O que a distância revela reflexões de professores e de estudantes do Curso de Letras – EaD/UnB
Josenia Antunes Vieira Francisca Cordelia Oliveira da Silva organizadoras
Gráfica e Editora Movimento Ltda. Brasília-DF 2014
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O que a distância revela : reflexões de professores e estudantes do curso de Letras – EaD-UnB / Josenia Antunes Vieira, Francisca Cordelia Oliveira da Silva, organizadoras. _ Brasília: Movimento, 2014. 256 p. : il. ISBN 978-85-66507-04-1 1. Letras – Estudo e ensino. 2. Ensino a distância. 3. Universidade de rasília. I. Vieira, Josenia Antunes (org.). II. Silva, Francisca Cordelia Oliveira da (org.). CDU 37.018.432:8
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Sumário 5 8
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Apresentação
Contribuições da Fonética e da Fonologia para o Ensino de Língua Portuguesa Josenia Antunes Vieira Língua Portuguesa: Vamos Pensar em Novas Possibilidades? Francisca Cordelia Oliveira da Silva Laboratório de Ensino de Gramática: Questões, Desafios e Perspectivas Eloisa Nascimento Silva Pilati O Estudo do Léxico no Curso de Letras EaD da UnB Flávia de Oliveira Maia-Pires Michelle Machado de Oliveira Vilarinho Consciência Linguística Crítica e Reflexividade: Um Caminho para a (Trans)Formação da Identidade Docente Juliana Dias Carla Braga Teorias Cognitivas e Abordagens Metodológicas no Ensino de Segunda Língua (L2) e de Língua Estrangeira (LE) Ana Adelina Lôpo Ramos
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Discursos Multmodais e Educação no Contexto da Globalização Candice Assunção A Representação do Professor-Tutor à Luz da Línguística Sistêmico-Funcional Josenia Antunes Vieira Auriane Menezes O Plágio em Ambientes Virtuais de Aprendizagem e a Promoção da Autoria Acadêmica Francisca Cordelia Oliveira da Silva Eni Abadia Batista
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Apresentação A formação de professores de Letras na modalidade a distância é um desafio imposto pelo avanço tecnológico para um país de enormes dimensões como o Brasil, com uma significativa agenda para cumprir no que tange aos processos de inclusão social e digital. O maior desafio, contudo, é promover formação de qualidade, cuja interação entre professores, tutores e estudantes seja levada a efeito, por meio da interatividade que a tecnologia permite. Nesse sentido, o livro O que a distância revela: reflexões de professores e de estudantes do Curso de Letras – EaD/UnB é uma coletânea de artigos focados em diversas temáticas centrais para os futuros professores de Língua Portuguesa. Distinguindo-se pelo caráter pioneiro, este livro traz reflexões abrangentes sobre aspectos conceituais e teóricos que envolvem o estudante-sujeito, produtor de conhecimentos em novos meios de interação, sobre questões identitárias de quem ensina, além da representação do professor. O primeiro capítulo, Contribuições da Fonética e da Fonologia para o Ensino de Língua Portuguesa, de Josenia Antunes Vieira, busca dissipar o distanciamento entre teoria e conhecimento aplicado que, muitas vezes, caracteriza o tratamento dado à Fonética e à Fonologia. Desse modo, é discutida a relevância dessas ciências para as aulas de Língua Portuguesa, no auxílio que elas podem dar, por exemplo, à caracterização dos “erros” cometidos pelos estudantes no processo de aquisição de escrita. No segundo capítulo, Ensino de Língua Portuguesa: Vamos Pensar em Novas Possibilidades? Francisca Cordélia Oliveira da Silva O que a distância revela
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discute o modelo atual predominante nas aulas de Língua Portuguesa, centrado em exercícios de repetição e de padronização de respostas, propondo alternativas com base na reflexão linguística e não na simples classificação de termos. Eloisa Nascimento Silva Pilati, no capítulo 3, Laboratório de Ensino de Gramática: Questões, Desafios e Perspectivas, delineia os preceitos teóricos trabalhados na disciplina “Laboratório de Ensino de Gramática”, além de discutir abordagens pedagógicas que favorecem a aprendizagem de questões gramaticais relevantes para os estudantes. No quarto capítulo, O Estudo do Léxico no Curso de Letras EaD da UnB, Flávia de Oliveira Maia-Pires e Michelle Machado de Oliveira Vilarinho trazem os resultados de pesquisa acerca do perfil socioeconômico dos estudantes do Curso de Letras-EaD e sobre a relevância dos estudos nas disciplinas “Lexicologia e Lexicografia 1 e 2”, quando cursadas pelos licenciandos. De igual modo, o quinto capítulo, Consciência Linguística Crítica e Reflexividade: Um caminho para a (Transf) Formação da Identidade Docente, de Juliana Dias e Carla Braga, discute a experiência de uma professora do Ensino Médio na Bahia, à luz dos estudos críticos do discurso, com particular interesse na teoria construída no âmbito acadêmico e na prática docente em sala de aula. No capítulo seis, Teorias Cognitivas e Abordagens Metodológicas no Ensino de Segunda Língua (L2) e de Língua Estrangeira (LE), Ana Adelina Lôpo Ramos discute as teorias do Behaviorismo, do Inatismo e do Interacionismo e suas influências nos processos de ensino e de aprendizagem nos contextos de letramento de segunda língua ou de língua estrangeira. 6
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O sétimo capítulo, Discursos Multmodais e Educação no Contexto da Globalização, de Candice Assunção, discute os modos como os discursos veiculados na atualidade podem construir um apagamento da figura do professor como sujeito agente, reduzindo-o ao papel de simples mediador. Além disso, o artigo trata da transformação, via discurso, das escolas em tipos especiais de empresas. No oitavo capítulo, A Representação do Professor-tutor à luz da Linguística Sistêmico-Funcional, Josenia Antunes Vieira e Auriane Menezes analisam, por meio da metafunção ideacional e da metafunção interpessoal, as representações do professor-tutor com base nos dados que compõem o corpus documental. Em A situação de Plágio em AVA e a Busca da Promoção à Autoria Acadêmica, nono capítulo, Francisca Cordelia Oliveira da Silva e Eni Abadia Batista discutem a situação de plágio em trabalhos acadêmicos, situando o debate em torno das questões éticas que envolvem o processo de autoria. Por fim, almejamos que esta publicação seja mais uma fonte de pesquisa e de reflexão para os estudantes do Curso de Letras-EaD/UnB. Esperamos também que esta obra se torne relevante instrumento para a aproximação de professores, tutores e licenciandos no processo de formação de profissionais de Letras, alcançando os mais remotos polos que integram o curso de Letras em Língua Portuguesa, mantidos sob a chancela do ensino a distância da Universidade de Brasília, EaD/UnB. Josenia Antunes Vieira Francisca Cordelia Oliveira da Silva
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Capítulo I
Contribuições da Fonética e da Fonologia para o Ensino de Língua Portuguesa Josenia Antunes Vieira
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Contribuições da Fonética e da Fonologia para o Ensino de Língua Portuguesa Josenia Antunes Vieira1
Introdução Pretendemos discutir neste artigo o relevante papel da Fonética e da Fonologia no ensino de Língua Portuguesa, pois, ao pensarmos em Fonética e Fonologia, o quadro teórico trazido à mente é extremamente abstrato, intimamente ligado à Linguística, não como ciências menores, mas como instrumentos de apoio à análise linguística. Nunca, todavia, como ciências capazes de contribuir para o ensino de Português. Assim, o divórcio entre o conhecimento teórico e o aplicado serão o objeto da discussão, tendo em vista que essas duas ciências podem ser usadas como instrumentos valiosos no trabalho de sala de aula, no sentido de identificar e de compreender o erro cometido por nossos alunos de Língua Portuguesa. Ainda que Fonética e Fonologia sejam ciências com objetos distintos e, embora busquem de forma idêntica os seus respectivos objetos na linguagem humana articulada, esses se distanciam exatamente por sua finalidade. Enquanto a Fonética se preocupa 1 Josenia Antunes Vieira realizou dois Pós-Doutoramentos em Linguística, um pela Universidadede Lisboa, (2001), patrocinado pelo CNPq, e outro em 2008), com apoio da CAPES. É doutora em Linguística Aplicada pela PUC/RS (1986). Desde 1991, é Professora do Doutorado e do Mestrado do Programa de Pós- Graduação em Linguística, do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas do Instituto de Letras da UnB. Atualmente, é professora Associada 4. Dirige, desde 2005, o Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (Cepadic), do qual é sócia fundadora. Realizou pesquisas pela FINEP, FAPERGS e CNPq. Membro da Associação Latino Americana de Analistas do Discurso (ALED) e da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) e do GT Práticas Identitárias em Linguística Aplicada, afiliado à ANPOLL. Orientou entre teses de Doutoramento e Dissertações de Mestrado mais de cinquenta pesquisas. Autora de vários livros, capítulos e artigos em Análise de Discurso Crítica, Multimodalidade e Letramento.
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com os sons da fala humana e com toda a gama de variação possível tanto no âmbito da produção, quanto no da recepção, a Fonologia concentra-se no valor e na organização sistêmica dos fonemas em uma dada língua, estudando como os fonemas agrupam-se e distribuem-se em sílabas e palavras. Os cursos de Letras agregam noções de Fonética e de Fonologia em seus currículos, acreditando na relevância dessas disciplinas para a formação dos futuros mestres de Língua Portuguesa. No entanto, dependendo do linguista a ministrar tais cursos, o referencial oferecido aos futuros professores será mais teórico do que prático. As experiências vivenciadas nos cursos de Letras demonstram que a grande maioria dos cursos de Fonética e de Fonologia ministrados não corresponde aos interesses dos egressos de Letras, que, preferencialmente, pretendem carreira no ensino público e não no Magistério Superior, realizando, frequentemente, após a conclusão da graduação, apenas cursos de pós-graduação em nível de especialização, lançando-se imediatamente ao mercado de trabalho com densa bagagem em teoria fonética e fonológica, de muita valia aos pretendentes à pesquisa linguística em cursos de Mestrado e de Doutorado, porém de irrelevante valor à práxis docente da Língua Portuguesa.
O Ensino de Língua Portuguesa e o Papel da Fonética e da Fonologia Neste momento, interponho uma questão prática: Qual a serventia da Fonética e da Fonologia ao ensino de Língua Portuguesa? Alguns professores mais avisados responderão que essas ciências são imprescindíveis à descrição de línguas. É inconteste a resposta, não obstante os professores de Língua Portuguesa (LP) já 10
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trabalham com uma língua descrita. A resposta dada seria adequada à descrição de línguas indígenas, por exemplo, que, após descrição fonética e fonológica, passariam de línguas ágrafas a línguas com sistemas de escrita. Volto a insistir que essas tarefas, apesar de relevantes, não são pertinentes aos professores de primeiro e de segundo graus, mas ao linguista, ao pesquisador. Então, cabe outro avanço no questionamento: Se o professor de Língua Portuguesa (LP) não descreve a língua que ensina, em que situações e em que circunstâncias, ele fará uso dos conhecimentos fonéticos em sua sala de aula? O professor poderá fazer uso da Fonética e da Fonologia em inúmeras situações de ensino de LP, prioritariamente nos contextos de dificuldades de pronúncia, ocasionadas por situações de variação linguística motivadas quer por interferência individual, quer por interferência do grupo de determinada comunidade de fala; também o professor poderá fazer uso desses conhecimentos em situações de ensino de Língua Portuguesa como segunda língua (L2) ainda, de modo muito produtivo, o professor poderá lançar mão desses conhecimentos no letramento inicial do alfabetizando em fase de aquisição de língua escrita e por último, também caberá o uso de Fonética ou de Fonologia em casos específicos de desvios fonéticos ou fonológicos. A seguir, discutiremos tais possibilidades de aplicação dos conhecimentos de Fonética e de Fonologia ao ensino de Língua Portuguesa.
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A Fonética e a Fonologia Frente aos Problemas de Variação Linguística Tem sido inegável a contribuição dos fundamentos de Fonética e de Fonologia para a resolução dos problemas criados pela variação linguística. Em situações de dificuldade na aprendizagem de padrões diferentes de pronúncia, a Fonética é, com certeza, poderosa auxiliar nas questões de prosódia e de ortoépia, desde que o professor maneje com maestria o sistema de transcrição fonética, assim como a correta colocação dos órgãos de fala envolvidos na articulação de sons diversos da língua a ser aprendida. É relevante a afirmativa, porém, com referência aos professores de Língua Portuguesa, o impasse continua, pois os alunos, de modo geral, já pronunciam corretamente os sons de sua língua. A única valia desse conhecimento, para o professor de Língua Portuguesa, é o seu direcionamento ao problema da variação linguística presente em sala de aula, implicando alteração ou transgressão da norma culta. Há muitos falares no Brasil, todos corretos do ponto de vista do grupo social que os fala. Pela ótica de determinada comunidade linguística, tudo o que veicula sentido é aceito. O argumento é correto, contudo cria situações delicadas de julgamento para o professor em sala de aula que deve separar o coloquial do formal; o padrão aceito do não aceito; o falar letrado do falar iletrado, mostrar ao aluno a prosódia adequada de algumas palavras, considerando a norma culta e as formas estigmatizadas, muitas vezes, até mesmo rejeitadas por diferentes comunidades de fala. Movimentar-se no âmbito da variação linguística é extremamente díficil por não existirem pesquisas linguísticas concluídas a respeito do Português padrão. Há muitos estudos isolados. Por essa mesma razão, a língua não é contemplada como
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um todo. Por exemplo, um pesquisador pode estudar ora a produção do erre /r/ no interior do Rio Grande do Sul, com inúmeras realizações, ora outro fenômeno fonético produzido no interior de outro estado brasileiro, assim, mesmo que já tenham sido investigados diferentes casos de variação, não temos uma descrição completa dos falares dos brasileiros. Além disso, a imensa extensão territorial do Brasil dificulta essa descrição total, a exemplo do fato, foram realizadas inúmeras tentativas de concluir um mapeamento dos falares do Brasil, como proposta do projeto NURC (pesquisa sobre a norma urbana culta), arratando-se por muitos e muitos anos, fazendo com que, em cada tentativa de concluir a pesquisa, os pesquisadores encontrassem outras mudanças dos falares em processo contínuo, interminável. Vejamos um exemplo concreto: a pronúncia de palavras, como circuito; fortuito; gratuito; intuito, pronunciadas pela elite linguística, pelas classes sociais mais altas, como ditongos decrescentes, mas, contrariamente, há algumas comunidades de fala, pertencentes a camadas populares com menor instrução, ou até mesmo com instrução, que não estão preocupadas com a rigidez da norma culta. Determinados grupos sociais jamais pronunciam essas palavras como ditongos, transformando-as em hiatos: "circuíto"; "fortuíto", "gratuíto" e "intuíto", cabendo ao professor de Língua Portuguesa – perante tais disparidades de pronúncia – a tarefa de mostrar a prosódia da norma culta, amparado por seus conhecimentos de Fonética e de Fonologia, ao mesmo tempo em que ensina a seus alunos sobre adequação linguística e de contexto ao falar sobre outras variantes, distantes da norma culta tida como padrão.
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Afora os problemas de prosódia apontados, ainda sob o enfoque da variação linguística, há uma infinidade de processos fonológicos aplicados pelo falante à sua fala, visando minimizar, conforme Stampe (1972), dificuldades de pronúncia e de fala. Como exemplo de processos usados por falantes de Língua Portuguesa, é possível identificar processos de: apagamento de sílabas átonas: "fiím" e "padim" para "filhinho" e "padrinho", "niforme" por uniforme; harmonização vocálica, como ocorre em "ríi" e "fríi", para "rio" e "frio"; harmonização consonantal, como acontece em "chalchicha" e "degote", por "salsicha" e "decote"; monotongação, como se realiza em "poliça", por "polícia"; substituição de líquida, como é comum ocorrer em "frecha" e "prano", por "flecha" e "plano"; africação, como acontece em algumas regiões, em "otcho" por "oito" e "petcho" por "peito"; processos de acréscimo, como é frequente em "esmagrecer", "ingripado", "alevantar", por "emagrecer", "gripado" e "levantar"; palatalização de semivogal, como se realiza em "desmalhar" e "malhor" por "desmaiar" e "maior"; despalatalização de líquida, como ocorre com certa regularidade em "mulé" por "mulher", “culé” por “collher; semivocalização de líquida: "míio", "famíia", "paia", "muié" por "milho", "família", "palha" e "mulher". Diante de tais processos e de muitos outros aplicados pelo aluno-falante em sala de aula, o professor de LP terá de analisá-los e, após interpretação adequada de cada situação delineada na fala de seus alunos, deverá orientá-los no sentido de que dominem outros registros de fala necessários em situações mais formais, momentos que exigirão do falante uso de língua culta.
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O Ensino de Língua Portuguesa como Segunda Língua (L2) Outra rica possibilidade de uso dos conhecimentos de Fonética e de Fonologia, voltados ao ensino de Língua Portuguesa, é quando lidamos com situações de ensino de segunda língua, considerando que esse é um contexto profícuo ao uso da Fonética e da Fonologia. Ao professor de Língua Portuguesa cabe, na escola pública ou privada, turmas entre 30 e 40 alunos ou mais e entre esses, com facilidade, encontram-se alunos, cuja língua materna não é o Português. Perante situações de ensino de Língua Portuguesa como língua estrangeira, certamente, os conhecimentos de Fonética e de Fonologia serão de extrema valia, diminuindo dificuldades pedagógicas, constituindo poderoso auxiliar do professor, que terá de ensinar o idioma em muitas comunidades e grupos de fala - não como primeira língua, mas como segunda língua, como L2, tendo de lidar simultaneamente com o ensino de LP e com todas as implicações e dificuldades que o ensino de línguas estrangeiras traz ao professor e ao aluno. Vejamos casos concretos de ensino de Língua Portuguesa com nítida interferência da segunda língua do aprendiz. Em cidades interioranas de colonização alemã, como Santa Rosa, Frederico Westephalen, São Leopoldo ou de colonização italiana, como Caxias do Sul, Garibaldi, Bento Gonçalves, todas no Rio Grande do Sul, é fato cotidiano o professor deparar-se com alunos com falares carregados com o "acento" da língua materna, frequentemente alemão ou italiano, línguas aprendidas geralmente antes do Português. Nesses casos, quando a característica linguística diferenciadora for coletiva, marcando determinado grupo, essa diferença pode se tornar menos saliente, tendo em vista que o falante busca identidade prosódica O que a distância revela
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comum ao grupo a que ele pertence, tornando-se pouco visível ou perceptível dentro do grupo falante, no entanto, quando um desses falantes migra para centros urbanos maiores, sofrerá discriminação linguística visível. E, mais uma vez, esse falante buscará se identificar com a fala do grupo em que está inserido no momento, em uma clara e consciente procura de identificação com essa nova comunidade de fala. É, nessas circunstâncias, que o professor de LP deve atuar, tendo um amplo espaço para minimizar o choque da mudança de um grupo de fala para outro, realizando trabalho paralelo em sala de aula, mostrando a esse aluno as diferenças fundamentais de sua fala para a do grupo. Tais diferenças se concentram principalmente na "altura" de sua fala e em outras características salientes na produção de vogais e de consoantes, pronunciadas de modo diferente dos demais falantes daquele grupo. Esses falantes, de modo geral, falam mais alto do que as camadas urbanas de centros maiores, para isso sobrecarregam acentos secundários e finais de palavras, dando características diferenciadoras ao contorno melódico do Português, pois geralmente alongam os finais de palavras e apresentam posições diferenciadas dos órgãos fonatórios para a emissão de vocóides e contóides da LP, como é o caso do [l] pós-vocálico na fala de descendentes de italianos, falantes de Língua Portuguesa como segunda língua, que falarão o fonema /l/ como um contóide no Português que, em uma palavra como "caldo', o produzirão como alveolar ['kaldu], registrando forte ocorrência, principalmente na região Sul do Brasil, enquanto a maioria dos falantes nativos produzirá esse fonema de modo semivocalizado, como em ['kawdu] em grande número de estados brasileiros. 16
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Outro grande desafio de pronúncia para esses falantes de LP como L2 é o referente às vibrantes –R/ e /~r/, respectivamente fonema vibrante uvular e vibrante alveolar e o fonema /r/, um fonema alveolar simples, realizado apenas com uma rápida batida da ponta da língua. Assim, uma palavra como "aranha", com um erre simples – substantivo – será pronunciada "arranha" [a~rana], com /~r/ vibrante e "arranhar", produzido com /~r/ vibrante – verbo –, será produzido como "aranha" [a^rana], como um /r/ simples, desaparecendo, desse modo, qualquer traço distintivo entre o substantivo e o verbo. A dificuldade descrita nesse exemplo se deve a problema fonológico e não a, fonético. Os falantes, cuja primeira língua (L1) é o Italiano, como no exemplo acima, possuem sistema fonético com dois erres, o forte [~r ]e o fraco [^r], mas o fato que distingue o falar Italiano do Português, com referência às vibrantes, não é a presença ou a ausência de [r], mas a sua distribuição. Enquanto no italiano o erre simples, fraco é possível em início de palavra, sendo uma palavra como "recife", produzida como [^ricifi], no Português, há restrição na distribuição fonológica do [^r] "flapping" em contextos de início de palavra, ocorrendo somente erre forte nessa posição. Por essa razão, o problema com as vibrantes, enfrentado por falantes de LP como L2, é fonológico e não fonético, pois ele reside na distribuição das vibrantes e nos contextos proibidos ou permitidos para esse segmento e não na presença ou ausência de vibrantes, considerando que ambas as línguas as possuem. Em se tratando de alunos falantes de mais de uma língua, principalmente em centros urbanos, é comum encontrarmos alunos bilíngues e até mesmo trilíngues, que, ao fazerem uso da linguagem cotidiana, registram comumente em sua fala interferências
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linguísticas múltiplas, cuja fonte não se origina unicamente na interferência baseada na língua materna. Nessas circunstâncias, portanto, o conhecimento de Fonética Geral e de Fonologia, será extremamente relevante, permitindo ao professor a resolução eficiente dos problemas linguísticos surgidos em sua classe de Língua Portuguesa.
