RESPONSABILIDADE E CIDADANIA
Escola de Direito da Universidade do Minho Departamento de Ciências Jurídicas Públicas Braga 2012
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RESPONSABILIDADE E CIDADANIA
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Edição: Departamento de Ciências Jurídicas Públicas www……………..pt … de 2012 Escola de Direito da Universidade do Minho Campus de Gualtar 4710-057 Braga Telefone: 253 601800, 253 601801 Fax: 253 601809 EMail: sec@direito.uminho.pt URL: http://www.direito.uminho.pt ISBN: xxxxxxxxxxxxxxx
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INTRODUÇÃO
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ÍNDICE 1. WLADIMIR BRITO,
2. ANDREIA SOFIA OLIVEIRA,
3. JOAQUIM FREITAS DA ROCHA,
4. PATRÍCIA JERÓNIMO,
5. JOÃO SÉRGIO RIBEIRO,
6. BENEDITA MCCRORIE,
7. FLÁVIA LOUREIRO,
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A cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente – Sic utere tuo ut alienum non laedas Wladimir Brito1 1. Características gerais e comuns dos organismos de cooperação 1.1. Introdução
Nesta nossa comunicação, em que iremos fazer uma breve análise do direito aplicável na cooperação transfronteiriça meio-ambiental, direito que, em nossa opinião, a máxima latina “sic utere tuo ut alienum non laedas” condensa e reflecte. Começaremos por uma sucinta análise das características gerais e comuns da cooperação transfronteiriça, qualquer que seja o seu domínio, indicando as regras jurídicas estruturantes do regime jurídico dessa cooperação. De seguida, abordaremos a questão da cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente, essencialmente para assinalar as regras jurídicas estruturantes do regime jurídico geral dessa cooperação, assinalando a necessidade de respeitar as várias Convenções sobre o meio-ambiente e de se aditar a essas regras jurídicas outras específicas de cada concreto tipo de cooperação transfronteiriça nesse domínio. Com esta nota estamos já a assinalar que, em nossa opinião, a cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente pode ter uma natureza geral, como pode, em sede da cooperação entre autoridades locais, recobrir um dado e concreto domínio meio-ambiental, como por exemplo o da protecção de certo e determinado eco sistema, da protecção de um rio ou lago, de uma floresta, do meio-ambiente aéreo contra poluição industrial, da protecção fito-sanitária, etc. etc., o que obviamente postula a consagração de normas específicas. Para além disso, importa salientar que na feitura dos respectivos Protocolos constitutivos de organismos de cooperação e dos seus Estatutos devem ser escrupulosamente respeitados os princípios rectores convencionalmente consagrados para constituição e funcionamento desses organismos de cooperação. 1.2. Algumas Características Gerais e Comuns
No que se refere às características gerais e comuns da cooperação transfronteiriça, falaremos aqui especificamente dos mais importantes que são: o diálogo, a homogeneidade, a funcionalidade, a coordenação e a representatividade. a)
O Diálogo
Podemos dizer que o diálogo horizontal, para usarmos a expressão de Charles Kiss, entre as regiões e colectividades territoriais é uma característica sobredeterminante, na medida em que condiciona e determina a afirmação de todas as demais. Por outras palavras, mesmo que todas as demais características estejam presentes, sem diálogo não há cooperação. De facto, todo e qualquer organismo de cooperação transfronteiriça deve a sua criação ao diálogo entre as colectividades locais, sendo, portanto, em primeira linha produto desse diálogo consciencializador da importância e da necessidade da cooperação transfronteiriça num ou em diversos domínios; por outro lado, a 1 Doutor em Direito. Professor Catedrático da Escola de Direito da Universidade do Minho.
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subsistência e funcionalidade desses organismos depende, também e em primeira linha, desse diálogo, agora travado no seu interior. Contudo, agora, esse diálogo tem de ser permanente e sempre renovado pela dinâmica evolutiva dos interesses comuns que estão a ser prosseguidos e pelo aparecimento de outros que, consequentemente, inauguram novos domínios de cooperação. O diálogo, importa esclarecer, não é só interno, mas é também, tem de ser necessariamente, externo, isto é, com entidades nacionais ou internacionais que podem participar na ou contribuir para a realização dos interesses prosseguidos pelo organismo. A diferença entre o diálogo interno e externo é dada pelos dos sujeitos que nele participam. No interno são os órgãos representativos de cada colectividade parte do organismo de cooperação que, no seio dos competentes órgãos desse organismo, dialogam com vista a identificar interesses comuns e a estabelecer estratégias para os realizar; no externo são já os órgãos do organismo de cooperação que dialogam com órgãos de outras entidades com vista a prosseguir os interesses do próprio organismo de cooperação já definidos pelas colectividades territoriais que o compõem. Contudo, em ambos os casos o diálogo é o elemento determinante da coordenação e concertação de esforços para a identificação e resolução dos problemas comuns. É, portanto, pelo diálogo que reconhecem e assumem a existência de uma relativa homogeneidade espacial e sócio-económico e de problemas comuns que têm vantagem em resolver em comunhão de esforços e de meios2. b)
A homogeneidade
Chegamos assim a uma outra característica comum, também determinante da criação e subsistência dos organismos de cooperação transfronteiriça. Esta característica é a homogeneidade, que tanto pode ser espacial, geográfica ou sócioeconómica. Com efeito, os organismos são normalmente criados por entidades e colectividades territoriais de uma região com forte homogeneidade sócio-cultural e económico-social de que resultam problemas comuns que podem e devem ser resolvidos em conjunto, com grande vantagem para todos, em especial sob o ponto de vista de economia de meios e/ou de recursos. A forte proximidade cultural, a enorme carência de meios, o nível de desenvolvimento humano muito semelhante e a longa história de contactos quotidianos entre os povos de um e do outro lado da fronteira, o reconhecimento de que a relativa homogeneidade espácio-cultural e económico-social sempre foi e continuará a ser causa de problemas e de interesses comuns e a sentida e reconhecida necessidade de conjugação de esforços e de coordenação de meios para resolver os seus problemas comuns, facilitam o diálogo entre os povos e as suas entidades e colectividades e a criação desses organismos. c)
A funcionalidade, a coordenação e a representatividade
São outras importantes características gerais da cooperação transfronteiriça. De facto, as entidades e colectividades que as constituem com a sua criação expressamente aceitam que pretendem agir em conjunto na e sobre a região em que se inserem, e, para o efeito, através desses organismos planeiam e executam políticas 2 Sobre o diálogo, veja-se, por todos Wladimir Brito, Convenção-Quadro Europeia sobre a Cooperação entre as Colectividades e Autoridades Territoriais, Coimbra Editora, Coimbra, 200, p. 410.
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públicas de interesse comum com vista a retirarem o maior proveito das potencialidades de cada uma das colectividades e/ou entidades associadas e a promoverem conjuntamente desenvolvimento sócio-económico de toda a área territorial e das colectividades humanas que nelas vivem e trabalham. Para tanto, têm de coordenar a realização conjunta dos seus interesses e têm de concertar esforços para os prosseguir com os meios comuns disponíveis postos ao serviço desses interesses comuns. Contudo, isto só é possível porque essas entidades e colectividades representam legitimamente os interesses das comunidades que os integram quer interna quer externamente, sendo essa representatividade funcional a fonte de legitimação interna da acção das entidades e/ou colectividades e, externamente, é o próprio organismo de cooperação que se apresenta como legítimo representante das comunidades que o constituíram e integram no diálogo com outros entes públicos ou privados. 2. Princípios Gerais e Comuns estruturantes da Cooperação Transfronteiriça
Importa agora assinalar a existência de um conjunto de regras gerais e comuns estruturantes dos acordos de cooperação em qualquer domínio, convencionalmente consagradas, que são dominantemente constituídas pelos seguintes princípios: a) – Princípio da concertação, já consagrado pelo artigo 4º na ConvençãoQuadro Europeia sobre a Cooperação Transfronteiriça entre as Colectividades ou Autoridades Territoriais, princípio de acordo com o qual, diz-nos o Rapport Explicatif dessa Convenção, “comporte essenciallement la consultation réciproque, l’échange d’informations, les discussions et les études communes ainsi que la coordination, c’est-à-dire la définition en commum de lignes d’acion, soit dans le domaine de la réglementation, soit dans celui de certain réalization concrétes”. É claro que esse recorte do princípio é demasiado abrangente para o singularizar como princípio distinto do da informação e da coordenação. Por essa razão, entendemos que esse princípio deve ser recortado como harmonização de condutas pela via do diálogo entre os parceiros da cooperação com vista um consenso. Trata-se assim de um princípio que impõe antes de mais a busca do consenso através de um prévio acordo sobre os interesses comuns e a elaboração de planos de acção para a sua realização. Essa busca de consenso implica flexibilidade do processo e dos métodos de acção e diálogo permanente. b) – Princípio do consenso, que implica uma activa participação de todas as partes na busca conjunta das soluções mais adequadas em cada momento para os problemas que têm de resolver ou, se se quiser, para a definição e realização dos interesses comuns. c) – Princípio da acção comunicativa ou do diálogo de acordo com o qual a acção das parceiros da cooperação deve ser coordenada através de comunicação orientada para o recíproco entendimento, não podendo nunca ser imposta por uma das partes. Trata-se de um princípio que consagra o diálogo como meio de interacção entre as partes com vista a estabelecer o sentido e os objectivos da acção concretizadora dos seus interesses. Numa palavra, e dizemo-lo com Habermas, consagra o diálogo como meio de formação do consenso. d) – Princípio da paridade de acordo com o qual é obrigatória a representação paritária das partes em todos os órgãos dos organismos da cooperação. e) – Princípio da Vizinhança geográfica que estabelece que só entidades jurídico-administrativas geograficamente contíguas e com tendencial homogeneidade 11
podem estabelecer relações de cooperação transfronteiriça. Consagra esse princípio que a cooperação transfronteiriça é uma cooperação de Vizinhança (geográfica) – cfr. artigo 2º do Tratado de Valência. Esse princípio apela e convoca necessariamente não só o conjunto de princípios rectores da Vizinhança internacional – como por exemplo, o que impõe o dever geral de abstenção, de precaução, de informação e consulta, de responsabilidade internacional do Estado – e pressupõe a Boa Vizinhança internacional, como princípio regulador das relações de Vizinhança e promotor da cooperação entre países geograficamente contíguos. Em nossa opinião, esses são os mais relevantes princípios estruturantes da cooperação transfronteiriça em qualquer domínio, sendo que a questão da protecção e preservação do meio-ambiente deve ser analisada com base nessas características gerais e princípios comuns, que acabámos de falar, mas essencialmente tendo em conta alguns importantes princípios rectores do direito internacional de Vizinhança e da Boa Vizinhança. 3. A cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente: o direito aplicável 3.1. Introdução Se é certo que a Vizinhança e a Boa Vizinhança internacional são fundamentos de toda e qualquer cooperação transfronteiriça, não é menos certo que, na questão da cooperação no domínio do meio-ambiente e da sua protecção, as normas reguladoras da Vizinhança e da Boa Vizinhança internacional assumem especial relevância. Na verdade, temos defendido que a cooperação transfronteiriça implica necessariamente a ideia (e a prática) da Boa Vizinhança, que exige, em primeiro lugar, aos Estados e, de seguida, às autoridades locais um bom relacionamento em todos os domínios, incluindo, portanto, o da protecção meio-ambiental. Exige ainda a Boa Vizinhança um mais intenso respeito pelas específicas normas do Direito de Vizinhança e de Boa Vizinhança Internacional, exactamente porque com elas se pretende regular uma densa e complexa rede de relações humanas e materiais produtora de uma forte e natural interdependência global, a nível dos Estados, e local, a nível das colectividades locais. Por isso mesmo, a Vizinhança e a Boa Vizinhança impõem “condutas mais rigorosas e regulamentada por um conjunto complementar de normas especialmente editadas em virtude da amizade e da cooperação mais intensas que mantêm entre si”, e entre essas normas estão as que se regulam a protecção e defesa do meio-ambiente. A cooperação transfronteiriça meio-ambiental, embora possa ser autonomizada como um dos diversos domínios de cooperação, em boa verdade, acaba por recobrir todos os demais domínios, sendo, portanto, uma cooperação (tal como o próprio meio-ambiente) com uma natureza encapsuladora. Por essa razão, ela acaba por ter de ser regulada não só pelas normas gerais e comuns da cooperação no domínio do meioambiente em geral, como por específicas normas de cada concreto tipo de cooperação meio-ambiental. Isto obviamente sem esquecer as convenções sobre, e as normas gerais e comuns, da cooperação transfronteiriça, bem como as normas relativas à protecção do meio-ambiente. Na verdade, estando os homens completa e inexoravelmente envolvidos pelo meio--ambiente em que têm de viver, as comunidades territoriais onde habitam tanto podem cooperar em específicos domínios meio-ambientais, como por exemplo, 12
protecção e salvaguarda de meio aquático e da sua flora e fauna, do meio aéreo, nomeadamente a defesa da qualidade do ar, terrestre controlo sanitário, fito-sanitário e da poluição e contaminação dos solos e através deles das redes freáticas, como estão necessariamente interessados em participar, mesmo que num plano secundário, na cooperação transfronteiriça meio-ambiental em geral, isto é naquela que é promovida e desenvolvida globalmente pelos Estados e que afecta directa ou indirectamente o seu meio-ambiente. Pretendemos com isso assinalar que sob o ponto de vista do meio-ambiente a cooperação não pode ser encarada exclusivamente como uma questão local, mas também e de forma crescente como uma problema global, quer a nível estatal quer até continental, posto que ela é, como dizíamos em 1999, “o resultado não só da contiguidade geográfica e proximidade física geradora dos diversos tipos de Vizinhança (…), mas também, hoje em dia, em virtude do desenvolvimento tecnológico, da Vizinhança a nível continental ou até planetário” 3. De facto, estando como está em causa a protecção do meio-ambiente e com ela a luta contra as mais diversas formas de poluição, de outros actividades prejudiciais ao meio-ambiente, de entre elas a destruição de eco-sistemas, a predação das espécies, a transmissão de doenças, etc., a cooperação transfronteiriça aqui tem de ser necessariamente entendida em dois sentidos, a saber: um muito amplo, que é aquela que diz respeito aos Estados, e outra, mais restrita, que já se circunscreve às colectividades territoriais situadas na zona fronteiriça. Ambas podem ser desenvolvidas separadamente, mas é seguro que implicam a coordenação de esforços e de actividades entre a Administração Central e as colectividades territoriais e os seus organismos de cooperação, e, em certos domínios, devem ser até fortemente complementares, sob pena de ineficácia. A nós interessa-nos essencialmente essa cooperação entre as colectividades locais, mas esse interesse não nos pode fazer perder de vista que, como já tivemos a ocasião de dizer, em sede de cooperação transfronteiriça todos os específicos regimes jurídicos de cooperação estão subordinados a, e têm, portanto, de ser conformes com normas – regras e princípios – gerais de cooperação, estruturantes da cooperação transfronteiriça qualquer que seja o seu domínio. Em nossa opinião, por estas últimas normas serem exigências feitas a todo e qualquer regime jurídico da cooperação e por representarem postulações eliciadas de, pelo menos, dois dos vários fundamentos dessa cooperação, que são a Vizinhança e a Boa Vizinhança internacionais, elas transcendem os concretos regimes de cooperação local. 2– É de assinalar que, por o meio-ambiente não conhecer fronteiras e por a sua preservação ser um dever da própria humanidade, o problema da cooperação no domínio meio-ambiental é, originariamente, reconhecido e assumido como uma questão inter-estatal, apesar de, por regra, a suas consequências negativas ou positivas afectarem, em primeira linha, as regiões fronteiriças. Exactamente por essas razões, a sua discussão em sede jurisdicional foi feita pela primeira vez em casos que consubstanciaram conflitos jurídico-políticos provocados por poluição meio-ambiental entre Estados, como aconteceu no caso da fundição Trail (1935-1941) e, mais tarde, no caso do Lago Lanoux (1956), em que a questão foi discutida de forma aprofundada e projectada para uma dimensão universal. 3 - Wladimir Brito, A cooperação Transfronteiriça, citª, pª 140.
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Dessa discussão, polarizada pela máxima latina “sic utere tuo ut alienum non laedas“, resultou a consagração de normas e princípios dela extraídos, que passaram a ser reconhecidos como fundamentos últimos do direito de Vizinhança e de Boa Vizinhança internacional, e, em consequência, pilares estruturantes do direito da cooperação transfron-teiriça, nomeada e especificamente, no domínio do meioambiente. É, portanto, a nível inter-estatal e no quadro da Vizinhança e da Boa Vizinhança internacional que o problema da cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiental começa a ser analisado e resolvido, o que permitiu a consensualização, em sede de Conferências Internacionais promovidas pelas Nações Unidas, do reconhecimento desse problema como uma questão universal e da consagração de um conjunto de princípios gerais sobre a protecção do meio-ambiente, todos extraídos daquela máxima latina acima referida. Hoje esses princípios integram normas jurídico-internacionais reguladoras da protec-ção do meio-ambiente e enformam e conformam as convenções e os protocolos sobre a cooperação transfronteiriça em todos os domínios, em especial o meio-ambiental. 3– Posto isto, interessa agora referenciar essas normas para denunciar a sua origem e o seu conteúdo, para depois esclarecer a sua aplicabilidade na cooperação a nível local. Começaremos por relembrar que, se a fonte originária dessas normas é a acima referida máxima latina “sic utere tuo ut alienum non laedas”, e o mesmo princípio que dela se extrai por decorrer das relações de Vizinhança e de Boa Vizinhança4, acaba por ser a expressão da soberania territorial exercida com respeito não só pelo direitos soberanos dos Estados vizinhos, como pelos direitos dos cidadãos desses Estados. Nessa medida, esse princípio é a manifestação jurídica da consciência da existência de um dever jurídico que se impõe a todos os Estados e que é o princípio que impõe ao Estado o dever de não causar prejuízos aos seus vizinhos ou a terceiros com a utilização do seu território e dos seus recursos naturais, técnico-científicos ou industriais. Assim, essa máxima-princípio jurídico ao mesmo tempo que é a manifestação do princípio da soberania, consagra uma obrigação jurídico-internacionalmente imposta a todos os Estados (erga omnes, portanto) de se absterem de praticar nos seus territórios actos que, pela sua natureza, possam causar prejuízos ao território dos seus vizinhos. Também emerge como corolário natural desse princípio da soberania, uma norma internacionalmente aceite, segundo a qual o Estado tem o direito de utilizar o seu próprio território e os seus próprios recursos, mesmo os da zona fronteiriça no seu próprio interesse, o que nos permite dizer que daquele princípio “sic utere tuo ut alienum non laedas” são extraídas duas importantes normas do direito internacional da cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente, sendo uma – esta última – atributiva de direitos e a outra, a acima referida, impositiva de obrigações. Essas duas normas foram unificadas numa única regra jurídica formulada pelo Tribunal Arbitral Especial na decisão proferida no caso da Fundição Trial, quando aí se afirmou a existência de uma regra do Direito Internacional segundo a qual “nenhum Estado tem o direito de usar ou de permitir o uso do seu território de forma 4 - Nesse sentido Ch. Visscher, La responsabilité Internationale des États pour les Dommages d’Origine Technologique et Industrielle, Ed. Pedone, Paris, 1976, pª 35.
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a causar dano por fumos noutro Estado ou danos a bens ou pessoas nesse Estado quando as consequências são graves e o dano está provado de forma clara e convincente”. Consagra-se, assim, nessa decisão, a principal norma do direito de protecção do meio-ambiente, norma essa que compatibiliza aquela norma-corolário do princípio da soberania com a obrigação erga omnes de abstenção da prática de actos prejudiciais ao território dos Estados vizinhos e/ou às pessoas e bens aí localizadas. Ficam assim lançadas as estruturas bases do direito de Vizinhança e de Boa Vizinhança internacional, que, como temos vindo a defender, são o fundamento de toda a cooperação transfronteiriça e, com ela, fica também consagrado o princípio segundo o qual os Estados têm o dever de evitar que agentes seus ou particulares façam do seu território um uso prejudicial para os seus vizinhos, princípio este que Charles de Visscher com propriedade designou como “princípio da utilização não prejudicial do território”. 4– Essas regras e princípios acolhem os aplausos unânimes da doutrina e da jurispru-dência e passaram a ser aplicados, com maior ou menor amplitude, na generalidade dos casos submetidos à apreciação jurisdicional ou arbitral 5, acabando por ser consagradas pela Conferência de Stockholm e na Acta Final da Conferência de Helsínquia, como normas fundamentais da protecção do meio-ambiente, e ponto de partida para a criação de um ordena-mento jurídico internacional protector do meioambiente Ora, esse ordenamento jurídico começou a ser estruturado pelo Conselho da Europa em matéria da poluição do meio-ambiental pela via das várias Resoluções do Conselho de Ministros6 e, de seguida, em Stockholm em 1972 na United Nations Conference on the Human Environment com a consagração, por um elevado número de participantes, na Declaração aí produzida, de vinte e seis princípios, e com a adopção de cento e seis Recomendações sobre o meio-ambiente. De seguida, a Conferência de Helsínquia sobre a Segurança e Cooperação na Europa dedicou na sua Acta Final uma secção à questão da defesa do meio-ambiente, reafirmando aí alguns princípios já consagrados em Stockholm. De facto, o Conselho de Ministros do Conselho da Europa na Res. (68)4E/8 de Março de 19687, consagrou o princípio da prevenção, e a Declaração de Stockholm consagrou o princípio segundo o qual os Estados, embora tenham o direito de explorar os seus recursos naturais e de prosseguir as suas políticas meio-ambientais, têm o dever de assegurar que as actividades exercidas no interior dos seus territórios não causem prejuízos meio-ambientais aos Estados vizinhos8 e também o princípio da responsabilidade pelos danos meio-ambientais causados por actividades 5 - Como por exemplo, no Nuclear Test Cases, que opôs a Austrália e a França em 1974, no Fisheries Jurisidction Case, entre o Reino Unido, a Islândia e a Alemanha (1974), e a Stichting Greenpeace Council contra a Comissão da União Europeia (1998).
6 - Como por exemplo as seguintes Resoluções: Res. 822/9.2/20 de Dezembro de 2003 - Convenção sobre a Conservação da Vida Selvagem e o Habitat Natural na Europa; Res. (71) 5E/26 de Março, de 1971– Poluição do Ar na Zona da Fronteira; Res. (70) 11E/ 07 de Março de 1970 – Sobre o Plano de Coordenação de Esforços por cidades e vilas e sobre a Poluição do Ar; Res. (69) 37E/ 31 de Outubro de 1969 – Poluição do Mar; Res. (68) 4E/ 08 de Março de 1968 – Aprova a Declaração de Princípios sobre a Poluição do Ar; Res. (66) 23E/ 29 de Março de 1966 – Poluição do Ar. 7 - Res. (68) 4E/8 de Março de 1968, Aprova a Declaração de Princípios sobre o controlo da Poluição do Ar. 8 - Princípio 21 “States have, in accordance with the Charter of the United Nations and the principles of international law, the sovereign right to exploit their own resources pursuant to their own environmental policies, and the responsibility to ensure that activities within their jurisdiction or control do not cause damage to the environment of other States or of areas beyond the limits of national jurisdiction ». 15
desenvolvidas nos seus territórios9, princípios estes que foram reafirmados na Conferência de Helsínquia10. Desses princípios, em especial do primeiro, decorrem as regras gerais de deverosidade, que estabelecem um dever geral de abstenção, um dever geral de precaução, um dever de informação e de consulta, bem como da responsabilidade pelos danos causados, deverosidaades essas que visam, em última análise, não só assegurar o respeito pelo meio-ambiente, como impor às entidades públicas nacionais ou locais condutas protectoras e salvaguardadoras desse mesmo meio. Esses princípios e essas regras, que são, antes de mais, normas integradoras do direito da Vizinhança e da Boa Vizinhança, regulam de forma adequada as relações de Vizinhança meio-ambientais, relações estas que estão na base, que são os fundamentos últimos, da cooperação transfronteiriça, que, de facto, outra coisa não reflecte do que a Boa Vizinhança não só entre os Estados contíguos, mas essencialmente entre as comunidades localizadas num e noutro lado da fronteira. Essas relações impõe, natural e necessariamente, um mais escrupuloso respeito por essas normas – regras e princípios –, exactamente porque é aí, nas zonas fronteiriças, entre as comunidades aí localizadas que são sentidas de forma mais profunda e intensa os laços de interdependência e os efeitos negativos ou positivos da degradação ou da protecção do meio-ambiente. 5Ora, se nos lembrarmos que a Vizinhança e a Boa Vizinhança implicam a contiguidade geo-territorial produtoras de relações especiais, não será difícil intuir que essas relações assumem distintas natureza de acordo com o concreto tipo de Vizinhança – terrestre, subterrânea, aérea, aquática (fluvial, lacustre e marítima) e meio-ambiental – e, por isso mesmo, não podem ser reguladas por um único, mas sim por diferentes regimes jurídicos transfronteiriços, que tenham como normas estruturantes aquelas regras e princípios acima indicadas. Na verdade, o regime jurídico rector da Vizinhança marítima, por exemplo, dominada por convenções internacionais relativas ao direito do mar, de natureza dominantemente multilateral, não é nem pode ser idêntico ao regime jurídico regulador da Vizinhança terrestre e subterrânea assente em convenções de natureza dominantemente bilaterais e propiciadora uma maior tendência para acordos transfronteiriços entre comunidades locais fronteiriças. Queremos com isso significar que as normas de deverosidade acima referidas estão presentes em todas as relações de Vizinhança e de Boa Vizinhança, logo, nas relações de cooperação transfronteiriça, incluindo a meio-ambiental, presença que se manifesta, mesmo que não sejam expressamente referenciadas, nas convenções reguladoras dessas relações, exactamente porque elas conformam e enformam a estrutura nuclear do regime jurídico da Vizinhança e da Boa Vizinhança internacional, logo a da cooperação transfronteiriça em todos os domínios. Contudo, isso não significa uma absoluta uniformização do regime jurídico da Vizinhança e de Boa Vizinhança internacionais, e/ou da cooperação transfronteiriça, nomeada e especificamente na cooperação no domínio meio-ambiental, visto que, em nossa opinião, esse regime jurídico, embora deva ser necessariamente conformado por 9 - Principle 22 « States shall cooperate to develop further the international law regarding liability and compensation for the victims of pollution and other environmental damage caused by activities within the jurisdiction or control of such States to areas beyond their jurisdiction ». 10 - Cfr.
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aquelas regras e princípios jurídicos, não pode deixar de ser singular, isto é, específico para cada concreta situação da cooperação no domínio meio-ambiental. Significa isso que, em nossa opinião, cada regime jurídico contém necessariamente um conjunto de outras regras jurídicas específicas de cada concreto tipo de cooperação, regras que têm de ser conforme com aquele ordenamento jurídico regulador da Vizinhança e da Boa Vizinhança internacional a que nos referimos acima e que, em última análise, são instrumentos normativos indispensáveis à realização prática da cooperação.
III – CONCLUSÃO Podemos agora concluir dizendo que em sede de cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente impõe-se o respeito antes de mais pelas Convenções Internacio-nais sobre a Vizinhança e a Boa Vizinhança Internacional, especialmente a máxima-princípio “sic utere tuo ut alienum non laedas” e o “princípio da não utilização prejudicial do território” que dele decorre, as normas que regulam directa e especificamente a protecção internacional do meio-ambiente, os princípios típicos – Comuns e Gerais – do Direito da Cooperação Transfronteiriça, consagrados na Convenção-Quadro Europeia sobre a Cooperação entre as Colectividades e Autoridades Territoriais, de 21 de Maio de 1980, (do Conselho da Europa), as Convenções inter-estatais (bi ou multilateriais) entre Estados vizinhos, e as regras gerais de deverosidade, corolário daquela máxima-princípio que estabelecem um dever geral de abstenção, um dever geral de precaução, um dever de informação e de consulta, bem como da responsabilidade pelos danos causados.
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Responsabilidade e cidadania Andreia Sofia Oliveira11 Introdução Aceitando o desafio que o Departamento de Ciências Jurídicas Públicas nos colocou de reflectir e discutir o tema Responsabilidade e Cidadania no quadro do Colloquium Iuris de 2011, iniciativa que o Departamento promove há vários anos, vimos publicar o texto que serviu de base à apresentação que nele fizemos. Não foi, para nós, muito claro, desde o início, qual a intenção que estava por trás da escolha deste tema. No direito público, habitualmente, referimo-nos ao instituto da responsabilidade como um “meio eficiente de defesa dos cidadãos, crescentemente onerados pelas copiosas intervenções ablatórias dos poderes públicos”12. Tal como nós o interpretarmos, o par “responsabilidade e cidadania” remetenos para a temática da responsabilidade cívica dos cidadãos, em que estes não podem ser vistos apenas como potenciais vítimas de poderes públicos, ameaçadores dos seus direitos, mas também como seres que respondem perante o todo. O estatuto de cidadania não trouxe apenas direitos para os indivíduos e deveres para o Estado. Trouxe também deveres para os cidadãos. Breve abordagem histórica A centralidade actual dos direitos que marca o nosso tempo (que Norberto Bobbio designou lapidarmente como A Idade dos Direitos13) contrasta com a centralidade dos deveres em épocas anteriores. A obra de Samuel Pufendorf é marcante e representativa daquilo que podemos chamar Idade dos Deveres. Sobre os deveres do homem e do cidadão segundo o direito natural14 é uma obra toda estruturada em torno de deveres e em que os direitos estão ausentes. Partindo de de uma antropologia pessimista - que considera o homem como ser corrupto, débil e não apto para viver só – entende que a convivência humana exige a imposição de deveres e obrigações de cumprimento inexorável. É pela observância destes deveres básicos e universais que o ser humano se torna um ser útil na sociedade em que está inserido. A sociedade implica uma renúncia à liberdade. Entre os deveres encontramos obrigações voluntárias e outras que são impostas e deveres para com Deus, deveres para consigo mesmo e deveres para com os outros. Em síntese, os principais deveres para com Deus são pensar correctamente acerca de Deus; conformar a nossa acção com a Sua vontade; os deveres para consigo mesmo implicam cuidar do corpo com alimentos adequados, não abusar da comida ou da bebida; os deveres para com os outros consistem em não prejudicar ninguém15.
11 Doutora em Direito. Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho. 12 Gomes Canotilho, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra, Almedina, 1974, p. 14. 13 Norberto Bobbio, L’età dei diritti, Turim, Einaudi, 1990. 14 Consultada em espanhol De los deberes del hombre y del ciudadano según la ley natural, en dos libros, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. 15 Salvador Rus Rufino, “Estudio preliminar”, em De los deberes des hombre y del ciudadano según la ley natural, en dos libros, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. XLIII. Ver ainda sobre Pufendorf, António Manuel Hespanha, O Caleidoscópio do Direito – o Direito e a Justiça no mundo de hoje, Coimbra, Almedina, 2007, p. 384-385.
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Esta herança dos deveres não foi repudiada no período liberal, quando os direitos emergiram e conquistaram espaço nas Constituições, tendo-se dado através deles a passagem de súbditos a cidadãos. Os deveres também estavam presentes nas Constituições liberais. Embora a sua concretização estivesse remetida para a lei, nisso não se distinguiam os direitos e os deveres. O entendimento liberal dos direitos fundamentais era no sentido de que a liberdade consistia em fazer aquilo que a lei não proíbe. Simetricamente, o dever consistia em fazer aquilo que a lei impõe16. Os deveres tradicionalmente consagrados nas constituições liberais eram, normalmente, três: dever de obediência à lei, dever de defesa da Pátria e dever de pagar impostos. Na história constitucional portuguesa, em particular nas primeiras Constituições do período liberal, encontramos na Constituição vintista um exemplo expressivo desta atenção aos deveres, particularmente, no seu artigo 19º: “Todo o Português deve ser justo. Os seus deveres são venerar a religião, amar a pátria, defendê-la com as armas, quando for chamado pela lei;obedecer à Constituição e às leis; respeitar as Autoridades públicas; e contribuir para as despesas do Estado” Também a Carta Constitucional de 1826 previa, no seu artigo 113º e no artigo 145º, § 14, os deveres de defesa da Pátria e de contribuição para as despesas do Estado, na proporção dos seus haveres e, ainda a este último, encontramos referência no artigo 24º da Constituição de 1838. Esta mesma tradição marcou as Constituições do início do século XX, entre elas avultando, em particular, a Constituição de Weimar, que, na parte segunda, coloca os direitos e os deveres fundamentais dos alemães em posição de paridade, muito embora a doutrina alemã centue que se tratava apenas de uma situação aparente, de um “equilíbrio formal” (formelles Gleichgewicht)17, pois aos deveres incluídos no catálogo não se atribuía eficácia jurídica nem se lhe dava tratamento doutrinário equivalente ao que era dispensado aos direitos, sendo as referências na doutrina apenas marginais18. No século XX, as graves experiências totalitárias de aniquilação dos direitos individuais do fascismo e do nazismo contribuíram para a sua reafirmação vigorosa dos deveres, colocando os direitos subjectivos numa posição subordinada àqueles – o chamado fenómeno de funcionalização dos direitos19. Na Constituição de 1933, em particular nos enunciados relativos à opinião pública e à imprensa (artigos 20º e 21º, respectivamente), também se reflecte essa ideia de “liberdades funcionalizadas” ou, pelo menos, orientadas para um fim. “A opinião pública é elemento fundamental da política e da administração do País, incumbindo ao Estado defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum.” (artigo 20º) 16 “A liberdade consiste em não serem (os Portugueses) obrigados a fazerem o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe” (Constituição de 1822). Ver sobre os direitos no período liberal, António Manuel Hespanha, Guiando a mão invisível – Direitos, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português, Coimbra, Almedina, 2004. 17 Ver, neste sentido, Albrecht Randelzhofer, “Grundechte und Grundpflichten”, em Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa, Heidelberg, C.F.Műller, 2006, p. 597-599. 18 Como resulta da consulta da obra organizada por Gerhard Anschűtz e Richard Thoma, Handbuch des deutschen Staatsrecht, Bd. II, 1932, em particular dos artigos de Carl Schmitt “Die Grundrechte und Grundpflichten des deutschen Volkes” e de Thoma, “Das System der subjektiven őffentlichen Rechte und Pflichten”. 19 Fenómeno que teve expressão bem evidente nas Constituições dos Estados socialistas, em que havia uma incindibilidade dos direitos e dos deveres – “O exercício dos direitos e das liberdades dos cidadãos é inseparável do cumprimento dos deveres e das obrigações” (artigo 59º da Constituição da URSS de 1977). Esta ligação entre os direitos e os deveres enfraquecia os direitos, funcionalizando-os, condicionando-os, dirigindo-os para um fim pré-determinado: o fortalecimento do socialismo. Ver sobre a matéria, entre nós, em termos claros e sucintos, Isabel Cabrita, Direitos Humanos. Um Conceito em Movimento, Coimbra, Almedina, 2011, p. 155-157.
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Os textos constitucionais que sucederam a estes regimes autoritários, em reacção ao desprezo pelos direitos, ignoraram – ou, pelo menos, menorizaram – os deveres. Essa omissão compreende-se pela necessidade de “exorcizar um passado dominado por deveres, ou melhor, por deveres sem direitos”20. A mesma tendência é visível nos instrumentos internacionais que definem o estatuto jurídico-internacional do indivíduo. Assim, no artigo 29º, número 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, afirma-se que “O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade”. Não existe, no entanto, nenhum desenvolvimento, ao nível internacional, sobre quais os deveres dos indivíduos, havendo nos Pactos de 1966 apenas uma referência preambular à ideia de deveres21. No Direito da União Europeia, as referências aos deveres são também parcas 22, sendo a referência aos deveres na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, mais uma vez, apenas preambular23. Da leitura do texto da Constituição de 1976, não pode, no entanto, concluir-se que os deveres fundamentais sejam invisíveis, como se afirma em relação à Lei Fundamental alemã24. A epígrafe da Parte I, Direitos e deveres fundamentais, à semelhança da Constituição de Weimar, coloca numa posição de paridade ambos os elementos do estatuto de cidadania e encontramos depois uma série de referências aos deveres – umas mais genéricas, à ideia de deveres – artigo 12º, 13º, número 2, 14º, 15º, número 1 – outras mais concretas, a deveres específicos – artigo 36º, número 5, artigo 64º número 1, artigo 66º, número 1, artigo 78º, número 1, artigo 88º, número 2, artigo 103º, artigo 113º, números 2 e 4 e artigo 276º. Os deveres fundamentais não estão, pois, implícitos na Constituição Portuguesa. Estão explícitos e bem visíveis. Não são em número comparável com os direitos fundamentais, mas são em número significativo. Esta presença dos deveres fundamentais foi até considerada excessiva por alguns autores. Foi o caso de Lucas Pires que, na sua tese de doutoramento, defendeu que os direitos estavam colocados numa posição de reciprocidade em relação a deveres simétricos e que tal facto constituía “uma anomalia, em relação à concepção liberal, pois, nessa reciprocidade, vai logo indiciada – e à cabeça – uma ‘essência social’ do indivíduo, na esteira de uma legenda típica da cosmovisão mais socializante”25. Apesar destes sinais de alguma controvérsia inicial em torno da ideia de deveres, muito marcada pelo “trauma” da funcionalização dos direitos, hoje o 20 José Casalta Nabais, “A Face Oculta dos Direitos Fundamentais”, em Por uma Liberdade com Responsabilidade – Estudos sobre Direitos e Deveres Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 166. 21 O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais, ambos adoptados e abertos à assinatura, ratificação e adesão pela resolução em 16 de Dezembro de 1966, têm o mesmo Preâmbulo, em cujo quinto e último considerando pode ler-se: “Tomando em consideração o facto de que o indivíduo tem deveres em relação a outrem e em relação à colectividade a que pertence e tem a responsabilidade de se esforçar a promover e respeitar os direitos reconhecidos no presente Pacto”.
