares científicos para verificação de possíveis ajustes ao contexto atual. No livro “Pesquisa na Escola: o que é, como se faz”, Bagno mostra o exemplo de uma mudança de conceito e estrutura gramatical que tem passado despercebido em aulas de língua portuguesa por muitos anos. O exemplo trata do conceito e uso da crase, constituindose em uma das maiores causas de dúvidas e de erros não apenas para estudantes, como para professores. Esses erros talvez sejam dos mais comuns, e são encontrados desde em placas de trânsito a avisos em murais universitários. De acordo com Bagno:
As pessoas no dia-a-dia costumam falar de “crase” como se ela fosse um “acento” gráfico: ‘Esse a aqui leva crase?’ [...]. Crase [...] é uma palavra grega que significa “mistura”. Esse termo é usado para designar um fenômeno fonético: a fusão de duas vogais iguais numa só [...] Se você fez Letras, deve se lembrar de suas aulas de gramática histórica, quando o professor mostrou, por exemplo, a origem da palavra pé: Pede -> pee -> pé Primeiro, houve a queda do –d– intervocálico [...]. Em seguida, as duas vogais ee se “misturaram” (isto é, sofreram crase) e se transformaram numa só. (Bagno, 2003, p. 68).
O lingüista explica que esse é um exemplo de crase histórica, um fenômeno que aconteceu no passado, mas que continua acontecendo hoje, como no caso de alcoólico e caatinga, pronunciados “alcólico” e “catinga” (2003, p. 68). No entanto, o ensino da crase limita-se ao caso da contração da preposição ‘a’ com o artigo ‘a’, como se este fosse o único exemplo existente. Uma iniciativa de se ensinar esse conceito poderia causar uma revolução no ensino da crase, e do acento grave.
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Bagno também afirma existirem mitos sobre a língua portuguesa falada no Brasil que precisam ser investigados mais seriamente, antes de se considerar o certo e o errado no ensino da língua. Lançando mão de assertivas críticas sobre os gramáticos tradicionais, considera-os um grupo elitista a impor suas regras da língua como definitivas, não deixando abertura às reflexões sobre os fatores que influenciam os casos de mudança na língua e a aprendizagem deficiente desta. Essa postura dos gramáticos, para Bagno, causa um preconceito contra o cidadão que por condições diversas não apreendeu essas regras. Afirmando-se indignado com o modo como são tratados a gramática e esse cidadão, ele escreve: A visão tradicionalista do ensino gramatical perguntaria: “Por que o brasileiro erra tanto na hora de usar o acento grave indicador da crase? E lá viriam aquelas respostas cheias de preconceito: porque ‘brasileiro é burro’, porque ‘a gente não sabe português’, porque ‘português é difícil’... Já o cientista da linguagem formularia a questão de outra maneira: ‘Notamos que as pessoas no Brasil, em geral, têm dificuldade para representar a crase na escrita. O que estará causando essa dificuldade?’ É claro que ‘burrice’, ‘subdesenvolvimento’, e ‘atraso mental’ do nosso povo não são respostas científicas. Muito menos a bobagem de que ‘português é muito difícil’ (nenhuma língua é difícil para seus falantes nativos)... (2003, p. 69).
Segundo o autor, as respostas depreciativas mostradas na citação explicitam uma situação de preconceito lingüístico a manifestar uma forma de preconceito social:
Faz algum tempo que venho me dedicando ao estudo do preconceito lingüístico na sociedade brasileira. A principal conclusão que tirei dessa investigação é que, simplesmente, o preconceito lingüístico não existe. O que existe, de fato, é um profundo e entranhado preconceito social. Se discriminar alguém por ser negro, índio, pobre, nordestino, mulher, [...] já começa a ser considerado “publicamente inaceitável” [...] fazer essa mesma discriminação com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita “naturalidade”, e a acusação de “falar tudo errado”, “atropelar a gramática” ou “não saber português” pode ser proferida por gente de todos os espectros ideológicos, desde o conservador mais empedernido até o revolucionário mais radical”. (Bagno, 2003-A, p. 16).
Em “Preconceito lingüístico: o que é, como se faz”14, o autor enumera oito mitos geradores de preconceitos lingüísticos a respeito dos quais “é preciso que cada professor de língua assuma uma posição de cientista e investigador, de produtor de seu próprio conhecimento lingüístico teórico e prático, e abandone a velha atitude repetidora e
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31ª ed. Edições Loyola, São Paulo, 2004.
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reprodutora de uma doutrina gramatical e incoerente” (2004, p. ). Desses mitos, cita-se aqui o sétimo: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem” É difícil encontrar alguém que não concorde com a declaração acima. Ela vive na ponta da língua da grande maioria dos professores de português e está formulada em muitos compêndios gramaticais [...] Por que aquela declaração é um mito? Porque, como nos diz Mário Perini em Sofrendo a gramática (p. 50), “não existe um grão de evidência em favor disso; toda evidência disponível é em contrário”. Afinal, se fosse assim, todos os gramáticos seriam grandes escritores (o que está longe de ser verdade), e os bons escritores seriam especialistas em gramática (Bagno, 2004, p.62).15
O enunciado da última frase da citação pode ser elucidado em forma de pergunta: quantos gramáticos já escreveram um romance e quantos grandes escritores já publicaram um livro sobre a gramática? A fim de assegurar o respaldo de Bagno para essa afirmação, sugerese aqui a novela literária “A língua de Eulália”, narrativa fictícia da situação de uma senhora de origem humilde chamada Eulália, alfabetizada depois de adulta, que apesar do pouco conhecimento da norma culta da língua (falada e escrita), detinha outros saberes ao longo da sua vida que lhe davam a dignidade de ser humano. Mesmo com esses outros saberes, reconhecidos por sua professora, Eulália não era considerada uma pessoa à qual se deveria dar maiores créditos. Escrita pelo lingüista Bagno e repleta de explicações gramaticais, fundamentadas na mudança histórica da língua portuguesa falada no Brasil, a novela exemplifica o que o autor entende por preconceito lingüístico suscitado pelo não conhecimento das evoluções da língua portuguesa. Transcreve-se a seguir um trecho de um diálogo extraído do livro em questão:
– a Eulália é um poço sem fundo de conhecimento e sabedoria. Todo dia aprendo uma coisa nova com ela. [...] – Pode até ser, comenta Emília [...]– Mas ela fala tudo errado. Isso pra mim estraga qualquer sabedoria. – Eu tive de me segurar para não rir quando ela disse aquelas coisas na mesa – acrescentou Sílvia. – Eu me lembro – adianta-se Emília. – Ela disse “os probrema”, “os fósfro”, “môio ingrês”... [...] Irene fica séria por alguns instantes. De repente vira-se para as duas moças e diz: [...] – Mas e se eu disser assim: “No mundo non me sei parelha, mentre me for’ como me vay, ca já moiro por vós – e ay!”? – Esse quase dá pra entender, afinal é espanhol – diz Sílvia. 15
Os outros mitos descritos por Bagno são: 1 - A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”; 2 – Brasileiro não sabe português / só em Portugal se fala bem português”; 3 – “português é muito difícil”; 4 – “ As pessoas sem instrução falam tudo errado”; 5 – “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão”; 6 – “O certo é falar assim porque se escreve assim”; e 8 – “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” (Bagno, 1999, p. 15 – 72).
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– Não senhora – corrige Irene. – É português [...] só que do século XII, Idade Média. (“A Língua de Eulália”, de Carlos Bagno, 2005, p. 13-5).
Bagno prossegue o diálogo de Irene, uma professora universitária de Língua Portuguesa e Lingüística, explicando para três amigas como deve ser entendido o modo de falar de Eulália: “a fala de Eulália não é errada: é diferente. É o português de uma classe social diferente da nossa, só isso [...] é errado dentro das regras da gramática que se aplicam ao português que você fala [...] – Mas na variedade não-padrão falada pela Eulália essas regras não funcionam” (Bagno, 2005, p. 15).
Segundo o conceito de Lévy sobre o laço social e a relação com o saber, a situação de Eulália representaria uma fonte de aprendizado que não deve ser descartada:
Se os outros são fonte de conhecimento, a recíproca é imediata. Também eu, qualquer que seja minha provisória posição social, qualquer que seja a sentença que a instituição escolar tenha pronunciado a meu respeito, também sou para os outros uma oportunidade de aprendizado. Por meio de minha experiência de vida, de meu percurso profissional, de minhas práticas sociais e culturais, e dado que o saber é coextensivo à vida, ofereço recurso de reconhecimentos a uma comunidade. (Lévy, 2003 p. 28).
O livro “A língua de Eulália” também exemplifica de modo extenso o mito número 4 do preconceito lingüístico: “as pessoas sem instrução falam tudo errado” (Bagno, 2004, p. 40). Para explicar esta afirmação como um em mito, Bagno recorre ao que chama de fenômeno fonético ocorrido ao longo da evolução da língua portuguesa padrão, como aconteceu com as palavras “brando”, “cravo” e “obrigar”, dos originais em latim “blandu”, “clavu” e “obligare. Bagno lista outras nove palavras que sofreram o fenômeno fonético na letra “l”e afirma: Como é fácil notar, todas as palavras do português-padrão listadas acima tinham, na sua origem, um L bem nítido que se transformou em R. E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema [...]. E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal, já que escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento literário do português clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no mínimo absurdo (Bagno, 2004, p. 41).
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Com essas explicações pode-se perceber que tanto a língua falada como escrita estão em constante transformação, e que o conceito de norma-padrão depende muito das épocas e circunstâncias em que tais normas são aplicadas. Por conseguinte, tanto o ensino quanto a norma-padrão da gramática não estão isentos de discussões sobre seus ajustes à realidade do seu momento, o que implicaria em muitos cânones da gramática se submeterem a revisões para sua contextualização a cada etapa histórico-cultural, ou até mesmo a um completo desuso. Porém, o que se observa na vivência em sala de aula é a prática recorrente de um mesmo procedimento de ensino das regras gramaticais, ocasionando as mesmas reações de sentimento frustrante do professor ao detectar resultados considerados deficientes, resultados esses que até recebem a atenção corretiva, mas cujas causas passam ao largo de uma investigação por parte do docente. Segundo Bagno, essas deficiências podem ser ocasionadas por diversos fatores, mas os responsáveis pelo ensino ainda não estão atentos a isso: O ensino da língua ainda é feito com base em dogmas, preceitos e regras que nada têm de científicos – e esse é seu maior defeito. Fomos habituados a aprender e a ensinar português como se a língua fosse uma coisa imóvel, pronta, acabada, estática sem nenhuma possibilidade de mudança, variação, transformação. Essa é a atitude dos gramáticos tradicionalistas, exatamente oposta à dos lingüistas, que são os cientistas da linguagem. [...] Para o lingüista, ao contrário, o que a gramática tradicional chama de “erro” é um fenômeno que merece ser investigado cientificamente, com métodos rigorosos de análise. Se alguém diz y onde era de se esperar x, é porque existe algum fator que está influenciando essa variação. Esse fator pode ser lingüístico, social, étnico, histórico, geográfico, etário etc. (Bagno, 2003, p. 65-6, itálicos originais).
Se o preconceito pretende distinguir indivíduos intelectualizados dos cidadãos com pouco conhecimento da gramática, os próprios intelectuais não podem escapar às armadilhas do português castiço que enredam até profissionais de áreas cujo domínio da língua escrita é indispensável, como o jornalismo. A partir de uma referência que faz a um texto da jornalista Dora Kramer, Bagno ironiza:
O mais sintomático, porém, no que diz respeito à relação preconceito lingüístico/preconceito social, é que no trecho final [...] a jornalista escreveu o seguinte: Havia receio entre os petistas reunidos [...] com a possibilidade de vir a público gravações [...]16
16
Trecho da coluna publicada no Jornal do Brasil, 10/11/2002, no qual a jornalista critica os erros de plural e concordância do presidente Luis Inácio Lula da Silva (fonte: Bagno, 2003, p. 13-4).
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Como já afirmei, os “erros crassos” de “concordância e plural” só são crassos quando cometidos pelos outros, pelos que não pertencem ao meio social da acusadora, pelos que não tiveram o mesmo acesso que ela a uma cultura letrada, pretensamente superior... Afinal, nesse trecho da coluna aparece algo que qualquer gramático conservador acusaria, sem pestanejar, de “erro crasso”, e justamente um erro de concordância verbal – de vir a público [...] gravações! Se são gravações, no plural, o verbo vir, pelas regras da concordância que a jornalista tanto preza, deveria vir também no plural: virem. Então, “de virem a público [...] gravações. [...] “Receio com”? Não seria receio quanto à possibilidade? Não poderiam os leitores, segundo os critérios da própria jornalista, ter receio com ficar de dor de ouvido diante de tantos “erros crassos”? (2003, p. 23-4, itálicos originais).
Esta citação é apenas um exemplo, dentre tantos ocorridos no meio jornalístico, do quanto é comprometedor assumir uma postura de detentor da erudição gramatical, e principalmente, de se posicionar como juiz dos que não possuem esse conhecimento, sob o risco de incorrer no próprio objeto de juízo, ou seja, no erro gramatical. Mas, se entre profissionais conceituados acontecem esses percalços de erros gramaticais, o senso comum mais estigmatizado17 é o da população consigo mesma, de que não detém um conhecimento aceitável da língua escrita e, por isso, se exclui dos grupos intelectuais da norma culta. Se for este o caso, essa população está aceitando, inconsciente e passivamente, o fato de pertencer a um grupo em desvantagem na sua condição sóciointelectual, e se acomodando a essa condição, confirmando que, segundo Bagno, o domínio da escrita também é visto como um fator de domínio de classes:
A Gramática Tradicional permanece viva e forte porque, ao longo da história, ela deixou de ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as demais. Assim como, no curso do tempo, tem se falado da Família, da Pátria, da Lei, da Fé etc. como entidades sacrossantas, como valores perenes e imutáveis, também a Língua foi elevada a essa categoria abstrata, devendo, portanto, ser "preservada" em sua "pureza", "defendida" dos ataques dos "barbarismos", "conservada" como um "patrimônio" que não pode sofrer "ruína" e "corrupção". Assim, língua não é toda e qualquer manifestação oral e/ou escrita de qualquer ser humano, de qualquer falante nativo do idioma: "a Língua", com artigo definido e inicial maiúscula, é somente aquele ideal de pureza e virtude. A língua deixou de ser fato para se transformar em valor (http://paginas.terra.com.br/educacao/marcosbagno/arq_quememb.htm).
17
Bagno esclarece: “estigma, em termos sociológicos, é um julgamento extremamente negativo lançado pelos grupos sociais dominantes sobre grupos subalternos e oprimidos e, por extensão, sobre tudo o que caracteriza seu modo de ser, sua cultura e, obviamente, sua língua” (2003, p. 67).
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Esse domínio em muitos casos se constitui em um elemento subliminar. Por exemplo, no livro “Alfabetização e Lingüística”18 Luis Carlos Cagliari, aparentemente sem intenção, exemplifica duas reações distintas de alunos cuja vivência com a leitura e escrita são diferentes, deixando transparecer a idéia desses alunos pertencerem a classes sociais opostas. O primeiro exemplo de Cagliari é o da escrita exigida na escola tornar-se estranha, indesejável e inútil para um aluno de família de classe social baixa, onde a escrita mais familiar pode se restringir à assinatura do nome ou a pequenos recados. O segundo, ao contrário, é de um estudante que não sentirá estranheza em sala de aula por conviver com pessoas adeptas de leituras diversas, familiarizado com livros, revistas, jornais, (Cagliari, 1995, p. 101). Note-se que Cagliari se refere ao aluno desinteressado pela aprendizagem da escrita como um indivíduo de “classe social baixa”, o que quer dizer, de situação econômica desfavorável e pertencente a um meio familiar no qual a leitura, a escrita e outras formas de manifestação “intelectual”19 são supostamente negligenciadas. O autor não define o nível social do aluno familiarizado com a escrita fora da sala de aula, mas o fato de ter mencionado a condição social desfavorável do primeiro aluno pode sugerir a idéia de que o segundo pertence a uma classe “alta”. Se esses exemplos forem verdadeiros, é de se supor que se enquadrariam na crítica do preconceito lingüístico e social denunciado por Bagno. A possibilidade de toda essa reformulação nos conceitos e no ensino acontecerem rapidamente está extremamente comprometida, pois no mínimo são necessários uma conscientização e um consenso sobre mudança de pensamento entre os responsáveis por estabelecer esses conceitos – e pré-conceitos – gramaticais já fixados no ensino da norma culta da língua, e uma familiarização dos professores com as novas idéias que podem surgir. Seguindo-se à revisão do tratamento da gramática, há a necessidade de uma revisão nos conceitos do ensino do próprio escrever, ou seja, da redação.
Direto da redação
A parte mais importante na revisão dos procedimentos do ensino da redação implica em questionamentos sobre os conteúdos explicativos dos diversos tipos de texto 18
Editora Scipione, 1995. As aspas servem aqui para chamar atenção ao fato de que nem sempre leitura e escrita representam um indivíduo intelectualizado conforme o conceito da escola. Por exemplo, muitas jovens, tanto de classe A quanto de classe B se dedicam mais a leituras de revistas de telenovelas e a romances juvenis do que a livros de filosofia. E se sentem mais à vontade escrevendo páginas e páginas seu dia-a-dia em um diário do que fazendo uma redação sobre a globalização e a educação. 19
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ensinados ao aluno. Geralmente os livros sobre redação distinguem três tipos de texto: o narrativo, o descritivo e o dissertativo. Com um pouco de otimismo, mesmo que o aluno conheça as diferenças entre esses conceitos textuais, é possível que nunca tenha ouvido falar em dissertação argumentativa, muito menos que pode haver subdivisões dos conceitos dos três tipos de textos. Para Lúcia Santaella, a divisão entre narração, dissertação e descrição representa uma idéia limitada dos tipos existentes e diferenciadores de textos: Será que apenas essa divisão em três blocos (descrição, narração, dissertação) é capaz de dar margem à classificação das inúmeras possibilidades de atualização da linguagem verbal? Dos diferenciados matizes que a expressão verbal pode assumir? Não seria possível, então, distinguir uma descrição poética de uma científica? A dissertação einsteiniana de um editorial de jornal? Ou uma narrativa de Guimarães Rosa do livro de aventuras que se lê no ônibus ou à noite para vir o sono? Foi ao nos depararmos com a precariedade dessa divisão [...] que nos surgiu a hipótese de que o interior de cada um desses três blocos permitia (cada um deles) uma subdivisão (subclassificação) também triádica [...] Desse modo, a descrição poderia se subdividir em descrição de primeiridade, de secundidade e de terceiridade, assim como a narração e a dissertação (Santaella, 1980 p. 194).20
Para exemplificar o que seriam essas subdivisões, toma-se aqui a visão triádica (o hipotético, o relacional e o argumentativo) de Santaella sobre o texto dissertativo, por ser este o tipo de redação mais exigido no vestibular: Desse modo, relacionamos o discurso dissertativo hipotético (isto é, em nível de primeiridade) [...] Não é,pois, um texto de caráter conclusivo, mas de levantamento de problemas e conjecturas [...]. Já à dissertação em nível de secundidade chamamos discurso dissertativo relacional [...] estamos nos referindo ao discurso que correlaciona suposições teóricas com fatos, e através desses fatos pretende testar a comprovação da teoria [...]. O terceiro tipo de processo dissertativo, que nomeamos discurso dissertativo argumentativo, encontra-se intimamente ligado aos mecanismos do raciocínio dedutivo. [...] O objetivo de tal raciocínio é determinar a aceitação da conclusão. (Santaella, 1980, p. 200-3).
Outro aspecto do ensino da redação a ser posto em observação é o costumeiro processo de introdução-desenvolvimento-conclusão. O ensino da seqüência obrigatória dessa tríade também é passível de uma reformulação, uma vez que essa seqüência tende a obrigar o indivíduo a se deter em uma dessas etapas, na sua ordem de apresentação, enquanto produz o texto. A idéia fixada na aprendizagem é a de que deve ser feita uma redação, iniciada por um tópico frasal, em torno do qual se desenvolva e se conclua o pensamento. Mas se não for 20
A autora explica detalhadamente as subdivisões de acordo com os três níveis de signos peircianos: o nível
icônico, indicial e simbólico ( p. 195).
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explicado ao aluno que a introdução deve ser a última etapa a ser concluída, ele pode se deter infinitamente sobre um início de texto à procura de palavras que nunca definirão seu tópico frasal. Na opinião de Mário Osório Marques, há um “ritual” costumeiro do escrever que deve ser revisto em sua prática:
Nos ensinaram a escrever e na lamentável forma de uma mecânica que supunha texto prévio, mensagem já elaborada. Escrevia-se antes o que se pensara. Agora entendo o contrário: escrever para pensar, uma outra forma de conversar. Assim fomos “alfabetizados”, em obediência a certos rituais. Fomos induzidos a, desde cedo, escrever bonito e certo. Era preciso ter um começo, um desenvolvimento e um fim predeterminados. Isso estragava, porque bitolava, o começo e todo o resto. Tentaremos agora (quem? eu e você, leitor) conversando entender como necessitamos nos reeducar para fazer do escrever um ato inaugural; não apenas transcrição do que tínhamos em mente, do que já foi pensado ou dito, mas inauguração do próprio pensar (Marques, 1997, p. 13).
Se, de acordo com Bagno, a gramática deve ser contextualizada para ser ensinada, “entender como necessitamos nos reeducar” é uma alternativa para o indivíduo já vivenciado na aprendizagem da escrita, não apenas o aluno, mas também o professor. Seria repensar o “que” e “como” foi ensinado, o que se considera necessário mudar, quais as motivações, limitações, o que se espera da redação e o que despertaria no aluno o interesse por se dedicar à busca da qualidade nos próprios textos. Seria uma “revisão do ensino da redação”, com uma troca de informações que poderiam auxiliar esse indivíduo a não continuar “bitolado”, como afirma Marques. A afirmação de “escrever para pensar” traz a idéia de não se preocupar antes com seqüências e pensamentos de outrem, mas começar a pensar por si mesmo. É o indivíduo em aprendizagem escrevendo sob uma indução própria, vagando nas idéias que lhe surgem para ser colocadas no papel sem uma ordem exata, sem o “bonito” e o “certo”, mas que pode fazer sentido para ele. Escrevendo antes, pensa-se depois. Assim, a idéia sugerida aos alunos participantes desta pesquisa foi que primeiro escrevessem sobre um tema, sem uma preocupação com erros gramaticais, nem com a seqüência “introdução-desenvolvimentoconclusão”, não tendo em mente uma obtenção de nota, mas ver seu texto publicado na Internet como fonte de pesquisa para seus colegas e como estímulo para si mesmo. “Escrever para pensar” é uma prática inversa de exercício de redação. Ou seja, é razoável que se escreva antes, sem uma preocupação prévia com exatidão gramatical e com a ordem do que se está escrevendo. Muitas excelentes redações podem começar do final, terem seu início na parte intermediária do texto e o desenvolvimento no começo. Depois, sim, com
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uma observação da própria escrita, verifica-se o que se deve corrigir e reescrever, como se espera, de forma correta. É um pensamento onde as idéias surgem em um rascunho sem um encadeamento “lógico”. Dado o tema para a redação, o aluno pode até já pré-conceber uma idéia a respeito e desenvolver o assunto, mas esse desenvolvimento pode ficar impedido porque o aluno aprendeu que antes do corpo central do texto é necessário que se escreva um parágrafo introdutório, e pode-se perder muito tempo para fazer uma boa introdução, principalmente porque ainda nem se escreveu nada sobre o tema, para saber a delimitação e os caminhos que levaram até ele. Até chegar ao desenvolvimento, as idéias que não foram registradas por causa da ocupação com a introdução já tomaram outro rumo ou se dissiparam. Geralmente não se explica ao aluno que se pode escrever o que sabe a respeito e depois encadear as idéias numa seqüência considerada lógica. Uma boa técnica, a edição de texto, talvez fosse útil como recurso auxiliar aqui. A edição de texto permite um movimento de parágrafos, troca de palavras, cortes de termos desnecessários, enxugamento de períodos etc., até se chegar ao produto final. O fato de uma redação iniciar com a conclusão pode muito bem ser a descoberta que fará o aluno desenvolver sua redação na seqüência exigida pelo professor. Autores de novelas e filmes, geralmente, iniciam suas histórias a partir do final, para esquematizarem o início e desenvolvimento da trama. Até aqui se tratou do ensino da gramática, da redação e sobre o preconceito lingüístico-social como elementos carentes de uma reflexão. Esses assuntos permitem uma abertura para diversas investigações, mas, antes que “a sociedade exerça pressão sobre a escola para que ela cumpra sua obrigação de dotar os alunos das competências para produzir um texto coerente", como sugeriu o consultor do Enem, a própria sociedade necessita saber que as regras gramaticais com as quais excluiu a si própria, podem estar hoje desatualizadas histórica e culturalmente, em muitos casos mal aplicadas no contexto atual e continuam sendo ensinadas como “absolutas”. E essa sociedade deve tomar conhecimento das próprias possibilidades de inclusão nessas mudanças. Este seria um passo importante na reformulação do ensino, mas, mesmo que haja toda essa revolução gramatical proposta por Bagno, e que a sociedade exerça alguma pressão para o cumprimento da função da escola, ainda não há garantia de que haverá um bom rendimento na aprendizagem. Segundo Maria Augusta Rossini: Educadores surgiram de todos os lado do planeta, apresentando técnicas revolucionárias de ensino-aprendizagem.
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Mas o que se tem notícia é que tanta inovação pouco alterava a realidade dentro da sala de aula: aulas expositivas, assuntos que não motivavam ou que não diziam respeito aos alunos (2003, p.7).
Assim, o próximo sub-item discute a motivação como fator influente para o aluno para não apenas receber e se adaptar às mudanças, mas apresentar rendimento correspondente a elas e às expectativas de compor redações pelo menos razoáveis.
Sobre a motivação para escrever
O estímulo para o estudante desenvolver a própria redação é o outro elemento considerado indispensável para um estudo sobre a escrita. Foi definido para este trabalho durante a pesquisa bibliográfica, quando se encontrou uma ênfase de Luis Carlos Cagliari, ao afirmar que além da exigência do conhecimento das regras da norma culta para a boa redação, deve ser exercido um estímulo sobre o indivíduo para uma boa resposta refletida em um texto bem finalizado. Como que imprimindo em maiúsculas um grito de alerta no livro “Alfabetização e Lingüística”, Cagliari enfatiza: “NINGUÉM ESCREVE OU LÊ SEM MOTIVO, SEM MOTIVAÇÃO” (1995, p. 101, sic). A motivação é essencial em qualquer atividade do ser humano. Segundo Maria Augusta Rossini, “nada acontece, nenhum passo é dado se o ser humano não tem um motivo” (2003, p. 39). Dentro da sala de aula a motivação então é mais necessária quando se trata de uma época em que a escola concorre com uma avalanche de atrativos oferecidos pela mídia, pela tecnologia e por diversas atividades que promovem diversão. Não se enveredará aqui por uma discussão sobre esses atrativos, mas não se pode negar essa concorrência, nem o fato de o adolescente se estimular mais com o que lhe dá prazer sem lhe acrescentar nada – no sentido de construir sua maturidade – do que com responsabilidades escolares. Ora, o estudante, antes de sê-lo, é humano e, segundo Maria Augusta Rossini, “precisamos lembrar que é da natureza humana procurar o que lhe proporciona prazer e fugir do que lhe causa desprazer. Satisfazer uma necessidade causa um profundo prazer” (Rossini, 2003, p. 16). Também, como ser humano, o aluno pode não estar interessado em ser motivado. Por isso, antes de refletirmos sobre a motivação, é importante registrar uma advertência de Maria Augusta Rossini:
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Devemos tomar cuidado quando pretendemos trabalhar com a motivação das pessoas: ninguém consegue motivar ninguém se ele não quiser. Isto porque os motivos são específicos a cada ser humano. O que precisamos fazer é orientar nossos alunos e filhos para que aprendam a traçar objetivos adequados e eficazes para conseguirem atingir um grau de motivação que leve à realização de algo desejado (2003, p. 40-1).