A Aplicação da Fonética e da Fonologia à Alfabetização Além dessas situações, a Fonética e a Fonologia têm significativa aplicação à alfabetização das séries iniciais. É sabido que o período de desenvolvimento da alfabetização requer elevado conhecimento de Fonética e de Fonologia do professor alfabetizador, no caso, os professores que ensinam Língua Portuguesa até aproximadamente a sexta série. Quanto ao emprego da Fonética e da Fonologia nas séries iniciais, são previsíveis algumas discussões em torno das dificuldades ortográficas, tanto do aluno, diante da falta de correlação entre fonemas e letras, quanto do professor, no que concerne ao discernimento das dificuldades de escrita do aluno em fase inicial de alfabetização. O aluno infringe alguns princípios relativos à língua escrita quando produz texto escrito, sendo comum, nessa fase, a ausência total ou parcial de correção ortográfica em sua escrita. A interpretação de falhas no desenvolvimento de escrita, considerada erros por muitos, é de responsabilidade do professor, para que posteriormente possa orientar o seu aluno no processo de desenvolvimento de escrita. A exemplo dessa prática, há a ocorrência de discrepância entre a correspondência de fonemas e de letras, que frequentemente possuem mais de uma representação, como é o caso dos fonemas /s/ ou /z/ em Língua Portuguesa. Assim, o professor alfabetizador 18
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necessita, além de saber alfabetizar, deve possuir conhecimento sólido sobre a escrita do Português e de seus meandros fonéticos e fonológicos.
O Papel do Professor de Língua Portuguesa Perante os Desvios de Fala Afora as situações de conflito pedagógico, levantadas para o ensino de Língua Portuguesa, mais inusitadas, mas nem por isso, inexistentes, são as situações de desvios fonológicos, apresentadas por alguns alunos de Português. Nesses casos, cabe também o uso da Fonética e da Fonologia para que o professor possa identificar alunos que apresentem algum tipo de desvio na fala ou na escrita. Tais problemas podem ter implicações fonéticas ou fonológicas, e não ser originados por situações de variação linguística, mas por dificuldades no planejamento da fala no nível mental, uma falha cognitiva na organização do sistema fonológico, que ocorre na distribuição e na combinação de fonemas de cada língua, ou na execução de determinado som, com problemas no nível articulatório, no âmbito fonético para a produção de determinados fonemas. Vale ressaltar que o desvio fonológico ocorre quando acontece uma falha cognitiva na aprendizagem de determinado sistema fonológico. Em outras palavras, o sujeito organiza o seu sistema fonológico de modo diferente do que é usual aos demais falantes. Segundo Grunwell (1981, p.9), desvio fonológico é uma desordem linguística manifestada pelo uso de padrões anormais como meio de falar a linguagem em uma dada língua. Ainda para Grunwell (1980, p. 5; 1981, p. 3-4), as crianças que não apresentam impedimentos articulatórios e mesmo assim não realizam contrastes fonológicos, apresentam desvios fonológicos evolutivos. Por essa
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definição, a criança portadora de desvios é capaz normalmente de produzir todos os fonemas de seu sistema fonológico, o que ela não consegue realizar com sucesso é a seleção, a combinação ou o contraste adequado desses fonemas. O falante que apresenta semelhante problema costuma estabelecer as próprias regras fonológicas, com sistemas elaborados e com refinada organização, todavia, frequentemente com discrepâncias e idiossincrasias com relação ao sistema fonológico coletivo. A fala de tais falantes é peculiar e individual, diferenciando-se dos problemas linguísticos acarretados por situações variacionistas ou ainda por contextos patológicos, já que o sujeito com desvios fonológicos em sua fala ou escrita, é saudável tanto emocional quanto fisicamente,
não
apresentando
impedimentos
de espécie alguma para o seu desempenho linguístico. É possível que determinado aluno apresente substituições, omissões e
apagamento
de
fonemas,
processos
frequentes nos desvios. Tais processos interferem no sistema fonológico do falante, ocasionando inúmeras dificuldades articulatórias. Vejamos alguns exemplos: "rédua" para régua; "mátina" para máquina; "pimavera" ou "plimavera" para primavera ou ainda "apacasizeilo" por abacaxizeiro; "sinelu" por chinelo etc. É necessário salientar também que um falante com desvio apresenta estilo cognitivo particular na organização de sua fala. Em tais casos, o professor de Língua Portuguesa avaliará a gravidade do desvio, tomando como parâmetro o grau de inteligibilidade da fala de seu aluno. Conforme Da Silva (1986), quanto menos inteligível a fala de um falante, mais severo será o desvio apresentado. Diante de situações dessa
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natureza, se o professor encontrar alunos com desvios fonológicos em sala de aula, não será de sua responsabilidade tratá-los, mas será tarefa sua encaminhá-los a serviço especializado para tratamento de problemas de fala ou de escrita, dando orientação aos pais ou responsáveis pelo aluno. Por fim, outros usos e aplicações da Fonética e da Fonologia serão possíveis às questões levantadas, mas, sobretudo, uma será referendada: a certeza de que os conhecimentos fonéticos e fonológicos serão auxiliares poderosos para o ensino de Língua Portuguesa com segurança e com flexibilidade pedagógica. Não podemos nos esquecer de que a fala é o espelho social e cognitivo de cada falante em particular. Pela fala, identificamos e categorizamos positivamente ou negativamente qualquer sujeito falante. Além disso, todo o exercício de cidadania é repassado pela fala, porém só a falantes competentes é dado reivindicar, argumentar,
defender
e
expressar
seus
pensamentos e emoções com sucesso. Por tudo isso, é extremamente relevante o papel do professor de Língua Portuguesa, cabendo a ele, em inúmeras situações de ensino, fazer uso de ciências auxiliares, como a Fonética e a Fonologia, para que seus alunos atinjam níveis de competência linguística em todos os atos de fala, para que não se tornem alvo de preconceitos e de discriminação de determinados grupos sociais.
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Referências DA SILVA, J. V. Os desvios fonológicos à luz dos processos. Tese de doutoramento, Pós-Graduação em Linguística e Letras, PUC-RS. Porto Alegre, RS, (1986). DA SILVA, J. V. "A oralidade e a ortografia: dois pecados capitais do escrito". Interface. DAE, UnB, Brasília-DF, (1993). GRUNWELL, P. "Developmental language disorders at the phonological level" in Jones, Fim (eds). Language disability in children. London: Fitman. (1980). GRUNWELL, P, The nature of phonological disability in children. London: Academic Press, (1981). STAMPE, D. A dissertation on natural phonology. University of Chicago, P.H.D. Dissertation. Unpublished doctoral dissertation. Revised version of 1972a, 1986.
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Capítulo II
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Ensino de Língua Portuguesa: Vamos Pensar em Novas Possibilidades? Francisca Cordelia Oliveira da Silva 1
O mote É comum os professores de Língua Portuguesa (LP) ouvirem de seus alunos que as aulas são enfadonhas, repetitivas e que, todo ano, os mesmos conteúdos são estudados e da mesma forma. De fato, isso, muitas vezes, acontece: centramos nossas aulas em definições, em classificações e em exercícios (mecânicos, repetitivos e padronizados), reproduzindo modelos cristalizados das gramáticas normativas e dos livros didáticos. Como professores de LP, não podemos fugir da obrigação de ensinar LP aos nossos alunos, mas podemos, como sugere Marcuschi (2008, p. 55), valorizar a reflexão sobre a língua, saindo do ensino normativo para um ensino mais reflexivo. E, acrescento, podemos sair do ensino mecânico e pensar em atividades que despertem em nosso aluno o gosto pelo estudo e pelo aprendizado da LP. Como afirma Longo (2012, p. 131), “Hoje já não se ensina mais como antigamente: professor falando e aluno anotando. É preciso rever as formas de ensinar e de aprender, para que sejamos capazes de atender às demandas da sociedade do conhecimento”. Considerando esse cenário, este capítulo tem como objetivo apresentar algumas propostas de atividades de ensino de LP 1 Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Adjunta do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas da UnB. Coordenadora Pedagógica do Curso de Licenciatura em Letras EaD da UnB. Pesquisadora do Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (Cepadic). Áreas de interesse: Produção de Texto (leitura, compreensão, produção e avaliação), Avaliação em Língua Portuguesa e Análise de Discurso Crítica.
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que partem de jogos e de atividades de interação para desenvolver competências linguísticas e comunicativas em alunos de qualquer fase da educação básica. Apresentaremos algumas sugestões como uma forma de despertar o olhar do professor para aquilo que faz parte de seu contexto e que pode ser usado como instrumento de ensino em sala de aula. Além disso, ao final, exporemos uma série de instrumentos disponíveis gratuitamente na internet, que podem ser o ponto de partida para o professor pensar e/ou repensar suas aulas. Entretanto, é importante ter sempre em mente que não há receitas para dar (boas) aulas. Aqui serão apresentados exemplos que podem ou não ser aplicados, dependendo de vários fatores, como: idade dos alunos, série em que o professor atua, disponibilidade de materiais, entre tantos outros obstáculos que podem surgir do cotidiano escolar.
Alguns conceitos Para começar, é relevante que pensemos em alguns conceitos. Os dois primeiros são praticamente indissociáveis: ensinar e aprender. Ensinar é “1. indicar o rumo a; orientar, doutrinar, educar. [...] 2. Dar aula (de); dar lições a; lecionar [...]. 3. Instruir por meio de experiência [...]. 4. Indicar, apontar, mostrar” (ABL, 2008, p. 503). Como se vê pela definição, ensinar é algo que envolve uma série grande de atividades, todas de cunho muito sério: doutrinar, instruir, orientar. No entanto, sabemos que “dar aulas” não necessariamente significa ensinar, uma vez que a simples ação de ministrar conteúdos não tem como consequência direta o aprender e o compreender que levam ao entendimento da língua e ao desenvolvimento de competências; ou conforme propõe Marcuschi (2008, p. 55), ao trabalho que parte “[...]da palavra ao texto e deste para toda a análise e produção de gêneros textuais”. 26
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Então, considerando que nem todo ensinar implica aprender, vejamos este segundo conceito: aprender é “1. Adquirir conhecimento de [...]. 2. Reter na memória” (ABL, 2008, p. 152). Assim, enquanto o ensinar envolve uma série de possibilidades, de caminhos viáveis para chegar a um objetivo; o aprender, conforme a definição, resume-se às ações. Entre ensinar e aprender estão os sujeitos atores desse processo: aluno e professor; mas não somente eles, estão também as ferramentas, os métodos, as metodologias, as técnicas (e tantos outros nomes possíveis) que fazem a mediação entre esses atores que, no final, têm como objetivo desenvolver competências. Bordenave e Pereira afirmam que: a aprendizagem é um processo integrado no qual toda a pessoa (intelecto, afetividade, sistema muscular) se mobiliza de maneira orgânica. Em outras palavras, a aprendizagem é um processo qualitativo, pelo qual a pessoa fica melhor preparada para novas aprendizagens. Não se trata, pois, de uma aumento quantitativo de conhecimentosmas (sic) de uma transformação estrutural da inteligência da pessoa. (2004, p. 25)
Ao pensar sobre as estratégias que estão envolvidas no processo de ensino-aprendizagem, Bordenave e Pereira (2004, p. 41) apontam três conjuntos de fatores que afetam esse processo. a) Quanto ao aluno, os fatores são: motivação para aprender; existência de conhecimentos prévios sobre o assunto; boa relação com o professor e atitude de disciplina frente aos estudos. b) Quanto ao assunto, os fatores são: a estrutura do assunto, ou seja, seus componentes e suas relações; os tipos de aprendizagens requeridas e a ordem em que as informações são apresentadas. O que a distância revela
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c) Quanto ao professor, os fatores são: o uso de estímulos relacionados ao ambiente; a competência para dar instruções claras; a capacidade de informar ao aluno sobre o tema a ser aprendido e sobre seu progresso; a boa relação com os alunos e sua atitude frente à disciplina ministrada (mostra importância, relevância, aplicabilidade?). Ao analisar o conjunto de fatores, vemos que o ensinoaprendizagem
envolve
fatores
humanos,
comportamentais,
ambientais e metodológicos. Segundo Cerutti (2012, p. 66), “A ideia de que o aprendizado em sala de aula precisa ser mais prático do que teórico já é antiga, mas se torna sempre um ponto difícil de entendimento para o professor fazê-lo de fato: afinal de contas, como aplicar de maneira prática uma matéria ainda não vista” em uma turma que tem dificuldades com aquela disciplina em particular. Segundo a autora, nesses casos, a melhor opção é tornar o aprendizado lúdico, chamando a atenção dos alunos para um conteúdo que poderia ser de grande dificuldade. Vale aqui ressaltar que o lúdico é definido pela ABL (2008, p. 789) como aquilo que se refere a jogos, a brinquedos e a divertimentos. E muitos professores “torcem o nariz” para propostas que envolvam esse tipo de atividades por entender que elas efetivamente não geram conhecimento. Entretanto, conforme assevera Cerutti (2012): Dependendo da faixa etária dos alunos, a implementação de competições entre grupos escolhidos pelo professor é uma ótima forma de fazer com que eles desejem aprender - o que é o fator que mais ajuda, ou impede, na hora do aprendizado efetivo. Uma vez estabelecida uma competição, com alguma forma de prêmio, seja uma nota mais alta ou mesmo um pacote de balas, os
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alunos são estimulados a entenderem a matéria e a dedicar-se aos estudos. (CERUTTI, 2012, p. 66)
Pensando em tornar esse cenário, por alguns momentos, mais ameno, vejamos, então, três possibilidades de ensinar LP de forma mais lúdica.
Ditado + cópia + grafia + ortografia = torto A primeira sugestão é um jogo chamado Torto, normalmente encontrado em revistas de passatempo ou em cadernos de atividades de jornais. Ele é composto por linhas e colunas de letras que devem ser combinadas para formar palavras. A intenção é formar o maior número de palavras e com o maior número de letras possível. Mas a formação das palavras deve obedecer a uma regra, como se pode ver nas orientações do jogo apresentadas abaixo:
Figura 1: Regras do Torto Torto Esse sensacional passatempo consiste em encontrar o maior número de palavras no diagrama de letras. Você forma palavras seguindo em todas as direções sempre ligando as letras em sequência, sem pular. Anote as palavras que for encontrado. Só valem palavras de QUATRO letras ou mais. Neste nós damos 30 palavras na solução. Se formar 35 - Você tem um bom vocabulário; encontrando 40 - Puxa você fala difícil heim?! Encontrando mais de 50 - Você e um dicionário ambulante.
Fonte: http://shulyeja.blogspot.com.br/. Acesso em 22 jul.2013.
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Uma vez que o aluno tenha entendido as regras, ele encontrará o seguinte esquema de letras:
Figura 2: Modelo de Torto Exemplo:
Raio - Rela - Voto, e assim por diante...
C
O
I
R
T
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V
O
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H
M
G
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S
O
I
O
M
A
R
O
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S
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O
N E V
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A T I
Fonte: http://shulyeja.blogspot.com.br/. Acesso em 22 jul.2013
E, com base nas orientações, deve formar o maior número de palavras que conseguir. Nas orientações, é informado de que as palavras formadas devem ter, no mínimo, quatro letras, mas essa orientação pode ser revista pelo professor, dependendo do nível de sua turma: para um nível maior ou menor de dificuldade. Assim, quanto maior for o número de linhas e de colunas, maior será a quantidade de palavras que podem ser formadas. Em atividades como essa, o professor pode aproveitar para trabalhar habilidades relacionadas à sistematização da ortografia, ao uso do dicionário, ao trabalho com sinonímia e antonímia, entre outras possibilidades. Essa é também uma ótima opção para fugir do ditado de palavras e de outros exercícios mecânicos de sistematização da ortografia, como a cópia que, para o aluno, é uma atividade enfadonha e sem finalidade clara. Caso seja o foco do docente naquele momento, ele pode ainda utilizar as palavras encontradas para motivar a produção de textos coletiva ou individual ou para trabalhar ordem alfabética. As opções são inúmeras. 30
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Um ponto que pode desmotivar o professor a desenvolver uma atividade como essa é pensar que, ao ultilizar um jogo, o aluno não está aprendendo. Cabe, então, ao professor deixar claro para o aluno qual é o objetivo dessa atividade e como ela reverterá em aprendizagem. Retomando Bordenave e Pereira (2004), é importante que o professor passe instruções claras sobre o que deve ser feito, como deve ser feito e para que deve ser feito. Na mesma linha de pensamento, Kleiman (2008, p. 10) afirma que “[...]para construir um contexto de aprendizagem mediante a interação, o aluno deve conhecer a natureza da tarefa e deve estar plenamente convencido de sua importância e relevância” e esse é papel do professor. Um segundo ponto que pode desmotivar o professor a desenvolver a atividade é o aspecto material: onde conseguir o jogo? Como reproduzi-lo? O jogo é encontrado em revistas de baixo custo, em jornais e na internet. Pode ser xerocopiado se possível e, se não há como copiar, o professor pode passar a combinação de palavras no quadro e pedir que os alunos as escrevam em seus cadernos. Assim, na verdade, é uma atividade simples de ser realizada e que, certamente, os alunos adorarão. Além disso, dependendo da faixa etária, os alunos podem trabalhar em duplas ou em pequenos grupos, assim os mais adiantados auxiliam aos que têm mais dificuldades: “[...]muitas vezes, o professor não consegue explicar algum ponto de uma maneira que o aluno entende, mas seus colegas de grupo conseguem pela proximidade etária e também pela facilidade de comunicação entre eles” (CERUTTI, 2012, p. 66). Passemos, então, para a segunda sugestão de atividade.
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Trocando as letrocas Figura 3: Letroca
Fonte: http://fotos.sapo.pt/IBBvgFW33FLrrHbVVRCi/. Acesso 22 jul.2013
O Letroca é um jogo de palavras, disponível na versão online, o qual também pode ser adaptado para ser utilizado pelo professor em sala de aula. Ele tem muitas semelhanças com o Torto e pode ser usado para atividades com as mesmas finalidades. O jogo pode ser localizado em sites de busca, como o Google, e jogado online, caso a escola disponha de computadores para os alunos. Se não for esse o caso, o professor pode acessar o jogo, copiar os dados e levar para sala de aula. Vejamos como ele funciona. A figura 4 apresenta a página inicial do jogo. A figura do equilibrista (que no site é animada) remete ao fato de que o jogador tem um tempo limitado para lidar com as letras e formar todas as palavras.
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Figura 4 – Letroca: Página inicial
Fonte: http://www.fulano.com.br/scripts/JogosOnline/Letroca/Jogo.asp. Acesso 22 jul.2013
A figura 5 apresenta a página inicial em que o jogador pode escolher jogar com ou sem tempo definido, tem informações sobre como funciona o jogo e um placar com as pontuações de jogadores que disputam online.
Figura 5 – Letroca: Como jogar
Fonte: http://www.fulano.com.br/scripts/JogosOnline/Letroca/Jogo.asp. Acesso 22 jul.2013
A figura 6 apresenta o jogo propriamente dito. Ele oferece ao jogador um conjunto desordenado de letras e um número de O que a distância revela
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palavras que podem ser formadas com a combinação dessas letras. No caso da combinação abaixo, há cinco palavras de três letras; nove palavras de quatro letras; uma palavra de cinco letras e uma palavra de seis letras. Na versão online, cada vez que o jogador forma uma palavra errada o programa avisa que aquela não é uma combinação possível.
Figura 6 – Letroca: O Jogo
Fonte: http://www.fulano.com.br/scripts/JogosOnline/Letroca/Jogo.asp. Acesso 22 jul.2013
Figura 7 – Letroca: resultado final
Fonte: http://www.fulano.com.br/scripts/JogosOnline/Letroca/Jogo.asp. Acesso 22 jul.2013
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Na figura 7, temos o resultado final,
momento em
que o programa revela todas as palavras que poderiam ter sido formadas. Então, caso o professor deseje utilizar o jogo, deve saber a combinação de letras, o número de palavras que é possível formar (com sua respectiva extensão) e o resultado. Assim como no Torto, o jogo pode ser passado no quadro e o professor pode escolher o grau de dificuldade com que deseja trabalhar e também a extensão das palavras, tendo em vista que o site oferece muitas possibilidades de combinação. Há, ainda nesse caso, a possibilidade de desenvolver atividades em que haja competição (saudável) entre os alunos, como em uma gincana de LP, por exemplo.
E a literatura? Concordamos com Kleiman (2008) sobre a forma como a leitura deve ser entendida no contexto escolar, segundo a autora: [...] consideramos esta uma prática social que remete a outros textos e outras leituras. Em outras palavras, ao lermos um texto, qualquer texto, colocamos em ação todo o nosso sistema de valores, crenças e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nossa socialização primária, isto é, o grupo social em que fomos criados (KLEIMAN, 2008, p. 10).
Durante a educação básica, “a criança estará se formando como leitor, isto é, estará construindo seu próprio saber sobre texto e leitura” (KLEIMAN, 2008, p. 9). No entanto, é também durante esse período de formação que as crianças se deparam com atividades de leitura que, em vez de estimular o gosto pela leitura, transformam essa atividade/prática social em uma verdadeira tortura, pois os
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livros são lidos por obrigação, ou para preencher imensos encartes literários produzidos pelas editoras, ou, ainda para fazer prova. Mesmo que o aluno tenha gostado da leitura, no final, ela se transforma em algo chato, ruim, cansativo ou símbolo de fracasso, se, por exemplo, ele não consegue tirar uma boa nota na prova. Kleiman alerta que “Para orientar o processo de desenvolvimento de estratégias de leitura eficientes dessa criança, o professor precisa definir tarefas cada vez mais complexas, porém passíveis de resolução desde que ele tenha a orientação de um adulto ou de um colega mais proficiente2” (KLEIMAN, 2008, p. 9). Mas como fazer isso se falta estímulo; se, às vezes, o assunto que o professor escolhe não interessa ao aluno; se a forma como a atividade é apresentada não gera interesse? Penso que aqui cabe uma ideia de Rubem Alves (1999), para o autor, a literatura não deve ser encarada como uma forma de comunicar saberes, mas de comunicar sabores. Para ele, as aulas de literatura, muitas vezes, apenas conseguem matar o gosto pela literatura nos alunos, preocupando-se com avaliações e esquecendose de despertar no aluno o prazer, o gosto pelo que lê. Concordando com Alves (1999), penso que uma boa forma de despertar o gosto pela leitura seja pensando em atividades em que a leitura se reverta em reflexão, em deleite, em prazer por conhecer novos mundos. Temos de pensar em atividades que tornem o ato de ler uma fonte de alegrias e não uma fonte de tristezas. Para isso, sugerimos que, ao solicitar a leitura de um livro, o professor primeiro prepare a turma para receber aquela leitura, 2 Grifo meu.