22 Fausto de Quadros chama a atenção para o facto de os Tratados afirmarem que o estatuto da cidadania da União se desdobra em direitos e deveres, mas as respectivas normas só enunciam direitos e expressa a necessidade de no futuro se vir a proceder à “enunciação clara dos deveres incluídos no estatuto de cidadão da União”, em Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2004, p. 122-123. 23 “O gozo destes direitos implica responsabilidades e deveres, tanto para com as outras pessoas individualmente consideradas, como para com a comunidade humana e as gerações futuras.” – último considerando do Preâmbulo da Carta. 24 Ver Albrecht Randelzhofer, “Grundechte und Grundpflichten”, em Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa, Heidelberg, C.F.Műller, 2006, p. 604. 25 Francisco Lucas Pires, Teoria da Constituição de 1976 – A Transição Dualista, Coimbra, 1988, p. 341. Nos Estudos sobre a Constituição de 1976, Barbosa de Melo, Cardoso da Costa e Vieira de Andrade propuseram a eliminação da referência aos deveres da epígrafe da Parte I, ver páginas 35, 38 e 41 e seguintes. 20
reconhecimento de deveres fundamentais pela Constituição é um aspecto razoavelmente consensual. Havendo embora autores que omitem qualquer referência à ideia de deveres – ou que se limitam a uma referência marginal -, entre aqueles que se referem especificamente ao problema dos deveres fundamentais, há um consenso quanto à importância da figura e quanto à veemente recusa de uma interpretação que use os deveres como meio de fragilização dos direitos ou de funcionalização dos mesmos para uma finalmente socialmente definida26. Face a esta constatação, surpreende a circunstância de a jurisprudência – sobretudo a do Tribunal Constitucional – se referir tão raramente a deveres fundamentais, não nos tendo sido possível encontrar nenhuma decisão em que um dever tenha sido usado como fundamento decisório determinante e sendo muito poucos os acórdãos em que os deveres são invocados como elementos adicionais de ponderação. Tanto quanto nos foi possível averiguar, as parcas referências aos deveres fundamentais relacionam-se, fundamentalmente, com o dever fundamental de pagar impostos (implícito no texto constitucional27) e com o dever de educar e manter os filhos. Nas referências ao dever fundamental de manutenção dos filhos, consagrado no artigo 36º, número 5, da Constituição, pode ler-se, num Acórdão em que discutia a inconstitucionalidade de uma norma incluída no diploma da Organização Tutelar de Menores que, em relação aos progenitores cujos rendimentos se limitem a uma pensão social de invalidez, não determinava um montante mínimo de rendimento isento, o seguinte: “Os beneficiários imediatos deste dever fundamental são justamente os filhos, tratando-se de um daqueles raros casos em que a Constituição impõe aos cidadãos uma vinculação qualificável como dever fundamental cujo beneficiário imediato é outro indivíduo (e não imediatamente a comunidade). Assim, tal prestação é integrante de um dever privilegiado que, embora pudesse ser deduzido de outros lugares da Constituição [v.gr. do reconhecimento da família como elemento fundamental da sociedade (artigo 67.º) e da protecção da infância contra todas as formas de abandono (artigo 69.º)], está aqui expressamente consagrado, como correlativo do direito fundamental dos filhos à manutenção por parte dos pais. Estamos, como diz Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ªed., pág 169), perante um caso nítido de deveres reversos dos direitos correspondentes, de direitos deveres ou poderes-deveres com dupla natureza.” 28. Esta referência ao dever fundamental na fundamentação do Acórdão não parece ter sido determinante para a decisão que veio a ser adoptada (e que foi no sentido da não inconstitucionalidade). No seu voto de vencido, a Conselheira Teresa Pizarro Beleza chama a atenção para o facto de esta referência ao dever fundamental não ter sido relevante na ponderação feita pelo Tribunal entre o direito ao mínimo de susbsistência do progenitor e o direito à pensão de alimentos do(s) menor(es): 26 Neste sentido, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2003, p. 533 e seguintes, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2009, p. 159 e seguintes e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 4ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008 , p. 85/86. Casalta Nabais tem-se dedicado com particular empenho ao estudo dos Deveres Fundamentais e defendido a importância da figura e de se voltar a olhar para essa “face oculta” dos direitos, que inclui os deveres fundamentais e os custos dos direitos. 27 Ver, sobre este, José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos – Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo, Coimbra, Almedina, 1998. 28 Acórdão 306/2005, de 8 de Junho, relatado pelo Conselheiro Vítor Gomes, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
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“Votei contra a tese da inconstitucionalidade que fez vencimento, no essencial, porque entendo que, no conflito entre dois direitos de igual natureza, não pode fazer prevalecer-se o direito do titular que, simultaneamente, está adstrito, como se escreveu no acórdão, ao “dever fundamental (...) de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial”. Se bem entendemos o sentido desta declaração, ela significa que, muito embora o Tribunal reconheça a existência do dever, na ponderação sobre o conflito de direitos, não atribui nenhum significado à circunstância de esse conflito ser não apenas entre dois direitos fundamentais, mas nele intervir também um dever fundamental, o que, tendencialmente, faria pender a balança para o direito dos filhos à pensão de alimentos que concretiza o dever dos pais à sua manutenção. Ainda sobre os deveres dos pais relativamente aos filhos, mas na vertente de dever de educação dos filhos, no Acórdão 407/2010, vai-se um pouco mais longe, a nosso ver, na importância dada aos deveres fundamentais como critério adicional de ponderação da questão concreta de constitucionalidade em apreço, pois entende-se que a substituição do regime de regulação do exercício do poder paternal pelo regime do exercício conjunto das responsabilidades parentais é a melhor forma, da perspectiva do legislador, de conformar “o dever fundamental de educação dos filhos, impendente sobre os pais e inscrito na norma constitucional”. “Este entendimento do legislador, aliás claramente expresso na exposição de motivos constante do projecto de lei apresentado ao Parlamento, vem reforçar a ideia segundo a qual a realidade substantiva de que aqui se trata, reportando-se ao modo de exercício de algo que, constitucionalmente, se configura como um dever fundamental, pressupõe valorações de interesse público que vão muito para além da tutela de direitos ou de expectativas de quem quer que venha a ser “parte” em processo pendente em tribunal. A alteração do conteúdo dos poderes – deveres dos pais em relação aos filhos, operada pela lei nova, é conduzida em função dos superiores interesses destes últimos (ou da representação que o legislador tem quanto à melhor tutela de tais interesses) e não em função de “interesses”, ou de “posições jurídicas” dos pais.”29 Nesta fundamentação, a nosso ver, o direito de educação aparece subalternizado relativamente ao dever de educação, contrariando, assim, a perspectiva de que, nos deveres “coligados” associados aos direitos fundamentais, há, necessariamente, um primado do direito face ao dever30. No que diz respeito ao dever de pagar impostos, este vem, por vezes, referido em acórdãos em que se discute o sigilo bancário, explicando-se que as excepções a esta protecção da esfera pessoal visam salvaguardar “o bem constitucionalmente protegido da distribuição equitativa da contribuição para os gastos públicos e do dever fundamental de pagar os impostos”31 – em que o dever fundamental aparece como complemento, um reforço ao lado de um bem jurídico objectivo, a necessidade de obter receitas de modo equitativo. A importância dos deveres fundamentais Que importância deve ser reconhecida aos deveres e à sua consagração constitucional? Precisamos dos deveres enquanto categoria constitucional autónoma? 29 Acórdão 407/2010, de 9 de Novembro, relatado pela Conselheira Maria Lúcia Amaral, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. 30 Em nossa interpretação, neste sentido, Casalta Nabais, “Dos deveres fundamentais”, em Por uma Liberdade com Responsabilidade, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 223-224. 31 Acórdãos 602/2005, de 2 de Novembro, relatado pelo Conselheiro Bravo Serra, e Acórdão 672/2006, relatado pelo Conselheiro Paulo Mota Pinto.
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Não são suficientes os direitos e os deveres que estes geram na relação entre os cidadãos? Em nosso entender, precisamos de deveres. A cidadania reforça-se por um estatuto activo do cidadão que cumpre deveres e exige respeito pelos seus direitos. Uma cidadania da qual só resultam direitos individuais accionáveis, exigíveis perante o outro e perante o todo, o Estado, e em que o não cumprimento deveres não implica quaisquer consequências individuais é uma cidadania incompleta. Uma Constituição que contemple apenas direitos e retire dignidade constitucional aos deveres, relegando-os para o plano legal, é uma Constituição que transmite uma imagem desequilibrada do que significa ser cidadão. António Manuel Hespanha salienta a importância de se dar aos deveres uma atenção correspondente àquela que é prestada aos direitos, importando aqui distinguir e valorizar os deveres para com os outros, cumpridos através do Estado – como os clássicos dever de defesa da Pátria e “dever de capacitar a República – por meio do pagamento de impostos – para socorrer os mais carenciados” – e os deveres pessoais de solicitude, de cuidado pelo Outro, que existem entre familiares próximos (dos pais para com filhos, nos termos do previsto no artigo 36º, número 5 da Constituição) e mesmo perante desconhecidos (veja-se como exemplo o crime de omissão de auxílio, previsto no artigo 200º do Código Penal)32. Importa ainda voltar aos deveres para combater a “anemia cívica” hoje constatada genericamente por todos e que tem como sintomas o abstencionismo elevado33, a fuga ao fisco, estratégias individuais de minimização de deveres e de maximização dos direitos. Os direitos e os deveres podem reforçar-se mutuamente, sendo o cumprimento dos deveres razão adicional para uma participação cívica mais activa e exigente. Para além desta necessidade de “revigoramento cívico”, cremos que a definição clara do conteúdo da cidadania, em termos de direitos e deveres, pode ser um aspecto importante na hora de integrar nas nossas sociedades pessoas imigrantes. As dúvidas quanto aos deveres e quanto à sua fundamentalidade dificultam um bom “pacto de integração” entre quem acolhe e quem pretende integrar-se34. Um último elemento que pensamos poder ser também um contributo importante para um regresso aos deveres: a emergência de novos domínios, novas exigências éticas, como os que podem, porventura, ser melhor compreendidas através da figura dos deveres do que da figura dos deveres fundamentais. Referimo-nos aos 32 António Manuel Hespanha, O Caleidoscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no Mundo de Hoje, Coimbra, Almedina, 2007, p. 381 e seguintes.
33 Sobre o direito e o dever de sufrágio, Jorge Miranda, “Os direitos políticos dos cidadãos na Constituição Portuguesa”, “O exercício de sufrágio é um dever cívico (artigo 48º, nº 2). Dever cívico é expressão que também aparece no artigo 41º, nº 2 (sobre liberdade religiosa), a par ou contraposta a obrigação (como se entenda). E o seu significado, no mínimo, pode aproximar-se da noção de dever fundamental que é a defesa da Pátria em face do dever de serviço militar (artigo 276º, nos. 1 e 2).”. Sucede, porém que, no caso do dever de defesa da Pátria, há uma sanção grave para o seu não cumprimento, prevista no artigo 276º, número 6 da Constituição: “Nenhum cidadão poderá conservar nem obter emprego do Estado ou de outra entidade pública se deixar de cumprir os seus deveres militares ou de serviço cívico quando obrigatório”. O não cumprimento de dever cívico de sufrágio não tem qualquer sanção associada. Privilegia-se aqui uma noção de democracia enquanto participação dos cidadãos liberta de quaisquer constrangimentos, muito embora admitam a possibilidade de a lei estabelecer sanções para o não cumprimento do dever. Jorge Miranda e Vieira de Andrade não excluem esta possibilidade, muito embora aquele autor afirme o seu alcance será sempre muito reduzido, porque tais sanções “ não poderiam ofender o princípio da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2), o que sucederia, por exemplo, se a abstenção fosse criminalizada”; “não poderiam desrespeitar o conteúdo essencial do direito de voto, ligando, por exemplo, a abstenção a voto neste ou naquele sentido; nem poderiam traduzir-se em inelegibilidade, pois não pode haver outras causas de inelegibilidade além das cominadas na Constituição (artigo 50º, nº 3)” - Jorge Miranda, “Os direitos políticos dos cidadãos na Constituição Portuguesa”, em Prof. Inocêncio Galvão Telles: 90 Anos – Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra Almedina, 2007 e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 2004, p. 164. 34 A referência a “pacto de integração” não significa aqui a adesão a propostas de celebração solene de contratos escritos entre o Estado e os candidatos a autorizações de residência, mas tão-só o reconhecimento que, implicitamente, existe sempre um acordo de vontades entre quem permite a entrada e a fixação e quem pretende residir numa determinada sociedade e que tal acordo tem melhores possibilidades de êxito quando os imigrantes sabem, à partida, o que deles se espera. 23
“direitos das gerações futuras” (com particular destaque, entre estes, para a matéria ambiental) e aos “direitos dos animais”. A dificuldade que estes direitos sem sujeito titular, reconhecido como tal pela ordem jurídica, suscita, pode ser superada se olharmos para estas novas realidades como exigindo de nós novas formas de responsabilidade - não apenas intra-geracional e entre membros da comunidade humana – demandadas por titulares ideais que não têm existência real – as gerações futuras – ou por entes aos quais não reconhecemos capacidade para serem titulares de direitos – os animais. Se o reconhecimento de tais direitos é controverso, o mesmo não se pode dizer da necessidade de reconhecimento de deveres de conformação da conduta humana, em nome das gerações futuras ou dos animais 35. Um imperativo civilizacional impelenos nesse sentido. E a tradução desse imperativo pode passar mais por uma ética de responsabilidade e de deveres36 do que pela linguagem dos direitos.
35 Ver sobre o tema dos direitos dos animais, Fernando de Araújo, A hora dos direitos dos animais, Coimbra, Almedina, 2003 e também Maria Luísa Duarte, “União Europeia e garantia e bem-estar dos animais” em Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, II, 2006, p. 119 e segs. Sobre a evolução histórica da protecção legal dos animais, ver Sílvia de Mira da Costa Ramos, “A Protecção dos Direitos dos Animais”, em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 789-794. 36 Sobre a ética da responsabilidade, em particular na obra matricial de Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik fűr die technologische Zivilisation, Berlim, Suhrkamp, 2003. Na doutrina juspublicística portuguesa, ver, em particular, Maria da Glória Garcia, O Lugar do Direito na Protecção do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2007, p. 75 e seguintes e Jorge Pereira da Silva, “Ensaio sobre a Protecção Constitucional dos Direitos das Gerações Futuras”, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010, p. 464 e seguintes. 24
Breves reflexões sobre responsabilidade colectiva e finanças públicas Joaquim Freitas da Rocha37 1. Interesse público e gestão de dinheiros públicos
Embora as retóricas dominantes possam apontar nesse sentido, o Estado constitucional — entendido em sentido amplo e transnacional — não se cumpre apenas com a satisfação das exigências inerentes ao Estado de Direito e à Democracia, mas reclama igualmente, e em acentuada proporção, o cumprimento das demandas do Estado Social. Como se sabe, nos quadros deste último, avultam uma série de imposições constitucionais que reflectem necessidades de natureza colectiva (como a saúde, a educação e a protecção social), cujo cumprimento não pode deixar de ser visto como um imperativo jurídico inafastável, sob pena de se criar um modelo de existência meramente formal e até apelativo, mas carente de conteúdo. Na verdade, viver numa estrutura societária na qual as leis são claras e determinadas, a Administração observa a lei, as decisões dos Tribunais são respeitadas e todos podem votar livremente, não significa muito se não existem concomitantemente cuidados de saúde básicos, educação e formação de qualidade ou protecção e ajuda no desemprego e na velhice. O cumprimento dessas imposições e a satisfação dessas necessidades, porém, podem revelar-se extremamente problemáticos, contribuindo para tal a inevitável escassez de recursos públicos e a necessidade de a gestão destes últimos ser feita com respeito e observância das regras da legalidade, eficiência e transparência, ou, numa expressão sintética, ser feita de acordo com o imperativo do Interesse público 38. Aqui radica a conexão entre Finanças Públicas e Responsabilidade. A utilização dos dinheiros públicos só pode ser efectuada com observância das finalidades para que os mesmos são pensados e obtidos — em rigor, e na maior parte das vezes, arrecadados sob a forma de tributos ou outras formas onerosas — e com base num quadro disciplinador preciso, embora com componentes de flexibilidade e adaptação. O incumprimento desse quadro deverá obrigar o respectivo infractor a prestar contas e, sendo caso disso, a incorrer em consequências gravosas e desfavoráveis, sob a forma de assunção de responsabilidade aos mais diversos níveis: disciplinar (sujeitando-se a sanções hierárquicas), civil (indemnizando eventuais lesados), criminal (sofrendo multas, penas de prisão ou outras penas) e financeira (por exemplo, por via da reposição dos dinheiros em causa). Todavia, não apenas dos pontos de vista individual e jurídico estes problemas devem ser analisados, pois descobrem-se com facilidade dimensões supraindividuais e éticas que não podem ser desconsideradas ao nível da escolha ineficiente (ou deficiente) de bens públicos. Basta pensar, por exemplo, na culpas que toda uma colectividade pode ter na degradação dos recursos naturais, na deterioração dos cuidados de saúde e de educação, na delapidação do património cultural e monumental, na corrosão do sistema de justiça ou na extenuação do sistema democrático para se constatar que a responsabilidade envolve igualmente um enfoque 37 Doutor em Direito. Professor Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho. 38 Para outros desenvolvimentos a respeito deste princípio da prossecução do Interesse público em matéria de Direito Financeiro Público, v o nosso Sustentabilidade e finanças públicas responsáveis. Urgência de um Direito Financeiro equigeracional, in Estudos em Homenagem ao Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Coimbra, em fase de publicação.
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colectivo e um outro de natureza ética transportando para as gerações futuras encargos não desprezíveis. Antes de procurar demonstrar se é possível falar numa responsabilidade colectiva em matéria de finanças públicas numa perspectiva intergeracional — propósito nuclear do presente escrito —, será conveniente assentar algumas premissas de análise que perpassarão todo este trabalho e que subjazerão a todas as considerações. Em primeiro lugar, torna-se indispensável localizar o tema no quadro de uma adequada teoria das finanças públicas – trata-se aqui de compreender que, mais do que opções localizadas tomadas de acordo com critérios estritamente políticos, o que está em causa é a produção, criação e manutenção de bens públicos e semi-públicos com vista à satisfação de necessidades financeiras e colectivas. Esses bens — como hospitais, centros de saúde, estradas, universidades, escolas, prestações sociais, etc.—, evidentemente, não são produzidos a curso zero, nem sequer a baixo custo, mas são financiados por via de receitas públicas, quadro em que os impostos, as taxas, os empréstimos e as transferências públicas ganham relevo. Neste contexto, importa desde agora salientar que construir o bem em questão não é suficiente para satisfazer a(s) necessidade(s), sendo igualmente indispensável projectar a sua manutenção e conservação em termos de utilização futura, bastando pensar, por exemplo, na longevidade de equipamentos como um hospital ou uma linha de caminho de ferro para se aquilatar da importância desta premissa. Em segundo lugar, importa referir que a meta lucrativa dificilmente poderá ser estabelecida como o farol orientador da produção deste tipo de bens. Isto porque as componentes sociais e jurídicas (constitucionais) que atravessam o fornecimento de bens públicos e semi-públicos na maior parte das vezes não se compaginam com a viabilidade económica da sua produção, pois estamos a falar de equipamentos e prestações cuja oferta e cuja procura não se regem pelos tradicionais (?) critérios de mercado, em termos de se poder fixar um preço em função do custo de produção ou das variações daquelas. Basta pensar que se os custos de um serviço de saúde fossem equivalentes aos custos inerentes aos equipamentos adquiridos por um hospital, muitos poucos utentes os poderiam pagar. Por outro lado, muitos desses bens, devem ser disponibilizados gratuitamente — embora em termos económicos, nenhum o seja, pois em última análise serão financiados por via dos impostos de todos —, ou a um custo muito reduzido, pois visam satisfazer necessidades básicas e essenciais à dignidade da pessoa humana, como acontece com a garantia de subsistência, a saúde ou a educação. Em todo o caso, tendencial gratuitidade não significa absoluta gratuitidade, pois os impostos, empréstimos e transferências financiam primacialmente a produção inicial dos bens e não a sua manutenção, sendo razoável exigir dos utentes respectivos uma quota de esforço na repartição dos custos, nomeadamente sob a forma de taxas de utilização. Em terceiro lugar, cumpre enfatizar que a maior parte dos sistemas financeiros públicos actuais atravessa um preocupante ciclo de crise e que a melhor forma de o combater e superar passa pela diminuição da despesa pública, e não tanto pelo aumento das receitas, em face do nível de saturação fiscal e de endividamento da maioria dos Estados. Aqui, com VITO TANZI entendemos que esta redução assenta essencialmente em três pilares, a saber: (i) a adequada regulação do mercado e da concorrência, permitindo que certos bens possam ser deslocalizados para os privados em termos de assegurar o seu fornecimento equitativo; (ii) a redução da gratuitidade e o aumento da onerosidade, introduzindo taxas com o objectivo de limitar a procura desnecessária de serviços públicos; e (iii) o aproveitamento dos benefícios da 26
globalização, concentrando a produção naqueles bens que com proveito podem ser produzidos a nível interno, e importando aqueloutros que a baixo custo são produzidos noutros quadrantes 39. Em quarto lugar, finalmente, não pode ser perdido de vista que não são apenas os argumentos financeiros stricto sensu que devem ser considerados no momento da ponderação e da tomada de decisão em matéria de finanças públicas, havendo que atender igualmente a outro tipo de juízos. Por exemplo, no momento de se considerar a redução da despesa pública por via da diminuição do peso dos funcionários públicos, não podem ser deixadas de parte as limitações que decorrem dos estatutos de cada funcionário, bem assim como as diversas alternativas que podem concorrer no mesmo sentido: despedimento, valorização dos trabalhadores através do estabelecimento de justos prémios de desempenho ou de remunerações em função da produtividade, combate ao absentismo, etc. Em suma: decisão financeira não é sinónimo de decisão financista. Pois bem. Tudo o que foi dito tem como propósito enquadrar e subscrever a ideia de que a gestão dos dinheiros públicos deve ser feita de um modo responsável 40. Procuremos agora ver de que modo essa responsabilidade pode emergir. 2. Teoria da deliberação prática e ética da responsabilidade
O correcto enquadramento da ideia de responsabilidade não pode deixar de ser efectuado sem o ancoramento do discurso nos domínios da escolha da direcção da conduta humana – por outras palavras: no campo da deliberação prática. Com efeito, apenas será correcto dizer que alguém é responsável por algo se esse alguém, em algum momento, pode escolher um caminho a seguir de entre vários, o que equivale a defender que, de um ponto de vista teórico, a teoria da responsabilidade se enquadra no domínio mais vasto da teoria da ordenação da vontade. Nesta moldura lógica, falase em pautas da acção humana, i.é, padrões de comportamento que servem de parâmetro aferidor da validade das condutas, permitindo afirmar se estas são boas ou más, valiosas ou desvaliosas, num contexto de escolhas e selecções, sacrifícios e renúncias. Tendo presentes estas coordenadas, pode avançar-se com uma proposta de noção de responsabilidade (meramente operativa para estes propósitos): nexo entre determinado actor e o resultado das suas acções. Neste sentido, um sujeito actuante será responsável se puder ser chamado a contas pelos seus próprios actos, o que pressupõe, por um lado, que ele se determinou a si mesmo a actuar e, por outro lado, que ele poderia ter optado e actuado de outro modo. Intui-se claramente que a noção de responsabilidade, na maior parte das situações, comporta duas dimensões distintas mas sobrepostas e comunicáveis entre si: uma, íntima e psicológica, que se legitima por si mesma e a que chamaremos dimensão moral; outra, externa e jurídica, que já necessita de um processo de legitimação exterior ao sujeito e resultante da comunidade onde ele se insere 41. Por outro lado, do ponto de vista subjectivo, é possível falar-se numa responsabilidade individual por oposição a uma responsabilidade colectiva, consoante o juízo de valoração dos actos tenha por referência e destinatário um sujeito determinado e 39 V. TANZI, Vito, Role of Government and public spending ina changing world, in Rivista di Diritto Finanziario e Scienza delle Finanze, ano LXIV, 3, 2005, 338. 40 V., apara uma visão completa, Finances publiques et responsabilité: l´autre reforme, in Revue Française de Finances Pubiques, 92, Novembro 2005. 41 Assim, SOTELO, Ignacio, Moralidad, legalidad, legitimidad: reflexiones sobre la ética de la responsabilidad, in Isegoria (Revista de filosofía moral y política), 2, 1990, 40, disponível em http://isegoria.revistas.csic.es/index.php/isegoria/article/view/389/390.
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individualizado ou uma pluralidade de agentes, uma colectividade ou uma comunidade, com os seus membros indistintamente vistos 42. Da consideração destas duas dicotomias classificatórias, é possível retirar um conjunto de quatro possíveis opções abstractas de imputação de resultados da acção (tetracotomia da responsabilidade): i) responsabilidade moral individual; ii) responsabilidade jurídica individual; iii) responsabilidade moral colectiva; iv) responsabilidade jurídica colectiva. Importa desde já assumir sem hesitações que se rejeita qualquer espécie de individualismo extremo, colocando a centralidade exclusivamente do indivíduo e na sua acção, glorificando o eu e secundarizando os outros, advogando a amplificação dos direitos e das opções, e reduzindo o espaço dos deveres e da responsabilidade. Porque se entende que tal postura coloca em crise qualquer tentativa de solidariedade social 43 — que defendemos —, entendemos que será preferível uma postura personalista, que coloque a centralidade na pessoa (e não no indivíduo) e nas suas diferentes dimensões, individual e colectiva, e que possa fundar uma verdadeira ética da responsabilidade solidária 44. 3. A Responsabilidade colectiva 3.1.
A teoria gradualista da responsabilidade
Em matéria de finanças públicas e de decisões financeiras públicas, e não obstante outras dimensões relevantes que serão aqui contornadas e afastadas (v.g., imputação disciplinar, civil, criminal e financeira dos agentes faltosos), a noção de responsabilidade assume presentemente maior importância de for dimensionada numa perspectiva jurídica transpessoal e colectiva, que procure buscar as consequências das más opções tomadas pela comunidade no seu todo. Compreende-se que seja um caminho difícil de trilhar e no qual será complicado atingir resultados materializáveis e concretos, até porque se está a lidar com categorias meramente lógicas e não ontológicas, como a “sociedade”, a “comunidade”, a “geração” — que não têm existência física —, o que tradicionalmente tem impedido o estabelecimento em termos práticos, conclusivos e peremptórios de um nexo de causalidade entre determinada acção e determinado resultado. Contudo, os desenvolvimentos recentes da ciência jurídica — particularmente no âmbito do Direito criminal e contraordenacional — parecem indiciar que o caminho a trilhar poderá ser outro. Na verdade, tendo como pano de fundo a Collective Moral Autonomy Thesis começa a ser entendimento cada vez mais disseminado que um grupo ou uma comunidade podem eles próprios ser responsabilizados — ou, no mínimo, ser chamados a prestar contas pelas actuações individualizadas dos seus membros — e, mais do que isso, podem sofrer sanções. Como facilmente se compreende, a aceitação — à qual se adere — da ideia de responsabilidade colectiva traz implícita a superação da concepção individualista ou personalista de imputação, de acordo com a qual 42 V., a respeito do tema, MILLER, Seumas, The Moral Foundations of Social Institutions. A Philosophical Study,Cambridge university Press, Cambrodge, 2010, 120 e ss. 43 V. CHAFUEN, Alejandro, Personalismo vs. Individualismo: o seu impacto na política pública, in Revista Portuguesa de filosofia, 65, 2009, fasc. 1-4, 235. V., ainda, BALAKRISHNAN, Uma, DUVALL, Tim e PRIMEAUX, Patrick, Rewriting the Bases of Capitalism: Reflexive Modernity and Ecological Sustainability as the Foundations of a New Normative Framework, in Journal of Business Ethics, 2003, 47, 300. 44 Cfr., a propósito, TAM, Henry, Communitarianism. A new agenda for politics and citizenship, MacMillan Prés Ltd., London, 1998, 14 e ss.
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apenas os sujeitos individuais (pessoas singulares) são susceptíveis de ser responsabilizados pelas suas acções, não aceitando que os grupos o possam ser, independentemente dos seus agentes ou componentes 45. Pelo contrário, uma concepção transpersonalista, defende que tais grupos podem e devem ser chamados a prestar contas por algumas das suas actuações, exigindo-se ab initio que esse grupo tenha personalidade jurídica, como acontece com as pessoas colectivas legalmente constituídas, particularmente com as pessoas colectivas de Direito público, e mais especificamente ainda com o Estado. É certo que em última análise e em termos práticos, sob pena de se cair nos campos da inconsequência, da ineficácia e da inoperatividade, a imputação colectiva há-de obrigar a que os resultados da prestação de contas devam posteriormente ser imputados a alguns membros dessa pessoa colectiva, uma vez que esta, não tendo existência física (embora tenha existência jurídica), não poderá sofrer, ela própria, as consequências. Tais membros chamados à responsabilidade podem sê-lo quer a título individualizado — através do exercício do direitos de regresso, como acontecerá com os sócios ou administradores em relação a uma sociedade ou com os legisladores que emanam uma má lei ou os juízes que aplicam erradamente a lei em relação ao Estado —, quer a título não individualizado ou genérico, em que a responsabilidade é disseminada por todo um grupo, como acontece quando as sanções impostas a um Estado se vão repercutir na esfera jurídica de todos os contribuintes por vias do aumento dos impostos ou de outras restrições de direitos, liberdades ou garantias. Podemos assim dizer que uma adequada teoria da responsabilidade colectiva pressupõe dois momentos (teoria gradualista da responsabilidade): um primeiro momento de imputação da má acção ao grupo e um segundo momento de devolução dessa imputação aos elementos desse grupo. Porventura este segundo momento da imputação poderá ser injusto, principalmente se a responsabilidade for disseminada por todo o grupo, pois alguns elementos podem não ter tomado parte no procedimento conducente à tomada da decisão errónea ou se tenham mesmo oposto a ela. Contudo, não pode deixar de se aceitar que os grupos não são biologicamente espontâneos, mas resultam de um consenso social entre os seus membros no sentido de o formarem, o que traz a consequência de que não apenas os benefícios mas também as desvantagens devem ser imputadas ao grupo e posteriormente devolvidas aos seus membros, isto é, o que afecta a comunidade, positiva ou negativamente, afecta igualmente cada um dos seus elementos. Evidentemente que tal pressupõe um indispensável sentimento de pertença e de co-direcção, que permita que todos se sintam parte de um todo (coesão social, a qual começa a ser colocada em crise nos modelos societários actuais) e, mais do que isso, que todos se sintam como condutores dos destinos desse todo, superando o individualismo e encontrando um momento de identidade transcendente. Aqui chegados, um refinamento analítico se impõe: nos desenvolvimentos subsequentes centrar-se-ão as considerações apenas na responsabilidade jurídica colectiva, e particularmente na questão de saber se a geração presente pode ser chamada a responder pelas más actuações das gerações que as precederam. Em termos jurídicos práticos, e porque a geração não tem personalidade: se o Estado presente pode ser chamado a responder pelas más actuações do Estado passado. 3.2.
A responsabilidade entre gerações
45 A respeito do tema, v. RISSER, David T., Collective Moral Responsibility in The Internet Encyclopedia of Philosophy [peer-reviewed], http://www.iep.utm.edu/, [02 de Outubro de 2011].
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Uma das dimensões juspublicistas mais relevantes da responsabilidade colectiva pode ser encontrada no domínio da responsabilidade entre gerações, assumindo-se que o decisor actual não é um “agente único” e rejeitando-se a clássica teoria do desconto na consideração do valor das actuações (teoria essa que defende que na ponderação do valor social das medidas actuais se “descontam” — ou não consideram — os impactos no futuro 46). Importa começar por salientar que o próprio conceito de geração se apresenta de um modo inevitavelmente convencional, no sentido de se revelar um conceito útil apenas no contexto em que está a ser utilizado, não sendo possível um conceito analítico, preciso e determinado 47. Como já foi várias vezes salientado, as pessoas pertencentes a um grupo não nascem nem morrem ao mesmo tempo, além de que podem não desenvolver um sentimento de pertença que as faça sentir como parte de uma mesma geração. Em todo o caso, para os presentes propósitos e de um modo simples, entender-se-á por geração o conjunto amplo de pessoas nascidas num mesmo lapso temporal que outras, de modo a que se possa distinguir os que já não vivem (gerações passadas), os maiores que vivem (geração presente), e os menores que vivem e os que ainda nascerão (geração e gerações futuras). A partir desta precisão, é possível afirmar-se que a responsabilidade intergeracional é um tipo de responsabilidade que se impõe em primeira linha como consequência de um dever de natureza ética, um imperativo moral 48 que impende sobre a sociedade no seu todo e sobre cada um dos seus elementos em particular, no sentido de acautelar um projecto de felicidade que supere as contingências temporais inerentes ao ciclo de existência de cada um. Tal componente ética é — rectius: deve ser — posteriormente revestida por um invólucro jurídico, em consequência do processo de desenvolvimento da consciência humana e da maturidade cultural de um povo, fazendo impender sobre uma geração o resultado das actuações de outra ou outras. Esta juridificação do imperativo resulta verdadeiramente imprescindível, na medida em que as actuações espontâneas (v.g., o mercado), só por si não reconhecem os direitos do futuro, havendo necessidade da sua imposição normativa, designadamente ao nível constitucional, como linha de comportamento 49. Reconhece-se assim um verdadeiro imperativo de intertemporalidade, uma ética do futuro (Zukunftsethik) 50, que comporta por um lado uma dimensão preventiva — no sentido de demandar da geração presente o dever de acautelar o projecto de felicidade das gerações futuras — e por outro lado uma dimensão repressiva — no sentido de a geração presente poder ser chamada a responder pelos erros das gerações passadas. Naturalmente que de um ponto de vista jurídico, a responsabilidade entre gerações não pode assentar a sua existência e efectividade no binómio clássico poder –dever, ao menos numa concepção sinalagmática que os conceba de modo equivalente, recíproco e interdependente. Isto porque, quer na dimensão preventiva quer na dimensão repressiva acima apontadas, o outro pólo da imputação ou pode ainda não existir (a geração futura) ou pode já não existir (a geração passada). Além 46 V. PADILLA ROSA, Emílio, Equidad intergeneracional y sostenibilidad. Las generaciones futuras en la evaluación de politicas y proyectos, Instituto de estúdios fiscales, Investigaciones, n.º 1/02, Madrid, 2002, 15 e 25 e ss. 47 Cfr., a propósito, BUCHANAN, Neil. H., What do we owe future generations?, in George Washington Law Review, 77, 2009, 1250. 48 V. BUCHANAN, Neil. H., What do we owe future generations?, cit., 1237. 49 Porém, e como muito bem observa PADILLA ROSA (ob. cit., 56), el simple reconocimiento constitucional de los derechos del futuro no garantiza que éstos sean respectados en la práctica. Las generaciones futuras no tienen representantes ni en los mercados ni en la gestión politica. Consequentemente — prossegue o autor, e aderimos à sua retórica —torna-se necessária a criação de instituições presentes que actuem como “representantes, defensores y tutores” dos direitos das gerações vindouras, fazendo com que estes sejam efectivamente respeitados, sob pena de sanções reais (a aplicar no momento presente). 50 A propósito, v. IRRGANG, Bernhard, Nachhaltigkeit als Ideologie?, in Revista Portuguesa de filosofia, 59, 2009, fasc. 3, 778 e ss.
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disso, não deve ser perdida de vista a ausência de forma dos sujeitos em questão (as gerações), o que contribui para que um eventual nexo de responsabilidade se revele fluído e quebradiço, levando a que se afirme que a relação intergeracional é uma relação de natureza e estrutura difusa e subjectivamente descentrada 51. Outro embaraço jurídico resulta do facto de se estar em presença de uma relação que, ao menos numa primeira análise, não faz nascer direitos justiciáveis, isto é jurisdicionalmente demandáveis. Sobre este ponto, porém, reflectiremos adiante. Por agora, procuremos direccionar as reflexões para um sentido diverso. 4. A responsabilidade entre gerações no domínio das finanças públicas
Como acima superficialmente se referiu, o imperativo de salvaguarda das gerações futuras projecta-se numa dimensão preventiva e numa dimensão repressiva, consoante se tenha em vista, respectivamente, uma finalidade de antecipação ou de consumação de resultados das actuações de uma geração em relação a outra(s). Com o objectivo de evitar que a análise se situe no superficial domínio das vaguidades e das trivialidades discursivas, procuremos indagar as exigências inerentes a cada uma dessas dimensões, tomando como âncora de praticabilidade o domínio do Direito Financeiro Público e das Finanças Públicas. 4.1.
Dimensão preventiva
4.1.1. Selectividade da despesa pública e não oneração excessiva
Nesta primeira dimensão, a responsabilidade entre gerações consubstancia-se na exigência de que a geração presente deva procurar garantir um modelo de existência adequado para as gerações que se lhe seguirão, ou, na linha do que já por outros foi referido, projectar nos destinatários futuros um conjunto de condições abstractamente ponderadas que, na sua globalidade, sejam melhores do que as condições vividas no momento presente (“The better than me standard”) 52. Será importante enfatizar que a salvaguarda das gerações futuras não pode ser levada ao ponto extremo de ser considerada uma vinculação para as mesmas – não se trata de impor modelos de existência, nem amarrar os vindouros aos projectos actuais, mas tão somente de formular opções para o futuro que sejam tendencialmente imparciais, permitindo a existência de pressupostos igualitários e solidários. Uma leitura deste princípio que será de rejeitar liminarmente será aquela que, ao estilo das sociedades pré-modernas, assuma uma determinada concepção de felicidade e a impunha a todos, cerceando as suas escolhas. Por outro lado, também não se pode pensar que se trata e uma promessa inquebrável, tendo-se sempre presente que, apesar de todos os esforços, as gerações presentes não conseguem assegurar nem garantir resultados certos, mas apenas possibilidades de obtenção de resultados. O que se pretende é permitir no futuro o pleno desenvolvimento da personalidade de cada um, dentro dos limites do possível, não sendo legítimo esperar dos antecessores um nível concreto de prestações ou realizações 53. Apesar das dificuldades de indeterminação do nível de adequação que poderá ser considerado justo, sempre se pode afirmar que do ponto de vista jurídico se 51 A respeito das dificuldades de enquadramento da relação intergeracional, v. KOSLOWSKI Peter, Gerechtigkeit zwischen den Generationen: Globale Perspektiven, in Revista Portuguesa de filosofia, 65, 2009, fasc. 1-4, 506. 52 Cfr. BUCHANAN, What do we owe future generations?, cit., 1257 e ss. 53 Cfr., num sentido análogo, VAN PARIJS, Philippe, Que é uma Nação Justa, um Mundo Justo, uma Empresa Justa?, in Revista Portuguesa de filosofia, 65, 2009, fasc. 1-4, 131 e ss.