Por isso, a forma como a motivação é recebida pelo aluno também é um fator a ser considerado. A sala de aula comporta um coletivo de humanos, mas deve-se reconhecer que essa coletividade é composta por individualidades. Cada aluno é um universo. Ninguém tem percepção igual a de outrem. Também há diversas formas de resposta à motivação: o aluno, ao ser exposto aos exercícios de redação, pode analisar o tema, comentar, comparar, concluir, criticar, explicar, justificar, resumir, escrever de acordo com sua perspectiva, com a sua assimilação das coisas, com os seus sentidos percebem o assunto, conforme sua individualidade, e a motivação que recebe, e, segundo Rossini, conforme sua necessidade. Então, que necessidade pode ser satisfeita em forma de redação? Sugestiona-se aqui, para responder essa questão, um processo: primeiro, a busca do que suscitaria essa motivação. Depois, de que forma, ou associada a quê, a motivação ajudaria no empenho nos exercícios de redação e como essa motivação se renovaria – pois motivação não se adquire de uma vez por todas – até se conseguir um resultado satisfatório, um texto coerente.
Primeiro elemento do processo: a causa da motivação A busca do que causaria essa motivação será aqui discutida em torno das necessidades de socialização do próprio aluno. Segundo Maria Augusta Rossini, “qualquer atividade educacional antes de ser proposta ao aluno deve ser avaliada com base na seguinte pergunta: é do interesse dele?” (Rossini, 2003, p. 14). Embora Rossini se refira ao interesse do aluno em um aspecto geral, não apenas na disciplina de língua portuguesa, se reforça aqui a afirmação da autora com uma citação de Cagliari especificando o interesse nessa área. O lingüista sugere que o ensino da escrita inicie com a investigação das expectativas do estudante: “Antes de ensinar a escrever, é preciso saber o que os alunos esperam da escrita, qual julgam ser sua utilidade e, a partir daí, programar as atividades adequadamente” (Cagliari, 1995, P. 101). As sugestões de Cagliari nesta citação referem-se à criança, mas não perdem força se aplicados na faixa etária estudada neste trabalho. Ao contrário, ganham valoração. O
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processo da aprendizagem da escrita tem por objetivo não apenas o saber dominar as regras gramaticais, o aprender normas de sistematização para uma construção de textos. Envolve também a apreensão do mundo pelo aluno, desde o período da alfabetização, e não se pode afirmar quando a aprendizagem termina. Mas essa apreensão do mundo muitas vezes passa ao largo da realidade do aluno em muitos temas propostos para redação. Segundo Rossini (2003, p. 8),
a realidade sugerida na sala de aula não condiz com a vivência do estudante: “Exemplos
não faltam: aquelas aulas de redação, onde o aluno tem que descrever “uma pescaria”, sendo que nunca participou desta atividade, ou, ainda, escrever cartas sem destino”. A afirmação da autora ganha reforço se posta à luz da observação de Cagliari (1995, p. 101) na seguinte afirmação: “a escola é talvez o único lugar onde se escreve sem motivo. Certas atividades da escola representam um puro exercício de escrever. Na alfabetização, isso pode trazer sérios problemas para certos alunos”. Os “sérios problemas” mencionados por Cagliari comprometem várias situações não apenas enquanto o indivíduo está sendo alfabetizado, mas, principalmente, quando se exige dele mais do que a resposta de exercícios. Por exemplo, dissecando-se a primeira frase da afirmativa, nota-se que o autor não diz que a escola talvez seja “um”, mas “o” único lugar onde se escreve sem motivo. Mas, em que outro lugar ou situação uma criança em período de alfabetização escreveria com motivos? Talvez em casa, para mostrar aos pais o que aprendeu na escola, ou seja, o que aprendeu com os “puros exercícios de escrever”. Já um adolescente pode ter motivos diversos para escrever fora da sala de aula, e o faz com estímulo, até por inspirações comuns a essa faixa etária. Um diário, uma carta, bilhetes, conversas em chats, são feitos para satisfazer necessidades21 do ser humano: a socialização, a comunicação e aceitação entre os seus iguais. Então, um teste interessante em sala de aula seria considerar essas necessidades como temas para redação, onde o estudante pudesse expressar não apenas o que lhe é proposto como cumprimento de dever, mas suas impressões sobre si e sobre seu meio.
21
Rossini organiza as necessidades humanas classificando-as em dois grupos: fisiológicas e psicológicas. A autora afirma que as necessidades psicológicas nunca são inteiramente satisfeitas, como por exemplo, “participação ou aceitação no grupo, consideração e estima, tudo para culminar na auto-realização” (2003, p. 25).
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Segundo elemento do processo: limites influenciadores na motivação para escrever
A prática da redação em sala de aula geralmente está submetida a limites de tempo, regras e expectativas. Mesmo com a motivação necessária, esses limites podem interferir no desenvolvimento de um exercício. Portanto, deve ser repensada a preocupação com o tempo para o texto ser concluído (ou, no mínimo, deve haver uma sugestão de técnica que auxilie uma escrita num tempo curto, como no caso do lead), a exigência com a exatidão seqüencial introdução-desenvolvimento-conclusão e a expectativa da avaliação para se conseguir uma nota. Tudo isso pode causar uma limitação na criatividade, um bloqueio nas idéias justamente porque há um prazo, preocupação em se escrever corretamente e há uma expectativa de uma “aprovação” ou “reprovação”. De acordo com Rossini (2003, p. 8), “a padronização, tão cultuada durante a onda industrial, limitava a criatividade, além de estimular uma avaliação que media apenas a capacidade de reter informações”. Um comentário de Mário Osório Marques é bem elucidativo sobre a situação de bloqueio diante de uma redação: São muitos os casos de pessoas que diante da brancura da folha se acham como que paralisadas, quando não tomadas de pânico. Além do medo do desconhecido a nos espiar, existem situações em que isso parece se dever àqueles castigos escolares de copiar páginas e páginas. Ou, talvez, ao próprio ensino da escrita, quando o aluno é levado a escrever para ser julgado pelo professor, não para comunicar-se com alguém. Aquilo que, de si, seria gratificantes e provocativo, pode afigurar-se algo penoso e paralisante (Marques, 1997, p. 29).
Segue-se agora uma breve explanação de como o tempo, a seqüência “introduçãodesenvolvimento-conclusão” e o objetivo do empenho na redação podem ser usados na motivação. O tempo. Normalmente, uma carta ou um e-mail informais, uma conversa no Chat ou um registro do cotidiano em um diário são feitos sem preocupações com um tempo estabelecido. Em sala de aula, ao contrário, o desempenho do aluno está submetido a um limite de hora, e geralmente não ultrapassa 50 minutos22. A redação, ao contrário de matérias exatas, além de regras decoradas exige criatividade, algo que não pode ser limitado ao tempo, além do que, a criatividade não é elemento ao qual se aplique regras específicas.
22
No Instituto de Educação do Amazonas esse tempo varia entre 30 e 35 minutos.
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De repente, em um momento, uma frase criativa surge, e a imaginação precisa ser manifestada em forma de escrita, antes que a idéia se dissipe. Mas, uma redação desenvolvida sob o limite de hora corre o risco de não ser discorrida tão bem quanto se fosse escrita com mais tempo. Quantos bons textos não foram escritos e quantos estudantes deixaram de conseguir uma nota melhor, exatamente por causa do tempo? Como afirma Mário Osório Marques, “a criatividade não é bicho que se agarre; ela surge de inopino, nos interstícios, nos sonhos da imaginação vagamundo, de forma que, quando menos se espera, escrever é preciso” (1997, p. 15). A seqüência “introdução-desenvolvimento-conclusão”. Anotações em diários não seguem uma seqüência aparentemente lógica. Começam, por exemplo, com o que se fez no final de semana, lembrando-se do Natal passado, que resultou em uma situação vivida no dia presente. Mas, como já foi explicado no sub-item, “Direto da redação”, geralmente uma regra simples da redação diz que um texto deve conter uma introdução, seguida de um desenvolvimento que determine uma conclusão. Se o aluno seguir sempre esta seqüência, talvez tenha sua criatividade e seu desenvolvimento na redação prejudicados. A exigência desta seqüência deveria ser observada conforme a citação de Mário Osório Marques (Marques, 1997, p. 13)23, onde se considera ser possível o exercício da escrita começar de forma mais adequada ao próprio autor da redação. A expectativa da avaliação e da nota. Que objetivo tem o estudante, cujo meio para atingi-lo seja uma boa expressão escrita? Para muitos deles, apenas uma nota e uma aprovação. Nada que satisfaça exatamente uma necessidade prazerosa, ou que esteja relacionada à sua preparação para o mercado de trabalho, por exemplo. Além disso, pode ocorrer de muitos se acomodarem com o fato de que bons escritores em sala de aula podem não ser tão bem sucedidos em sua vida profissional, ao passo que muitos alunos considerados mal sucedidos em sala de aula, que não consigam se expressar por escrito, consigam uma carreira profissional de sucesso, exatamente porque sua profissão não exija tanto a redação. Aqui então se percebe uma questão pertinente ao objetivo futuro do aluno que se empenhou em ter uma boa redação. O indivíduo escreve por condição sine qua non durante toda a vida escolar, para cumprir uma norma da disciplina, ser avaliado e obter uma nota. Raramente se propõe a ele uma conscientização sobre o porque de uma dedicação ao aperfeiçoamento da escrita tendo em vista, por exemplo, o futuro profissional, nem se discute uma motivação para isso, até que ele mesmo descubra essa necessidade somente ao constatar, 23
Vide página 32 desta.
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diante de uma prova de redação de vestibular ou do Enem, que os seus onze anos24 de escola não foram vividos produtivamente. Se o único objetivo do aluno em fase de conclusão do ensino médio é escrever apenas para cumprir uma exigência da disciplina de língua portuguesa, sem se aplicar à leitura, ao estudo da gramática e a exercícios de redação, está correndo o risco de uma reprovação em provas de admissão em cursos superiores. Por extensão, esse estudante está negligenciando sua própria cidadania. A conscientização de que, embora não vá escrever com freqüência na sua profissão, o desvio da motivação para se conseguir uma nota na escola, para a conquista de um status profissional pode ser o argumento mais coerente a ser aplicado no processo do estímulo à escrita. Considerando-se que o mercado de trabalho é cada vez mais exigente de pessoas com graduação no seu quadro profissional, e em muitos casos, com no mínimo uma pósgraduação, essa negligência no ensino médio fatalmente causará uma sub-valorização da própria condição profissional do estudante, e até de sua condição de cidadão, como se pode deduzir de outra afirmação do consultor do Enem: O exercício pleno da cidadania exige a apropriação do saber cultural, científico e social presente nos diversos tipos de texto em circulação. Textos jornalísticos, didáticos, acadêmicos, administrativos, literários e outros são redigidos em norma culta, tornando-se indispensável o seu domínio (Carvalho, www.portrasdasletras.com.br).25
Apesar da exigência dessa “apropriação do saber cultural”, a realidade generalizada que se apresenta nos colégios é de uma maioria de alunos finalistas do ensino médio com dificuldades no domínio da norma culta, ingressam em um curso superior com as mesmas dificuldades, e uma das possíveis causas para essa situação pode ser a idéia, para o aluno, de que escrever corretamente e dominar as regras gramaticais compreendem apenas exigências disciplinares para se obter uma média suficiente que o permita ser aprovado nos testes ou à próxima série.
24
Tempo suficiente, na opinião de Reginaldo Pinto de Carvalho, para os alunos concludentes do ensino médio apresentarem um resultado satisfatório na expressão escrita. Ao responder se nos moldes atuais do Enem, a redação permite avaliar as habilidades do aluno nas variadas formas de registro escrito da língua portuguesa, o consultor do Enem afirma: “com um mínimo de onze anos de escolaridade, ao término do ensino básico, esperase que o participante esteja capacitado para ler e escrever, dominando a norma culta da língua escrita” (2ª pergunta da entrevista “Tem uma redação no meio do caminho”, www.portrasdasletras.com.br). 25 Extraído da entrevista “Tem uma redação no meio do caminho”.
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Terceiro elemento do processo: Motivação renovada.
É preciso que, a cada dia, estejamos motivados para aprender, para acompanhar as mudanças, vencer o comodismo, ler, estudar, melhorar. Maria Augusta Rossini, 2003, p. 43
Ora, se se pretende que o aluno por, no mínimo, onze anos, pratique o exercício da escrita, essa motivação necessariamente deve ser renovada ao longo desse período. Mesmo com mais de uma década de ensino-aprendizagem, entre a alfabetização e o terceiro ano do ensino médio, uma parte significativa de alunos não adquire um domínio aceitável da escrita. Não se considerando os casos de adultos alunos de Educação de Jovens e Adultos (EJA), cada nível de ensino tem sua faixa etária correspondente, e suas motivações correspondentes. Como as necessidades a serem satisfeitas podem ser extremamente diversificadas, deve-se considerar que a faixa etária da juventude é uma fase da vida na qual a motivação está muito ligada a necessidades, pois agrega uma série de desejos pessoais individuais, como a busca do êxito, da elevação da auto-estima, do reconhecimento entre seu grupo, da vocação profissional. Quanto aos jovens, Rossini faz uma observação sobre o estímulo que pode valer como ponto de partida para sempre se renovar a motivação: Como educadores devemos, portanto, orientar e estimular (e não motivar) um jovem a ter um bom desempenho escolar, por exemplo, como forma de conseguir bons resultados e ser promovido para a série seguinte. Esta situação vai satisfazer seus motivos relacionados à sua auto-estima, ou à sua aceitação pelo grupo de amigos. Já imaginaram se somente ele no grupo não consegue ir para a série seguinte? (Rossini, 2003, p. 41).
Além da aprovação para a série seguinte como objetivo, o professor deve saber argumentar – e sustentar o argumento – com o aluno secundarista sobre a necessidade deste em se dedicar a uma aprendizagem da redação como forma de se sobressair social e economicamente, explicando de forma a incutir na mente do aluno que a sociedade na qual vive exige cada vez mais qualificação pessoal. Falou-se até aqui de transformação dos conceitos gramáticos e da redação, antes de se chegar a uma reformulação no ensino. Concluindo esta primeira observação de uma possível causa de redação mal estruturada, esboça-se um esquema exemplificando como essas mudanças ocorreriam em uma reação em cadeia, até chegarem ao discente:
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1) conscientização e consenso entre os gramáticos sobre a necessidade da revisão gramatical e da redação 2) reformulações nos conceitos da gramática e da redação 3) considerar a motivação no ensino da redação 4) prática de ensino de acordo com essas reformulações e através da motivação 5) Avaliação e discussão sobre os resultados dessa prática no discente 6) se os resultados ainda se apresentarem aquém do esperado, sugere-se um retorno aos itens 2 a 5, com pressão não somente sobre a escola, mas em todo o conjunto envolvido, para que os alunos possam ser dotados das “competências para produzir um texto coerente" 7) nova avaliação sobre o rendimento discente. Este é apenas um esquema resumo do que foi tratado até aqui. Não se pretende defini-lo como determinante de uma completa transformação de conceitos e caminhos a serem seguidos para obtenção de boas redações. Como se pode deduzir após toda discussão, as redações mal escritas são reflexos de toda uma longa situação, e não realmente um problema em si. A falta do domínio das regras ortográficas surte efeitos no desenvolvimento da escrita durante toda a vida escolar, refletindo-se finalmente na situação de estudantes secundaristas com sérias dificuldades na grafia e, posteriormente, na vida acadêmica e profissional. Em resumo, o relacionamento entre todos os sujeitos envolvidos no processo do ensino-aprendizagem da escrita e as transformações que poderiam ocorrer nos conceitos e nas práticas de ensino segundo um consenso desses sujeitos, configuraria um aspecto da inteligência coletiva, comentado por Lévy, o de atingir uma mobilização efetiva das competências: Para mobilizar as competências é necessário identificá-las. E para apontá-las é preciso reconhecê-las em toda sua diversidade. Os saberes oficialmente válidos só representam uma ínfima minoria dos que hoje estão ativos. [...] Na era do conhecimento, deixar de reconhecer o outro em sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira identidade social, é alimentar seu ressentimento e sua hostilidade, sua humilhação, a frustração de onde surge a violência. Em contrapartida, quando valorizamos o outro de acordo com o leque variado de seus saberes, permitimos que se identifique de um modo novo e positivo, contribuímos para mobilizá-lo, para desenvolver nele sentimentos de reconhecimento que facilitarão, conseqüentemente, a implicação subjetiva de outras pessoas em projetos coletivos. (Lévy, 2003, p. 2930).
Em termos práticos, para que haja uma metamorfose no ensino da gramática para uma nova configuração no ensino-aprendizagem da escrita, a inteligência coletiva envolveria uma troca de conhecimentos entre todos os sujeitos ativos da área do ensino da língua, exigiria o abandono dos preconceitos existentes entre lingüistas e gramáticos, buscaria o reconhecimento das competências do outro, valorizando-se esse “outro” como integrante do
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inteligente coletivo não por ser “igual”, mas por ser “diferente”, ou não por falar ou escrever “errado”, mas “diferente”, como a Eulália da novela de Bagno. Enquadrando-se em Lévy, esta situação de deter outros conhecimentos, que não os da gramática e da língua falada, da personagem Eulália representaria um savoir-faire (saber-viver), no sentido de conhecimentos adquiridos ao longo da vida do indivíduo, que não podem ser desconsiderados no espaço do saber, onde deve haver um reconhecimento dos saberes de todos os seres humanos (Lévy, 2003, p. 28).
Capítulo 2 - Território e mercadoria: os sujeitos da escrita e a Internet26
Este capítulo amplia a discussão da aprendizagem da escrita para o ambiente do ciberespaço. Nesse “território” é delimitada aqui a relação entre os sujeitos e objetos que interagem no meio educacional e na web. Dos assuntos que envolvem essa relação, discorrese o ciberespaço como uma configuração de espaço extra-escolar do saber e de novas formas de relacionamento social, ensejando discussões sobre seu uso na aprendizagem da escrita; comentam-se opiniões de especialistas referentes à influência da forma de escrita dos jovens e adolescentes na web, com exemplos do uso da Internet para a aprendizagem da escrita na Oficina do Texto do Portal Educacional e da pesquisa intitulada "Sites construídos por adolescentes: novos espaços de leitura, escrita e subjetivação"27, da professora Maria Teresa de Assunção Freitas; trata-se, ainda, da situação do professor dos ensinos fundamental e médio quanto a própria inclusão digital. As observações bibliográficas principais são de Pierre Lévy, por suas idéias acerca das relações humanas proporcionadas no ciberespaço. Lévy apresenta considerações inovadoras sobre a escrita e a informática, que, juntamente com a oralidade primária (esta associada à memória), são denominadas por ele de três tempos do espírito28. São três momentos distintos da humanidade, que propiciam, com suas respectivas peculiaridades, a transmissão de conhecimento e das culturas ao longo da história, sendo esses três tempos coexistentes entre si na era atual: ... se alguns tempos sociais e estilos de saber peculiares estão ligados aos computadores, a impressão, a escrita e os métodos mnemotécnicos das sociedades orais não foram deixados de lado. Todas essas “antigas” tecnologias intelectuais tiveram, e têm ainda, um papel fundamental no estabelecimento dos referenciais intelectuais e espaço-temporais das sociedades humanas (Lévy, 1993 p. 75).
26
No segundo espaço antropológico de Lévy, o Território, “os modos de conhecimento dominantes baseiam-se na escrita: começa a história e o desenvolvimento dos saberes de tipo sistemático, teórico ou hermenêutico” (2003, p. 23). Quanto ao terceiro espaço, o das mercadorias, Lévy afirma que “não é bom ser desempregado no espaço das mercadorias, uma vez que a identidade social é nele definida pelo ‘trabalho’” (p. 24). A analogia a esses espaços se refere, respectivamente, às opiniões sobre a escrita e à condição de atualização profissional do professor diante da exigência da inclusão digital nas escolas. 27 Anexo 2. 28 Lévy analisa as técnicas de transmissão e tratamento das mensagens na história das sociedades através da oralidade, da escrita e da informática. Segundo o autor, são os três tempos do espírito da humanidade, transformadores dos ritmos e modalidades da comunicação de modo mais direto, contribuindo para a redefinição das organizações.
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A relevância dessa discussão está na preocupação com a forma de escrever nos ambientes da web (salas de conversação, chats, MSN, flogs, blogs, e Orkut, por exemplo), nos quais há uma característica de comunicação mais dinâmica entre os indivíduos. Se os erros de redação em vestibular não recebiam a devida atenção no sentido de uma pesquisa sobre o assunto, discutindo-se no primeiro capítulo uma revisão no passado dos conceitos gramaticais, a forma como os adolescentes e jovens se comunicam nos chats tem motivado muitas reflexões acerca do presente e futuro da língua escrita. E é sob essa perspectiva que este capítulo busca discutir o “escrever” tendo a Internet como um dos instrumentos do ensinoaprendizagem e promotora de novos conceitos dos espaços do saber. Como prefaciou Bernadete A. Gatti no livro “Educação e Informática: os computadores na escola”, trata-se aqui não de “pensar o ensino da informática, mas, sim, o uso da informática no e para o ensino e, de modo geral, para a educação”29 (negritos originais). Esta afirmação ganha valoração se observada à luz do entendimento de Pierre Lévy quanto à utilidade do ciberespaço nas relações humanas:
A forma e o conteúdo do ciberespaço ainda são especialmente indeterminados. [...] Não se trata apenas de raciocinar em termos de impacto (qual o impacto das “infovias”30 na vida política, econômica ou cultural?), mas também em termos de projeto (com que objetivo queremos desenvolver as redes digitais de comunicação interativa?). Na verdade, as decisões técnicas, a adoção de normas e regulamentos [...] contribuirão, queiramos ou não, para modelar os equipamentos coletivos da sensibilidade, da inteligência e da coordenação que formarão no futuro a infraestrutura de uma civilização mundializada (Lévy, 2003, p. 13).
Que (ciber)espaço é este?
Não existiria melhor oportunidade para comentar em que situação surgiu o termo “ciberespaço”, como em um trabalho de pesquisa no qual a escrita é o objeto a ser analisado. Apesar de o termo está fortemente relacionado à informática e aos meios da rede mundial de computadores, o criador do termo foi exatamente um escritor, que percebeu a abrangência do envolvimento das redes digitais nas tramas humanas. Se for permitido um toque literário em uma pesquisa científica, afirma-se aqui que palavra “ciberespaço” não surgiu na frieza da
29 Fernando José de Almeida. Cortez Editora. Coleção Polêmicas do Nosso Tempo. 30
Entenda-se por “infovias” as “auto-estradas da informação” compostas pelos mais complexos e variados sistemas de comunicação existentes.
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comunidade científica da engenharia da computação, mas nas inspirações de um livro. Conforme explica Pierre Lévy: A palavra “ciberespaço” foi inventada em 1984 por William Gibson em seu romance de ficção científica Neuromante. No livro, esse termo designa o universo das redes digitais, descrito como campo de batalha entre as multinacionais, palco de conflitos mundiais[...] O termo foi imediatamente retomado pelos usuários e criadores de redes digitais. Hoje existe no mundo uma profusão de correntes literárias, musicais, artísticas e talvez até políticas que se dizem parte da “cibercultura” (Lévy, 2000, p. 92).
O conceito de ciberespaço adotado nesta pesquisa é definido por Lévy, como sendo “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (2000, p. 92). Uma vez que é produzida por instrumentos tecnológicos que permitem aos indivíduos uma troca de informações fora da sala de aula numa situação inimaginável antes da Internet, a interatividade no ciberespaço surge como uma configuração tecnológica do contato entre os estudantes e o professor, diferente das outras técnicas e tecnologias até então utilizadas como o vídeo cassete, ou programas educativos de televisão. Em “Cibercultura”, Lévy estabelece um paralelo entre as revoluções causadas pela escrita e pelo ciberespaço – do qual a informática representa o terceiro tempo do espírito –, como instauradoras de mudanças fundamentais nas comunicações, a despeito de épocas e técnicas completamente distintas:
Para realmente entender a mutação contemporânea da civilização, é preciso passar por um retorno reflexivo sobre a primeira grande transformação na ecologia das mídias: a passagem das culturas orais às culturas da escrita. A emergência do ciberespaço, de fato, provavelmente terá, ou já tem hoje, um efeito tão radical sobre a pragmática das comunicações quanto teve, em seu tempo, a invenção da escrita. (Lévy, 2000, p. 113-4).
A segunda parte do enunciado de Lévy entremeia a justificativa para um estudo sobre a escrita e o ciberespaço. Não pelo fato de a informática ser uma realidade concreta para as escolas públicas, uma vez que muitos estabelecimentos de ensino ainda estão incipientes na questão de informatização. São os “efeitos radicais” do ciberespaço que se pretendem discutir, delimitando-se nesse caso as influências que podem causar no processo de aprendizagem da escrita.
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Por exemplo, a emergência do ciberespaço tem acrescentado um sem-número de elementos para discussões sobre essa aprendizagem. Dentre esses elementos se encontram as vantagens e desvantagens das pesquisas nos sites. Ao mesmo tempo em que proporcionam inúmeras fontes de dados e rapidez na busca de assuntos pesquisados, há a idéia de que as atividades escolares facilitadas pelos recursos de software tendem a acomodar o indivíduo, como o fato de se poder copiar integralmente textos e imagens de uma home-page para uma página do editor de texto. Assim, essas vantagens e desvantagens têm ocasionado questões divergentes entre os sujeitos atuantes no próprio meio educacional, como se verá no sub-item seguinte. Porém, mesmo com as opiniões divergentes sobre as questões da aprendizagem no ciberespaço, a tecnologia de comunicação digital tenta se instaurar como um componente de evidência no espaço do saber, sabendo-se que este espaço não se limita a um ambiente físico como o da instituição escolar, nem exige por todo o tempo a presença de um professor. Mediados pelos seres humanos, e pela escrita, o ciberespaço, o lar, a escola não são extensões uns dos outros, mas atores no espaço próprio do saber.
Opiniões de especialistas sobre a escrita e o ciberespaço
Durante a pesquisa na web para este trabalho, percebeu-se que as reflexões acerca da escrita nos ambientes de conversação da Internet têm sido divergentes entre os estudiosos interessados no assunto. Por exemplo, os participantes da comunidade virtual “Matando a Língua Portuguesa”, publicada no ambiente chamado Orkut, adotam uma postura de “portavozes da norma culta” da língua portuguesa. Esses participantes, entre eles professores, pedagogos, alunos de graduação, pesquisadores, etc., condenam ortodoxamente a forma de escrita dos chats, e-mails, blogs e outros ambientes virtuais, e consideram a escrita nesses ambientes extremamente prejudicial para o futuro da forma culta de escrever e de falar. Também consideram os que escrevem dessa maneira como indivíduos não apenas detratores da língua portuguesa, mas com nível intelectual inferior. Visto sob os argumentos de Bagno quanto a urgente necessidade de mudanças no ensino da lingüística e da gramática31, deve-se concordar que as opiniões que só apontam aspectos negativos da forma de se escrever nos ambientes virtuais se transformam em um 31 Bagno afirma que a formação dos professores de língua portuguesa “precisa começar a ser feita de outro modo, sem recorrer tão desesperadamente à gramática tradicional como única tábua de salvação” (2003, p. 84).