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faça uma bela propaganda do livro, mostre porque ele será uma boa leitura, porque será importante dedicar-se a ele. Ademais, conforme analisa Silva (2006, p. 85), muitas vezes, o professor seleciona para a leitura livros ou autores de séculos passados; livros e autores que, em sua maioria, são objeto de estudo no curso de Letras, ou seja, a seleção é feita de acordo com o gosto e a visão de mundo do professor. Esse tipo de postura deve ser revista se o professor tem o desejo de despertar em seus alunos o gosto pela leitura. Em segundo lugar, professor precisa pensar em formas não formais de “avaliar” a leitura dos alunos. Geralmente, o professor quer fazer prova para saber quem leu e quem não leu, mas pode fazer isso de outras maneiras. Por exemplo, pode pedir que, ao final da leitura, cada aluno elabore dez cartas (como cartas de baralho) com dez perguntas sobre o livro. Essas podem ser perguntas abertas ou de múltipla escolha, por exemplo:
Pergunta aberta: Qual o nome da amada de Dom Quixote? ________________________________________________________ ________________________________________________________ ________________________________________________________
Pergunta de Múltipla Escolha: O nome do companheiro de Dom Quixote era: a) ( ) Cavaleiro Solitário. b) ( ) O cavaleiro da Triste Figura. c) (
) Miguel de Cervantes.
d) (
)Sancho Pança.
e) (
)Rocinante.
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O ideal é que o professor analise antes as perguntas e as respostas preparadas pelos alunos para evitar, por exemplo, que a mesma pergunta seja feita várias vezes ou que o aluno faça perguntas com base em leitura equivocada; ou pode até mesmo pedir que os alunos preparem suas perguntas durante o período da aula, assim ele acompanha o processo de produção e pode ajudar para que as perguntas e as respostas fiquem claras, coerentes e corretas. Nesse momento, o docente já pode verificar a compreensão que os alunos tiveram da leitura e reconsiderar o número de cartas produzidas pelo alunos, se julgar necessário. Ao final, o professor promove um QUIZ sobre a leitura do livro, ou seja, um jogo de perguntas e respostas no qual quem pergunta e quem responde são os próprios alunos. Nesse caso, regras claras devem ser desenvolvidas e esclarecidas antecipadamente para evitar conflitos. Dessa forma, na hora de “avaliar/ verificar” a leitura feita pelos alunos, no lugar de uma prova, há um jogo de perguntas e respostas em que o professor estabelece as regras e faz a mediação dos possíveis conflitos. Nessa perspectiva de trabalho com a leitura, o professor pode ainda ter contato com as várias leituras realizadas pelos alunos, com base em suas experiências de mundo, em seus conhecimentos e suas percepções, pois “[...] a percepção [...] é individual. Não percebemos tudo o que vemos, não reagimos da mesma maneira ante um mesmo quadro ou imagem” (KLEIMAN, 2008, p. 33). Nesse sentido, evitamos a leitura engessada em que somente a percepção e a resposta do professor são corretas e a
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leitura do aluno é desprezada. Ou ainda, como tão bem propõe Marisa Lajolo (apud GERALDI, 2006, p. 91): Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra prevista. Marisa Lajolo (apud GERALDI, 2006, p. 91).
Uma vez apresentadas essas sugestões, partamos, então, para a apresentação de um leque de possibilidades que deve ser explorado pelo docente a fim de aprender mais, de atualizar-se, de rever suas práticas e de melhorar ainda mais suas aulas.
Novidades do mundo virtual Além da possibilidade de pensar em atividades como as mencionadas, o professor tem ao seu alcance, no mundo virtual, uma infinidade de ferramentas, muitas delas gratuitas, que podem ser usadas para dinamizar suas aulas, assim o professor precisa, como apontam Mercado e Mercado (2012), acrescentar os avanços tecnológicos à sua postura investigativa e criativa. Trataremos de algumas dessas possibilidades. Blogs podem ser um recurso interessante para dar continuidade às discussões, aos debates e às análises iniciadas em sala de aula. “Os blogs podem conter desde informações complementares aos temas em andamento até textos de opinião produzidos pelos alunos” (CARNEIRO, 2010, p. 32). Ademais, um blog pode levar a outros em que novas ideias e novos temas podem ser encontrados e explorados. O que a distância revela
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Ainda de acordo com Mercado e Mercado (2012, p. 45), “o uso de blogs permite ampliar as possibilidades de criação coletiva e aproximação de alunos e professores, apresentando-se como uma das principais contribuições para o processo de ensino e aprendizagem”. Além disso, em seu estudo, os autores ressaltam ainda que os “blogs vêm se transformando em importantes repositórios de informações, em filtros de avaliação, interpretação e indexação dessas informações, em ambientes da construção cooperativa do conhecimento” (p. 46). No campo educacional, Silva e Albuquerque (citados por MERCADO e MERCADO, 2012, p. 49), listam categorias de blogs educacionais. •
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•
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Blogs de professores, utilizados para publicar orientações, textos, vídeos, imagens, animações, referências bibliográficas e links. Blogs de alunos, que funcionam como portfólios, reunindo produções que são utilizadas pelos professores como objeto de avaliação. Blogs de instituições educativas, voltados à produção e à socialização de conhecimentos sobre temas específicos. Blogs de grupos de pesquisa, que reúnem pessoas de comunidades científicas diversas para interlocução, para articulação de suas pesquisas, para divulgação, para análise de resultados e para avaliação de textos.
Cabe, então, ao professor despir-se de suas inseguranças, deixar de lado os velhos modelos, apropriar-se da tecnologia e usá-la em seu favor e em favor do aprendizado de seus alunos. Outra ferramenta que pode ser utilizada pelo professor para repensar sua prática docente é o Portal Domínio Público. 40
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É um ambiente público no qual existem vídeos, músicas, textos clássicos da literatura nacional, como a obra completa de Machado de Assis, de Fernando Pessoa e de Joaquim Nabuco; um amplo banco de dissertações e de teses; um acervo de literatura infantil e de publicações sobre educação e até mesmo uma ferramenta de acesso à música erudita e aos hinos brasileiros. Todo esse material pode ser acessado e baixado gratuitamente. O endereço do portal é <http:// www.dominiopublico.gov.br>. O portal do professor é outra possibilidade de pesquisa para o professor interessado em estudar e em pesquisar novas práticas. O endereço de acesso é <www.portaldoprofessor.mec.gov. br> e, segundo seus criadores, é resultado de uma parceria entre o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência e Tecnologia, para apoiar os processos de formação dos professores brasileiros e enriquecer a sua prática pedagógica.
Figura 8 – Portal do Professor
Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/jornal.html
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O Portal do professor possui material multimídia em abundância (recursos educacionais, cadernos didáticos, acesso a sites temáticos e à TV Escola); além disso, possui uma aba chamada Espaço da Aula em que estão disponíveis sugestões de aulas, orientações sobre como montar aulas e um espaço para que o professor publique suas aulas para trocar experiências com outros docentes. Completando o espaço, há ainda o Jornal do Professor, um ambiente para Cursos e Materiais e espaços diversos para troca de experiências, apresentação de problemas e busca coletiva de informações. (CARNEIRO, 2010). O
Banco
Educacionais
Internacional
de
Objetos
(http://objetoseducacionais2.mec.
gov.br/) é parte do Programa ProInfo3 e garante acesso
a
materiais
pedagógicos
como
áudios, vídeos, mapas, animações e softwares educacionais. O diferencial dessa ferramenta é que ela oferece materiais para os diferentes níveis de ensino: educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, educação profissional e educação superior. De acordo com informações do portal, o banco configura-se como um repositório que possui objetos educacionais de acesso público, em vários formatos e para todos os níveis de ensino. Em 2013, o banco possui 19.663 objetos publicados.
3 É um programa educacional com o objetivo de promover o uso pedagógico da informática na rede pública de educação básica.O programa leva às escolas computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais. Em contrapartida, estados, Distrito Federal e municípios devem garantir a estrutura adequada para receber os laboratórios e capacitar os educadores para uso das máquinas e tecnologias.
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Figura 9 – Banco Nacional de Objetos Educacionais
Fonte: http://objetoseducacionais2.mec.gov.br/
No entanto, uma ressalva precisa ser feita: a internet possui uma quantidade imensa de informações, porém é importante avaliar cuidadosamente essas informações e suas fontes. Sites confiáveis estão ligados a instituições de pesquisa, a órgãos governamentais, a universidades (nesse tipo de instituição há controle da qualidade do que é postado para o público). Alem disso, para o estudo, a pesquisa e o aperfeiçoamento constante, o docente conta ainda com o acesso a textos e a resultados de estudos e de pesquisas em vários órgãos de pesquisa ou ligados à educação. A título de informação, listaremos alguns nos quais o acesso pode ser realizado gratuitamente por meio da internet. • O Instituto de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira (Inep) publica online a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, a revista Em Aberto, uma série documental intitulada Textos para discussão e a web revista Na Prática. Todos esses instrumentos estão disponíveis em <www.inep.gov.br>. O que a distância revela
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•
A Fundação Carlos Chagas(FCC) edita os periódicos: Cadernos de Pesquisa, Estudos em Avaliação Educacional e a coleção Textos FCC, veículos de informação que divulgam a produção de inúmeros pesquisadores. Todos disponíveis em <http://www.fcc.org.br>.
•
A Fundação Lemann apoia e fomenta pesquisa sobre
políticas
educacionais
e
dissemina
informações educacionais relevantes para gestores, professores, formadores de opinião e famílias <www. fundaçãolemann.org.br>. •
Um dos braços da Fundação Lemann é o Portal QEdu: uma plataforma de informações educacionais, aberta e gratuita, em que estão disponíveis informações sobre a qualidade do aprendizado em cada escola, município e estado do Brasil<http://www.qedu.org. br>.
Considerações A intenção inicial desse capítulo, como questiona o título, é pensar novas possibilidades para o ensino de LP. Mas, pensando bem, será que são novas mesmo? Novas ou não: elas estão postas, podem ser avaliadas e acolhidas para a melhoria da prática docente. Agora, como se diz popularmente: “é colocar a mão na massa”. As ideias estão apresentadas, mas são apenas a ponta do iceberg. Há um mundo lá fora, um mundo cheio de informações: tantas que, às vezes, nem conseguimos chegar a elas, porque são muitos caminhos e muitos atalhos, por isso pode parecer difícil optar pelo caminho a percorrer.
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Mas o caminho a percorrer não é o mais importante. O essencial é não ficar parado, é dar o primeiro passo, é sair da inércia, é tentar e, se der errado, tentar de novo, de outras formas. E tentar indefinidamente até dar certo. Se optamos por seguir a carreira docente, temos a obrigação de nos especializar nela, de buscar caminhos, de nos fortalecer e de não desistir. O que não podemos é usar a desculpa da falta de opção para ensinar pouco ou ensinar mal. No passado, essa desculpa era “aceitável”, tudo era mais difícil. Hoje, não podemos mais pensar em dizer que não temos opções, porque elas estão por todos os lados, nos interpelam e nos intimam a agir. Para concluir, um pequeno trecho de um poema de Cora Coralina que aborda a necessidade que temos de nos fortalecer e 4
de não nos deixar abater pelas dificuldades. É um texto primoroso e devemos lê-lo, de vez em quando, para lembrar porque não devemos desistir nunca: temos muitas roseiras a plantar e muito doce a fazer!
Não te deixes dest��ir... Ajuntando novas pedras e const��indo novos poemas. Recria t�a vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de t�a vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.
4 Disponível em http://pensador.uol.com.br/autor/cora_coralina/. Acesso em 10 ago.2013.
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Capítulo III
LABORATÓRIO DE ENSINO DE GRAMÁTICA: QUESTÕES, DESAFIOS E PERSPECTIVAS Eloisa Nascimento Silva Pilati (UnB)
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Laboratório de Ensino de Gramática: Questões, Desafios e Perspectivas Eloisa Nascimento Silva Pilati (UnB)1
Introdução O presente artigo apresenta um resumo de alguns dos temas tratados na disciplina Laboratório de Ensino de Gramática, ofertada tanto no Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Aberta do Brasil, na modalidade de ensino a distância, quanto no Curso de Letras da Universidade de Brasília, de forma presencial. Nosso objetivo é mostrar de que forma os temas teóricos abordados durante a disciplina de Laboratório podem contribuir para uma nova prática docente em relação à gramática em sala de aula. O artigo está organizado da seguinte forma: na primeira seção serão apresentados aspectos relacionados às mudanças por que vem passando o ensino de Língua Portuguesa no Brasil e as influências dos estudos linguísticos nessas mudanças. Na segunda seção, serão apresentados os resultados da pesquisa de Neves (1990) que trazem uma descrição dos métodos e das técnicas presentes nas aulas de gramática a fim de que se possa diagnosticar os aspectos didáticos da prática docente que precisam ser repensados. Na terceira seção, apresentam-se as teorias utilizadas no Laboratório de Gramática, com vistas a encontrar soluções para os problemas metodológicos enfrentados pelos professores nas aulas de gramática, e a formar professores que tenham uma postura didática inovadora em sala de 1 Eloisa Pilati é professora da Universidade de Brasília, possui doutorado em Linguística pela Universidade de Brasília (2006), atualmente desenvolve pesquisas na área de sintaxe, no âmbito da teoria gerativista, e sobre metodologias de ensino de Língua Portuguesa. Pertence ao grupo Lefog: www.lefog.pro.br, e-mail: eloisapilati@gmail. com
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aula, com foco no aprendizado efetivo dos alunos. Por fim, na quarta seção, são apresentadas três práticas linguísticas que têm o objetivo de promover o conhecimento linguístico explícito e de contribuir para uma nova prática docente.
Contribuições da linguística para o ensino de Língua Portuguesa: da década de 50 à década de 90 De acordo com Ilari (2009), desde finais da década de 50, há publicações sobre questões relacionadas ao ensino de gramática no Brasil. Segundo o autor, em 1957, Joaquim Mattoso Câmara Júnior, um dos eminentes linguistas do País, publicou a obra Erros de Escolares como Sintomas de Tendências do Português no Rio de Janeiro. Nessa obra, Câmara Júnior já traçava um paralelo entre as diferenças da variedade linguística usada no Rio de Janeiro e as predições das gramáticas normativas. Em 1960, inicia-se a introdução da disciplina Linguística nos Cursos de Letras. Até então, ainda segundo Ilari (2009), o ponto alto dos cursos de Letras eram as aulas de Filologia Românica, em que se estudavam textos clássicos, ou seja, o principal momento da formação dos professores de licenciatura era o contato com estudos e análise de textos sob uma perspectiva teórica (filológica e gramatical) e não sob uma perspectiva prática ou didática (como ensinar Língua Portuguesa para estudantes do ensino básico). Com o avanço dos estudos linguísticos nas universidades brasileiras, várias linhas de pesquisa se definem e passam a influenciar a formação de novos professores e educadores. Em 1997, o Ministério da Educação, contando com o auxílio de pesquisadores de várias universidades do País, publica os 50
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Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Tal documento, como o próprio nome indica, tinha o objetivo principal de traçar diretrizes para a educação no país e se configurava, portanto, como um ponto de partida para orientar escolas e professores em relação ao ensino. Em relação ao ensino de Língua Portuguesa, pode-se notar a influência de várias correntes de estudos linguísticos no documento. Um exemplo é a forma como o conceito de linguagem é apresentado no documento, em que são usados termos tais como “sistema de signos” entre outros termos próprios da linguística textual. Os PCNs adotam uma perspectiva sócio-interacionista da linguagem, segundo a qual: a língua é um sistema de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a realidade. Assim, aprendê-la é aprender não só a conhecer as palavras, mas também os seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas do seu meio social entendem e interpretam a realidade e a si mesmas. (PCN, 1998, p. 24)
Em relação ao trabalho docente, o documento propõe atividades de desenvolvimento e de sistematização da linguagem interiorizada pelo aluno, incentivando sua verbalização, assim como o domínio de outras variedades linguísticas utilizadas em diferentes esferas sociais. Uma atividade sugerida, por exemplo, é a comparação nos níveis semânticos, morfológicos e sintáticos de diferentes variedades linguísticas. Por se tratar de um conjunto de diretrizes para a atuação docente, o documento não apresenta alternativas práticas para a implementação das atividades acima mencionadas, principalmente no que concerne ao ensino de gramática. Pela breve apresentação sobre a relação entre as pesquisas linguísticas e atividades docentes vistas acima, pode-se observar que os estudos linguísticos têm sido importantes para o ensino
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de Língua Portuguesa no Brasil e também que ainda há um longo caminho de pesquisas a ser trilhado, principalmente sob o ponto de vista da implementação prática dos aspectos teóricos relevantes ao ensino. A atuação de linguistas foi crucial, por exemplo, na elaboração do conceito de linguagem apresentados nos PCNs. No entanto, como tal documento oficial visava oferecer parâmetros para o ensino, não apresentava formas práticas para que os objetivos ali propostos fossem alcançados, ou seja, não apresentava exemplos práticos de como o professor poderia desenvolver e sistematizar a linguagem interiorizada pelo aluno, como incentivar o domínio de outras variedades linguísticas etc. Não se pode negar que em relação à linguística textual e aos estudos dos gêneros textuais já há uma tradição nas pesquisas relacionadas
ao
ensino.
Não
trataremos
desse tema aqui, pelo fato de estarmos observando questões relacionadas ao ensino de gramática sob o ponto de vista da implementação prática. Em suma, não obstante atestaram-se progressos no ensino de Língua Portuguesa, desde a década de 60, ainda há muito trabalho a ser feito. Principalmente em relação ao ensino de gramática de Língua Portuguesa, parece não ter sido construída uma abordagem que estabeleça uma articulação entre teoria e prática, entre linguística e ensino, de forma que o professor possa colocar em prática as concepções teóricas que lhe foram apresentadas e para que com isso possa ajudar os alunos a alcançarem as habilidades e as competências estipuladas como metas.
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Lacunas metodológicas no ensino de Língua Portuguesa Em pesquisa para investigar como as aulas de gramática vinham sendo ministradas no Estado de São Paulo, Neves (1990) atestou que, nas escolas pesquisadas, há uma divisão nítida do ensino de Língua Portuguesa em três disciplinas, consideradas totalmente distintas: literatura, gramática e redação. Em relação às práticas adotadas pelos professores, a pesquisa atestou que a maioria das aulas consiste na simples transmissão de conteúdos expostos nos livros didáticos. Quanto às atividades propostas, as principais foram: reconhecimento de classes de palavras reconhecimento de funções sintáticas, preenchimento de lacunas, classificação de verbos quanto à transitividade. Para se ter uma noção mais clara, os exercícios sobre reconhecimento de classes de palavras e classificação de funções sintáticas correspondem a 75,56% das atividades realizadas. A pesquisa constatou que a maioria dos professores adotava a seguinte ordem: primeiro a explicação do conteúdo, depois a aplicação prática por meio de exercícios de repetição. Cerca de 80% dos professores chegam à conceituação dos termos por meio da definição. Neves (1990, p. 41) faz o seguinte comentário sobre as práticas docentes adotadas pelos professores de gramática: Não se observa qualquer reserva de espaço sobre procedimentos em uso, sobre os modos de relacionamento das unidades da língua, sobre as relações mútuas entre diferentes enunciados, sobre os propósitos dos textos, sobre a relação entre os textos e seus produtores/receptores...
Em relação ao conteúdo, a autora atesta que as atividades gramaticais são as mesmas, independentemente do nível de ensino, O que a distância revela
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ou seja, o mesmo tipo de atividade gramatical é feito por alunos de diferentes idades e níveis escolares. A pesquisa de Neves, embora tenha sido feita no estado de São Paulo, há vinte anos, revelou com clareza alguns aspectos interessantes das práticas docentes no país, principalmente em relação ao ensino de língua. Como se pode verificar, o ensino de gramática está diretamente relacionado a um único procedimento didático que é a apresentação de conceitos e da elaboração de exercícios. Assim, o que se entende por aula de gramática é que é uma aula em que regras gramaticais são colocadas em práticas, em exercícios, ou espaços são preenchidos. Outras atividades que exijam atividades mentais mais complexas como comparação, argumentação, criação, investigação... não estão entre as exigidas nas aulas de gramática. Algumas observações que podem ser feitas diante do que foi apresentado até aqui é: parece haver uma lacuna na formação de professores de Língua Portuguesa em relação a como transformar seus conhecimentos linguísticos em aulas interessantes, instigantes e que promovam o verdadeiro aprendizado dos seus alunos da Educação Básica.
Laboratório de gramática e novos parâmetros teórico metodológicos para abordar questões gramaticais em sala de aula Como visto nas seções anteriores, não obstante os avanços observados nas questões relacionadas ao ensino de Língua Portuguesa, tais como a entrada de conceitos oriundos da linguística na formulação de diretrizes e de documentos oficiais, os professores de língua, em especial os de gramática, ainda apresentam 54
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dificuldades em relação aos métodos e às técnicas de ensino de língua e na transposição de conteúdos teóricos para situações práticas de sala de aula. Nessa seção, apresentaremos de forma resumida alguns parâmetros para que se possa abordar questões gramaticais em sala de aula e questões de pesquisas a serem feitas segundo esses parâmetros. Uma primeira observação que tem de ser feita ao se falar de ensino é que os professores têm de ter consciência de duas dimensões básicas do ensino: a primeira dimensão diz respeito à necessidade de o ensino promover o desenvolvimento de habilidades mentais complexas e profundas; a segunda é que cada área do conhecimento tem suas características e especificidades, que também devem ser levadas em consideração durante as atividades de ensino e de aprendizagem. Em relação ao ensino de língua, por exemplo, não se pode deixar de lado questões como as de que as línguas possuem estruturas próprias, são combinações de forma e de significado, em que interagem certos traços e valores específicos, como nos fenômenos de concordância nominal e verbal, por exemplo. Na aula de gramática, o professor deve aliar os conhecimentos gramaticais ao desenvolvimento das atividades complexas. Veremos a seguir, de forma breve, algumas questões relacionadas a cada uma dessas perspectivas. Em relação ao conteúdo que será ministrado, o professor deve dominar as especificidades do conteúdo que irá ensinar ao seu aluno. O professor deve entender o que é uma língua, quais são as especificidades desse sistema, quais são as características, que tipos de valores são levados em consideração nas diferentes operações
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sintáticas, morfológicas e semânticas para que possa auxiliar seu aluno a desenvolver seus conhecimentos linguísticos. Em se tratando de ensino de gramática, o professor deve ter clara a abordagem de ensino adotada, para que essa sirva como parâmetro de sua atuação docente. A abordagem deve tentar responder a questões cruciais: O que é uma língua? Como se adquire? Como se ensina? Como se aprende? Além disso, o professor deve levar em consideração que, na escola, o aluno aprenderá uma nova modalidade de expressão linguística: a escrita, e deve estar preparado para ensinar ao aluno as especificidades dessa modalidade. Para que se possa entender os aspectos estruturais da Língua Portuguesa e também o fato de os alunos já entrarem na escola “sabendo” muito da gramática da Língua Portuguesa, adotase na disciplina a perspectiva gerativista de Noam Chomsky (1957, 1975, 1986 entre outros). De acordo com o autor, os seres humanos possuem uma Faculdade da Linguagem, há uma dotação genética para língua, com uma arquitetura especial para lidar com os elementos presentes nas línguas naturais. Em relação à aquisição da Linguagem, o autor defende que esta se dá por meio da interação entre a Faculdade da linguagem e a experiência (input), ou seja, a mente guia a criança no período de aquisição. É pelo fato de as crianças possuírem essa Faculdade da Linguagem que elas aprendem uma língua tão facilmente durante a infância de forma tão espontânea. Lobato (2003) observa que, de acordo com a perspectiva gerativista, a escola não vai ensinar gramática ao aluno, pois o aluno já chega com uma “gramática” adquirida ou em processo de aquisição.