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reclama — mais do que isso: se impõe — que os decisores normativos presentes (o legislador lato sensu) tenha um âmbito de projecção alargado, incluindo nas suas determinações cenários e quadros de longo prazo, aos mais diversos níveis, mas principalmente aos níveis social, económico e político. Exige-se-lhes que não se limitem (irresponsavelmente) a incluir no processo motivacional apenas os efeitos circunscritos ao momento em que a decisão está a ser tomada e que procurem antecipar efeitos que essa decisão poderá produzir no futuro (“consider the future consequences of present actions” 54). Procurando concretizar este imperativo, pode afirmar-se que uma primeira exigência concreta se materializa no princípio da selectividade da despesa pública: deve ser atribuída prioridade e preponderância às despesas publicas de natureza reprodutiva, com utilidades a ser irradiadas para momentos temporalmente diferidos, que permitam que os filhos e netos dos que actualmente decidem também possam usufruir dos respectivos proveitos e vantagens. Será o que se passa designadamente, com a construção de equipamentos de ensino (estabelecimentos pré-escolares, escolares, politécnicos e universitários), equipamentos de saúde (centros de saúde, centros de ambulatório, hospitais), infraestruturas de transportes (linhas de caminho de ferro, instalações portuárias e aeroportuárias, estradas) ou equipamentos culturais (teatros, museus, bibliotecas). Opostamente, serão de evitar as despesas correntes, cuja utilidade tem tendência a esgotar-se no próprio período em que são efectivadas. Contudo, importa ter presente que muitas destas despesas correntes podem ser forçosas e imprescindíveis (como por exemplo, o pagamento de vencimentos a funcionários públicos, a manutenção dos serviços públicos ou a atribuição de certos subsídios), de modo que esta regra da evitabilidade se deve afirmar meramente tendencial. Este princípio da selectividade, se for juridicamente bem dimensionado, fundamentará um verdadeiro direito fundamental à boa despesa pública, considerando-se como “boa” aquela que respeite as exigências do princípio da proporcionalidade, isto é seja absolutamente necessária, adequada e quantitativamente proporcional, tendo o fim que se pretende atingir (a necessidade a satisfazer). Mas, ainda dentro desta dimensão preventiva e porventura mais importante do que o tipo e a qualidade da despesa — ou, no mínimo, tão importante quanto isso — será o modo de financiamento da mesma. A este respeito, o princípio em análise (responsabilidade intergeracional) exige que as gerações futuras não sejam sobrecarregadas com o pagamento das despesas da geração actual, principalmente por via dos tributos que lhe sejam exigidos. Como bem refere BECKER, Die Schulden von heute sind die Steuern von morgen 55. Com efeito, se a geração presente efectua muitas despesas públicas, mesmo reprodutivas, e as financia com recurso ao crédito, lógico se torna concluir que se estivermos em presença de crédito de médio e longo prazo, o ónus ou encargo do respectivo pagamento vai recair sobre quem não tomou parte na decisão despesista, agravando-se as consequências negativas se as utilidades entretanto temporalmente diferidas forem reduzidas ou se forem diluindo com o passar dos anos. Neste último caso, teremos uma geração a pagar bens públicos e semi-públicos relativamente aos quais pouca ou nenhuma utilidade retira 56. 54 Assim, Krysiak, Frank C., Risk Management as a Tool for Sustainability, in Journal of Business Ethics, 2009, 85, 483.
55 Assim, BECKER, Andreas, Generationengerechte Finanzpolitik, in Handbuch Generationengerechtigkeit, (org. Jörg Tremmel), Öko, München, 2003, 251. 56 Em termos mais amplos e abrangentes, o princípio da salvaguarda das gerações futuras, traduz-se em limites constitucionais expressos, denominados como “regras de ouro das finanças públicas”. Entre elas, relevam a regra de exigência de equilíbrio orçamental, a proibição do recurso ao crédito, o estabelecimento de tectos para a despesa pública, e a imposição de limites máximos para a dívida pública (Schuldenbremse). V., SOULAY, Carine, La «règle d´or» des finances publiques en France et en Allemagne: convergence au-delà dês différences?, in Revue Française de Finances Publiques, 112, 2010, 187 e ss. e
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4.1.2. Domínios específicos de imposição de responsabilidade
Assumindo que existe um dever ético de salvaguarda das condições de existência das gerações vindouras e que o mesmo se materializa posteriormente numa imposição de natureza jurídica — cuja violação poderá fazer incorrer em responsabilidade, como adiante se verá —, será conveniente densificar o conteúdo respectivo, sob pena de resvalar a retórica para os campos da generalidade e do lugar comum que se pretendem evitar. A este respeito, dir-se-á que são muitos os domínios em que os decisores actuais devem considerar e ponderar as consequências longínquas das suas actuações, se tal não se impuser mesmo em todos os casos. Seja como for no quadro de muitas outras áreas que poderiam ser atendidas — como o ordenamento território, a preservação do património cultural, a salvaguarda do direito ao trabalho, etc. —, tendo em conta as limitações inerentes ao presente trabalho, sobrelevam-se aqui as seguintes: educação, recursos naturais e ambiente, protecção social e saúde. Serão estes os domínios específicos de imposição de responsabilidade. Vejamos em que termos. a)
Ensino
O primeiro desses domínios a ser destacado – e aqui considerado porventura o mais importante sob o ponto de vista ético e responsabilizador –, é o domínio da educação, precisamente por ser aquele no qual a componente preventiva e antecipatória melhores resultados pode atingir. Neste campo, as políticas públicas em geral e as despesas públicas em particular devem ser fortemente direccionadas no sentido da aposta na formação de gerações preparadas para enfrentar desafios e ambientes adversos, recusando o facilitismo e a permissividade e acentuando a excelência, a exigência e o rigor. Por conseguinte, uma boa gestão de dinheiros públicos e uma correcta política de despesa educacional deverá atribuir preponderância a programas de financiamento do acesso e ao ensino e frequência do mesmo (promovendo a sua universalização e igualitarização), a cursos de formação avançada de professores, a campanhas de promoção da excelência e da cidadania, e à aquisição de bens duradouros e úteis (como bibliotecas ou centros de informática). Inversamente, deverão ser evitadas as despesas em bens correntes ou que podem ser considerados supérfluos (v.g., campanhas públicas relativas a eventos desportivos de massas ou a concursos televisivos, salas de jogos, centros de informática de carácter lúdico) ou então em bens que se afiguram mesmo prejudiciais (por exemplo, bares de fast-food ou divulgação de reality-shows). Do ponto de vista das receitas, o sistema educacional, no que concerne às suas dimensões estruturais e fundacionais deverá ser financiado principalmente por via dos impostos, ao passo que as suas dimensões de manutenção e de conservação deverão procurar o financiamento em taxas de utilização, a pagar pelos respectivos utentes, mas sempre com um regime legal enquadrado pela ideia de serviço público, nomeadamente prevendo isenções e reduções em termos adequados e proporcionais. Consequentemente, a imposição de propinas revela-se indispensável, embora deva ser feita com moderação.
MAGIN, Christian, Die Wirkungslosigkeit der neuen Schuldenbremse. Warum die Staatsverschuldung weiterhin ungebremst steigen kann, in Wirtschaftsdienst, 90, 2010, 262 e ss.
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O objectivo fulcral, num caso ou no outro, será sempre o de formar cidadãos activos, preparados, e com espírito criativo e empreendedor 57. b)
Recursos naturais e ambiente
Outro domínio que envolve elevados factores de ponderação, preservação futura e prevenção é o dos recursos naturais e ambiente, sendo mesmo uma área na qual, tradicionalmente, se têm direccionado muitos trabalhos jurídicos. Aqui, procurase sobrelevar o direito que cada pessoa tem a uma capacidade económica e ecológica não deteriorada pelas actuações dos antecessores 58, o que passa obrigatoriamente, ao nível da despesa, pelo incentivo aos “consumos verdes” (aposta política nas energias renováveis, redução nos serviços públicos dos encargos em combustíveis tradicionais, estabelecer metas de poupanças de água e luz, etc.) e ao nível da receita na introdução de ecoimpostos e ecotaxas. Para a importância que o Direito do ambiente tem vindo a assumir contribui sobremaneira a imposição constitucional de preservação dos recursos naturais para as gerações futuras, de modo a garantir a satisfação das suas necessidades 59. c)
Protecção social
O sector mais problemático em termos de sustentabilidade financeira e que em maior grau se exige o rigoroso cumprimento de um “contrato implícito entre gerações” é, sem margem para dúvidas, o da protecção social, aqui encarada de um modo geral, e abrangendo as prestações sociais não específicas. Em termos pouco rigorosos, trata-se daquilo que convencionalmente se designa por “sistema de segurança social”, sendo que a questão da respectiva sobrevivência a longo prazo tem sido já bastante questionada por diversos actores 60. Na verdade, verifica-se uma inegável falta de cuidado em termos de politicas públicas, que em devido tempo não trataram de assegurar o ambiente económico e sociológico adequado para que um sistema desta natureza pudesse sobreviver, descurando a produtividade económica e o emprego — que contribuem para o manancial de quotizações — e não prevendo as implicações da mudança das estruturas demográficas, nomeadamente ao nível do envelhecimento das populações — assistindo-se a um cada vez maior número de beneficiários e um cada vez menor número de contribuintes. Naturalmente que num sistema em que poucos pagam e muitos recebem a viabilidade fica posta em causa. Acrescem as condicionantes jurídicas: a CRP impõe um sistema subjectivamente universal (“todos têm direito à segurança social”) e materialmente alargado (apoio “na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de 57 Algum paralelo, embora não identificação completa, com os objectivos estratégicos delineados pela UE. V. as Conclusões do Conselho de 12 de Maio de 2009 sobre um quadro estratégico para a cooperação europeia no domínio da educação e da formação («EF 2020»), disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do? uri=OJ:C:2009:119:0002:0010:PT:PDF . 58 V. PADILLA ROSA, Emílio, Equidad intergeneracional y sostenibilidad..., cit., 16. 59 Cfr. art.º 66.º, n.º 2, alínea d) da CRP. 60 Sobre a crise dos sistemas de protecção social, v. GOODIN, Robert E., Treating likes alike, intergenerationally and internationally, in Policy Sciences, 1999, 32, 194 e ss. e o volume Las nuevas fronteras de la protección social. Eficiencia y equidad en los sistemas de garantia de rentas, in Hacienda Publica Española, Monografia 2003. Acerca das possíveis limitações constitucionais a tais reformas, v. o nosso A solidez das finanças públicas estaduais e o Direito da União europeia. Em particular, o pacto de estabilidade e crescimento e o procedimento relativo a défices excessivos, in Direito da União Europeia e Transnacionalidade, Acção Jean Monnet (Information and Research Activities), Quid Iuris, Lisboa, 2010, 152.
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subsistência ou de capacidade para o trabalho”) de protecção social 61 e não está colocado de parte o princípio da proibição do retrocesso social, o qual, embora não tenha previsão constitucional expressa, merece dignidade constitucional, embora com a reserva do possível. Além disso outras condicionantes intrasistémicas contribuem igualmente para a debilidade do edifício garantístico, como sejam a atribuição de ajudas sem a sujeição à condição de recursos e a substituição da “velhice cronológica” pela “velhice funcional”, possibilitando o antecipar de reformas de modo irresponsável. O respeito pelas gerações futuras impõe aqui, em maior grau, um conjunto de políticas financeiras responsáveis que deverão passar desde logo por uma rigorosa gestão da despesa, seja antecipando-as e evitando-as (por exemplo por via de campanhas de promoção da boa saúde, e do consequente prolongamento da vida activa e do aumento da idade das reformas), seja conferindo uma maior selectividade na sua efectivação, controlado a atribuição de prestações (dando-as efectivamente a quem delas precisa) 62. Ao nível da receita o caminho passa inevitavelmente pelo aumento das quotizações, o que poderá ser feito, por exemplo, por meio da criação de incentivos e pela remoção dos desincentivos ao emprego (pois aumentando o número de trabalhadores, aumenta o número de pagantes para o sistema) e por meio do alargamento da base contributiva — incluindo nesta todas, mesmo todas, as remunerações auferidas pelos trabalhadores, equiparando-se a base contributiva à base fiscal (salários, indemnizações, prestações acessórias, abonos, comissões, gratificações, etc., etc.,). Por outro lado, deve pensar-se na hipótese de diversificação das fontes de financiamento, por exemplo, através do “desvio” parcial deste do trabalho para o consumo, como sucede em vários ordenamentos com a introdução do denominado “IVA social”, o qual consiste em transferir uma parte da receita deste imposto para o fim de protecção social (o que poderá implicar um aumento do mesmo em termos eventualmente significativos e impetuosos). d)
Saúde
Por fim no quadro exemplificativo que nos propusemos apresentar, releva o sector da saúde, como sendo um dos que reclamam uma cultura financeira de responsabilidade acrescida. Neste segmento de análise, cumpre começar por dizer que se rejeita a concepção que nega à saúde a natureza de necessidade pública, bem assim como a sua não consideração como bem social. Pelo contrário, entende-se que se está em presença de uma necessidade que deve ser satisfeita por entes públicos, embora não exclusivamente por estes, até porque as imposições constitucionais, também aqui, impõem essa conclusão 63. No que particularmente diz respeito à disciplina financeira, e a exemplo da metódica expositiva anteriormente adoptada a propósito dos outros sectores que se destacaram, importa discernir as medidas respeitantes à despesa e as medidas respeitantes à receita. No que concerne à despesa com a saúde, a pedra de toque, também aqui, reside na selectividade e na prudência na efectivação da despesa, o que poderá passar pela restrição dos cuidados públicos assegurados, por exemplo ao nível dos internamentos desnecessários ou do atendimento em falsas urgências. Paralelamente, poder-se-á pensar na privatização de certas prestações não absolutamente essenciais à boa prestação de cuidados sanitários, como o fornecimento 61 Cfr. art.º 63.º, n.ºs 1 e 3 da CRP. 62 V., a propósito deste tema, uma vez mais, o nosso A solidez das finanças públicas estaduais cit., 151. 63 Neste sentido, cfr. art.º 64.º, n.º s 2 e 3 da CRP.
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de certas refeições, a efectivação de certos actos de enfermagem ou a realização de certos transportes de doentes, de modo a aliviar o sistema de ineficiências e gastos supérfluos. No tocante às receitas, a grande ideia a reter é a de que a gratuitidade do sistema nacional de saúde é uma ilusão, inculcando a ideia errada de que existem bens públicos dados ou sem custos para o utilizador. Assim sendo, o financiamento corrente deve ser apoiado por via de taxas, que transfiram para o utilizador uma parte dos custos de exploração do serviço e que, simultaneamente, restrinjam e moderem o acesso (taxas moderadoras), evitando que ele seja desnecessariamente massificado. Por outro lado, pode pensar-se na hipótese de financiamento por meio da consignação de receitas fiscais, por exemplo, aumentando a taxa de IRS para os escalões mais elevados e destinando o produto da respectiva receita exclusivamente para o sistema de saúde. 4.2.
Dimensão repressiva
Chegou enfim o momento de saber quais as consequências jurídicas efectivas da violação do dever de salvaguarda das gerações futuras e de preservação das suas condições de existência, em termos de se averiguar se se trata de um verdadeiro dever jurídico ou apenas de uma imposição de natureza ética ou moral sem revestimento jurídico-normativo. Pela nossa parte, não restam dúvidas que se trata de um verdadeiro dever jurídico e até constitucionalmente ancorado e positivado. Com efeito, assume-se como absolutamente indubitável que os decisores num determinado momento não podem levar à prática actos e medidas, boas ou más, no pressuposto de que nada existiu antes deles e do seu momento político, mas, pelo contrário, são obrigados a ter em consideração todas as envolventes relevantes (sociais, políticas, económicas, jurídicas, etc.) que os rodeiam, nomeadamente as vinculações. Concretizando o discurso: a decisão financeira presente não pode fazer tábua rasa dos compromissos anteriores. Neste sentido, pode afirmar-se que o dever de equidade intergeracional comporta a exigência de respeito pelas obrigações legais e contratuais anteriormente assumidas, estando-se mesmo em presença, como se disse, de um dever constitucionalmente previsto (art.º 105.º, n.º 2 da CRP). Ora, com base neste enquadramento e colocando o acento tónico na dimensão colectiva da responsabilidade, importa precisar, na medida do possível, os contornos desse dever, indagando se é possível obter reparação pela sua violação. Torna-se necessário assinalar que muito dificilmente o direito respectivo de pedir contas, titulado pela geração presente, se assume como um direito ao qual possa ser atribuída a condição da justiciabilidade, isto é, que possa ser jurisdicionalmente sindicável ao ponto de um Tribunal condenar uma geração por má gestão da coisa pública no seguimento de uma acção contenciosa interposta por um eventual interessado (o que, desde logo, levantaria a questão – que aqui contornamos – de saber quem teria legitimidade processual activa para o fazer). Em todo o caso, não se pode dizer que se trata de um “direito sem sanção”, na medida em que podem advir consequências jurídicas relevantes, ou muito relevantes, do incumprimento do imperativo de salvaguarda das gerações futuras. Isto porque a geração presente pode ser chamada a responder juridicamente pelos abusos do passado, em termos de lhe serem impostas restrições de direitos, restrições essas colectivamente imputadas, embora em momento posterior individualmente disseminadas. Por outras palavras, e dando seguimento ao que já 36
acima se defendeu: não é a geração ela própria quem vai sofrer as consequências desfavoráveis (até porque não tem existência física nem jurídica), mas serão sim os sujeitos que a compõem, enquanto elementos de um agregado que levou à consecução medidas juridicamente desvaliosas. Um exemplo paradigmático do que acaba de ser dito pode ser encontrado ao nível da União Europeia (UE) e das exigências inerentes ao respectivo Pacto de Estabilidade e Crescimento 64, contexto no qual, devido à pretérita ausência de rigor financeiro (consubstanciada em inúmeros fenómenos de desorçamentação, derrapagens financeiras, má estimação de custos, etc.) são os sujeitos actuais chamados a suportar todo um conjunto de restrições de direitos, e em alguns casos mesmo revogações. Basta ter presentes, de um modo mais concreto, as imposições de redução da despesa (que implicam diminuição de salários e maior dificuldade de obtenção de ajudas e prestações sociais) ou a necessidade do aumento dos impostos e das diversas taxas devidas pela prestação individualizada de serviços públicos no sector da saúde. Enfim, como se disse, não se trata de um direito sem sanção, mas de um direito com uma sanção “pulverizada”, mas nem por isso menos gravosa. 5. Conclusões
Como se pode constatar, será duvidoso concluir que uma geração possa ser peremptoriamente responsabilizada pelo que fez de mal em termos financeiros públicos em relação às gerações que a precederam, principalmente se tal responsabilização passar pela aplicação de sanções efectivas e individualizadas. Em todo o caso, não será correcto afirmar que todo o iter de raciocínio efectuado seja desprovido de sentido e de utilidade, sendo possível identificar alguns tópicos reflexivos que poderão indiciar um movimento no sentido dessa responsabilização. Assim, começou por se colocar em realce que a utilização dos dinheiros públicos deve ser sempre efectuada com base num quadro disciplinador preciso, embora com componentes de flexibilidade e adaptação, e o eventual incumprimento deverá obrigar o respectivo infractor a ser chamado a prestar contas e, sendo o caso, a incorrer em sanções, sob a forma de assunção de responsabilidade. Assumindo-se que a responsabilidade consistirá num nexo entre determinado sujeito e o resultado das suas acções, de um ponto de vista teorético e de localização metodológica, constatou-se que a sua ideia encontra a localização preferencial no cosmos da deliberação prática, defendendo-se igualmente que em tais questões se descobrem com facilidade dimensões supraindividuais que não podem ser desconsideradas. Neste seguimento, rejeitam-se as teses de individualismo extremo, defendendo-se preferencialmente uma postura personalista, que coloque a centralidade na pessoa (e não no indivíduo) e nas suas diferentes dimensões, individual e colectiva, de modo a fundar uma verdadeira ética da responsabilidade solidária. De um ponto de vista da operatividade, uma adequada teoria da responsabilidade colectiva pressupõe dois momentos (teoria gradualista da responsabilidade): um primeiro momento de imputação da má acção ao grupo e um segundo momento de devolução dessa imputação aos elementos desse grupo. Por fim, direccionou-se o discurso no sentido pretendido e defendeu-se que uma das dimensões juspublicistas mais relevantes da responsabilidade colectiva pode 64 Cfr. art.º 126.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia.
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ser encontrada no domínio da responsabilidade entre gerações, a qual comporta um imperativo de intertemporalidade, uma ética do futuro, numa dupla dimensão, preventiva e repressiva. Na primeira, a responsabilidade entre gerações consubstancia-se na exigência de que a geração presente deva procurar garantir um modelo de existência adequado para as gerações que se lhe seguirão (por meio da selectividade da despesa pública e da não oneração excessiva destas últimas), ao passo que na segunda se enfatizou que se trata de um verdadeiro dever jurídico e até constitucionalmente ancorado e positivado, embora dificilmente justiciável. Em todo o caso, não tratará de um “direito sem sanção”, na medida em que podem advir consequências jurídicas relevantes, sendo os sujeitos futuros chamados a suportar todo um conjunto de restrições de direitos.
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Cidadania Cívica versus Cidadania Europeia Patrícia Jerónimo65 1. Introdução?????????????? A cidadania é indispensável na constituição e estruturação de quaisquer comunidades jurídicopolíticas66, pelo que não surpreende que os decisores europeus tenham procurado explorar o seu imenso capital simbólico em benefício do empreendimento de polity-building comunitário. Aos olhos destes, a cidadania europeia oferece-se como ícone da identidade europeia comum67 – se não reflexo de uma prévia identidade europeia, pelo menos o instrumento ideal para a forjar no futuro68 – e como inestimável fonte de legitimidade para as políticas definidas em Bruxelas 69. O modo de reconciliar os europeus com o projecto Europa, contrariando o seu persistente alheamento 70. E o marco mais claro de uma substancial mudança na natureza da Comunidade71. 65 Doutora em Direito. Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho. 66 Cf. Rui Manuel Gens de Moura RAMOS – Da Comunidade Internacional e do seu Direito. Estudos de Direito Internacional Público e Relações Internacionais, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 109-113. 67 Cf. Ulrich K. PREUSS – Citizenship and identity: aspects of a political theory of citizenship, in Richard Bellamy, Vittorio Bufacchi e Dario Castiglione (eds.), Democracy and constitutional culture in the union of Europe, Londres, Lothian Foundation Press, 1995; Ulf BERNITZ – Human rights and European identity: the debate about European citizenship, in Philip Alston (ed.), The EU and Human Rights, Oxford, 1999; Percy B. LEHNING – European citizenship: towards a European identity?, in “Law and Philosophy”, 20, 2001; Nikos PRENTOULIS – On the technology of collective identity: normative reconstructions of the concept of EU citizenship, in “European Law Journal”, vol. 7, 2, 2001. 68 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, pp. 130-131. Cf., igualmente, Rainer BAUBÖCK – National community, citizenship and cultural diversity, in “Political Science Series”, Institute for Advanced Studies, Vienna, n.º 62, 1999, p. 3; Gráinne DE BÚRCA – The quest for legitimacy in the European Union, in “The Modern Law Review”, vol. 59, n.º 3, 1996, p. 355. 69 Cfr. Andreas FOLLESDAL – Union citizenship: unpacking the beast of burden, in “Law and Philosophy”, n.º 20, 2001, p. 322; também pp. 314-318. 70 Cf. Joseph H. H. WEILER – The Constitution of Europe. “Do the New Clothes Have an Emperor?” and Other Essays on European Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 1999; Carlos CLOSA MONTERO – Between EU constitution and individuals’ self: European citizenship, in “Law and Philosophy”, 20, 2001. 71 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, pp. 130-131. Cf., igualmente, Rainer BAUBÖCK – National community, citizenship and cultural diversity, in “Political Science Series”, Institute for Advanced Studies, Vienna, n.º 62, 1999, p. 3.
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Desde os primeiros debates sobre a instituição de uma cidadania europeia, esta sempre surgiu indissociavelmente ligada ao propósito de construir ou espelhar uma identidade europeia comum 72. Em 1974, um ano depois da Declaração de Copenhaga sobre a Identidade Europeia, os chefes de Estado e de Governo, reunidos em Paris, motivados pelo ensejo de promover um sentimento de pertença entre os europeus dos Nove, anunciaram a criação de um passaporte da União e a atribuição de direitos especiais aos cidadãos dos Estados membros73. Em 1976, o Primeiro-ministro belga Leo Tindemans, encarregado de elaborar um estudo sobre o futuro da Comunidade, apresentou um relatório intitulado União Europeia em que, com o argumento de que a Europa deve estar próxima dos seus cidadãos, propôs a realização de eleições directas para o Parlamento Europeu, o reconhecimento e tutela de direitos fundamentais (como o direito de recurso para o Tribunal de Justiça das Comunidades) e a adopção de medidas concretas de solidariedade europeia através de sinais externos perceptíveis na vida de todos os dias (uniformidade de passaportes, gradual abolição de controlos fronteiriços e promoção de intercâmbios estudantis)74. Daí em diante, foram sendo adoptadas “práticas de cidadania” que permitiram o paulatino estabelecimento de direitos de cidadania e de meios de acesso e integração na comunidade política europeia 75. 72 Como nota Antje Wiener, “policy makers have continuously aimed at creating a European identity, a sense of community and shared history while pursuing citizenship policy”. Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, p. 390. 73 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, pp. 401-402. 74 Bulletin EC 1/76. 75 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, pp. 392 e 397; Francisco Lucas PIRES – Múltiplos da cidadania: o caso da cidadania europeia, in Antunes Varela, et al. (orgs.), AB VNO AD OMNES. 75 anos da Coimbra Editora 1920-1995, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 1276-1277.
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A 8 de Outubro de 1976, o Conselho adoptou uma decisão respeitante à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal e directo 76 e em 1979 tiveram lugar as primeiras eleições europeias. Em 1981, o Conselho adoptou uma Resolução no sentido da criação de um passaporte europeu único 77. O Projecto de Tratado que estabelece a União Europeia, aprovado pelo Parlamento Europeu na sua resolução de 14 de Fevereiro de 1984, incluía já um artigo 3.º em que criava a cidadania da União e um artigo 4.º sobre direitos fundamentais. As conclusões do Conselho Europeu de Fontainebleu, de 25 e 26 de Junho de 1984, sob o título A Europa dos cidadãos, sublinharam a importância de responder às expectativas dos povos europeus pela adopção de medidas adequadas a reforçar e promover a sua identidade e imagem junto dos cidadãos e no mundo, pronunciando-se favoravelmente sobre um conjunto de medidas em curso ou a introduzir para agilizar a circulação dos europeus no espaço comunitário, nomeadamente a criação do passaporte europeu, supressão de todos os controlos fronteiriços e alfandegários à circulação de pessoas nas fronteiras intracomunitárias, e um sistema geral de equivalência de diplomas universitários, de modo a tornar efectiva a liberdade de estabelecimento no seio da comunidade. Entretanto, a circunstância de os trabalhadores efectivamente se movimentarem tornou pertinente a questão de garantir uma maior igualdade social e política entre os nacionais e estes estrangeiros. Em resposta, foram apresentadas pela Comissão uma série de propostas no sentido de estabelecer a igualdade de participação política entre cidadãos da Comunidade e 76 JO L 278, de 8 de Outubro de 1976. 77 JO C 241, de 19 de Setembro de 1981.
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viria a ser adoptada pelo Conselho Europeu, reunido em Estrasburgo em Dezembro de 1989, uma Carta de Direitos Fundamentais dos Trabalhadores78. Os benefícios a colher destas medidas destinavam-se unicamente aos cidadãos trabalhadores, aqueles que tinham um lugar e uma função a desempenhar na edificação do mercado comum. Quanto aos outros, pouco se fez, apesar de a Comissão e o Parlamento Europeu terem por diversas vezes insistido na necessidade de incluí-los79. À medida que nos aproximamos de Maastricht, a ideia de instituir uma cidadania europeia assume carácter recorrente. O relatório anexo às conclusões do Conselho Europeu de 25 e 26 de Julho de 1990, intitulado União Política, apontava a cidadania europeia como um dos aspectos a tomar em conta na transformação do projecto europeu de entidade essencialmente económica para comunidade política, interrogando-se sobre o modo como a União haveria de incluir e ampliar a noção de cidadania da Comunidade a que correspondessem direitos específicos (direitos humanos, políticos, sociais, bem como o direito a uma completa liberdade de movimento e residência). O Conselho Europeu de Roma, de Outubro desse mesmo ano, sublinhou alguns dos aspectos a ter em consideração no âmbito da Conferência Intergovernamental subordinada à União Europeia, apontando a definição de uma cidadania europeia, a somar às cidadanias dos Estados membros, como meio de promover a legitimidade democrática da União. Em idêntico sentido se pronunciaria a Comissão Europeia, que, reconhecendo a necessidade de democratizar a 78 COM(89) 568 final. 79 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, p. 403.
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estrutura comunitária ao nível do relacionamento entre as instituições e do relacionamento destas com os povos da Europa, subscreveu a proposta espanhola de introduzir a noção cidadania europeia, com direitos e deveres correspondentes. A cidadania europeia deveria, no entender da Comissão, ganhar forma gradualmente, sem prejudicar de modo algum as cidadanias nacionais, a que cabia complementar e não substituir. O objectivo era claramente o de promover junto dos europeus um sentimento de pertença e de envolvimento no processo de integração europeia. A base da cidadania europeia, sugeria a Comissão, poderia ser um catálogo de direitos e deveres centrados num conjunto de direitos humanos fundamentais (por referência à Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e de direitos específicos dos cidadãos europeus a consagrar no texto do Tratado, incluindo o direito de circulação e residência para todos, mesmo os não economicamente activos, e direitos de voto nas eleições europeias e municipais; para uma fase posterior, ficaria definição dos direitos e deveres civis, económicos e sociais dos indivíduos 80. Em Dezembro de 1990, reunido de novo em Roma, o Conselho Europeu insistiu para que as Conferências Intergovernamentais prestes a começar atentassem nos temas da legitimidade democrática e da cidadania europeia. Dando conta do consenso existente entre os Estados membros sobre a oportunidade de examinar o conceito de cidadania europeia, o Conselho recomendou que fosse ponderada a viabilidade de consagrar, nos Tratados, um conjunto de direitos capazes de dar substância ao conceito – o direito de participar nas eleições para o Parlamento Europeu (e até mesmo em eleições municipais) no país de 80 COM(90)600 final, de 23 de Outubro de 1990. Commission Opinion of 21 October 1990 on the Proposal for Amendment of the Treaty Establishing the European Economic Community with a view to Political Union.
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residência, a liberdade de circulação e residência independentemente do envolvimento numa actividade económica, a igualdade de oportunidades e de tratamento para todos os cidadãos da Comunidade, protecção diplomática fora das fronteiras comunitárias –, bem como a instituição de um mecanismo para defesa dos direitos dos cidadãos no tocante aos assuntos comunitários (ombudsman)81. A cidadania da União foi efectivamente estabelecida, mas não resultou na empatia generalizada que se esperava dos povos da Europa. O Tratado da União, assinado em Maastricht em Fevereiro de 1992, foi duramente contestado e o novo estatuto, longe de cativar os europeus, fê-los temer pelas respectivas identidades nacionais, tidas por ameaçadas. Se pôde entrar em vigor, isso deveu-se ao esclarecimento, necessário para aplacar a ansiedade dinamarquesa, de que nenhum cidadão dinamarquês seria autorizado a invocar qualquer direito ou a cumprir qualquer dever decorrente da cidadania europeia que pudesse conflituar com a sua posição como cidadão dinamarquês82. Por entre o desalento gerado nas hostes europeístas, não faltou, no entanto, quem visse na vivacidade com que os europeus se mobilizaram contra o Tratado o embrião de uma opinião pública europeia e de uma consciência comum, condições prévias de uma verdadeira cidadania comunitária83. É interessante notar que, depois de Maastricht, a referência à necessidade de promover um sentimento de pertença entre os europeus, sem nunca desaparecer 81 O Conselho Europeu do Luxemburgo, de Junho de 1991, na apreciação que fez ao projecto de Tratado avançado pela Presidência luxemburguesa com base nos trabalhos até então desenvolvidos no quadro das duas Conferências Intergovernamentais, voltou a insistir nestes e outros aspectos, sublinhando expressamente a importância de estabelecer uma cidadania da União como elemento fundamental na construção da Europa. 82 Cf. John Erik FOSSUM – Identity-politics in the European Union, Arena, University of Oslo, Working Paper n.º 17, 2001, p. 16. 83 Nesse sentido, cf. Francisco Lucas PIRES – Múltiplos da cidadania: o caso da cidadania europeia, in Antunes Varela, et al. (orgs.), AB VNO AD OMNES. 75 anos da Coimbra Editora 1920-1995, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 12691271.
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completamente, foi sendo substituída no discurso institucional da cidadania europeia pelo propósito mais prosaico de estabelecer laços jurídicos; o que não impediu que o primeiro relatório da Comissão sobre a cidadania da União tenha regressado à ideia de criar uma identidade europeia84. Esta associação de ideias, na verdade, perdura e continua a manifestar a sua força, apesar das invectivas de muitos autores que censuram o artificialismo de pretender que existe uma ligação substantiva entre a cidadania da União e uma qualquer identidade europeia comum85. O mais recente relatório da Comissão sobre cidadania da União, de Fevereiro de 2008, afirma, precisamente, a necessidade de consciencializar os cidadãos do seu estatuto como cidadãos da União (seus benefícios, direitos e deveres), de modo a desenvolver a percepção de uma identidade europeia comum – objectivo norteador de iniciativas como o Programa Comunitário para a Promoção de uma Cidadania Europeia Activa (2004-2006) e o Programa Europa para os Cidadãos (2007-2013)86. 2. A cidadania europeia no Tratado da União 2.1. Titularidade A cidadania europeia adquire-se através cidadania de um Estado membro, uma forma “cidadania dupla” que encontra antecedentes constitucionalismo alemão, mais propriamente,
da de no na
84 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, pp. 409-412. 85 Cf. Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire, Ashgate, 2000, p. 1. 86 COM(2008) 85 final, de 15 de Fevereiro.
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Constituição imperial de 187187. É cidadão da União – nos termos do artigo 8.º n.º 1 do Tratado de Maastricht, que instituiu formalmente a cidadania europeia, e, agora, do artigo 17.º n.º 1 do Tratado da Comunidade Europeia, na versão compilada saída de Nice88 – qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-membro. Desde a reforma de Amesterdão e à semelhança do que foi feito no Conselho Europeu de Edimburgo de 1992 com vista a aplacar as preocupações dinamarquesas89, esclarece-se ainda que a cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui (artigo 17.º, n.º 1 in fine). A cidadania europeia não só não pretende substituir-se às cidadanias nacionais como é inteiramente dependente destas, já que só serão cidadãos europeus aqueles que forem cidadãos de um dos Estados membros da União e estes são livres para definir as suas próprias condições de pertença90. O Tratado UE não conferiu qualquer competência em matéria de nacionalidade à União91. Esta abstém-se inclusive de interferir na fixação dos critérios utilizados pelos Estados membros para reconhecer os seus nacionais, como resulta da declaração anexa ao Tratado de Maastricht 92 e tem sido confirmado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (ainda que o Conselho Europeu de Tampere, em 1999, tenha vindo recomendar que seja oferecida a possibilidade de adquirir a nacionalidade do Estado de residência aos nacionais de 87 Cf. Jacques ZILLER – National constitutional concepts in the new Constitution for Europe, in “European Constitutional Law Review”, n.º 1, 2005, pp. 247-257. 88 JO 2002/C 325/01, de 24 de Dezembro de 2002. Na versão dada pelo Tratado de Lisboa, o artigo 8.º do Tratado UE e o artigo 17.º do Tratado sobre o Funcionamento da União, afirmam igualmente que é cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado membro e que a cidadania da União acresce à cidadania nacional, não a substituindo. 89 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, p. 33; Federico MANCINI – Europe: the case for statehood, in “European Law Journal”, vol. 4, n.º 1, 1998, pp. 31-32. 90 Cf. Joseph H. H. WEILER, Ulrich HALTERN e Franz MAYER – European democracy and its critique. Five uneasy pieces, EUI Working Paper RSC n.º 95/11; Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 759. 91 Cf. Rui Manuel Moura RAMOS – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, p. 280. 92 Cf. Carlo GAMBERALE – National identities and citizenship in the European Union, in “European Public Law”, vol. 1, n.º 4, 1995, p. 637.
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países terceiros residentes de longa duração). De resto, a legislação secundária adoptada nesta matéria revela um extremo cuidado com a protecção das identidades nacionais, o que – no entender de Carlos Closa Montero – prejudica o potencial transformativo da cidadania europeia93. O que se cria deste modo é uma condição de estrangeiro privilegiado, que goza nos Estados membros de direitos em princípio reservados aos nacionais respectivos, independentemente de qualquer alteração do seu estatuto de nacionalidade94. Estamos ainda longe de uma cidadania europeia verdadeiramente pós-nacional 95. A cidadania da União não tem o mesmo conteúdo, nem se perfila como uma alternativa à cidadania nacional, mesmo porque não reflecte uma relação de pertença substantiva a uma comunidade social e política na plena acepção do termo96. O novo estatuto carece de autonomia conceptual, o que, segundo Maarten Vink, só será superado depois de uma prévia europeização, ou mesmo dissolução, das cidadanias nacionais97. Deparamo-nos com a situação paradoxal de a União reconhecer direitos às pessoas sem poder intervir na definição das condições determinantes para a aquisição e o gozo desses direitos98. A dependência da cidadania europeia face à nacionalidade de um dos Estados membros da União gera, ademais, um quadro jurídico extremamente confuso e potencialmente contraditório99. Rainer Bauböck não concorda com a opção abstencionista da União de confiar aos Estados membros a definição do universo dos cidadãos europeus, preferindo-lhe a de harmonizar os critérios nacionais de atribuição da cidadania. Deste modo se obteria um sistema coerente, com a vantagem para os Estados membros de deixarem de ter de suportar a entrada livre no seu território de cidadãos oriundos de países com leis mais 93 Cf. Carlos CLOSA MONTERO – Between EU Constitution and individuals’ self: European citizenship, in “Law and Philosophy”, n.º 20, 2001, p. 364. 94 Cf. Rui Manuel Moura RAMOS – Nacionalidade, plurinacionalidade e supranacionalidade na União Europeia e na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, in “Boletim da Faculdade de Direito”, volume comemorativo, 2003, pp. 710711. 95 Cf. Maarten P. VINK – Limits of European citizenship. European integration and domestic immigration policies, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2005. 96 Cf. Gráinne DE BÚRCA – Fundamental rights and citizenship, in Bruno de Witte (ed.), Ten reflections on the Constitutional Treaty for Europe, EUI-RSCAS/AEL, Florença, 2003, pp. 13-14. 97 Cf. Maarten P. VINK – Limits of European citizenship. European integration and domestic immigration policies, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2005. 98 Cf. Rui Manuel Moura RAMOS – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 280 e 341-342. 99 “By basing EU citizenship on nationality, the European Union allowed different sets of nationality laws to create all sorts of contradictions and tensions between the different status and ways to access European citizenship”. Cf. Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire, Ashgate, 2000, p. 167.