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pensamento limitado para se observar o futuro da escrita, e da língua portuguesa em geral. Não se poder concluir que essas opiniões expressem um preconceito em relação ao uso da web no ensino-aprendizagem em geral, mas pode-se afirmar que há um receio dessas influências da forma de escrever na Internet causarem uma modificação depreciadora nas linguagens oral e escrita. Em contrapartida, há profissionais, alunos e pesquisadores discordantes com esse pensamento. Para estes, o escrever praticado nos ambientes da Internet não merece ser visto com tanta aversão nem com a expectativa de “ameaça” à norma culta na escrita, como seus colegas opositores pressagiam. Na pesquisa webgráfica para esta dissertação também se observou, nos sites que comentam o assunto da escrita na Internet, que os profissionais mais favoráveis às ponderações da linguagem chamada “internetês” (a escrita na Internet) se fundamentam na idéia de que na atual fase da humanidade a informática constitui-se como a tecnologia que proporciona maior interatividade entre homem-máquina e homem-homem, inovadora dos meios de se relacionar em sociedade e de se adquirir conhecimento. Como se abordam aqui possibilidades da web para a escrita, citamos dois exemplos que mostram aspectos favoráveis do uso da Internet, com sua influência na socialização do adolescente e na aprendizagem da redação. Tratam-se do portal Educacional e da pesquisa intitulada "Sites construídos por adolescentes: novos espaços de leitura, escrita e subjetivação", da professora Maria Teresa de Assunção Freitas. Esses exemplos são dois, entre raros que tratam da aprendizagem da redação. A Oficina do texto trabalha com a faixa etária de 5 a 18 anos, e a pesquisa da professora Maria Tereza foi realizada com adolescentes. Ambos tratam da utilização da Internet no desenvolvimento de textos, e ainda estão longe de se afirmarem como o alvorecer de uma solução dos problemas dos erros gramaticais. O Portal Educacional, desenvolvido pelo Grupo Positivo, possui um trabalho direto com professores, funcionários, pais e alunos de escolas cadastradas, que interagem com o ambiente virtual e trocam informações entre si. Segundo os seus idealizadores: Com o intuito de encorajar e disseminar o uso de tecnologias inovadoras, possibilitar a criação de novos relacionamentos nas escolas, instigar a aprendizagem e levar informações atuais a todos os que participam da vida escolar, o Grupo Positivo lançou o projeto do Portal Educacional. Trata-se de um ambiente de conhecimento, ensino e aprendizagem com milhares de informações organizadas e avaliadas sobre Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, além de recursos de administração escolar, comunicação entre usuários, assessorias, artigos, atualidades, entre outros, ao qual sua escola pode associar-se, tornando-se parceira no projeto (www.educacional.com.br).
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Dependendo de como se realiza o trabalho para o estímulo da aprendizagem da escrita com a Internet, obtêm-se desenvolvimentos na redação com resultados mais satisfatórios que a média, como a iniciativa da Oficina do Texto32 desse Portal, onde os estudantes participam de co-autoria de livros, enviando seus textos para a oficina. Segundo o próprio site, o desenvolvimento das redações têm sido satisfatórios devido ao estímulo exercido sobre os alunos, com a recompensa de verem seus textos publicados em um livro (Oficina do Texto, www.educacional.com.br). Mas o site não afirma que a participação de estudantes nessas produções significa obrigatoriamente que esses mesmos estudantes tenham um rendimento em sala de aula melhor do que os seus colegas. Mesmo assim, para os idealizadores da Oficina do Texto do Portal Educacional, a autoria em parceria com um escritor renomado encontrou na Internet um meio de maior envolvimento do aluno com a leitura e a escrita:
Ao permitir que cada aluno (ou grupo de estudantes, conforme a preferência do professor) produza um “livro” em parceria com um artista de renome, essas atividades vêm demonstrando ao longo de seus anos de existência que, em vez de afastar os jovens dos livros, um aproveitamento inteligente da Internet permite que ela seja uma forte aliada de pais e professores no ensino prazeroso da leitura e da escrita. (Oficina do Texto, www.educacional.com.br)
A reportagem “Internet: o que muda na escola?”, publicada na revista Época nº 338, da Editora Globo, traz uma citação em destaque sobre a Oficina do Texto, extraído do portal Educacional, afirmando que “o projeto Oficina do Texto mobilizou autores nacionais para que, com as crianças, soltassem a imaginação” (p. 65). Os autores a que a reportagem se refere são apenas dois, o cartunista Ziraldo, que tem participado regularmente até 2005, em pelo menos nove oficinas, e o escritor Luis Fernando Veríssimo, em duas oficinas. Em parcerias com estudantes de alguns colégios, Ziraldo, segundo a reportagem, tentaria entrar para o Guinness Book, o livro dos recordes, como o maior co-autor do mundo,
32 Atividade on-line do portal, “as Oficinas do Texto surgiram como uma experiência original voltada especialmente para o trabalho de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. [...] funcionam assim: o portal disponibiliza, em suas páginas virtuais, uma seqüência de imagens produzidas por um autor de grande renome em nosso país. Nosso principal parceiro tem sido Ziraldo, um dos ilustradores e escritores infantis mais conhecidos da América Latina. Junto a cada imagem, há espaço para o cadastramento de textos. O conjunto das imagens e textos compõe um livro. Podemos também apresentar frases ou pequenos textos que estimulam o estudante a continuá-los, como acontece especialmente nos jornais que oferecemos para adolescentes. Existem oficinas voltadas para todas as faixas etárias, dos 5 aos 18 anos de idade” (www.educacional.com.br).
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com mais de 200 mil livros escritos com auxílio de crianças.33 Em março de 2004 o autor Luís Fernando Veríssimo também começou a atuar no mesmo projeto, conforme matérias publicadas no portal educacional, extraídas dos jornais “Diário do Nordeste” (Fortaleza, CE, 14/03/2004) e “A Tarde” (Salvador, BA, 11/02/2004). O número mais significativo dessa coautoria foi registrado pelo jornal “A Tarde”:
A Oficina do Texto é uma das experiências mais positivas de uso da internet na educação. Só nas últimas edições do projeto, realizadas no final de 2003, cerca de 65 mil alunos em todo o Brasil participaram. No total, mais de 200 mil livros diferentes já foram escritos por crianças de todo o país. Fonte: A Tarde – Salvador Acesso em 11/02/2004
Mesmo sendo um número alto de estudantes a escreverem esses livros, não há registro de que eles tenham alcançado um rendimento na aprendizagem na escrita maior do que seus colegas que não participaram dessa atividade. Se o caso da oficina é estimular o estudante a escrever, ao que consta, seus idealizadores não se reservam o direito de corrigir as redações, por motivos que vagueiam no psicológico do aluno:
O processo de revisão exige que se conheça o estudante. Conforme a faixa etária, o grau de acerto que se pode exigir é maior ou menor. Além disso, existem alunos específicos para quem qualquer correção pode ser até mesmo traumática e provocar a perda de vontade de participar de atividades do mesmo gênero; [...] Dessa forma, fica claro que o processo de revisão em uma atividade dessas, especialmente na Educação Infantil e nas séries iniciais, não pode ser feito de forma impessoal, e cada caso exige determinado tratamento. Por isso, acreditamos que não cabe ao portal realizar esse trabalho e, sim, a cada escola e educador. [...] Assim, acreditamos que a responsabilidade pela correção dos textos da Oficina do Livro deve ser de cada escola. Sabemos que isso provoca algumas dificuldades, mas também temos convicção de que esse é mais um desafio que só leva a um aumento da qualidade do trabalho educativo. (www.educacional.com.br).
A citação deixa claro o fato de que antes de os textos serem publicados, os organizadores da oficina aconselham aos professores dos alunos que corrijam os textos, por serem os professores os indivíduos que mais conhecem a realidade dos alunos. 33 Não se considerando o caso especial da alfabetização de jovens e adultos, um fato interessante observado nesta pesquisa é que a maioria dos livros e trabalhos envolvendo alunos e escrita se voltam muito mais para a criança do que para o adolescente ou o jovem com dificuldades na redação.
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Especificamente neste caso, ainda é na sala de aula, em contato com o professor que o aluno tem possibilidade maior de ver onde está errando, para que se corrija. Outra observação a respeito do portal é que este relacionamento “autor famoso/coautor estudante” através da Internet é um aspecto novo no ensino-aprendizagem da redação, mas não é ainda totalmente um transformador de paradigmas, nem pode confirmar a hipótese de que a Internet pode se constituir em ferramenta facilitadora da escrita para uma parcela significativa de estudantes. Por exemplo, um dos links da oficina, o “Na imprensa”, mostra uma série de reportagens extraídas de jornais, onde se exalta o sucesso das atividades com os alunos. O “Tribuna da Bahia”, de 20/03/2004, por exemplo, encerra sua notícia sobre a Oficina com o seguinte parágrafo: Na Bahia cinco escolas conveniadas ao Portal Educacional participaram da Oficina do Texto e geraram 658 diferentes livros sobre o trânsito. São elas: Colégio Espaço Jovem, Colégio Mundial, Colégio Chave (Salvador), Escola Nobre (Santo Antônio de Jesus), Colégio Impacto (Lauro Freitas). Fonte: Tribuna da Bahia Acesso em 22/03/2004
Não seria correto criticar a comemoração do sucesso dessa Oficina, uma vez que ela pode ter alcançado seu objetivo com esses alunos. A questão é que, desde que a Oficina foi criada, em 2000, apenas cinco escolas são citadas como participantes da atividade, com apenas um escritor, no maior estado do Nordeste brasileiro, que tem uma população numerosa. Não se desmerece o crédito do Portal Educacional, uma vez que esse feito realmente pode ser comemorado, mas se coloca em evidência o fato de este trabalho com a Internet ainda estar longe de servir como confirmação do estabelecimento da Internet como contribuinte da aprendizagem num país-continente, onde a maioria dos estudantes não tem acesso a um computador. Esta iniciativa pode ter sido interessante para determinados momentos, mas em visitas regulares ao site do Educacional, especificamente à Oficina do Texto, não se verificou mais nenhuma outra produção de histórias em co-autoria com autores famosos desde 2004, nem há alguma menção no portal de que algum aluno obteve maior rendimento na escola por ter participado da oficina. Ou, pelo menos, não houve atualização da página da oficina de texto, o que dá margem a se considerar que houve uma desaceleração no processo. Mesmo com o dinamismo da Internet e o estímulo “recompensável” da própria redação publicada em
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livro, não há indicação no portal de uma regularidade dessas produções textuais, pelo menos nas parcerias com autores consagrados. Outro suposto estímulo para o desenvolvimento da escrita através da Internet é a pesquisa da professora Maria Teresa de Assunção Freitas, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. A professora defende esse ponto de vista mostrando como exemplo os resultados da pesquisa "Sites construídos por adolescentes: novos espaços de leitura, escrita e subjetivação", realizada durante dois anos por ela própria. Segundo a professora, a forma de se expressar no ciberespaço tem motivado muitos alunos a dominar o bom uso da língua escrita nas escolas, os internautas34 lêem e escrevem mais que a média e a linguagem abreviada não dificulta o aprendizado da língua35. Porém, deve-se considerar que a pesquisa da professora Maria Teresa se refere a internautas, e não a outros alunos que não sejam acostumados ao uso do computador, nem da Internet, como é o caso dos estudantes que participaram do grupo focal nesta dissertação. Assim, os feitos dos alunos quanto às práticas escolares através da Internet ainda podem incorrer em precipitadas comemorações, não exatamente por falha do aluno, mas por parte dos atores envolvidos na implementação da web nas escolas. Deve-se ainda adotar uma postura de precaução sobre qualquer afirmação de estímulo à aprendizagem da escrita pela Internet. Isso não quer dizer que o projeto da Oficina do Texto tenha falhado, apenas não parece ter havido continuidade de atividade em algum momento. E mais, apesar das perspectivas otimistas proporcionadas pela pesquisa da professora Maria Tereza Freitas, a jornalista Maria Cristina Siqueira, autora da entrevista, afirma que: [...] não existe ainda tempo nem trabalho suficiente de implantação da informática nas escolas para afirmar a constatação de Maria Teresa como uma generalização no país. O saber ler, escrever, comunicar e analisar o conteúdo do que se está escrito ainda são essenciais, pois, de outra forma, estará surgindo apenas uma geração que se submete a instrumentos tecnológicos, deixando de refletir que a evolução do lápis e caderno para o teclado e impressora e as transformações ocorridas para a facilidade da aquisição de conhecimento pela tecnologia remodelou também o processo de formação sócio-cultural do homem. (Siqueira, Folha Dirigida, 03/01/2006).
Outro fato discutível para o sucesso de uma investida no ensino-aprendizagem com a Internet é a afirmação de que as escolas estão se adequando rapidamente às atividades no ciberespaço. A reportagem “Lição ou lazer?”, publicada em abril de 2000 em um
34
Página 128, anexo 2. Declaração da professora à entrevista “Os jovens e a Internet” , de Maria Cristina Siqueira, da Folha Dirigida, 03/01/2006 - Rio de Janeiro. Fonte: www.clippingeducacional.com.br. 35
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suplemento da revista Veja36, afirma que a Internet estaria entrando na vida escolar com rapidez inimaginável. Mas, a matéria cita como exemplos apenas sete estabelecimentos de ensino, em um país de extensão continental: a Associação Escolar Graduada e a Escola Estadual Ennio Voss, em São Paulo, os colégios Geo Guararapes (Recife-PE), Santo Inácio (Rio de Janeiro-RJ), Pitágoras (Belo Horizonte-MG), Objetivo (São Paulo-SP), Gentil Bittencourt (Belém-PA). Não há na reportagem nenhum dado estatístico que fundamente afirmar a rapidez da Internet nas escolas. Além disso, a reportagem mostra que os alunos estavam consultando sites apenas para responder tarefas de casa ou para a realização de trabalho em sala de aula. Apenas dois alunos são mostrados na entrevista, um menino de 11 anos e uma menina de 10. A aluna, destacada como exemplo de que compreendeu bem o objetivo do uso da rede no seu colégio, afirma que os livros “são complementos do que encontro na Internet”. Ou seja, ou os livros foram relegados à condição de coadjuvantes, ou ela quis dizer o contrário. Nada mais. Mesmo com essas observações pouco fundamentadas para que se declare o avanço das provisões de computadores nas escolas, a reportagem “Lição ou lazer?”, de Manoel Fernandes, avalia o uso da Internet como produtivo para a produção escolar dos alunos, exatamente por suas características correspondentes ao modo de ser do adolescente:
Os educadores sabem que o raciocínio da garotada é fragmentado, ou seja, muda de foco com uma rapidez impressionante. Por essa razão, nunca uma ferramenta de apoio pedagógico se mostrou tão adequada ao ritmo dos jovens quanto a Internet. “As informações existentes na rede são fragmentadas e auto-organizadas”, afirma o professor Nelson Pretto, diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. “É justamente assim que funciona o raciocínio de um adolescente.” É justamente por combinar tanto com a forma de pensar da rapaziada que a Internet, segundo os especialistas, deve ter seu uso orientado pelos professores. (Fernandes, 2000, p. 116).
Assim, dentre os vários fatores que aproximam adolescente e escrita na era da Internet, estão a dinâmica e a possibilidade da liberdade de expressão proporcionadas pelos chats e outros recursos de conversação, como o MSN Messenger e IRC. Estes recursos permitem uma escrita extremamente informal nestes ambientes. Há um imediatismo exigido que traduz um dinamismo e uma despreocupação com a forma, mas nem tanto com o conteúdo, e há possibilidades de conteúdos variados em uma só conversação.
36 O “Veja vida digital”, matéria de Manoel Fernandes, revista Veja, p. 114-7.
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Com o surgimento da Internet, as possibilidades de intimidade entre o indivíduo e o ato de escrever aumentaram. Como conseqüência da mudança dos instrumentos e do aparecimento do ambiente virtual, em menos de duas décadas a liberdade de escrever na Internet suscitou palavras de formas abreviadas ou não necessariamente corretas, como “tb” (também) ou “naum” (não) são complementares para a funcionalidade do dinamismo. O cumprimento “Vossa Mercê”, que hoje é “você”, foi um dos termos que rapidamente ganhou nova forma na Internet, se tornando “vc”. E, no Chat, VC não são duas letras, e também ainda não são um pronome de tratamento: são a outra pessoa. Curiosamente, o pronome pessoal “tu”, que já possuía apenas duas letras, não ganhou espaço nem mesmo nos chats de Manaus, onde é culturalmente usado na linguagem coloquial. Com os chats também os neologismos transformaram em sinônimos vocábulos completamente distintos, como teclar e conversar, por exemplo. O dicionário Michaelis UOL define “teclar” como “bater nas teclas de”. Conversar significa “discorrer, falar com alguém”. Mas, nos diálogos em chats, a frase “com quem vc está teclando?” equivale a “com quem você está conversando?”. A respeito dessa forma de escrever na Internet, afirma Luiz Antônio Marcuschi: Veja-se hoje a questão tão discutida das comunicações escritas ditas “síncronas”, ou seja, em tempo real pela Internet, produzidas nos famosos bate-papos. Temos aqui um modo de comunicação com características típicas da oralidade e da escrita, constituindo-se, esse gênero comunicativo, como um texto misto situado num entrecruzamento da fala e escrita. Assim, algumas das propriedades até há pouco atribuídas com exclusividade à fala, tal como a simultaneidade temporal, já são tecnologicamente possíveis na prática da escrita à distância, com o uso do computador. [...] Escrever pelo computador no contexto da produção discursiva dos bate-papos síncronos (on-line) é uma nova forma de nos relacionarmos com a escrita, mas não propriamente uma nova forma de escrita. (Marchschi, 2001, p. 18).
Quanto aos novos significados para os símbolos gráficos, a dinâmica da escrita/conversação on-line trouxe acréscimos de representações, transformando conjuntos desses símbolos não em abreviaturas, nem em palavras construídas com algum sentido, mas em ideografias. Na redação das salas de conversação, letras e sinais de pontuação, reunidos aparentemente sem nenhuma ordenação gráfica conhecida, exprimem diretamente uma idéia, uma situação, um sentimento. Por exemplo, a frase “estou sorrindo” expressa-se e entende-se com a combinação “RS”, e um sorriso mais empolgado com “RSRSRSRS”. Para se demonstrar um acesso de riso repetem-se quantas vezes quiser a letra K. Outro tipo de combinação de símbolos gráficos resulta em significados inusitados, que traduzem sentimentos e expressões com símbolos antes utilizados para fins totalmente
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diferentes. São os agrupamentos de sinais de pontuação, ou destes com letras. Esses sinais se tornaram independentes das normas habituais de construção de palavras, criando-se uma nova forma escrita de se expressar sentimentos. Por exemplo, não é mais necessário escrever que se ficou feliz com um galanteio. Pode-se digitar o sinal de dois pontos e um parêntese. (O resultado é: ), representado os olhos e a boca de uma pessoa. Se o galanteio causou uma felicidade maior, usa-se a letra “D”, e aí, representa-se :D. Pode-se até mesmo piscar para alguém, utilizando-se o sinal gráfico ponto e vírgula: ; ). Muitas salas de conversação têm recursos que automaticamente transformam as combinações gráficas em figuras que representam seus significados. Por exemplo, a digitação dos caracteres “:” (dois pontos) e “)” (parêntese de encerramento), automaticamente, com um comando interno do Chat ou do editor de texto Word, transforma-se em um signo da figura de um rosto sorrindo: ☺. A dinâmica nos chats também deu um significado pitoresco ao ato de escrever. Na escrita on-line a digitação não significa exatamente escrever, mas conversar diretamente, é falar sem usar a oralidade. Diferentemente de uma carta ou e-mail, que levam um tempo relativamente longo para serem respondidos, e exigem uma redação que se faça entender, ainda que apenas com uma noção de gramática, a escrita nas salas de bate-papo são rápidas e imediatamente respondidas, não se considerando aqui, é claro, os problemas de conexão, configuração do equipamento, provedor, etc. À luz das idéias de Bagno, a escrita nos ambientes virtuais não está errada, apenas representa uma forma de comunicação pertinente a um ambiente e própria do meio e dos indivíduos participantes do ciberespaço, e que deveriam receber uma atenção menos preocupante no sentido de serem considerados detratores da língua e, sim, como participantes de um fenômeno da forma escrita, suscitado pela emergência do ciberespaço. Além do mais, a aversão a tudo que se envolve com a escrita na web, hoje, pode influenciar muito no futuro profissional, e por conseqüência, econômico, do agente avesso à Internet. A inclusão digital principalmente nas escolas dos grandes centros urbanos, tende a favorecer o professor no espaço da mercadoria.
O professor e um tempo do espírito
Se a Internet constituir o fator de referência para a escola como sugerem as reportagens citadas neste capítulo, o professor estaria definitivamente submetido a uma obrigatoriedade de qualificação em assuntos pertinentes à web. Além do mais, se a Internet
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realmente motiva o aluno à aprendizagem, como se comportaria o professor que apresenta resistência ao mundo da cibercultura, ou mesmo que esteja disposto a se incluir nesse mundo, não teria condições econômicas? Não se pode abordar a questão da motivação do aluno através da Internet, sem considerar a situação do professor, uma vez que é personagem fundamental na aprendizagem do aluno, é integrante do ambiente da sala de aula e é representante de uma classe – a dos docentes – cuja maior parte ainda não tem uma relação aproximada com o ensinoaprendizagem no ciberespaço. E ainda, se a Internet exerce fascínio na maioria dos adolescentes, o mesmo não se pode afirmar sobre a maioria dos professores, mesmo porque a realidade econômica e atividades profissionais destes podem concorrer para essa falta de familiaridade com o computador. Por isso, cabe uma observação sobre os docentes e a informática. As questões de renovação e modernização do ensino têm obrigado as escolas, em sentido geral, à necessidade de inclusão digital sem, no entanto, abandonar os recursos tradicionais utilizados para o ensino. O “Relatório de Pesquisa Sobre a Situação dos Trabalhadores(as) da Educação Básica”, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação37, afirma que “a velocidade das transformações políticas, sociais e tecnológicas (...) exige que o professor faça cursos de atualização e de aperfeiçoamento, que aprenda novas tecnologias, como o uso do computador, do videocassete, do DVD e demais equipamentos didáticos”. A reportagem “Internet: o que muda na escola?” 38, das jornalistas Paloma Cotes e Camila Carvas, abordando a inclusão digital dos colégios públicos e privados em 2004, trazia uma reflexão sobre a receptividade dos professores e dos alunos quanto a introdução do ensino através da informática nas escolas: Com erros e acertos, tanto o ensino público quanto o privado estão se adaptando. Alguns professores ainda assistem à transição com medo. Os que não se deixam apavorar colocam sua rede de conhecimento à disposição da novidade. Crianças e jovens, por sua vez, desvendam novos mundos e desenvolvem o raciocínio como nunca (Cotes e Carvas, revista Época nº 338, 2004, p. 61).
37 http://www.cnte.org.br, 15/6/2004.
38 Revista Época, nº 338. 8/11/2004.
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Na entrevista há a seguinte afirmação de Carlos Seabra39: “Não é mais possível pensar a escola sem o computador”. No entanto, esse pretenso movimento de inclusão digital das escolas ainda está longe de alcançar a maioria dos professores. Enquanto alguns profissionais da educação podem se considerar privilegiados por sua condição de incluídos digitalmente e, assim, poderem expressar opiniões sobre a escrita na Internet, é arriscado afirmar o mesmo da maioria dos professores dos ensinos fundamental e médio da rede pública. De acordo com Marta Vanelli, Secretária de Políticas Educacionais da CNTE e presidente do Sindicato dos Trabalhadores em educação de Santa Catarina (Sinte-SC), as novas tecnologias ainda não foram adaptadas facilmente à sala de aula, muito menos os professores têm se adaptado a elas. Vanelli escreveu no artigo “Professores, excluídos digitais”40: Em pleno século XXI, com os computadores invadindo as empresas, as indústrias, órgãos públicos e até os lares, os/as professores/as que são responsáveis pela informação e formação do indivíduo, estão longe do contato com essa tecnologia. Pelo menos é o que diz pesquisa da Unesco "O Perfil dos Professores Brasileiros: o que fazem, o que pensam e o que almejam", realizada recentemente e divulgada amplamente pela imprensa nacional e estadual. Entre todos os docentes brasileiros, 58,4% jamais navegaram pela Internet e 59,6% nunca usaram e-mail, sendo que entre os que ganham de dois a cinco salários mínimos, em torno de 77% não têm computador em casa. Não é para menos, já que os salários não permitem essa aquisição. A mesma pesquisa constatou que um/a em cada três professores/as brasileiros/as é pobre. (http://www.cnte.org.br/opiniao/opiniao269.htm, 7/6/2004).
Uma das conseqüências dos índices mencionados acima é a de não se poder esperar que esses professores tenham no mínimo uma participação no ambiente virtual para que possam tecer considerações a respeito do ensino-aprendizagem através do ciberespaço. Principalmente os da rede pública de ensino. Mas, se por um lado o resultado da pesquisa da Unesco mostra a situação dos professores não incluídos digitalmente como um reflexo da defasagem no ensino, a mesma situação não afeta a concepção de Pierre Lévy sobre o que caracteriza a inclusão digital. Ao defender que a falta de computadores não são o maior problema para as escolas, o filósofo afirma que de nada adianta existir um laboratório provido dos melhores 39
Educador e diretor de tecnologia do Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e tecnológicos, na época da entrevista. 40 http://www.cnte.org.br/opiniao/opiniao269.htm, 7/6/2004
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equipamentos se não houver uma boa política de educação implantada no sistema de ensino. E este caso não é um estigma exclusivo do Brasil ou de países de condições sociais menos favorecidas do que as de países desenvolvidos. Segundo Lévy:
Tomemos o caso da informática escolar na França. Durante os anos oitenta, quantias consideráveis foram gastas para equipar as escolas e formar os professores. Apesar de diversas experiências positivas sustentadas pelo entusiasmo de alguns professores, o resultado global é deveras decepcionante. Por quê? [...] o governo escolheu material da pior qualidade, perpetuamente defeituosos, fracamente interativo, pouco adequado aos usos pedagógicos. Quanto à formação dos professores, limitou-se aos rudimentos da programação [...], como se fosse este o único uso possível de um computador! (Lévy, 1993, p. 8-9).
Em relação ao Brasil, na entrevista “Educação contra a exclusão digital”41 Lévy evidencia seu pensamento sobre educação e o ciberespaço, sendo este um dos lugares onde se processa a inteligência coletiva42. Apesar do termo “ciberespaço” estar intimamente relacionado ao ambiente virtual e ao uso do computador, o filósofo demonstra para a jornalista Marina Lemle que: Para a inteligência coletiva, o principal obstáculo à participação não é a falta de computador, mas sim o analfabetismo e a falta de recursos culturais. É por isso que o esforço para a educação, a inovação pedagógica, a formação intelectual e o 'capital social' são os fatores chave do desenvolvimento da inteligência coletiva. (Lévy, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 26/08/2002).
Note-se o problema principal da inclusão digital no Brasil, mencionado por Lévy, é o “analfabetismo e a falta de recursos culturais”, ou seja, mesmo que haja computadores e programas de inclusão, questões relacionadas ao ler, ao escrever e à cultura brasileira são problemas prioritários a serem sanados na participação dos coletivos inteligentes43. Ora, ler e 41 Entrevista especial para o Jornal do Brasil. Marina Lemle é especializada nas áreas de ciência, cultura e internet. Nessa entrevista, Lemle informa dados do IBGE no Censo 2000, onde “10,6% das residências no país possuem microcomputador, sendo que 8% com acesso à internet. Dos lares com computador, 25,5% ficam no Distrito Federal (Brasília), 14,6% no Sudeste e 4,3% no Nordeste”. A jornalista questiona ao filósofo se “neste cenário de exclusão digital", as iniciativas de inteligência coletiva possam dar certo e quais as tecnologias e métodos seriam indicados. Lévy, entusiasma-se com os dados do IBGE afirmando que “estes algarismos são muito animadores...”. (fonte: Jornal do Brasil 26/08/2002). 42 Segundo Lévy, a inteligência coletiva “é uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências [...] a base e o objetivo da inteligência coletiva são o reconhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas ou hipostasiadas” (2003, p. 28-9). 43 Aqui se evoca a situação da necessidade dos lingüistas, gramáticos, professores e outros sujeitos da educação tomarem conhecimento desse conceito de inteligência coletiva, a fim de chegarem ao consenso da revisão do
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escrever são práticas de domínio obrigatório para os professores da língua portuguesa, ao passo que, apesar dessas práticas serem bem freqüentes na sala de aula, a maioria dos alunos não se enquadra nos grupos de conhecimento de uma escrita aceitável para os padrões escolares. Além disso, muitos alunos dominam o uso da informática mais do que os professores, mas não apresentam bom rendimento escolar. Então, a situação do professor na inclusão digital é, no mínimo, intrincada. Por um lado, vemos os professores detentores de um conhecimento da leitura e da escrita, mas alheios aos conhecimentos dos recursos da informática; por outro lado, há os alunos com acesso e conhecimento sobre o uso das ferramentas de softwares e experiência em navegação na web, mas com pouca intimidade com a exatidão da norma culta na leitura e na escrita. Se esses professores e alunos tomassem conhecimento do significado de inteligência coletiva, e o colocasse em prática, esses saberes em diferentes áreas (a gramática e a informática) seriam trabalhados em “comum acordo” e se complementariam, representando o conceito de Lévy sobre inteligência.44 Se a situação vigente é de professores ainda alheios ao mundo virtual, como esses professores podem contribuir com uma discussão sobre este assunto, se eles mesmos, em sua maioria, ainda enfrentam dificuldades na própria inclusão digital? O que um professor do ensino médio responderia ao ser indagado sobre suas atividades no ciberespaço? Como se considerar a Internet um instrumento de ensino-aprendizagem eficaz, se supostamente exerce fascínio sobre o aluno, mas não sobre o professor? E, ainda, há de se considerar que essa exclusão pode não ser exclusivamente uma opção pessoal, mas o reflexo de um sistema sócioeconômico-político ao qual o docente está integrado. Como se está vivendo um momento de novas configurações nos relacionamentos entre as pessoas (humanos) e os meios (não humanos) onde se processam esses relacionamentos, pode-se perguntar se essas novas configurações também influenciam nas motivações para o professor se empenhar no conhecimento dos recursos da Internet para sua atividade com alunos. Uma pesquisa sobre este assunto foi feita na dissertação de Nilbo Ribeiro Nogueira45, a qual resultou no livro “O professor atuando no ciberespaço: reflexões
ensino da língua portuguesa com o fim de, se não erradicar, pelo menos atenuar a situação dos muitos indivíduos relegados à condição de pouco conhecedores da língua culta. 44 O tradutor do livro “A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço” esclarece que ao tratar da inteligência coletiva, Lévy conceitua “inteligência” como “trabalhar em comum acordo”, um dos significados da palavra francesa intelligence (Lévy, 2003, p. 26). 45 Pós-graduado em Psicopedagogia e mestre em Educação pela USP, professor de pós-graduação na FAI-MG e escritor. Realiza palestras, cursos e oficinas nas áreas de Pedagogia dos Pr´jetos, Inteligências Múltiplas, Informática Educacional Internet Pedagógica e Educação Emocional.