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O processo de aquisição da gramátca de uma língua é algo que acontece com a criança, por meio da gramática universal, sempre com base na exposição aos dados linguísticos. Sendo assim, a escola deve auxiliar o aluno a refletir sobre o que já sabe e sobre o que não sabe em termos de estruturas linguísticas típicas da linguagem (nas modalidades escrita e falada). Considerando que a criança ao ir para escola está no processo de aquisição, como deve ser a exposição aos dados linguísticos? Em outras palavras, que tipo de informação linguística deve ser oferecida para que os alunos incorporem uma nova variedade linguística ou para que aumentem sua proficiência na variedade padrão na escola? Que
recursos didáticos podem ser usados
para que o aluno aprenda a usar seus conhecimentos linguísticos inatos, advindos de situações de oralidade e de informalidade, em estruturas escritas, em uma variedade padrão da língua? Que tipo de dado linguístico pode servir como fonte de discussão em sala de aula? Quais tipos de atividades didáticas podem aliar consciência linguística, reflexão e produção textual? Há procedimentos básicos que podem ser aplicados a vários fenômenos linguísticos? Para responder a essas perguntas, o seguinte quadro é apresentado aos futuros docentes:
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Quadro nº 1 Fala
Escrita Faculdade da linguagem
Faculdade da linguagem
+ conceitos aprendidos
+ input (Conhecimento
(características da variedade
inconsciente de aspectos
padrão, gêneros e tipos
das línguas como: fonologia,
textuais, termos mais formais
morfologia, sintaxe...)
de expressão, organização das ideias, estratégias de argumentação.... )
Conhecimento linguístico explícito Fonte: Elaborado pelo Autora
O quadro tem o objetivo de apresentar, de forma bastante resumida, algumas diferenças entre a fala e a escrita. Ao estabelecer uma relação direta entre a fala e a Faculdade da linguagem, pretende-se mostrar para o futuro professor que a fala é uma capacidade inata dos seres humanos e, sendo assim, ela não precisa ser ensinada em sala de aula (apesar de vários aspectos poderem ser desenvolvidos, tais como conhecimentos para falar em público, fazer apresentações orais...). Além disso, esse quadro pretende despertar no professor a consciência de que seus alunos já possuem um vastíssimo conhecimento gramatical, que envolve aspectos fonológicos, morfossintáticos, semânticos entre outros, mas que tal conhecimento é inconsciente. A escrita, por sua vez, se diferencia da fala por não ser inata. Por esse motivo, deve ser aprendida na escola e, para isso, existem os processos de alfabetização (e letramento) e os processos de prática de
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escrita presentes em toda a educação básica. Além da alfabetização, há várias formas de se expressar por meio da escrita. Tais formas se adequam a diferentes gêneros textuais e cada gênero possui suas características próprias. Essas questões, entre muitas outras, devem ser abordadas e ensinadas na escola. Para estabelecer a relação entre as duas habilidades, há o “conhecimento linguísticos explícito” (termo adotado de Costa et al, 2010). Promover o conhecimento significa explicitar e demostrar aos alunos como funcionam determinados aspectos das línguas humanas, para que os alunos entendam como a escrita funciona, quais os aspectos envolvidos no ato de escrever, para, assim, compreender os elementos que estão em jogo nos diferentes tipos de textos escritos. Segundo Costa et al (2011, p.15) O termo “Conhecimento Explícito” só faz sentido tendo como referência a ideia de que existe conhecimento implícito sobre a língua. Por outras palavras, um trabalho sobre conhecimento explícito assume, de forma inequívoca, que os alunos são falantes competentes, ou seja, utilizadores da língua que mobilizam de forma automática regras gramaticais para gerar e produzir enunciados na sua língua.
Uma pergunta natural, que surge dessa proposta metodológica, é Como tornar o conhecimento linguístico implícito um conhecimento explícito? Para responder a essa pergunta, são adotados os ensinamentos apresentados na obra Como as pessoas aprendem, organizada pelo Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos (2007). Segundo essa obra, para que ocorra a aprendizagem efetiva, é necessário que os estudantes tenham a oportunidade de entender o sentido dos assuntos estudados. Segundo a obra, diversos currículos enfatizam mais a memória que o entendimento.
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Transpondo tais afirmações para a área da gramática, pode-se afirmar que vários conteúdos são apresentados em sala de aula de forma estanque e em forma de regras, seguindo sempre a sequência didática: apresentação do conteúdo e elaboração de exercícios, como apresentado por Neves (2009), na seção anterior. Tal forma de apresentação do conteúdo leva o aluno a pensar que a gramática de uma língua é um conjunto de regras arbitrárias e sem sentido. Para modificar essa prática, os alunos da disciplina de Laboratório de Gramática são motivados a formular sequências didáticas em que os alunos possam entender os princípios e o funcionamento da língua. Na seção 4, serão apresentadas algumas atividades que têm o objetivo de mostrar para os alunos, de forma concreta e lúdica, alguns princípios relevantes para o entendimento do que é uma língua. A seguir, serão apresentados alguns princípios a serem seguidos para que se possa promover o aprendizado efetivo na sala da aula. Na seção 4, será demonstrado como tais princípios foram colocados em prática nas aulas de Laboratório de Gramática. Os três princípios são os seguintes: primeiro: levar em consideração o conhecimento prévio do aluno, segundo: promover aprendizagem ativa e terceiro: fazer com que o aluno compreenda os processos envolvidos, dentro do assunto estudado. Em relação ao primeiro princípio, é defendido na obra Como as pessoas aprendem (2007, p.18) que mesmo os recém-nascidos são aprendizes ativos, que trazem certo ponto de vista para o ambiente de aprendizagem. O mundo que entram não é uma confusão de ecos e burburinhos em que cada estímulo é igualmente saliente. Em vez disso, o cérebro de um recém-nascido dá prioridade a certos tipos de informações: a língua, os conceitos básicos referentes aos números; as propriedades físicas e o movimento de objetos animados e
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inanimados. No sentido mais geral, a visão contemporânea a respeito da aprendizagem é que as pessoas elaboram o novo conceito e o entendimento com base no que já sabem e naquilo que acreditam.
Os professores devem prestar atenção aos entendimentos incompletos, às crenças falsas e às interpretações ingênuas dos conceitos que os aprendizes trazem consigo sobre determinados assuntos. Considerando esse primeiro princípio, é importante mostrar aos alunos o funcionamento da língua humana sob diferentes perspectivas para que o aluno possa compreender o próprio objeto de estudo e os objetivos das aulas de português. Em relação ao segundo princípio, os novos estudos sobre a aprendizagem mostram a importância de promover a aprendizagem ativa (um aprendizado em que o aluno esteja envolvido no processo e em que possa compreender realmente o assunto a ser estudado). Para que haja o aprendizado com o entendimento, é importante que as pessoas aprendam a identificar quando aprendem algo e quando precisam de mais alguma informação. Esse aprendizado ativo requer que, nas práticas de sala de aula, haja momentos para a criação do sentido, para a auto avaliação e para a reflexão sobre o que funciona e o que precisa ser melhorado no processo de aprendizagem. Essas práticas aumentam o grau em que os alunos transferem sua aprendizagem para novos cenários e eventos. Em relação ao ensino de gramática, é importante que as aulas sejam planejadas para que os alunos tenham contato com a língua em uso e para que possam usála efetivamente, para que os alunos possam compreender o que são as diferentes estruturas linguísticas e em que contextos podem usálas. Em outras palavras, os alunos devem experimentar nas aulas de gramáticas as diferentes formas de expressão da modalidade escrita da língua (os diferentes gêneros), não apenas como expectadores, O que a distância revela
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mas como protagonistas do processo de produção textual, para que possam testar seus conhecimentos, analisar formas gramaticais, reconhecer novas formas linguísticas e desenvolver suas habilidades. Somente de forma ativa, poderão ter consciência dos conhecimentos que já possuem sobre formas linguísticas típicas da escrita ou sobre variedades linguísticas. Além disso, poderão, por meio da prática e da reflexão, compreender em quais aspectos estão tendo dificuldade, como melhorar tais aspectos etc. O terceiro e último princípio é o de proporcionar aos alunos o conhecimento dos processos envolvidos. Para desenvolver uma competência em uma área de investigação, os estudantes precisam: a) possuir uma base sólida de conhecimento factual, b) entender os fatos e as ideias no contexto do arcabouço conceitual e c) organizar o conhecimento a fim de facilitar a recuperação e a aplicação. Para o Conselho Nacional de Pesquesa de Estados Unidos (2007, p.20) a capacidade de planejar uma tarefa, de perceber padrões, de gerar argumentos e explicações razoáveis, de fazer analogias com outros problemas está mais intimamente entrelaçada com o conhecimento do que se acreditava antes. Mas o conhecimento de um grande conjunto de fatos desconexos não é suficiente. Para desenvolver competências numa área de investigação, os estudantes precisam ter oportunidades de aprender e compreender. A compreensão profunda do assunto transforma a informação factual em conhecimento utilizável.
Em resumo, os princípios que o professor deve ter em mente para promover a aprendizagem efetiva são os seguintes: primeiro, levar em consideração o conhecimento prévio do aluno, segundo, promover aprendizagem ativa e, terceiro, promover o conhecimento dos processos envolvidos. O professor deve levar seus alunos a: a) aprender a identificar padrões; b) desenvolver 62
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compreensão profunda do assunto; c) aprender a quando, como e onde usar o conhecimento – conhecimento circunstanciado; d) possuir acesso fluente ao conhecimento, e) ter conhecimento do conteúdo pedagógico e f ) aprender com metacognição e para toda a vida.
Colocando a teoria em prática Entre as atividades que são sugeridas e praticadas pelos alunos da Disciplina de Laboratório de Ensino de Gramática para que se possa promover um entendimento sobre o funcionamento da língua e promover a aprendizagem ativa sobre como a língua humana funciona, citam-se as seguintes atividades: a)
oficina sobre a estrutura linguística com material reciclado; b) atividades de revisão textual e de reescrita; c) análise de aspectos gramaticais em poemas e trechos literários. Na Oficina sobre a estrutura linguística com material reciclado, vários temas linguísticos podem ser abordados. O principal objetivo dessa oficina é trazer as estruturas linguísticas para o plano concreto e de manipulação dos estudantes. Por meio dessa atividade, os alunos poderão compreender vários aspectos das construções linguísticas: da formação de palavras à estruturação das sentenças, explorando a relação entre forma e significado. Pode ser feita com alunos de diferentes níveis escolares, pois é uma atividade muito lúdica e divertida. A proposta geral da atividade é que estruturas linguísticas sejam reproduzidas pelos estudantes, usando materiais reciclados de diferentes formatos, cores e texturas. Sugere-se que os alunos usem as diferenças dos materiais para representar diferenças O que a distância revela
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de níveis linguísticos. Por exemplo, diferenças entre radicais e desinências ou sufixos, os diferentes significados decorrentes da união de diferentes sufixos, diferenças entre os planos da morfologia e da sintaxe, relações entre sintaxe e semântica. Por meio da confecção de maquetes, pode-se demonstrar processos de formação de palavras e as diferenças semânticas resultantes do uso de diferentes sufixos, relações entre a morfologia e a sintaxe na construção de períodos, uso da vírgula, uso do sinal grave... entre muitos outros temas. As Atividades de revisão textual e de reescrita são atividades de extrema importância para que o aluno possa reconhecer padrões, colocar seu senso crítico em prática, e aprender a identificar desvios de norma, mas mesmo sendo extremamente úteis, são atividades pouco usadas nas aulas de gramática. Acredita-se que, por meio da revisão textual, o aluno terá acesso a diferentes estruturas linguísticas e poderá avaliar, com a ajuda do professor em um primeiro momento e depois cada vez mais independentemente, textos de diversas naturezas. A revisão textual, que pode ser feita em grupo ou individualmente, serve para que o aluno desenvolva a consciência de aspectos linguísticos que devem ser observados nos textos escritos. Acredita-se que por meio dessa atividade, os alunos serão capazes de acessar base sólida de conhecimento factual, entender os fatos e as ideias no contexto e organizar o conhecimento a fim de facilitar a recuperação e a aplicação nos contextos adequados. A Análise de aspectos gramaticais em poemas e trechos literários, por sua vez, é uma atividade de investigação, identificação e análise dos recursos sintáticos utilizados por poetas em seus textos.
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Nessa atividade, além de poder apreciar diversas produções literárias, os alunos poderão ter contato com formas variadas de criação e de expressão linguística. Essa é uma atividade muito rica para os alunos e requer que seja utilizada a capacidade de análise de fenômenos e o entendimento dos resultados estilísticos advindo de diferentes construções linguísticas. Ao final das três atividades, aconselha-se que os alunos relatem as experiências vividas e as análise feitas por escrito, para que possam desenvolver ainda mais suas habilidades escritas.
Considerações finais O presente capítulo apresentou os principais aspectos teóricos estudados na disciplina Laboratório de Ensino de Gramática e as soluções metodológicas encontradas com base nesses aspectos. Como se trata de uma disciplina que faz parte da formação de professores, há a preocupação em mostrar aos futuros docentes de que forma os estudos linguísticos podem ser efetivamente úteis nas aulas de gramática. O objetivo geral da disciplina é o de formar professores que tenham uma postura didática inovadora em sala de aula e que possam promover o aprendizado efetivo de seus alunos em relação a temas gramaticais relevantes. Para alcançar tais objetivos e promover aulas em que o entendimento seja a prioridade e não a memorização, são apresentadas três práticas linguísticas que têm o objetivo de promover o conhecimento linguístico explícito, e a percepção, e a compreensão de fenômenos básicos nas estruturas da Língua Portuguesa, de forma que tais conhecimentos sejam úteis para o desenvolvimento das habilidades linguísticas e textuais dos alunos.
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PILATI, Eloisa; Naves, Rozana; Vicente, Helena Guerrra; SALLES, Heloísa. Novas perspectivas para a língua portuguesa em sala de aula. Projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade de Brasília, 2011. VICENTE, Helena;
PILATI, Eloisa. Teoria Gerativa e “ensino” de
gramática: uma releitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Verbum: cadernos de pós-graduação, n. 2, 2012, p. 4-14. 2013.
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Capítulo IV
O Estudo do Léxico no Curso de Letras EaD Da UnB Flávia de Oliveira Maia-Pires (UnB) Michelle Machado de Oliveira Vilarinho (UnB)
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O Estudo do Léxico no Curso de Letras EaD da UnB1 Flávia de Oliveira Maia-Pires (UnB)2 Michelle Machado de Oliveira Vilarinho (UnB)3
Introdução Este artigo apresenta a análise feita pela autora e pela tutora da disciplina Lexicologia e Lexicografia 1 e 2, cursada pelos licenciandos do curso de Letras Português, na modalidade a distância, da Universidade de Brasília, financiado pelo programa da Universidade Aberta do Brasil (UaB), criado pelo decreto nº 5.800, de 8 de junho de 2006, a fim de desenvolver a educação a distância, expandindo e democratizando a oferta de cursos de programas de educação superior no País. Os procedimentos metodológicos para a realização desta pesquisa foram: I) leitura do questionário de levantamento de perfil socioeconômico de estudantes, aplicados no curso de Letras EaD/ UnB; II) publicação do fórum de finalização da disciplina em que os 1 Trabalho adaptado da apresentação na modalidade comunicação do I Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa (SIELP), realizado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em 2011. 2 Flávia de Oliveira Maia Pires, fmaiap@gmail.com, é professora do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP) da UnB. É autora e supervisora das disciplinas Lexicologia e Lexicografia 1 e Lexicologia e Lexicografia 2 do curso de Letras EaD da UnB, é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UnB e pesquisadora do Centro Lexterm da UnB. 3 Michelle Machado de Oliveira Vilarinho, michelleprofessora@gmail.com, é professora do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP) da UnB, atuou como tutora das disciplinas Lexicologia e Lexicografia 1 e Lexicologia e Lexicografia. Atualmente é coordenadora de tutoria do curso de Letras EaD da UnB, é doutora em Liguística e pesquisadora do Centro Lexterm da UnB.
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alunos postaram um relato sobre o estudo do léxico, apresentando as relevâncias dos estudos de Lexicologia e Lexicografia 1 e 2 e os pontos que chamaram a atenção deles. As análises que apresentaremos foram feitas com base no método descritivo-analítico. Com base no questionário de levantamento de perfil socioeconômico de estudantes aplicados aos alunos, o corpo discente do curso de Letras do Ensino a Distância da UnB é composto por adultos entre 18 e 35 anos, trabalhadores – com carga horária de 40h semanais ou mais. A maioria são professores de escolas públicas, há também alguns egressos de curso superior presencial. Quando ingressam no Ensino a Distância, os alunos normalmente não possuem experiência com sistemas de educação a distância. Diante do perfil desses alunos e da necessidade de oferecer subsídios teóricos na área do léxico para a prática docente do graduando em Letras, as disciplinas Lexicologia e Lexicografia 1 e 2 visam estudar conceitos a respeito da unidade léxica, proporcionar conhecimentos e reflexões sobre as disciplinas do léxico, apresentar as técnicas de descrição do léxico na organização de obras lexicográficas e desenvolver habilidades e competências para a utilização de dicionários, desde os aspectos introdutórios aos mais complexos. Essas disciplinas são obrigatórias do curso de Letras EaD/UnB e contém atividades em ambiente moodle, com auxílio de aulas interativas a distância e de aulas presenciais. Há leituras e discussões de textos teóricos e de textos analíticos, atividades interativas com debates em grupo por meio de fóruns virtuais temáticos, de exercícios de análise de textos, análise de dicionários e conferência Web.
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Para o desempenho da disciplina, há recursos humanos qualificados, ao contar com o apoio do professor autor, professor supervisor, tutor presencial e tutor a distância habilitados em lexicologia e lexicografia, uma vez que esses professores apresentam em seus currículos conhecimento dessas áreas. Esses atores atuam diretamente na disciplina. Além dessas funções, a equipe envolvida com a oferta da disciplina é constituída por coordenador de EaD da UnB, coordenador do curso, coordenador de tutoria, coordenador pedagógico, coordenador do polo, gestor e secretárias. O professor autor selecionou o material didático, planejou a disciplina e organizou as informações na plataforma moodle. O professor supervisor trabalha com os professores tutores, acompanhando e apoiando o desenvolvimento da disciplina no ambiente virtual. As funções de autor e de supervisor poderão ficar sob a responsabilidade da mesma pessoa, que pode acompanhar a disciplina, conhecendo todas as especificidades de cada oferta, o que possibilita reflexões para futuros ajustes nas reofertas seguintes. O tutor presencial tem como funções o atendimento acadêmico dos discentes nos polos para esclarecer dúvidas, para auxiliar no acesso à plataforma e no cumprimento das atividades no ambiente de aprendizagem. Além disso, eles participam dos encontros presenciais para interação com a equipe envolvida, aplicação de provas e controle de frequência. Eles também se comunicam com os professores das disciplinas, com os tutores a distância, com coordenadores de polo, de tutoria e da licenciatura, visando à realização de atividades do curso.
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O tutor a distância deve acessar a plataforma diariamente para atender às demandas dos alunos, a fim de auxiliá-los, fornecendo-lhes orientações necessárias para o alcance dos objetivos da disciplina. Assim sendo, ele media a comunicação entre o professor e os alunos; acompanha as atividades discentes; apoia o professor da disciplina e o tutor presencial por meio de interação com a equipe de trabalho; atende e orienta os alunos nas questões teórico-metodológicas da disciplina no ambiente de aprendizagem virtual; ministra aula em encontros presenciais. É relevante destacar que o professor autor e o supervisor são selecionados com base em indicação feita pelo Colegiado do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas (LIP) da Universidade de Brasília (UnB). Já os tutores são contratados por meio de processo seletivo, de modo que atenda as exigências, a saber: Ser profissional selecionado pelas IPES vinculadas ao Sistema UAB para o exercício das atividades típicas de tutoria, sendo exigida formação de nível superior e experiência mínima de 01 (um) ano no magistério do ensino básico ou superior, ou ter formação pós-graduada, ou estar vinculado a programa de pós-graduação. (Resolução CD/ FNDE nº 8, de 30 de abril de 2010).
Assim sendo, o discente dispõe do apoio do professor com formação acadêmica na área da disciplina, dos tutores que são professores com formação superior, que possuem experiência na educação, ou são pós-graduados ou pós-graduandos. Desse modo, há 3 (três) professores trabalhando na oferta de cada disciplina. Na medida do possível, o coordenador de tutoria e o professor supervisor selecionam tutores com formação acadêmica na área da disciplina, a fim de que esse profissional possa esclarecer as dúvidas do aluno de forma específica. 72
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As disciplinas Lexicologia e Lexicografia 1 e 2 fazem parte da linha de pesquisa Léxico e Terminologia do Programa de PósGraduação em Linguística da Universidade de Brasília (UnB). Essa linha de pesquisa é desenvolvida no Centro de Estudos Lexicais e Terminológicos (Centro Lexterm) do LIP da UnB, sob a coordenação da Profa. Dra. Enilde Faulstich. A Linha de Pesquisa Léxico e Terminologia tem como centro de seus estudos a análise linguística do léxico e das terminologias científicas e técnicas, assim como a sistematização dos dados em dicionários, glossários, léxicos, visando à comunicação nacional e internacional, primordialmente entre usuários de áreas especializadas. No âmbito das pesquisas da linha, já foram produzidos trabalhos relacionados às diversas áreas do saber com parceiros internacionais. Inclusive, a professora supervisora e algumas das tutoras a distância são membros de projeto de pesquisa dessa linha. É válido acrescentarmos que a maioria dos tutores a distância dessas disciplinas são egressos do curso Licenciatura em Letras Português do Brasil como Segunda Língua (PBSL) da UnB, o qual oferta obrigatoriamente as disciplinas Lexicologia, Semântica e Pragmática Contrastivas e Lexicografia: estratégias de uso de dicionário. Como essas disciplinas apresentam conceitos estudados na Linha de Pesquisa Léxico e Terminologia, os professores egressos do PBSL estão aptos para ensinar os conteúdos das disciplinas do Léxico do curso EaD/UnB.