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permissivas e de obterem um reforço das fronteiras face a nacionais de Estados terceiros100. Agustín José Menéndez, por seu turno, reconhece como inegável a falta de autonomia da cidadania europeia, mas diz-se optimista quanto aos futuros termos em que há-de estabelecer-se aquela relação – há boas razões para crer, defende, que a cidadania europeia terá a sua própria influência sobre as cidadanias nacionais, não se limitando a ser determinada por elas101.
A cidadania europeia afigura-se problemática, não apenas pela sua falta de autonomia face às cidadanias nacionais, a sua aparente redundância e irrelevância 102, mas, sobretudo, pelo seu potencial de exclusão. Na medida em que constitui um mero benefício acessório às cidadanias nacionais103, discrimina contra os nacionais de terceiros Estados que residam legalmente no território da União104, privando-os dos benefícios, por parcos que possam ser, que ela representa. Não de todos, uma vez que estes nacionais de terceiros Estados já gozam do direito de petição perante o Parlamento Europeu e o Provedor de Justiça (artigos 194.º e 195.º do TCE) e de acesso a documentos (artigo 255.º TCE), mas certamente dos mais importantes – o direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados membros, o direito de eleger e ser eleito nas eleições locais e nas eleições para o Parlamento Europeu. A cidadania europeia não representou uma emancipação porque só os que já eram cidadãos é que puderam aceder ao estatuto. Tendo em conta que os cidadãos europeus são unicamente os cidadãos de cada um dos Estados-membros, conservando estes a liberdade para definir as suas próprias regras em matéria de cidadania, as potencialidades integradoras 100 Cf. Rainer BAUBÖCK – National community, citizenship and cultural diversity, in “Political Science Series”, Institute for Advanced Studies, Vienna, n.º 62, 1999, pp. 15-18 e 22-27. 101 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, p. 131. 102 Cf. Maarten P. VINK – Limits of European citizenship. European integration and domestic immigration policies, Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2005; Joseph H. H. WEILER – The Constitution of Europe. “Do the new clothes have an emperor?” and other essays on European integration, Cambridge, Cambridge University Press, 1999. 103 Cf. Jens Magleby SØRENSEN – The exclusive European citizenship. The case for refugees and immigrants in the European Union, Aldershot, Avebury, 1996, p. 103. 104 Cf. Thierry DEBARD – La citoyenneté européenne et le Traité d’Amsterdam, in Christian Philip and Panayotis (dirs.), La citoyenneté européenne, Montréal, Université de Montréal, 2000, pp. 258-261.
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desta cidadania de sobreposição esgotam-se na imigração intracomunitária, esquecendo os imigrantes oriundos de terceiros Estados. O facto de a União não poder atribuir a cidadania europeia a indivíduos provenientes de países terceiros faz com que, objectivamente, se possa falar de um efeito discriminatório da cidadania europeia. A criatura maastrichtiana parecia surgir como expressão acabada da “nova geografia da cidadania” (expressão que Antje Wiener emprega para designar a circunstância de a cidadania não se estribar já somente nos laços de pertença a uma única comunidade, mas compreender nexos identitários com vários espaços; algo com o que a prática de cidadania europeia desenvolvida até Maastricht estava em plena sintonia 105), obrigando a repensar os velhos quadros conceptuais recebidos dos modernos, mas não foi capaz de cumprir inteiramente a sua promessa. Para isso, seria necessário que, em lugar da nacionalidade, fosse a residência a funcionar como critério decisivo da atribuição do estatuto. Em defesa de uma place-oriented citizenship se pronunciaram diversos grupos de interesse e o Parlamento Europeu (relatórios Outrive e Imbeni106). A relevância do lugar de residência para o exercício de direitos de cidadania europeia – concretamente, o direito de voto nas eleições municipais e nas eleições para o Parlamento Europeu – resultava, de resto, dos próprios termos do Tratado107. No formalismo da sua atribuição automática a todos aqueles que sejam nacionais de um Estado membro da União (que provem aquele laço jurídico), a cidadania europeia é negada aos nacionais de países terceiros, ainda que estes, em virtude 105 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, pp. 409-410. 106 PE 206.762 e PE 206.250, de 20 de Outubro de 1993. 107 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, p. 411.
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de prolongada residência em território europeu, tenham desenvolvido um genuíno sentimento de pertença à Europa108. Não traduz os laços sócio-culturais mantidos pelos indivíduos com as sociedades europeias em que residam e, por outro lado, não contribui, como poderia, para uma melhor integração dos nacionais de terceiros Estados através da sua aliança à Europa 109. Soledad García observa que, ao tornar restrito o acesso à cidadania europeia, a União forçou os nacionais de países terceiros à condição de cidadãos de segunda categoria; uma solução que a autora entende ser compreensível em vista da difícil posição em que a União se encontrava ao definir a cidadania europeia (não podia deixar de fazer corresponder à cidadania um conjunto de verdadeiros privilégios para os seus titulares, sob pena de criar um estatuto inteiramente destituído de significado), mas insustentável, por frustrar aquela que é uma das principais funções da cidadania europeia, a de acomodar a diferença110. Poderá objectar-se que a cidadania europeia, precisamente porque ligada às cidadanias nacionais, permanece algo de muito aberto – na verdade, é tão aberta quanto a mais aberta das legislações dos Estados membros, apesar de, simultaneamente, ser tão fechada quanto a mais fechada dessas legislações. Não é totalmente de descartar a possibilidade de um Estado membro procurar rentabilizar, através de uma lei de nacionalidade especialmente aberta, a sua condição de via de acesso ao espaço europeu, mas esse 108 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, p. 410. 109 Cf. Jens Magleby SØRENSEN – The exclusive European citizenship. The case for refugees and immigrants in the European Union, Aldershot, Avebury, 1996; Yasemin SOYSAL – Limits of citizenship: migrants and post-national membership in Europe, Chicago, University of Chicago Press, 1994; Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire e Vermont, Ashgate, 2000. 110 Cf. Soledad GARCÍA – Europe’s fragmented identities and the frontiers of citizenship, in Soledad García (ed), European identity and the search for legitimacy, Londres, Pinter Publishers, 1993, pp. 6-7 e 25-26.
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empreendedorismo sempre há-de pautar-se pelos preceitos de Direito Internacional que exigem um nexo relevante entre os indivíduos e o Estado que lhes confere a nacionalidade e, mais importante, não pode desrespeitar o dever de solidariedade que entre si têm os Estados membros da União111 – atente-se no artigo 10.º, 2.º § do Tratado CE e na jurisprudência fixada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades na decisão Micheletti, de 1992 (C-369/90). As malhas do Direito Internacional e do Direito Europeu, sem serem impenetráveis, reduzem muito significativamente a viabilidade deste tipo de arrivismo. O que importa ter presente, entretanto, é que não é a União Europeia que tem uma cidadania exclusivista, mas sim os Estados membros. Não é a União que exclui, mas sim os povos da Europa. A União pode é servir de pretexto para excluir, mas ainda aqui nada é linear. A proposta de dissociação entre a cidadania europeia e as cidadanias nacionais mereceu a oposição veemente da Dinamarca que, de resto, ofereceu a maior resistência ao novo conceito, mesmo nos termos pouco ambiciosos em que este veio a ser fixado por Maastricht. A declaração dinamarquesa em Edimburgo demonstra à saciedade a falta de realismo das propostas que pretendem dissociar a cidadania europeia das cidadanias nacionais. Para contrariar estes efeitos negativos, têm sido feitas sugestões no sentido de reformular o conceito, adoptando uma cidadania europeia multicultural 112 que, sendo atribuída em função da residência 113 ou nascimento 111 Cf. Rui Manuel Moura RAMOS – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 281 e 342-346; Jorge Pereira da SILVA – Direitos de cidadania e direito à cidadania. Princípio da equiparação, novas cidadanias e direito à cidadania portuguesa como instrumentos de uma comunidade constitucional inclusiva, Observatório da Imigração, Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, 2004. 112 Cf. Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire, Ashgate, 2000. 113 Cf. Catherine Wihtol de WENDEN – European citizenship and migration, in Rémy Leveau, Khadija MohsenFinan and Catherine Wihtol de Wenden (eds.), New European identity and citizenship, Aldershot, Ashgate, 2002, p. 86.
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no território da União, abrangeria tanto os nacionais dos Estados membros como os de terceiros Estados, ou criar um estatuto autónomo de quase cidadania (denizenship) para os nacionais de terceiros Estados que lhes proporcionaria todos os direitos integrados na cidadania europeia, excepto o direito de eleger e ser eleito para o Parlamento Europeu114. Juan Delgado-Moreira é optimista quanto às virtualidades da cidadania europeia, nomeadamente quanto a um seu futuro desenvolvimento enquanto cidadania multicultural, e acredita que a actual exclusão dos nacionais de países terceiros não constitui um obstáculo inultrapassável115. Este autor defende que a cidadania europeia deve evoluir para uma cidadania multicultural, o que exige que a União adopte uma série de medidas, entre as quais – sugere – a extensão da protecção e da cidadania europeia aos residentes que não tenham a nacionalidade de um Estado membro; a autorização aos residentes da participação nas eleições europeias enquanto direito próprio dos grupos transnacionais; o incentivo à mobilidade destes indivíduos, nomeadamente através da definição de regras mais favoráveis de acesso à cidadania da União ao fim de um número de anos de residência116. Estas críticas e sugestões não têm conseguido persuadir os Parlamentos e os Governos dos Estados membros a quebrar o nexo entre a cidadania europeia e as cidadanias nacionais, mas parecem ressoar nas tomadas de posição de algumas instituições europeias. O Comité Económico e Social, no seu parecer sobre o acesso à cidadania europeia, de 2003, sustentou que a Convenção Europeia então em curso deveria adoptar uma definição abrangente da cidadania europeia, cobrindo os nacionais de terceiros Estados com residência estável, de modo a facilitar-lhes o exercício de direitos políticos e, por aí, melhorar a sua integração nas sociedades de acolhimento. O Comité Económico e Social adianta que esta definição abrangente corresponde à adoptada pela Comissão Europeia sob a designação “cidadania cívica”. Não me parece que esta leitura seja correcta, uma vez que a cidadania cívica, tal como 114 Cf. Rainer BAUBÖCK – National community, citizenship and cultural civersity, in “Political Science Series”, n.º 62, 1999, pp. 22-23. 115 Cfr. Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire e Vermont, Ashgate, 2000, pp. 28-30. 116 Cf. Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire, Ashgate, 2000, pp. 196-197.
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é apresentada pelas Comunicações da Comissão sobre Política Imigratória Comum (2000)117 e sobre Imigração, Integração e Emprego (2003)118, parece mais próxima da ideia de quase-cidadania (denizenship). A cidadania cívica é apresentada como um estatuto evolutivo – garante um conjunto de direitos a serem adquiridos gradualmente ao longo de um período de anos, de modo a que os nacionais de terceiros Estados sejam progressivamente tratados do mesmo modo que os nacionais do Estado de acolhimento, sem necessitarem de naturalizar-se. Tal como o conceito amplo proposto pelo Comité Económico e Social, a cidadania cívica é justificada pelo seu potencial desempenho na integração dos imigrantes – permitir aos imigrantes a aquisição da cidadania cívica ao cabo de um certo número de anos ajudaria muitos deles a integrarse de forma bem sucedida na sociedade e reforçaria o seu sentimento de pertença à Europa. Tal como com aquele conceito abrangente, os direitos de participação política (sobretudo a nível local) são considerados da maior importância. Vários Estados membros já garantem direitos de participação política nas eleições locais a todos os residentes estrangeiros mediante certas condições. Do ponto de vista da integração, afigura-se óbvio que o direito de participação nas eleições locais deve decorrer da residência permanente e não da nacionalidade. No entender da Comissão, o Tratado Constitucional deveria oferecer os meios para que a cidadania cívica, em particular no que respeita à participação na vida política a nível local, pudesse tornar-se uma realidade. Sugestões que o Tratado Constitucional não acolheu, mas que podem verse, de algum modo, reflectidas na Directiva 2003/109/EC, do Conselho, sobre o estatuto dos nacionais de terceiros Estados que sejam residentes de longa duração, que teremos oportunidade de analisar infra.
2.2. Os direitos contidos no estatuto 2.2.1. O texto dos Tratados Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos no Tratado que institui a Comunidade Europeia (artigo 17.º, n.º 2), o que se traduz, concretamente, no direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados membros (artigo 18.º, n.º 1); no direito de eleger e ser eleito nas eleições municipais (artigo 19.º, n.º 1) e nas eleições para o Parlamento Europeu (artigo 19.º, n.º 2), no Estado membro de residência e nas mesmas condições que os nacionais desse Estado; no direito a protecção por parte das autoridades diplomáticas e consulares de qualquer Estado-membro, quando em território de país terceiro em que o Estado membro de que sejam nacionais não se encontre representado (artigo 20.º); no direito de petição ao Parlamento Europeu e ao Provedor de Justiça (artigo 21.º, 1.º e 2.º §); no direito, adicionado pela reforma de Amesterdão, de comunicar por escrito com as instituições e órgãos comunitários, numa das doze línguas da Comunidade, e de obter uma resposta redigida na mesma língua (artigo 21.º, 3.º §). Fora da secção especificamente dedicada à cidadania da União, é ainda reconhecido, desde Amesterdão e por influência do constitucionalismo sueco119, o direito de acesso aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão (artigo 255.º).
117 COM (2000) 757 final, de 22 de Novembro de 2000. 118 COM (2003) 336 final, de 3 de Junho de 2003. 119 Cf. Jacques ZILLER – National constitutional concepts
in the new Constitution for Europe, in “European
Constitutional Law Review”, n.º 1, 2005, pp. 247-257.
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A cidadania europeia não é uma categoria política estática. Está assumidamente aberta ao aprofundamento da integração europeia120, como resulta logo do preceituado no artigo 22.º que incumbe a Comissão de apresentar, de três em três anos, um relatório sobre a aplicação das disposições contidas na Parte II do Tratado, tendo em conta o desenvolvimento da União 121; relatórios com base nos quais, o Conselho poderá aprovar disposições destinadas a aprofundar os direitos aí previstos. Esta cláusula evolutiva122 confere à cidadania europeia um dinamismo cheio de promessas para o futuro. “The importance of the TEU citizenship provisions lies not in their content but rather in the promise they hold for the future. The concept is a dynamic one, capable of being added to or strengthened, but not diminished”123. No discurso oficial da Comissão e do Parlamento Europeu tornou-se recorrente a referência à cidadania europeia como um conceito em evolução (developing concept), algo que decorre do carácter essencialmente dinâmico das disposições do Tratado que versam sobre esta matéria124. A abertura do conceito e da sua tradução normativa no texto do Tratado é encarada com menos optimismo por aqueles que, como Ulrich Preuβ, a interpretam como falta de rigor e sinónimo de imperfeição125. Acreditamos nas oportunidades criadas pela circunstância de esta ser uma citizenship-in-the120 Cf. J. J. Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA – Constituição da República Portuguesa anotada (artigos 1.º a 107.º), vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 361-362. 121 COM(93) 702 final, de 21 de Dezembro; COM(97) 230; COM(2001) 506 final, de 7 de Setembro; COM(2004) 695 final, de 26 de Outubro; COM(2008) 85 final, de 15 de Fevereiro. 122 Cf. Antje WIENER – Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship, in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, Haia, Kluwer Law International, 1998, p. 388; Rui Manuel Moura RAMOS – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, p. 290. 123 Cf. David O’KEEFFE – Union citizenship, in D. O’Keeffe e P. Twomey (eds.), Legal issues of the Maastricht Treaty, Londres, Wiley Chancery Law, 1994, p. 106. 124 A Comissão sublinha precisamente este aspecto – “it must be stressed that the provisions of Part II of the EC Treaty are not static, but are essentially dynamic in nature. This is plainly spelled out in Article 8E itself, in so far as it envisages that these provisions be strengthened or supplemented in the future”. COM(93) 702 final, de 21 de Dezembro de 1993. 125 Cf. Ulrich PREUSS – Citizenship and identity: aspects of a political theory of citizenship, in R. Bellamy, V. Bufacchi e D. Castiglione (eds.), Democracy and constitutional culture in the union of Europe, Londres, Lothian, 1995, pp. 107120.
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making. A textura aberta da cidadania europeia revela que a União também pode operar de modo flexível permitindo, designadamente, uma adaptação progressiva e um ajuste entre o alegadamente comum conceito europeu de cidadania e as diversas noções nacionais de cidadania126. A protecção dos cidadãos europeus decorre ainda de outras disposições do Tratado CE, como o artigo 12.º, que proíbe toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, e o artigo 13.º, que incumbe o Conselho de adoptar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual127, para além de poder entender-se, com Bruno de Witte, que, indirectamente, o Tratado reconhece direitos linguísticos aos cidadãos europeus enquanto partícipes em actividades económicas transnacionais128. O Tratado da União declara que esta se funda nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de direito, princípios comuns aos Estados membros (artigo 6.º, n.º 1), acrescentando que a União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia e como estes resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados membros, 126 Cf. Jo SHAW e Antje WIENER – The paradox of the «European polity», in Maria Green Cowles e Michael Smith (eds.), The state of the European Union. Risks, reform, resistance, and revival, Nova Iorque, Oxford University Press, 2000, p. 85. 127 O artigo 13.º, introduzido pelo Tratado de Amesterdão, deu novo arrimo ao empenho europeu na luta contra a discriminação e a xenofobia. Em 1997, foi criado Observatório Europeu para o Racismo e a Xenofobia, entretanto substituído, em 2007, pela Agência Europeia para os Direitos Fundamentais. Em 2000, foram aprovadas duas importantes Directivas antidiscriminação. Em Maio de 2004, a Comissão Europeia apresentou o Livro Verde sobre Igualdade e Não Discriminação numa União Europeia Alargada, COM(2004) 379 final, de 28 de Maio de 2004. A prevenção e o combate ao racismo e à xenofobia constituem, entretanto, uma das três áreas de acção comum no quadro do 3.º pilar, com vista à criação de uma área de liberdade, segurança e justiça (artigo 29.º do Tratado da União Europeia). Cf. Pedro Carlos Bacelar de VASCONCELOS – Contra a discriminação e a xenofobia. Modos de acção da Europa, in Álvaro de Vasconcelos (coord.), Valores da Europa. Identidade e legitimidade, Cascais, Principia, 1999; Daniele PASQUINUCCI – L’Union Européenne et la lutte contre les discriminations, in Maria Manuela Tavares Ribeiro (coord.), Identidade europeia e multiculturalismo, Coimbra, Quarteto Editora, 2002; Leo FLYNN – The implications of article 13 EC. After Amsterdam, will some forms of discrimination be more equal than others?, in “Common Market Law Review”, n.º 36, 1999; Dagmar SCHIEK – A new framework on equal treatment of persons in EC Law?, in “European Law Journal”, vol. 8, n.º 2, 2002. 128 Cf. Bruno DE WITTE – Cultural legitimation: back to the language question, in Soledad García (ed), European identity and the search for legitimacy, Londres, Pinter Publishers, 1993, pp. 156-157.
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enquanto princípios gerais do Direito comunitário 129 (artigo 6.º, n.º 2). O Conselho pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave, por parte de um Estado membro, de algum dos princípios enunciados no artigo 6.º, n.º 1, caso em que dirigirá ao Estado inadimplente as recomendações apropriadas (artigo 7.º, n.º1); verificando a existência de uma violação grave e persistente de algum daqueles princípios, o Conselho pode, deliberando por maioria qualificada, decidir suspender alguns dos direitos do Estado membro em causa, incluindo o direito de voto do representante do Governo desse Estado membro no Conselho (artigo 7.º, números 2 e 3). Na versão dada pelo Tratado de Lisboa, o artigo 8.º do Tratado UE declara que, em todas as suas actividades, a União respeita o princípio da igualdade dos seus cidadãos, que beneficiam de igual atenção por parte das suas instituições, órgãos e organismos. As críticas que são dirigidas à cidadania europeia insistem, sobretudo, no facto de esta ser, por si só, praticamente inconsequente, atento o parco leque de direitos (bem como os termos limitados em que são consagrados130) e a completa ausência de deveres131. Federico Mancini equipara os direitos de cidadania europeia a “quinquilharia para enganar os nativos”, recomendando um seu alargamento e substanciação a bem da democracia europeia132. Particularmente notada é a ausência de direitos culturais e de mecanismos de tutela das minorias étnicas, ainda que alguns autores mais 129 No que acolhe as teses que haviam feito vencimento na jurisprudência comunitária, nos acórdãos Stauder, Nold e Comissão c. Alemanha. Cf. Rui Manuel Moura RAMOS – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, p. 329; cf., igualmente, pp. 282-283 e 328-330. 130 Cf. Rui Manuel Moura RAMOS – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 284-289 e 346-354. 131 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 760; Rui Manuel Moura RAMOS – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 340-341. 132 Cf. Federico MANCINI – Europe: the case for statehood, in “European Law Journal”, vol. 4, n.º 1, 1998, pp. 3132. Cf., igualmente, Maria Lúcia AMARAL – Será necessária uma harmonização das Constituições para dar efectividade ao exercício dos direitos de participação política? in vv.aa., Estatuto jurídico da lusofonia, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 91.
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optimistas não deixem de descortinar um acervo de “práticas de cidadania multicultural” na actuação das instituições comunitárias133. Os direitos correspondentes à cidadania europeia resumem-se praticamente às velhas quatro liberdades fundamentais, a que veio somar-se um quase inexpressivo direito de participação política local. Continuam, de resto, a existir muitas dificuldades na satisfação efectiva deste magro conjunto de direitos. Apesar de a liberalização da migração intra-europeia ter tido início nos anos 60, o que é certo é que, ainda hoje, a liberdade de circulação deixa muito a desejar 134. A cidadania da União não significa que os imigrantes intracomunitários deixam de ser tratados como estrangeiros (são é estrangeiros com um estatuto mais favorável do que o dos estrangeiros extra-comunitários), já que um direito fundamental dos Estados é o de privilegiar os seus nacionais em detrimento dos estrangeiros135. O direito de residência depende da disponibilidade de recursos adequados e da cobertura por um seguro de saúde, “limites e condições” permitidos pelo artigo 18.º 136. A liberdade de circulação no espaço comunitário depara-se ainda com a barreira invisível erguida pelas exigências de proficiência linguística como condição de acesso a algumas profissões nos Estados de acolhimento137. Com vista a minimizar algumas destas dificuldades, entrou em vigor em Abril de 2006 a Directiva 2004/38/CE, do Parlamento e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, sobre 133 Cf. Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire, Ashgate, 2000, pp. 111-113, 133-134 e 149; Guido SCHWELLNUS – “Much ado about nothing?” Minority protection and the EU Charter of Fundamental Rights, in “Constitutionalism Web-Papers”, ConWEB n.º 5/2001, http://www.les1.man.ac.uk/conweb/. 134 Quinto Relatório da Comissão sobre a Cidadania da União, COM(2008) 85 final, de 15 de Fevereiro de 2008. Cf., igualmente, Maarten P. VINK – Limits of European citizenship: European integration and domestic immigration policies, in Constitutionalism Web-Papers, ConWEB n.º 4/2003, http://www.les1.man.ac.uk/conweb/, pp. 6-8. 135 Cf. Ulrich K. PREUSS – The relevance of the concept of citizenship for the political and constitutional development of the EU, in Ulrich K. Preuss e Ferran Requejo (eds.), European citizenship, multiculturalism and the state, BadenBaden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 12. 136 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 756. 137 Cf. Bruno DE WITTE – Cultural legitimation: back to the language question, in Soledad García (ed), European identity and the search for legitimacy, Londres, Pinter Publishers, 1993, pp. 158-159.
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o direito dos cidadãos da União e respectivos familiares circularem e residirem livremente no território dos Estados membros, que simplificou as condições e formalidades para o exercício do direito de residência (abolindo o sistema de autorizações de residência para os cidadãos da União, por exemplo), reforçou os direitos dos membros da família (alargando o direito de reagrupamento familiar para os companheiros em união de facto), criou um direito incondicional de residência permanente em benefício dos cidadãos da União que residam contínua e legalmente por um período de pelo menos cinco anos num Estado membro que não o da respectiva nacionalidade e reforçou a protecção contra expulsão de cidadãos da União e seus familiares por razões de ordem e saúde públicas138. O outro importante elemento da cidadania europeia – os direitos de participação política – está igualmente longe da satisfação plena, muito por falta de informação (e de interesse) dos cidadãos europeus, mas também pela relutância dos Estados membros em proporcionar aos estrangeiros cidadãos da União o efectivo gozo do direito de participar nas eleições para os órgãos locais e para o Parlamento Europeu139. As eleições para o Parlamento Europeu conhecem níveis de abstenção elevadíssimos, o que, de início, foi interpretado como consequência dos diminutos poderes deste órgão, motivando um substancial aumento desses poderes em sucessivas revisões dos Tratados140, mas que melhor se explica pela 138 Quinto Relatório da Comissão sobre a Cidadania da União, COM(2008) 85 final, de 15 de Fevereiro de 2008. 139 Cf. Gráinne DE BÚRCA – Fundamental rights and citizenship, in Bruno de Witte (ed.), Ten reflections on the Constitutional Treaty for Europe, EUI-RSCAS/AEL, Florença, 2003, p. 14; Maarten P. VINK – Limits of European citizenship: European integration and domestic immigration policies, in Constitutionalism Web-Papers, ConWEB n.º 4/2003, http://www.les1.man.ac.uk/conweb/, pp. 6-8; Percy B. LEHNING – European citizenship: a mirage?, in Percy B. Lehning e Albert Weale (eds.), Citizenship, democracy and justice in the new Europe, Londres, Routledge, 1997, pp. 187-188. 140 Cf. Dieter GRIMM – Does Europe need a Constitution?, in Peter Gowan e Perry Anderson (eds.), The question of Europe, Londres, Verso, 1997, p. 240; Manuel Braga da CRUZ – Europeísmo, nacionalismo, regionalismo, in “Análise Social”, vol. XXVII, números 118-119, 1992, pp. 842-843; António Goucha SOARES – O défice democrático da União Europeia: alguns problemas conexos, in “Análise Social”, vol. XXXII, n.º 142, 1997, pp. 627-628.
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enorme distância que separa os cidadãos do Parlamento e o prejuízo que daí resulta para a representatividade deste. O aumento dos poderes do Parlamento Europeu não contribui para que os cidadãos sintam que têm mais voz sobre as questões europeias. O problema reside no facto de o Parlamento estar estruturalmente muito distante dos cidadãos que intende representar e de dificilmente poder cumprir a sua função de fórum público 141. Não existe, da parte dos cidadãos europeus, a possibilidade de, através das eleições europeias, afastar um governo que esteja a portar-se mal142; nem, como nota António Goucha Soares, a de influir sobre a definição da orientação das políticas a prosseguir em concreto143. No plano do funcionamento democrático da União parece continuar a não haver lugar para os cidadãos. Estes – acusa Weiler – vêem-se, muito pelo contrário, continuamente “desapossados” pela persistência do défice democrático da governação europeia, sempre mais inacessível e obscura, e pelo constante alargamento das competências da UE144. Um “desapossamento” que é tanto mais grave quanto contraria o sentido específico da cidadania145. No quadro da Convenção sobre o Futuro da Europa, a cidadania europeia parece não ter merecido especiais cuidados. Como observa Gráinne de Búrca, poder-se-ia mesmo dizer que ela esteve completamente ausente, não fosse o facto de o esboço do Tratado Constitucional apresentado pelo Praesidium em Outubro de 2002 a 141 Cf. Joseph H. H. WEILER – The Constitution of Europe. “Do the new clothes have an emperor?” and other essays on European integration, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 266; Neil WALKER – The idea of constitutional pluralism, in “The Modern Law Review”, vol. 65, n.º 3, 2002, p. 352; Jean-Claude PIRIS – Does the European Union have a Constitution? Does it need one?, Jean Monnet Papers 5/2000, http://www.jeanmonnetprogram.org/papers. 142 Cf. Joseph H. H. WEILER – The Constitution of Europe. “Do the new clothes have an emperor?” and other essays on European integration, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, pp. 266-267. 143 Cf. António Goucha SOARES – O défice democrático da União Europeia: alguns problemas conexos, in “Análise Social”, vol. XXXII, n.º 142, 1997, p. 642. 144 Cf. Joseph H. H. WEILER – The European Union belongs to its citizens: three immodest proposals, in “European Law Review”, n.º 22, 1997, pp. 150-151. 145 Cfr. Percy B. LEHNING – European citizenship: towards a European identity? in “Law and Philosophy”, n.º 20, 2001, pp. 241 e 258.
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incluir entre os seus primeiros artigos, identificando os direitos e as faculdades que lhe vão associados 146. O Tratado que veio estabelecer uma Constituição para a Europa manteve, no essencial, os termos em que é definida a cidadania e o elenco de direitos que lhe corresponde147. A cidadania europeia sairia, no entanto, claramente reforçada pela integração da Carta dos Direitos Fundamentais no texto do Tratado Constitucional148, que conferiu carácter juridicamente vinculativo às suas disposições; pela decisão de aceder à Convenção Europeia dos Direitos do Homem; e pela introdução de um novo direito de participação política, o direito de iniciativa popular149. O Tratado de Lisboa, entretanto, salvaguardou cada uma destas conquistas. O novo artigo 6.º do Tratado UE estatui, no seu n.º 1, que a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. O n.º 2 do mesmo artigo dispõe ainda que a União adere à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. O novo artigo 8.º-B, depois de, no seu n.º 1, afirmar que as instituições dão aos cidadãos e às associações representativas a possibilidade de expressarem e partilharem publicamente os seus pontos de vista sobre 146 Cf. Gráinne DE BÚRCA – Fundamental rights and citizenship, in Bruno de Witte (ed.), Ten reflections on the Constitutional Treaty for Europe, EUI-RSCAS/AEL, Florença, 2003, p. 12. 147 Cf. Gráinne DE BÚRCA – Fundamental rights and citizenship, in Bruno de Witte (ed.), Ten reflections on the Constitutional Treaty for Europe, EUI-RSCAS/AEL, Florença, 2003; Dominique ROUSSEAU – Citizenship in abeyance, in “European Constitutional Law Review”, n.º 1, 2005. 148 Cf. Jacques ZILLER – La nouvelle Constitution européenne, Paris, Editions La Découverte, pp. 7 e 26. 149 Resolução do Parlamento Europeu sobre o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, de 12 de Janeiro de 2005. Um bom indicador da importância assumida pelos cidadãos era ainda o artigo 45.º que, sob a epígrafe princípio da democracia representativa, declarava serem os cidadãos directamente representados, ao nível da União, pelo Parlamento Europeu (n.º 2) e reconhecia a qualquer cidadão o direito de participar na vida democrática da União, fazendo decorrer daí o dever de as decisões serem tomadas tão abertamente e tão próximo dos cidadãos quanto possível (n.º 3). Cf. Jacques ZILLER – La nouvelle Constitution européenne, Paris, Editions La Découverte, pp. 7 e 26.
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todos os domínios de acção da União, reconhece o direito de iniciativa popular, prevendo, no n.º 4, que um milhão, pelo menos, de cidadãos da união, nacionais de um número significativo de Estados membros, possa tomar a iniciativa de convidar a Comissão Europeia a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um acto jurídico da União para aplicar os Tratados. O novo artigo 8.º-A afirma que os cidadãos estão directamente representados, ao nível da União, no Parlamento Europeu (n.º 2) e que todos os cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da União, pelo que as decisões devem ser tomadas de forma tão aberta e tão próxima dos cidadãos quanto possível (n.º 3). Um artigo 16.º-B, introduzido no Tratado CE (agora Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) em substituição do artigo 286.º, reconhece o direito de todas as pessoas à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito. 2.2.2.
A Carta dos Direitos Fundamentais
Elaborada com o propósito de conquistar o apoio dos cidadãos150, demonstrando-lhes a importância atribuída pela União ao respeito e defesa dos seus direitos fundamentais, a Carta não teve intentos inovadores, procurando, sobretudo, tornar o compromisso comunitário face aos direitos humanos mais visível para as pessoas comuns, o que explica, de resto, o método adoptado 151. Atenta a textura aberta
150 Sobre as motivações que presidiram à elaboração da Carta, cf. Pedro Bacelar VASCONCELOS – A Carta dos Direitos Humanos da União Europeia, in Nicolau A. Leitão (org.), 20 anos de integração europeia (1986 – 2006) O testemunho português, Lisboa, Edições Cosmos, 2007, pp. 139 e ss.. 151 “This was clearly to be a visibility exercise, a way of pronouncing and providing both what the European Union already claimed to have done in the area of human rights, and a way of declaring its commitments in a public process which would help to secure a degree of popular legitimacy for a political entity which continues to be contested and questioned”. Cf. Gráinne DE BÚRCA – The drafting of the European Union Charter of fundamental rights, in “European Law Review”, n.º 26, 2001, p. 130. Apesar de ser apresentada como mero repositório dos direitos já reconhecidos pela ordem jurídica comunitária, a elaboração da Carta assumiu um enorme valor simbólico e, não poucos, viram nesta iniciativa um passo mais no processo de constitucionalização em curso. Para uma leitura nesse sentido, cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, p. 43; Neil WALKER – The White Paper in constitutional context, in Christian Joerges, Yves Mény e Joseph H. H. Weiler (eds.), Mountain or molehill? A critical appraisal of the Commission White Paper on Governance, Jean Monnet WP n.º 6/01, p. 47. Para uma leitura de sentido oposto, cf. Gustavo ZAGREBELSKY – Introduzione, in Gustavo Zagrebelsky (org.), Diritti e Costituzione nell’Unione Europea, Roma-Bari, Editori Laterza, 2003, pp. xxx-xiv.
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do vocabulário jurídico em matéria de direitos humanos, afigura-se, no entanto, difícil que uma reafirmação do já anteriormente dito seja apenas uma reafirmação152. Encimada por um preâmbulo onde são invocados os valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade, a Carta desdobra-se em seis títulos temáticos dedicados, precisamente, à dignidade, às liberdades, à igualdade, à solidariedade, e ainda à cidadania e à justiça, terminando com um conjunto de disposições gerais sobre a interpretação e aplicação dos seus preceitos. Estão lá todos os direitos habituais em qualquer bill of rights – os direitos à vida (artigo 2.º), à integridade física e mental (artigo 3.º), à liberdade e segurança (artigo 6.º), ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 7.º), à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (artigo 10.º), à liberdade de expressão e de informação (artigo 11.º), à educação (artigo 14.º), à propriedade (artigo 17.º), a tratamento não discriminatório (artigos 20.º e 21.º), entre outros. O título V, que versa especificamente sobre cidadania, elenca os direitos já reconhecidos aos cidadãos da União pelos Tratados – o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu (artigo 39.º), o direito de eleger e de ser eleito nas eleições municipais (artigo 40.º), o direito de acesso aos documentos (artigo 42.º), o direito de petição ao Provedor de Justiça Europeu (artigo 43.º) e ao Parlamento Europeu (artigo 44.º), o direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados membros (artigo 45.º), o direito a protecção diplomática e consular por Estado membro que não o da respectiva nacionalidade (artigo 46.º) –, a que soma o direito a uma boa administração (artigo 41.º). Por força do n.º 1 deste artigo, todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável, o que compreende, nomeadamente, o direito de qualquer pessoa ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente; o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram; e a obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções (artigo 41.º, n.º 3). Cabe ainda neste direito, a possibilidade, já antes reconhecida, de os indivíduos se dirigirem às instituições da União numa das línguas dos Tratados e de receberem resposta na mesma língua (artigo 41.º, n.º 4). A maioria dos direitos reconhecidos pela Carta são referidos a todas as pessoas, sendo expressamente reservados aos cidadãos apenas a liberdade de procurar emprego, de trabalhar, de se estabelecer ou de prestar serviços em qualquer Estado membro (artigo 15.º, n.º 2); o direito de participar nas eleições para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais do Estado membro de residência (artigos 39.º e 40.º); o direito a protecção diplomática e consular por autoridades de Estado membro diferente do da respectiva nacionalidade no território de países terceiros em que este não esteja representado (artigo 46.º); e o direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados membros, ainda que o n.º 2 do artigo 45.º admita a possibilidade de conceder liberdade de circulação e de permanência aos nacionais de países terceiros que residam legalmente no território de um Estado membro. 152 Como nota Neil Walker, a restatement is never just a restatement, a consolidação num novo formato cria forçosamente novas ênfases, sugere novas conexões e indica novos desenvolvimentos. Cf. Neil WALKER – The Charter of Fundamental Rights of the European Union: legal, symbolic and constitutional implications, in P. J. Cullen e P. A. Zervakis (eds.), The post Nice process: towards a European Constitution?, Nomos Verlagsgesellschaft, 2002. Paul Craig e Gráinne de Búrca, reconhecendo que a Carta importou algumas não descuráveis inovações, preferem vê-la como uma depuração criativa das normas de Direito Comunitário, de Direito Internacional e dos Direitos Constitucionais dos Estados membros que têm servido de sustento à actuação do Tribunal de Justiça ao longo dos anos. Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, pp. 358-359.