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sobre a utilização da Internet com fins pedagógicos” (Editora Érica, 2002, coleção Reflexões e Práticas Pedagógicas). De acordo com Nogueira, as questões de utilização pedagógica do ciberespaço ainda não passaram nem mesmo do conhecimento técnico do uso da máquina: A utilização das novas tecnologias ainda é encarada, no ambiente escolar, com reserva e preocupação. Reserva principalmente por aqueles que se julgam incapacitados para utilizar as novas ferramentas tecnológicas e preocupação daqueles que, mesmo já possuindo capacitação técnica, ainda não conseguiram incorporar e internalizar as novas tecnologias como ferramentas instrucionais. De uma certa maneira o “medo” da utilização dessas ferramentas ainda paira nas questões técnicas. O professor, conhecedor e especialista dos seus conteúdos, se vê diante de uma situação da qual ainda não possui pleno domínio. O foco ainda está voltado muito mais para o computador do que para a contribuição que ele pode oferecer ao processo de aprendizagem. Por esse motivo, poderá ocorrer ainda um certo receio do professor em trabalhar com as novas tecnologias de forma descompromissada dos objetivos pedagógicos da escola. (Nogueira, 2002, p. 9).
Se a condição dos professores ainda não os permitiu uma familiarização com a técnica do equipamento, então a possibilidade de uma inclusão digital desses indivíduos é mais atenuada quando se pensa nos avanços acelerados aos quais a Internet se submete, como mencionado nos textos iniciais do livro “Guia do Professor para Internet: completo e fácil”: “É desafiador e, às vezes, frustrante manter-se atualizado com o ambiente em constante mutação da Internet. Para os professores, um desafio ainda maior é integrar essa tecnologia às suas salas de aula de forma significativa” (Heide e Stilborne, 2000, p. vii). A inclusão digital dos professores seria uma das necessidades mais urgentes a serem supridas, para que eles, por serem os indivíduos mais próximos dos alunos e conhecerem a realidade e motivações de cada um, se tornassem não apenas espectadores de uma mudança nas configurações desse ensino-aprendizagem. Um dos primeiros passos na solução da exclusão digital docente seria trabalhar no sentido de re-configurar o pensamento de professores avessos às ferramentas proporcionadas pela Internet, pois ainda segundo Nogueira, não se pode mais negar a utilização dessas ferramentas (2002, p. 10). Depois, conscientizar todos esses professores das possibilidades de melhoria no ensino-aprendizagem através da Internet. Em seguida, verificar o nível de familiaridade desses professores com a Internet, pois também não se pode generalizar que todos os professores estão excluídos digitalmente, para que possam trabalhar na Internet de acordo com o seu grau de conhecimento das possibilidades da web para a educação e avançar nesse conhecimento e no desenvolvimento de sua própria capacitação para esse trabalho.
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Segundo Ann Heide e Linda Stilborne, os professores podem começar por se envolver com projetos de educação on-line já existentes. Essas autoras lançam a pergunta “Como os professores dos níveis iniciante, médio e avançado utilizam a Internet para projetos educativos?” (2000, p. vii), no “Guia do Professor para Internet: completo e fácil” e apontam possibilidades de respostas no capítulo 2 do referido guia, com uma lista de alguns sites que podem ser observados como exemplos de aplicações da Internet e a sala de aula, e e-mails para contatos com profissionais que já estão em atividade escolar no ciberespaço. Heide e Stlborne afirmam que o envolvimento em projetos já existentes pode ser uma boa iniciativa para os professores iniciantes na prática do ensino-aprendizagem no ciberespaço: A tecnologia educacional continuará a progredir a passos cada ver mais rápidos. Como educadores, é nosso trabalho planejar e implementar o seu uso da melhor maneira possível para todos os nossos alunos. [...] Os projetos de Internet podem fornecer um contexto autêntico em que os alunos desenvolvem conhecimento, habilidades e valores. Saber como utilizá-la não é um fim em si próprio; antes, é uma abertura para a aprendizagem por toda a vida. [...] Talvez a maneira mais fácil de começar seja participar de um projeto de Internet iniciados por outros que atendam aos seus objetivos educacionais. Esses devem incluir desenvolvimento de habilidades de aprendizagens sociais e cooperativas, além de conhecimento e habilidades relacionadas a tarefas. (Heide e Stlborne, 2000, p. 40-1).
Por se tratar de autores estrangeiros, os sites sugeridos no guia por Heide e Stilborne talvez não se voltem para a realidade brasileira, mas a idéia de um engajamento em projetos no Brasil pode ser o início, ou a continuidade, de uma relação bem amistosa entre professor e ambiente virtual. Como sugestão de sites nacionais, citam-se aqui três, de acordo com a reportagem “Internet: o que muda na escola?”. Dois deles podem ser visitados por visitantes, mas o acesso a determinados links exigem cadastramento: são o www.educacional.com.br, exposto neste capítulo (segundo a reportagem, em 2004 era o portal líder no mercado, com 465 mil assinantes de 238 escolas), e o www.klikeducacao.com.br, pioneiro na prática do ensinoaprendizagem na Internet, com 12.500 assinantes em 2004 (época da entrevista), ganhador de três prêmios Ibest (premiação dos melhores sites em suas respectivas categorias, concedida de acordo com votação dos internautas). O terceiro site é o www.educarede.org.br, de acesso completamente livre, com 1,3 milhão de “pageviews” em setembro de 2004 (fonte: reportagem “Internet: o que muda na escola?”).
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Se o mundo da informática englobar também a educação da forma como pressagiam as reportagens expostas neste trabalho, todo esse investimento do professor estará indissociavelmente envolvido em uma aproximação deste com a cibercultura. considerando sua condição de ser integrante de uma sociedade na qual está em jogo a condição de qualquer profissional da educação que não pretende se atualizar ou se capacitar, o professor estaria submetido a uma necessidade de familiarização com o ciberespaço46. Mas a exclusão digital não é o único aspecto crítico da classe do magistério. Segundo a pesquisa da Unesco mencionada por Vanelli, a figura do educador é bem mais controversa. A respeito da impressão desses professores quanto à própria rede de ensino da qual fazem parte, e no aspecto “cultura”, por exemplo, Vanelli menciona:
Apesar de se declararem pobres, a maior parte dos/as docentes brasileiros/as não acredita no ensino público e preferem colocar seus filhos em escolas particulares. E, quando se fala, em educador/a, é normal pensar naquela pessoa culta, que costuma ler bastante, ir ao cinema, ao teatro, ao museu, conhecer lugares diferentes, outras línguas, etc. Mas essa não é a realidade no Brasil, segundo a pesquisa da UNESCO. Só para se ter uma idéia, 29% dos/as professores/as brasileiros/as nunca foram ao cinema; 17,4% nunca assistiram a uma peça teatro; e 14,8% jamais visitaram algum museu. (http://www.cnte.org.br/opiniao/opiniao269.htm, 7/6/2004)
Então, a situação de pobreza da classe do magistério resulta em um “contraconceito”. O professor não pode se incluir culturalmente em decorrência da condição financeira. E se não há condições em se incluir cultural e digitalmente, para alcançar uma melhor condição econômica, o professor corre o risco de ver sua condição profissional cada vez mais em desvantagem e de se enquadrar na posição desfavorável citada por Lévy (2003, p. 24) no espaço da mercadoria: “não é bom ser desempregado no espaço das mercadorias, uma vez que a identidade social é nele definida pelo ‘trabalho’”. Em analogia aos espaços antropológicos definidos por Lévy (2003, p. 24), vale ressaltar que o professor tem um nome (sua posição na Terra), endereço (sua posição no Território) e sua profissão (posição no espaço das mercadorias), sendo que sua condição pessoal e profissional, no sistema exigente do espaço da mercadoria, está intimamente dependente de seu próprio investimento em sua capacitação, competências e aptidões
46
Para saber mais sobre a situação dos professores em relação ao mundo da web, vale como referência a dissertação de mestrado “Formação de professores no labirinto do ciberespaço”, de José Augusto de Melo Neto, mestre em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas.
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intelectuais e produtivas. Estar à margem de uma busca por aprimoramento profissional seria estar fora da situação que Lévy explicita sobre o trabalho a partir dos anos 70: Tornava-se cada vez mais difícil para o operário, o empregado, o engenheiro herdar a tradição de um “ofício”, assumi-lo e transmiti-lo quase inalterado, instalar-se de modo durável em uma identidade profissional. [..] Doravante, não basta mais identificar-se passivamente com uma categoria, uma profissão, uma comunidade de trabalho; é necessário ainda engajar a singularidade, a própria identidade pessoal na vida profissional. [...] Se a fronteira entre a vida profissional e desenvolvimento pessoal se apaga, é a morte de certo economismo. (Lévy, 2003, p. 20-1).
Assim, estar fora da situação que Lévy explicita sobre o trabalho é estar à margem de uma busca por aprimoramento profissional. Arrisca-se aqui afirmar que num futuro próximo haverá mais professores qualificados para atuar no ciberespaço, mas, por enquanto, muitos professores desse início de milênio – período no qual se supunha um alastramento de profissionais inseridos na cibercultura –, ainda sofrem as pressões de uma exigência do mundo da informatização, à qual eles ainda não correspondem e talvez nunca poderão corresponder, não por opção, e, sim, enfatize-se, devido às circunstâncias da realidade política e econômica do país. Mas esses professores não estão sozinhos. Toda uma grande parcela da sociedade, pelas mesmas circunstâncias políticas, está incluída em um “limbo” profissional onde um futuro de qualificação ainda é incerto. Sob a ótica de Lévy, essa configuração informatizada da sociedade ainda é um fato novo, e a adaptação a essa configuração permeia o campo das incertezas: Mesmo que não nos movêssemos, o mundo mudaria à nossa volta. Ora, nós nos movemos. E o conjunto caótico de nossas respostas produz a transformação geral. Esse movimento não requer de nós uma adaptação racional em grau ótimo? Mas como saber que uma resposta convém a uma configuração que se apresenta pela primeira vez e que ninguém programou? E por que querer se adaptar (e adaptar-se exatamente a quê?) quando se compreendeu que a realidade não estava posta, exterior a nós, preexistente, mas que já era o resultado transitório do que fazíamos juntos? (Lévy, 2003, p. 14).
As discussões sobre as mudanças do mundo devido à incursão da informática nos diversos setores da sociedade muitas vezes parecem querer nos assustar quanto ao futuro do professor não familiarizado com a computação, principalmente quando se percebe os índices
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mencionados por Vanelli na página 61 desta dissertação. No entanto, como veremos no próximo capítulo, ainda que essas mudanças possam sugerir uma obsolescência do professor marginalizado digitalmente, a inclusão digital de alguns grupos não significa a extinção de outros, pelo menos no que se refere à presença do professor em sala de aula. É no contato direto com o professor que o aluno tem possibilidade mais imediata da troca de idéias, da transmissão e recepção do conhecimento, da orientação e da correção. O trabalho descrito no capítulo três mostrou que mesmo com a intenção de se trocar informações com alunos através da Internet, ainda foi o contato presencial que surtiu mais efeito na atividade proposta aos alunos.
Capítulo 3 – Uma atividade no Espaço do saber
Imagine a alegria de um aluno escrevendo uma história pela Internet em parceria com um consagrado escritor brasileiro. Imagine a emoção desse jovem autor ao ver que sua história ganhou vida num livro de verdade. Imagine agora a surpresa dele ao ver que seu nome aparece na obra única e inédita que criou. Oficina do Texto, www.educacional.com.br
Conforme a epígrafe, há uma possibilidade de alunos se empenharem a uma escrita mais elaborada, se motivados a escrever tendo em vista seu trabalho ser reconhecido e publicado. Note-se não se mencionar “alegria” ou “emoção” do aluno na expectativa de se conseguir uma nota bimestral, mas por se poder ter a chance de participação em uma produção literária. Esta participação, segundo o site www.educacional.com.br, foi uma tentativa bem sucedida, com alunos que ainda estavam em fase intermediária do ensino fundamental. Percebe-se uma auto-afirmação de sucesso ao se navegar pelas páginas da Oficina do Texto do Portal Educacional. A Internet seria, então, um recurso a se considerar para uma interação entre indivíduos que buscam um melhor aproveitamento para a aprendizagem da escrita com outros recursos que não fossem as costumeiras aulas na escola. Mas, o convite à imaginação de tais situações descritas na epígrafe teria fundamento para um grupo de alunos adolescentes no final do ensino médio, cujo único objetivo para escrever uma redação talvez seja alcançar uma nota de avaliação para encerrar um ciclo de estudo? Ou para alunos que nunca foram estimulados a passar pela experiência de ver sua redação publicada em um meio de comunicação? Ou apenas está-se vislumbrando um fetiche sobre a Internet no que concerne à prática escolar da redação? São tantas as questões a envolver esse tema, que definitivamente seria necessário uma movimentação excepcional dos educadores, pedagogos, alunos e outros profissionais da educação. Algumas das reportagens citadas no capítulo anterior sugerem a idéia de que as aulas apenas na escola, sem o uso da Internet, estariam obsoletas, se não houver um trabalho de inclusão digital na educação. Por outro lado, Lévy (1993, p. 9) acusa a incoerência em se equipar as salas de aula com computadores, se a formação dos professores em relação à informática estiver limitada “aos rudimentos da programação [...], como se fosse este o único uso possível de um computador!” (Lévy, 1993, p. 9). Todos esses questionamentos envolvem o tema deste trabalho. Não se poderia encerrar uma discussão sobre a escrita e a Internet sem pelo menos uma verificação do
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comportamento de um grupo de estudantes ao serem convocados a participar de uma oficina de texto on-line. Assim, constituindo-se no registro da parte prática desta pesquisa, este capítulo mostra uma experiência feita com um pequeno grupo de alunos do terceiro ano do nível médio do Instituto de Educação do Amazonas – IEA, uma instituição de ensino público, a fim de testar a suposta motivação exercida pela Internet para o exercício escolar, especificamente a redação. A experiência, inspirada na Oficina de Texto do Portal Educacional, consistiu em observar o interesse desses estudantes na prática da redação com outro objetivo que não o de se conseguir uma nota, e, sim, para publicação em um portal construído exclusivamente para esta pesquisa. Considerando-se que as correções gramaticais já estão incluídas na prática do professor em sala de aula, e procurando-se fundamentar este experimento sob a ótica de Bagno e de Marques, não se pretendeu aqui assinalar pontos nos textos onde os alunos demonstraram falta de conhecimento ortográfico ou de partes estruturais de redação. Ou seja, as questões dos conceitos no ensino da gramática e da redação, e da motivação, expostas nos capítulos anteriores, direcionaram essa experiência no sentido de não se pretender avaliar as redações dos alunos se atendo aos erros gramaticais - que com certeza se encontrariam no caminho –, nem de seqüências dos elementos que formam a estrutura do texto (introdução, desenvolvimento e conclusão) com conteúdos respectivos que os identifique como tais, mas na motivação inicial que levaria os alunos a se empenhar em exercícios de redação. Assim, a análise de todo o processo de produção dos textos se limitou ao comportamento do indivíduo diante de uma proposta de aprendizagem da redação através da Internet, independentemente de algum erro gramatical. Isto é, como a Internet, suposto elemento de atração para o aluno, influenciaria em uma prática considerada pouco atraente para muitos estudantes: o exercício da escrita. Além do mais, antes de assinalar erros para serem corrigidos, acredita-se aqui que um bom motivo para a prática textual na escola levaria a um número menor de ocorrências de erros, junto à valorização do estudante, que não seria avaliado pela sua limitação, mas com o intuito de ajudá-lo a superar esses limites. Quanto a esta valorização do ser, procurou-se observar os alunos em conformidade com uma afirmação de Lévy sobre a “valorização dos indivíduos por suas competências” no espaço do saber: O espaço do saber começa a viver desde que se experimentam relações humanas baseadas nesses princípios éticos de valorização dos indivíduos por suas competências, de transmutação efetiva das diferenças em riqueza coletiva, de integração a um processo social dinâmico de troca de saberes, no qual cada um é reconhecido como uma pessoa inteira, não se vendo bloqueada em seus percursos de aprendizado por programas, pré-requisitos, classificações a priori ou preconceitos em relação aos saberes nobres ou ignóbeis (Lévy, 2003, p. 28).
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Conforme elucida Lévy, o indivíduo no espaço do saber não deve ser reconhecido como um ser sobre o qual já se estabelece uma pré-concepção fundamentada em um histórico da pessoa. Assim, essa verificação considera o aluno no empenho no exercício da escrita, no seu estágio atual de conhecimento da redação. Não são evidenciados seu histórico de aprendizagem da redação, rendimento escolar desde a alfabetização, sua condição sócioeconômica, classe social, aptidões profissionais, etc. Sabe-se que todos esses fatores podem influenciar na aprendizagem, mas um aprofundamento sobre eles não cabe nos limites desta pesquisa, uma vez que se está tratando da emergência de indivíduos que não poderão retroceder no tempo para resgatar seu aprendizado, nem terão outro longo período de tempo para se exercitar até conseguir uma escrita perfeita. A utilização da Internet foi idealizada aqui após se verificar nas visitas ao portal educacional, que a experiência com a Oficina do Texto advoga para si um resultado correspondente às expectativas dos idealizadores da Oficina, ou seja, o sucesso da produção de textos e alunos com sua auto-estima valorizada por terem participado de uma obra literária, e por verem seus textos não apenas corrigidos e submetidos a uma avaliação ou nota, mas publicados e servindo como exemplo de uma experiência onde puderam ver seu investimento escolar recompensado.
Processo metodológico da atividade com os alunos
A sistemática das atividades práticas da pesquisa consistiu em: a) Escolha do colégio para campo de pesquisa; b) Contato com as turmas; c) Aplicação de questionário; d) Explicação sobre grupo focal; e) Escolha do grupo; f) Atividades com o grupo; g) Observações sobre os textos; h) Observações sobre a atividade.
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a) A escolha do colégio para campo de pesquisa
A definição do Instituto de Educação do Amazonas como campo de pesquisa foi decidida de acordo com os seguintes critérios: 1) É uma instituição pública. A escolha por uma instituição pública se deu pela observação na vivência com professores dos ensinos público e particular, que permitiu verificar serem as escolas públicas menos privilegiadas que as particulares, tanto na provisão de equipamentos de informática disponíveis para os alunos, quanto no uso e na manutenção desses equipamentos. Segundo Pierre Lévy, a provisão de computadores não significa que a instituição tem respaldo para se qualificar como incluída digitalmente, se não houver um projeto pedagógico eficiente (Lévy, 1993, p. 8). 2) É uma escola do nível médio de ensino. Alunos do ensino médio são o públicoalvo desta pesquisa, especificamente os do último ano. Por se encontrarem em um ponto limite entre todo um passado de aprendizagem escolar e um possível ingresso em um curso superior – e recordando a afirmação do consultor do Enem no primeiro capítulo – supõe-se que nessa fase de conclusão de ensino médio o aluno estaria apto a desenvolver uma redação bem estruturada e coerente. Mas o início da reportagem “Tem uma redação no meio do caminho” (comentada no primeiro capítulo) chamou a atenção para o fato de que os alunos não possuem condições de se expressar de forma culta. 3) É uma escola que já foi referência no ensino público. O Instituto de Educação do Amazonas é considerado um dos colégios públicos mais antigos e tradicionais de Manaus, com um histórico de formação de profissionais do magistério, subentendendo-se por isso que seu ensino deveria ostentar a condição de mais exigente no seu ensino-aprendizagem do que outros colégios. Hoje em dia seu reconhecimento como instituição de referência não tem o mesmo peso de repercussão na sociedade como há alguns anos. Por essa condição de não estar mais entre os colégios com reconhecimento, decidiu-se observar através da pesquisa com os alunos, se internamente havia ainda alguma expressão na aprendizagem dos estudantes que refletisse sua tradição e que talvez influenciasse nas respostas dos alunos ao questionário. Resumo histórico do IEA O Instituto de Educação do Amazonas foi instituído em 04 de novembro de 1880, denominado na época de “Escola Normal”, mas foi inaugurado somente em 1882. A Escola
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Normal uniu-se ao Liceu Provincial (atual Colégio Estadual) e em 1886, após reformulação na instituição pública, separou-se do Liceu, passando a funcionar no Asilo Orfanológico Elisa Souto. Em 1890, o Liceu foi extinto e a Escola Normal passou a ser denominada Instituto Normal Superior, voltando a funcionar no prédio do Colégio Estadual. Em 1912, foi novamente desvinculada, ocupando o prédio da atual Câmara Municipal de Manaus. Em seguida, com mais uma reforma do ensino, a escola passou a se chamar Instituto de Educação do Amazonas A instalação do IEA no edifício localizado na Praça do Congresso (centro de Manaus-AM) onde funciona atualmente, só aconteceu em 1944. Esse prédio fora antes destinado à sede do Governo e, mais tarde, foi sede do Poder Legislativo. Sua estrutura atual comporta dois laboratórios de informática, um laboratório de Ciências, biblioteca, quadra poliesportiva, Salão Nobre, 36 salas de aula, cantina, mecanografia, salas de música e educação física, memorial, teatro, ampla área externa para eventos e pequenas praças, distribuídos em cerca de mais de 5 mil metros quadrados. Esse histórico recebeu especial atenção em 2005, quando o IEA completou seu 125º aniversário. Alunos e ex-alunos promoveram o evento “IEA 125 anos – Um marco na história da Educação no Amazonas”, idealizado principalmente por ex-alunos, formados no ensino médio no ano de 2004, com uma equipe de coordenação formada por oito estudantes. O interesse dos discentes em realizar o evento pode traduzir um bom relacionamento entre os alunos e o colégio. Hoje, o IEA atua com Ensino Médio, atendendo mais de 4,5 mil alunos.
b) Contato com as turmas
O corpus deste trabalho se centrou na escolha de alunos de duas turmas, por ocasião das visitas ao Instituto. Primeiramente foi estabelecido contato com as professoras Márcia de Castro Gomes e Tereza Cristina Rodrigues de Sena, do IEA, às quais foi apresentado o projeto. Essas professoras se predispuseram a colaborar na escolha da turma, dando sugestões para a seleção do grupo de estudantes que participariam da atividade. Também se estabeleceu contato com a direção e com as pedagogas do colégio, a fim de solicitar autorização para realizar a pesquisa com alunos e nas dependências daquele Instituto.
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Antes havia se pensado em trabalhar com um grupo de estudantes da turma 6 do terceiro ano, já veteranos no IEA, bem participativos47 nas atividades do colégio, e que já haviam manifestado o interesse em atuar nesta pesquisa, quando lhes fora anunciado anteriormente sobre a visita ao colégio para seleção dos alunos. A esse grupo denominamos turma A, composto por 35 alunos de faixa etária entre 17 e 19 anos. Desse número total, 27 alunos responderam ao questionário. O contato com esta turma foi indireto, ou seja, a professora da turma solicitou que os alunos respondessem ao questionário, e não foi apresentada a pesquisa. Ao todo, vinte e sete alunos da turma A responderam ao questionário, em, segundo a professora, cerca de 15 minutos. A turma 9 do terceiro ano matutino, denominada aqui de turma B, constitui o outro grupo de alunos ao qual foi aplicado o questionário. No primeiro contato com esta turma houve apresentação do projeto e aplicação do questionário. A impressão inicial sobre os alunos foi de uma turma apenas assistente, como se aquela apresentação fosse apenas mais uma aula. Havia 36 alunos presentes, dos quais 30 responderam ao questionário. Logo no início da apresentação deste projeto à turma B, os alunos já manifestavam alguma reação, não pelo conteúdo do assunto, mas pela forma que foi exposto. A apresentação contou com recurso multimídia, com animações em Flash48. O recurso de apresentação com animações e áudio foi fundamental para atrair a atenção da turma, que a partir daí se mostrou mais à vontade e predisposta com a pesquisa. Após a apresentação, foi solicitado que os alunos respondessem ao questionário semi-aberto, composto de perguntas que buscavam verificar a opinião destes alunos quanto à própria condição de escrita e à utilização da Internet no exercício de redação. Os alunos levaram uma média de 30 minutos para completar as respostas.
c) Aplicação do questionário
A turma A apresentou respostas elaboradas de melhor forma em relação à turma B, o que permitiu uma primeira interpretação sobre esta turma como mais produtiva na aprendizagem em relação à turma B. Para se verificar com mais propriedade a motivação 47
Quase todos participaram na organização do evento de aniversário de 125 anos do IEA.
48 Programa de criação de animações destinadas à internet e a mídia digital.Ë uma ótima ferramenta para o universo do “web-design” pela sua possibilidade ampla na criação de arquivos multimídia com animação e interação, apresentando tamanho pequeno (kb)e grande qualidade.
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exercida sobre os alunos, a decisão pela turma B foi confirmada, pois essa turma apresentou respostas mais indefinidas, ou seja, os pensamentos dessa turma, expressos no questionário, não estavam tão organizados quanto à maioria das respostas da turma A, o que possivelmente constituiria um trabalho mais significativo em se tentar extrair desse grupo de alunos uma reação mais satisfatória no experimento. Assim, a seleção dos participantes desta pesquisa foi feita na turma B, composta por 40 alunos do terceiro ano, com idades entre 17 e 19 anos. A solicitação de resposta ao questionário aconteceu antes da composição do grupo focal. Como houve uma diferença do número de alunos entre as duas turmas (27 da turma A e 30 da turma B), tentou-se buscar nas respostas uma visão de proporção a esses números. Exemplo: 20 alunos da turma A representam um número maior que 20 alunos da turma B. Esses dados numéricos não buscam comprovar que uma turma é superior à outra, pois essa não é a finalidade da pesquisa, e mesmo assim nem todos os alunos participaram da aplicação do questionário. Também não se busca uma constatação do nível de aprendizagem dos alunos. A finalidade dessas perguntas consistiu em comparar as respostas das duas turmas, somente para escolha por uma delas, da qual seriam definidos os participantes da pesquisa. A partir da página seguinte, o questionário é transcrito, com explicação da finalidade de cada pergunta e comparação do resultado alcançado nas duas turmas.