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Lexicologia e lexicografia: o estudo do léxico Os licenciados estudam noções das disciplinas do léxico, aprofundando conceitos e verificando a prática dentro do contexto de ensino de língua, pois a Lexicologia e a Lexicografia são disciplinas do âmbito da Linguística que se ocupam do estudo do léxico, que pode ser entendido como o “conjunto palavras, também, de uma língua”, conforme Rey Debove (1984, p. 50) definiu. “O léxico, objeto de estudo da Lexicologia, pode ser estudado de acordo com os aspectos fonológicos, morfológicos, semânticos e sintáticos”, de acordo com Maia-Pires (2009, p. 25). Assim, a Lexicologia descreve as palavras da língua, ocupase das estruturas e das regularidades dentro da totalidade do léxico de um sistema individual ou de um sistema coletivo e procura analisar os fenômenos linguísticos concernentes ao léxico da língua comum. De igual modo, averigua a competência lexical dos usuários da língua em análise e tem por finalidade explicar da forma mais adequada o funcionamento do léxico do falante. Tal explicação inclui a estruturação e a categorização lexical e gramatical. A Lexicografia descreve os princípios para elaboração de dicionários, apresenta as significações das palavras (HAENSCH, 1982, p. 3; CABRÉ, 1993, p. 80; FAULSTICH, 1997, p. 82, BIDERMAN, 2001, p. 14). O objetivo da Lexicografia é a descrição do léxico de uma língua. Nas obras lexicográficas, estão registradas as unidades lexicais com variações morfossintáticas e diferentes acepções encontradas na língua. “Na Lexicografia, o corpus é selecionado com base em documentos de diversas fontes, fundamentalmente escritas, e com as formas mais usuais” (MAIA-PIRES, 2009, p. 31).
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O papel da Lexicologia e da Lexicografia no ensino de língua Diante das novas diretrizes do ensino de língua, há a necessidade de incluir os estudos do léxico na formação de professores, uma vez que a dinâmica da língua exige a compreensão de significados no processo de leitura e de produção textual, os quais são fundamentais aos alunos. Portanto, a consulta ao dicionário facilita o desenvolvimento de competências linguísticas, com base nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa. O dicionário apresenta verbetes, conjunto de informações linguísticas e ou enciclopédicas de cada lexema, que podem ser um dos gêneros textuais para trabalhar a linguagem escrita e esclarecer dúvidas de leitura, de ortografia (PCNs, 1997, p. 52-82). Segundo Krieger & Rangel (2011, p. 109): O dicionário é didático, na medida em que traz inúmeras informações sobre o léxico, a língua e a cultura. E, com tal, ajuda o aluno a ler, a escrever, a se expressar bem, oferecendo-lhe informações sistematizadas sobre as palavras, seus usos e sentidos, bem como sobre os aspectos gramaticais.
Como os PCNs prevê a apresentação do gênero dicionário, cabe ao professor saber consultar esse gênero, compreender as funcionalidades do uso do dicionário em sala de aula, o que justifica a necessidade de o graduando do curso de Letras ter de cursar as disciplinas da área do Léxico. Há falta de conhecimento por parte do professor e do aluno sobre o conteúdo do dicionário e de como manejá-lo não contribui com o processo de desempenho linguístico do falante. Desse modo, as informações oferecidas aos usuários não são exploradas em sua plenitude. Por isso, mesmo os PCNs (1997, p. 58)
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tendo registrado que “o manejo do dicionário precisa ser orientado, pois requer a aprendizagem de procedimentos bastante complexos”, ainda se identificam dificuldades de aplicação dos conteúdos disponíveis nessas obras por parte de alunos e professores. Portanto, é necessário preparar esses profissionais de ensino a empregarem a obra lexicográfica em sala de aula, de modo que o aluno seja beneficiado. Como “de 2001 até hoje, os dicionários em distribuição, ora individual com um título para cada aluno, ora em acervos plurais para cada sala de aula, têm integrado o Plano Nacional do Livro Didático” (KRIEGER & RANGEL, 2011, p. 138), o professor deve saber utilizar esse material pedagógico, para que não seja só mais um livro que o aluno deve ter. Assim
sendo,
as
informações
exploradas no dicionário possibilitam que a obra lexicográfica seja instrumento pedagógico para desenvolver competências linguísticas. Esse instrumento pedagógico é mais que um elemento de consulta, quando usado com a orientação adequada, por isso é indispensável conhecimento prévio por parte do usuário ao consultar a obra, e ao professor cabe orientar seus alunos para explorarem o dicionário de modo eficaz. O léxico de uma língua é entendido, “de forma genérica, como o conjunto de todas as palavras que dela fazem parte. Porém, por trás da simplicidade desta definição, esconde-se um semnúmero de problemas e de questões de difícil resposta”, com base em Correia & Lemos (2005, p. 7). Assim, os alunos de letras devem aprender os conceitos envolvidos nas definições de palavra, assim como o processo de formação de palavras, os significados que
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podem apresentar dentro de um contexto e isoladamente, a fim de que esses conhecimentos contribuam para a construção e para o entendimento de textos, seja na forma escrita, seja na forma oral. Além disso, os licenciandos devem saber as noções sobre elaboração e composição de dicionários para utilizá-los como obra de consulta e para selecionar obras relevantes, com base em critérios linguísticos e pedagógicos. Em busca de respostas sobre as informações lexicais de uma língua, destaca-se o dicionário como uma obra de referência sobre o conhecimento lexical. De acordo com Faulstich (2010, p. 172), o dicionário: É livro que dispõe as palavras de uma língua em verbetes, preferencialmente, em ordem alfabética com o significado disposto em acepções e pode apresentar equivalentes em outras línguas. [...] Fornece, além das definições, informações sobre a gramática da língua descrita, bem como sinônimos, antônimos, grafia, pronúncia, etimologia, ou, pelo menos, alguns desses recursos linguísticos.
A fim de ilustrar as funcionalidades e as variações que o dicionário registra, apresenta-se, a seguir, um exemplo de verbete:
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FIGURA 1- EXEMPLO DE VERBETE
Fonte: (FERREIRA, 2009, com adaptação)
No verbete semente do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2009), encontra-se a seguinte estrutura: +palavraentrada, +etimologia, +informação gramatical, +definição, +acepções, +marcas de uso, + remissiva, + exemplo, +nota, +fraseologia. A palavra-entrada registra a ortografia. A etimologia apresenta a origem. A informação gramatical disponibiliza a categoria gramatical e o gênero. Em verbetes de verbos, a transitividade verbal também é apresentada. A definição descreve significados dos lexemas. As acepções oferecem o significado e/ou sentido de acordo com a língua comum ou com a linguagem de especialidade. A marca de uso categoriza o uso das variações linguísticas ou o domínio do saber a que o termo pertence. A remissiva mantém relação léxicosemântica ligada no âmbito do significado ou do significante, tais como: a sinonímia, a antonímia, a hiperonímia, a hiponímia, a 78
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holonímia e a meronímia. O exemplo é elaborado pelo lexicógrafo para demonstrar o uso da palavra em determinado contexto. Em outras obras lexicográficas, o lexicógrafo pode ter empregado abonação, que é contexto do lexema extraído de obras literárias ou de corpus. A nota expõe informação enciclopédia. A fraseologia representa as combinações de formas lexicais e gramaticais mais ou menos fixas, como expressões idiomáticas. Além dessas informações, por meio do verbete, o aluno pode obter outras, inclusive sobre aspectos culturais da sociedade, aprendendo aspectos pragmáticos da língua. Como demonstrado, o dicionário pode ser utilizado
para
consultar:
ortografia,
pronúncia,
categoria gramatical, gênero, transitividade verbal, conjugação verbal, divisão silábica, significados, sentidos, contextos, expressões idiomáticas, informações extralinguísticas disponíveis nas notas, relações léxico-semânticas que podem favorecer a coesão textual, entre outras funcionalidades. Quando o usuário aprende usar as obras lexicográficas, há um despertar para o prazer em consultar o dicionário. De acordo com Faulstich (2010, p. 166), “a consulta a obras lexicográficas deve revestir-se de um prazer de leitura igualmente satisfatório ao que tem o leitor quando depara com textos de outros gêneros, em que a emoção ganha corpo à medida que a informação cresce.” Assim sendo, o dicionário passa a ser uma ferramenta essencial para a compreensão de significado e da produção textual. E “para gostar de ler dicionário é necessário, por conseguinte, que o leitor seja orientado a seguir os passos do texto lexicográfico, entender a estrutura física do livro, bem como contemplar o macrodiscurso exposto”, conforme
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Faulstich (2010, p. 168-169). Por isso, quando bem orientado, o usuário aprende a explorar o gênero lexicográfico, tornando-se um leitor ativo, capaz de aplicar as informações lexicográficas na produção de textos mais elaborados. Segundo Krieger & Rangel (2011, p. 139), “não só os professores como as pessoas em geral entendem o dicionário como algo muito simples, uma listagem de palavras, um espécie de catálogo que dispensa, inclusive, um olhar crítico sobre a qualidade da obra.” Comprova-se essa realidade por meio da análise de experiências de alunos da disciplina Lexicologia e Lexicografia 1, os quais relataram que: Aluno A: “ O Dicionário é comum no espaço social, porém nem todos sabem utilizá-lo. Essa deficiência ocorre principalmente no espaço escolar, pois muitos alunos não sabem para que serve um dicionário e qual a sua função. Muitos professores não orientam os alunos para o uso eficaz dessa ferramenta pedagógica”. Aluno B: “Em Lexicologia e Lexicografia (1) eu [...] achei o assunto interessante e até apaixonante, pois eu nunca havia refletido sobre a complexidade que envolve um dicionário”. Aluno C: “Esta disciplina [...] ajudando-nos na ampliação dos horizontes conceituais e na prática pedagógica”.
Com base nos relatos, verifica-se que havia carência de entendimento na área das disciplinas do léxico por parte dos licenciandos de letras da UAB. No entanto, ao tomarem conhecimento sobre a riqueza de informações que podem adquirir por meio do estudo do léxico e do uso das obras lexicográficas, há um reconhecimento da relevância teórica e prática do conteúdo 80
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da disciplina. Por isso, deve ser incentivada a divulgação desse conhecimento, uma vez que “uma consulta bem sucedida pressupõe informações organizadas e explicitadas de modo a permitir seu fácil acesso e compreensão, ou seja, é preciso que o projeto lexicográfico da obra esteja adequado ao público escolar”, conforme Carvalho (2011, p. 87). E isso foi observado pelos licenciandos como se pode verificar no relatório de avaliação da disciplina, após o acesso ao conteúdo lexicológico e lexicográfico disponível em Lexicologia e Lexicografia 1, descrita a seguir pelo aluno D: Apesar da complexidade da disciplina, ela foi elaborada de tal modo que pudéssemos obter aprendizagem de fato. A organização da disciplina, a distribuição dos módulos, a participação e orientação da tutora e professora foram fundamentais para que nos sentíssemos seguros e bem orientados na busca pela construção da nossa aprendizagem, deveria servir de referência a outras disciplinas que ainda não se adequaram a modalidade de ensino a distância.
Na disciplina, os alunos aprenderam os conceitos envolvidos na formação e nos significados de palavras, os quais podem apresentar variações de significados em um dado contexto ou isoladamente. Eles foram orientados sobre a estrutura do dicionário e como pode ser utilizado em sala de aula para aperfeiçoar o ensino. Desse modo, o trabalho desenvolvido por meio do ensino a distância na UAB serve para a difusão das ciências do léxico no processo de formação de professores, o qual contribui para que os futuros alunos desses profissionais tornemse usuários plenos, aperfeiçoando a qualidade de ensino e de aprendizagem.
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Considerações finais Como resultado dessa experiência, nota-se que o licenciando compreendeu a relevância das disciplinas do léxico no ensino de Língua Portuguesa e aprendeu também as estratégias de consulta de dicionário, oferecendo, assim, suporte teórico e prático aos profissionais de ensino. Desse modo, tornaram-se aptos a desenvolver, em seus futuros alunos, habilidades e competências para a utilização de dicionários como ferramenta de compreensão de significados e de produção textual. Com a política adotada no Programa Nacional de Livro Didático (PNLD), cada vez mais é necessário preparar o professor, para empregar o dicionário como instrumento pedagógico. Por fim, é essencial a inserção da disciplina nos currículos dos cursos de licenciatura em letras, seja no modo presencial, seja no modo a distância, para capacitar os docentes e para contribuir com o desenvolvimento de pesquisas na área do léxico. Essa inserção poderá fortalecer a Linha de pesquisa Léxico e Terminologia, à medida que os alunos conhecerem os conceitos e as possibilidades de estudos na área. Destarte, a oferta das disciplinas da área do Léxico na graduação poderá despertar o interesse dos egressos em ingressar em programas de pós-graduação para o desenvolvimento de projetos nessa área. Esse interesse contribui para o engajamento dos egressos em atividades de pesquisa, o que pode propiciar profissionalização que articule e integre a graduação com a pós-graduação, por meio da qualificação de estudantes para os programas de pós-graduação. Como resultado desse engajamento, pode ocorrer a inserção de profissionais mais qualificados no mercado de trabalho.
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Referências BIDERMAN, M. T. C. As ciências do léxico. In: OLIVEIRA, A. M. P. P., ISQUERDO, A. N. (Orgs.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo grande: UFMS, 2001. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa /Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, 1997. ______. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução CD/FNDE nº 8, de 30 de abril de 2010. Estabelece orientações e diretrizes para o pagamento de bolsas de estudo e de pesquisa a participantes da preparação e execução dos cursos dos programas de formação superior, inicial e continuada no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/ fnde/legislacao/resolucoes/item/3390-resolu%C3%A7%C3%A3ocd-fnde-n%C2%BA-8-de-30-de-abril-de-2010>. Acesso em: 11 jun 2013. CABRÉ, M. T. La terminología: teoria, metodología, aplicaciones. Barcelona: Editorial Antártida/Empúries, 1993. CARVALHO, O. L. de S. In: CARVALHO, O. L. de S RANGEL; BAGNO, M. (Orgs.). Dicionários escolares: políticas, formas e usos. São Paulo: Parábola, 2011. CORREIA, M. & LEMOS, L. Inovação lexical em português. Lisboa: Colibri, 2005. CORREIA, M. Os dicionários portugueses. Lisboa: Caminho, 2009. FAULSTICH, E. L. J. Da linguística histórica à Terminologia. Investigações, linguística e teoria literária, Pernambuco, v. 7, p. 71-101, 1997. O que a distância revela
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FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo, 2009. HAENSCH, G. et al. La lexicografia: de la linguística teórica a la lexicografia práctica. Madrid: Gredos, 1982. KRIEGER, M. da G.; RANGEL, E. de O. Questões políticas. In: XATARA, C.; BEVILACQUA, C. R; HUMBLÉ, P. R. M (Orgs.) Dicionários na teoria e na prática: como e para quem são feitos. São Paulo: Parábola, 2011. MAIA-PIRES, F. M. de O. Brasília em termos: Um estudo lexical do Plano Piloto. (Dissertação) Universidade de Brasília, Instituto de Letras, Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas, Programa de Pós-Graduação em Linguística. Brasília, 2009. REY-DEBOVE, J. Léxico e dicionário. Alfa, São Paulo, v. 28 supl., p. 4569, 1984.
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Capítulo V
Consciência Linguística Crítica e Reflexividade: um Caminho Para a (Trans)Formação da Identidade Docente Juliana Dias
Carla Braga
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Consciência Linguística Crítica e Reflexividade: um Caminho Para a (Trans)Formação da Identidade Docente Juliana Dias1 Carla Braga2
Introdução
Os estudos em torno da Conscientização Linguística Crítica (Critical Language Awareness) ancoram-se em uma proposta de linguistas da Universidade de Lancaster (Grã-Bretanha) ao considerarem a linguagem como constitutiva em relação à sociedade, no âmbito ideológico e das relações de poder. Na prática escolar, o objetivo inicial é problematizar a aparente transparência e neutralidade dos textos e da prática pedagógica a fim de reconstruir processos subjacentes, geralmente localizados no nível do inconsciente do leitor e das relações de poder cristalizadas. Os sujeitos (professores/alunos) podem ser fortalecidos (empowered), questionando e transformando as convenções sociais, ou enfraquecidos (disempowered), aceitando e reproduzindo as estruturas naturalizadas (CLARK et al.,1991). A educação poderá, desse modo, estimular a autoconsciência sobre o posicionamento das pessoas no discurso, trabalhando no sentido de transformar relações e práticas sociais opressivas mediante a ação engajada em lutas sociais com base no emancipatório. (FAIRCLOUGH, 1992) 1 Juliana Dias é professora adjunta da Universidade de Brasília desde 2009 e atua na área da educação há mais de 17 anos. Realiza pesquisas no Programa de Pós Graduação de Linguística da UnB na área de leitura, escrita, identidade e poder, tudo no bojo teórico e metodológico da Análise de Discurso Crítica. É coordenadora do projeto de Leitura e Produção de textos da Universidade de Brasília, trabalhando com reescrita textual, bilhete orientador e escrita criativa. 2 Carla Braga é mestre em Linguística, na área de Linguagem e Sociedade, pela Universidade de Brasília (UnB) e graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis, turma de 2006. Atualmente é professora de Língua Portuguesa no ensino básico e superior.
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Apresentamos neste artigo um relato de experiência vivenciada no âmbito da educação continuada com uma professora do Ensino Médio de uma escola pública do oeste baiano, na cidade de Luís Eduardo Magalhães. Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado com base nos estudos críticos do discurso, intitulada “Identidade docente e mudança social: contribuições da Análise de Discurso Crítica com foco em Consciência Linguística Crítica,” cujo foco está no diálogo entre a teoria explorada no discurso e a prática do professor em sala de aula, na tentativa de preencher uma lacuna desde os postulados da Conscientização Linguística Crítica. Este artigo é resultado de um projeto de mestrado que se insere em um projeto ainda maior, coordenado pela profa. Dra. Juliana Dias: “Sujeito Leitor e Sujeito Escritor: discursos, identidades e ideologias”. Os
caminhos
metodológicos
foram traçados pelos pressupostos de Choularaki & Fairclough (1999, p. 21), que postulam que a ciência social investiga os diversos elementos da vida em práticas sociais particulares, os quais trazem diferentes contribuições em particular, as diferentes formas de relacionamentos locais; os tipos de atividades com diferentes tipos de espaço, tempo e diferentes os tipos de materiais, além de pessoas particulares com experiências especiais, conhecimento e disposição para relacionamentos sociais singulares; e diferentes recursos semióticos e modos particulares de utilizar a linguagem. Nesse sentido, uma visão geral desses elementos da vida é insuficiente para que a transformação proposta pela teoria do discurso se configure.
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Faz-se necessário, portanto, uma análise específica, relacionada dialeticamente com práticas e sujeitos particulares, para então haver real abertura para a mudança. Dessa forma, fica claro que analisar os diversos momentos do processo de ensino e aprendizagem da sala de aula contribui para a construção de práticas discursivas transformadoras. O suporte metodológico que subsidiou nosso estudo foi a pesquisa qualitativa de cunho etnográfico crítico. As análises dos dados estão baseadas no aporte teórico metodológico da Análise do Discurso Crítica, especialmente, no arcabouço proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999), recontextualizado por Dias (2011). Imbuídas no ideal de realizar um estudo sobre a identidade docente na perspectiva de um de um programa de Conscientização Crítica da Linguagem (CLC), organizamos a pesquisa em duas etapas. A primeira constituiu-se em observação de aulas da professora3. Nesse momento, a coleta de dados deuse por meio de notas de campo. Registramos em um diário de campo nossas impressões a respeito da interação da professora-colaboradora com os alunos e até mesmo com os demais membros da comunidade escolar. As anotações (escritas) também compreenderam comunicação oral da professora com alunos, colegas de trabalho e funcionários. Ao todo, foram observadas 14 horas-aula. Ao final dessa primeira etapa, utilizamos como instrumento a entrevista semiestruturada em que a professora-colaboradora, 3 A sala de aula observada foi a de 3ª série do Ensino Médio. A diretora da escola-colaboradora nos encaminhou para esta turma pelo fato de os alunos serem pré-vestibulandos, ansiando que a participação na pesquisa pudesse ajudá-los nessa fase.
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além de um grupo de seis alunos, conversou conosco a respeito da produção de texto na escola e em suas vidas. Na segunda etapa, iniciamos o processo de Conscientização Crítica da Linguagem (CLC), propriamente dito, em que estudamos e debatemos, juntamente com a professora-colaboradora, alguns textos teóricos. Nessa etapa, além de anotações em diário de campo, a coleta dos dados ocorreu por meio de de duas entrevistas em períodos diferentes do processo de CLC. Os textos debatidos nesse momento da pesquisa foram ricos em trocas de experiências em sala de aula e de vida, as quais deram concretude às teorias, recémrecebidas pela professora, que resultaram em alguns planos de aula, em algumas atividades pedagógicas e na produção de um memorial de leitura, baseado em Freire (1988). Dessa maneira, o corpus a ser analisado neste artigo é formado por anotações em diário de campo, um texto escrito produzido pela professora-colaboradora, duas entrevistas semiestruturadas com a professora-colaboradora, e uma entrevista semiestruturada, aplicada para um grupo de seis alunos. Nas próximas quatro seções, explanaremos sobre as teorias que subjazem os caminhos percorridos por esta pesquisa, a saber: a Análise de Discurso Crítica (doravante ADC); a Educação fortalecedora e Conscientização Linguística Crítica; o Discurso emancipatório e a leitura opositiva e, finalmente, os estudos sobre Identidade.
Nas redes do conceito de discurso A Teoria Social do Discurso e Análise de Discurso Crítica, desenvolvidas pela escola britânica, especialmente por Norman Fairclough, foram influenciadas pelos pensamentos de Michel Foucault e de Antonio Gramsci.