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As principais críticas dirigidas ao conteúdo da Carta dos Direitos Fundamentais prendem-se com a ambiguidade e a debilidade de muitas das suas disposições, a não inclusão de certos direitos e com o facto de deixar muitas questões por resolver, desde logo a da sua relação com outros instrumentos constitucionais e internacionais de direitos humanos153. As disposições da Carta, nos termos do seu artigo 51.º, n.º 2, têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados membros, apenas quando apliquem o Direito da União, o que restringe seriamente o seu campo de aplicação154 e a sua capacidade de influir sobre as práticas dos Estados membros que sejam lesivas dos direitos fundamentais consagrados. O estatuto da Carta dos Direitos Fundamentais, que ficara em aberto em Nice, foi objecto de um grupo de trabalho autónomo durante a Convenção sobre o Futuro da Europa, ainda que não tenha sido difícil chegar a uma conclusão sobre o caminho a seguir. Tornara-se razoavelmente pacífico que, na Constituição a elaborar, não poderia faltar um catálogo de direitos fundamentais155 e que a Carta deveria ser integrada nos 153 Pronunciando-se durante os trabalhos da Convenção sobre o Futuro da Europa, quando parecia já certo que a Carta integraria o texto do novo Tratado Constitucional, Gráinne de Búrca chamou a atenção para o risco de a Carta, ao chamar a si a exclusividade do tratamento da matéria dos direitos fundamentais, vir substituir todas as demais referências a direitos constantes dos Tratados e, o que é mais importante, cristalizar o acquis, criando limites à acção futura do Tribunal de Justiça neste domínio. O perigo de cristalização resulta de a Carta adoptar como método a enumeração dos direitos (o que sugere um catálogo exaustivo) e não incluir uma cláusula geral que lhe permita abertura ao reconhecimento de novos direitos, na linha do que tem sido a prática do Tribunal de Justiça. Uma objecção que, no entender da autora, não é contrariada pelo facto de a Carta fazer referência às tradições constitucionais e aos compromissos internacionais dos Estados membros, já que num caso (o preâmbulo) o faz para identificar as fontes de inspiração na elaboração da Carta (sem qualquer sentido prospectivo) e noutro (artigo 53.º) o faz para afastar a possibilidade de a Carta ser usada com um sentido que restrinja o alcance dos direitos tal como estão definidos nesses outros textos. A falta de abertura da Carta explica-se pela seriedade com que foi tomado o compromisso de não alterar o acquis em matéria de protecção de direitos fundamentais e, no entender da autora, deveria ser contrariada pela inserção no Tratado Constitucional de uma referência expressa aos princípios gerais de Direito Comunitário que são inspirados pelo Direito Internacional. Cf. Gráinne DE BÚRCA – Fundamental Rights and Citizenship, in Bruno de Witte (ed.), Ten reflections on the Constitutional Treaty for Europe, EUI-RSCAS/AEL, Florença, 2003, pp. 14-16 e 21-22. Em vista da adesão, finalmente admitida, da União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, põe-se, por outro lado, o problema de saber como articular este documento com a Carta, evitando os conflitos de jurisdição entre o Tribunal de Justiça das Comunidades e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O artigo 52.º, n.º 3 da Carta, que versa especificamente sobre a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não contempla os termos em que há-de manter-se o relacionamento entre os dois Tribunais, mas pode deduzir-se, com Paul Craig e Gráinne de Búrca, que se pretende que o Tribunal de Justiça continue a mostrar deferência face ao TEDH. Este problema não é, aliás, privativo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Na verdade, porque não se pretende substituir aos demais instrumentos de protecção de direitos humanos em vigor no espaço em que se aplica, a Carta tem de coexistir ainda com as Constituições dos Estados Membros e com os acordos internacionais de que estes sejam parte. Uma coexistência complicada, sobre que versa o artigo 52.º da Carta. Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, pp. 43-44 e 361. Sobre a ausência, na Carta, de direitos das minorias, cf. Guido SCHWELLNUS – “Much ado about nothing?” Minority protection and the EU Charter of Fundamental Rights, in “Constitutionalism Web-Papers”, ConWEB n.º 5/2001, http://www.les1.man.ac.uk/conweb/. 154 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, pp. 136-141. 155 Paul Craig, opondo-se embora a que uma Constituição fosse a resposta para os problemas da União, notou que, atenta a importância assumida pelos direitos num qualquer texto constitucional e o reforço de legitimidade que a protecção dos direitos fundamentais proporciona à UE, seria muito estranho que uma eventual Constituição não incluísse a Carta de Direitos Fundamentais entretanto elaborada, ainda que a sua inclusão implique uma clara subida da parada por parte do projecto europeu.
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Tratados, passando a beneficiar de carácter vinculativo. O grupo de trabalho cedo deu por concluída a sua missão e a Carta passava, na íntegra (preâmbulo incluído), para o corpo do Tratado, onde figurava como parte II. A Carta cumpria assim o destino que lhe fora delineado pelos seus autores ao elaborá-la “como se” 156 esta se tratasse de um documento destinado a ter força jurídica vinculativa. A constitucionalização da Carta foi saudada como um passo muito positivo, ainda que muitos tenham notado não se tratar de uma alteração profunda do status quo, atenta a relevância jurídica que sempre foi reconhecida à Carta157, como bem demonstram a invocação da Carta pelo Tribunal de 1.ª Instância e, como prática frequente, por vários entre os Procuradores Gerais do Tribunal de Justiça; as cada vez mais frequentes referências à Carta feitas pelo Parlamento Europeu e pela Comissão 158, bem como, fora da UE, pelo Tribunal Constitucional espanhol e pelo Vice-Presidente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem159. O malogro do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa não prejudicou esta conquista, ainda que a Carta não figure agora como parte integrante do Tratado, mas como um seu anexo, o que constitui um ganho em elegância sobre o figurino anterior. O novo artigo 6.º, n.º 1, do Tratado da União dispõe que esta reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. Esclarece-se que de forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados (2.º §) e determina-se que os direitos, liberdades e os princípios consagrados na Carta sejam interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do Título VII da Carta e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições (3.º §). O n.º 2 do artigo 6.º estatui ainda que a União adere à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, ao passo que o n.º 3 reitera a afirmação de que do Direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Cf. Paul CRAIG – Constitutions, constitutionalism, and the European Union, in “European Law Journal”, vol. 7, n.º 2, 2001, pp. 141-142. 156 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, p. 132; Pedro Bacelar VASCONCELOS – A Carta dos Direitos Humanos da União Europeia, in Nicolau A. Leitão (org.), 20 anos de integração europeia (1986 – 2006) O testemunho português, Lisboa, Edições Cosmos, 2007, pp. 139 e ss.. 157 José Carlos Vieira de Andrade, pronunciando-se em 2001, observara já que a Carta, fosse ou não formalmente integrada nos Tratados, sempre constituiria um nível constitucional de direitos fundamentais aplicáveis nas relações jurídicas comunitárias no âmbito da União Europeia, servindo como parâmetro de validade e critério de interpretação de todo o Direito comunitário. Cf. José Carlos Vieira de ANDRADE – Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, p. 43. 158 Quando ainda não decorriam os trabalhos da Conferência Intergovernamental de 2000, o Parlamento Europeu propunha já a incorporação da Carta dos Direitos Fundamentais no Tratado, de modo a conferir-lhe carácter jurídico vinculativo, argumentando com o papel crucial que lhe cabe na óptica da realização de uma União cada vez mais estreita entre os povos da Europa. Resolução do Parlamento Europeu que contém as suas propostas para a Conferência Intergovernamental (A5-0086/2000, de 13 de Abril). Posição que reiterou na Resolução sobre o Tratado de Nice e o Futuro da Europa, de 31 de Maio de 2001, apelando às demais instituições comunitárias para que pautassem a sua actuação pelos preceitos da Carta, ainda que estes não tenham ainda força jurídica. European Parliament Resolution on the Treaty of Nice and the future of the European Union (A50168/2001). Em idêntico sentido se pronunciaria, neste mesmo ano, a Comissão Europeia, em Comunicação sobre o Futuro da União Europeia – “A carta dos direitos fundamentais deveria ter o seu lugar nos nossos tratados reorganizados desta forma. Um texto que reafirma solenemente os direitos e liberdades que resultam já das tradições constitucionais dos Estados-Membros e as suas obrigações internacionais e europeias não poder ter outro estatuto. Embora algumas questões técnicas devam ser aprofundadas, uma tal operação permitirá que os nossos tratados apresentem uma coerência política forte e uma arquitectura dotada de uma lógica simples, que poderá ser bem compreendida pelos cidadãos”. COM(2001) 727 final, 5 de Dezembro de 2001. 159 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, pp. 132-136. Cf., igualmente, Neil WALKER – The Charter of Fundamental Rights of the European Union: legal, symbolic and constitutional implications, in P. J. Cullen e P. A. Zervakis (eds.), The post Nice process: towards a European Constitution?, Nomos Verlagsgesellschaft, 2002.
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Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados membros.
2.2.3.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça
É incontroversa a importância da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades na progressiva aproximação do projecto europeu à sua natureza humanista160. Por ter afirmado os princípios da supremacia e do efeito directo, permitindo que os indivíduos ascendessem à condição de sujeitos da ordem jurídica comunitária161. E, sobretudo, por ter declarado, reiteradamente ao longo dos anos, que os princípios gerais de Direito Comunitário incluem a protecção dos direitos fundamentais que sejam parte das tradições constitucionais comuns aos Estados membros ou que figurem em acordos internacionais em que estes tenham participado162. Os primeiros passos dados pelo Tribunal no domínio da protecção de direitos fundamentais estiveram relacionados, muito compreensivelmente, com direitos económicos como o direito de propriedade e o direito de desenvolver uma actividade ou escolher uma profissão. A sua intervenção foi provocada pela contestação da supremacia do Direito Comunitário por parte dos tribunais nacionais163. Os Estados membros não se opuseram a esta iniciativa do Tribunal uma vez que a protecção dos direitos fundamentais surgia então como modo de controlar e refrear as instituições comunitárias. 160 Cf. Philip ALSTON e Joseph H. H. WEILER – An ‘ever closer union’ in need of a human rights policy, in “European Journal of International Law”, n.º 9, 1998, pp. 665 e 709; Federico MANCINI – Europe: the case for statehood, in “European Law Journal”, vol. 4, n.º 1, 1998, p. 30. Sobre o desempenho do Tribunal na protecção das identidades culturais minoritárias e no apoio a medidas de affirmative action, cf. Juan M. DELGADO-MOREIRA – Multicultural citizenship of the European Union, Hampshire, Ashgate, 2000, pp. 118-119 e 130-134. 161 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, p. 127. 162 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 317. 163 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 319.
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A jurisprudência do Tribunal veio, no entanto, a estender o alcance daquela protecção para se permitir avaliar também a acção dos Estados Membros, o que já suscitou muito sérios receios de uma escalada expansionista e de uma intromissão ilegítima naquele que é o campo de actuação próprio das jurisdições constitucionais nacionais e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem164. Daí que a extensão da human rights review do Tribunal de Justiça sobre a acção dos Estados tenha acontecido muito gradualmente e continue a apresentar obscuros a sua finalidade e os seus contornos. O artigo 51.º da Carta dos Direitos Fundamentais parece restringir as possibilidades desta interferência, mas também aqui, há espaço para dúvidas. Entretanto, desde Wachauf, parece certo que, sempre que implementem Direito comunitário, os Estados membros devem respeitar os mesmos princípios e direitos cujo respeito impende sobre as acções da Comunidade. Quando implementem e, desde Familiapress, mesmo quando derroguem normas de Direito comunitário165. A actuação arrojada do Tribunal recebeu legitimação oficial em 1977 através de uma declaração conjunta do Parlamento, da Comissão e do Conselho em que estes reconheceram naquela jurisprudência o desenvolvimento dos princípios gerais já inscritos no Direito comunitário e, simultaneamente, se comprometeram com o respeito pelos direitos fundamentais no exercício das suas respectivas atribuições. Apesar de destituída de força jurídica vinculativa, esta declaração conjunta foi extremamente 164 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, pp. 338 e 363; Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, p. 129; Lars BLICHNER – What is a rights-based Europe and what it should be? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, pp. 155-157. 165 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, pp. 340 e ss..
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importante pela forma como veio proporcionar um claro sustento institucional à iniciativa do Tribunal de fazer derivar direitos da Convenção Europeia de Direitos do Homem e das ordens constitucionais dos Estados Membros166. Se dúvidas existissem quanto a este sustento institucional, o Tratado de Amesterdão veio dissipá-las definitivamente com as alterações feitas ao artigo 6.º (que passou a declarar que a União se funda nos princípios da liberdade, democracia, respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais) e a introdução de um novo artigo 7.º, por força do qual o Tribunal passou a ter competência para suspender direitos dos Estados membros que violem de uma forma grave e persistente os princípios consagrados no artigo 6.º. Já antes o Tratado de Maastricht codificara o princípio geral de protecção dos direitos fundamentais cristalizado pela jurisprudência do Tribunal, enunciando no seu texto preambular o compromisso dos Estados membros com o respeito pelos direitos humanos e apresentando no segundo parágrafo do então art. F uma súmula da posição do Tribunal167. Amesterdão tornou mais explícito esse compromisso, nomeadamente porque fez do artigo 6.º TUE um critério de apreciação judicial das actividades das instituições da UE168. No tocante à cidadania da União, a jurisprudência do Tribunal começou por ser pouco audaz, mas tem vindo a revelar-se favorável a uma leitura substancial dos artigos 18.º e seguintes169. A decisão Skanavi e Chyssanthakopoulos, de 1996 (C-193/94), tratou o, 166 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 325. 167 Cf. Agustín José MENÉNDEZ – A rights-based Europe? in Erik Oddvar Eriksen, John Erik Fossum, Agustín José Menéndez (eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, ARENA, Oslo, 2002, p. 130. 168 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 350. 169 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 756.
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agora, artigo 18.º como um direito residual e secundário face a outros direitos mais específicos previstos no Tratado; e a decisão Uecker, de 1997 (C-64/96 e C65/96), esclareceu que a cidadania europeia não pretendia alargar o âmbito ratione materiae do Tratado de forma a abranger situações internas sem qualquer ligação com o Direito comunitário170. Em decisões proferidas a partir de 1998, o Tribunal permite-se aplicar o princípio de não discriminação em razão da nacionalidade sempre que estejam em causa cidadãos europeus no exercício de algum dos seus direitos, mormente o de livre circulação e residência no espaço da União, sem exigir que haja um qualquer envolvimento numa actividade económica, como trabalhador ou prestador de serviços, ou que se trate de um estudante em preparação para actividade económica futura 171. O Tribunal tem afirmado que o direito de residir no território de um Estado membro é conferido directamente a todos os cidadãos da União pelo artigo 18.º TCE e sublinhado a necessidade de interpretar o direito de circular livremente à luz dos direitos fundamentais, particularmente o direito à protecção da vida familiar e o princípio da proporcionalidade172. A decisão Martinez Sala, de 1998 (C-85/96), incluiu entre os direitos acoplados ao estatuto de cidadão da União (por remissão do artigo 17.º n.º 2) o de não sofrer discriminação com base na nacionalidade, concluindo que um cidadão da União legalmente residente no território de um Estado membro pode invocar o artigo 12.º para todas as situações que caiam no âmbito ratione 170 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 756. 171 Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 758. 172 Quinto Relatório da Comissão sobre a Cidadania da União, COM(2008) 85 final, de 15 de Fevereiro de 2008.
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materiae do Direito comunitário, incluindo o acesso a um benefício (in casu, o abono de família) garantido por esse Estado a todas as pessoas legalmente residentes no seu território, que as autoridades se recusavam a conceder com o argumento de que a requerente não dispunha de uma autorização de residência válida. A decisão Bickel & Franz, de 1998 (C-274/96), considerou aplicável, a dois indivíduos (um alemão e um austríaco) demandados judicialmente em Itália, o princípio da não discriminação consagrado no artigo 12.º do Tratado CE por estes, não apenas serem potenciais utentes de serviços, mas também por estarem em Itália no exercício da liberdade de circulação que, nos termos do artigo 18.º, lhes assiste enquanto cidadãos europeus. A decisão Rudy Grzelczyk, de 2001 (C-184/99), concluiu que a recusa, pelas autoridades belgas, de um subsídio a cidadão francês residente e estudante na Bélgica, constituía discriminação em razão da nacionalidade, violadora do artigo 12.º do Tratado CE, sem que tenha relevado a circunstância de se tratar de um estudante e não de um trabalhador ou prestador de serviços. Na sua exposição de argumentos, o Tribunal afirmou que a cidadania da União se destina a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados membros, permitindo, salvo as excepções expressamente previstas, a todos aqueles que se encontrem em idêntica situação o mesmo tratamento legal, independentemente da sua nacionalidade. O artigo 12.º aplica-se sempre que esteja em causa o exercício de uma das liberdades fundamentais reconhecidas no Tratado, bem como o direito de circular e residir livremente no espaço comunitário, decorrente da cidadania da União 173. A 173 Como sublinham Paul Craig e Gráinne de Búrca, a cidadania da União é empregue para determinar o âmbito ratione personae do artigo 12.º e o próprio âmbito ratione materiae do Direito comunitário vê-se condicionado pelo direito de
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decisão D’Hoop, de 2002 (C-224/98), reiterou aqueles considerandos e concluiu que o direito, reconhecido aos cidadãos da União, de beneficiarem, em todos os Estados membros, de tratamento jurídico igual ao dos respectivos nacionais, implica que os Estados membros não possam discriminar contra os seus nacionais, penalisando aqueles que exerçam o direito de livre circulação no espaço comunitário (in casu, recusando um subsídio a um seu nacional, por este ter concluído os estudos secundários num outro Estado membro), por uma tal medida ter um inevitável efeito dissuasor, prejudicial ao gozo do direito de livre circulação e residência reconhecido pelo artigo 18.º do Tratado CE, e, em concreto, não se justificar para a satisfação de qualquer interesse atendível do Estado membro. A decisão Baumbast, de 2002 (C-413/99), esclareceu que, depois de caducada a autorização de residência obtida na qualidade de trabalhador migrante, o cidadão da União continua a poder permanecer no Estado membro de acolhimento, por aplicação directa do artigo 18.º TCE; o exercício do direito reconhecido por este artigo está sujeito a limitações, mas – notou o Tribunal – as autoridades do Estado de acolhimento hão-de respeitar, ao impor essas limitações, os princípios gerais do Direito comunitário, designadamente, o princípio da proporcionalidade. A decisão Trojani, de 2004 (C456/02), reiterou a ideia de que um cidadão da União pode beneficiar do direito de residência num Estado membro por aplicação directa do artigo 18.º, quando não possa lançar mão dos artigos 39.º, 43.º ou 49 do Tratado CE; trata-se de um direito susceptível de limitações, entre as quais a exigência de meios económicos circular e residir livremente num Estado membro que não o da nacionalidade do cidadão europeu. Cf. Paul CRAIG e Gráinne DE BÚRCA – EU Law. Text, cases, and materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, pp. 756-759.
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suficientes, mas as autoridades do Estado membro de acolhimento devem respeitar, ao impor essas condições, os princípios gerais de Direito comunitário, nomeadamente o princípio da proporcionalidade. Por outro lado, se o cidadão da União que não seja economicamente activo dispuser de uma autorização de residência, passa a poder invocar o artigo 12.º TCE para, designadamente, reclamar o benefício de prestações de segurança social como um rendimento mínimo de subsistência. A decisão Garcia Avello, de 2003 (C-148/02), afirmou que os cidadãos de um Estado membro a residir legalmente no território de outro Estado membro podem fazer valer o direito de não sofrer discriminação em razão da nacionalidade (artigo 12.º) na aplicação das regras relativas ao seu nome de família, ainda que a regulação do nome das pessoas seja da competência reservada dos Estados membros, uma vez que estes sempre terão de respeitar o Direito comunitário no exercício desta competência. A cidadania europeia não pode estender o campo de aplicação do Tratado a situações internas sem qualquer relação com o Direito comunitário, mas uma tal relação sempre existirá se em causa estiver um cidadão de um Estado membro a residir legalmente no território de outro Estado membro; a isto não se opõe a circunstância de o indivíduo em causa ter, simultaneamente, a nacionalidade do Estado membro em que reside. A decisão Chen, de 2004 (C-200/2002), esclareceu que a capacidade de exercício dos direitos reconhecidos aos cidadãos da União pelo Tratado e pelo Direito secundário em matéria de liberdade de movimento de pessoas não pode ser feita depender de uma idade 71
mínima. O Tribunal observou que o direito de residir por período indeterminado no território de um Estado membro é directa e claramente reconhecido pelo artigo 18.º a qualquer cidadão da União e, se admite limitações, estas não incluem a exigência de que o cidadão da União disponha de recursos próprios, podendo este, como sucede no caso concreto, beneficiar de meios de subsistência proporcionados por outrem. O exercício por uma criança do direito de residência reconhecido pelo artigo 18.º implica, necessariamente, a faculdade de esta ser acompanhada pela pessoa responsável pela sua guarda, quer se trate de um nacional de um Estado membro ou de país terceiro. A decisão Comissão/Bélgica, de 2006 (C-408/03), concluiu ser desproporcionada e violadora do artigo 18.º TCE, a exigência feita pelas autoridades belgas, em aplicação da Directiva n.º 90/364, de prova de um laço jurídico entre o cidadão de um Estado membro que pretende exercer o direito de residência noutro Estado e a pessoa, residente neste outro Estado, que se dispõe a assegurar os rendimentos requeridos para aquele exercício; por nada se dispor na Directiva n.º 90/364 quanto à proveniência dos recursos financeiros, nem uma tal restrição se afigurar justificável à luz do propósito de proteger as finanças públicas do Estado membro de acolhimento. A decisão Schempp, de 2005 (C-403/03), sustentou que o simples facto de um cidadão de um Estado membro não exercer o direito à livre circulação no espaço comunitário não significa, por si só, que a sua seja uma situação puramente interna – assim não é quando um cidadão de um Estado membro se encontra obrigado a prestar alimentos a pessoa residente num outro Estado membro. Os artigos 12.º e 18.º não se 72
opõem, todavia, a que a legislação fiscal de um Estado membro recuse a dedução de prestações de alimentos feitas a pessoas residentes noutro Estado membro, ainda que o permita quando a prestação de alimentos seja feita em benefício de pessoa residente no seu território; o Tratado não garante aos cidadãos da União que o respectivo exercício do direito de livre circulação e residência será inconsequente em termos fiscais. A decisão Espanha/Reino Unido, de 2006 (C145/04), observou que, no actual estádio do Direito comunitário, a determinação dos titulares do direito de votar e ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu cabe a cada Estado membro, sendo que as normas do Tratado não se opõem a que os Estados membros confiram aquele direito a pessoas com que tenham laços estreitos, mesmo que estas não sejam seus cidadãos nem cidadãos da União residentes no seu território. A indicação, feita nos artigos 189.º e 190.º do Tratado CE, de que o Parlamento Europeu é composto por representantes dos povos dos Estados membros, não é decisiva, atenta a polissemia do termo povos nas várias línguas da União, para o estabelecimento de um nexo entre a cidadania da União e o direito de voto e elegibilidade nas eleições europeias, que imponha a reserva deste direito para os cidadãos europeus. Por outro lado, os preceitos que especificamente tratam da cidadania da União não autorizam a conclusão de que os cidadãos europeus são os únicos beneficiários das demais disposições do Tratado. De qualquer modo, uma vez que o número de representantes eleitos por cada Estado membro está definido no Tratado e que as eleições são organizadas em cada Estado para a designação dos respectivos representantes, o alargamento, por um Estado 73
membro, do direito de participar nas eleições para o Parlamento Europeu a cidadãos extra-comunitários, não interfere com a eleição dos representantes nos demais Estados membros. O Tribunal concluiu, em conformidade, que o Reino Unido não violou o Direito comunitário ao reconhecer o direito de votar e ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu a cidadãos da Commonwealth, extra-comunitários, residentes no território de Gibraltar. A decisão Eman e Sevinger, de 2006 (C-300/04), reconhece, às pessoas que possuam a nacionalidade de um Estado membro e residam em país ou território ultramarino, a possibilidade de invocar os direitos reconhecidos aos cidadãos da União na Parte II do Tratado; mas, porque as disposições gerais do Tratado (incluindo as relativas ao Parlamento Europeu) não são aplicáveis àqueles países e territórios ultramarinos, conclui que o artigo 19.º, n.º 2, não beneficia os cidadãos da União residentes nestes territórios que pretendam exercer o direito de voto para o Parlamento Europeu no Estado membro de que sejam nacionais. O Tribunal afirma mesmo que as disposições da Parte II do Tratado, relativas à cidadania da União, não reconhecem aos cidadãos da União um direito incondicional de voto e elegibilidade nas eleições para o Parlamento Europeu; o artigo 19.º, n.º 2, limita-se a aplicar a este direito o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade. Nada obsta a que os Estados membros definam as condições para o exercício do direito de voto e de elegibilidade nas eleições europeias por aplicação do critério de residência no território em que são organizadas as eleições; o princípio da igualdade de tratamento exige, todavia, que os critérios fixados não tenham por efeito um tratamento diferente de cidadãos 74
que se encontrem em situações equivalentes, salvo existindo razões objectivas que o justifiquem. A decisão Comissão/Portugal, de 2006 (C-345/05), entendeu serem violadoras do artigo 18.º as disposições fiscais que façam depender o benefício da isenção de imposto sobre as mais-valias resultantes da venda de bens imóveis destinados a habitação própria do investimento desses ganhos na aquisição de bens imóveis no território nacional, por essas disposições prejudicarem os indivíduos que decidam vender a casa onde residem para fixar residência num outro Estado membro da União. A decisão Comissão/Suécia, de 2007 (C-104/06), teve teor semelhante. As decisões Schwarz e Gootjes (C76/05) e Comissão/Alemanha (C-318/05), de 2007, consideraram inadmissível, por violar o artigo 18.º, a regulamentação fiscal de um Estado membro que preveja a possibilidade de os contribuintes deduzirem as despesas com as propinas pagas a estabelecimentos de ensino sediados em território nacional, mas não a estabelecimentos de ensino situados num outro Estado membro, desfavorecendo os indivíduos que exerçam o seu direito de livre circulação e residência no espaço comunitário. A decisão Davies e.a./Conselho, de 2007 (F-54/06), versou sobre a condição dos funcionários públicos comunitários, observando que, uma vez reformados, estes podem circular e fixar residência num Estado membro que não o da sua nacionalidade unicamente ao abrigo do artigo 18.º do Tratado CE, que funciona aqui como disposição subsidiária. Violam o direito de livre circulação, não apenas as medidas que imponham proibições e restrições directas, mas também aquelas que tenham um efeito dissuasor dos interessados em 75
estabelecer-se num outro Estado membro. Do artigo 18.º não resulta, no entanto, uma obrigação positiva para o legislador comunitário no sentido de proporcionar aos funcionários comunitários reformados um complemento de reforma destinado a compensar o custo de vida mais elevado do Estado membro em que estes decidam fixar residência. A decisão Morgan, de 2007 (C-11/06 e C-12/06), sustentou ser contrária aos artigos 17.º e 18.º do Tratado CE, a exigência, como condição para beneficiar de bolsas de estudo num Estado membro diferente do da respectiva nacionalidade, que os estudos a prosseguir neste Estado sejam a continuação de um período de estudos, de pelo menos um ano, efectuado no Estado membro de origem. O Tribunal entendeu que este duplo requisito (formação mínima de um ano e mero seguimento destes estudos), pelos inconvenientes pessoais que acarreta, custos adicionais e atrasos na formação, dissuade os cidadãos da União de sair do Estado membro de que são nacionais para desenvolver os seus estudos num outro Estado membro, prejudicando assim o seu direito a livre circulação e residência no espaço comunitário. Trata-se de uma medida desproporcionada e até incoerente com o propósito afirmado de garantir que os alunos beneficiários das bolsas de estudo concluem os seus estudos com sucesso e no mais curto período de tempo.
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A Debilidade do Direito de Participação Política João Sérgio Ribeiro174 Introdução O artigo que se inicia tem como propósito integrar o anuário publicista do Departamento de Ciências Jurídico-Públicas da Escola de Direito da Universidade do Minho que, no corrente ano, tem como tema a Cidadania e Responsabilidade. No sentido de abordar uma questão que se possa reconduzir a este grande tema, decidimos dissertar acerca da debilidade da participação política que é um fenómeno muito constatável na atualidade e que, segundo nos parece, aí se enquadra perfeitamente. Pois, na verdade, a cidadania está intimamente conexionada com o conjunto de direitos e deveres a que um indivíduo está sujeito em relação à sociedade de que faz parte. Ora, a debilidade do exercício do direito de participação traduz-se ao fim ao cabo numa fragilidade da cidadania, podendo essa situação, dependendo das causas que estiverem na sua origem, ser eventualmente imputável ao cidadão, traduzindo-se, por conseguinte, na possível existência de uma responsabilidade por parte deste. Surge-nos, portanto, como óbvia a ligação entre a Cidadania e Responsabilidade, e a reflexão que faremos acerca da debilidade do direito de participação política. Trataremos do tema em 3 momentos. Começaremos por delimitar o conceito de direito de participação política e dar conta do modo como se encontra enquadrado na Constituição da República Portuguesa (CRP). Num momento seguinte, referir-nosemos àquelas que, no nosso entender, são as evidências da debilidade da participação. Num momento final, pronunciar-nos-emos sobre as principais razões para essa debilidade da participação, imputando a responsabilidade não tanto aos cidadãos, mas sobretudo ao Estado. 1. O direito de participação política 1.1. Conceito
O conceito de participação política será considerado na sua aceção literal, ou seja, no sentido semântico geral, normalmente usado pelas ciências sociais. Dessa forma, participação será simplesmente entendida como a integração de um indivíduo num grupo. Porém, não se trata da integração num qualquer grupo, mas numa sociedade política - grupo no qual existe a consciência da existência de interesses derivados comuns, não suscetíveis de ser satisfeitos individualmente, que surge a partir do momento em que as instituições sociais se diferenciam para reger as manifestações do poder de direção no âmbito desse grupo175. A participação nesse universo diz-se política. Os direitos de participação política em análise reportam-se, portanto, à integração ativa do indivíduo numa sociedade política, onde este é chamado a relacionar-se com o poder instituído, concentrado de forma socialmente estabilizada
174 Doutor em Direito. Professor Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho. 175 Cfr. D. Moreira NETO, Direito da Participação Política, Renovar, Rio de Janeiro, 1992, pp. 18 e ss.
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nas instituições. Dada a emergência do Estado como instituição por excelência176 de concentração do poder177 político, poder-se-á dizer que a participação política, na atualidade, se traduz essencialmente na ação dos indivíduos nos processos decisórios do Estado. O âmbito dos direitos de participação política é muito alargado, na medida em que para além de incluir os direitos políticos dos cidadãos, abarca igualmente os direitos políticos de certos grupos ou entidades coletivas de interesses sectoriais. Na Constituição da República Portuguesa encontram-se alguns exemplos 178: o direito das comissões de trabalhadores de participarem na elaboração da legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplem o respetivo sector 179; o direito das associações sindicais de participarem na gestão das instituições de segurança social e outras organizações que visem satisfazer os interesses dos trabalhadores 180; o direito das organizações representativas dos trabalhadores, das atividades económicas e das famílias, das regiões autónomas e autarquias locais participarem na elaboração de grandes opções e dos planos de desenvolvimento económico e social no âmbito do Conselho Económico e Social181; o direito dos trabalhadores rurais e dos agricultores participarem na definição da política agrícola, através das suas organizações representativas182; o direito de participação dos interessados na gestão efetiva dos serviços da administração pública, designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação democrática183. Apesar da extrema importância desses direitos de participação política dos grupos sociais secundários184, o presente estudo limitar-se-á à abordagem dos direitos de participação política dos cidadãos, que consideramos poderem ser reconduzidos ao direito genérico de participação constante do artigo 48.º da CRP. 1.2. Direito de participação política na constituição portuguesa atual 1.2.1. O artigo 48.º da CRP
Entendemos que os direitos de participação política se reconduzem todos ao artigo 48.º da CRP 185, na medida em que esta disposição funciona como um direito genérico de participação política e, por isso, agregador de todos os demais direitos 176 Cfr. D. Moreira NETO, op. cit., nota 5, p. 5: «Durante milénios a justificação do Estado, ou, pelo menos, da concentração do poder político, se fez pelo Direito Natural: a partir do iluminismo diversificaram-se as posições, surgindo as teorias radicais. A chamada ‘teoria da força’, nascida com HOBBES, acabou se esgalhando em muitas conceções que têm, em comum, dar ao Estado o primado sobre o Homem. ‘O homem em ponto grande’, como disse PLATÃO». 177 Em «sentido lato, o poder é uma relação na qual a vontade tem capacidade de produzir efeitos desejados. Deste conceito pode derivar-se o de o poder político: uma relação social na qual a vontade tem capacidade de produzir os efeitos desejados na condução da sociedade» in D. Moreira NETO, op. cit., p. 55. 178 Cfr. Jorge MIRANDA, «O quadro de direitos políticos na Constituição» in Estudos sobre a Constituição, 1º Vol., Livraria Petrony, 1977, Lisboa, p. 180. 179 Artigo 54.º n.º 5, d) da CRP. 180 Artigo 56.º n.º 2, b) da CRP. 181 Artigo 91.º n.os 1 e 2 da CRP. 182 Artigo 98.º da CRP. 183 Artigo 268.º n.º 1 da CRP. 184 Usando a terminologia de Diogo Moreira Neto. Cfr. D. Moreira NETO, op. cit., p. 18
185 Artigo 48.º (Participação na vida pública) 1. Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, diretamente ou por intermédio de representantes eleitos. 2. Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos sobre atos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos.
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políticos. Podendo, por conseguinte, referirmo-nos aos direitos de participação política no âmbito de um direito cúpula que decorre do referido artigo 48.º. Será interessante recordar que este preceito teve como fonte 186 o artigo 21.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Julgamos também que, pela semelhança de formulação, o artigo 21.º do Convénio Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) terá por certo sido igualmente inspirador da disposição legal de que tratamos. O artigo considerado foi introduzido na ordem constitucional com a Constituição de 1976, tendo atualmente a redação que lhe foi dada pela revisão constitucional de 1982. Inicialmente essa disposição tinha uma configuração diferente, englobando outros direitos de participação política, para além dos que especificamente hoje incorpora. Digamos que começou por conter direitos fundamentais inominados 187, na medida em que na sua versão inicial não tinha epígrafe. A partir de 1982, passou a reduzir-se a dois preceitos essenciais e a contar com a epígrafe atual - participação na vida pública. É também a partir dessa altura que os direitos nele contidos passaram a seguir o regime da maioria dos direitos fundamentais, ao ser enunciados com a atribuição de um nome 188. Foi também com essa revisão que o preceito ganhou especificidade. Em primeiro lugar pela epígrafe, em segundo lugar por ter sido depurado de direitos de participação política mais detalhados, passando a limitar-se a direitos de natureza genérica189. O artigo 48.º apresenta-se, por conseguinte, como uma norma residual face a todos os outros direitos de participação política. Pretendemos com isso dizer que essa disposição encerra a ideia genérica de participação política, sendo os outros direitos de participação consagrados a nível constitucional, ou mesmo extraconstitucionalmente190, igualmente direitos de participação política, desde que suscetíveis de serem reconduzidos às ideias formuladas de forma genérica nesse mesmo artigo 48.º da CRP. Isto é, o preceito em foco encerra em si o âmago da ideia de participação política, capturando o sentido que atravessa todos os direitos políticos, servindo assim como denominador comum a todos eles191. A formulação do artigo 48.º é, com efeito, muito abrangente, de modo que será possível considerar como formas de participação na vida política um número muito alargado de direitos e institutos jurídicos dispersos pela constituição e outros instrumentos normativos. A título exemplificativo deixamos a seguinte referência a certos direitos e institutos, com consagração constitucional, suscetíveis de serem reconduzidos ao direito genérico de participação política plasmado no artigo 48.º192: direito de sufrágio (artigos 49.º e 113.º da CRP); direito de constituir ou participar em associações e partidos políticos (artigo 51.º da CRP); direito de reunião (artigo 45.º da CRP); direito 186 Cfr. Jorge MIRANDA, «O quadro dos direitos políticos...», op.cit., p. 178, nota 1. 187 Cfr. J. BACELAR GOUVEIA, Os Direito Fundamentais Atípicos, Lisboa, 1995, op. cit. pp. 122 e ss.
188 «Isso só não acontece nos casos em que o legislador constitucional apenas os enuncia sem mais, não intitulando os respetivos preceitos por ter dúvidas acerca da sua natureza e não querer erroneamente vincular o intérprete». In J. BACELAR GOUVEIA, op. cit. p. 125; «Este trabalho de construção, que cabe à ciência jurídica organizar, reflecte-se, por vezes, no próprio texto constitucional, que é redigido à partida ou alterado nas revisões de forma a indicar expressamente e por extenso as diversas faculdades que constituem o direito, por vezes autonomizando-as em termos de formar novos direitos que assim se fazem ‘derivar’ do direito originário» in VIEIRA DE ANDRADE, Os Direito Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2007, p. 174. 189 Aliás, mais consentâneos com a própria epígrafe. 190 Podendo esses direitos ter a natureza de direitos fundamentais não-enumerados, direitos fundamentais em sentido material ou atípicos. Ver J. BACELAR GOUVEIA, op. cit., pp. 40 e ss. 191 Trata-se, por isso, de algo mais do que um princípio nomogenético ou fonte inspiradora, na medida em que encerra em si mesmo normas. 192 Cfr. Miranda, Jorge, «O quadro...», op. cit., nota 112. 79
de acesso em condições de igualdade e liberdade às funções públicas (artigo da 50.º da CRP); direito de petição e ação popular (artigo 52.º da CRP); direito de requerer a providência do Habeas Corpus (artigo 31.º, n.º 2); direito de queixa por ações ou omissões dos poderes públicos ao Provedor de Justiça (artigo 23.º da CRP); direito de apresentação de candidaturas à presidência da República (artigo 124.º, n.º1 da CRP); direito de apresentação de candidaturas à assembleia de freguesia (artigo 245.º da CRP)193; direito de iniciativa de lei (artigo 167.º, n.º 1); direito de participação nos plenários de cidadãos eleitores que podem substituir as assembleias de freguesia nas freguesias de população diminuta (artigo 245.º, n.º 2 da CRP); direito a tomar parte na administração da justiça (artigo 207.º da CRP); direito de participação em grupos de cidadãos eleitores a quem, nos termos estabelecidos na lei, pode competir a iniciativa da lei e do referendo (artigo 167.º da CRP); direito de constituir e fazer parte de organizações de moradores (artigo 263.º da CRP); direito de participação no referendo nacional (artigo 115. º da CRP); direito de participação no referendo local (artigo 240.º da CRP) e direito de participação no referendo regional (artigo 232.º, n.º 2 da CRP). 1.2.2. O direito de participação política como um direito fundamental
Antes de falar do conceito de direitos fundamentais é necessário precisá-lo, dado que podem ser concebidas várias dimensões. Para Vieira de Andrade, por exemplo, existem três dimensões dos direitos fundamentais: (i) uma dimensão filosófica ou jusnaturalista, de acordo com a qual os direitos fundamentais são vistos como direitos de todos os homens independentemente dos tempos e dos lugares; (ii) uma perspetiva estadual ou constitucional que identifica os direitos fundamentais com os direitos dos homens enquanto cidadãos, num determinado tempo e lugar, ou seja, num Estado concreto; (iii) e uma dimensão universalista ou internacionalista que equipara os direitos fundamentais aos direitos de todos os homens num certo tempo, em todos os lugares ou, pelo menos, em grandes regiões do mundo194. Apesar da pluralidade de significados e abrangência do conceito direitos fundamentais, entendemo-lo numa perspetiva estadual ou constitucional, relegando a dimensão filosófica internacionalista para a noção de direitos do Homem195. Não obstante termos referido vários direitos de participação política não se justificará a natureza de direito fundamental relativamente a cada um deles isoladamente, mas unicamente em relação ao direito geral de participação política de que são concretização, o qual tem consagração no artigo 48.º da CRP. Utilizar-se-á para esse efeito o critério tríplice apresentado por VIEIRA DE ANDRADE que põe a tónica, segundo a terminologia do próprio autor, no radical subjetivo, na função e na intenção específica - indícios da existência de um direito fundamental. Nos direitos fundamentais o radical subjetivo, enquanto constituído por posições jurídicas subjetivas consideradas fundamentais e atribuídas a todos os indivíduos ou a categorias abertas de indivíduos, torna-se preponderante na aplicação prática do conceito de direito fundamental. No que respeita à função, todos os preceitos relativos aos direitos fundamentais têm como propósito a «protecção e a garantia de determinados bens jurídicos das pessoas ou de certos conteúdos das suas posições ou relações na
193 Salvo a Assembleia da República. Cfr. artigo 151.º, n.º 1 da CRP. 194 Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais…, op. cit., pp. 15 e ss. 195 Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais…, op. cit., p. 38, nota 63.