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Questionário para levantamento de dados sobre a situação dos alunos em relação a escrita em sala de aula Nome:............................................................................................................................ Sexo:........ Idade:......... e-mail:.............................................................................................. Este questionário visa levantar dados do perfil das turmas quanto à motivação dos alunos para aprendizagem nos exercícios de redação, a fim de serem escolhidos os alunos componentes da pesquisa. 1) O que significa para você ter conhecimento e bom desempenho da escrita durante a vida escolar? Esta pergunta foi elaborada na tentativa de se estabelecer um perfil generalizado da opinião das turmas sobre a aprendizagem da escrita49. Turma A: a maioria dos alunos dessa turma associou a importância do desempenho da escrita à facilidade de comunicação e à futura vida profissional. Ou seja, esses alunos têm consciência de que a escrita é um elemento que influencia na sua condição social e profissional. Apesar de alguns erros de português, as idéias podem ser mais bem compreendidas do que as da turma B. Exemplo de uma resposta: “treinamento para o futuro, para a vida que pede a escrita: trabalho, casa, etc”; “uma boa educação, sucesso no futuro e um bom desempenho na vida profissional”; ∗. Somente uma aluna apresentou uma resposta no mínimo inusitada e confusa. Ela respondeu “cultura e habilidade”. Turma B: as respostas são bastante diversificadas, mas falam também do futuro. Há erros ortográficos que mais denunciam falta de atenção do que de conhecimento da escrita correta das palavras. A maioria das respostas traz perceptivelmente dificuldades na articulação das frases. Com um pouco de esforço por parte do leitor, muitas idéias dos alunos podem ser compreendidas, ou deduzidas. Exemplos: “Para melhor meus textos, melhorar o termo da pontuação, e redações”; “significa que futuramente possa ser uma vestibulanda”; “significa um meio de ingressar no futuro a profissão”.
49 ∗
As explicações das finalidades das perguntas não foram impressas nos questionários entregues aos alunos. As respostas colocadas entre aspas são exemplos retirados do questionário e estão literalmente transcritas.
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2) Como você considera o seu desenvolvimento na escrita, desde o período de sua alfabetização até a presente data, estando você no terceiro ano do ensino médio? Esta pergunta visava extrair do aluno sua auto-imagem quanto seu rendimento na escrita. O interessante nesta questão é que a maioria dos alunos das duas turmas considera seu desenvolvimento bom, mas sabem que precisam melhorar em algum aspecto. Na turma A, a aluna que respondeu “cultura e habilidade” na primeira questão afirmou: “meu desenvolvimento é perfeito”. Na turma B, somente uma aluna afirmou que seu desenvolvimento “praticamente continua a mesma coisa. Continuo escrevendo muito errado”. 3) Quais das afirmações abaixo expressam sua identificação com os exercícios de redação? Opções de resposta
Turma A
Turma B
a) Não gosto de exercícios de redação.
2
2
b) Gosto desses exercícios, mas não consigo fazer.
3
9
c) Sei fazer, mas não gosto, os temas são desinteressantes.
10
10
d) Acho que consigo desenvolver qualquer tema.
5
2
Total de alunos aos quais foi aplicado o questionário
27
30
Total de alunos que responderam a pergunta
20
23
Esta pergunta pretende mostrar como os alunos se consideram em relação aos exercícios de redação. Um fato nessa questão foi observado nos itens “a” e “c”, os quais expressam o sentimento negativo de alunos quanto a esses exercícios. Os percentuais nas duas turmas foram bem próximos em cada um desses itens. A diferença da resposta “a” entre as duas turmas foi de 0,8% (dois alunos em cada turma não gostam de exercícios de redação). A diferença da resposta “c” foi de 3,7%, onde dez alunos em cada turma afirmaram não gostar de fazer exercícios de redação, com a justificativa de considerarem os temas desinteressantes. Estes dados não podem afirmar qual seja o real motivo do desinteresse pela redação nas duas turmas, mas uma possível justificativa para a resposta direta da letra “a” (não se gostar de exercícios de redação), pode estar relacionada à letra “c”, que considera a
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situação de temas desinteressantes para que esses exercícios sejam recebidos com maior seriedade por parte dos alunos. Esse desinteresse talvez seja um reflexo da falta de interação entre o professor e os alunos, na situação que Cagliari adverte, como já foi visto no primeiro capítulo: “antes de ensinar a escrever, é preciso saber o que os alunos esperam da escrita, qual julgam ser sua utilidade e, a partir daí, programar as atividades adequadamente” (Cagliari, 1995, P. 101). Nos itens “b” e “d”, os percentuais mostram uma diferença bem maior. O número de alunos que gostam de redação, mas reconhecem não saber desenvolvê-la é 18,89% maior na turma B, e os que se consideram aptos para desenvolver qualquer tema são 11,91% a mais na turma A. 4) Em qual dos itens abaixo você se considera melhor na escrita? Opções de resposta
Turma A
Turma B
a) Treinando e fazendo exercícios em sala de aula;
10
8
b) Escrevendo textos casuais (cartas, bilhetes, diários, lembretes
11
13
4
7
Total de alunos aos quais foi aplicado o questionário
27
30
Total de alunos que responderam a pergunta
25
28
etc.); c) Teclando no Chats (salas de bate-papo da Internet).
Os três itens acima se fundamentam na afirmação de Cagliari, de que a escrita na escola tornar-se e inútil para um aluno que não é acostumado a escrever senão em sala de aula ou não recebe a motivação certa para exercícios de redação (Cagliari, 1995, p. 101). Os alunos da turma A se consideram melhor na escrita treinando e fazendo exercícios em sala de aula do que os da turma B. Foram 10 alunos, dos 25 da turma A, que responderam à pergunta, contra 8, dos 28 da turma B. A diferença percentual entre as duas turmas neste quesito é de 10,37%. Já a turma B se considera melhor na redação escrevendo textos casuais, com uma pequena diferença de 2,79% . Os alunos da turma B também se consideram melhor escrevendo em chats: a diferença percentual em relação à turma A é de 8,52%. Ou seja, a maior diferença entre as duas turmas está no primeiro item, onde os alunos da turma A se mostram mais interessados em escrever como atividade escolar. Somando-se os percentuais dos itens “b” e “c” da turma B (66,66%), encontra-se uma diferença de 11,11% a mais da turma A nos dois itens (55,55), que sugere ser a turma B melhor na escrita em atividades fora do contexto educacional.
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5) Qual sua opinião sobre o uso da Internet como instrumento a ser utilizado por você e pelos professores?
Opções de resposta
Turma A
Turma B
a) Concordo, a Internet é divertida e é mais fácil de se
14
20
b) Às vezes é bom, às vezes, ruim.
3
4
c) Não concordo, não gosto de jeito nenhum da Internet.
0
1
d) Não concordo, na Internet já tem o assunto pronto e o
4
1
Total de alunos aos quais foi aplicado o questionário
27
30
Total de alunos que responderam a pergunta
21
26
consultar os assuntos.
aluno pode se acomodar.
Segundo as reportagens mostradas no capítulo anterior, a Internet estaria sendo bem recebida pelos alunos, e a questão número 6 mostrou um certo equilíbrio percentual entre as duas turmas aqui selecionadas. Os alunos da turma B são mais entusiasmados pelo uso da Internet na aprendizagem, com uma diferença proporcional de 14,81% acima da turma A. Mas o número percentual de alunos desta última também é expressivo (51,85%). Pouquíssimos alunos das duas turmas estão divididos em suas opiniões (item b). Apenas uma aluna não gosta de Internet (ela se manifestou dizendo ser “uma pessoa antiquada”). Percentualmente, os alunos da turma A que responderam ao item “d” são superiores que a turma B, com uma diferença de 11,51%. Ou seja, a turma A concorda que o uso da Internet pode se acomodar o aluno. Em resumo, comparando-se os itens “a” (que concordam) e “d” (não concordam), das duas turmas, a Internet seria mais bem vista pela turma B do que pela A. Essas respostas parecem reforçar a preferência da turma A por atividades mais voltadas para o ambiente escolar, uma vez que na pergunta anterior essa turma se expressou como melhor na escrita em sala de aula do que em outras atividades. Então, para esta turma, a inclusão da Internet no ensino-aprendizagem não seria um fator com o impacto propalado pelas reportagens.
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Uma atividade no Espaço do saber
6) Que motivação levaria você a ter um interesse maior pelo domínio da escrita? Opções de resposta
Turma A
Turma B
a) Um conhecimento da importância dessa prática.
7
8
b) Temas que cada aluno pudesse escolher.
2
8
c) Aprovação na prova de redação do Vestibular.
9
14
Total de alunos aos quais foi aplicado o questionário
27
30
Total de alunos que responderam a pergunta
18
30
Nesta pergunta, nota-se claramente uma participação mais ativa da turma B (100%) e uma queda na participação da turma A (um terço dos alunos não respondeu à questão). Uma explicação para essa participação maciça da turma B na questão 6 pode ser o fato de que durante a apresentação da pesquisa havia se enfatizado as motivações do aluno para se aplicar na redação, dentre essas motivações, a aprovação no vestibular. Os alunos se sentiriam mais direcionados a esta resposta, como aconteceu, embora os outros dois itens (“a” e “b”) também tivessem votação expressiva (mais de 25% cada um). Embora a turma A não tivesse participado da explicação da pesquisa, e um terço deles não tivesse respondido à questão, outro um terço dos alunos (33,33%) também respondeu que a motivação para um aprendizado da escrita seria uma aprovação no vestibular. Ou seja, dos dezoito alunos da turma A que responderam à questão numero 6, exatamente a metade se motivaria com a aprovação no vestibular. De acordo com a questão número 6, deduz-se que nessas turmas o aluno já está habituado a relacionar uma atividade escolar a uma obtenção de nota ou a uma avaliação. O seguinte quadro resumo do questionário possibilita uma visão mais esclarecida do resultado entre as duas turmas: Perguntas
Turma A
Turma B
1) O que significa para você ter conhecimento e Generalizando as respostas, Respostas diversificadas, cuja maioria bom desempenho da escrita durante a vida a importância do traz perceptivelmente mais escolar? desempenho da escrita dificuldades na articulação das frases, facilita a comunicação e além dos erros ortográficos, do que na propicia um melhor futuro turma A. Também há referências à profissional. Há erros situação profissional. ortográficos. 2) Como você considera o seu A maioria dos alunos das duas turmas considera seu desenvolvimento na escrita, desde o período desenvolvimento bom, mas sabem que precisam melhorar em de sua alfabetização até a presente data, algum aspecto. estando você no terceiro ano do ensino médio?
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Uma atividade no Espaço do saber
3) Quais das afirmações abaixo expressam sua identificação com os exercícios de redação? 4) Em qual dos itens abaixo você se considera melhor na escrita? a) Treinando e fazendo exercícios em sala de aula; b) Escrevendo textos casuais (cartas, bilhetes, diários, lembretes etc.); c) Teclando no Chats (salas de bate-papo da Internet). 5) Qual sua opinião sobre o uso da Internet como instrumento a ser utilizado por você e pelos professores? 6) Que motivação levaria você a ter um interesse maior pelo domínio da escrita?
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Maioria das respostas das duas turmas: opção “c”. Os alunos afirmam que sabem fazer redação, mas acham os temas desinteressantes. Proporcionalmente ao Proporcionalmente, a turma B se número de alunos que considera melhor escrevendo responderam ao textos casuais e teclando no Chats. questionário, a turma A se considera melhor treinando e fazendo exercícios em sala de aula. Proporcionalmente mais alunos da turma A não concordam com a Internet.
Os alunos da turma B concordam mais com o uso da Internet (66,66% contra 51,85% da turma A) Ambas as turmas optaram, em sua maioria, pela aprovação na prova de redação do Vestibular.
Percebe-se um certo equilíbrio nas respostas entre as duas turmas. A escolha pelos alunos da turma B se deu em razão das respostas às perguntas número 1, 4 e 6. Na questão 1, a turma A apresenta um perfil mais uniforme e idéias mais articuladas que a turma B. Na pergunta 4, a maior parte dos alunos da turma A demonstra estar entrosada com as práticas de exercícios em sala de aula, e a turma B sugere uma escrita mais à vontade fora dessas práticas. A sexta questão demonstra um aparente empate no requisito motivação, mas a turma B mostra proporcionalmente um número maior de alunos que se consideram dependentes de uma aprovação no vestibular para que se dediquem a uma prática de exercícios de redação. Por todos esses motivos foi decidido que se convidaria alunos da turma B para participar da Oficina de Textos. Realizar a pesquisa com alunos já motivados e com maior facilidade na ordenação dos pensamentos não traria tanta expressividade nessa pesquisa quanto tentar trabalhar com indivíduos ainda não interessados o suficiente em colaborar. A partir de então, foi composto o grupo focal.
d) Explicação sobre grupo focal De acordo com o site www.bireme.br/bvs/adolec, o grupo focal consiste em uma “técnica qualitativa, não-diretiva, cujo resultado visa o controle da discussão de um grupo de pessoas. Foi inspirada em técnicas de entrevista não-direcionada e técnicas grupais usadas na psiquiatria”. Uma das regras de pesquisa através do grupo focal estabelece que os componentes do grupo, preferencialmente, não devem se conhecer, mas terem características em comum. A turma B em questão preenche este requisito, pois no primeiro contato, em fevereiro de 2006, os alunos ainda estavam apenas com duas semanas de aula e não havia um
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envolvimento maior entre eles. Mesmo assim, possuíam as características comuns de faixa etária, interesses inerentes à idade e eram novatos no IEA.50 Outra característica deste método é o número reduzido de participantes, geralmente de 6 a 10 membros. Para esta pesquisa, a primeira sugestão foi de se trabalhar com apenas cinco alunos, mas, devido a manifestação posterior de mais cinco alunos da turma, resolveu-se ampliar o grupo para dez participantes da turma B, que afirmaram o interesse em escrever seus textos para a oficina de texto on-line. Aqui já se pode perceber a motivação transparecendo através da atitude desses alunos em participar da pesquisa. Registre-se aqui que não foi sugerida à turma nenhuma garantia de nota extra em avaliações por sua participação na oficina de texto. Participam também do grupo focal um moderador, que expõe as questões da pesquisa, e um observador. Devido a natureza deste trabalho, o moderador e observador neste caso são a mesma pessoa, neste caso o autor desta dissertação. Segundo o site www.bireme.br/bvs/adolec o comportamento do grupo também é um dado da pesquisa a ser considerado e não simplesmente o processo de pergunta e resposta. No caso desta pesquisa, o comportamento observado diz respeito à resposta ao estímulo para a composição de redações com a perspectiva de reconhecimento de produtividade e não para obter uma nota que garanta uma aprovação escolar. É importante esclarecer que não se aconselha fazer entrevistas nesta técnica de pesquisa, nem o direcionamento das respostas. O questionário foi utilizado para se definir quais alunos iriam compor o grupo, portanto, sua utilização fez-se necessária antes de se trabalhar com os dez estudantes da turma B. Durante as atividades com estes alunos, não se aplicou mais nenhum questionário nem se fez entrevistas, apenas, como diz a técnica do grupo focal, se explicou vagamente – principalmente devido ao tempo reduzido de aula: 30 minutos – um tema para redação a ser feita em sala de aula, adotando-se a técnica do lead. Quanto aos resultados alcançados com a experiência do grupo focal, deve-se evitar generalizações e deve-se pontuar ou avaliar interpretações dos participantes. O fato de se trabalhar com um grupo pequeno torna possível a verificação de resultados individuais, não generalizados, o que ocorreu quando da observação da participação dos alunos na composição de redações. 50
O grupo deve ter uma composição homogênea, preservando certas características heterogêneas_ um balanço entre uniformidade e diversidade _ do grupo, o que permite que os participantes sintam-se confortáveis e livres para participar da discussão (aspectos como mesmo sexo, faixa etária aproximada, experiência profissional ou envolvimento/participação na atividade avaliada podem servir como variáveis). A escolha das variáveis vai depender do que se avalia e do para quê da avaliação. (www.bireme.br/bvs/adolec).
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e) Escolha do grupo
À definição da turma participante da pesquisa seguiu-se a escolha dos alunos que comporiam o grupo focal. Isso aconteceu em outra reunião com a turma B. As finalidades desse encontro foram escolher os alunos e aplicar uma atividade de redação em sala de aula a ser realizada em vinte minutos. Foi explicado à turma que apenas seis alunos poderiam participar do trabalho, e que esses seis deveriam escrever uma redação a ser publicada no site construído para divulgação de suas produções. Mesmo com o esclarecimento de que apenas seis alunos poderiam participar, dez deles se manifestaram para colaborar com a pesquisa.
f) Atividades com o grupo
Segundo as regras do grupo focal, que sugerem não informar muitos detalhes da pesquisa, somente as finalidades da redação para composição do site e a explicação da técnica do lead foram expostas aos alunos. Em nenhum momento foi mencionado que as redações deveriam primar pela qualidade, nem que eles estavam sendo observados pelo seu empenho na redação para testar uma motivação extra-avaliativa. Também não se explicou que se estava verificando se há um estímulo provocado pela Internet para o desenvolvimento da redação, ou qualquer outro objetivo para que esses alunos se dispusessem a escrever. Também não se falou em avaliação ou notas. Quanto ao processo de construção do texto, foi explicada a técnica do lead, para que os alunos tivessem mais praticidade na redação. O recurso do lead não deve ser observado aqui como um substituto de qualquer meio de ensino ou de regra para a redação, nem se aprofunda um estudo sobre esta técnica usada nos meios jornalísticos, mesmo porque a estrutura do lead é simples, apesar de essencial na construção de textos quando se exige qualidade em tempo mínimo. E é por sua característica simples e prática que se resolveu adaptar esta técnica aos exercícios da atividade descrita neste trabalho. Esta inferência de um elemento exterior – o lead – na construção dos textos, encontra fundamento no que Bagno afirma ao mencionar professores que não orientam seus alunos sobre os processos para se desenvolver uma pesquisa proposta pela disciplina, nem oferecem recursos para que essa pesquisa seja realizada de modo mais prático. Segundo Bagno, muitos professores apenas determinam um tema e fixam uma data limita para entrega de tais trabalhos escolares, sem lhes fornecer um acompanhamento e as condições e
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ferramentas apropriadas para tal (Bagno, 2003, p. 13-5). Ainda sobre a questão do lead e sua utilização no exercício de redações, encontra-se a seguinte afirmação:
O tópico frasal é semelhante ao lead de um texto jornalístico: orienta o desenvolvimento do parágrafo e possibilita ao redator manter-se coerente com as idéias expostas. Essa frase inicial policia o desenvolvimento das idéias para que o parágrafo não fuja do objetivo determinado. (...) o tópico frasal introduz o assunto, ainda que de forma geral. Portanto, é uma frase sintética que traça a direção que o desenvolvimento deve seguir. Ele indica ao autor os limites das idéias que pode explanar no parágrafo. (Andrade/Medeiros, 1997, p. 227).
Assim, tomamos as características práticas de orientação do lead, para se escrever um texto em curto tempo e com qualidade, e as aplicamos como recurso para que os alunos participantes desta pesquisa pudessem seguir na redação em sala de aula. Essa técnica visa responder no primeiro parágrafo de um texto jornalístico às perguntas: Quem? Fez o quê? Quando? Onde? Como? Por quê? O lead é um recurso prático na redação de textos noticiosos, que requerem estilo, coerência, fácil compreensão e produção em tempo exíguo. Como a técnica do lead é um recurso prático para que os textos jornalísticos sejam produzidos, esse recurso está sendo introduzido como experimento auxiliar da composição dos textos. A prática com os alunos não pretendeu verificar o domínio da a gramática ou das regras da seqüência “introdução-desenvolvimento-conclusão”. O objetivo consistiu em verificar a reação dos alunos à motivação que receberiam, no sentido de participar de uma oficina de texto on-line, na qual veriam seus escritos publicados. Essa motivação foi testada em dois momentos. O primeiro aconteceu com a presença do mediador e dos alunos em sala de aula, onde houve troca de informações e instruções sobre a atividade. O segundo, foi um teste do contato com os alunos através de e-mail, a fim de verificar o retorno dos estudantes e a participação dos alunos sem a presença do mediador. O primeiro momento da atividade aconteceu logo após a seleção dos alunos, quando foi lido um discurso de Bill Gates51, do qual se sugeriu uma redação a respeito. A escolha desse discurso como tema consistiu no fato de o empresário comentar onze regras que a escola não ensina, segundo o empresário, sobre a realidade da vida, para uma turma de alunos adolescentes de uma escola secundária.
51
Anexo 3.
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Desse discurso se propôs fazer uma redação, naquele mesmo momento, em 20 minutos, escolhendo-se como tema uma das “regras”, com um texto entre 15 e 20 linhas. Seis alunos conseguiram terminar dentro do prazo estipulado, com a ajuda da técnica do lead. Em vinte minutos, com um tamanho regular de letra, conseguiram fazer um rascunho e um texto definitivo. Duas alunas escreveram próximo ao limite mínimo do solicitado, 15 e 16 linhas. Três alunos escreveram próximo ao limite máximo, entre 19 e 23 linhas e o outro extrapolou em muito o limite máximo, escrevendo 32 linhas. Os demais não conseguiram entregar os textos. Neste caso, a técnica do lead ajudou seis alunos a construírem suas redações. Considerando que era a primeira vez que eles estavam treinando seus textos com essa técnica (lead), pode-se dizer que o resultado de 50% mais 1 foi uma tentativa bem sucedida de se produzir um texto a partir da técnica jornalística.
g) Observações sobre os textos
Nos exemplos extraídos das redações, os erros encontrados em alguns textos aqui expostos são realmente críticos, principalmente em se tratando de alunos concludentes do ensino médio. Alguns trechos das redações aqui transcritos mostram como o sistema de ensino-aprendizagem da redação carece realmente de uma urgente atitude dos profissionais da educação quanto ao ensino-aprendizagem da gramática e da redação, mas isso não impede que se entenda a mensagem que o aluno tentou transmitir. Veremos aqui trechos de dois desses textos:52
TEXTO 1 Regra 1: A vida não é fácil - acostume-se com isso. A vida pode se mostrar fácil, mas quando temos pai e mãe, ao nosso lado, é que muita das vezes acabam que nos acostumando mau. Mas como Bill Gades diz: - A vida não é fácil. A vida não é fácil apartir do momento em que nos paramos e decidimos por nos mesmos;
52
Para resguardar a imagem dos alunos, os autores não são identificados.
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TEXTO 2
Regra 10: Televisão NÃO é vida real. Na vida real, as pessoas têm que deixar o barzinho ou a boate e ir trabalhar. Temos que nos convenser que a vida na televisão segue um roteiro, que alguém no caso o autor escreveu. Um roteiro que todas as vezes o moçinho sempre acaba com a moçinha e o vilão perde, além do roteiro, temos o diretor, que e o “cara”, que ordena você a fazer certo. “Para, volta, faz direito, faz assim!” na vida temos que nos convencer que não temos um roteiro a seguir e nem alguém como o diretor para fazer você acerta todas as vezes.
Essa situação de erros – gramaticais e de articulação de idéias – não seria resolvida apenas com esta pesquisa, mas com toda uma revisão no sistema de ensino-aprendizagem. Antes dos textos serem publicados no portal, foi feita a correção dos mesmos. Ao contrário da Oficina do Texto do Portal Educacional, essa correção não foi sugerida à professora da turma, sendo realizada pelo autor deste trabalho. Decidiu-se apresentar os textos corrigidos aos seus respectivos autores, antes de expô-los na web. A atividade seguinte à redação proposta em sala de aula foi uma tentativa de interação via e-mail, sem contato presencial, na qual os alunos foram convidados a escrever outro texto para ser publicado no portal. Estes contatos visavam experimentar a prontidão dos alunos em usufruir dos recursos da Internet para corresponder a uma solicitação de participação em uma atividade de produção de texto. Foram enviados dois e-mails com o mesmo teor, para cada aluno, com intervalo de três dias entre os envios. O e-mail agradecia a participação na atividade anterior, e convidava os alunos a compor outra redação. Após o envio dos e-mails pela segunda vez, esperou-se a resposta dos alunos durante dois dias, mas não houve nenhuma manifestação. Foi realizado um outro encontro com os alunos, a fim de se certificar que os mesmos haviam recebido o e-mail. A resposta foi unânime: nenhum delas havia tido condições de acesso aos seus e-mails, por questões de dificuldade de acesso a um computador, e de outras atividades priorizadas por eles. Esse último encontro não visava nenhuma prática em sala de aula. Apenas foi explicado que os alunos deveriam acessar suas caixas de mensagens na web, pois as instruções para a próxima redação se encontravam na mensagem enviada nos dois e-mais anteriores. Essa breve visita à sala de aula renovou o ânimo dos alunos em participar da oficina, que se mostraram bem interessados no momento, mas não houve respostas dos alunos por e-mail no decorrer da experiência.
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h) Observações sobre a atividade
Durante o tempo que se estabeleceu contato presencial com os alunos da turma B, estes, a princípio, se manifestaram bem tênues a respeito dessa experiência. Somente uma aluna se manifestou por escrito, numa das páginas do questionário, que gostaria de colaborar. Ao contrário, duas turmas de alunos veteranos do IEA, a turma A, já mencionada neste trabalho, e uma outra turma, do período vespertino, a qual não foi consultada, se manifestaram curiosos a respeito, com desejo de participarem da apresentação do projeto, mesmo sem ter conhecimento mais exato do que se tratava a pesquisa.53 Após esclarecido ao grupo focal que as redações seriam publicadas em um site, a reação imediata dos dez alunos foi de entusiasmo em serem escolhidos para participar de uma pesquisa na qual seus textos seriam veiculados e divulgados pela Internet. Outro fator que contou como ponto a favor para o entusiasmo, mas também causou receio em alguns dos participantes do grupo, foi a observação de que os outros alunos do IEA poderiam consultar o site no qual os textos desse grupo seriam publicados. Ficou claro que os dez alunos participantes expressavam mais estímulo quando dos contatos presenciais. Embora a Internet seja considerado um meio eficaz de comunicação a distância entre o do grupo e os componentes deste, não chega a ser um instrumento de fácil acesso para os alunos que participaram desta experiência. Isso não quer dizer que não houve um estímulo condicionante para um melhor empenho no exercício da redação para esses alunos, apenas estes se mostraram mais participativos quando havia a presença do moderador. Conclui-se, sobre a atividade com este grupo focal, que o ambiente virtual realmente exerce realmente certa influência sobre os alunos no estímulo aos exercícios de redação, mas como um fim, e não como um meio. O fim consiste em possibilitar ao aluno ver sua produção publicada, confirmando, de certa forma, o enunciado da epígrafe deste capítulo, sobre os sentimentos de reconhecimento causados no aluno. Note-se que não se propôs aqui ousadia de uma co-autoria de um livro com um autor consagrado, mas o simples fato de ser autor de uma redação publicada em um site bastou para que esses alunos se dispusessem a participar. Quanto a constituir um meio para se estabelecer comunicação com esse grupo, não se pode afirmar ter sido a Internet, neste caso, um instrumento eficaz. Apenas um aluno, 53
Embora não seja objetivo deste trabalho investigar as causas da reação dos alunos quanto a experimentos científicos, nem da sistemática adotada pelos professores daquele Instituto que talvez resultasse na expressão participativa das duas turmas não selecionadas, ficou sugestionável, com a manifestação dessas turmas, que os seus respectivos alunos estariam mais envolvidos com o projeto se fossem selecionados.