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Sob essa perspectiva, o discurso é uma forma de prática social que não apenas reflete ou representa entidades e relações sociais, como também as constrói ou constitui. Essa concepção implica que o discurso pode ser tanto um modo de representação, como um modo de ação sobre o mundo social (FAIRCLOUGH, 1992 b. p. 63). Assim, os discursos são socialmente constitutivos em três aspectos fundamentais: o discurso constrói as diversas identidades sociais, o discurso constitui também as diferentes relações sociais podendo mesmo modificar as existentes por meio de novas formas de interação, e, por fim, o discurso colabora para a construção dos sistemas de conhecimentos e de crenças do mundo. Além disso, essa concepção de discurso implica também relação dialética entre discurso e estrutura social, conforme foi mencionado anteriormente, no sentido de o discurso ser moldado e restringido por essa estrutura, ao mesmo tempo que contribui para a sua constituição. É por meio dessa perspectiva dialética de discurso que se fundamenta a subjetividade multifuncional em que o ‘eu’ assume variadas posições e se desdobra em diversos papeis sociais. Não só as identidades sociais como também as relações interpessoais são modificadas e inovadas. A criatividade dos sentidos experenciais é influenciada por esta visão plural de discurso (FAIRCLOUGH, 1992b, p. 91). Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 21) consideram a vida social como um sistema aberto formado de práticas – modos habituais, relativos a tempos e lugares, nos quais as pessoas empregam recursos materiais ou simbólicos para interagir no mundo. Tais práticas podem ser consideradas práticas de produção, não no sentido de produção econômica, mas na medida em que O que a distância revela
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as pessoas produzem seu mundo social em suas próprias práticas. Toda prática da vida social articula em conjunto diversos elementos e, nesse sentido, diversos mecanismos. O discurso é um desses elementos e possui seus próprios mecanismos em uma perspectiva dialética com relação aos demais elementos, pois ajuda a constituir os outros elementos da mesma forma que é por eles constituído. Cada momento da prática internaliza os outros momentos sem ser redutível a nenhum deles. Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 61) identificam quatro principais momentos de uma prática: a atividade material (vozes e marcas no papel); as relações sociais e processos (relações, poder e instituições); o fenômeno mental (crenças, valores e desejos) e o discurso. O conceito de articulação é bastante útil, tanto para a análise da interação de tais momentos pertencentes a uma prática, como
para a
análise da relação de internalização entre eles. Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 24) consideram que “cada prática pode, simultaneamente, articular juntamente com muitas outras de múltiplas posições sociais e com diversos efeitos sociais”. O discurso não representa simplesmente a linguagem em uso, mas sim seu uso imbricado nas relações e processos sociais, no sistema de valores e crenças, na constituição das identidades dos sujeitos sociais que interagem na atividade material concreta, seja sob a forma verbal ou não verbal. Assim, visualizar o discurso como um momento da prática social implica considerar a relação dialética entre as estruturas e os eventos sociais, uma vez que as práticas estão mediando as estruturas sociais e as ações concretas, as estruturas da sociedade são lentamente transformadas por meio das ações reais nas práticas de cada instituição e vice-versa. 92
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Com essa visão dialética, Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 22) rejeitam tanto a perspectiva do determinismo que enfatiza a forte estabilidade das estruturas, como o voluntarismo que superestima o alcance da atividade concreta. Sob esse mesmo foco dialético, o discurso pode ser retratado: ele tanto é moldado pelas estruturas sociais como contribui para sua constituição e reconstituição, seja reproduzindo as estruturas iniciais, seja transformando-as. Há ainda o elemento da reflexividade que é inerente a toda prática, uma vez que as pessoas sempre produzem representações do que elas fazem como parte daquilo que fazem. De acordo com Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 26) a reflexividade possui dois aspectos essenciais: (i) ela é alcançada por meio da luta social, visto que o saber sobre as práticas cria posições particulares dentro da própria prática ou fora dela; (ii) a reflexividade de uma prática “acarreta que todas as práticas possuam um aspecto discursivo irredutível”, não só no sentido de que todas as práticas envolvem, em algum grau, a linguagem, como também no sentido de que as “construções discursivas das práticas são em si mesmas partes das práticas”. As práticas possuem, então, três características essenciais: (i)“elas são formas de produção da vida social”; (ii) “cada prática está inserida dentro de uma rede de relações com outras práticas” e (iii) “as praticas sempre têm uma dimensão reflexiva: pessoas sempre geram representações do que elas fazem como parte do que elas fazem” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 22)
Essas considerações teóricas/analíticas mais atuais da ADC fornecem algumas ampliações quando comparadas às versões anteriores (1989, 1992b e 1995). O discurso não é simplesmente uma forma de prática social, mas é considerado como elemento
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semiótico das práticas sociais, incluindo não só a linguagem, como também a comunicação não verbal (expressões faciais, movimentos do corpo, gestos), bem como as imagens visuais. A noção da vida social constituída de práticas também é uma visão mais abrangente, uma vez que, anteriormente, Fairclough havia distinguido somente práticas discursivas e práticas sociais. Outro aspecto discutido por Chouliaraki & Fairclough, diz respeito à prática teórica, isto é, toda teoria é, ela própria, uma prática. Assim como as demais práticas, a teoria está inserida em uma série de relações com as práticas econômicas, sociais, políticas e culturais que determinam sua constituição interna, as quais podem ter efeitos ideológicos que recaem sobre a própria teoria. Consideramos esta visão da teoria de extrema relevância no contexto da modernidade tardia. Refletir sobre a localização social de uma prática teórica é pensar sobre as consequências que tal escolha acarreta. Os autores ainda destacam que “a pesquisa crítica social é iniciada e terminada no fluxo entre prática teórica e as outras práticas que ela pesquisa”. (CHOULIARIAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p.29) As transformações sociais, econômicas, políticas e culturais atingem a esfera global na pós-modernidade, acarretando mudanças na própria identidade dos sujeitos sociais que têm os sentidos de lugar e do ‘eu’ profundamente afetados, o que tem sido referido como uma perda de sentido. Para os autores, as formas sociais – produzidas pelas pessoas e totalmente passíveis de mudanças – estão sendo vistas como naturais, ou seja, estão sendo naturalizadas. Uma teorização crítica nesse momento atual não só 94
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pode iluminar o novo mundo emergente, como pode ainda mostrar que direções alternativas existem (CHOULIARIAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p.4). Chouliaraki & Fairclough discutem sobre a modernidade tardia no que tange à necessidade de uma análise crítica diante dessa nova fase da vida social e, além disso, destacam qual é o lugar da Análise de Discurso Crítica, no interior dessa análise social mais ampla. Os processos envolvidos na pluralidade da vida social e na fragmentação dos sujeitos sociais são processos de natureza linguística: “fragmentação e diferenciação são parcialmente constituídos na proliferação de linguagens”. (CHOULIARIAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p.5). Assim, a motivação primordial da ciência crítica social é contribuir para a consciência desses processos de mudança, e a ADC inclui-se nessa linha, possuindo como diferencial das demais práticas teóricas críticas a sua ênfase na linguagem. Todavia, os autores lembram que é importante reconhecer a relevância do discurso sem reduzir a vida social a ele; tal reducionismo é um risco constante para os analistas do discurso. Assim, a visão dialética da relação entre o discurso e as facetas extradiscursivas do mundo social é uma visão essencial, especialmente, na modernidade tardia. As próximas duas seções contextualizarão e embasarão o processo de Conscientização Crítica da Linguagem proposto por este trabalho.
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Educação fortalecedora e Conscientização Linguística Crítica Pensar nas escolas como esferas públicas engajadas com o desenvolvimento de práticas críticas e capazes de colaborar para a cidadania e a democracia social exige estar consciente do lugar em que ainda nos encontramos e o quanto falta percorrer para alcançar essas metas. Como muito bem ressaltam Giroux & Aronowitz (1997, p. 161), a tarefa do educador radical não se baseia na rejeição das formas existentes de aprendizagem e de teoria educacional, significa, antes, retrabalhar o que já existe, “contestando os terrenos onde elas se desenvolvem e apropriando [delas] as potencialidades radicais que possam conter”. De outro ângulo, a ideia da mudança social não pode ser pensada como se fosse uma solução perfeita, cujo estado de coisas resultante estaria livre de todos “os males identificados hoje. É preciso desvencilhar-se da ilusão de que é preciso transformar o mundo num paraíso” (RAJAGOPLAN, 2002, p.9). Empowerment constitui uma filosofia de educação, de acordo com Rajagopalan (2002, p.3), cuja finalidade é ajudar tanto os professores como os alunos, que atuam em condições marginalizadas, no desenvolvimento de “formas de resistência a injustiças a que são submetidos e, com seus próprios esforços, melhorar as condições de vida e recuperar sua dignidade”. O mesmo autor (2002, p.3) ressalta ainda, com bastante pertinência, que a tradução da palavra inglesa empowerment para “potencialização”, “transferência de poder” é inadequada, uma vez que pode gerar um sentido voltado para uma “postura de paternalismo ou de salvacionismo”. Também nesse sentido, Gieve e Magalhães (1998, p. 127) refletem sobre o uso deste termo, lembrando que a concepção mais amplamente difundida relaciona-se à redistribuição de poder para 96
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grupos oprimidos que são dominados por grupos com maior poder. Esses autores destacam que essa concepção foi modificada ao longo do tempo, chamando a atenção para uma noção mais voltada para a autonomia do ‘eu’ e para o despertar de uma autoconsciência. Fortalecimento é, então, sob esta ótica, “a habilidade de pensar e de agir criticamente” (GIROUX, 1992 apud GIEVE & MAGALHÃES, 1998, p. 127). Paulo Freire (1988) comenta que possui certo receio em usar essa expressão que está sendo enfocada em termos muito individualistas, especialmente nos Estados Unidos. Para o autor, o empowerment não é uma solução espontânea para educação democrática. Não é como se o professor acendesse um lampião e iluminasse em um piscar de olhos, como se tudo estivesse instantaneamente resolvido. Ativar o potencial criativo e a autonomia dos alunos não pressupõe efetuar as transformações políticas
necessárias
à
sociedade
democrática. Freire (1988, p. 134-5) não acredita na autolibertação, pois, para ele, “a libertação é um ato social”. O empowerment individual é insuficiente para a mudança social em termos gerais, todavia ele é “absolutamente necessário para o processo de transformação social”. Em outras palavras, desenvolver a consciência crítica e possuir a sensação de ter mudado é fundamental na modificação mais ampla da sociedade. Tal concepção conduz a uma ampliação desse conceito que passa das esferas do individualismo para a coletividade, isto é, empowerment “indica um processo político das classes dominadas que buscam a própria liberdade da dominação, um longo processo histórico de que a educação é uma frente de luta” (FREIRE, 1988, p. 138).
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No âmbito desse trabalho, o empowerment será focalizado sob a ótica da linguagem (Conscientização Linguística Crítica- CLC) no sentido de encorajar sujeitos atuantes no campo educacional a desconstruir a tradição de ensino e sua linguagem que embute valores baseados em relações de poder (RAJAGOPALAN, 2002). Além disso, consideraremos ainda a concepção de Giroux para fortalecimento que significa “a habilidade de pensar e agir criticamente no mundo” (apud GIEVE & MAGALHÃES, 1998, p. 127). Desse modo, no lastro dessa concepção, encontra-se a conscientização crítica das práticas ideológicas de linguagem. Tal proposta constitui uma orientação relativa à linguagem com implicações nos vários ramos, visando à consciência a respeito no modo de operação da ideologia e do poder sobre as convenções das práticas linguísticas naturalizadas. Trata-se, pois, de um projeto para se trabalhar a linguagem com base na capacidade linguística dos alunos e dos educadores, fornecendo subsídios para a transformação dessa experiência anterior. A Conscientização Linguística Crítica constróise por meio de um Estudo Crítico da Linguagem, utilizando a Análise de Discurso Crítica como meio para alcançar um discurso emancipatório que seria o seu fim. As atividades de conscientização estão inseridas no próprio corpo de conhecimento escolar. Como apontam Giroux & Aronowitz (1997), o conhecimento é uma construção social ligada a normas e valores que precisam ser debatidos na educação crítica. O que esses autores chamam de letramento crítico corresponde ao que os proponentes da CLC chamam de “uma conscientização crítica do mundo e das possibilidades de mudá-lo” não só em termos linguísticos como em relação à educação em geral (CLARK et al. 1991, p. 52).
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Assim, foram postuladas dez reivindicações teóricas para o desenvolvimento do Estudo Crítico da Linguagem – ECL, entre elas destacamos as mais pertinentes para este trabalho. O discurso é considerado como um modo de prática social que mantém uma relação dialética com a estrutura social. O ECL possui como objetivo “mostrar como as conexões ideológicas particulares são impostas entre determinantes estruturais e discursos, e entre discursos e efeitos estruturais através da luta entre forças sociais” (CLARK et al., 1991, p. 8-9). Além disso, o ECL se presta a desenvolver a conscientização de como as práticas sociais são moldadas pelas relações de poder. Clark et al. (1991, p. 12-3) também ressaltam que a Conscientização Linguística Crítica é formada pelas capacidades de linguagem existentes e das experiências dos aprendizes. A CLC deveria estar relacionada, segundo os autores, a um discurso com objetivos, pois se assim não for “a conscientização não leva a lugar nenhum exceto ao fatalismo e à aceitação”. Quanto aos elementos a serem incluídos em um programa de CLC, Clark et al. (1991, p. 14) destacam os seguintes, no interior de três categorias de assunto: (i) conscientização social do discurso; (ii) conscientização crítica da diversidade; (iii) conscientização de, e prática para, a mudança, desde que “a mudança na linguagem seja resultado de lutas sociais e de mudanças nas relações de poder”. Essas são, pois, as principais ideias no que diz respeito ao processo de CLC. Encorajando a autoconsciência sobre o posicionamento das pessoas no discurso, cremos, ainda como Clark et al. (1991), que é possível transformar relações e práticas sociais opressivas mediante a ação engajada em lutas sociais pelo discurso emancipatório.
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Dessa maneira, para que o fortalecimento seja possível, é necessário o engajamento com uma conscientização crítica da linguagem e do mundo em que sujeitos sociais interagem e encontram a possibilidade de mudar.
Discurso emancipatório e leitura opositiva A consciência é condição necessária, mas não suficiente para a emancipação. É preciso que haja um reconhecimento crítico, aliado a formas de ação sobre as convenções naturalizadas do mundo social para alcançar uma emancipação (CLARK et al., 1999, p .11). De acordo com Ivanic (1997), quando o discurso rompe o ciclo de reproduzir a dominação, ele se torna emancipatório. Ter consciência das práticas enfraquecedoras é parte do processo de emancipação e de autoemancipação, o que, segundo a autora, é frequentemente uma experiência difícil e dolorosa. Há, desse modo, duas dimensões do discurso emancipatório: o discurso que não enfraquece os outros e o discurso que resiste ao enfraquecimento. O discurso que não enfraquece as outras pessoas se baseia, segundo Ivanic, no desenvolvimento de um senso de responsabilidade social junto aos outros no que tange ao uso da linguagem. Essa responsabilidade está relacionada tanto com as pessoas de quem falamos ou sobre as quais escrevemos, como com os indivíduos com quem conversamos ou a quem escrevemos. Já o discurso que resiste ao enfraquecimento não se refere às outras pessoas, ele é relativo a nós mesmos. De acordo com Ivanic (1997, p. 315), é difícil encontrar um termo apropriado para nomear esse tipo de discurso. A preocupação não é mais com os outros, mas sim com nosso próprio uso da linguagem, no sentido de “não permitir que nossas próprias necessidades sejam negligenciadas, nem deixar que nós sejamos enfraquecidos”. 100
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Dessa forma, o discurso emancipatório representa a faceta de uma luta social mais ampla. Clark et al. (1991, p.12) listam alguns modos de discurso emancipatório, tais como quando grupos dominados aprendem a verbalizar suas próprias experiências em domínios públicos. As práticas de leitura crítica e de oposição a textos falados ou escritos também são formas de discursos emancipatórios. Ivanic (1997, p. 309) ressalta ainda que, segundo Giroux, a emancipação tem a ver com oposição e resistência, a primeira significando pensar ao contrário das regras estabelecidas, negando-as e valorizando seu oposto; e a resistência como pensar diferentemente na tentativa de modificar toda a estrutura. Podemos visualizar assim:
Emancipação Resistência Oposição Conforme a autora, por meio da CLC, pode-se reconhecer o poder de quem fala ou escreve. Contudo, para quem busca uma autoemancipação, além desse reconhecimento, é preciso encontrar modos de falar e de escrever que sejam menos impositivos aos leitores e aos ouvintes, de forma a não enfraquecê-los em suas posições de sujeito. Há também formas, por meio da própria escolha linguística, de fortalecer o sujeito leitor/ouvinte, formas essas que vão além do mero evitar o enfraquecimento do outro. Podemos, por exemplo, utilizar padrões interacionais, tomadas de turno e de denominações lexicais que contribuem para a diminuição assimétrica nos textos orais e escritos.
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A leitura de textos é destacada por Ivanic, que a considera como uma prática crítica e interrogativa de leitura baseada na consciência dos leitores frente a textos fechados, que impõem visões de mundo unilaterais. A leitura opositiva parte da rejeição da posição de sujeito leitor ideal, aquela posição construída pelo texto, transparecendo como verdade absoluta. Stephens (1996, p.21) acredita que, quando o leitor lê coerentemente um texto sem questionar ou discordar, ele está assumindo uma posição de sujeito que o torna um leitor implicado, ou seja, um leitor que é ideal e assume as posições de sujeito propostas na narrativa pelos ‘focalizadores’. Segundo ele (1996, p. 58), esse tipo de leitura pressupõe intérpretes submissos, leitores implicados, o que não ocorre necessariamente em toda leitura. Os intérpretes não só são sujeitos do discurso como são, sobretudo, sujeitos sociais, o que implica dizer que eles possuem experiências, intertextos
e
interdiscursos
capazes
de
extrapolar leituras fechadas. São, pois, leituras resistentes, do mundo e da palavra, que possibilitam as mudanças no interior das práticas sociais. A leitura opositiva é, dessa maneira, aquela que resiste ativamente a leitura ‘preferida’, sendo ajudada por uma conscientização crítica da linguagem que tem por objetivo central descobrir as escolhas que foram feitas na criação de um texto (IVANIC, 1997, p. 325). A participação na luta pela mudança social não é uma questão de opção individual. Segundo a autora, as escolhas das pessoas contribuem para a criação de seu contexto social e histórico da mesma forma que o limitam. Escolher entre práticas
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de conformação ou práticas emancipatórias é escolher quando se conformar com as convenções e quando lutar para mudá-las. Ivanic ressalta que sair da chamada consciência passiva está condicionado a uma escolha difícil, pois pode haver fortes razões para não contestar a sujeição, incluindo razões de ordem prática (para não perder o emprego, por exemplo). Aliás, é importante salientar que todos nós, em certas condições sociais e históricas, podemos escolher nos conformar, nos silenciar, o que não significa que não somos críticos ou que não vamos mais lutar. Ivanic (1997, p. 317-8) destaca que “a CLC ajuda as pessoas a se conformarem com os olhos abertos, para identificar seus sentimentos sobre isso e reconhecer os compromissos que estão fazendo.” Contestar é, pois, algo que envolve dor, receios e riscos e a solidariedade é uma forma de fortalecimento. Para concluir, gostaríamos de citar Ivanic (1997, p. 318-9) que clareou imensamente esta apresentação com suas reflexões originais e conceitos como emancipação e fortalecimento. Para a autora, “é improvável que indivíduos sozinhos obterão efeitos no estabelecimento de convenções alternativas. (...) Tentar usar a linguagem com responsabilidade é em si mesmo um ato de identidade e as pessoas precisam de autoconfiança para fazê-lo”. A próxima seção abordará questões sobre identidade, já que ao atribuir sentidos às relações sociais e às práticas imbricadas nelas, construímos características pessoais e sociais. Assim sendo, programas de CLC podem posicionar sujeitos em identidades conforme sua vinculação em um discurso, construindo e reconstruindo identidades sociais com base nas informações, na comunicação e na produção de sentidos.