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sociedade que sejam considerados essenciais ou primários»196. Nestes termos, «os preceitos que não atribuam posições jurídicas subjetivas só pertencem à matéria dos direitos fundamentais se contiverem normas que se destinem diretamente ou por via principal a garantir essas posições jurídicas»197. Finalmente a consagração de direitos fundamentais tem uma intenção específica que consiste em explicitar uma ideia de Homem, ou seja, o princípio da dignidade humana assente na autonomia ética da pessoa, enquanto ser livre e responsável198. A título de síntese, podemos dizer que estamos na presença de um direito fundamental quando o preceito considerado (i) consagra posições subjetivas individuais, (ii) se destina diretamente a garantir bens jurídico-pessoais, e (iii) se refere à ideia de Homem e à sua dignidade. Aplicando este critério ao direito fundamental que nos ocupa - o direito de participação política - vejamos se ele passa o teste. (i’) Em relação ao primeiro requisito, verifica-se que as manifestações do direito genérico de participação política consagrado no artigo 48.º da CRP conferem posições jurídicas individuais atribuídas a uma categoria aberta de indivíduos - os cidadãos. (ii’) No que se refere ao segundo requisito, pretende-se com o direito que consideramos a proteção de uma posição na sociedade, considerada essencial ou primária. Tendo em conta que a democracia é um valor essencial 199 e que está na base da intervenção política (reconhecida a todos os indivíduos), crê-se estar também verificado o segundo requisito necessário para que se esteja em presença de um direito fundamental. (iii’) Falta justificar em que medida o direito de participação política está ligado à dignidade da pessoa humana. De uma forma simplista poder-se-ia dizer que, sendo o direito de participação política a base do sistema democrático200, regime garante fundamental dos direitos do Homem, a relação estaria justificada. Julgamos, no entanto, ser necessário fazer uma análise mais detalhada. O direito de participação política é mais do que um direito de criação estadual. Trata-se de uma liberdade fundamental do Homem em sociedade que preexiste às constituições e aos Estados. Este entendimento impõe-se, na medida em que se encontram hoje ultrapassadas as doutrinas glorificadoras do Estado, com raízes no idealismo alemão, segundo o qual o Estado teria um poder originário. Hoje, o Estado é visto como uma instituição e não como uma produção cultural espontânea, como o clã, a tribo ou a nação201. Em consonância com esta visão, entende-se que o poder do Estado resulta de um processo de concentração do poder, originariamente existente no Homem ou no grupo. Contudo, esse poder não se transferiu totalmente, ficando uma reserva inerente à própria liberdade humana 202, ou
196 In VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais…, op. cit., p. 82. 197 Idem. 198 Idem. 199 A democracia está diretamente e indissoluvelmente ligada à liberdade. 200 A democracia encontra-se de tal modo ligada à participação que normalmente o seu epíteto é função do tipo ou nível de participação que nela ocorre ou se pretende que venha a ocorrer. São exemplo disso as noções de democracia: representativa, direta, participativa e deliberativa. 201 Cfr. George BURDEAU, O Estado, Publicações Europa América, 1970, p. 60. 202 O que se opõe ao contratualismo de Hobbes. Cfr. George BURDEAU, A Democracia, Publicações Europa América, 1975, pp. 9 e ss.
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seja, para além do poder coletivo integrado no Estado, subsiste um poder individual que é a expressão da liberdade humana e que com ela se confunde203. Face ao exposto e ao facto de a liberdade e autodeterminação serem expressões da dignidade humana, entendemos estar igualmente verificado o terceiro requisito. Conclui-se, da aplicação do critério tríplice de VIEIRA DE ANDRADE ao direito genérico de participação política, que o seu carácter de direito fundamental sai reforçado. 2. Evidências da debilidade da participação
A debilidade da participação aflora não só no plano estritamente interno (se é que se pode conceber um tal plano dada a interpenetração crescente deste como internacional), mas também em grande medida, exacerbando as debilidades internas, no plano internacional. Por uma questão sistemática referir-nos-emos em primeiro lugar às evidências da debilidade da participação no plano interno, e num momento seguinte à forma como se apresentam no plano internacional. Isso, sem prejuízo de a realidade dos factos não se compadecer com uma divisão estrita dos dois planos. 2.1. Plano Interno
É certo que em Portugal o direito de participação política tem vindo ser aprofundado, bastando para isso analisar o texto das várias constituições, desde a Constituição de 1822 até à constituição atual, para evidenciar o facto de o elenco de direitos de participação política ter vindo a ser aumentado 204. Este aprofundamento não foi, obviamente, linear, tendo havido avanços e recuos até à estabilização da tendência ascendente que hoje domina. Para essa densificação contribui claramente o facto de à luz da constituição atual o direito de participação política, nas suas diversas expressões, beneficiar do regime de proteção dos direito fundamentais205. Denota-se, no entanto, que apesar do aumento dos direitos de participação política e atenção crescente que é dada a uma democracia participativa, impera ainda o princípio da representação política ligado de modo indissociável ao direito de sufrágio. Isso sem prejuízo de esse modelo de democracia, que domina apesar de tudo
203 Cfr. D. Moreira NETO, op. cit., p. 57: «Já JOHN LOCKE encontrava essa identificação ao afirmar que ‘poder, vontade e liberdade constituem um todo coerente’, e, demonstrando dominar os conceitos de concentração e de sinergia, propôs de forma pioneira, que sua projeção no contexto político deveria submeter-se a limitação e a controle institucionais, reconhecendo, todavia o direito simétrico de resistência». 204 Cfr. artigos: 16.º e 34.º da Constituição de 23 de Setembro de 1822; 145.º, § 13.º e 63.º da Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826; artigo 8.º da Constituição de 4 de Abril de 1838; 74.º da Constituição de 21 de Agosto de 1911; 8.º, §18.º e 126.º da Constituição de 11 de Abril de 1933, 48.º (versão inicial) da Constituição de 2 de Abril de 1976. Para aceder a estas Constituições ver Jorge MIRANDA, As Constituições Portuguesas, Livraria Petrony, Lisboa, 1976.
205 Entendemos que a participação política ganha importância sobretudo com a modernidade (em consonância com a polémica acerca da «liberdade dos antigos» e da «liberdade dos modernos» aflorada por Benjamin Constant), a partir do momento em que se configura como um verdadeiro direito. Cfr. Ferran COLL, Las Democracias, Editorial Ariel, Barcelona 1990, p. 75. 82
a participação na vida política206/207, ter vindo a sofrer uma contestação crescente. Basta atentar nas elevadas taxas de abstenção sempre que se realizam eleições. Essa realidade justifica as tensões crescentes no sentido de aprofundar a participação e o consequente surgimento de novos direitos, que segundo melhor opinião, por serem afins do direito de sufrágio ou estarem enredados nalguma complexidade técnica nem sempre dominada pelo comum cidadão, não têm resolvido o problema, dando por vezes origem a uma participação direta informal, como a que ultimamente tem ocorrido com o apoio das cada vez mais relevantes redes sociais que se constituem no ciberespaço. As críticas que normalmente são apontadas ao modelo representativo traduzem-se nalgumas das ideias que passamos a expor. Na realidade, o voto nas eleições não assegura grande intensidade de participação, dado que a maior a parte dos eleitores esgota a sua participação no momento da eleição, não tendo mais envolvimento futuro no processo de decisão. Pois, em termos efetivos, participar passará apenas a ser possível para o representante eleito208. Curiosamente já Rousseau fazia esta crítica aos governos representativos. Esta situação é agravada pelo facto de, normalmente, muitas das ações e normas emanadas pelos órgãos eleitos não terem sequer sido consideradas durante a campanha eleitoral209. Face às limitações da democracia representativa tem-se observado, como se referiu, uma tendência no sentido de ultrapassar os seus esquemas clássicos, tal como se observa desde logo através da profusão de direitos de participação na vida política que se têm vindo afirmar. Esta tendência diz respeito à intervenção dos cidadãos, individualmente ou através de grupos, nas tomadas de decisão das instâncias do poder, ou nos próprios órgãos do poder, explicando o facto de as manifestações de democracia participativa terem vindo a aumentar ao longo das sucessivas revisões constitucionais. Destacamos a introdução do referendo e a iniciativa popular, entre outros desenvolvimentos210. Aliás, o aprofundamento da democracia participativa está prescrito no próprio texto constitucional (artigo 2.º in fine), o que implica que o adensar da participação política seja um processo dinâmico e não uma «categoria abstracta, imutável uma vez atingida»211. 206 «A moderna democracia, na maioria dos países ocidentais, assumiu, mais ou menos, o carácter de uma democracia representativa de partidos, isto é, de uma democracia que se baseia nos partidos como unidades de ação política. Sem intercessão dos mesmos, o povo, hoje, pura e simplesmente não estaria na situação de exercer uma influência política sobre os actos do Estado e, desta maneira, intervir concretamente na esfera política. Trata-se, nesta democracia representativa de partidos, na verdade, de uma forma de democracia que, na sua estrutura fundamental, é diferente da tradicional democracia parlamentar representativo-liberal» in Gerhard LEIBHOLZ, O pensamento democrático, Atlântida Editora, Coimbra, 1974, pp. 30-31. 207 Face ao domínio dos partidos políticos há quem tenha sugerido a evolução do modelo de democracia representativa para um modelo de democracia plebiscitária. Ver Gerhard LEIBHOLZ, O pensamento democrático, op. cit., pp. 34 e ss. 208 Cfr. G. PARRY, «The idea of political participation» in Participation in Politics, Manchester, 1972, p. 14. 209 O que aliás é perfeitamente normal na medida em que hoje em dia os deputados não sofrem por parte do povo uma capitis diminutio, por influência decisiva de grupos de eleitores ou de outras organizações no que respeita às suas tomadas de posição. «...um deputado, privado do seu poder de decisão, dependente da vontade de um mandante, seria degradado ao nível de um núncio e, por via disso, despojado do seu valor próprio e do seu carácter representativo. Por esta razão o chamado 'mandato imperativo', independentemente da forma em que for utilizado (eleitores ou partidos), contradiz as ideias do sistema representativo parlamentar-liberal» in Gerhard LEIBHOLZ, O pensamento democrático, op. cit., pp. 12 - 13. Ver ainda P. Bacelar VASCONCELOS, Teoria do Controlo Jurídico do Poder Político, Edições Cosmos, Lisboa, p. 171. 210 «Relativamente à ideia de democracia participativa, com que a Constituição Portuguesa actual tempera a democracia representativa, v.: de um lado, os arts. 2.º e 109.º, em que se prescreve, respectivamente, como um dos objectivos da República Portuguesa o aprofundamento da democracia participativa e a participação directa dos cidadãos na vida pública como condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático; de outro, os arts. 9.º, al. c), 56.º, n.º 2 als. a), b) e e), 60.º, n.º 3, 77.º, 98.º e 267.º, n.º 1, em que a participação se apresenta como tarefa fundamental do Estado ou concretiza específicos direitos de participação de determinados grupos ou categorias de cidadãos» in Casalta NABAIS, «O Princípio da Legalidade e os Actuais Desafios da Tributação» in Boletim da Faculdade de Direito, 2002, p. 35, nota 52. 211 Idem.
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Todavia, sem prejuízo de as concretizações do direito de participação política terem vindo a ter uma afirmação ascendente212, contribuindo para isso, como já se disse, não só um instigar nesse sentido por parte da própria Constituição, como, também, as aceleradas transformações vividas quer a nível social quer a nível técnico213, os direitos de participação ainda estão, e isso é inegável, demasiado ligados á democracia representativa. 2.2. Plano Internacional Tal como intuímos no início deste ponto, a vida política, ainda que considerada no domínio de um determinado Estado, abrange igualmente as matérias internacionais, pelo que um aprofundamento da participação que ignore a vertente internacional da vida política será um contra-senso214. Com efeito, as comunidades nacionais deixaram de ser as únicas fontes das decisões políticas que exercem influência sobre a vida dos seus membros, e as medidas implementadas pelos governos nacionais não afetam unicamente os seus próprios cidadãos. Citemos alguns exemplos elucidativos da crescente interdependência internacional: (i) a decisão de aumentar as taxas de juro, com o objetivo de controlar a inflação ou estabilizar as taxas de câmbio, frequentemente considerada uma decisão nacional, pode provocar alterações profundas em outros países; (ii) o mesmo se diga da decisão de instalação de indústrias perigosas perto da fronteira de outros países; (iii) flagrantes são ainda os casos das questões ambientais e das telecomunicações que são hoje essencialmente assuntos de âmbito internacional (IV) para não falar, reportando-nos agora ao caso específico português, da intervenção em curso do FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu. Vivemos num mundo caracterizado pela interconexão regional e global suscitando-se interrogações várias acerca do processo de tomada de decisões a nível internacional215. Essa problemática põe-se com especial acutilância a nível das decisões tomadas pelas organizações regionais ou supranacionais, como a União Europeia (UE), a Organização do Atlântico Norte (NATO), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC)216, entre outras, na medida em que amiúde diminuem o espectro de decisões ao alcance dos cidadãos nacionais de cada Estado, fundando recorrentemente a invocação do défice democrático. Verifica-se, portanto, que hoje a política doméstica e internacional estão intrincadas, o que apesar de não ser um fenómeno novo, tem contornos e repercussões nunca anteriormente enfrentadas. 212 Na atualidade e em especial no que respeita à participação na função legislativa os meios de participação ainda gravitam em torno da representação política.
213 Há contudo autores que já falam da afirmação futura de uma democracia deliberativa em que, como o próprio nome indica, são os próprios cidadãos que participam na própria tomada de decisão (co-decisão). Entre eles Habermas. Cfr. Jürgen HABERMAS, Raison et Legitimité, Paris, 1987; Cfr. Cheryl Simrell KING; Kathryn M. FELTEY; Bridget O'Neill SUSEL, «The Question of Participation: Toward Authentic Public Participation in Public Administration», in Public Administration Review, Vol. 58, nº. 4, Julho, Agosto 1998, p. 317. 214 «As to the second distinction between the ‘domestic and the ‘international’ realms, international relations scholars tend to emphasise that the traditional division between domestic and foreign affairs is obsolete in an age of globalisation and Europeanisation» in T. BÖRZEL; T. RISSE, «Who is Afraid of a European Federation? How to Constitutionalise a MultiLevel Governance System», Jean Monnet Working Paper, N.º 7/00, Symposium: Responses to Joschka Fischer, Harvard Law School, Cambridge, 2000, p. 6 http://www.jeanmonnetprogram.org/papers/00/00f0101.html 215 Cfr. Ali FARAZMAND, «Globalization and Public Administration» in Public Administration Review, Vol. 59, nº. 6, Novembro/ Dezembro 1999. 216 Dificilmente se encontrará um artigo ou obra que verse sobre a globalização que não se refira à Organização Mundial do Comércio. Cfr. Joseph STIGLITZ Globalization and Its Discontents, W.W. Norton & Company, Nova Iorque, 2002, p. 244. 84
Consequentemente, a participação política não pode continuar a ignorar que a esfera política nacional e a vida política internacional se encontram amalgamadas, sob pena de truncar manifestações importantes da vida política de uma sociedade. O entendimento que nos parece correto é, por conseguinte, o de considerar que a vida política engloba também a dimensão internacional. Contudo, o aprofundamento da participação tem-se limitado às questões de ordem tendencialmente mais interna, não abrangendo as questões internacionais, em relação às quais, muitas vezes, nem sequer uma participação de tipo representativo é assegurada, sendo esta quase sempre muito fruste. Com efeito, essa perda de competência é visível pelo facto de os compromissos políticos assumidos pelo governo à escala internacional serem apresentados ao Parlamento, na maior parte das vezes, como factos consumados. Além disso, constata-se uma tendencial ausência de ligações do parlamento nacional aos órgãos que tomam as decisões no plano internacional. Isto porque a participação, quer nas estruturas formais (reuniões, comités, grupos de trabalho...), quer nas informais (encontros), está reservada ao executivo, sem que haja qualquer participação por parte dos cidadãos, a esse nível. Este estado de coisas neutraliza, de certo modo, alguns dos avanços alcançados no plano interno através do aprofundamento dos direitos de participação política. Verifica-se, por consequência, que um problema que já se apresenta sério no plano interno, pois, tal como se sustentou, apesar de ter havido uma crescente densificação do direito de participação política a participação por parte dos cidadãos apresenta debilidades, no plano internacional esse problema exacerba-se217. 3. Razões para a debilidade de participação 3.1. A nível interno
No plano nacional já foram avançadas algumas razões para a debilidade da participação, designadamente o facto de os novos direitos que têm surgido nesse âmbito estarem demasiado ligados ao direito de voto. Há, porém razões mais profundas que se podem considerar. Desde logo os vários direitos de participação estão imbuídos de um grande formalismo e tecnicidade o que dificulta ao cidadão menos versado em questões legais, ou que tenha dificuldade em obter apoio jurídico, o exercício desses direitos, implicando muitas vezes o afastamento, ou a consideração de instrumentos alternativos como o já aludido recurso às redes sociais. Outro aspeto consideravelmente relevante, muitas vezes não devidamente aquilatado, é o inflacionismo regulatório e o facto de após um período em que democracia significava a responsabilidade do Estado perante os cidadãos, se passar agora para uma fase em que crescentemente são cada vez mais os cidadãos que têm de prestar contas ao Estado pelos seus comportamentos. Ora, esta fúria reguladora e as presumidas boas intenções do Estado, ao proteger o cidadão de uma série de comportamentos que ainda há uns anos eram exclusivamente da esfera privada, condicionam o direito de participação, uma vez que os cidadãos estão demasiado ocupados a assegurar que a suas atuações e hábitos estão conformes ao que o Estado deles exige218. É concebível, portanto, sustentar que o Estado se tem vindo a apropriar de áreas da vida moral219, o que torna o cerco ao cidadão cada vez mais apertado. 217 Cfr. Kenneth MINOGUE, The Servile Mind: How Democracy Erodes de Moral Life, Encounter Books, Londres, 2010, p. 122.
218 Cfr. Kenneth MINOGUE, The Servile Mind…, op. cit., pp. 2 e ss. 219 Cfr. Kenneth MINOGUE, The Servile Mind…, op. cit., pp. 104 e ss.
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Outra das razões invocáveis para a debilidade da participação é o insuficiente desenvolvimento do dever de participação política. Convém salientar que este problema não é exclusivo do dever de participação política, afetando todos os deveres fundamentais que têm sido descuidados pela doutrina e pela maior parte das constituições que não se referem a eles ou o fazem de um modo muito incipiente220. Centrando-nos, no entanto, exclusivamente no direito de participação política, podemos dizer que normalmente só enquanto concretizado no direito de voto é que assume normalmente a dimensão de direito-dever, ou seja, um direito funcionalizado por ser pressuposto da existência do próprio Estado democrático. Não obstante o carácter implícito de dever, não existe no nosso país qualquer sanção para o seu não exercício, pelo que sai fragilizada essa dimensão. Para além do mais, essa vertente de dever cívico esgota-se muitas vezes no direito de voto e os direitos que lhes estão ligados de forma instrumental como, por exemplo, o dever de recenseamento eleitoral e o dever de colaboração com a administração eleitoral, não estando essa dimensão de dever imbuída nas restantes aceções do direito de participação política. A circunstância de serem poucos os deveres fundamentais que se encontram consagrados na Constituição e de mesmo nessas situações não serem diretamente aplicáveis, pressupondo uma intervenção do legislador 221, torna estes deveres, incluindo o dever de participação política, especialmente débeis. Na verdade, os preceitos constitucionais que consagram os deveres fundamentais ou os disciplinam «são preceitos dirigidos primordialmente ao legislador ordinário a fim de este lhes dar conteúdo»222. Esta fragilidade parece-nos, portanto, dever ser imputada em primeira linha ao Estado não só pela desfasamento dos direitos existentes face ao perfil do cidadão comum, mas também no que respeita aos direitos já existentes, haver uma certo laxismo por parte do legislador a quem incumbe verdadeiramente assegurar o lado de dever da participação política. 3.2. Plano Internacional
Neste ponto daremos nota das razões, que no plano internacional, atestam a debilidade da participação política. Faremos esse exercício advogando, num primeiro momento, que assegurar um direito de participação política no próprio plano internacional é algo de impraticável. De seguida, será sustentado que a proteção da participação na vida política internacional passa pelo plano interno, não tendo até agora sido alcançado grande sucesso, o que reforça ainda mais a ideia da debilidade desta. a) Impraticabilidade de um direito de participação política no plano estritamente internacional Dada a ligação umbilical entre o direito de participação política e o modelo democrático, a forma mais óbvia de o assegurar no contexto internacional seria transpor o modelo democrático para esse plano223. Essa transposição apresenta, contudo, uma série de limitações inerentes ao facto de o plano de análise não ser o estadual, mas um espaço de interconexão nacional, regional e local. Os problemas surgem não só no que respeita à delimitação da manifestação política sobre a qual deve haver atuação (trata-se de algo distinto da 220 Cfr. José Casalta NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 15 e ss. 221 Cfr. José Casalta NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, op. cit., pp.113, 155 e 164. 222 In José Casalta NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, op. cit., p.149. 223 As questões inerentes ao modelo democrático, como a forma adequada de cidadania, a natureza dos direitos e deveres dos indivíduos e o alcance da participação e da representação continuarão a pôr-se igualmente no plano internacional.
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ação juspolítica do Estado), como essencialmente no que se refere à circunscrição da comunidade relevante para efeitos de participação (não se trata da comunidade de um Estado). - «...de quem se justifica a participação, em decisões relativas, por exemplo, à sida, à chuva ácida, ao uso de recursos renováveis, ou à gestão dos fluxos económicos internacionais?224» A resposta poderia ser: - Aos cidadãos dos vários Estados. Há, porém, limitações práticas difíceis de contornar relacionadas não só com (i) a fragmentação do poder na sociedade internacional, como com (ii) a debilidade do próprio Estado. (i’) O facto de no plano internacional o poder se encontrar fragmentado, leva a sugerir que as limitações da sociedade internacional atual, no que respeita à participação, não diferem muito da sociedade medieval. Tal como se passava na Idade Média, também na sociedade internacional, pode apenas conceber-se uma participação política em termos fragmentados, sem que haja uma entidade supranacional que a proteja cabalmente. Com efeito, para que exista um efetivo direito de participação reconhecido como fundamental e com efetividade, é necessário um poder que o reconheça e o faça cumprir. Neste âmbito, pelo facto de a sociedade internacional assentar em forças e grupos sobre os quais os cidadãos não exercem mais do que um controlo mínimo, haverá escassa margem para uma participação, podendo aqueles apenas participar enquanto elementos dos principais atores da sociedade internacional (os novos grémios). O excerto que a seguir se transcreve é disso sugestivo: «Na cristandade ocidental da Idade Média... nenhum governante ou Estado era soberano no sentido de ser a instância suprema dentro de um território determinado; cada governante partilhava a sua autoridade com os vassalos abaixo dele, e com o papa e (na Alemanha e Itália) o sacro imperador romano por cima...Se os Estados modernos devem partilhar a autoridade sobre os cidadãos, e a capacidade para dispor da sua lealdade, com as autoridades regionais e mundiais por um lado, e com as autoridades sub-estatais e sub-nacionais por outro, o conceito de soberania deixaria de ser aplicável e, então, poder-se-ia falar da emergência de uma forma neomedieval de ordem política universal». David Held225 (ii’) Alternativamente, poder-se-á defender que o próprio Estado, do qual os indivíduos são nacionais, poderá assegurar a proteção do direito de participação dos seus indivíduos no plano internacional. Contudo, esta possibilidade, ainda que estejamos perante uma superpotência, tem grandes limitações. A ordem internacional atual reúne características gerais que podem reduzir o número de instrumentos suscetíveis de serem usados pelos governos e seus cidadãos, designadamente densas redes de relações económicas regionais e globais que escapam ao controlo de qualquer Estado em particular (incluindo os Estados dominantes); extensas redes de relações e comunicações eletrónicas instantâneas transnacionais sobre as quais os Estados exercem escassa influência; uma vasta configuração de regimes e organizações internacionais que podem limitar a margem de ação dos 224 Cfr. David HELD, La Democracia y la Orden Global, Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 1997, pp. 39-40. 225 In David HELD, La Democracia…, op. cit., p. 171.
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Estados mais poderosos; e o desenvolvimento de uma ordem militar global, e a proliferação de armas concebidas para uma guerra total. O Estado, anteriormente encarado como a principal fonte de autoridade no sistema internacional, é visto agora como vulnerável. Para uma maior fragilidade contribui o facto de ter de rivalizar com outros Estados; com grupos de pressão; com organizações não governamentais e com grupos económicos, que muitas vezes têm um poder superior ao seu. Parece, por conseguinte, de alguma ingenuidade pretender que cada Estado assegure internacionalmente a participação dos seus cidadãos, quando, por vezes, é incapaz, ele mesmo, de participar de forma efetiva nesse nível, face às limitações que se lhe impõem. O que fazer, então, para que vingue uma proteção do direito de participação política no plano internacional? A solução poderia passar pelo estabelecimento de uma estrutura comum de acção política que implicasse a colaboração permanente dos principais atores da ordem internacional (os Estados, as organizações internacionais e os grupos internacionais) e o respeito por normas constitucionais similares. Assim, através de uma estrutura supranacional, seria possível preparar um futuro democrático e fazer face aos perigos de um novo medievalismo. Esta possibilidade, já vislumbrada por Kant226, é denominada por David Held como modelo cosmopolita227 de autonomia democrática, enquanto sistema de governo que se organiza a partir das diferentes condições e interconexões dos diferentes povos e nações que se adaptam a elas228. Se de facto fosse criada uma entidade supranacional, ou seja, se se afirmasse um constitucionalismo global, poderia ser viável a proteção do direito de participação política a nível internacional. Parece-nos, no entanto, que estamos longe dessa possibilidade e que no plano estritamente internacional temos, por enquanto, de nos limitar a passos mais tímidos como, por exemplo, integrar os Direitos do Homem no texto do direito das organizações internacionais (na linha do que se fez na União Europeia), entre outras medidas tendentes à democratização da vida internacional229. Direito de participação na vida política internacional passa necessariamente pelo plano interno b)
226 Kant via a cidadania mundial como horizonte ideal. Cfr. Viriato SOROMENHO-MARQUES, A Era da Cidadania, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1996, p.153. 227 David Held apresenta objetivos a atingir no curto e longo prazo no sentido de implementar o modelo cosmopolita de democracia. No curto prazo: «(1) Reforma do Conselho de Segurança da ONU (para atribuir aos países em desenvolvimento uma voz significativa e capacidade de decisão efectiva); (2) Criação de uma segunda câmara da ONU (seguindo uma convenção constitucional internacional); (3) Maior regionalização política (UE e outras experiências) e implementação de um referendo transnacional; (4) Comparência obrigatória perante o Tribunal Internacional. Criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos; (5) Fundação de um novo organismo de coordenação económica, no plano regional e global; (6) Criação de uma força militar internacional, responsável e efectiva». No longo prazo: «(1) Consolidação do direito cosmopolita democrático: nova Carta de Direitos e Obrigações consagrada nos diferentes domínios de poder político, social e económico; (2) Parlamento global ligado a todas as regiões, nações e localidades. Criação de um Tribunal de Questões Fronteiriças; (3) Separação dos interesses políticos e económicos; financiamentos público das assembleias deliberativas e dos processos eleitorais; (4) Sistema legal global interligado, que incorpora elementos do direito penal e civil. Criação de um Tribunal Penal Internacional; (5) Responsabilidade das instituições económicas internacionais perante os parlamentos e as assembleias regionais e globais; (6) Transferência permanente da capacidade coercitiva do Estado para as instituições regionais e globais, com o objectivo de atingir a desmilitarização e erradicar a guerra» in David HELD, La Democracia…, op. cit., pp. 171 e ss. A formulação destes objetivos foi feita em 1997 e como se pode constatar, alguns deles estão em vias de ser, ou já foram mesmo, realizados. 228 Cfr. David HELD, La Democracia…, op. cit., p. 174.
229 Cfr. Ernst-Ulrich PETTERSMANN, «Time for Integrating Human Rights into the Law of Worldwide Organizations», in Lessons from European Integration Law for Global Integration Law, Harvard Working papers, 2001; Vivien SCHMIDT, «Democracy and Discourse in an Integrating Europe and a Globalising World», European Law Journal, Vol. 6, nº. 3, Blackwell Publishers, Setembro 2000. 88
Apesar de a ideia de um constitucionalismo global ser aliciante e através dela poderem eventualmente ser assegurados direitos de participação política aos indivíduos (cidadania supra-nacional), encontra-se ainda muito longe da realidade, pelo que não a consideramos como uma possibilidade efetiva no que respeita à proteção do direito de participação política. Além disso, ainda que enfraquecido, o Estado continuará a ser o principal ator nas relações internacionais e no direito internacional, afirmando-se como principal portador dos direitos e deveres definidos pelo direito internacional. Continua a ser também o único agente legal capaz de empregar a força e a ser fonte de ordem e das restrições do sistema internacional230. Concordamos com GOMES CANOTILHO na afirmação de que o paradigma ainda é o constitucionalismo nacional, que assenta nas seguintes premissas: «(1) soberania de cada Estado, conducente, no plano externo, a um sistema de relações horizontais interestaduais e, no plano interno, à afirmação de um poder ou supremacia dentro de determinado território e concretamente traduzido no exercício das competências soberanas (legislação, jurisdição, administração); (2) particular centralidade jurídica e política da constituição interna como carta de soberania e de independência de cada Estado perante os outros Estados; (3) aplicação do direito internacional nos termos definidos pela constituição interna, recusando-se, em muitos Estados, a aplicação das normas de direito internacional na ordem interna sem a sua 'conversão' ou adaptação pelas leis do Estado; (4) consideração das 'populações' ou 'povos' permanentemente residentes num território como 'povo do Estado' que só nele, através dele e com submissão a ele poderão adquirir a 'carta da nacionalidade'.» 231 Tendo em conta a circunstância de termos entendido não ser possível uma proteção eficaz do direito de participação política no contexto internacional, torna-se ainda mais importante assegurar a sua proteção no domínio interno, dado ser o único forum onde se pode assegurar a participação dos cidadãos na vida política internacional de forma efetiva. Torna-se imprescindível que internamente, a nível da própria constituição, se promovam alterações no sentido de alterar a situação atual. Tendo em conta que, sem motivação para participar, as estruturas que se possam criar serão meramente decorativas, é necessário cuidar, em primeiro lugar, daquela motivação (entendida como a capacidade que as pessoas creem ter para influir no governo e o seu interesse nos assuntos públicos). É pacífico que a motivação para participar está relacionada com a extensão da educação 232. A divisão entre pessoas ativas e passivas no mundo da política é em parte explicada pela falta de oportunidades adequadas para que todos os grupos de cidadãos desenvolvam igualmente os seus talentos e confiança233. Nesse sentido, normas como o artigo 73.º 230 Cfr. P. Bacelar VASCONCELOS, Teoria do Controlo…, op. cit. p. 170. 231 In J.J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Consituição,
7.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, op. cit., p. 1370. «...este modelo ainda permanece como paradigma básico da agenda das relações internacionais, mesmo que, noutros sectores, se avance decididamente na globalização e transnacionalização (ex.: relações económicas)». In J.J. Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional…, op. cit., p. 1371. 232 O desenvolvimento de talentos e habilidades depende da educação formal e informal que o ser humano recebe ao longo da sua vida - um elemento indispensável das condições referidas para chegar a ser um membro ativo da sociedade política. Os direitos em questão incluem o cuidado infantil e a educação universais, ambos necessários para que o processo de aprendizagem seja acessível a todos os cidadãos independentemente da classe, da raça do sexo e da idade. 233 Cfr. David HELD, La Democracia…, op. cit., p. 219; S.E. FINER, «Groups and political participation» in Participation in Politics, Manchester, 1972 p. 77; Cheryl Simrell KING; Kathryn M. FELTEY; Bridget O'Neill SUSEL, «The Question of Participation…», op. cit., p. 322.
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da CRP 234 devem ser mais do que programáticas, devendo configurar verdadeiros direitos subjetivos. Artigos como o 48.º da CRP, apesar de no nosso entender abrangerem, relativamente aos assuntos público do país, quer matérias essencialmente internas quer de ordem internacional, deveriam ver alterada a sua letra de modo a fazer menção aos assuntos de ordem internacional que, talvez por serem considerados apenas de forma implícita, têm merecido até então uma atenção muito deficiente. Considerando que o elenco de direitos fundamentais não é taxativo a nível constitucional, e que se traduz numa enumeração aberta («sempre pronta a ser preenchida ou completada através de novas faculdades para lá daquelas que se encontrem definidas ou especificadas em cada momento»235), julgamos que deveriam ser criados novos direitos de participação, essencialmente dirigidos às matérias internacionais, de forma a reforçar os direitos políticos dos cidadãos. Eventualmente poder-se-ia fazer algo semelhante ao que se passa na Dinamarca, local onde se assegura uma participação mínima a nível de matérias internacionais, através da intervenção do Parlamento, o que nos parece ser uma ótima prática. A introdução deste mecanismo no nosso sistema permitiria obviar, desde já, aos problemas de representação a nível internacional, assegurando, pelo menos naquele campo, uma democracia de tipo representativo, enquanto não se afirmam mecanismos de democracia participativa. Esse mecanismo consta da Secção 19 (3) da Constituição Dinamarquesa 236 e implica que sempre que o governo dinamarquês desenvolva negociações no âmbito das organizações internacionais, o faça no quadro de um mandato vinculativo ou imperativo conferido pela comissão parlamentar nomeada para o acompanhamento dessas negociações. Consequentemente, o governo não pode negociar fora dos limites desse mandato, assegurando um envolvimento e um controlo por parte do órgão representativo por excelência – o parlamento. Para evitar que o mecanismo se torne demasiado limitador, o mandato é normalmente conferido em termos genéricos de maneira a permitir alguma liberdade de atuação ao governo. Verifica-se, portanto, que apesar de a solução da proteção do direito de participação na vida política internacional passar pelo domínio interno, o Estado tem falhado na prossecução desse objetivo. Na mesma linha do que dissemos quando nos referimos ao plano estritamente interno parece-nos que as razões desta debilidade, são também aqui, de forma mais ostensiva do que no plano interno, imputáveis mais ao estado do que aos cidadãos. Conclusões: •
Entendemos que todos os direitos de participação política na constituição portuguesa se reconduzem ao artigo 48.º da CRP que funciona como um direito genérico de participação política e por isso agregador de todos os demais direitos políticos.
234 «O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos contribua... para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva». 235 In Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 162. 236 «The Parliament shall appoint from among its Members a Foreign Affairs Committee, which the Government shall consult prior to the making of any decision of major importance to foreign policy. Rules applying to the Foreign affairs Committee shall be laid down by Statute» in http://www.servat.unibe.ch/icl/da00000_.html
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•
Esse direito genérico assume a natureza de direito fundamental, tal como resulta da aplicação do critério tríplice de VIEIRA DE ANDRADE, que assenta na consideração do radical subjetivo, na função e na intenção específica, de um determinado direito. • A nível interno, apesar do aumento dos direitos de participação política e atenção crescente que é dada a uma democracia participativa, impera ainda o princípio da representação política ligado de modo indissociável ao direito de sufrágio. •
A fragilidade da participação no plano interno deve ser imputada em primeira linha ao Estado, não só pelo desfasamento dos direitos existentes relativamente ao perfil do cidadão comum, mas também por, no que respeita aos direitos já existentes, haver uma certo laxismo por parte do legislador que tem falhado em desenvolver o lado de dever desses direitos de participação. •
Nas matérias de natureza essencialmente internacional, o direito de participação política mostra-se praticamente inexistente, não chegando sequer ao nível de uma participação representativa. Com efeito, nesse contexto internacional, o Parlamento, órgão representativo por excelência, é esbulhado da sua competência normativa. • Tendo em conta que assegurar um direito de participação política no próprio plano internacional é algo de impraticável, a proteção da participação na vida política internacional deve passar necessariamente pelo plano interno. Todavia, não foi até agora alcançado grande sucesso. •
Também no domínio internacional, e de uma forma mais ostensiva, as razões da debilidade de participação política são imputáveis mais aos Estados do que aos cidadãos.