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Bruno da Silva Rocha, respondeu ao e-mail, sem enviar seu texto, e se desculpando por não poder ter enviado sua redação no prazo estipulado, alegando a impossibilidade de acesso a um computador até então. Os motivos para que os alunos não respondessem aos e-mails incorrem em várias situações. Primeiro, os alunos não estavam aculturados ao uso da Internet para prática de exercícios escolares. Depois, as atividades extra-classe priorizadas pelos alunos suprimiram seu estímulo em praticar a redação no ambiente do ciberespaço, e os contatos presenciais deste autor com o grupo focal não foram suficientes para que se estabelecesse uma relação mais aproximada. Dentre os fatores mais influentes, destaca-se as condições de acesso dos alunos a um computador. O IEA, por exemplo, possui um contingente de mais de quatro mil alunos para apenas um laboratório de informática, e nem todos os computadores estavam em condição de uso. Apesar dessa situação limitada de acesso aos computadores, ao serem interrogados se eram familiarizados com computadores e sobre como poderiam ter acesso à Internet de forma que pudessem participar das atividades, os alunos responderam saber usar computadores, navegar na WEB e que não teriam muitas dificuldades de acesso a um equipamento, uma vez que poderiam fazê-lo em cyber café ou lan-house. Mas o aspecto mais interessante nessa observação, é que os alunos ainda que sugestionados a praticar interatividade através da web, mostraram mais participação quando havia contato pessoal. Pode ser que, mesmo com o início de um projeto de troca de informações entre alunos e professor através da web, nessa turma, a questão da exposição de aula presencial ainda exerça influência maior sobre a da prática de exercícios do que a comunicação a distância. Levando-se esse aspecto para a cobrança presencial do professor, o contato direto entre este e o aluno ainda é uma condição mais eficaz para os estudantes se aplicarem aos exercícios solicitados pelos professores. A presença do professor, as práticas expositivas e a cobrança dos exercícios em sala de aula, no caso dessa experiência, não são elementos obsoletos diante da ainda incipiente utilização da Internet. Segundo Heide e Stilborne (2000, p. 21): Podemos preocupar-nos com o fato de a Internet ter o potencial de substituir o livrotexto, a biblioteca da escola e, finalmente o professor. É evidente que o papel do professor na sala de aula mudará, mas os professores não se tornarão redundantes. De fato, a melhor garantia de que os professores, e não a tecnologia, estarão no centro da sala de aula do futuro é assegurar que nós, como os professores de hoje, dominemos as novas ferramentas de aprendizagem, como a Internet.
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Novamente citando as duas autoras, o uso de computadores ainda não pode ser afirmado como uma ação transformadora, em sentido mais incisivo, da atividade em sala de aula, ao contrário da utilização da Internet. Na opinião das duas autoras, a web está trazendo um acréscimo mais significativo de utilização da informática na educação: Hoje, há computadores nas escolas, mas até agora eles não mudaram significativamente a natureza do ensino ou da aprendizagem. Os computadores podem oferecer aprendizagem de uma nova maneira, mas ainda estão longe de oferecer o tipo de experiência de aprendizagem que queremos para nossas crianças. Com o advento da Internet, essa situação está mudando e muito rapidamente (Hide & Stliborne, 2000, p. 21).
Para as autoras citadas acima, a Internet tem realmente se tornado o elemento modificador do uso dos computadores nas escolas (p. 21), mas a inserção da cibercultura nos estabelecimentos de ensino tem alcançado um nível de propaganda tão maciça, e em certo sentido conflituosas, que há possibilidade de se tentar a inclusão digital dessas escolas, e de se qualificar os professores para a utilização da Internet, sob uma pressão e uma pressa que atropele as realidades tanto das escolas quantos dos professores, resultando em mais uma tentativa com resultados aquém do esperado nessa inclusão. Estariam-se criando novos “mitos” no ensino e na aprendizagem. O professor estaria consciente de não corresponder à altura da inclusão digital, e o aluno, geralmente mais conhecedor do uso do computador e da navegação pela web, estaria em condição mais qualificada do que esses professores, no fator “conhecimento do manuseio dos instrumentos” do ensino-aprendizagem que envolvesse o uso das tecnologias. Isto não quer dizer que o estudante não possa superar o professor neste aspecto, como na realidade, muitas vezes acontece. Afirma-se que haveria um certo desequilíbrio desfavorável ao professor, que se veria forçado a avançar em uma área que se apresenta como um desafio à sua condição profissional. Os mitos consistem na ilusão de a escola estaria incluída digitalmente, com professores mal qualificados para o uso das tecnologias. Afinal, como utilizar a Internet como instrumento de motivação, e logo de uma prática pouco habitual como o ato de escrever, se nem mesmo o professor tem condições de se motivar ao uso da web? Por situações como esta, é que para Lévy, a implantação da Informática nas escolas não pode ser dissociada de debates nos quais se considere as mudanças da prática de ensino instituída há milênios, e que por isso mesmo, não se resolveria em pouco tempo:
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É certo que a escola é uma instituição que há cinco mil anos se baseia no falar/ditar do mestre, na escrita manuscrita do aluno e, há quatro séculos, em um uso moderado da impressão. Uma verdadeira integração da informática (como do audiovisual) supõe portanto o abandono de um hábito antropológico mais que milenar, o que não pode ser feito em alguns anos. (Lévy, 2004, p. 8-9).
Assim, para que se possa estabelecer um novo paradigma de ensino e de aprendizagem, e que desse paradigma posse se afirmar uma configuração de melhor rendimento dos estudantes, muitas experiências com a informática e a escola ainda serão necessárias. Isso não quer dizer que não se possa tentar abrir um caminho na direção de uma renovação no processo de ensino-aprendizagem. Conforme Lévy, ainda se está no começo de uma nova forma de espaço antropológico, o espaço do saber, no qual “ainda não é tarde demais para refletir coletivamente e tentar modificar o curso das coisas” (Lévy, 2003, p. 12). E ainda: Se avaliássemos a tempo a importância do que está em jogo, os novos meios de comunicação poderiam renovar profundamente as formas do laço social, no sentido de uma maior fraternidade, e ajudar a resolver os problemas com os quais a humanidade hoje se debate. (Lévy, 2003, p. 13).
Considerações finais A engenharia do laço social na produção de texto
Muitas vezes ouvimos dizer que a técnica em si mesma não é boa nem má, e que tudo o que conta é o uso que fazemos dela. Pierre Lévy
O tema apresentado aqui não foi uma idéia construída em pouco tempo, como se houvesse a necessitasse de um objeto de estudo apenas para ser apresentado como pesquisa científica. As leituras sobre as “pérolas” de vestibular nos jornais impressos e na televisão ocorreram sazonalmente, durante cerca de dez anos, até surgir a oportunidade de se tratar do assunto em uma dissertação de mestrado. Infelizmente, nesses anos todos em que se publicavam notícias sobre as redações, não houve a possibilidade deste autor arquivar tais publicações, nem de gravação dos momentos do “Programa do Jô”, nos quais o apresentador citava tais e tais frases de vestibular. Mas a falta do material que inspirou essa pesquisa não prejudicou o desenvolvimento do trabalho, mesmo porque ainda hoje podem ser encontradas na Internet notícias sobre o assunto, e também as chamadas “pérolas” do vestibular. E, mesmo que tenham se passado dez anos de uma situação que ainda hoje é vigente na aprendizagem da escrita, “não é tarde demais para refletir coletivamente e tentar modificar o curso das coisas” (Lévy, 2003, p. 12), como vimos no final do capítulo anterior. E é sobre esse “refletir coletivamente” que se tecem essas considerações finais, pois as dimensões do problema tratado nesse estudo – uma justificativa dos erros ortográficos e de estruturas de textos – extrapolaram a busca que inicialmente seria limitada ao aluno e à sala de aula, envolveram questões sociais pelo domínio da norma culta da língua, permearam as formas históricas do ensino da gramática e culminaram no assunto tecnológico mais enfatizado na atualidade, ou seja, o uso que se faz do computador e o comportamento do indivíduo atuando no ciberespaço. Ao se registrar a epígrafe do primeiro capítulo, ainda não se sabia que aquela afirmação sobre um debate acalorado realmente tinha fundamento. Muito menos se vislumbrava um envolvimento com as estruturas históricas do ensino da gramática e com as pretensas possibilidades para uma mudança da situação que vem se repetindo nas redações em sala de aula e no vestibular.
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Considerações finais
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Quando se pensava em investigar o sujeito da pesquisa, ou seja, o aluno, o que se descobriu aqui, de acordo com os autores explorados no primeiro capítulo, é que, quanto ao ensino-aprendizagem da gramática e da redação na maioria dos colégios, mormente os públicos, a práxis do professor vem seguindo uma rotina persistente há muitos anos, acomodada ao ritmo já estabelecido por um sistema de ensino defasado. Esta práxis sugere uma falta de oportunidade ou de atitude do professor para buscar alternativas nas quais ele se atrevesse a reverter o quadro que se apresenta até então, de alunos que não se expressam de forma correta na redação. Sabe-se que ir contra todo esse tratamento – segundo Marcos Bagno, errôneo – do ensino da gramática, e conscientizar os lingüistas e gramáticos a rever os conceitos estabelecidos desde um passado remoto até hoje, é um desafio que movimenta toda uma estrutura montada há séculos, e não bastaria uma dissertação de mestrado para se conseguir uma mudança no ensino para um resultado mais eficaz da escrita. Bem como permanecer na seqüência de orientações comumente chamadas “dicas” para se obter uma redação corretamente estruturada também não parece ter sido uma saída eficiente, haja visto os estudantes continuarem com as dificuldades de expressão escrita. Mas, por que os alunos vão tão mal na redação? Discutiram-se aqui fatores diversificados, mas todos igualmente importantes, que poderiam concorrer com essa situação. Aparentemente sem uma relação direta desses fatores entre si, comentou-se o ensino da gramática, a motivação para o aluno se aplicar à escrita, as preocupações devido as influências da forma de se comunicar pela Internet, a situação do professor frente à tecnologia do ciberespaço e, finalmente, experimentou-se uma prática da escrita tendo como objetivo verificar a resposta do aluno à solicitação presencial, e posteriormente, através da web, para esses alunos comporem textos para publicação em um portal. Enquanto, por um lado, o ensino da gramática e da redação remontam a discussões sobre um passado a ser revisitado, por outro há uma preocupação de especialistas quanto ao futuro da forma escrita devido a influencia da Internet. E enquanto, segundo Bagno e Mário Osório Marques, a escola ainda se prende aos costumes tradicionais de ensino da língua escrita, a forma de se escrever continua apresentando os erros recorrentes.
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Considerações finais
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Uma troca de idéias
Por ter-se o assunto evoluído para fora dos limites das competências escolares, as recomendações aqui propostas talvez sejam ousadas demais, quase utópicas. Tais recomendações utilizam o conceito de engenharia do laço social de Pierre Lévy para uma possível mudança nos resultados das aulas de redação. Ao se entrelaçar todos esses temas discutidos, sugere-se um meio de desbravar o caminho em direção a um melhor rendimento na redação, exatamente adotando as idéias de Lévy sobre o laço social e a relação com o saber. Pretende-se, então, sugerir um reinventar dos entrelaçamentos sociais e intelectuais de todos os atores envolvidos no ensino da escrita, desde os lingüistas até os estudantes, através de uma troca recíproca de conhecimentos e de um meio comunicacional, onde a atuação no ciberespaço seria um meio, e não um fim, para se alcançar resultados mais positivos não só da escrita, mas talvez dos outros problemas escolares. Segundo Lévy, o laço social é constituído de uma engenharia de relações com o saber de todos os seus integrantes: “Além de uma indispensável instrumentação técnica, o projeto do Espaço do saber incita a reinventar o laço social em torno do aprendizado recíproco, da sinergia das competências, da imaginação e da inteligência coletivas” (2003, p. 26). Uma das características da inteligência coletiva é ser uma inteligência distribuída por toda parte, em um meio no qual se pode desenvolver uma troca de conhecimentos mesmo onde se supõe não existir inteligência:
Ninguém sabe tudo, todos sabem alguma coisa, todo o saber está na humanidade. Não existe nenhum reservatório de conhecimento transcendente, e o saber não é nada além do que as pessoas sabem. A luz do espírito brilha mesmo onde se tenta fazer crer que não existe inteligência: “fracasso escolar”, “execução simples”, “subdesenvolvimento” etc. O juízo global de ignorância volta-se contra quem o pronuncia. Se você cometer a fraqueza de pensar que alguém é ignorante, procure em que contexto o que essa pessoa sabe é ouro. (Lévy, 2003, p. 29).
Esta citação pode até mesmo ser aplicada à discussão levantada por Bagno, recordando aqui a discussão da “Língua de Eulália”, ao se considerar que afirmar a ignorância do indivíduo por este não conhecer a língua culta constitui um ato de preconceito. Assim como Lévy, Bagno consegue identificar conhecimentos onde muitos outros indivíduos não o conseguem. O laço social se estabeleceria exatamente com as descobertas dessas inteligências associadas aos conhecimentos já existentes sobre a língua.
O SER, O CIBERESPAÇO E A PRODUÇÃO DO TEXTO
Considerações finais
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A engenharia do laço social para uma reinvenção do ensino-aprendizagem da escrita seria um sistema onde estariam entrelaçados: as relações de saberes entre lingüistas e gramáticos; o conhecimento do professor sobre a realidade dos alunos, conhecimento esse adquirido com a vivência em sala de aula, que permite só a esse professor, e não aos distantes gramáticos e lingüistas, saber quais as dificuldades apresentadas por seus alunos, e uma adaptação de todos esses indivíduos a um sistema de comunicação, talvez o ciberespaço, no qual essa troca de saberes pudesse ser viabilizada mesmo que não houvesse possibilidade de contato presencial. Por exemplo, se há uma comunidade no Orkut chamada “Matando a língua portuguesa”, no qual seus integrantes são altamente críticos quanto a forma de se escrever na Internet, se poderia criar um ambiente na web no qual, diferentemente dos inúmeros sites e portais que sugerem as mesmas regras gramaticais e “dicas” de redação, se possa estabelecer contatos entre os agentes envolvidos no ensino-aprendizagem (lingüistas, gramáticos, professores, educadores e alunos) para discussão que leve a um consenso sobre o que precisaria ser mudado e, assim, a uma nova configuração da gramática, de seu ensino e da sua aprendizagem. Esse grupo de agentes constituiriam, segundo Lévy, um coletivo inteligente atuando no ciberespaço:
Os conhecimentos vivos, os savoir-faire e competências dos seres humanos estão prestes a ser reconhecidos como a fonte de todas as outras riquezas. Assim, que finalidade conferir às novas ferramentas comunicacionais? Seu uso mais útil, em termos sociais, seria sem dúvida fornecer aos grupos humanos instrumentos para reunir suas forças mentais a fim de constituir intelectuais ou “imaginantes” coletivos. (Lévy, 2003, p. 25).
Essa troca de conhecimentos não significaria uma acomodação às formas populares da escrita, nem uma completa mudança na gramática e nas formas de ensino. Considera-se aqui que a forma culta, mesmo que imaginada em um “nicho” do saber, não pode nem deve ser nunca ignorada. Mas é possível que uma implicação mais interativa entre os agentes desse saber chegasse a um denominador comum sobre o que mudar, como mudar e como aplicar e a quem aplicar essas mudanças. Uma vez que o resultado final de onze anos de estudo nos níveis fundamental e médio até hoje apresenta uma falha de expressão escrita do estudante, as idéias de Bagno, se postas em prática, implicam em de troca de idéias, aceitações de opiniões, rompimento ou
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Considerações finais
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adaptação de tradições, consenso. A mudança de atitude em relação ao ensino envolve um conjunto de fatores necessários ao convívio e bom entendimento social. Por fim, entende-se aqui que fazer um adolescente se empenhar no desenvolvimento da própria redação, em contato com um grupo mais amplo de atores da escrita, pode ser o início de uma busca na qualidade textual. Segundo Lévy, “nenhum grande entardecer fará surgir o Espaço do saber, mas muitas pequenas manhãs” (2003, p. 123). Que esta dissertação possa se converter em uma pequena, mesmo mínima manhã a ajudar na engenharia do laço social no que se refere a uma melhor construção da escrita.
ApĂŞndices
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Apêndice 1 - O blog “Ciber-Texto” Inicialmente idealizado como um portal, o ambiente virtual definido para esta experiência se constituiu em um blog, devido aos recursos disponíveis na web para construção desse tipo de ambiente. Como já explicado, a finalidade inicial do blog será a de suporte online para uma oficina de textos, onde serão expostas as redações feitas pelo grupo focal. O blog consta das seguintes seções: 1. Área com o nome do blog e explicação sobre sua finalidade; 2. Título do blog: Ciber-Texto. 3. Endereço: http://edcastro.blogspot.com 4. Explicações do objetivo do blog. 5. Descrição do objetivo do projeto. 6. Postagens dos textos finais, publicados com citação da fonte, com o texto que lhe deu origem, nome e idade do autor. 7. Informações aos visitantes sobre meios de contatos com os sujeitos envolvidos com o portal, ou seja, alunos, professor e autor do projeto, com endereço de e-mail. 8. Texto sobre momentos históricos da escrita, tendo como principal referência o paleólogo Charles Higounet. As considerações sobre a escrita e a evolução das sociedades possibilitam uma fundamentação da importância da escrita para o homem.
Aspecto do blog Ciber-Texto (http://edcastro.blogspot.com)
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Apêndice 2 – Conteúdo para o blog sobre a história da escrita
O texto a seguir apresenta um resumo da trajetória da escrita, para publicação no blog, com o objetivo de servir como fonte de pesquisa. Foi redigido para esta dissertação, a partir de consultas tendo como bases bibliográficas principais José Juvêncio Barbosa e Charles Higounet, e sites temáticos sobre a história da escrita. Aspectos da escrita na História da humanidade A evolução da escrita não se dá em linha reta, não é movida pela inevitabilidade, mas pela História. José Juvêncio Barbosa
Dada a inexistência de organização e padronização nas representações gráficas das pinturas rupestres, estas não são consideradas exatamente escrita, mas criptografias aleatórias que pretendem transmitir sua mensagem, gravadas em um material da natureza. Por isso mesmo, é possível fazer uma analogia entre aquelas gravuras e a escrita: ambos os casos buscam registrar algo, de alguma forma, para determinado grupo, para aquele momento ou para a posteridade. A antropóloga Cláudia Pires afirma: Sobre a relação entre a «linguagem simbólica» – expressa através de símbolos abstractos pintados – e a sua intenção, digamos que foi através destas imagens que o homem entendeu que podia fazer passar uma mensagem, um pensamento, o seu estado de espírito, etc. Estas pinturas demonstram o valor que os homens da pré-história conferiam às suas criações. O conjunto destes desenhos-escrita, passíveis de serem compreendidos por todos os membros de um mesmo grupo, tomam a designação de pictogramas. Pertencem, pois, ao conjunto das escritas pictográficas, que no grego significam descrição da imagem, para servir de símbolo. (www.revista-temas.com) (negritos nossos).
As semelhanças entre as pinturas paleolíticas e a escrita também estão nos instrumentos e suportes para execução de ambas as técnicas, que trazem a mesma idéia principal, em dois momentos distantes entre si cerca de milhares de anos: um objeto com o qual se vai desenhar ou escrever (utilizando para isso pedra, materiais inorgânicos e orgânicos à base de tintas vegetais e minerais, e pena, caneta ou lápis) e outro no qual será registrado o assunto pretendido (a rocha ou um papel). Com esses instrumentos, os homens das cavernas foram os primeiros a dispor de um tipo de registro usado até hoje, a ideografia, cujo grande número de símbolos que a compõem permite que seja utilizada e interpretada em qualquer
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lugar onde seu significado seja correspondente, como os desenhos das placas de trânsito, por exemplo. Portanto, as figuras rupestres talvez representem o mais remoto exemplo de que um registro impresso adquire preeminência sobre a oralidade, no que diz respeito a uma mensagem escrita permanecer o máximo possível em seu estado representativo original, suportando o tempo e condições naturais do ambiente, e permitindo que gerações milênios mais tarde apreciem e teçam conjecturas sobre uma forma social que não deixou outro vestígio, em vida, de como o homem primitivo se comportava e como observava seu meio ambiente. A arte primitiva é um legado de inscrições em rochas que desafiou o tempo, sobrevivendo há milhares de anos e ainda transmitindo informações sobre uma civilização inexistente, mesmo depois do surgimento da escrita como um marco da História. A escrita causou uma revolução tão significativa nas comunicações, que os historiadores estabeleceram o encerramento da Pré-História e o nascimento da História no período em que o homem começou a escrever. Segundo Fábio Costa Pedro e Olga M. A. Fonseca Coulon (1989), o fim da Pré-História ocorreu primeiramente no Oriente Próximo, com o surgimento da escrita ligado à evolução das primeiras civilizações urbanas, na região entre os rios Tigres e Eufrates, na Mesopotâmia, cerca de 40 séculos antes da Era Cristã. Mas essa passagem histórica não se deu ao mesmo tempo em todas as partes do nosso planeta. Somente muitos milênios depois a Pré-História findou na América, na África Central e na Austrália, com a conquista dessas regiões pelos europeus, a partir do século XV. Isso demonstra que por mais de cinco mil anos, a escrita manteve-se na vanguarda como um dos marcos iniciais da História. Com essa reputação, a escrita adquiriu autonomia e independência, tornando-se objeto de necessidade de domínio mundial. Também transcendeu em fama aos seus inventores e aos que a têm aperfeiçoado no processo contínuo da evolução das civilizações. Conforme José Juvêncio Barbosa, seus criadores são completamente desconhecidos. Ironicamente, não há informações de que seus idealizadores, criadores, nem os grupos especializados que a aprimoraram ao longo da história, deixaram registrados seus nomes em algum objeto, utilizando seu próprio invento. Apesar desse anonimato, Barbosa afirma que a invenção da escrita é um dos fatos responsáveis pelos desenvolvimentos na antiguidade: Na realidade esta, como muitas “invenções” do gênio humano, pode ser considerada como aprimoramento de algo que já era anteriormente conhecido. Infelizmente não conhecemos o nome de nenhum dos autores das reformas mais importantes na história da escrita. Seus nomes, como o de tantos outros grandes homens, responsáveis por melhorias essenciais da vida humana (como por exemplo
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o uso prático da roda, do arco e flecha, da embarcação a vela) perderam-se para sempre no anonimato da Antiguidade. (BARBOSA, 1991, p. 34).
Apenas se conhecem épocas, povos e locais de onde se deram os primeiros registros escritos, os chamados cuneiformes, desenvolvidos pelos sumérios na Mesopotâmia, por volta de 4.000 a.C., embora alguns historiadores situem seu aparecimento há mais de seis mil anos. Barbosa (p. 35) afirma que “o primeiro registro que se conhece é uma pequena lápide, encontrada nos alicerces de um templo em Al Ubaid. O construtor do templo escreveu nela o nome do seu rei. Esse rei pertenceu a uma dinastia entre 3150 e 3000 a.C.”. A existência da escrita distingue-se como um marco das formas de expressão, não apenas por sua capacidade de registrar a História, representar a fala ou idéias, ser apreendida e decodificada pelo entendimento humano, mas também por ultrapassar limites geográficos, sobreviver épocas, ajudar a construir ou desconstruir culturas, universalizar religiões, idéias, pensamentos, sofrer mutações pelas mais diversas causas, entre elas as transliterações e as traduções, e, ainda assim, ter a possibilidade de permanecer como originalmente foi produzida. O desenvolvimento dos métodos de agricultura e do comércio, e as distâncias entre as cidades entre as quais se estabeleciam relações de troca, são tidos como os responsáveis pelos primeiros registros escritos, ante a necessidade de controle administrativo, de registros contábeis e de se saber com exatidão onde se situavam os distantes pontos de abastecimento e quais as rotas a seguir para os alcançar. Conseqüentemente, se tornou imprescindível o desenvolvimento de sistemas de pesos e medidas, só possíveis com recurso à matemática, – que implica também alguma forma de notação gráfica –, e de mapas e cartas. Assim, a escrita teria sido criada primeiramente para atender a uma necessidade prática de informação agro-comercial, em vários lugares. Lévy estabelece paralelos entre o desenvolvimento da agricultura e o da escrita, ambas como reformuladoras de conceitos de tempo e espaço, e esclarece que o surgimento da escrita não foi um fato causado por uma única sociedade: A escrita foi inventada diversas vezes e separadamente nas grandes civilizações agrícolas da Antigüidade. Reproduz, no domínio da comunicação, a relação com o tempo e o espaço que a agricultura havia introduzido na ordem da subsistência alimentar (LÉVY, 1993, p. 87).
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A relação da escrita com a agricultura é apenas um dos aspectos54 evidenciados por Lévy, cuja visão analógica – e até poética – relata uma semelhança entre esses dois processos do Neolítico, a agricultura e a técnica de impressão em argila, demonstrando as suas características em comum, sintetizando séculos de uma relação entre tecnologia da escrita e processo agrário: O escriba cava sinais na argila de sua tabuinha assim como o trabalhador cava sulcos no barro de seu campo. É a mesma terra, são instrumentos de madeira parecidos, a enxada primitiva e o cálamo distinguindo-se quase que apenas pelo tamanho. O Nilo banha com a mesma água, a cevada e o papiro. Nossa página vem do latim pagus, que significa o campo do agricultor. (LÉVY, 1993, pp. 87-88).
Além de registrar graficamente os movimentos agro-comerciais daquelas civilizações, os símbolos impressos tiveram suas aplicações em outras esferas das atividades do homem, onde diversos conhecimentos começaram a ser desenvolvidos, como a Astronomia, o Direito, a Poesia etc., muitos dos quais puderam ter condição de deixar seus locais originais graças às inscrições, e posteriormente puderam ser reproduzidas com o auxílio de outras técnicas, transcorrendo tempo e espaço e permanecendo através da cronologia: A escrita abriu um espaço de comunicação desconhecido pelas sociedades orais, no qual tornava-se possível tomar conhecimento das mensagens produzidas por pessoas que encontravam-se a milhares de quilômetros, ou mortas há séculos, ou então que se expressavam apesar de grandes diferenças culturais ou sociais (LÉVY, 2000, p. 114).
Para exemplificar a evolução dos registros gráficos resume-se aqui sete momentos da humanidade nos quais se formaram e evoluíram sistemas e algumas técnicas de escrita. Citam-se aqui exemplos de algumas performances das mais imprescindíveis na evolução da escrita e no seu serviço prestado às civilizações. Das atividades sócio-econômicas da Mesopotâmia, do ritualismo Egípcio, dos alfabetos do Oriente Médio, Fenício, Grego, do Império Romano até a formação da língua portuguesa, veremos que essa evolução influenciou fortemente a formação da língua e até a própria formação de nações.
54 Outros aspectos são a relação da escrita com o Estado, com a tradição hermenêutica, com o saber teórico, com a organização dos conhecimentos, com a racionalidade, com a História, a memória e a verdade, entre outros. Para saber mais: As tecnologias da inteligência, capítulo “A escrita e a História”.
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Ciências e literatura na Mesopotâmia O principal uso da escrita cuneiforme foi na contabilidade e administração, como registro de bens, marcas de propriedade, cálculos e transações comerciais. Essas informações eram gravadas em tabletes de argila com estiletes. Mas outras atividades se estabeleceram auxiliadas pela escrita, como a Astronomia, o Direito e a Literatura. Textos sobre o movimento dos astros e calendários mesopotâmicos escritos entre 650 e 50 antes da nossa Era, chegaram até os dias atuais conservados em tábuas de argila. Consistem em diários sobre astronomia e constituem umas das primeiras observações de especialistas: escribasastrônomos profissionais, que usavam um conjunto de 30 estrelas como referências para posições celestes. Seus diários detalhavam as localizações da lua e planetas com relação às estrelas. Na área do Direito, um código de leis da Mesopotâmia representa um dos mais notáveis impressos. Sob as ordens de Khammu-rabi (Hammurabi), rei da Babilônia, 282 cláusulas foram gravadas em 21 colunas, conhecidas como Código de Hamurábi, embora abrangesse também leis mais antigas. O código trata, dentre outros assuntos, das classes sociais, do comércio, da família (divórcio, o pátrio poder, a adoção, o adultério, o incesto), do trabalho (precursor do salário mínimo, das categorias profissionais, das leis trabalhistas), e da propriedade. Uma rápida percepção leva facilmente à constatação de que questões de direito da atualidade já eram levadas a juízo desde a antiguidade, e isso é possível de ser verificado graças à leitura dos símbolos gravados nas colunas. Tem-se no Poema de Gilgamesh contribuição das mais importantes da escrita à arte literária. Considerado a obra-prima da literatura suméria, trata-se de uma narrativa épica dos feitos do rei-herói Gilgamesh, que viveu por volta de 2700 a.C., na antiga cidade de Uruk (a Erech bíblica), na Mesopotâmia. Foi o sexto rei após o Dilúvio. No poema consta que, após retornar de suas viagens, o próprio rei o escreveu, numa estela55 de pedra que colocou na base das muralhas de Uruk. Teria sido escrito poucos séculos (quatro a seis) após a invenção da escrita. Este é talvez o primeiro personagem a registrar sua história.