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Uma breve reflexão teórica acerca da identidade A questão da identidade tem sido recorrentemente discutida por meio do reconhecimento de uma mudança nas velhas identidades em declínio e, consequentemente, do reconhecimento de um sujeito moderno fragmentado, não unificado como até então se analisava. Essa mudança na concepção de identidades está inserida em um amplo processo de mudanças centrais nas sociedades modernas. A tese fundamental é a descentralização das identidades modernas, o que acarreta questões contraditórias, abordadas por Hall (2000). O conceito de identidade é bastante complexo e, vem, pouco a pouco, sendo desenvolvido pela ciência social contemporânea. As transformações estruturais que assaltam as sociedades modernas a partir do final do século XX demonstram que as paisagens culturais de gênero, etnia, raça, classe, sexualidade e nacionalidade que, no passado, forneciam sólidas posições para os indivíduos sociais, hoje estão sendo questionadas. Nesse sentido, nossas identidades pessoais são também repensadas, uma vez que o que anteriormente era visto como uma autoidentidade clara e estável, atualmente, é percebida como descentrada e heterogênea. Desse modo, vivemos hoje transformações profundas não só concernentes ao nosso próprio sentido do ‘eu’, que se encontra sustentado pelo reconhecimento da fragmentação do sujeito, como também concernentes ao nosso sentido de tempo e lugar, em que a fugacidade e a efemeridade configuram a ordem do dia. De acordo com Bauman (2001, p. 93), a sociedade pósmoderna envolve seus sujeitos primariamente em sua condição de consumidores, e não de produtores. Seguindo essa linha de 104
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raciocínio, o autor ressalta que a vida é organizada em torno do consumo, orientada pela sedução, pelos desejos e pela ideia de que não existem regras para transformar os desejos de hoje em necessidades de amanhã. Giddens (2001) aborda, em sua obra Modernidade e Identidade, alguns aspectos norteadores da reflexão que proponho neste trabalho. Segundo ele, a modernidade é uma cultura do risco em que as certezas da tradição e do hábito foram substituídas pela dúvida e pela transformação do conhecimento em hipóteses. Nesse contexto, as noções de confiança e risco são particularmente importantes. A confiança básica está relacionada com um senso precoce de segurança ontológica, precoce no sentido de ser desenvolvido nos seres humanos em sua mais tenra infância com base no relacionamento mais primitivo do homem, qual seja, o vínculo maternal, ou o vínculo com aquela pessoa que assume o papel “maternal” de proteção contra ameaças e perigos externos. Quando Giddens se refere ao risco da vida moderna, não quer com isso dizer que a vida na modernidade é mais arriscada que em tempos pré-modernos. Para ele, o risco se liga à contínua construção reflexiva do eu e do conhecimento; isto é, o futuro é constantemente trazido para o presente por meio da reflexividade, acompanhado da incerteza e da dúvida. Desse modo, na ordem da modernidade tardia, a autoidentidade torna-se reflexivamente organizada, no sentido de que “cada um de nós não apenas ‘tem’, mas vive uma biografia reflexivamente organizada em termos de fluxo de informações sociais e psicológicas sobre possíveis modos de vida” (GIDDENS, 2001, p. 20). A pergunta “como devo viver” faz parte do projeto O que a distância revela
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reflexivo do eu baseado em narrativas biográficas coerentes, que são continuamente revisadas. Outro aspecto importante, destacado por esse autor, refere-se à construção dos sistemas abstratos que dizem respeito aos sistemas de conhecimento técnico que, na vida moderna, afetam profundamente a vida cotidiana dos indivíduos. Os sistemas abstratos encontram-se envolvidos não somente “na ordem institucional da modernidade, mas também na formação e continuidade do eu” (Id. Ibid, p. 37). É exatamente sobre essa relação entre os sistemas especializados de conhecimentos e construção, e as mudanças na autoidentidade, que me interessa refletir, pois, segundo Giddens, os sistemas especializados, compõem um tipo de mecanismo de desencaixe da modernidade. Tais mecanismos de desencaixe representam a ideia de descolamento das relações sociais dos seus contextos usuais (em uma visão pré-moderna) e sua rearticulação sob a influência da indeterminação do espaçotempo, característicos da modernidade. Essa reflexão em torno dos mecanismos de desencaixe sob a forma de sistemas especializados é relevante no sentido de que o tempo e o espaço tornam-se menos importantes diante da validade dos conhecimentos técnicos, independentemente dos sujeitos que deles fazem uso (GIDDENS, 2001, p.24). Dessa maneira, a questão da identidade e da diferença está, hoje, no centro da teoria social e da prática política, e encontrase “na tensão entre perspectivas essencialistas e perspectivas nãoessencialistas sobre identidade”(WOODWARD, apud Silva, 2000, p. 12). Uma visão essencialista busca identificar o que existe de universal (a essência) nos grupos sociais, ou seja, procura aquilo que não se altera
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durante o tempo e que é utilizado para distinguir um grupo de outro. Por outro lado, uma perspectiva não-essencialista de identidade inclui uma reflexão sobre a diferença, enfatizando o caráter flexível e fluido das identidades. A identidade é considerada, então, como construção, como um efeito, instável, fluida, contraditória, inacabada e fragmentada (Silva, 2000). Neste sentido, é importante destacar que tanto a identidade quanto a diferença são produtos culturais e sociais; são criações discursivas e são constituídas por meio da linguagem. A natureza da linguagem que usamos, consequentemente, exerce implicações nos modos como as subjetividades são construídas e produzidas, acarretando novas formas de se perceber e de perceber o outro. Segundo Silva: a afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Dizer ‘o que somos’ significa também dizer ‘o que não somos’. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e sobre quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fornteiras, significa fazer distinções (...) está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’ e ‘eles’. (2000, p. 82)
Sob a perspectiva não essencialista de identidade, Hall (2001) destaca que os indivíduos constroem o mundo e a si próprios por meio de uma identidade relacional e instável. Sob esta ótica, a resposta à questão “Quem nós somos” depende dos eventos discursivos dos quais participamos. O autor compreende a identidade como um ato performativo, entendendo os indivíduos não com base em alguma essência, mas como sujeitos que se constituem nos discursos e as identidades como construídas nos eventos discursivos. Assim, a identidade é sempre um “sujeito-em-processo”, uma constituição que nunca cessa, sendo, por isso, permeada pela O que a distância revela
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idéia de resistência, de ruptura e de mudança nas representações discursivas que a configuram. Em meio a essa visão desestabilizadora, perturbadora e problemática do ‘eu’, novas identidades e novos sujeitos são criados pelas recomposições recomposições em torno de pontos de convergência que são passíveis de articulação, constantes fragmentações e rupturas e deslocamentos (GIDDENS, 2002; HARVEY, 1989, LACLAU, 1990). A próxima seção mostrará o processo reflexivo da CLC e suas implicações na identidade da professora pesquisada.
O processo de CLC: focos de (trans) formação da identidade da professora participante O programa de CLC foi realizado em três momentos: (1) leitura de textos teóricos; (2) reflexão dos textos e prática de leitura opositiva, visando contribuir para a construção de uma consciência de língua que atente para a transformação das relações de dominação de umas pessoas sobre outras, em vista de a consciência ser o primeiro passo em busca da emancipação e (3) aplicação prática: relatos de experiência no ensino de produção de texto publicados em artigos e/ou experenciados em nossa prática enquanto professoras de disciplinas de texto e planejamento de oficinas de texto a serem aplicadas na sala de aula participante. A Consciência Linguística Crítica é uma teoria linguística que surgiu na Universidade de Lancaster, pela constatação de que os programas educacionais não estavam sendo suficientemente críticos, negligenciando aspectos sociais da linguagem, especialmente no que tange ao relacionamento linguagem e poder (FAIRCLOUGH, 1992). Nesse sentido, alinha-se a presente pesquisa, pois, apesar de passados mais de 20 anos, desde o início dos estudos da CLC na Inglaterra, o 108
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quadro educacional continua deficiente em relação ao trato com a linguagem. Nesse sentido, há uma orientação intervencionista em direção à linguagem, na medida em que conceitua, em termos de habilidades e técnicas, uma linguagem penetrante que objetiva o desenvolvimento das capacidades linguísticas de forma crítica. Fairclough (1992) postula que a Consciência Linguística Crítica é construída sobre o estudo da linguagem crítica, análise do discurso crítica e linguística crítica, portanto, adota uma concepção crítica da educação, da instrução e da escolaridade. Sobretudo com as mudanças contemporâneas do papel da linguagem na vida social, deve ser uma prática urgentemente aplicada no contexto do ensino fundamental e médio, por se tratar de um pré-requisito para cidadãos efetivamente democráticos, pois as atividades de conscientização dentro do espaço escolar que a CLC propõe objetivam um discurso emancipatório. A consciência Linguística Crítica é, eu acredito, um pré-requisito para a cidadania democrática eficaz, e deve, portanto, ser vista como um direito dos cidadãos que deve se desenvolver, especialmente, no sistema educacional. (FAIRCLOUGH, 1992, p.3 – tradução livre)
Durante o processo de CLC, a professora-colaboradora, mostra nuances dessa consciência, que Fairclough (1992, p.3) acredita ser um pré-requisito para a cidadania democrática eficaz: O que eu acho que foi mais forte, nesse momento com você, nessa pesquisa é realmente o poder das palavras. Ficou muito forte em mim, latente ali dentro do coração também. Porque... vivemos numa grande disputa de interesses, nós somos avaliados, nós avaliamos, não só os nossos alunos, mas as nossas práticas e também como pessoas. E conseguir conversar e conseguir mostrar para as pessoas que estão ao nosso redor o nosso pensamento, a nossa forma de ser e até criticar sem humilhar, sem ofen-
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der, eu acho que é uma grande maturidade para um ser humano. (Entrevista com a professora)
Nesse excerto de entrevista, a professora-colaboradora inicia sua fala, destacando a consciência do poder arraigado nas palavras. O verbo achar mostra certa insegurança em fazer tal afirmação, todavia, essa dúvida materializada pelo verbo achar vai dando lugar a alguma nuance de certeza, expressa pelo advérbio realmente. A ilustração da professora “E conseguir conversar e conseguir mostrar para as pessoas que estão ao nosso redor o nosso pensamento, a nossa forma de ser [...] eu acho que é uma grande maturidade para o ser humano” concretiza situações em que o nosso tempo de estudo sobre linguagem e discurso tem sido refletido em sua identidade. Novamente, o verbo achar aparece, mostrando que apesar de estar experimentando algumas mudanças, a professora-colaboradora ainda tem alguns receios de fazer afirmações categóricas sobre a relação entre linguagem e empoderamento. A repetição do verbo conseguir ao invés da elipse enfatiza a agência da professora e o consequente empoderamento. Neste artigo, o conceito de agência alinha-se a Garcia & Rangel (20134): Todo e qualquer indivíduo que participe, diretamente ou como mediador, de uma prática cultural. [...]. Quando essa participação é direta e decisiva para a prática em jogo, dizemos que esse agente é um protagonista.
Com base nas palavras de Fairclough (1992) a respeito de a Consciência Linguística Crítica ser um pré-requisito para a cidadania, pôde-se perceber que o sujeito de pesquisa começou a alinhar-se a esse postulado, ao comentar sobre sociedade, avaliação, disputas de interesses e relacionar tais coisas com linguagem. As associações 4 A ausência da citação da página deve-se ao fato de fazer parte de um glossário de um curso virtual.
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entre linguagem e sociedade feitas pela colaboradora transcenderam seu “eu social” e chegaram ao seu “eu pessoal”, como as expressões “forma de ser”, “latente ali dentro do coração” mostram. Uma visão crítica da construção social da identidade reconhece a influência de ideologias dominantes e, especialmente a possibilidade de combatê-las. As armas para este combate permeiam discursos, bem como a capacidade de construir significados. Essa capacidade para construir significados é potencializada por meio do letramento, aqui entendido como o domínio dos usos e funções da escrita para acesso a outros mundos, públicos e institucionais como o da mídia, da burocracia, da tecnologia, por meio deles a possibilidade de acesso ao poder. Esse empoderamento potencializa o cidadão para lidar com as estruturas de poder na sociedade (KLEIMAN, 1995, p.8). Clark et al.(1991, p.14) observa três importantes assuntos que um programa de Conscientização Crítica da Linguagem deve abordar, a saber, conscientização social do discurso, conscientização crítica da diversidade e consciência e práticas voltadas para a mudança (emancipação social). Os mesmos autores também observam que a CLC é formada formada pelas capacidades de linguagem existentes e pelas experiências dos aprendizes, dessa maneira, julgamos que analisar narrativas de suas experiências autobiográficas durante o processo de conscientização é pertinente. Durante as etapas desse processo, nuances de transformação identitária foram sendo percebidas. Assim, o pressuposto de que a definição de quem somos, ou melhor, dos nossos modos de ser, está totalmente vinculada nos discursos pelo quais faz-nos concordar com a visão socioconstrucionista da identidade de Moita-Lopes (2003) quando afirma que identidades são construções sociais e, nesse sentido, somos construídos nos encontros interacionais. Desse modo, identidades são constantemente construídas, remodeladas e transformadas pelos sentidos que damos às nossas experiências. O que a distância revela
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Em uma das notas produzidas durante o trabalho de campo, a professora-colaboradora disse que sabia que não era capaz de mudar ninguém: Enquanto conversávamos informalmente na sala dos professores, a professora-colaboradora disse que mudar as pessoas é muito difícil. Disse que se ela conseguir transformar pelo menos uma de suas duas filhas, já deveria dar-se por satisfeita (Nota de campo – semana 1)
Todavia, com o andamento do processo de CLC, a professora produziu um memorial de leitura, focando nas suas experiências de vida. Ao final de sua reflexão, após quatro páginas escritas, ela escreveu: ... eu confesso que creio no poder da transformação a partir da leitura. Já desejei mudar o mundo, mas se hoje apenas um dos meus tantos alunos, ou uma das minhas duas filhas conseguir perceber o quanto é maravilhoso e gratificante essa viagem pela leitura, já estarei recompensada (trecho do memorial de leitura da professora).
Da mesma forma que Freire (1988, p.7) constatou que, “ao ir escrevendo este texto, ia ‘tomando distância’ dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial”, a professora-colaboradora se re-experenciou na produção de seu memorial, tomando distância e refletindo com mais profundidade sobre suas experiências, o que a levou a uma mudança de postura. Ao lembrar a importância do ato de ler em sua vida e o quanto ela foi transformada por isso, teve consciência de que a leitura pode mudar, sim, a vida de pelo menos um de seus alunos. Para Choularaki & Fairclough (1999, p. 25), sujeitos não só são interpelados pelas ideologias dominantes (conforme nomeou
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ALTHUSSER, 1971 apud CHOULARKI & FAIRCLOUGH, 1999, p.25), mas também são agentes que constroem posições de sujeito e por meio dessas posições também podem trilhar caminhos transformadores. Tais sujeitos têm como principal prática do mundo a explicitação da experiência, como parte do seu envolvimento em práticas sociais (BOURDIEU 1977, p.3 apud CHOULARAKI & FAIRCLOUGH 1999, p.29), pois ela foi profundamente explorada neste momento da pesquisa, visto que a explicitação das experiências da professora-colaboradora em relação à linguagem e ao discurso, por meio da produção de seu memorial de leitura, revelaram nuances de mudança identitária. Como observa Giddens (2002, p. 5-6), a reflexividade da modernidade vai além do monitoramento reflexivo da ação, pois “solapa a certeza do conhecimento” e baseia-se no princípio da dúvida. Nesse sentido, até doutrinas científicas cristalizadas estão sujeitas à revisão. Assim, reflexividade será entendida como uma “revisão intensa à luz de novo conhecimento ou informação (ibidem: 26). Ademais, reflexividade, de acordo com Choularaki & Fairclough (1999, p. 25-27) implica luta social - conhecimentos reflexivamente aplicados sobre uma prática posicionam saberes e sujeitos - e envolve um “aspecto discursivo irredutível” (p. 26), visto que práticas envolvem linguagem e construções discursivas são parte da prática. A propósito disso, Choularaki & Fairclough (1999, p.27, tradução minha) postulam: “práticas teóricas podem e devem ser reflexivas, no sentido de iluminar suas próprias condições de possibilidade”. Com o processo de CLC em andamento, entrevistamos a professora-colaboradora no sentido de investigar possíveis mudanças identitárias decorridas com o estímulo da CLC em sua prática e até mesmo em sua vida. A colaboradora relatou um episódio em que uma estagiária estava trazendo problemas na escola onde ela era coordenadora. A maneira como a professora lidou com o problema,
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segundo ela, foi reflexo do tempo de estudo que estávamos tendo. O excerto abaixo revela um momento de revisão de prática (GIDDENS, 2002), após queixas da professora titular a respeito da estagiária que estava causando problemas: E em seguida marquei uma reunião com a menina. Pensei num primeiro momento de marcar uma reunião com a coordenadora do estágio, mas achei que a coisa ficaria tão indireta, a coordenadora ia brigar e talvez não atingisse o meu objetivo que era ajudar alguém e eu fui direto na pessoa e eu conversei com ela. (entrevista com a professora)
O trecho mostra um protagonismo (GARCIA & RANGEL, 2013) diante de uma situação problemática, que, provavelmente, antes da CLC não era uma característica marcante de sua identidade, já que escolheu relatar este episódio de sua vida para ilustrar as mudanças após as nossas leituras. É interessante ressaltar que, na maioria das vezes, a voz da professora aparece na primeira pessoa do plural, como vamos ver em outros trechos de entrevista ao longo deste trabalho. Todavia, no excerto acima, a primeira pessoa do singular aparece muitas vezes, confirmando, indícios de mudanças e o consequente protagonismo. Ao atribuir sentidos às relações sociais e às práticas imbricadas nelas, construímos características do eu pessoal e consequentemente do eu social. Assim sendo, programas de CLC podem posicionar sujeitos em identidades conforme sua vinculação em um discurso. Nesse sentido, os discursos são instrumentos de reflexão, interpretação e compreensão da vida social (sobretudo na pós-modernidade) e consequentemente constroem e reconstroem 114
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identidades sociais pelas informações, pela comunicação e pela produção de sentidos. Uma visão crítica da construção social da identidade reconhece a influência de ideologias dominantes e, especialmente a possibilidade de combatê-las. As armas para este combate permeiam discursos, bem como a capacidade de construir significados. Essa capacidade para construir significados é potencializada por meio do letramento, aqui entendido como o domínio dos usos e funções da escrita para acesso a outros mundos, públicos e institucionais como o da mídia, da burocracia, da tecnologia, e, por meio deles, a possibilidade de acesso ao poder. Esse empoderamento potencializa o cidadão para lidar com as estruturas de poder na sociedade (KLEIMAN, 1995, p.8). Eu tô me sentindo realizada, eu tô me achando, eu tô uma estrela da globo, assim, na minha aula. Doía muito eu ver os meninos com uma dificuldade e tá ali, pontuando, pontuando, horas de pesquisa, finais de semana e não atingir o foco. Quando a gente pega um trabalho, que chega na gente e você aplica e você sente a reação imediata da turma, aí você para e fala poxa, eu tô no caminho certo (entrevista com a professora)
Nesse trecho da entrevista, destacamos, inicialmente, a utilização da primeira pessoa do singular em estruturas frasais nominais, cujos predicativos ressaltam aspectos positivos da identidade docente e reforçam seu processo de fortalecimento em novas identidades. Ademais, a fusão da primeira pessoa do singular com outras pessoas do discurso, materializada por “a gente” amplia O que a distância revela
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a identidade da colaboradora revelando a importância do apoio das pesquisadoras na revisão de suas práticas: a nova marca identitária mais segura se deve, também, ao fato de ela não estar sozinha e sentir-se respaldada neste momento de reflexividade. A repetição do gerúndio pontua e destaca a ideia de que a identidade antiga exigia um trabalho árduo e sem retorno, o que gerava no campo da identificação um desânimo provável. Além disso, o uso da primeira estrutura verbal no passado se relacionando ao sentimento de “dor” ao verificar que sua identidade e prática antigas não surtiam efeito, denota o pressuposto de que agora há melhoria, não há mais dor, há poder de mudança. Os verbos de ação “pega”, “aplica” mostram uma identidade segura em relação ao sucesso de seus caminhos metodológicos na sala de aula. Juntamente com os verbos de ação, há um verbo sensorial (“sentir”) que possui conotação positiva e aponta para mudança: antes sentia dor, mas agora está segura em suas aulas. O verbo sentir também revela que os novos discursos que a professora tem sido inserida transcendem modos de ação (gêneros) e os modos de representação (discursos), e alcança os modos de ser (estilos), promovendo uma relação dialética entre os aspectos do discurso postulados por Fairclough, 2003. No início da pesquisa, a maioria dos alunos elogiaram a professora-colaboradora, mas quase 70% dos alunos afirmaram estar descontentes com a avaliação da professora. Durante o processo de CLC, depois de quatro encontros, a professora-colaboradora aponta uma melhora neste aspecto: Dentro da minha prática, principalmente com a maneira de avaliar meus alunos, a conseguir levar uma aula mais real, que toque o interesse, o sentimento deles, e ao mesmo passo, na hora de corrigir, que pontue, que dê o puxão de orelha sem fazê-los
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sentir menosprezados sem humilhar, sem colocá-los na situação de coitadinhos, não, a gente vai lá, eles escrevem o texto, escolhe uma porção, analisa ... a maioria está errando alguma coisa, eu quero que você pesquise e reescreva seu texto, nossa senhora, a carinha deles... professora eu fiz, professora tá aqui... (entrevista com a professora)
O trecho mostra que o processo de reflexividade docente reflete nos alunos. O trabalho antes doloroso e sem retorno, inicia um processo de tranformação, resultando no interesse do aluno, atribuído, pela professora, ao novo processo de avaliação que ela está executando. Sem ferir os “sentimentos” (lemos como a base da identidade do aluno) e preocupada em não os enfraquecer (sem humilhar, sem colocar na situação de coitadinhos), a professora transmite a reflexividade, a revisão de práticas, a mudança e o emproderamento aos seus alunos. Acresentamos à reflexão sobre a CLC e identidade, os multiletramentos. Ong (1982 apud ROJO, 2009) observa que os seres humanos funcionalmente letrados são seres cujo processo de pensamento não nasce de capacidades naturais, mas da estruturação dessas capacidades, via tecnologia da escrita. A escrita constrói o pensamento letrado, inclusive quando o sujeito está compondo o seu pensamento de forma oral, portanto a escrita é instrumento para uma oralidade letrada (KLEIMAN 1995), estendendo ainda mais o raio de ação das aulas de Língua Portuguesa, especialmente nas relações sociais cotidianas (mais polidez, menos violência, por exemplo). Nesse sentido, a professora-colaboradora conta uma experência, cuja análise já foi iniciada neste trabalho. Destacamos aspectos de sua identidade no quadro a seguir:
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Quadro 1 - Aspectos da identidade da professora-colaboradora Trecho
Análise/Marca de Mudança
Eu quero relatar aqui um episódio, aconteceu durante esse processo, que foi muito bom, eu tive oportunidades lá na minha outra escola onde eu sou coordenadora de receber uma estagiária [...] ela havia iniciado esse mesmo estágio, mas não levou a sério
A estagiária “problemática” é vista pela professora como uma oportunidade. Ela mostra ansiedade em ampliar a mudança e a revisão de suas práticas, ajudando novas professoras. No caso desta, ainda em formação inicial.
Trecho
Análise/Marca de Mudança
Compreensiva
tudo bem, recebemos, acho que todo ser humano é falível
Entende que a estagiária merece outra chance, pois todos somos sucetíveis a erros. A mesma marca de identidade é vista a respeito da avaliação de seus alunos.
Interventora
Só que aí ela começou a faltar, a deixar a desejar como professora [...] planejava, não executava [...] faltava domínio, faltava uma série de itens necessários [...] e a turma estava sendo prejudicada. E chegou uma situação que a professora oficial disse ‘eu preciso de sua ajuda’, e eu tive que conversar com ela.
Diante do problema, a professora mostra uma reação protagonista e decisiva. Antes do processo de CLC percebe-se que não era comum esse tipo de ação diante dos problemas e conflitos por parte da colaboradora.
Identidade
Interventora
Identidade
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Empoderada
Empoderada/ motivada
E eu me lembro assim, me emociona muito... Ela veio com um presente muito simples, mas o presente maior foi o que ela falou... e disse que a coisa que ela mais precisava ouvir na vida dela foi aquela chamada de atenção, que eu fui dura mas que eu fui humana, e que eu falei o que exatamente ela precisava aprender, até como ser humano, e que ela não ia desisistir
Antes o sentimento de dor e até um pressuposto desânimo por causa da dedicação sem retorno. Agora, uma empreitada bem-sucedida, que transcende o seu eu profissional e toca o seu eu pessoal.
então me tocou muito, me emocionei muito porque pra mim mesmo eu tenho que falar todos so dias, eu não tenho que ter pena de mim [...]eu preciso estar aberta a aprender.
A relação dialética entre os significados do discurso (FAIRCLOUGH, 2003) se estabeleceu. Sua identidade foi influenciada por esse processo e a “oportunidade” de aprendizagem aconteceu.