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O paternalismo estadual e a legitimidade da defesa da pessoa contra si própria Benedita McCrorie237 O vínculo da cidadania traduz-se na atribuição de direitos e na imposição de deveres aos cidadãos. De facto, dele decorre não apenas a titularidade de um acervo de direitos, mas também a responsabilidade dos cidadãos de zelarem pelo bem comum, o que poderá determinar o estabelecimento, por parte dos poderes públicos, de restrições à liberdade individual, quando o seu exercício contenda com interesses públicos ou de terceiros. É, por isso, consensual que o Estado pode justificadamente limitar o exercício de direitos quando estão em causa interesses públicos ou de terceiros. O mesmo já não se poderá, contudo, dizer quando o fundamento da restrição é a defesa do indivíduo de si mesmo238. Coloca-se, consequentemente, a questão de saber até que ponto é legítimo, em Estado de Direito plural, que o Estado limite a liberdade dos cidadãos, protegendo os seus direitos fundamentais contra a sua vontade, quando não se lesam quaisquer bens de terceiros ou da comunidade. Trata-se de ajuizar se o sistema jurídico tem legitimidade para proteger o indivíduo “contra o risco de um mau uso que este possa fazer da sua liberdade”239. A ideia de defesa da pessoa contra si própria está intimamente ligada com o paternalismo estadual240, na medida em que com o termo paternalismo se pretende designar a “privação ou redução da liberdade de escolha do indivíduo operada pelo ordenamento a fim de assegurar uma particular protecção da pessoa ou de uma categoria de pessoas de actos contrários ao seu próprio interesse” 241. O paternalismo estadual goza de uma característica que o distingue das restantes medidas restritivas do Estado: a “finalidade específica da restrição da liberdade”. Neste caso, o fundamento invocado é a proteção da pessoa contra possíveis “más escolhas” que esta possa fazer e não a defesa de interesses públicos ou de terceiros242. O paternalismo jurídico parte da ideia de que o Estado pode proibir determinados comportamentos, quando tal proibição seja essencial para afastar um dano (físico, psíquico ou económico)243. No entanto, nem sempre as medidas 237 Doutora em Direito. Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho. 238 CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, Clarendon Press, Oxford, 1991, pp. 131 e 132.
A destrinça entre as situações em que há interesses públicos e de terceiros juridicamente tuteláveis e aquelas em que apenas estão em causa interesses do indivíduo não é simples, na medida em que facilmente se encontram razões de interesse público ou interesses de terceiros para justificar restrições. Parece, no entanto, ser de seguir a perspetiva de Mill, que considera que só se afetam direitos de terceiros quando se verifica um dano. Sobre esta questão ver, mais desenvolvidamente, LUÍSA NETO, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 246. Parece-nos ser também esse o sentido do voto de vencido do Conselheiro Vítor Gomes, no Acórdão n.º 423/08, http://www.tribunal constitucional.pt/tc/acordaos/20080423.html, no qual defende que o dever de proteção da saúde pública pelo Estado não depende apenas de um “juízo probabilístico geral” sobre a causalidade adequada da conduta de fumar para lesar abstratamente a saúde, mas sim da comprovação de que essa conduta é diretamente responsável pela lesão da integridade física dos fumadores passivos. 239 OLIVIER DE SCHUTTER, – JULIE RINGELHEIM, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition du soi el le règne de l’échange”, in HUGUES DUMONT – FRANÇOIS OST – SÉBASTIEN VAN DROOGHENBROECK (eds.), La Responsabilité, Face Cachée des Droits de l’Homme, Bruylant, Bruxelles, 2005, p. 446.
240 Quando o Estado age de modo paternalista em relação aos seus cidadãos podemos falar de paternalismo estadual, ou, seguindo a expressão inglesa legal paternalism, de paternalismo jurídico. KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, Duncker & Humblot, Berlin, 2005, p. 11. 241 FABRIZIO COSENTINO, “Il paternalismo del legislatore nelle norme di limitazione dell’autonomia dei privati”, in Quadrimestre, n.º 1, 1993, p. 120. 242 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 11 e 12. 243 ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, in Rechtstheorie, n.º 18, 1987, pp. 273 e 274. Segundo o Autor, é esse o caso da proibição de venda de droga e da inabilitação ou interdição de pessoas portadoras de uma deficiência, alcoólicos ou toxicodependentes, das disposições relativas à obrigatoriedade do uso de capacete ou cinto de segurança, ou que proíbem nadar em praias não vigiadas, da proibição de compra livre de certos medicamentos e das leis que proíbem determinados jogos de sorte.
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paternalistas instituídas visam apenas evitar que a própria pessoa sofra um dano. Poderá ser também um propósito deste tipo de medidas proibir determinadas ações por estas se considerarem “intrinsecamente imorais”244. O paternalismo é, desde logo, suspeito na perspetiva dos direitos fundamentais porque põe em causa o conteúdo de autonomia neles presente, ao permitir que essa autonomia apenas se exerça se se dirigir à promoção do próprio bem 245. Coloca-se, consequentemente, a questão de determinar se existem tipos de paternalismo jurídico que se podem “eticamente justificar”246. Convém, antes do mais, distinguir os casos de verdadeiro paternalismo dos casos de “falso paternalismo”. As situações de “falso paternalismo” dizem respeito a medidas restritivas impostas à prática de determinados atos que não afetam, diretamente, interesses de terceiros, mas que, ainda assim, poderão implicar custos para a coletividade. Em virtude disso, o “falso paternalismo”, ao contrário do verdadeiro paternalismo, que origina o estabelecimento de uma proibição ou de uma imposição legal contra a vontade do destinatário para o seu próprio bem, não visa proteger a pessoa de si própria, antes se baseando “na análise dos custos sociais que decorrem da realização de certos riscos”247. Ainda que a liberdade geral de ação compreenda o exercício de atividades perigosas, não pode, no entanto, tendo em conta os possíveis encargos que daí possam advir para a comunidade, afastar-se a intervenção do Estado, mesmo quando não se lesem diretamente direitos de terceiros248. Assim, em Estado social democrático de Direito, “a repercussão dos custos sociais na coletividade por condutas ‘temerárias’ pode justificar a imposição de restrições – limitações, não proibições – desde que assentes em parâmetros de proporcionalidade”249. De todo o modo, convém ressalvar que a determinação das situações em que a repercussão dos custos sociais na coletividade pode justificar a imposição de restrições não é isenta de dificuldades. Para que possam legitimar uma restrição da liberdade esses custos devem efetivamente decorrer da atuação em causa, ser certos e, finalmente, ter suficiente expressão. É, para além disso, fundamental, na análise da proporcionalidade da medida, considerar o direito que vai ser restringido e a afetação da liberdade que aí vai envolvida. A proteção contra o paternalismo “deverá ser tanto mais intensa quanto mais relevante para a personalidade seja o comportamento em
244 Exemplos disso são a proibição da homossexualidade entre adultos, de sex-shows ou atividades sexuais sadomasoquistas. Ver ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 274 e 275. Sobre a proibição de relações homossexuais, ver o caso Lawrence v. Texas do Supremo Tribunal Federal americano, que revogou a decisão do caso Bowers v. Hardwick, no qual o Tribunal havia considerado não serem inconstitucionais as disposições legislativas de alguns Estados que proibiam a sodomia, por se tratar de uma prática imoral. Sobre a proibição de práticas sadomasoquistas, ver os casos Laskey, Jaggard e Brown v. Reino Unido e KA e AD v. Bélgica, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Apesar de no primeiro caso o Tribunal ter considerado que cabe na margem de apreciação dos Estados proibirem este tipo de conduta para a proteção da saúde, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Convenção (admitindo uma proteção da saúde contra a vontade do próprio, sem atender ao facto de não estarem em causa lesões graves e irreversíveis), no segundo reconheceu que o direito de ter relações sexuais, mesmo com violência, está compreendido no direito a dispor sobre o próprio corpo, parte integrante da noção de autonomia individual. 245 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, Oxford University Press, New York, Oxford, 1986, p. 58. 246 Esta é precisamente a pergunta colocada no título do artigo de ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 273 ss.
247 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, in Revista do Ministério Público, n.º 116, 2008, p. 143. 248 PAULO MOTA PINTO, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in Portugal-Brasil Ano 2000 – Tema Direito, Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 202, nota 144. 249 CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, in Scientia Iuridica, Tomo LXLL, n.º 315, 2008, pp. 421 e 422. 93
causa”250. Para além disso, a medida restritiva deverá sempre ser a última ratio, tendo de “ser precedida (e acompanhada) de tentativas de sensibilização da população para a necessidade de mudar os seus comportamentos de risco”251. Passando agora para as situações de verdadeiro paternalismo, Kai Möller, seguindo a perspetiva de John Kleinig252, defende que há medidas paternalistas que se podem justificar quando se vise salvaguardar a integridade do indivíduo. Para o Autor, “a solução de integridade” que defende não se confunde com as diferentes variantes da teoria dos valores. Na “solução da integridade” são “as conceções do indivíduo que regem a atuação estadual”, uma vez que “a liberdade de escolha é restringida não para a proteção de valores objetivos, mas antes tendo em consideração prioridades subjetivas do próprio indivíduo”253. Segundo ele, quando o propósito do legislador é o de assegurar a integridade do sujeito, já não estamos perante uma restrição ilegítima da liberdade jusfundamentalmente protegida. O paternalismo deverá ser “tanto mais admissível quanto mais o indivíduo em causa, através das suas decisões, esteja em contradição com a sua própria integridade”254. No entanto, sustenta ainda que o Estado não deverá ter o direito de proteger alguém contra si próprio, argumentando que o faz para preservar a integridade dessa mesma pessoa, quando lhe bastava adverti-la acerca do caráter perigoso do seu comportamento. Deverá dar-se preferência ao esclarecimento e informação dos indivíduos antes de admitir o recurso à coação estadual. Nesse sentido, não devem ser de aceitar medidas paternalistas quando o esclarecimento seja suficiente para a proteção da integridade individual255. O Autor considera ainda que é de afastar o “paternalismo moral”. Consubstanciam-se em “paternalismo moral aquelas situações em que o Estado intervém impondo modos de comportamento morais no interesse da pessoa em causa, que esta, por possuir diferentes quadros morais, considera ser de afastar.” Neste tipo de questões deve deixar-se ao indivíduo a possibilidade de decidir autonomamente256. 250 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 186 e 187. Este Autor exemplifica a sua posição afirmando que “é mais relevante o direito de decidir autonomamente em questões que dizem respeito à vida sexual do indivíduo do que o direito de não usar cinto de segurança”. Também PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, in Philosophy & Public Affairs, 34, n.º 1, 2006, pp. 69 e 88, defende que “a interferência paternalista em algumas liberdades pode ser justificável”, sendo de distinguir entre liberdades fundamentais e liberdades não fundamentais. Para o Autor, “pode distinguirse, por exemplo, entre uma lei paternalista que proíbe nadar em praias com correntes perigosas de uma lei paternalista que proíbe o uso terapêutico de marijuana, argumentando que o interesse do indivíduo em ter a liberdade de nadar em correntes perigosas é menos importante do que o interesse em utilizar marijuana por razões terapêuticas”. 251 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 144. 252 JOHN KLEINIG, Paternalism, Manchester University Press, Manchester, 1983, pp. 67 ss. 253 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 179 – 183 e 197 – 199. Este Autor coloca a questão de saber se, no caso de um indivíduo que gosta de viver e por pura negligência não utiliza o cinto de segurança, pondo em perigo o que lhe é caro contra as suas próprias prioridades, será realmente uma lesão “do direito de conformar o seu destino” obrigá-lo a utilizar um cinto de segurança. Em termos algo semelhantes, REINHARD SINGER, “Vertragsfreiheit, Grundrechte und Schutz des Menschen vor sich selbst”, in Juristen Zeitung, n.º 23, 1995, p. 1140, sustenta que é muito duvidosa a invocação da liberdade para a autodeterminação nos casos da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança e de capacete. Para o Autor, o que está aqui em causa “é a incapacidade psicológica de muitos automobilistas ou motociclistas de, de uma forma abstrata, preverem corretamente os perigos da sua atuação, o que legitima a restrição”. ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., p. 284, entende que a pessoa não possui as suas” capacidades básicas” quando considera um determinado bem importante, mas se recusa a tomar as medidas necessárias para a sua concretização (este é o caso da obrigatoriedade de uso de cinto de segurança ou de capacete). 254 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 185 e 187. CARLOS S. NINO, The Ethics of Human Rights, cit., p. 148, defende que o princípio da autonomia deixa alguma margem para um paternalismo legítimo. O princípio geral que está na base destas considerações pode ser formulado como uma proibição de impor sacrifícios aos indivíduos sem o seu consentimento que não se traduzam em benefícios para eles. Este princípio pode designar-se como “princípio da inviolabilidade da pessoa”. 255 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 190 e 191. 256 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 189 e 203. Para o Autor, tendo em consideração “o valor elevado do direito de autodeterminação em questões morais, a proibição do paternalismo estadual nestes casos impõe-se”. Sobre a distinção entre “paternalismo moral” e “paternalismo de bem-estar”, ver também GERALD DWORKIN, “Paternalism”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2005, http://plato.stanford.edu/ entries/paternalism (última
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Para Kai Möller esta perspetiva conduz a soluções que na prática são insuspeitas, uma vez que não contende com os “projetos centrais” dos cidadãos e, para além disso, não lhes impõe um sistema de valores com o qual não concordam. A contrapartida é, para o Autor, “uma maior proteção das pessoas, a um preço relativamente baixo, ou seja, a utilização de coação nos casos em que o indivíduo, por negligência, age em sentido contrário aos seus próprios valores”257. Por seu lado, Cass R. Sunstein – Richard H. Thaler defendem aquilo que designam por “paternalismo libertário” (libertarian paternalism)258. Os Autores consideram que o paternalismo não tem de implicar necessariamente limitação da liberdade, tendo desenvolvido mais aprofundadamente esta sua perspetiva numa obra recente, intitulada Nudge259, na qual consideram legítimo os poderes públicos encorajarem os cidadãos para que façam uma determinada escolha, pela forma como essa escolha lhes é apresentada, desde que não seja proibida nenhuma opção. O debate em torno desta perspetiva tem sido aceso, até porque os Autores conseguiram obter apoio político para implementar este tipo de medidas, tanto nos EUA como no Reino Unido. Segundo eles, o “paternalismo libertário” é “relativamente fraco e não intrusivo” porque, em bom rigor, não afasta a possibilidade de escolha. No entanto, trata-se de uma forma de paternalismo, na medida em que os “planificadores públicos e privados” tentam deliberadamente conduzir a ação dos indivíduos de modo a promover o seu bem-estar. Para esta posição, o respeito pelas escolhas individuais funda-se muitas vezes na ideia de que a opção feita pelo próprio é sempre melhor do que a que seria tomada por terceiros, o que não corresponde necessariamente à verdade 260. Uma vez que os “planificadores”, ou “arquitetos da escolha” têm muitas vezes de se decidir por determinados “pontos de partida” ou criar “normas subsidiárias”, é legítimo indagar se podem ir “para além do inevitável” quando procedem a essa escolha, com o objetivo de maximizar o bem-estar261. Partindo da constatação de que em muitas situações as preferências individuais não têm uma base de sustentação sólida, assumindo as normas subsidiárias ou pontos de partida um papel de relevo, poderá ser de admitir a possibilidade de os poderes públicos procurarem influenciar essas preferências, com o objetivo de promover o bem-estar das pessoas262. visita a 22.03.2012). Nesta ordem de ideias, GERALD DWORKIN, “Moral Paternalism”, in Law and Philosophy, n.º 24, 2005, p. 311, entende que os homossexuais não consideram que a sua orientação sexual seja imoral; “os ateus não julgam que vivem uma vida de pecado” e “quem vê pornografia não considera que esteja a ser corrompido”. MACARIO ALEMANY, “El concepto e la justificación del paternalismo”, in DOXA – Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 28, 2005, p. 272, propõe-se restringir o termo paternalismo de modo a que este signifique evitar danos físicos, psíquicos e/ou económicos. 257 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 212.
258 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism”, in American Economic Review, Vol. 93, n.º 3, 2003, pp. 175 ss, e também “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, http://ssrn.com/abstract_id=405940 (última visita a 22.03.2012). 259 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness, Penguin Books, New York, 2009. 260 Os Autores admitem, no entanto, que nem sempre é essa a razão, sendo que algumas críticas tecidas ao paternalismo assentam na autonomia em si mesma, sustentando-se que as pessoas devem ter liberdade de escolha, ainda que façam opções erradas. Defendem, contudo, que “seria fanatismo tratar a autonomia, enquanto liberdade de escolha, como algo que não pode ser ultrapassado por razões consequencialistas”. Por outro lado, este “argumento da autonomia perde validade pelo facto de muitas vezes as preferências e as escolhas serem feitas em função das soluções pré-dadas”. Para além disso, entendem que o respeito pela autonomia é suficientemente acautelado pelo paternalismo libertário uma vez que há sempre a possibilidade de optar em sentido contrário. Ver CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., pp. 4 e 5, 9, também nota 19, 26 e 27. 261 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., pp. 24 e 25. Os Autores dão como exemplo uma cafetaria, na qual a opção por colocar a fruta à frente dos doces poderia condicionar a escolha das pessoas, induzindo-as a uma alimentação mais saudável. Segundo eles esta é uma intervenção bastante suave, até porque não impõe nada a ninguém. Ver também CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness, cit., pp. 1 ss. 262 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., p. 42. 95
Finalmente, defendem que o paternalismo não pressupõe necessariamente o uso de coação”263. Este novo tipo de paternalismo foi, no entanto, alvo de diversas críticas. Claire A. Hill considera que “o facto de as pessoas cometerem erros e de, por vezes, lhes faltar autocontrolo” não deve servir de justificação para o “anti-anti-paternalismo” (nome que atribui ao paternalismo libertário). Para a Autora, esta posição parece assumir que é possível saber o que os indivíduos realmente desejam, independentemente do que escolhem, o que é um pressuposto indefensável. Ainda que as pessoas, por vezes, cometam erros ou façam coisas num determinado momento de que posteriormente se arrependam, não e possível saber quais as suas reais pretensões, faltando-nos uma base para a legislação paternalista, ainda que libertária. Por mais “conveniente e tentador que seja extrapolar da nossa própria introspeção que os outros querem ou deveriam querer o mesmo que nós, pura e simplesmente não temos acesso aos seus desejos e convicções”264. Também Mario J. Rizzo – Douglas Glen Whitman se opuseram a esta perspetiva, questionando se faz sentido sustentar que quem decide as políticas públicas conhece melhor as “verdadeiras preferências” dos indivíduos do que os próprios265. Os Autores entendem que é de acolher, por princípio, a ideia de aumentar o bem-estar dos cidadãos atendendo às “suas próprias verdadeiras preferências”. No entanto, esse objetivo não se poderá realizar sem que quem decide consiga aceder a informação que não detém e que, a maior parte das vezes, não tem meios de obter. As políticas públicas têm de se escorar nalguma coisa, e quem toma decisões irá recorrer “às suas próprias preferências, às preferências de peritos, ou às (supostas) preferências do público em geral”. Consequentemente, não é possível “implementar as ‘verdadeiras’ preferências das pessoas”, mas sim as que se consideram ser as “’corretas’” e “o novo paradigma paternalista vai fornecer a cobertura intelectual para que tal aconteça”266. Esta perspetiva tem ainda suscitado críticas no sentido de se considerar que este “moldar” das escolhas dos indivíduos por parte dos poderes públicos pode conduzir a abusos, uma vez que é mais difícil de controlar do que políticas assumidamente coercivas e por se entender que há aqui uma certa manipulação e um aproveitamento das fraquezas dos indivíduos quando tomam decisões. Ainda que o paternalismo libertário não ponha em causa a possibilidade de escolha, a exploração das fragilidades individuais acaba por interferir com a autonomia, no seu sentido mais profundo. Os meios de persuasão racional devem ser, por isso, os instrumentos preferenciais a utilizar pelos poderes públicos267. Partindo de tudo o que vimos e procurando responder à questão que inicialmente colocámos, que é a de determinar se existem tipos de paternalismo 263 CASS R. SUNSTEIN – RICHARD H. THALER, “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., p. 7. De facto, esta perspetiva implica um alargamento do conceito de paternalismo, uma vez que se considera que o paternalismo assenta em dois pressupostos: o primeiro é que este “exclui uma opção ou impõe uma escolha”; o segundo é que “essa escolha se exclui ou se impõe para o bem da própria pessoa”. Nesse sentido, SIMON CLARKE, “Debate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, in The Journal of Political Philosophy, Vol. 14, n.º 1, 2006, p. 117. Ora o paternalismo libertário não preenche o primeiro destes pressupostos. 264 CLAIRE A. HILL, “Anti-anti-paternalism”, in NYU Journal of Law & Liberty, Vol. 2, 2007, http://ssrn.com/abstract=956153 (última visita a 22.03. 2012), pp. 445 e 448.
265 MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”, in Law & Economics Research Paper Series, Working Paper n.º 08-60, http://ssrn.com/abstract= 1310732 (última visita a 22.03. 2012), p. 22. 266 MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”, cit., p. 78. 267 DANIEL M. HAUSMAN – BRYNN WELCH, “Debate: to Nudge or Not to Nudge”, in The Journal of Political Philosophy, Vol. 18, n.º 1, 2010, pp. 128 e 135. 96
jurídico que se podem eticamente justificar, estamos, antes do mais, de acordo com Kai Möller e Cass R. Sunstein – Richard H. Thaler, na parte em que defendem que as políticas paternalistas devem ser inevitavelmente compatíveis com o respeito pela autonomia, não se devendo admitir o “paternalismo moral”, ou seja, a imposição, por parte dos poderes públicos, de determinados padrões morais alegadamente no interesse da pessoa, independentemente de esta estar ou não de acordo com eles. Por outro lado, as perspetivas destes Autores concretizam-se em propostas de um paternalismo que não tem como objetivo impor valores aos indivíduos com os quais estes não estão de acordo, mas que visa antes a proteção da sua “integridade”, tendo em consideração as escolhas que fariam se pudessem antecipar as consequências dos seus actos. No entanto, Cass R. Sunstein e Richard H. Thaler sustentam que o “paternalismo libertário” só se pode justificar se as pessoas puderem, como regra geral, evitar facilmente a opção sugerida. Uma vez que esta perspetiva não pressupõe coação e permite que as pessoas possam optar por outras vias, parece “estar a salvo da objeção paternalista” 268. Ao partirem de uma definição de paternalismo que não envolve, forçosamente, uma limitação da liberdade, estes autores alargam excessivamente o conceito. São, apesar disso, pertinentes as críticas que lhe foram feitas no sentido de ela padecer de um “problema cognitivo”269: a impossibilidade de saber o que efetivamente a pessoa consideraria melhor para si se conseguisse prever todas as implicações da sua decisão. Por outro lado, também colhe a crítica de esta perspetiva poder envolver a manipulação das fraquezas dos indivíduos quando fazem escolhas, o que tem como consequência alguma perda de autonomia. Assim, ainda que este tipo de paternalismo não seja totalmente de afastar, é importante acautelar o risco da sua utilização abusiva, o que se poderá fazer, por exemplo, através do recurso à publicidade. Se os poderes públicos informarem os seus cidadãos de que estão a tentar influenciar as suas escolhas, ainda que haja o risco de perda de efetividade, garante-se o respeito da sua autonomia270. Kai Möller vai mais longe, já que entende que para a salvaguarda da integridade do indivíduo se poderão justificar restrições à liberdade. Como tivemos oportunidade de constatar, quando o indivíduo age em sentido contrário ao que são os seus próprios valores, para o Autor poderá ou até deverá haver uma imposição coativa. Esta posição parece-nos excessivamente restritiva, na medida em que sofre do mesmo problema cognitivo da perspetiva anterior e implica efetivamente restrições da liberdade. Julgamos, contudo, que serão legítimas medidas estaduais paternalistas quanto estejam em causa as possibilidades de “autodeterminação futura” da pessoa 271. Sendo 268 ROBERTO MERRILL – VINCENT BOURDEAU, “Republicanismo”, in JOÃO CARDOSO ROSAS (org.), Manual de Filosofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 120. 269 Este é precisamente o título do artigo de MARIO J. RIZZO – DOUGLAS GLEN WHITMAN, “The knowledge problem of new paternalism”, cit.. 270 DANIEL M. HAUSMAN – BRYNN WELCH, “Debate: to Nudge or Not to Nudge”, in The Journal of Political Philosophy, cit., p. 135. 271 É também essa a posição de JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, in JORGE MIRANDA (org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição, Coimbra Editora, 1996, p. 318. Considerando que o ordenamento pretendeu consagrar a liberdade como uma “situação duradoura”, ver ALBERT BLECKMANN, “Probleme des Grundrechtsverzichts”, in Juristen Zeitung, n.º 2, 1988, p. 59. PETER DE MARNEFFE, “Avoiding Paternalism”, cit., p. 81, entende que a autonomia pessoal “implica ter o controlo sobre a própria vida como um todo”. Este será o caso típico de contratos de escravidão. DAVID ARCHARD, “Freedom not to be free: the case of the slavery contract in J. S. Mill’s On Liberty”, in The Philosophical Quarterly, Vol. 40, n.º 160, 1990, pp. 461 e 462, considera que algumas críticas foram feitas a Mill pelo facto de este, ao recusar que a pessoa possa livremente converter-se em escrava, de alguma forma estar a abrir uma brecha no princípio da liberdade e essa alteração representar uma concessão séria ao paternalismo. No entanto, o Autor sustenta que a proibição de contratos de escravidão não é paternalista, na medida em que a sociedade não interfere se tiver sido celebrado um contrato deste tipo. Apenas o fará no momento em que se pretenda fazer valer esse contrato. Assim, “só intervirá quando os termos do contrato
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a autonomia um valor central na nossa ordem jurídica e cabendo ao Estado criar condições de autonomia, será legítimo exigir “que os indivíduos abandonem a liberdade ou o direito a renunciar permanentemente à autonomia em si mesma” 272. Assim sendo, o titular do direito não deve poder consentir numa intervenção que lhe retire a possibilidade de se autodeterminar livremente no futuro”273. Por outro lado ainda, “na literatura anglo-saxónica tem-se feito a distinção entre paternalismo forte (hard paternalism) e paternalismo fraco (soft paternalism)”. Os defensores do “paternalismo forte” sustentam que se pode impor proteção a pessoas capazes que decidiram voluntariamente autocolocar-se em perigo ou lesar-se. Para o “paternalismo fraco” apenas será de admitir uma interferência para a proteção do próprio quando a sua decisão não é voluntária274. Justifica-se uma abordagem paternalista quando se trate “de direitos ou interesses de menores, de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se encontrem numa posição conjuntural de debilidade ou desfavor”275. O “paternalismo fraco” (também designado “paternalismo social”) “deve ter uma base constitucional precisa que identifique as fraquezas das pessoas visadas” 276. Nestes casos, o Estado está legitimado a tomar determinadas medidas paternalistas que em quaisquer outras circunstâncias lhe estariam vedadas277. No entanto, ao estabelecer essas medidas tem, necessariamente, de respeitar as exigências do princípio da proporcionalidade278. sejam violados”, o que só acontecerá se o escravo se recusar a obedecer, pelo que não se tratará já de uma defesa contra si mesmo, mas antes de uma defesa desejada pelo próprio. Considerando também que esta proibição não impede ninguém de viver uma situação de “escravidão de facto”, ver JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 71. PAUL BOU-HABIB, “Compulsory Insurance without Paternalism”, in Utilitas, Vol. 18, n.º 3, 2006, p. 261, considera que a condenação da escravização pelo próprio parte de um entendimento da “autonomia enquanto valor intrínseco que temos o dever de preservar”. 272 JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, in Houston Law Review, Vol. 40, n.º 281, 2003, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?Abstract_id=614522 (última visita a 22.03.2012), pp. 290 e 291.
273 MARTINA DOROTHEE EPPELT, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, GCA-Verlag, Herdecke, 1999, p. 124; REINHOLD ZIPPELIUS – THOMAS WÜRTENBERGER, Deutsches Staatsrecht, cit., p. 195. 274 KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 16 e 17. Ver também JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 12 ss, que considera que o paternalismo fraco é compatível com o liberalismo. Sobre esta distinção, ver ainda GERALD DWORKIN, “Paternalism”, cit. 275 JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 450, nota 785. 276 CARLA AMADO GOMES, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques pour un débat“, cit., p. 143. ERNESTO GARZÓN VALDÉS, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 283 – 289, estabelece que na vida social se pressupõe que os cidadãos, no que se refere às questões do seu dia-a-dia, dispõem de uma “competência de base”. A ausência dessa competência é uma “condição justificativa de medidas paternalistas”, que visam a supressão de desigualdades que têm como fundamento essa mesma ausência. Assim, segundo ele, se se estiver de acordo com isto, então deve considerar-se que não se justifica uma interferência do Estado “quando alguém que detém competência de base atenta contra a sua integridade física ou a sua própria vida”; “quando alguém que detém competência de base tem consciência do risco de uma lesão certa ou muito provável” que poderá decorrer do gozo de uma determinada atividade; e “quando alguém, que detém competência de base, põe a vida em risco em favor dos outros”. Apenas “quando se defenda uma conceção metafísicareligiosa do valor da vida é que é possível justificar a proibição do suicídio ou de atividades que coloquem a vida em perigo”. 277 BERNHARD SCHLINK, “Die überforderte Menschenwürde. Welche Gewissheit kann Artikel 1 des Grundgesetzes geben?”, in Der Spiegel, n.º 51, 2003, p. 53. No que se refere, por exemplo à posição dos trabalhadores, o TC, no Acórdão n.º 155/04, http://w3.tribunalconstitucional. pt/acordaos/acordaos04/101-200/15504.htm, sobre o regime jurídico do contrato individual de trabalho na Administração Pública, estabelece que “as normas sobre direitos fundamentais detêm, no plano das relações de trabalho, uma eficácia de proteção da autonomia dos menos autónomos. Aqui é evidente o desiderato constitucional de ligação da liberdade fática e da liberdade jurídica. A Constituição faz depender a validade dos contratos não apenas do consentimento das partes no caso particular, mas também do facto de que esse consentimento «se haja dado dentro de um marco jurídiconormativo que assegure que a autonomia de um dos indivíduos não está subordinada à do outro» (…)”. 278 CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, Verlag Franz Vahlen, München, 1992, pp. 121 e 122. De facto, em relação a menores e pessoas portadoras de uma deficiência não se deve afastar completamente a sua opinião. No que se refere a tratamentos médicos, por exemplo, o n.º 2 do art. 38.º Código Deontológico da Ordem dos Médicos, relativo ao dever de esclarecimento e recusa de tratamento, estabelece que “[n]o caso de crianças ou incapazes, o Médico procurará respeitar, na medida do possível, as opções do doente, de acordo com a capacidade de discernimento que lhes reconheça, atuando sempre em consciência na defesa dos interesses do doente”. É esse também o sentido do art. 6.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina (Convenção de Oviedo) do Conselho da Europa, onde se consagra que “a opinião do menor é tomada em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de maturidade” e que, no caso de maiores que careçam de capacidade para consentir “a pessoa em causa deve, na medida do possível, participar no processo de autorização”. 98
Assim, o que determina, para o “paternalismo fraco”, a legitimidade de medidas paternalistas é a existência ou a ausência de verdadeira autodeterminação. Parece-nos, por isso, que será de aceitar também este tipo de paternalismo, que apenas se justifica quando as pessoas em causa não estejam de facto em posição de cuidar de si mesmas. Não é, no entanto, de excluir que quando seja difícil avaliar a existência ou ausência de autodeterminação e haja uma forte presunção de não-voluntariedade se equacione a possibilidade de pressupor essa ausência279. Poderá, pois, haver restrições “graças ao custo associado com a determinação de autonomia caso a caso”280. Para além destas situações, o paternalismo estadual, tal como o definimos, deve ser, então, de afastar, não cabendo ao Estado, em princípio, um dever de proteção contra a vontade do indivíduo (desde que capaz). Tal dever existe apenas em situações extremas ou quando este não esteja em posição de cuidar de si. Excetuando estes casos não é de admitir uma proteção imposta, que restrinja as possibilidades de atuação do visado281, já que tal proteção implica uma violação grave “da presunção de liberdade que deriva do princípio da dignidade da pessoa humana”282. Nesse sentido, entende-se que a opção por correr determinados riscos se insere no “projeto de vida” do próprio indivíduo, projeto que deve ser escolhido livremente, de acordo com as suas convicções pessoais, porquanto em “sociedades plurais” não é “desejável uma absoluta uniformização dos comportamentos individuais”283. Assim, quando o sujeito se coloca em perigo ou mesmo quando provoca uma lesão no seu direito, sendo ele capaz e estando em causa um comportamento autodeterminado, trata-se ainda do gozo de liberdade jusfundamentalmente protegida284. Numa sociedade democrática e pluralista deve haver “um direito a errar, a tomar más
279 MARGARET JANE RADIN, “Market Inalienability”, in Harvard Law Review, Vol. 100, n.º 8, 1986/1987, pp. 1909 e 1910, entende que algumas restrições impostas à possibilidade de venda de certos bens no mercado decorrem das grandes dificuldades que implica avaliar todas as transações de modo a aferir se o consentimento é verdadeiramente livre. T ambém JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 79 e 174 ss, entende que em certas situações, como será o caso de contratos de escravidão, tendo em consideração “a qualidade incerta da prova e a forte presunção de não voluntariedade, poderá justificar-se que o Estado entenda que a medida menos arriscada seja presumir a não voluntariedade em todos os casos”. Quando “o consentimento para uma dada conduta perigosa é tão raro (…) que dificilmente seria dado a não ser em casos de ignorância, coacção, ou de ausência de algumas faculdades, o legislador poderá simplesmente excluí-lo com base no princípio do dano a terceiros” e não por razões paternalistas. 280 JESSICA WILEN BERG, “Understanding waiver”, cit., p. 325. 281 WERNER FROTSCHER, “’Big Brother’ und das deutsche Rundfunkrecht”, in Schriftenreihe der LPR Hessen, n.º 12, 2000, p. 43. Considerando que a defesa da pessoa contra a autolesão não está incluída no dever de proteção estadual, ver JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, in JOSEF ISENSEE – PAUL KIRCHHOF (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2ª Edição, C. F. Müller Verlag, Heidelberg, 2000, p. 190. 282 CARLA AMADO GOMES, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: algumas verdades inconvenientes”, cit., p. 423; JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, in Droits, n.º 48, 2009, p. 99. DIETER DÖRR, Big Brother und die Menschenwürde, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2000, p. 66, considera que o dever de proteção do Estado nunca poderá ir ao ponto de “afetar a liberdade de conformação de vida garantida pela dignidade”. Defendendo, no entanto, que o dever de proteção imposto ao Estado “inclui até mesmo a proteção da pessoa contra si própria”, de tal modo “que o Estado se encontra autorizado e obrigado a intervir em face de atos da pessoa que, mesmo voluntariamente, atentem contra a sua própria dignidade, o que decorre do (…) cunho irrenunciável da dignidade pessoal, ver INGO WOLFGANG SARLET, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 4.ª edição, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2006, pp. 113 e 114. Para o Autor, a dignidade implica “um dever geral de respeito por parte de todos (…) os integrantes da comunidade para com os demais e, para além disso (…), até mesmo um dever das pessoas para consigo mesmas”. 283 HELENA PEREIRA DE MELO, “A Igualdade de Oportunidades para Quem Opta pela “Estrada do Tabaco”, in RUI NUNES – MIGUEL RICOU – CRISTINA NUNES (orgs.), Dependências Individuais e Valores Sociais, Gráfica de Coimbra, Coimbra, 2004, p. 163. 284 CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 116. Na intervenção do Deputado JOSÉ DE MAGALHÃES, DAR, 1.ª série, n.º 94, cit., p. 3397, este diz expressamente que a consagração do direito ao desenvolvimento da personalidade “implica que ao legislador não cabe proteger os cidadãos contra si próprios e impor-lhes paradigmas unidimensionais de comportamento digno, em nome daquilo a que poderia chamar-se a boa personalidade, o retrato do bom cidadão e da personalidade modelo que caberia ao Estado impor a cada um de nós, subordinando-nos a uma espécie de standard humano, cívico ou político”.
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decisões e a correr riscos”, sem o qual “toda a ideia de autodeterminação perderia sentido”285. Não se coaduna, por isso, com a imagem de Homem pressuposta na Constituição uma conceção que, partindo de uma ideia de deveres de proteção do Estado, considera que este tem legitimidade para proteger o indivíduo de si próprio 286. Não decorre das normas de direitos fundamentais, em princípio, um dever de proteger bens jurídicos contra a vontade do titular do direito, ou seja, contra aquele a quem o direito fundamental atribui o poder de disposição sobre tais bens jurídicos 287. Assim, deve evitar-se ceder “à tentação de um paternalismo jurídico em que se transfere para a sociedade o encargo de defender os titulares dos direitos contra as suas próprias condutas”288. Na base da proteção da pessoa contra si mesma encontra-se uma conceção de dignidade enquanto princípio que “se exprime pelo reconhecimento da liberdade individual mas que transcende esta última e, consequentemente, pode justificar restrições ao exercício das liberdades individuais”289. Uma das razões invocadas pelo Estado para obrigar o titular da dignidade a um comportamento conforme à dignidade é o facto de este considerar que sabe, melhor do que o próprio titular, avaliar os seus interesses290. Não estamos, no entanto, de acordo com esta interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana. Deve ser o próprio sujeito a determinar o que é para si mais ou menos digno. Uma “valoração paternalista”, que transfere para o Estado “a decisão última sobre aquilo que as pessoas devem ou não valorar na sua vida”, independentemente da sua vontade, converte os direitos em deveres 291. Ora não há, nem deve haver, como regra, “direitos obrigatórios” em Estado de Direito292. 285 JOEL FEINBERG, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 62. 286 Nesse sentido, referindo-se à Constituição alemã, MARTINA DOROTHEE EPPELT,
Grundrechtsverzicht und Humangenetik, cit., pp. 203 e 204; também CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 147; JOSEF ISENSEE, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 203. KAI MÖLLER, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 115, considera que a Constituição não visa “a unidade através da conformidade, mas antes a unidade através do respeito recíproco em pluralidade”. Nessa medida, “não é possível uma proteção da pessoa contra si própria em virtude da dimensão objectiva dos direitos fundamentais”. Em sentido contrário, PEDRO VAZ PATTO, No Cruzamento do Direito e da Ética, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 200 e 201. Este Autor sustenta que é justificada a defesa da pessoa contra si mesma em casos de “violações objectivas (ainda que consentidas) da sua dignidade”.