55
Pedra vertical monolítica, em que os antigos faziam inscrições ou esculturas.
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As escritas do Egito Os egípcios possivelmente foram responsáveis por introduzir a primeira redefinição no suporte e formas da escrita em relação ao processo cuneiforme. Diferentemente dos sumérios que cunhavam suas inscrições de formas triangulares em tábuas de argila, os egípcios usavam a forma material do livro, com o uso do papiro em forma de rolo, o emprego da tinta e a utilização das ilustrações como complemento explicativo do texto. Eles possuíam duas formas de escrita: os hieróglifos (figuras entalhadas sagradas), e a escrita hierática, de uso mais fácil e mais corrente, que permitia fazer anotações rápidas. Os hieróglifos eram sinais sagrados gravados (do grego hieros, “sagrado”, e glypheinI, “gravar”) que os egípcios consideravam ser a fala dos deuses (...) essa era uma escrita de palavras (HIGOUNET, 2003, p. 37). O sistema egípcio de escrita já reproduzia quase que totalmente a língua falada, pois alguns dos seus pictogramas já representavam sílabas. Além dos pictogramas, era formado por fonogramas (representação de sons) e outros signos determinantes. Naquela civilização, a escrita está estreitamente ligada aos registros de rituais sagrados, colheitas, estações e movimento de cheia e vazante do Nilo. Por seus fonogramas, podemos dizer que a escrita egípcia já constituía uma idéia mais ou menos aproximada de um alfabeto, pois já trazia uma característica de representações silábicas. Durante séculos os hieróglifos permaneceram enigmáticos, até o francês François Champollion decifrar a Pedra de Rachid56 (Roseta, em árabe) descoberta pelas tropas de Napoleão em 1822. Entretanto, passaram-se 23 anos desde a data de sua descoberta até que Champollion pudesse decifrar integralmente o seu conteúdo. A Pedra de Roseta é talvez o primeiro objeto com inscrição poliglota da História. Na parte superior, há uma escrita hieroglífica com 14 linhas; o texto intermediário contém 22 linhas de uma escrita egípcia cursiva, conhecida como demótico. A terceira divisão da pedra é ocupada por uma inscrição de 54 linhas em língua e caracteres gregos. Higounet considera essa escrita uma das mais importantes do mundo antigo. Apesar de seu emprego ter ficado limitado à língua e regiões egípcias, a decifração da Pedra de Roseta marca uma das maiores contribuições do Egito à História, pois tornou possível a decodificação de outras inscrições antigas.
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Consiste numa estela de basalto negro, que numa das faces, bem polida, mostra três inscrições em três caracteres diferentes. Os três textos reproduzem o mesmo teor de um decreto do corpo sacerdotal do Egito, reunido em Mênfis, em 196 a.C., para conferir grandes honras ao rei Ptolomeu V Epifânio (205 a 180 a.C.), por benefícios recebidos.
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Sobre as origens do alfabeto Segundo Higounet, “o alfabeto pode ser definido como um sistema de sinais que exprimem os sons elementares da linguagem” (2003, p. 59). Este sistema, com suas técnicas e instrumentos, configura outra redefinição no processo da comunicação escrita, que não consiste primeiramente na invenção de uma série de signos gráficos, mas na decomposição da palavra em sons simples, em que cada qual é representado por um só signo. Não mais a pictografia, ou a ideografia, desenhos representando idéias, mas sinais que, evoluindo daqueles desenhos, representam diretamente os sons da fala. Cagliari demonstra algumas evoluções de formas pictográficas que mais tarde se tornariam as letras do alfabeto como as conhecemos hoje: O a era a representação da cabeça de um boi na escrita egípcia. Em grego, o alfa se escreve α. O b era a representação de uma casa egípcia. O d era a figura de uma porta. O m era o desenho das ondas da água. O n era o desenho de uma cobra. O era a figura de um olho. O x representava o peixe, e assim por diante. (CAGLIARI, p. 108)
O Alifato e seus derivados Uma representação mais próxima de um alfabeto surgiu com o aparecimento do Alifato57, que ao contrário dos escritos egípcios, não se restringiu a uma região. O Alifato se configurou na Síria, Fenícia e Palestina, constituído por 28 letras e escrito da direita para a esquerda e também derivou outros sistemas de escrita. Era dividido em dois subgrupos: o fenício, que derivou o alfabeto grego; e o aramaico, derivando o alfabeto hebreu e o árabe. As vogais não eram totalmente representadas em alguns desses alfabetos58. Este sistema de escrita incide decisivamente na história das grandes religiões. Traduzindo os textos sagrados de seus derivados aramaico e hebreu, transcreveu alguns textos dos livros do Antigo Testamento.
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Primórdio do alfabeto árabe. Sua letra inicial, o alif, origina o seu nome. Permita-se aqui um parêntese interessante: há uma semelhança entre a escritas hebraica e algumas palavras nos chats da Internet. O alfabeto hebraico não possuía vogais. Nos chats, por questão de dinâmica, palavras como “também”, “você” e “beijos”, não só perderam as vogais, como algumas consoantes, mas que são perfeitamente compreensíveis pelos internautas.
58
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Fenícia, berço dos alfabetos? A Fenícia se situava na planície costeira do que é hoje o Líbano e a Síria, no Mediterrâneo oriental (Wikipédia, verbete Fenícia). O historiador grego Heródoto atribui aos fenícios
as
primeiras
inscrições
de
fato
alfabéticas
(Nicholas
Fabian,
www.kfssystem.com.br/loubnan/fenicio.html ), mas pesquisas atuais têm mostrado vestígios de um alfabeto anterior, chamado escrita proto-sinaítica, utilizado na península do Sinai. O alfabeto fenício apareceu pela primeira vez em Biblos59 e é considerado a origem dos alfabetos atuais. Apesar do pretenso pioneirismo fenício, não há literatura ou registros escritos em materiais resistentes ao desgaste do tempo. O que se sabe da sua escrita provém de curtas inscrições em pedra. Com os dados que se apresentam hoje, pode-se entender que a construção das palavras, assim como o alfabeto árabe e o hebraico, não tinham símbolos para representar sons de vogais. Cada símbolo representa uma consoante. As vogais precisavam ser deduzidas no contexto da palavra. Com 22 sinais, esse alfabeto foi utilizado por volta do final do século 12 antes de Cristo. Consistia-se em sinais com precisão de formas, que dispostos ordenadamente em determinada combinação representavam graficamente, cada um, o respectivo som dos fonemas de uma linguagem oral. Por essas qualidades, muitos historiadores consideram que este alfabeto, composto de vinte e duas consoantes, chegou próximo da perfeição: Em seu livro “O Choque do Futuro”, Toffler afirma que 95% das invenções do homem se realizaram no decorrer do Século XX. Entre os 5% dos tempos antigos, figura o alfabeto fonético de Biblos. A invenção desse alfabeto operou uma revolução. Com menos letras, obtém-se maior precisão e mais clareza. Podemos descrever os sentimentos da alma, analisar o pensamento. As outras escritas não podiam propiciar essa fidelidade absoluta. (Extraído do texto O Alfabeto, do site www.libano.org.br/pagina47.htm , da embaixada do Líbano no Brasil).
Os paleógrafos60 acreditam que os fenícios foram responsáveis pela expansão desse sistema de escrita pelo mundo antigo. Pode-se afirmar que o assunto vagueia entre o real e o mítico, na história do rei Cadmo61. Nessa história, alfabeto e poder militar são intrínsecos, como expressa Emanuel Dimas de Melo Pimenta: 59
Primeira cidade fenício-libanesa estabelecida, situada 37 quilômetros ao norte de Beirute. Nela, Cadmo inventou o alfabeto fonético. O nome Biblos tem origem na comercialização intensa do papiro na cidade. Biblos deu seu nome à Bíblia. 60 Especialistas na arte de decifrar escritos antigos. 61 Cadmo é um misto de personagem real e mitológico. Filho do Rei da Fenícia, foi o primeiro rei de Tebas, cidade fenícia. Segundo a tradição grega, Cadmo legou aos gregos o uso do alfabeto, ensinando-lhes a ler e a escrever.
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“Cadmo, o mitológico rei que terá introduzido as letras do alfabeto na Grécia, semeou os dentes de um dragão com o qual lutara. Desses dentes nasceram homens fortemente armados”. Cadmo não sabia como controlá-los e tratou de atirar pedras, de forma tribal, sem planos, aleatoriamente, fazendo com que aqueles homens desconfiados de si próprios matassem uns aos outros. Só depois, com apenas cinco sobreviventes, Cadmo conseguiu assumir a autoridade da liderança. Como mostrou McLuhan, o alfabeto significava para a Grécia Antiga o poder, a autoridade e o controle de estruturas militares a distância. Cadmo representa uma transição de tecnologias. Os dentes do dragão semeados geraram o poder que acabou com as cidades-estado e que permitiu a exuberância do Império Romano. Foi o "ruído" produzido pelas pedras de Cadmo o responsável pela desarticulação daquele exército”. (trecho de Natureza, artefactos e percepção sensorial).
Embora a mitologia propale que Cadmo seja o herói que inventou e difundiu o alfabeto, uma versão, menos abstrata, porém bem possível, é a de que os gregos – assim como outras civilizações – tivessem mais facilidade de apropriação do alfabeto fenício em relação aos demais alfabetos por uma questão prática de contato comercial com aquele povo. Os fenícios eram os mais desenvolvidos na técnica das embarcações e no comércio, o que permitia manter intenso comércio marítimo com outros povos: Ora, o comércio é a atividade econômica que mais exige o registro de suas transações: assinaturas de contratos, recibos de mercadorias etc. Assim, da necessidade de simplificar as escritas já existentes (egípcia e mesopotâmica) surgiu o alfabeto fenício, que tornou possível uma difusão maior da habilidade de escrever, até então privilégio de uma minoria. (AQUINO e outros, 1980, p. 123).
De fato, os avanços tecnológicos marítimos possibilitaram o desenvolvimento do comércio, e tanto, que Rubim Santos Leão de Aquino (1980, p. 122) recorre a uma passagem bíblica advertindo a soberba dos fenícios, por causa do desenvolvimento comercial e marítimo: “(...) foste cheia de bens e te glorificaste muito no meio dos mares” (Livro do profeta Ezequiel, 27, 25). Aquino também sugere uma relação entre os processos avançados da escrita e uma outra advertência onde “Pela extensão da tua sabedoria, pelo comércio aumentaste o teu poder; e eleva-se o teu coração por causa do teu poder” (Ezequiel, 28, 5. Itálicos do autor). Uma análise sobre este versículo e um questionamento de Aquino sugere que estão implícitas as relações entre o domínio da escrita e o poder. O autor interage com o leitor: “Agora, pense um pouco... Seria essa maior difusão da habilidade de escrever que Ezequiel procurou
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expressar quando falou: “pela extensão da tua sabedoria”? Talvez sim, talvez não, mas não deixa de ser uma forma de interpretá-la. Você teria outras?” (p. 123).
Alfabeto grego: a inovação das vogais De qualquer forma, “o mais famoso resultado desse processo é o alfabeto grego, em grande parte devedora da invenção fenícia” (www.israel3.com/ftopict-1227.html). Segundo Rubem Alves, os filósofos gregos foram os pioneiros a perceber realidade imbricada à linguagem de palavras: A realidade, para ser vista em sua maravilhosa nudez, só pode ser vista – pasmem! – com o auxílio de palavras. As palavras são os olhos da ciência. “Teorias” e “hipóteses”: esses são os nomes que esses olhos comumente recebem [...] A ciência, assim, pode ser descrita como um strip-tease da realidade por meio de palavras. E o que é que a gente vê, ao final do strip-tease? A gente vê uma linguagem... Quem percebeu isso em primeiro lugar foram os filósofos gregos... (ALVES, 1999, p.101).
Embora os fenícios sejam considerados os principais precursores do alfabeto grego, há indícios de que os gregos tiveram a origem da sua escrita no Oriente Próximo antes do tempo dos fenícios. Os gregos foram um dos primeiros povos a representar graficamente não idéias, nem sílabas, mas os próprios sons das letras, a menor parte decomposta de uma palavra. Com os desenhos dessa decomposição, houve um incremento significativo do alfabeto grego em si mesmo e para as escritas dele derivadas, a inclusão das vogais. Junto às consoantes, as vogais compunham ao todo 24 letras. Higounet chama atenção para este fato, comentando que “o modo como se fez a notação das vogais merece um pouco mais de atenção, pois foi com essa inovação que o alfabeto grego se tornou o ancestral de todos os alfabetos europeus modernos” (HIGOUNET, 2003, p. 89). Conclui-se, portanto, que este alfabeto tem importância singular para a civilização ocidental atual. A inclusão das vogais é apenas um item no currículo deste alfabeto, que transmitiu para outros povos os conhecimentos da cultura grega, a mais rica da Antiguidade, bem como de seus mitos e filosofia; permitiu a difusão do Novo Testamento no mundo até então conhecido, que depois foi traduzido para outras línguas; a Grécia estendeu a produção e comércio de livros, generalizando-se a leitura individual, reforçada com a existência de bibliotecas públicas e privadas; e esse alfabeto “foi também o intermediário ocidental entre o
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alfabeto semítico e o alfabeto latino, intermediário não apenas histórico, geográfico e gráfico, mas estrutural, pois foram os gregos os primeiros a terem a idéia da notação integral e rigorosa das vogais” (HIGOUNET, 2003, p. 87). Muitas outras escritas surgiram a partir do alfabeto grego, especialmente na Ásia Menor. Através daquele alfabeto, o Egito redefiniu a sua escrita para o copta62. A escrita gótica também surgiu a partir dele. Devido a sua grande influência no latim, o grego é origem de muitas palavras e afixos da língua portuguesa e de outras línguas latinas. Com o domínio do império romano, o latim se impõe como língua e escrita dominante, mas a escrita dos primeiros documentos latinos que se conhecem denotam uma forte ligação de origem e de adaptações de uma escrita grega (HIGOUNET, 2003, p. 103). A partir deste momento, vemos em uma região européia uma mudança brutal tanto nas linguagens, como na forma em que foram estabelecidas, que estendeu seu impacto ao resto do mundo. Em contraste com as reformulações lingüísticas pacíficas que configuraram as escritas em outras épocas, o latim se expandiu e se instituiu por algumas terras de forma beligerante. Enquanto outros alfabetos surgiram para conveniências das civilizações, ou de adaptações e influências de uns para outros povos, a língua e o alfabeto latinos foram adotados em muitas regiões por uma imposição do império romano. No entanto, esse alfabeto não era completamente autóctone da Itália, constituiu-se de algumas formas gregas e do alfabeto etrusco63, que, segundo Higounet (2003, p. 105), também tinha em sua escrita vestígios de origem Grega. Das regiões do Lácio64 aos limites daquele império, as dominações romanas “impunham aos vencidos seus hábitos, suas instituições, os padrões de vida e a língua” (www.portugues.com.br/historia.htm). Nas regiões da Itália eram reconhecidas pelo menos duas modalidades de latim: o clássico, usado pelas pessoas cultas, falado e escrito; e o vulgar, usado pelo povo, apenas falado e de onde se originou a língua portuguesa. A língua falada nas regiões romanizadas era o latim vulgar. A mistura dos idiomas dominados com o dominante deu origem a diversas línguas e dialetos da Europa. Esse foi apenas o início de uma série de interferências nos idiomas da região provocadas pela aculturação violenta de povos. Ironicamente, uma das línguas latinas imposta à base da subjugação deu origem a um termo que mais tarde sofreria uma redefinição e passaria a ser relacionado aos sentimentos do amor. Na fase de expansão do império romano no oeste da Península Ibérica, atuais 62
Nome de uma população e língua indígena do Egito. Os etruscos dominaram a Itália nos séculos VII e VI a.C. 64 Região central da atual Itália, onde posteriormente foi fundada a cidade de Roma. 63
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Portugal e região da Galícia, foi difundido o romance nessa região. Ao contrário do significado mais conhecido hoje pelos indivíduos enamorados, o romance (derivado do romanismo), foi a língua obrigada aos povos dominados, de 218 a.C. ao século IX. Era uma variante do latim que constitui um estágio intermediário entre o latim vulgar e as línguas latinas modernas (português, castelhano, francês, etc.) (www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_2.2.php). A imposição do latim foi tão veemente, que essa língua sobreviveu a outras ocupações. A primeira delas foi à instalação de povos germânicos, de 409 d.C. a 711, que adicionou ao léxico da península algumas palavras correspondentes à agricultura e à guerra. A segunda foi a invasão moura, que a partir de 771 d.C., instituiu o árabe como língua oficial. Algumas contribuições dessa ocupação ao vocabulário português atual são “arroz”, “alface”, “alicate” e “refém”. O nome “Estreito de Gibraltar”, da passagem entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico, veio do termo árabe Jabal Tarek (Gibraltar). Mas, nessas fases de presença estrangeira o idioma falado pelos ocupantes nunca conseguiu se estabelecer totalmente, a população dominada continuou a falar o romance. Este resumido panorama do avanço dos romanos na Península Ibérica, determinando a primazia da linguagem oral e escrita latina sobre as outras línguas, tanto as das ocupações posteriores à do império romano, como as línguas locais, demonstra o estabelecimento da língua como uma das mais fortes afirmações de identidade nacional, uma condição indispensável para que um povo estabeleça as relações de poder sobre povos subjugados. A formação da língua portuguesa Última flor do Lácio, inculta e bela és a um tempo esplendor e sepultura. Olavo Bilac
A subseqüente interferência estrangeira na Península Ibérica ocorreu quando os cristãos expulsaram os árabes daquela região, no século XI. Os dominadores anteriores se viam obrigados a seguir para outras regiões e davam lugar aos sucessores, mas o romance permaneceu dando formas às oralidades daqueles povos, até formar as línguas respectivas de cada povo. Como em todo surgimento – ou transformações – de uma língua, o processo de estruturação do idioma português foi longo e muito complexo. O português ainda não era um idioma localmente específico, dividia o mesmo espaço com o galego (da Galícia, uma parte da atual Espanha) e com outros dialetos. A
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seqüência de êxodos provocados pelas invasões, além de colaborar na construção das línguas de cada região, acabou por constituir geograficamente o atual Portugal e Espanha. A independência de Portugal, em 1185, também significou a independência dos idiomas galego e português. Na história da língua portuguesa podemos destacar pelo menos duas fases: a do português arcaico65 (sécs. XIII a 1536/1540), ou seja, em fase de formação, porém já com certo estilo, e o português moderno, que começou a ser formado a partir do século XVI, com o aparecimento das primeiras gramáticas que definem a morfologia e a sintaxe. Nesta época o português já é, tanto na estrutura da frase quanto na morfologia, muito próximo do atual (Medeiros, www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_2.5.php ). Com resquícios da forma de imposição romana sobre os povos conquistados, nos séculos XIV a XVI o domínio português expandiu-se para várias regiões da Ásia, África e América, e um processo de posse deu origem aos países hoje chamados lusófonos: os que têm a língua portuguesa como idioma oficial. Mais uma vez se legitima a força da linguagem como uma das mais fortes expressões de identidade nacional imposta a outros povos. Felizmente a língua portuguesa não se limitou a ter uma origem apenas do latim vulgar. Graças ao alfabeto grego, o estigma de uma origem considerada inculta não é cabal para a identidade nacional de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e Timor Leste. “É ainda falada na antiga Índia Portuguesa: Goa, Damão, Diu e Dadra e Nagar Haveli, na actual União Indiana e por numerosas comunidades de emigrantes de fala portuguesa em várias partes do mundo” (Wikipédia, a enciclopédia livre). A língua portuguesa chegou ao Brasil, no século XVI, já com as influências dos povos germânico e árabe. Ao “desembarcar” em terras brasileiras, a língua portuguesa encontrou resistências por parte dos nativos, mas foi se estabelecendo com fortes interferências indígenas e africanas. Houve contribuições italianas na época do Renascimento. Durante a colonização, as invasões do país pelos espanhóis e franceses acrescentaram ao léxico do Brasil termos daqueles povos. Assim, o português no Brasil assumiu algumas características distintas da língua falada em Portugal, configurando uma identidade mais específica. Moacyr Scliar relata algumas preocupações e providências da Academia Brasileira de Letras (ABL) a respeito
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No Renascimento houve acréscimos de italianismos e palavras eruditas de derivação grega. Foi um período de consolidação da língua no(ou de utilização do português arcaico) que terminou marcado pela publicação do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, em 1516 (www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_2.5.php).
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dessas diferenças. Entre os procedimentos de uma padronização da língua do Brasil, Machado de Assis, em 1897, elaborou um regimento da Academia Brasileira de Letras, com o propósito da criação de um vocabulário crítico de brasileirismos introduzidos na língua portuguesa. Deste documento, sucederam-se várias tentativas, em intervalos irregulares de tempo, de organização de um dicionário para a língua portuguesa do Brasil: [...] Foi então editado um Dicionário de Brasileirismos, com base em levantamento feito por João Ribeiro. Em 1910, sob a presidência de Rui Barbosa, a Academia formulou um objetivo mais ambicioso: tratava-se de elaborar um verdadeiro dicionário brasileiro da língua portuguesa. Dez anos se passaram e o dicionário não apareceu. A idéia foi retomada em três novos projetos, um de Mário de Alencer, outro de Laudelino Freire o um terceiro de Graça Aranha - este, inspirado pelo movimento modernista, propunha dar ênfase aos "chamados brasileirismos", e, ao contrário, eliminar os "portuguesismos". A proposta gerou polêmica; a Academia nomeou uma comissão para elaborar o dicionário - comissão esta desfeita em 1934, sem concluir o trabalho. Em 1940, Afrânio Peixoto, cansado do que ele chamava "obra de Penélope" (a mulher de Ulisses, que, esperando o aventureiro marido, tecia de dia e desfazia o trabalho à noite), assume a responsabilidade da tarefa, confiando-a a Antenor Nascentes, catedrático do Colégio Pedro II, que, em 1943, entrega à Academia um dicionário com 100 mil verbetes (SCLIAR, 2005) 66.
Hoje, além deste dicionário, o Brasil conta com o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o dicionário Michaelis, o dicionário Koogan-Houaiss (enciclopédico; Antônio Houaiss trabalha em um outro dicionário, muito mais amplo) entre outros.
66
À
época
da
elaboração
desta
www.minc.gov.br/textos/olhar/linguaportuguesa.htm.
pesquisa Outro
esse
texto
possível
encontrava-se endereço
é
portugues.blogspot.com/2005/09/lngua-portuguesa-por-moacyr-scliar.html (acesso em 08/10/2007).
no
site
http://falar-
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Anexos Quem, além de mim, lerá estas frases? (Anne Frank, 20 de outubro de 1942, em seu diário escrito no Anexo Secreto).
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Anexo 1 Tem uma redação no meio do caminho Artigo publicado no site www.portrasdasletras.com.br (a data do artigo não está definida no site) Acabou a colher de chá. Quem quiser entrar na universidade, que trate de caprichar na redação. Uma portaria do MEC tornou a prova obrigatória e eliminatória em todo e qualquer concurso vestibular. Para Reginaldo Pinto de Carvalho, consultor do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a decisão não poderia ser mais acertada. Por que os alunos vão tão mal na redação? Eis um belo mote para dissertação, com ingredientes de sobra para um debate acalorado. Por muito tempo, porém, em vez de procurar argumentos, defender pontos de vista e buscar soluções, muita gente preferiu fugir do tema. Até que, de tanto empurrá-lo com a barriga, a polêmica foi parar na tela do Fantástico. Em dezembro de 2001, o programa fazia uma denúncia-bomba: até um semi-analfabeto poderia passar no vestibular. O padeiro Severino da Silva, aprovado nas Universidades Estácio de Sá e Gama Filho, era a prova viva disso. Sua aprovação tinha duas razões. De um lado, os chutes certeiros nas questões de múltipla escolha; de outro, um motivo que nada tinha a ver com a sorte. É que os vestibulares tinham afrouxado tanto o peso da redação que até quem a entregasse em branco ainda tinha chances de conquistar uma vaga. Sobretudo no caso de Severino, em que o curso de Direito tinha mais vagas do que candidatos. Culpa da expansão desenfreada das faculdades particulares? O MEC fazia vista grossa? Para dirimir qualquer suspeita de conivência, o ministro Paulo Renato baixou uma portaria que tornou a redação obrigatória nos vestibulares. Será eliminado o candidato que tirar zero ou não atingir a nota mínima, a ser definida pela instituição que estiver promovendo o concurso. Faculdades isoladas, integradas e centros universitários não têm escolha: terão de incorporar, ao menos parcialmente, a nota da redação do Enem. As regras só valem para os calouros de 2003. Mas, como a nota do Exame Nacional do Ensino Médio ganhou peso, muitos vestibulandos já marcaram na agenda o dia 25 de agosto, data do Enem 2002. Reginaldo Pinto de Carvalho, coordenador de correção do Enem, apóia a decisão. "Essa medida poderá fazer com que a sociedade exerça pressão sobre a escola para que ela cumpra sua obrigação de dotar os alunos das competências para produzir um texto coerente", opina. Para quem tem calafrios só de pensar em redação, ele garante que não há motivos para temer. Em vez de pegadinhas e surpresas, no Enem, ela será uma dissertação de tema "atual", "nacional" e "com circulação garantida nas escolas de Ensino Médio". Carvalho também fala dos critérios usados para garantir uma justa correção e das competências avaliadas. A primeira delas é o domínio da norma culta, que, segundo ele, é o que garante "o pleno exercício da cidadania e a apropriação do saber cultural, científico e social presente nos diversos tipos de textos". Segundo o Inep, o Enem compreende, entre outras coisas, "a competência de produzir textos no sentido amplo do termo". Mas, na prova, há sempre apenas uma proposta de
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redação. A escolha de um tema único não é contrária a esse objetivo de uma avaliação ampla? O modo como é feita a proposta, envolvendo diferentes textos e linguagens que tratam de temas atuais, sob uma ótica também diversa, permite essa avaliação ampla. Deve-se levar em conta que o participante tem várias possibilidades de abordagem do tema, tanto na opção por um determinado ponto de vista quanto na seleção de fatos, opiniões, informações e argumentos que sustentarão seu projeto de texto. Nos moldes atuais do Enem, a redação permite avaliar as habilidades do aluno nas variadas formas de registro escrito da língua portuguesa? A redação do Enem avalia a competência para fazer uso da norma culta da língua portuguesa em sua modalidade escrita. Com um mínimo de onze anos de escolaridade, ao término do ensino básico, espera-se que o participante esteja capacitado para ler e escrever, dominando a norma culta da língua escrita. O exercício pleno da cidadania exige a apropriação do saber cultural, científico e social presente nos diversos tipos de texto em circulação. Textos jornalísticos, didáticos, acadêmicos, administrativos, literários e outros são redigidos em norma culta, tornando-se indispensável o seu domínio. Quanto às outras variedades lingüísticas, o exame estimula o trabalho com elas em sala de aula, incorporando-as em questões da parte objetiva da prova, como se pode verificar em suas edições anteriores. O Enem é um exame nacional, enquanto os vestibulares são exames regionais. Isso não dá margem a distorções? Por exemplo: a escolha de um tema mais urbano, em que um aluno de determinada região sai prejudicado porque, para ele, o assunto é menos familiar ou vice-versa... Estamos convictos de que os temas propostos devem priorizar questões não só atuais, mas também nacionais. Devem ser, portanto, temas que transcendam a qualquer tipo de regionalização e que tenham circulação garantida nas escolas de nível médio, independentemente de sua localização. A propósito, como se dá o processo de seleção do tema da redação do Enem? É correto dizer que a escolha tem sempre ligação com os assuntos de grande destaque na atualidade, com o que está sendo discutido na mídia e nos jornais? Embora eu não tenha acesso a esse tipo de informação, dado o sigilo que o envolve, a julgar pelos temas propostos até agora, é possível dizer que eles tendem a abordar questões de ordem política, social, cultural ou científica, desde que apresentadas como uma situaçãoproblema para a qual o autor do texto deverá propor soluções ou, como diz a Competência V, "elaborar propostas de intervenção para o problema abordado, demonstrando respeito aos direitos humanos". Quanto a estarem essas questões na pauta de discussão da mídia, não creio que isso seja uma obrigação. Falando novamente sobre a realidade dos alunos, o Enem se propõe a usar situações e problemas do dia-a-dia como matéria-prima das questões. Escrever uma carta, um email, uma página de diário, para citar alguns exemplos, não seria algo mais próximo do cotidiano dos alunos? A opção pelo texto dissertativo-argumentativo não desautoriza a escola a trabalhar com outros gêneros ou tipos de texto. Nada impede também que eles sejam utilizados na parte objetiva da prova.
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Uma das características do Enem até agora tem sido justamente a predominância de redações dissertativo-argumentativas... Qual a sua opinião sobre essa opção? Alguns professores acreditam que isso faz do Enem uma prova de redação bem tradicional... A prova de redação do Enem tem priorizado o texto dissertativo-argumentativo porque o considera necessário para a continuidade dos estudos e para o exercício da vida cidadã. Vamos considerar, por exemplo, a importância dessa competência no mundo do trabalho. Ainda sobre as dissertações... Por força do vestibular, esse é o gênero mais explorado no Ensino Médio. Existe o risco de as escolas passarem a orientar as práticas de texto como preparatórias para o Enem, a exemplo do que acontece com o vestibular? Como já dissemos, a parte objetiva da prova pode sinalizar para a escola que ela não deve excluir o trabalho de leitura e produção de textos narrativos, por exemplo. Qual a sua opinião sobre a decisão de tornar eliminatória a prova de redação nos vestibulares? É uma decisão acertada. É importante lembrar que, entre outras conseqüências, essa medida poderá fazer com que a sociedade exerça pressão sobre a escola fundamental e média para que ela cumpra sua obrigação de dotar os alunos das competências necessárias para produzir um texto coerente e adequado às diversas situações de interlocução. Sendo eliminatória, isso reforça a tendência de aumento do número de faculdades que utilizam a nota da redação do Enem. Isso é bom, contribui para aumentar as oportunidades de acesso ao Ensino Superior? Sem dúvida. Levando-se em conta os critérios de correção que adota, o Enem tem conseguido promover a inclusão muito mais do que os vestibulares. Em sua opinião, isso agradará aos alunos? Digamos que um aluno se inscreva em vários concursos e, em todos ou na maioria deles, será adotada a nota de redação do Enem. Isso não pode dar à redação um peso ainda maior do que ela já tem? Cabe às universidades garantir o equilíbrio nessa questão de pesos. No entanto, eu arriscaria dizer que, quanto mais se valorizar a redação, tanto melhor será o ensino. A propósito, que critérios e medidas asseguram uma correção imparcial das redações? Os critérios de avaliação das cinco competências envolvidas na redação procuram verificar o desempenho do participante em uma situação formal de interlocução em que determinado tema é debatido. Espera-se que os participantes produzam um texto com as características do que estava sendo sugerido na proposta de redação e não outro qualquer (tema e/ou estrutura não solicitados na prova). Os responsáveis pela correção vêm desenvolvendo uma metodologia que garante uma correção justa e adequada. Adota-se uma planilha de correção com faixas mais estreitas de notas, devidamente descritas, que garante a objetividade necessária. Cabe lembrar ainda que essa metodologia inclui um período de treinamento dos corretores, quando se trabalha com textos reais, e aí a finalidade é "calibrar" a atuação de cada corretor tendo em vista a planilha. O Relatório do Enem/2001 tem outras informações sobre essa metodologia.
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Como o senhor avalia a evolução das notas da redação do Enem? É possível dizer, a partir desses resultados, se os alunos estão saindo do Ensino Médio escrevendo melhor ou não? Como o último exame incluiu um número muito grande de alunos vindos da rede pública que não tinham participado do exame anterior, é difícil fazer um diagnóstico. Creio que a comparação do exame deste ano com o do ano anterior talvez permita tirar algumas conclusões dessa natureza. (Leia a notícia comentada sobre a queda nas notas do Enem.) A partir dessa análise, o Inep cogita mudanças na redação, ou os alunos podem esperar uma prova nos moldes das edições de anos anteriores? Não tenho dados para responder a essa pergunta de forma objetiva. Posso apenas fazer algumas conjecturas. Como o exame do Enem vem obtendo a aprovação tanto dos alunos que a ele se submetem quanto da maioria dos professores que o acompanham, podemos supor que deverá seguir a mesma linha, isto é, continuará sendo uma prova que avalia competências e habilidades, com base em situações-problema devidamente contextualizadas, e que privilegia a interdisciplinaridade.
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Anexo 2 Os jovens e a internet Maria Cristina Siqueira Folha Dirigida, 03/01/2006 - Rio de Janeiro RJ Os internautas lêem e escrevem mais que a média. Aquela linguagem abreviada, o chamado "internetês", não dificulta o aprendizado da língua. E mais: ao contrário de segregar, a internet agrega. São alguns dos mitos desconstruídos pela professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, Maria Teresa de Assunção Freitas, com sua pesquisa "Sites construídos por adolescentes: novos espaços de leitura, escrita e subjetivação". Questionada se o "internetês" terá força para mudar o português, ela negou, mas disse que a coloquialidade dos textos da internet poderá trazer contribuições à lígua materna, embora seja vista com preconceito por escolas, professores e pais. Referenciada em Bakhtin e Vygotsky, filósofos da linguagem falecidos antes que a chamada Era da Informação entrasse em vigência no mundo, Maria Teresa explica o porquê. "Mikhail Bakhtin diz que a linguagem não está num sistema abstrato de normas e não está só em nossa expressão isolada, mas existe, à medida em que é viva, que está na interação verbal", diz a pesquisadora, complementando que Vygotsky fala que só há pensamento porque há linguagem. Se assim é, a internet estaria contribuindo, também, para a formulação e produção do pensamento? FOLHA DIRIGIDA — A quais conclusões chegou com sua pesquisa em sites produzidos por adolescentes? Maria Teresa Freitas — Foi muito interessante ficar dois anos estudando sites construídos por adolescentes. Nós descobrimos numa pesquisa anterior sobre e-mails de adolescentes em listas de discussão sobre seriados televisivos e em chats, que eles também construíam sites. Isto nos levou a procurar estes sites e, numa primeira listagem, selecionamos 72. Depois, selecionamos seis para um estudo mais aprofundado. O que vimos, e que é muito interessante, é como eles lêem e escrevem para montar esses sites. Eles precisam de diversas formas de leitura e escrita. Desde uma leitura técnica, informacional, para saber como fazer o site. Depois precisam da escrita para acionar os comandos necessários. E eles têm uma maneira muito artesanal para construi-los, porque não têm formação de informática. Como fazem? Através de buscas em outros sites e muito pela interação com outros internautas, via e-mail. Em princípio eles vão descobrir que na rede é possível copiar e colar tudo. E eles vão em busca desses conteúdos. E só essa busca já supõe uma autoria, na medida em que eles são capazes de fazer escolhas, no que vão copiar para colocar nos sites. FOLHA DIRIGIDA — Com qual objetivo esses sites são produzidos? Maria Teresa — O primeiro é aparecer, se mostrar, estar presente na tela. Segundo, reunir pessoas em torno do que têm para dizer. FOLHA DIRIGIDA — Então a senhora já derruba aí o mito de que a internet segrega. Maria Teresa — Pelo contrário, eu acho que ela agrega. Como eles interagem uns com os outros. Eu estou mostrando que até para a construção do site existe uma interação. E eles montam os sites usando a leitura e a escrita não só da internet, mas de outros suportes. FOLHA DIRIGIDA — Quais outros suportes os adolescentes utilizam? Maria Teresa — Livros, jornais etc. Uma outra coisa que percebemos, é como este trabalho da internet está aumentando a leitura e a escrita entre os adolescentes e não está separando
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suportes, mas integrando o impresso com o digital, o que foi um outro dado bastante interessante. Voltando à sua pergunta sobre o mito de segregar, eu acho que a coisa principal que existe na internet é a interação. Muitas pessoas têm medo. Dizem que o adolescente fica muito fechado nele mesmo com a tela, mas esquecem que atrás da tela estão outras pessoas, o que possibilita uma interação até maior, porque tem acesso a muito mais pessoas. Só que é uma interação diferente, não é face a face. É uma interação simbólica, virtual, mas que é também real porque os adolescentes vão interagir através de ações humanas, com pessoas humanas que lêem, que escrevem e que existem, pois estão ali, atrás da tela. E é muito interessante como essas interações estão acontecendo, e o próprio site tem o objetivo de formar comunidades. Nos livros de recados, nos e-mails de contato, a idéia é que alguém leia, preferencialmente seus companheiros, os adolescentes, querem que outros colaborem e vão formando comunidades interessadas naquele conteúdo. FOLHA DIRIGIDA — Quais conteúdos são esses? Maria Teresa — Os conteúdos giram em torno de uma banda de música, de um time de futebol, de cinema, filmes, temas próprios da adolescência. FOLHA DIRIGIDA — De qual adolescência a senhora fala? A senhora dividiu por gênero, por grupos de interesse, aquilo a que chamamos "tribos"? A juventude não é uma só. Maria Teresa — São várias tribos e entre os sites da pesquisa, trabalhamos com tribos ligadas a bandas musicais e havia uma tribo ligada na literatura, o que nos chamou muita atenção, porque iam a sites de literatura, indicavam livros e publicavam suas poesias. De fato, existem tribos diferentes e eu acho que a internet está possibilitando o acesso de uma maneira lúdica, prazerosa a estes temas, que antes pareciam mais intelectuais, distantes, e que a escola nunca conseguiu mostrar seu lado do prazer. FOLHA DIRIGIDA — Em sua opinião, por que o estudo da literatura não é prazeroso? Maria Teresa — Porque a escola usa a literatura muito didatizada. E ali a literatura se apresenta de uma maneira tão lúdica, que os adolescentes, sem perceber, vão penetrando por seus meandros. Eu acho que isso é uma grande abertura e uma grande vantagem da internet. Mas não separamos por tribos. Fomos vendo os interesses e trabalhando em cima deles. E a gente percebe que a linguagem presente é aquela do hipertexto, que você vai saindo de um texto para o outro, vai acionando um link que leva a outro. É uma linguagem circular, múltipla, e o adolescente acaba escrevendo um outro texto, muitas vezes sem escrever propriamente, mas nas montagens que faz com os textos de vários autores. E vemos muito a experiência da autoria coletiva, desde a formação do site, quando o adolescente pega informações de como construir, até em suas viagens pelos diferentes textos para chegar ao que ele quer veicular. E é onde ele escreve muito de si mesmo também. FOLHA DIRIGIDA — Quando iniciou sua pesquisa, havia uma relação de preconceito com a internet? Maria Teresa — Existiam e ainda existem, muitos. FOLHA DIRIGIDA — De sua parte? Maria Teresa — De minha parte não. E porque não? Eu partia de uma outra pesquisa, que era sobre leitura e escrita de adolescentes, em que convivemos durantes dois anos com seus grupos, entrevistando, vendo que leitura e escrita desenvolviam, porque a escola costuma dizer que o adolescente não gosta de ler. Descobrimos que eles não gostam dos livros da
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escola, não gostam da forma como a escola pede para escrever e para ler. Mas descobrimos que eles eram leitores e escritores. Isto foi uma surpresa para mim. Eu estava meio desligada disto e embora fosse internauta, usuária de e-mails, de sites de busca etc, nunca me passou pela cabeça que os adolescentes estivessem utilizando tanto a internet para a leitura e escrita. Eu via mais como jogos etc. Então, foi uma surpresa para mim. Aí comecei a fazer esta pesquisa para começar a penetrar nisto e ver o que eles escreviam e liam. Eu já fui procurando encontrar que leitura e escrita eram essas. Aí encontrei uma leitura lúdica, prazerosa, uma leitura que ao mesmo tempo é escrita, com o objetivo mesmo de comunicação e de interação. FOLHA DIRIGIDA — Existe o "internetês", ou seja, uma linguagem própria da internet? Maria Teresa — Existe. Não é que ela seja própria da internet, como você estava falando que as "tribos" são muitas e as linguagens são muitas, o meio da internet também é múltiplo. Por exemplo, se você acessa um site de literatuta, vai encontrar textos literários, poesia. E se acessar um site científico, vai encontar textos científicos, até o adolescente quando vai fazer uma pesquisa escolar, ele vai encontrar um conteúdo dentro de uma outra linguagem. Quando você está falando do internetês, ele existe onde? Nas salas de bate-papo, nos e-mails dos adolescentes. E o internetês existe na sala de bate-papo como uma linguagem criada pelos adolescentes, por aqueles usuários, para usar neste meio, porque ela é própria do meio, e por quê? Você tem que escrever rápido, porque você está escrevendo com um interlocutor em tempo real. E se você demorar a escrever, o interlocutor vai embora. Então você tem que escrever rápido, para que ele responda logo. Outra, é que você está economizando os minutos e os pulsos, o tempo gasto ali. FOLHA DIRIGIDA — Trata-se, na verdade, de uma conversa. Maria Teresa — O mais interessante é isto. O que acontece nos bate-papos não é uma escrita, mas uma conversa. Só que a conversa é escrita, então há uma mistura de oralidade e de escrita. E nossa escrita não é uma transcrição da oralidade. Ali o que vemos é uma escrita que é a oralidade materializada. E se torna uma escrita criativa, cheia de abreviações, muitas vezes sem uso de acentos, e que precisa mostrar o estado de ânimo dos interlocutores, se estão alegres, tristes, se falam alto, se riem. Para isso, os adolescentes usam símbolos, que são as chamadas carcteretas, ou emotions, ou mesmo sinais do próprio teclado, quando dois parêntesis com dois pontos formam um rosto, um sorriso, dois colchetes simulam um abraço etc. É muito criativa esta conversa escrita, teclada, mas este "internetês" é visto com muito preconceito pela escola, pelos professores, pelos pais. FOLHA DIRIGIDA — O "internetês" não compromete, ou mesmo prejudica a boa escrita e o aprendizado do português? Maria Teresa — Eu acho que não. Esta preocupação está muito mais na cabeça dos professores, dos pais, que não conhecem muito bem o processo das salas de bate-papo. As pessoas acham que aquilo é uma escrita errada, mas esquecem que é uma fala. E isso não é novo. Outras gerações, antes da internet, tinham códigos para as pessoas não entenderem, e isso nunca atrapalhou a forma de escrever. Quando chegamos à faculdade e encontramos professores que falam muito rápido e queremos anotar, o que fazemos? Anotamos criando formas abreviadas. E isto não atrapalha a nossa forma de ler e escrever. E vejo muito que com a preocupação que a escola tem, tão exagerada com a forma, ela esquece de trabalhar com a interação verbal da língua viva, esta língua viva que está existindo nas salas de bate-papo. E a língua é tão viva que estou conversando com você e utilizando o você, que no entanto é uma abreviatura de vossa mercê. Isso mostra a dinamicidade da língua. A língua existe a partir da fala.
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FOLHA DIRIGIDA — Podemos entender com isto que o "internetês" pode mudar o português? Maria Teresa — Eu acho que ele pode trazer algumas transformações. Mas o básico é entendermos, até com um autor que eu trabalho muito, que é o (Mikhail) Bakhtin (filósofo da linguagem russo, falecido em 1975) que vai dizer que cada época tem os seus códigos próprios de escrita e de linguagem e que os grupos culturais vão criando os seus códigos. O que acontece nas salas de bate-papo é que há um grupo culturalmente organizado, usuários daquele grupo, que para se entenderem usam um código próprio que precisa da rapidez de comunicação, da lógica do teclado, do tipo de comunicação que se faz, que não é face-a-face, mas é em tempo real, e que você não pode usar a linguagem oral. Mas eles sabem que aquela linguagem é para usar ali e o que acontece? Não tem muito tempo, uma emissora começou a passar filmes com as legendas na linguagem do "internetês", e numa reportagem, os adolescentes criticaram. Achavam aquilo um absurdo, porque não era legenda. Achavam que só tinha sentido no uso da internet. Quando estão na escola eles sabem que têm que escrever o texto de acordo com o que é pedido. FOLHA DIRIGIDA — A senhora descarta a influência do hábito? Maria Teresa — É lógico que o hábito pode, às vezes, influir e aparecer um vc substituindo o você. Aí eu acho que vem o papel da educação, da escola que conhece isso. Não de considerar errado, mas de chamar a atenção do aluno que existem muitos gêneros discursivos, que aquilo não é errado, mas não é adequado, não é próprio para a sala de aula. FOLHA DIRIGIDA — A senhora cita Bakhtin, um filósofo que em sua fase produtiva não existia internet. Maria Teresa — Mikhail Bakhtin diz que a linguagem não está num sistema abstrato de normas e não está só em nossa expressão isolada, mas existe, à medida em que é viva, que ela está na interação verbal. Ele tem toda uma teoria da linguagem onde mostra a importância do diálogo, das muitas vozes presentes neste diálogo, e mostra como a linguagem forma nosso pensamento. Vygotsky (russo, contemporâneo de Bakhtin) fala isso também. Ele fala que só pensamos porque existe linguagem, que é impossível pensar sem linguagem. Que vamos nos constituir enquanto pessoas, construir a nossa subjetividade via linguagem. Se a linguagem é tão importante, embora eles não tenham vivido na época da internet, ela é toda construída via linguagem. Então buscamos estes teóricos para compreendermos esta linguagem que está aí, viva, em outro suporte, mas levando pessoas a interagir. Vygotsky fala muito na mediação da linguagem e neste conceito de mediação existe uma coisa que acho extremamente importante. Existem três tipos de mediação: a mediação via instrumento, a mediação via o outro; a mediação via linguagem. O computador é um instrumento tão importante, que reúne estas três mediações. Primeiro, ele é uma ferramenta, como era a máquina de escrever, só que o computador é muito mais do que isto. Ele é uma máquina construída de linguagem. Para que ele exista, é preciso toda uma construção de linguagem binária e tudo que você quiser fazer no computador precisará da linguagem. Tudo que existe no computador é feito pelo outro, então eu tenho sempre a mediação do outro. Do outro que fez o programa, do outro que fez o texto, do outro com quem você está interagindo. Embora esses autores não tenham vivido nesta época, a teoria deles conseguiu romper as fronteiras do tempo e estão nos ajudando a entender as coisas novas. FOLHA DIRIGIDA — O que garante a construção da subjetividade? A interação?
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Maria Teresa — É. Estes dois autores vão nos dizer que o meu eu se constrói a partir dos outros eus. Vygotsky vai dizer que a consciência é um contato social consigo mesmo. Bakhtin vai dizer que a consciência individual é social, justamente porque agrega as vozes dos outros. Eu me constituo e vou formando a minha subjetividade a partir dos contatos que eu tenho no meio com os outros eus, com as outras pessoas, com os produtos culturais construídos por outros. É na interação com tudo isto que eu vou produzindo a minha subjetividade. FOLHA DIRIGIDA — Como os adolescentes lidam com o apelo ao consumo existente na internet? Maria Teresa — O consumo não está só na internet, mas em toda a sociedade. Você anda nas ruas, os outdoors te pressionam para o consumo, as vitrines também, os jornais, a TV veiculando consumo até dentro da programação. Nós estamos numa sociedade de consumo e a internet, que faz parte dessa sociedade, também leva a este consumo e com a facilidade de que você, sem sair de casa, pode comprar. Eu acho que ela é mais um elemento que está levando ao consumo. Mas eu acho que o problema do consumo é um problema de educação, em se tratando de jovens. Eu acho que a educação tem muito a fazer, tentando desenvolver nos adolescentes, nas próprias crianças, um sentido crítico para que eles não sejam seduzidos por esta vontade de comprar. E daí vale o diálogo do educador, a partir daquilo que o adolescente está fazendo, seja ver desenho animado, seja ver filmes, seja estar na internet. FOLHA DIRIGIDA — A internet é educativa ou pode vir a ser educativa? Maria Teresa — Tudo pode vir a ser educativo. O livro, que é tão exaltado, pode ser educativo e não-educativo, dependendo da forma como é utilizado. Então uma pessoa que fica o dia inteiro fechada no quarto, só lendo, numa idade em que o contato é importante, e você sem saber o que está lendo, isto talvez não seja produtivo. E se ficar também só vendo internet o dia inteiro não é bom. Embora na Internet possa interagir muito com outras pessoas, é preciso um pouco do presencial. O bom e o ruim existe em tudo. Na Internet há os sites pornográficos, coisas deseducativas, como, por exemplo, vendas de monografias, teses e dissertações, o incentivo a não-autoria, ao plágio etc. Há muitas coisas erradas, mas quantas coisas boas ela tem também? A facilidade de um acesso maior ao conhecimento, a interação com outras pessoas, criar novos grupos, novas amizades, desenvolver a leitura, a escrita. Então, eu vejo o papel do educador, sempre presente, em todas essas mídias, como um mediador do uso delas.
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Anexo 3 Conselhos do Bill Gates Dono da maior fortuna pessoal do mundo, e da Microsoft, a única empresa que enfrentou e venceu a Big Blues (IBM) desde de sua fundação em meados de 1900... A empresa que construiu o primeiro Cérebro Eletrônico (computador) do mundo. Aqui estão alguns conselhos que Bill Gates, ditou em uma conferência em uma escola secundária sobre 11 coisas que estudantes não aprenderiam na escola. Ele fala sobre como a "política educacional de vida fácil para as crianças" tem criado uma geração sem conceito da realidade, e como esta política tem levado as pessoas a falharem em suas vidas posteriores à escola. Muito conciso, todos esperavam que ele fosse fazer um discurso de uma hora ou mais, ele falou por menos de 5 minutos, foi aplaudido por mais de 10 minutos sem parar, agradeceu e foi embora em seu helicóptero a jato... Regra 1: A vida não é fácil - acostume-se com isso. Regra 2: O mundo não está preocupado com a sua auto-estima. O mundo espera que você faça alguma coisa útil por ele ANTES de sentir-se bem com você mesmo. Regra 3: Você não ganhará R$ 20.000 por mês assim que sair da escola. Você não será vice-presidente de uma empresa com carro e telefone à disposição antes que você tenha conseguido comprar seu próprio carro e telefone. Regra 4: Se você acha seu professor rude, espere até ter um Chefe. Ele não terá pena de você. Regra 5: Vender jornal velho ou trabalhar durante as férias não está abaixo da sua posição social. Seus avós têm uma palavra diferente para isso: eles chamam de oportunidade. Regra 6: Se você fracassar, não é culpa de seus pais. Então não lamente seus erros, aprenda com eles. Regra 7: Antes de você nascer, seus pais não eram tão críticos como agora. Eles só ficaram assim por pagar as suas contas, lavar suas roupas e ouvir você dizer que eles são "ridículos". Então antes de salvar o planeta para a próxima geração querendo consertar os erros da geração dos seus pais, tente limpar seu próprio quarto. Regra 8: Sua escola pode ter eliminado a distinção entre vencedores e perdedores, mas a vida não é assim. Em algumas escolas você não repete mais de ano e tem quantas chances precisar até acertar. Isto não se parece com absolutamente NADA na vida real. Se pisar na bola, está despedido, RUA !!!!! Faça certo da primeira vez.
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Regra 9: A vida não é dividida em semestres. Você não terá sempre os verões livres e é pouco provável que outros empregados o ajudem a cumprir suas tarefas no fim de cada período. Regra 10: Televisão NÃO é vida real. Na vida real, as pessoas têm que deixar o barzinho ou a boate e ir trabalhar. Regra 11: Seja legal com os CDFs (aqueles estudantes que os demais julgam que são uns babacas). Existe uma grande probabilidade de você vir a trabalhar PARA um deles. ***** Observação: Este texto está publicado em vários sites. A sua veracidade e atribuição a Bill Gates não é exatamente comprovada. Pode ser acessado, por exemplo, no endereço www.acontecendoaqui.com.br/vc_cbg.php
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Anexo 4 - Alguns exemplos de “pérolas” Segundo Arnaldo Nogueira Jr, o autor do site “projeto releituras” de onde foram extraídos esses exemplos, “Todos os anos, após os vestibulares, as "pérolas" aparecem. Creio que há um certo exagero e muitas podem ser criação de brincalhões. São muito engraçadas, mas que assustam, assustam.” Data: 18/06/2006 - 23:56:17 As redações do vestibular 2000 da UFRJ acabam de ser corrigidas. Eis as pérolas deste ano: Redação * Sobrevivência de um aborto vivo (título). * O Brasil é um país abastardo com um futuro promissório. * O maior matrimônio do país é a Educação. * Precisamos tirar as fendas dos olhos para enxergar com clareza o número de famigerados que almenta (sic). * Os analfabetos nunca tiveram chance de voltar à escola. * O bem star (sic) dos abtantes endependente (sic) de roça, religião, sexo e vegetarianos, está preocudan-do-nos. * É preciso melhorar as indiferenças sociais e promover o saneamento de muitas pessoas. * Também preoculpa (sic) o avanço regesssivo da violência. * Segundo Darcy Gonçalves (Darcy Ribeiro) e o juiz Nicolau de Melo Neto (Nicolau dos Santos Neto). Projeto Releituras — Todos os direitos reservados. O Projeto Releituras — um sítio sem fins lucrativos — tem como objetivo divulgar trabalhos de escritores nacionais e estrangeiros, buscando, sempre que possível, seu lado humorístico, satírico ou irônico.
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Anexo 5 - Trechos do diário de Anne Frank Anne Frank foi uma adolescente judia que viveu em Amsterdã durante a Segunda Guerra Mundial. Ao completar 13 anos, ganhou um diário como presente de aniversário. Poucos dias depois, foi obrigada a se esconder com a família, devido à perseguição nazista. Durante dois anos, reclusa em um ambiente exíguo com outras sete pessoas, sua personalidade forte a fez extravasar seus sentimentos na única forma possível: escrevendo. Morreu no campo de concentração em Bergen Belsem, aos 14 anos. Eis alguns trechos de seu diário: "Com meu diário, quero dizer que pretendo ir mais adiante; não posso me imaginar vivendo como minha mãe ou a sra. Van Daan e todas aquelas mulheres que cumprem suas obrigações e mais tarde são esquecidas. Eu preciso ter algo mais que um marido e filhos, algo a que possa me devotar totalmente. Quero continuar vivendo depois da minha morte..." (20 de junho de 1942). "Preciso tornar-me boa através de meu próprio esforço, sem exemplos e sem bons conselhos. Então, mais tarde, deverei ser bem mais forte. Quem além de mim lerá estas frases? A não ser comigo, com quem posso contar? Um sem-número de amigos foram para um triste fim. Ninguém é poupado, cada um e todos se juntam na marcha da morte." (20 de outubro de 1942). "Devo ficar pensando sobre todos os que estão morrendo, seja o que for que esteja fazendo? E se eu quero rir de alguma coisa, deveria parar imediatamente e sentir-me envergonhada por estar contente?"(20 de novembro de 1943). ”Querida Kitty, O ministro Bolkkestein, falando no noticiário holandês transmitido da Inglaterra, disse que depois da guerra farão uma coletânea de diários e cartas que falem da guerra. (...) Imagine como seria interessante se eu publicasse um romance sobre o Anexo Secreto. Sério, dez anos depois da guerra as pessoas achariam muito interessante ler como nós vivemos, o que comemos e sobre o que falamos como judeus escondidos.”(29 de março de 1944). "Não acredito que apenas os homens de projeção, os políticos e os capitalistas sejam culpados pela guerra. Não, o homem comum também é... Há uma urgência nas pessoas em destruir e matar, e até que toda a humanidade, sem exceção, passe por uma grande mudança, as guerras se sucederão." (3 de maio de 1944). "É realmente inexplicável que eu não tenha deixado de lado todos os meus ideais, porque eles parecem tão absurdos e impossíveis de se concretizarem. Mesmo assim eu os conservo, porque ainda acredito que as pessoas são boas de coração. Simplesmente não posso edificar minhas esperanças sobre alicerces de confusão, miséria e morte. Vejo o mundo gradativamente se tornando uma selvageria. Escuto o trovão se aproximando, cada vez mais, o que nos destruirá também; posso sentir o sofrimento de milhões e ainda assim, penso que tudo irá se corrigir, que esta crueldade também terminará. Enquanto isso, preciso adiar meus ideais para quando chegarem os tempos em que talvez eu seja capaz de alcançá-los." (15 de julho de 1944). Fontes: http://br.geocities.com/anne_frank_brazil/diario.html http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_04mai1985.htm
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