287 JÜRGEN SCHWABE, “Der Schutz des Menschen vor sich selbst”, in Juristen Zeitung, n.º 2, 1998, p. 70. Em sentido contrário, ver JEAN-FRANÇOIS FLAUSS, “L’interdiction de spectacles dégradants et la Convention européenne des droits de l’homme”, in Revue Française de Droit Administratif, n.º 8, 1992, p. 1931. 288 RUI MEDEIROS – JORGE PEREIRA DA SILVA, “Artigo 24.º”, in JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 263. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Algumas reflexões sobre os direitos fundamentais, três décadas depois”, in Anuário Português de Direito Constitucional, Vol. V, 2006, p. 135, refere precisamente que “nas sociedades de risco (...) sobressai a preocupação intensa (...) com a saúde pública, a segurança alimentar e o ambiente, que tem conduzido a restrições igualmente intensas das liberdades pessoais e económicas da generalidade das pessoas – a luta contra o tabaco, o álcool e a obesidade, a vigilância sanitária aos medicamentos, géneros alimentícios, (...) [etc.] – que, (...) por se revelarem por vezes excessivas ou indiferenciadas, suscitam resistências, sendo entendidas como novas feições ditatoriais do Estado”. Para o Autor, na nota 12, está aqui em causa a restrição da liberdade “não apenas para defesa da sociedade, mas para proteção do próprio titular dos direitos”. 289 JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, cit., pp. 88 e 89. Será o caso, por exemplo, de JOSEF ISENSEE, “Menschenwürde: die sekuläre Gesellschaft auf der Suche nach dem Absoluten”, in Archiv des öffentlichen Rechts, Vol. 131, 2006, p. 217, que considera que “a dignidade obriga o Homem à proteção de si mesmo”. Sendo para o Autor a dignidade “inalienável e irrenunciável, esta veda ao Homem que este se degrade. Nessa medida, estabelece fronteiras à autonomia privada, em particular no que diz respeito à autodeterminação nos limites da vida”. DIOGO LEITE DE CAMPOS, “A relação da pessoa consigo mesma”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 143, entende que “o que cada um faz em relação a si interessa radicalmente aos outros”, sendo que “não se deve fazer a si mesmo o que não se deve fazer aos outros”. 290 KAI FISCHER, Die Zulässigkeit aufgedrängten staatlichen Schutzes vor Selbstschädigung, Peter Lang, Frankfurt am Main, 1997, p. 192. 291 LUÍSA NETO, “O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano I, 2004, p. 226. 292 JORGE REIS NOVAIS, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 286 e 287. Embora sejam de admitir exceções, como é o caso dos direitos-deveres. 100
Num Estado não-paternalista, que se funda na dignidade da pessoa humana e no livre desenvolvimento da personalidade individual, a defesa da pessoa contra si mesma não deve, consequentemente, ser considerada fundamento legítimo para a restrição de direitos fundamentais293.
293 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Inconstitucionalidade do Artigo 6.º da Lei sobre a Colheita e Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana”, in Scientia Iuridica, n.ºs 286/288, 2000, pp. 260 e 261. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 299 e 300, considera que “neste domínio é de exigir ao legislador uma especial fundamentação social do desvalor atribuído às atividades restringidas” uma vez que estas restrições contendem com o livre desenvolvimento da personalidade. SANDRA MARQUES MAGALHÃES, “O valor do corpo humano. Considerações sobre os atos de disposição do próprio corpo e os transplantes de órgãos intervivos”, in DIOGO LEITE CAMPOS (coord.), Estudos sobre o Direito das Pessoas, Almedina, Coimbra, 2007, p. 208, reconhece também que não é fácil justificar a proibição de atos individuais que não afetem terceiros se tivermos em conta “o pluralismo, a tolerância e a não-discriminação hoje preconizados”. JEAN-PHILIPPE FELDMAN, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne humaine”, in Droits, n.º 48, 2009, p. 104, considera que não pode haver proteção da pessoa contra si própria “porque o homem é livre e, consequentemente, responsável”. Entendendo ainda que a proteção da pessoa contra si própria em si mesma considerada não pode legitimar uma restrição da liberdade, ver CHRISTIAN HILLGRUBER, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 120 e 121. 101
As revistas e as buscas dentro dos poderes de atuação das autoridades policiais e de segurança: a responsabilidade e a cidadania no processo penal294 Flávia Loureiro295 Sumário: I. Breves considerações introdutórias; II. As revistas e as buscas: meios de obtenção de prova ou medidas cautelares e de polícia? 1. As revistas e as buscas no CPP; 2. As revistas e as buscas na Lei de Segurança Interna e no Regime Jurídico das Armas e suas Munições; 3. As medidas cautelares e de polícia do art. 251.º do CPP; 4. A busca domiciliária; III. Notas finais. Breves considerações introdutórias Falar de responsabilidade e cidadania no âmbito jurídico-penal conduz-nos sempre a duas dimensões que usualmente se encaram como opostas, mas que são simultaneamente complementares: se, de um lado, temos sempre de exigir o compromisso de responsabilidade e cidadania de todos os membros da comunidade, no respeito pelos valores societários que enformam o sistema jurídico, do outro, o Estado há de igualmente oferecer uma, pelo menos idêntica, conformação com tais bens e princípios. Incumbe ao Estado, de acordo aliás com imposições constitucionais, a defesa intransigente da sua configuração democrática e de direito, como caraterísticas essenciais do modelo político-jurídico adotado. Tais exigências, como bem sabemos, são particularmente visíveis no direito penal e processual penal, pois que aí se joga a relação mais tensa entre o poder do Estado e as garantias dos cidadãos. São, por isso, singularmente implicadas de significado as palavras que dão mote a este trabalho quando operam nos limites da ciência jurídico-criminal, como pretendemos demonstrar com um específico exemplo retirado do nosso quotidiano judiciário: as figuras das revistas e buscas. Usualmente estudadas enquanto meios de obtenção de prova, são matéria de inquestionável importância, pois que sobre tais instrumentos se constrói toda a dialéctica processual penal. É, mau grado tal relevância, um tema a que porventura tem faltado reflexão e análise, sobretudo – e essa é talvez a sua mais difícil caraterística – porque os seus problemas são usualmente sentidos num momento inicial do iter processual, o da intervenção dos órgãos de polícia criminal na atividade de recolha de prova296. É, pois, indissociável – e não devemos nunca perdê-lo de vista – a problemática dos meios (ou métodos, como alguns preferem) de obtenção de prova da sua específica dimensão de forma de atuação das forças policiais e de segurança. E se uma e outra realidade – meios de obtenção de prova e atuação das forças policiais e de I.
294 Sendo as buscas e as revistas dois dos mais intrusivos instrumentos de que o direito processual penal dispõe, a reflexão acerca destes meios de obtenção de prova sempre nos ocupou. Foi, todavia, por altura do Seminário “A atuação das forças de segurança nas relações de tensão entre o Estado e os particulares”, organizado sob a direção do Comando Territorial de Braga da Guarda Nacional Republicana em parceria, nomeadamente, com a Escola de Direito da Universidade do Minho, a 25 e 26 de junho de 2009, em Braga, que atentámos especificamente na dimensão que aqui se pretende explorar. O tema foi por nós retomado, em 18 de junho de 2011, no 2.º Seminário “Perspetivas de Revisão do Código de Processo Penal”, realizado na Figueira da Foz pela Direção Regional do Centro ASJP, pela Delegação da Figueira da Foz da Ordem dos Advogados e pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. As considerações que num e noutro lugar expendemos motivaram o aprofundamento do estudo desta matéria, ajudando-nos a perspetivar o interesse teórico e prático da questão. 295 Mestre em Direito. Assistente da Escola de Direito da Universidade do Minho. 296 Sobre as revistas e as buscas enquanto meios de obtenção de prova, cfr., nomeadamente, Manuel Monteiro Guedes Valente, Revistas e Buscas, Almedina, 2005 (2.ª edição); Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 2006; e Francisco Marcolino de Jesus, Os Meios de Obtenção de Prova em Processo Penal, Almedina, 2011.
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segurança – não são absolutamente concêntricas, é exactamente através do conhecimento preciso das suas fronteiras que pode surgir a resolução de algumas das questões que mais comummente se colocam a este propósito. Devemos, pois, começar por lembrar, embora já lugar-comum, que meios de obtenção de prova se distinguem de meios de prova, pois que não são instrumentos de demonstração do thema probandi mas, antes, meios de investigação e recolha de prova297. De facto, estes métodos não têm, em si mesmos, a suscetibilidade de serem utilizados para, através da sua perceção, serem fonte de convencimento, formarem e fundamentarem um juízo, mas estão, antes, aptos a permitirem a recolha de objetos ou declarações que têm, esses sim, em si próprios, capacidade probatória. Muito embora a doutrina tenha vindo a trabalhar esta distinção, a verdade é que o nosso Código de Processo Penal (CPP) não é particularmente explícito neste âmbito, sobretudo nas disposições gerais do livro dedicado à prova, onde tanto faz referência à “prova” como a “métodos proibidos de prova” para depois passar a utilizar apenas as designações “meios de prova” e meios de obtenção de prova”298. E se da disciplina específica a respeito de cada um destes (meios de prova e meios de obtenção de prova) se retira a diferenciação conceptual e prática entra as duas categorias – o que tem permitido à doutrina e à jurisprudência aprofundarem a análise sobre o tema –, já o mesmo não se pode dizer sem mais acerca, por exemplo, da proibição de produção e proibição de valoração de prova299. Não podendo tratar-se de todos estes aspetos nesta sede, nem sendo esse o nosso objetivo, cumpriremos a delimitação que no título do trabalho gizámos e debruçar-nos-emos sobre um objeto menos comummente tratado – as revistas e as buscas. Sobretudo porque, o que é frequentemente esquecido, elas podem apresentar uma natureza, diremos, híbrida ou dúplice, funcionando não apenas como meios de obtenção de prova, mas igualmente como medidas cautelares e de polícia. O regime dos dois institutos é distinto, embora aproximado em alguns aspetos, e nem sempre é fácil distinguir claramente se estamos num ou noutro campo. Tentaremos trazer aqui algumas dessas perspetivas, desde logo por contraponto das duas regulamentações. Temos de sublinhar, desde logo, a importância decisiva que a Constituição da República (CRP) desempenha em sede de compreensão do direito penal e processual penal e a relevância dos princípios que aí são plasmados. Ora, de entre as “garantias de processo criminal”, vertidas no art. 34.º da CRP, devemos salientar, desde já, aquela que consta do seu n.º 4: “toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais”. O preceito em causa fala em instrução e não em inquérito, mas não parece curial que se pretendesse aqui estabelecer uma reserva de juiz para todos os atos que 297 Germano Marques Da Silva, Curso de Processo Penal II, Verbo, pp. 209 e ss. Começando por fazer a distinção que se acompanha, o Autor chama a atenção para as circunstâncias em que um meio de obtenção de prova acaba por ser também um meio de prova. Esse será, segundo ele, o caso da revista e da busca “enquanto não conduzam à descoberta e recolha de elementos indiciadores da responsabilidade e possam, atentas as circunstâncias, ser valoradas nessa perspectiva” (p. 210). 298 E, diga-se a propósito, muito embora este problema se levantasse já com toda a acuidade, a reforma de 2007 ao Código de Processo Penal, empreendida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, não enfrentou esta questão. Os artigos relativos à prova, muito embora tenham sofrido alterações, permaneceram idênticos no que diz respeito a este problema e à, desejada, clarificação conceptual e terminológica. Cfr., a propósito das alterações introduzidas em 2007 e daquelas que não foram feitas, Manuel da Costa Andrade, “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de Processo Penal. Observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente, Coimbra Editora, 2009, sobretudo, no que especificamente se relaciona com o que vai dito, pp. 104 e ss. 299 Sobre esta questão, cfr., por todos, Manuel da Costa Andrade, op. ult. cit., pp. 119 e ss. O Autor começa logo por sublinhar: “[o] regime jurídico-normativo das proibições de prova era outra das áreas problemáticas que, de forma mais patente e instante, esperavam e reclamavam a intervenção do legislador de 2007. Era, de resto, um domínio em que a intervenção legislativa esperada e reclamada se deixava antolhar mais aprofundada e inovadora. Mas este foi também o domínio em que a disponibilidade e a capacidade do legislador para afrontar com acerto e pertinência as questões acabaram por se revelar mais débeis”.
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afetassem os direitos fundamentais quando fossem praticados durante a instrução, mas já não se quisesse abrangê-los quando decorresse a fase de inquérito. Sobretudo quando esta, pelas suas caraterísticas definidoras, é mais suscetível de gerar atos que contendam – gravemente até – com direitos fundamentais. Não pode senão compreender-se esta referência constitucional a atos instrutórios em sentido ôntico ou substancial como feita a todas as actuações que, materialmente, visem a recolha de prova, independentemente da fase processual em que tenham lugar. Uma nota, portanto, para recordar aqui que estamos perante atos que a Constituição quis especificamente atribuir ao juiz e que este pode delegar noutras entidades, nos termos da lei, a não ser que estejam em causa direitos fundamentais, circunstância em que são de sua exclusiva competência. O que não pode senão ter um grande significado quando falamos quer de recolha de prova quer da sua valoração e que, no caso de obtenção de prova, tem especial relevância na conformação da atuação dos órgãos de polícia criminal. Feitas estas advertências prévias – que não devemos nunca perder de vista – debrucemo-nos então, especificamente, sobre as revistas e buscas. II. As revistas e as buscas: meios de obtenção de prova ou medidas cautelares e de polícia? 1.
As revistas e as buscas no CPP
Ora, nos termos do art. 174.º do Código de Processo Penal, a revista poderá ter lugar quando haja indícios de que alguém oculta, na sua pessoa, quaisquer objetos relacionados com um crime ou que sejam suscetíveis de servir de prova em processocrime em curso. Já a busca será levada a cabo se houver indícios de que, em certo lugar reservado ou não livremente acessível ao público, se encontram objetos relacionados com um facto suscetível de ser qualificado como crime ou que possam servir de prova ou pessoa que deva ser detida, para ser presente à autoridade judiciária competente. Assim, enquanto a revista é feita a uma pessoa, a busca é realizada a lugares reservados ou não acessíveis livremente pelo público, sendo que, normalmente, há-de ser ordenada ou autorizada pela autoridade judiciária competente, que a leva a cabo (preferencialmente) ou delega tal actuação num órgão de polícia criminal (de acordo com o n.º 3 do preceito, a autoridade judiciária competente deve, sempre que possível, presidir à diligência). O despacho da autoridade judiciária tem um prazo de validade: a diligência há-de ser cumprida no prazo de 30 dias, sob pena de nulidade.300 Além destas revistas e buscas, todavia, assim sucintamente descritas e que correspondem ao regime regra, previstas no Código de Processo Penal como meio de obtenção de prova, a realizar no decurso de um processo, normalmente na fase de inquérito, com autorização prévia da autoridade judiciária301, outras há, todavia, estabelecidas tanto no CPP como em legislação extravagante, que divergem deste modelo básico que acabámos de apresentar. Na verdade, enquanto as revistas e buscas previstas no art. 174.º do CPP se apresentam como meios típicos de obtenção de prova, de acordo com aquelas caraterísticas que começámos por imputar-lhes, outras há que se configuram como medidas preventivas ou cautelares e que importa conhecer e distinguir daquelas. 300 Este prazo é um aditamento feito pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, pois que se discutia muito, até então, qual a validade temporal do despacho autorizativo da autoridade judiciária. 301 Assim, também, Ana Luísa Pinto, “As buscas não domiciliárias no direito processual penal português”, Revista do Ministério Público, n.º 109, ano 28, Jan. – Mar. 2007, p. 34.
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2. As revistas e as buscas na Lei de Segurança Interna e no Regime Jurídico das Armas e suas Munições
De acordo com a Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto ) deve o Estado garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática (art. 1.º, n.º1), podendo, nessa exata medida e respeitando os princípios da adequação e da proporcionalidade, lançar mão de um conjunto de medidas previstas na lei, nomeadamente das medidas de polícia estatuídas nos arts. 28.º e ss. Aí se prevê, entre várias outras medidas limitadoras de direitos fundamentais303, a possibilidade da realização de buscas e revistas em viatura, lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância judicial (portanto, buscas não domiciliárias, desde logo), com vista a detetar a presença de armas, substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, objetos proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência e pessoas procuradas ou em situação irregular no território nacional ou privadas da sua liberdade. Tais medidas só podem ser utilizadas, contudo, em estrito respeito pelo princípio da necessidade, pelo período de tempo indispensável para garantir a segurança e a proteção de pessoas e bens e desde que haja indícios fundados de preparação de atividade criminosa ou de perturbação séria ou violenta da ordem pública, nos termos do art. 30.º da Lei de Segurança Interna. Mas são determinadas – ou podem sê-lo – pelas autoridades de polícia ou, eventualmente, pelos próprios agentes das forças e dos serviços de segurança, sendo que as mais graves, previstas no art. 29.º, devem ser comunicadas ao tribunal competente, no prazo máximo de 48 horas, para apreciação e validação. Anote-se, pois, que, neste caso, não estamos perante uma busca ou uma revista utilizada como meio de obtenção de prova, mas face a estes instrumentos vistos sob uma outra perspetiva, fora de um processo-crime em curso (a não ser quando se trate de pessoa procurada ou privada de liberdade), encarados como um mecanismo preventivo, prévio, de que as forças e os serviços de segurança podem lançar mão para evitar o cometimento de crimes e para assegurar a ordem e tranquilidades públicas. 302
302 Retificada pela Declaração de Retificação n.º 66-A/2008, de 28 de Outubro. 303 A Lei de Segurança Interna estabelece uma distinção entre medidas de polícia e medidas especiais de polícia, nos arts. 28.º e 29.º, respetivamente, correspondendo grosso modo às hipóteses típicas e atípicas de atuação policial. Curiosamente, o leque de medidas de polícia habituais – que parece ser taxativo – é muito mais estreito do que o das ditas medidas especiais. Naquele cabem somente a identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial; a interdição temporária de acesso e circulação de pessoas e meios de transporte a local, via terrestre, fluvial, marítima ou aérea; a evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte; e a remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em condições de segurança. Já o segundo grupo é composto pelas seguintes medidas: a) A realização, em viatura, lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, de buscas e revistas para detetar a presença de armas, substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, objetos proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência e pessoas procuradas ou em situação irregular no território nacional ou privadas da sua liberdade; b) A apreensão temporária de armas, munições, explosivos e substâncias ou objetos proibidos, perigosos ou sujeitos a licenciamento administrativo prévio; c) A realização de ações de fiscalização em estabelecimentos e outros locais públicos ou abertos ao público; d) As ações de vistoria ou instalação de equipamentos de segurança; e) O encerramento temporário de paióis, depósitos ou fábricas de armamento ou explosivos e respetivos componentes; f) A revogação ou suspensão de autorizações aos titulares dos estabelecimentos referidos na alínea anterior; g) O encerramento temporário de estabelecimentos destinados à venda de armas ou explosivos; h) A cessação da atividade de empresas, grupos, organizações ou associações que se dediquem ao terrorismo ou à criminalidade violenta ou altamente organizada; i) A inibição da difusão a partir de sistemas de radiocomunicações, públicos ou privados, e o isolamento eletromagnético ou o barramento do serviço telefónico em determinados espaços.
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Exercem funções de segurança interna, de acordo com o art. 25.º, n.º 2, da Lei n.º 53/2008, a Guarda Nacional Republicana (GNR), a Polícia de Segurança Pública (PSP), a Polícia Judiciária (PJ), o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), e, ainda, em alguns casos determinados na lei, os órgãos da Autoridade Marítima Nacional e os órgãos do Sistema da Autoridade Aeronáutica. Por outro lado, também a nova (renovada) Lei das Armas304, prevê a necessidade, o dever, de as forças e serviços de segurança planearem e realizarem periodicamente operações especiais de prevenção criminal, com o objetivo de “controlar, detetar, localizar, prevenir a introdução, assegurar a remoção ou verificar a regularidade da situação das armas, seus componentes ou munições ou substâncias ou produtos a que se refere a presente lei, reduzindo o risco de prática de infrações previstas no presente capítulo, bem como de outras infrações que a estas se encontrem habitualmente associadas ou ainda quando haja suspeita de que algum desses crimes possa ter sido cometido como forma de levar a cabo ou encobrir outros”.305 No âmbito de tais operações poderão ser levadas a cabo identificações e revistas de pessoas, de viaturas ou de equipamentos (que, nestes dois últimos casos, deveria, propriamente, chamar-se de buscas), e, quando haja indícios da prática daqueles crimes, risco de desobediência ou de resistência ou necessidade de condução ao posto policial, podem ser realizadas buscas nos locais onde se encontrem tais pessoas. Os espaços onde tais operações podem ser levadas a cabo também são muito diversificados, abrangendo áreas como as gares de transportes coletivos rodoviários, ferroviários ou fluviais, bem como o interior desses transportes, portos, aeroportos, vias públicas ou outros locais públicos e respetivos acessos, etc. De acordo com a nova versão de 2009, compete ainda à PSP (art. 109.º, n.º 4), neste âmbito, a verificação dos bens referidos na mesma lei e que se encontrem em trânsito nas zonas portuárias e aeroportuárias internacionais, com a possibilidade de abertura de volumes e contentores, para avaliação do se destino e proveniência. Veja-se, pois, que estamos a falar de poderes bastante amplos atribuídos às forças e serviços de segurança, fortemente restritivos de direitos, liberdades e garantias e que podem ser utilizados de forma menos estreita e limitada do que aquela que resulta, por exemplo, do CPP. Na verdade, muito embora aqui tenha de existir comunicação ao Ministério Público (MP), que pode até acompanhar a diligência (por força do art. 110.º), a decisão a respeito das medidas a tomar está sob a alçada das forças de segurança, que escolhem o seu quando, o seu onde e o seu como. Ressalvando-se apenas, obviamente, a hipótese de ser necessária a realização de buscas domiciliárias ou outras diligências que dependam sempre de despacho judicial306. Não é, pois, despiciendo o poder – e, concomitantemente, a responsabilidade – que através destes dispositivos (talvez os mais significativos dentro da nossa legislação extravagante, mas certamente não os únicos) se confere às forças de segurança, uma vez que ele bole com o que de mais nuclear existe num Estado de Direito democrático. É preciso não esquecer que é a própria CRP quem erige os direitos, liberdades e garantias a máximo baluarte do nosso Estado, só permitindo a 304 Com mais propriedade, o Regime Jurídico das Armas e suas Munições, estabelecido na lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com as alterações resultantes das leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, n.º 17/2009, de 6 de maio, e n.º 26/2010, de 30 de agosto. 305 De acordo com o disposto no art. 109.º do diploma em causa. 306 Nos termos do art. 111.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, “quando no âmbito de uma operação especial de prevenção se torne necessário levar a cabo buscas domiciliárias ou outros atos da exclusiva competência de juiz de instrução, são adoptadas as medidas necessárias ao acompanhamento por parte deste magistrado, na modalidade tecnicamente disponível que se revele mais apropriada”.
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sua restrição em situações excecionais e somente quando esteja em causa a proteção de outros direitos constitucionalmente protegidos. E nos casos das revistas e das buscas estão em jogo os mais preciosos desses direitos: a reserva da vida privada e a própria dignidade pessoal. Utilizar meios que sejam atentatórios desses direitos fundamentais é decisão que tem de ser bem ponderada, seja o juiz, o MP ou as forças de segurança a tomá-la, uma vez que deve sempre respeitar os princípios da absoluta necessidade, da adequação e da proporcionalidade. E por isso dizíamos, quanto à discricionariedade que tanto na Lei de Segurança Interna como no Regime Jurídico das Armas e suas Munições se atribui às forças de segurança, que esse é um poder de particular responsabilidade, uma vez que as suas margens relativamente dilatadas não podem ser confundidas com arbítrio ou com inexigibilidade de fundamentação. É, pois, um âmbito em que ganha relevo reforçado a noção de cidadania e a compreensão de que ela tem de servir de fundamento a todo o exercício que a este propósito se pretenda fazer. Essa a razão pela qual se nos apresentam como potencialmente perigosas – e, por isso, merecedoras de especiais cuidados de aplicação – algumas medidas previstas nestas leis que referimos. Tomemos como exemplo a medida estabelecida no art. 29.º, a), da Lei de Segurança Interna, ao prever a possibilidade de realização de buscas e revistas em viaturas, lugares públicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial, para detetar a presença de armas, substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, objetos proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência e pessoas procuradas ou em situação irregular no território nacional ou privadas de liberdade. A adopção desta medida é da competência das autoridades de polícia, podendo mesmo, de acordo com a hipótese prevista no n.º 2 do art. 32.º da referida Lei, ser determinada pelos próprios agentes das forças e serviços de segurança, em casos de urgência e perigo na demora, devendo, em todos os casos, ser levada ao conhecimento posterior do juiz para validação. Sucede, todavia, que qualquer destas medidas de polícia (à exceção da possibilidade de remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a circulação em condições de segurança) obedece aos critérios de aplicação previstos na Constituição e na lei e, em especial, estabelecidos no art. 30.º: só quando tal se revele necessário, pelo período de tempo estritamente indispensável para garantir a segurança e a protecção de pessoas e bens e desde que haja indícios fundados de preparação de atividade criminosa ou de perturbação séria ou violenta da ordem pública. Ora, tem a autoridade de polícia (ou o próprio agente, em alguns casos) de fazer o conveniente juízo a respeito da existência de indícios de preparação da atividade criminosa ou de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. E não de quaisquer indícios, de indícios suficientemente fundados que permitam, nos termos na CRP, limitar direitos fundamentais dos cidadãos. Não estamos, pois, aqui, face a uma ponderação que possa ser qualificada como simples, desde logo porque da incorreta aplicação de uma destas medidas pode resultar a afetação de um direito pessoal de reserva307. Suponha-se, por ilustração, a busca ao veículo do cidadão X, realizada por decisão da autoridade de polícia ao abrigo deste preceito. Se a posteriori se vier a 307 Chamando a atenção para o problema, ainda em sede de proposta de lei, Pedro Lourenço de Sousa, “Ministério Público, Órgãos de Polícia Criminal e Medidas Cautelares e de Polícia”, Reforma Penal e Processual Penal. Jornadas de 2008, Politeia, ano VI/ ano VII – 2009-2010, pp. 283 e ss.
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considerar que não havia fundamentos, no momento em que a decisão foi tomada, para agir daquela forma, o que sucederá? O juiz de instrução competente não validará a aplicação da medida, nos termos no n.º 1 do art. 33.º, por exemplo. Com que consequências? Naturalmente, as provas que hajam sido obtidas por virtude dessa busca não poderão ser consideradas em eventual processo penal, como dispõe, aliás, o art. 33.º, n.º 4 da Lei de Segurança Interna. Mas apenas isso? E a tutela do particular? E a responsabilidade, eventual, do agente que tomou a decisão? Mesmo que nada tivesse resultado daquela busca – e, portanto, nenhum material probatório existisse para desconsiderar – não ficaria prejudicado, violado ilegalmente, o direito daquele cidadão X a não permitir a entrada na sua viatura e o conhecimento de quaisquer objetos que aí transporte? Não poderia ele, por exemplo, exigir o ressarcimento? E sobre quem impenderá essa responsabilidade? Serve este exemplo comezinho apenas para demonstrar a cautela necessária, quanto a nós, na utilização deste tipo de instrumentos preventivos, uma vez que se é certo que a atuação prévia do Estado, através das entidades policiais, é essencial para a manutenção do Estado de Direito e, especialmente, para evitar a criminalidade, também parece seguro que a limitação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos é extraordinariamente sensível – e difícil, e evitável – quando estejamos fora de um processo-crime, a agir preventivamente, a imputar factos hipotéticos e futuros. Sobretudo porque, como resulta meridianamente claro desta hipótese, desses atos resultam, em não poucos casos, provas que virão a fazer parte de um processocrime específico. 3.
As medidas cautelares e de polícia do art. 251.º do CPP
De particular importância para as entidades policiais parece-nos ser, igualmente, o preceituado no art. 251.º do CPP, que prevê a possibilidade de realização de revistas e buscas como medidas cautelares e de polícia. Também aqui estamos, portanto, face a instrumentos preventivos, não aplicados, pois, na sequência de um processo criminal instaurado, mas que tomam a veste de um ato prévio. Como sabemos, face a determinado facto suscetível de ser qualificado como crime, os órgãos de polícia criminal têm um conjunto particular de deveres. O primeiro deles será, naturalmente, o de comunicação de qualquer notícia de crime de que tenham conhecimento ao MP, de acordo, aliás, com o art. 248.º do CPP 308. Não menos importante, todavia, é o dever de proceder imediatamente a investigações e praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, conforme dispõe o art. 249.º do CPP. De entre tais medidas, prevê o legislador, pois, a possibilidade de os órgãos de polícia criminal (OPC) procederem, sem prévia autorização da autoridade judiciária, à revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção e a buscas no lugar em que se encontrarem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se; à revista de pessoas que tenham de participar ou pretendam assistir a qualquer ato processual ou que, na qualidade de suspeitos, devam ser conduzidos a posto policial, sempre que houver razões para crer que ocultam armas ou outros objetos com os quais possam praticar atos de violência. 308 Sobre a comunicação da notícia do crime, com reflexão acerca do respetivo prazo e dos poderes que, durante esse período, cabem aos órgãos de polícia criminal, cfr. op. cit., p. 301 a 303. O autor sublinha: “defendemos que o referido prazo de tempo, que não pode exceder 10 dias, nunca poderá ser entendido como um espaço de liberdade investigatória por parte dos órgãos de polícia criminal”.
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Estas medidas cautelares obedecem, pois, a regras muito estritas quanto aos seus fundamentos, uma vez que só se permite 1) a revista de suspeitos, em caso de fuga iminente, de detenção ou quando devam ser conduzidos a posto policial, mas neste caso apenas se houver razões para crer que ocultam armas ou outros objetos perigosos, e 2) a busca, não domiciliária, do lugar onde se encontrarem suspeitos, mas somente se existirem motivos fundados para acreditar que neles se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem e prova e que de outra forma poderiam perder-se. São, por isso, verdadeiras medidas de exceção, só possíveis de utilizar em casos limite, nomeadamente para assegurar a recolha e preservação de provas em risco de perda309. Se os OPC podem, como ficou dito, lançar mãos destes meios sem prévia autorização da autoridade judiciária competente, isso não invalida que, aqui como nos exemplos que vimos em legislação extravagante, tenham a obrigação de imediatamente comunicar a diligência ao juiz de instrução, para apreciação e validação (de acordo com o art. 251.º, n.º 2 e 174.º, n.º 6 do CPP). De notar que, muito embora o MP seja competente para autorizar as revistas e as buscas durante o inquérito, no caso de tais diligências terem sido realizadas sem prévia autorização é ao juiz de instrução que compete a validação. Apesar de algumas vozes contra310, parece-nos bem que esta opção se justifica. Se é certo que para a autorização da diligência bastaria decisão do MP, parece-nos que, quando o ato já foi praticado e não foi precedido dessa autorização, a necessidade de apreciação aumenta, uma vez que se trata de um ato fortemente atentatório dos direitos fundamentais dos cidadãos, sobre o qual é preciso fazer um juízo valorativo acrescido: preencheria ele os pressupostos necessários para dispensar a autorização? Se lhe aditarmos o facto de, por ser realizada a posteriori, tal avaliação poder suscitar alguma “simpatia pelos resultados obtidos”, parece-nos avisada a posição do legislador processual penal. Tanto mais que, como chama a atenção Ana Luísa Pinto311, o mesmo se passa com as revistas e buscas que, no decurso de um inquérito, prescindem de autorização prévia. Por maioria de razão, se assim é durante o inquérito, faz sentido que o mesmo se passe antes dele. Também aqui, pois, nestas revistas e buscas cautelares estabelecidas no nosso Código de Processo Penal, devem os órgãos de polícia criminal rodear-se de particulares cuidados, uma vez que estão previstas como meios absolutamente excecionais, por isso restritivamente utilizáveis, e sancionáveis com a nulidade de valoração da prova obtida sempre que desrespeitem os requisitos estabelecidos. E temos vindo a destacar estes regimes não só porque todos eles dizem igualmente respeito a revistas e buscas, mas porque, como pôde constatar-se, são genericamente mais permissivos do que aquele que inicialmente enunciámos e que o CPP prevê para estes instrumentos enquanto meios de obtenção de prova. Deve, contudo, não esquecer-se a possibilidade, prevista no art. 174.º, n.º 5 do CPP, de realização de revistas e buscas, no âmbito de determinado processo-crime, sem prévia autorização da autoridade judiciária. Na verdade, sendo certo que, por regra, as revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, 309 Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, Rei dos Livros, p. 877. 310 Parte da doutrina entende que tal validação deveria caber ao Ministério Público, pois que é a ele que compete autorizar a realização da busca, nos termos do n.º 3 do art. 174.º, e este ato não está especificamente elencado no conjunto daqueles que durante o inquérito, competem exclusivamente ao juiz de instrução (arts. 268.º e 269.º do CPP). Neste sentido, M. Marques Ferreira, “Meios de prova”, Jornadas de Direito Processual Penal: O novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 1988, p. 267; e Manuel Monteiro Guedes Valente, op. cit., p. 67. 311 Op. ult. cit., p. 32.
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sempre que possível, presidir à diligência, por força do n.º 3 do art. 174.º do CPP, podem, em certos casos, tais revistas e buscas serem efectuadas sem tal autorização: 1) quando se trate de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa; 2) em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou 3) aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão. Estamos, pois, aqui perante uma restrição muito severa do direito à reserva da vida privada, ocorrida quando há já um inquérito instaurado, mas face a cujas circunstâncias entende o legislador poder ser dispensada a exigência de autorização prévia312. O Tribunal Constitucional, pronunciando-se sobre este tema313, decidiu não tratar-se de uma situação abusiva, quer porque, no que às buscas respeita, estão aqui em causa somente buscas não domiciliárias, quer porque a elas se impõe particulares limitações. Efectivamente, além de poderem ter lugar apenas nos casos expressamente previstos nas três alíneas no n.º 5 do art. 174.º do CPP, restringindo-se, portanto, o seu campo de atuação, no caso de estarmos perante uma circunstância de terrorismo ou criminalidade violenta ou altamente organizada, tais diligências estão também elas submetidas a posterior comunicação ao juiz de instrução para validação, sob pena de nulidade. Estamos, assim, nestas hipóteses perante circunstâncias que não podem esperar o tempo normal de uma autorização, sob pena de a diligência se tornar manifestamente inútil, ou que não precisam de se submeter a tal decisão, uma vez que o interessado, o protegido pela norma, expressou o seu consentimento. No caso da alínea a), especificamente, estamos perante criminalidade muito grave, particularmente complexa e difícil de perseguir e para a qual se tem defendido a necessidade de meios de investigação mais eficientes e céleres. Sob uma outra perspetiva ainda, se as revistas e as buscas são permitidas, antes do inquérito, sem necessidade de autorização, não se vê razão para que, em determinadas circunstâncias e obedecendo a certos requisitos, tal não possa suceder durante o inquérito. 4.
A busca domiciliária
Temos, ainda, por último, um caso especial respeitante apenas a buscas, no caso, a busca domiciliária314. Nos termos do art. 177.º do CPP, a busca em casa habitada ou sua dependência só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas. Há, pois, aqui, como seria de esperar de resto, um reforço da tutela oferecida à reserva da vida íntima e familiar da pessoa, protegendo-se o seu reduto último: o domicílio. Tal protecção, aliás, deriva da própria CRP, que no seu art. 34.º, n.º 1, afirma a inviolabilidade do domicílio, esclarecendo, depois, que a entrada no domicílio só poderá ser ordenada por autoridade judicial e fixando mesmo quais os casos em que tal intromissão poderá ser levada a cabo durante a noite. 312 Analisando igualmente esta modalidade de buscas, Ana Luísa Pinto, op. ult. cit., p. 39 e ss. 313 O Tribunal Constitucional abordou esta questão no Acórdão n.º 7/87, de 9 de fevereiro de 1987. 314 A respeito das buscas domiciliárias, cfr., nomeadamente, Ana Luísa Pinto, “Aspectos problemáticos do regime das buscas domiciliárias”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 15, n.º 3, Julho – Setembro 2005, p. 415 e ss.; Carlos Alberto Casimiro Nunes, “Dos meios de obtenção de prova: o caso das buscas domiciliárias e das intercepções telefónicas”, Reforma Penal e Processual Penal. Jornadas de 2008, Politeia, ano VI/ ano VII – 2009-2010, pp. 227 e ss.; e Alfredo Castanheira Neves, “Dos meios de obtenção de prova: o caso das buscas domiciliárias – Breve sinopse legislativa e doutrinal”, Reforma Penal e Processual Penal. Jornadas de 2008, Politeia, ano VI/ ano VII – 2009-2010, pp. 241 e ss.
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Em conformidade, o n.º 2 do art. 177.º do CPP, reflete tal dispositivo, estatuindo que, entre as 21 e as 7 horas só podem ser realizadas buscas domiciliárias em caso de terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, de consentimento do visado, documentado por qualquer forma, ou de flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos. Muito relevante nesta matéria de interceção entre os meios de obtenção de prova e as medidas cautelares e de polícia é o que vai estatuído no n.º 3 do mesmo art. 177.º, prevendo a possibilidade de realização de buscas domiciliárias sem autorização do juiz, podendo ser ordenadas pelo MP ou simplesmente efectuadas por OPC: nos casos previstos no n.º 5 do art. 174.º, ou seja terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios de prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa, quando os visados consintam, desde que o consentimento fique documentado por qualquer forma, e aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão, desde que, em todos estes casos, a busca se realize durante o período diurno, ou seja, entre as 7 e as 21 horas; e ainda nos casos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 177.º, que são os casos de consentimento do visado e de flagrante delito, quando o crime for punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, aqui entre as 21 e as 7 horas. Surpreende-se, assim, também aqui, numa matéria tão delicada como a das buscas domiciliárias, um momento em que as entidades policiais, enquanto OPC, podem ter um poder particular: o de realizar uma busca domiciliária noturna sem autorização prévia do juiz de instrução. Nesse caso, quando se trate de casos de terrorismo ou criminalidade violenta ou altamente organizada, a busca ficará sujeita a comunicação ao juiz de instrução, que procederá à sua apreciação e validação. III.
Notas finais
Propositadamente, ao longo deste trabalho não falámos, além daquelas considerações iniciais, a respeito do regime regra das revistas e buscas, previsto no art. 174.º, n.º 1 a n.º 4 do CPP. Fizemo-lo, por um lado, por entendermos que é talvez aquele que, por ser típico, menos questões levanta a quem diariamente tem de lidar com estes instrumentos, por outro porque, à medida que fomos analisando os diversos regimes excecionais, acabámos por, por comparação, falar também a respeito do regime regra, sem termos de sobre ele nos determos especificamente, aproveitando, pois a oportunidade para tecer algumas considerações a respeito dos regimes mais sensíveis sobre revistas e buscas. Se bem vemos, do que vai dito resulta, sobretudo, a peculiar sensibilidade dos instrumentos em causa, que ao tocar – como usualmente sucede em processo penal – os direitos fundamentais dos cidadãos exigem da parte de quem os executa ou leva a cabo um especial sentido de responsabilidade, uma perceção teleológica dos poderes que lhe estão cometidos e, nessa medida, um específico e funcionalizado exercício de cidadania
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