Dessa maneira, a ADC, a CLC e os (multi)letramentos embasam a transformação da identidade docente. De acordo com o pensamento de Giroux (1997, p. 28-9), o papel dos educadores está ligado a como encarar o propósito da escolarização. Quando se encara a escola como esfera pública democrática, construída ao redor de investigações críticas que dignificam o diálogo significativo e a atividade humana, as bases para o trabalho docente e as formas progressistas de pedagogia são construídas. Nesse sentido, o professor precisa ser consciente de seu papel enquanto intelectual, que opera em condições especiais de trabalho e que desempenha uma função política e social particular. Acreditamos que essa deva ser uma marca identitária essencial para um educador: ser consciente de que precisa atuar como intelectual transformador.
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Em uma das notas de campo ao longo da pesquisa, registramos alguns comentários da professora, após um encontro de leitura sobre o professor como intelectual transformador (GIROUX, 1987, p. 7-53): “Fico repetindo todos os dias, eu sou uma intelectual, meu trabalho é intelectual, não é braçal, é para isso que eu estudei”. Em seguida a professora-colaboradora disse que fez uma nova assinatura em seu e-mail, colocando sua profissão de professora e coordenadora, sua graduação e as suas duas especilizações. Ainda se justificou, “não é para me gabar, é para mostrar o quanto eu tenho orgulho de ser professora, de ser uma inelectual”. Certamente, agregado a esse quadro, não só a identidade docente tradicional corrobora para o enfraquecimento dos processos educativos. Como postula Giroux (1997), as condições materiais sob as quais os professores trabalham constituem a base para delimitarem ou fortalecerem suas práticas enquanto intelectuais. Todavia, o autor prossegue (ibidem, p.29): os professores como intelectuais precisarão reconsiderar e, possivelmente, transformar a natureza fundamental das condições em que trabalham. Isto é, os professores devem ser capazes de moldar os modos nos quais o tempo, o espaço, atividade e conhecimento organizam o cotidiano nas escolas. Mais especificamente, os professores devem criar a ideologia e condições estruturais necessárias para escreverem, pesquisarem e trabalharem uns com os outros na produção de currículos e repartição de poder. Os professores precisam desenvolver um discurso e conjunto de suposições que lhes permita atuar mais especificamente como intelectuais transformadores.
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O professor pesquisador, que acredita no sucesso de seu trabalho, coleta dados ao longo de sua prática. Esses “dados-resultados” são estratégias argumentativas ideais que poderão culminar em mudança (MICCOLI, 2005, p. 45). Acreditamos que o professor deva buscar excelência em seu trabalho, pois é esse trabalho que transformará, constantemente, sua prática, seus alunos e finalmente suas condições de trabalho.
Considerações finais Diante da afirmação de Magalhães (2003, p.14) de que “as identidades dos professores continuam tradicionais”, pois as reformas educacionais são desvinculadas de um processo de formação de professores e da recente manchete do jornal “Folha de São Paulo”, no dia 4 de agosto de 2013, “Formação do professor brasileiro tem muita carga teórica e pouca preparação prática”, este artigo procura caminhar um pouco mais rumo a uma educação docente continuada que atinja, de fato, uma mudança efetiva na identidade tradicional dos professores. Durante todo o tempo de educação continuada, a identidade da professora pesquisada foi afetada antes de haver quaisquer marcas de transformação em suas aulas. O empoderamento teve de se configurar, antes de tudo, na identidade da professora, o que nos esboça um caminho como resposta para a constatação da pesquisadora Magalhães. Em outras palavras, enquanto cursos de formação continuada na área da educação continuar repisando teoria e metodologia, não haverá mudanças significativas na prática escolar exatamente porque não se trabalhou com a mudança de identidade. A presença de pesquisadores nas escolas, que possam fazer um trabalho dialógico e conjunto, com base nas próprias experiências dos professores, rumo a uma educação fortalecedora, pode ser um caminho que começa finalmente a se abrir. O que a distância revela
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O presente estudo também se configura como um pontapé inicial que tece novas possibilidades em relação ao alerta feito na manchete do jornal Folha de S. Paulo, mencionado: o processo de CLC, feito com a colaboradora da pesquisa, foi dividido em três momentos, que se materializavam em atividades, práticas, conforme visto no início da seção 5. Para finalizar, conforme postula Rojo (2009, p.119), a educação linguística, de forma ética e democrática, deve abarcar os multiletramentos, os letramentos multissemióticos e os letramentos críticos e protagonistas. Os multiletramentos proporcionam contato com letramentos valorizados, universais e institucionais sem apagar letramentos de culturas locais - aulas de Língua Portuguesa, por exemplo, são espaços privilegiados para promover os letramentos múltiplos, já que a língua(gem) como discurso permeia todos esses universais. O professor de Língua Portuguesa pode se utilizar de diversos temas para o processo leitura e escrita, que, além de abarcarem a dimensão linguística, contribuem na produção de sistemas simbólicos (FAIRCLOUGH, 2001) que (re)formularão identidades rumo à inclusão social. A autora (ROJO, 2009) acrescenta aos multiletramentos, os letramentos críticos e protagonistas, por englobarem o trato ético dos discursos, já que a linguagem não ocorre no vácuo social, pelo contrário, constrói significados contextualizados para agir na vida social. Brian Street (2012) amplia este conceito, ao argumentar que os multiletramentos sinalizam um novo mundo em que práticas de letramento envolvendo a leitura e escrita são apenas partes dos que as pessoas têm de aprender a fim de serem letradas, pois os sistemas semióticos transcendem a leitura, a escrita e a fala. Segundo o autor, letramento não é um modo ou canal, que deixa de levar em conta as práticas sociais ligadas à construção, aos usos e aos significados do
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letramento em cada contexto: são as práticas sociais que atribuem significados e conduzem a efeitos. Muitos desses efeitos foram vistos ao longo deste artigo. Para finalizar, deixamos uma fala bem especial e encorajadora para professores-pesquisadores de nossa colaboradora a respeito da presença do pesquisador na escola: Transforma, transforma, transforma... principalmente o pesquisador que está com a mente nos livros, nos teóricos, mas os pés no chão. É um pesquisador que conhece a realidade porque viveu... não alguém que venha sugar o que eu passo e criticar, porque me dá medo uma vinda de pesquisador ou a pesquisa no Brasil virar isso. Os nossos pesquisadores, se saírem de sala de aula vão planejar ações, sugerir ações que vão tocar os alunos do Brasil inteiro. O pesquisador dentro da escola eu acho que é fundamental, mas não um pesquisador qualquer, esse pesquisador carregado de experiências como as nossas... não só vivido a custas de noite viradas em leitura, mas a custas de prática, que foi moldado, soldado com as durezas do dia a dia.
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Capítulo VI
Teorias cognitivas e abordagens metodológicas no ensino de segunda língua (L2) e de língua estrangeira (LE) Ana Adelina Lôpo Ramos
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Teorias cognitivas e abordagens metodológicas no ensino de segunda língua (L2) e de língua estrangeira (LE) Profª. Ana Adelina Lôpo Ramos1
Considerações iniciais A preocupação com a maneira de como o homem adquire o conhecimento sempre inquietou estudiosos, desde a antiguidade até as investigações científicas contemporâneas. Diferentes princípios teóricos têm sido construídos acerca de como o ser humano se apropria das informações a que é exposto e como ele internamente processa essas informações a ponto de transformá-las em conhecimento. No que diz respeito à linguagem, particularmente, três teorias apresentam princípios efetivamente relevantes no campo em discussão: Behaviorismo, Inatismo e Interacionismo. Dessas, duas têm influência tradicionalmente direta nos processos de ensino e de aprendizagem de língua, podendo ser primeira língua (L1), segunda língua (L2) ou língua estrangeira (LE). As duas últimas de importância particular neste artigo. A intenção, neste artigo, não é priorizar uma dessas teorias em detrimento de outras, embora tenhamos sempre preferência por aquele aporte que responda mais adequadamente 1 Graduada em Licenciatura Plena em Letras e Especialista em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, Campus II, Campina Grande. Mestre e doutora pelo Curso de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília, respectivamente em 1993 e 2007. Tem ampla experiência no ensino de português como primeira língua (L1) e como segunda língua (L2/LE), áreas em que atua na formação de professores. Desenvolve pesquisa em Linguística Textual de cunho discursivo, voltada para área de ensino de Português do Brasil em contexto de letramento de segunda língua
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às nossas inquietudes como professor, para uma prática pedagógica que, acreditamos, mais bem-sucedida. Mas é, antes, levantar os fundamentos teóricos sobre a aquisição e a aprendizagem de uma língua, os quais servem de base para as abordagens de ensino em contexto de letramento de segunda língua e de língua estrangeira. Inicialmente, convém estabelecer uma distinção, pelo menos em termos didáticos, entre aquisição e aprendizagem.
Aquisição e Aprendizagem: Embora se confundam muitas vezes, exatamente pela situação limítrofe que apresentam entre si em contextos reais de uso linguístico, esses dois termos se configuram diferentemente quanto ao aspecto de formalização no campo das práticas pedagógicas. Stephen Krashen (1982) é quem propõe a diferença entre esses os dois processos. Para ele, aquisição traduz-se como um processo natural, pois ocorre de modo espontâneo de como nos apropriamos da língua no dia a dia na interação com as pessoas com quem convivemos. Já a aprendizagem consiste em processo formal para apreensão do conhecimento linguístico, e, por isso mesmo, a participação da escola, na maioria dos casos, e os materiais didáticos, mesmo em situações de autodidatismo, cumprem papel determinante. O próprio Krashen, contudo, admite que tais processos não são estanques quando se consideram os contextos de práticas linguístico sociais. Em situação de sala de aula, por exemplo, apesar de se tratar de contexto formal, podem acontecer situações de aquisição. A conversa informal compartilhada por colegas na língua alvo pode constituir momento para se adquirir conhecimento de algum aspecto linguístico. Além disso, o convívio em outros
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ambientes escolares, como pátio, lanchonetes, corredores, lugares naturais de práticas linguísticas, propicia a exposição à língua-meta. De outro ponto de vista, em contextos de aquisição, pode ocorrer aprendizagem, por exemplo, em situação de imersão, detendo, ou não, algum conhecimento linguístico, que, por alguma razão, o sujeito não tenha entendido a pronúncia de um fonema, ou o sentido de uma palavra, recebe a explicação de alguém. Mesmo não sendo essa um contexto formal de aula strictu sensu, há reflexão acerca do que se estava discutindo, o que pode caracterizar certa formalização no trato do dado linguístico. Outro ponto relevante a se esclarecer, ainda, sobre os conceitos de aquisição e de aprendizagem não serem estanques refere-se à relação que cada um estabelece com o estatuto de primeira e de segunda língua. Tradicionalmente, costumase atribuir aquisição à L1, exatamente por se tratar de processo natural de apropriação linguística, e aprendizagem, à L2/LE, por tratar-se de sistematização do conhecimento. No entanto, em contextos de práticas sociais, vemos que há momentos de aprendizagem de L1, quando, por exemplo, lidamos com o processo de apropriação da escrita, e aquisição de L2/LE, quando nos deparamos com as situações reais de uso linguístico nos diversos ambientes de imersão. As considerações acima indicam, portanto, que devemos entender os dois processos, aquisição e aprendizagem, sempre considerando os contextos das práticas socioculturais, pois precisa se levar em conta também aspectos extralinguísticos.
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Marcadores teóricos cognitivistas no ensino de L2/LE Behaviorismo e Linguística Estrutural Behaviorismo Behaviorismo é uma teoria da Psicologia que tem como “principal objeto de estudo o comportamento (behavior) ou conduta do organismo e não de algum processo interno inobservável, determinante desse comportamento” (RIVERS, 1974, p.179). Segundo os princípios dessa corrente, o conhecimento é adquirido com base nos estímulos a que se é exposto, estímulos cujas respostas são fisicamente palpáveis e mensuráveis, de modo que cada um desses condiciona uma resposta sempre previsível. São muitos os adeptos dessa corrente, desde os primeiros estudos sobre os reflexos condicionados, de Pavlov, dos experimentos de Watson, passando pelo Condicionamento Contínuo, de Guthier, pelo Intencionalismo ou Teoria da Expectativa, desenvolvida por Tolman, pela Teoria Sistemática da Redução de Impulso, de Hull, até o Condicionamento Operante, presente nas experiências de Skinner. Em que pesem determinadas diferenças na maneira de cada um desses estudiosos conduzir suas pesquisas, havia um ponto comum entre eles: o conhecimento é adquirido pela relação de condicionamento que se traduz pelo par estímulo/resposta. Por isso, “o Behaviorismo (condutismo ou comportamentalismo) tornou-se conhecido como Psicologia do ER” (RIVERS, 1974, p.179).
Skinner e o conceito de Condicionamento Operante De todos os behavioristas, o que trouxe efetiva contribuição para a área dos estudos linguísticos foi Skinner. O conceito de 132
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Condicionamento Operante, proposto por ele, é considerado até hoje na área da linguagem, tanto no âmbito de pesquisas, como no de ensino de línguas, sobretudo de L2/LE. Consiste na ideia de que a criança fala quando a ela é oferecido um estímulo linguístico, que deve ser repetido até que essa criança consiga se expressar de modo bem-sucedido, sendo, por isso mesmo, recompensada. Ao se reforçar com a recompensa, efetiva-se o condicionamento, que é classificado como operante. A esse respeito, Skinner afirma (2012, p. 43): ...Quando um comportamento tem um tipo de consequência chamada reforço, há maior probabilidade de ele ocorrer novamente. Um reforço positivo fortalece qualquer comportamento que o produza.
Linguística Estrutural e ensino de línguas No campo de ensino de línguas, o condicionamento operante foi e vem ainda sendo utilizado por professores no aparato metodológico de técnicas das práticas pedagógicas. Traduz-se na repetição, na imitação, no reforço dado, comum em diversos cursos de línguas estrangeiras, e será abordado posteriormente. Isso porque princípios da teoria comportamentalista influenciaram correntes teóricas do estruturalismo linguístico e se refletiram em orientações pedagógicas que abordam a língua sob a sua perspectiva de sistema. No auge do Behaviorismo, que é teoria originária da Psicologia, estavam em efervescência os estudos linguísticos estruturalistas, baseados nas proposições de Ferdinand de Saussure, fundador da visão científica sobre a língua, a Linguística. Seguidores das concepções de língua como estrutura, proclamadas pelo mestre genebrino, multiplicaram-se além do continente europeu. Entre esses, destaca-se o americano Leonard
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Bloomfield (1993), cuja proposta teórica de análise linguística, Distribucionismo, ecoava preceitos da teoria behaviorista ou comportamentalista. Para Bloomfield, o sistema linguístico consiste em uma estrutura formada por constituintes imediatos, em níveis hierárquicos (fonológico, morfológico, sintático), cujas relações se estabelecem de modo previsível, modo automático, mecânico, o que reflete a ideia comportamentalista de que os objetos, as “coisas” do mundo existem independentes do ser humano, que as acessa somente se lhe forem expostas de modo repetido, mecanicamente Sendo assim, há uma transferência da concepção behaviorista de que os “objetos”, as “coisas” do mundo, inclusive, a língua, existem independentemente da presença do ser humano: o ambiente é o único provedor de conhecimento. Essas
ideias
trouxeram
repercussões no campo da pedagogia de
língua.
A
concepção
de
língua
como estrutura associada ao princípio da aprendizagem pela repetição e pelo reforço positivo resultou no surgimento de uma abordagem de ensino de língua que dominou a área da língua estrangeira durante as décadas de 60 e 70 do século passado. A Abordagem Estruturalista orientou, e ainda continua orientando, práticas pedagógicas do inglês, do francês, do espanhol, do português, enfim das línguas empíricas, uma vez que muitos professores acreditavam e acreditam ser a língua algo meramente estrutural, instrumental. Apesar da concepção limitada dessa abordagem, não se pode negar a sua importância para o ensino de língua, pois o que se vinha praticando era uma pedagogia ora pautada no equivocado processo de tradução de estruturas, ora somente em preceitos do
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que conhecemos por Gramática Tradicional, que como já sabemos, não reflete a amplitude do complexo e variado universo de qualquer língua em uso.
Abordagem Estruturalista Compreendemos, então, que o Behaviorismo é a teoria da psicologia que, conjuntamente ao estruturalismo linguístico, sobretudo de Bloomfield, fornece os princípios de cognição e de análise que fundamentam a abordagem que concebe a língua apenas como sistema, como uma estrutura a ser apreendida por metodologia de repetição. A Abordagem Estruturalista contempla em seu conjunto de técnicas o preenchimento de lacunas, o estabelecimento de ligações entre colunas, de modo que os elementos linguísticos em foco (fonema, morfema, palavra e estruturas sintáticas) são trabalhados no limite do sistema linguístico, não se considera o contexto de uso, e, consequentemente, os aspectos culturais da língua alvo. As atividades têm por objetivo tão-somente o desenvolvimento do automatismo linguístico sobre aquele conteúdo que se está aprendendo, sempre com base em modelo proposto que, muitas vezes, não é usado em situações reais de fala. Os textos são artificiais2, pois produzidos para aquela atividade: são utilizados somente com o propósito de se trabalharem aspectos de ordem gramatical, sem se considerar o conteúdo que ele apresenta, uma vez que o nível informacional não importa nessa abordagem. A metodologia da Abordagem Estruturalista tem sido recorrente em livros e demais materiais didáticos de português 2 A respeito do tratamento dado ao texto nas abordagens de ensino de L2, leia o capítulo Da neutralização à contextualização oral e escrita: os livros de português para estrangeiros In: Língua e literatura: propostas de ensino, obra citada nas referências bibliográficas desse texto.
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do Brasil como língua estrangeira, ao longo da história dessas publicações pedagógicas. Veja-se exemplo da técnica estruturalista no excerto a seguir, extraído de livro de circulação internacional. Preencha as lacunas com gostar de Siga o modelo Modelo: Eu gosto de jogar bola. Ele _____________ __ falar português. Nós ____________ __ morar aqui. Eu ________________ __ tomar banho no rio. Vocês __________ __ de peixe. Eles (Elas) ____________ __ pescar. (Aprendendo Português do Brasil, LAROCA, com adaptações)
A atividade acima tem o objetivo de levar o aprendiz a se apropriar da estrutura de gostar, flexionado nas pessoas desse verbo, enfatizando a sua transitividade indireta, pois exige o uso da preposição de. Esse tipo de exercício, do modo como está proposto, não considera o contexto de uso em diversos gêneros textuais das práticas sociais em que a estrutura verbal pode ser usada, pois a ênfase restringe-se ao “formato” do verbo. Prova disso é a presença de múltiplos temas abordados nas frases “soltas” do conjunto que inclui o modelo e as demais. A par da teoria estruturalista de Bloomfield, a qual incorporou preceitos behavioristas e fundamentou o surgimento da abordagem comentada acima, surgiu outra frente teórica que, embora também conceba a língua sob a perspectiva de sistema gramatical, não a compreende sob a perspectiva comportamental,
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ao contrário, vê o conhecimento linguístico como dote biológico do indivíduo. É o Inatismo, fundamento cognitivo proposto pelo arcabouço da Gramática Gerativa Transformacional.
Inatismo O Inatismo, em contrapartida à visão externalista do Bahaviorismo, como já mencionado, defende que o ser humano não é uma “tábula rasa”, como pretenderam argumentar os behavioristas, mas, sim, trata da única espécie animal dotada geneticamente de linguagem. Essa teoria postula esse ser como naturalmente cognitivo, pois já nasce biologicamente dotado da capacidade linguística. O maior expoente dessa teoria, na área da Linguística, é Noam Chomsky, (1957), propositor da existência de uma Gramática Universal (GU), conjunto de regras linguísticas que todo ser humano possui e que lhe permite desenvolver qualquer idioma, as línguas empíricas, como inglês, francês, português etc. Para Chomsky, pelo fato de o ser humano apresentar estrutura física de corpo e os sistemas motor e perceptivo serem modulares, os órgãos mentais podem ser estudados nas mesmas bases em que são estudados aqueles primeiros (LOBATO, 1986, p.35). Desse modo, reside em um módulo mental e pode ser considerada um dote biológico da espécie humana que já nasce, portanto, dotada de linguagem e “Nessa concepção, a faculdade de linguagem é então tratada como um dos órgãos mentais, ou estruturas cognitivas, que integra a mente humana...” (Idem, p.36). É por essa razão que essa propositura chomskyana recebeu o nome de hipótese do inatismo. A estrutura inata, segundo o autor, compõe-se de princípios gerais que impõem limites e direcionam o que a criança deve adquirir quando é exposta aos dados da língua empírica, desde
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o início da aquisição linguística. Essa estrutura recebe o nome de Gramática Universal (GU) ou Dispositivo de Aquisição da Língua (DAL). A GU, segundo Chomsky, encontra-se em pleno desenvolvimento desde o nascimento do bebê, apresentando um período crítico quando a criança se encontra por volta dos oito anos de idade. Essa gramática é o dispositivo responsável pelo fato de uma criança criar frases complexas e até inusitadas em sua língua, dominar estruturas sintáticas complexas, mesmo tendo sido exposta a estímulos linguísticos “pobres”. Isso traz à baila outro princípio da linguística inatista: a ideia de que a língua é um conjunto finito com possibilidades infinitas. O aspecto da criatividade defendida pelos cognitivistas3 é outro ponto que contrapõe essa teoria aos postulados behavioristas que, conforme apresentado na seção anterior, entendiam o ser humano como um ser desprovido de qualquer conhecimento como indivíduo, tornando-se cognitivo somente quando exposto a conjunto repetido de estímulos externos. O princípio baseado na perspectiva internalista conduz Chomsky a propor o conceito de Competência Linguística, postulando que o homem é o único animal linguisticamente competente. Desenvolver a língua, para esse teórico, é uma habilidade fisiológica, como andar ou andar de bicicleta, por exemplo.
3 Apesar de o termo “cognitivistas” ser atribuído tradicionalmente aos defensores da existência de um conhecimento interno ao individuo, pode-se entender que todos aqueles que se preocupam em especular como a relação homem e cognição são estudiosos cognitivistas.
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O conceito de competência linguística e a emergência da Abordagem Comunicativa As ideias de Chomsky, diferentemente das de cunho comportamentalista, não contribuíram diretamente para o surgimento de uma abordagem em contexto de ensino de L2/LE, mas o conceito de competência linguística foi seminal para o surgimento de outro que motivou a emergência da famosa Abordagem Comunicativa, que imperou nos anos 70 e ainda encontra muitos adeptos nos dias atuais. Ao questionar a proposição chomskyana de competência linguística, o Sociolinguista Dell Hymes (1972), analisando as relações comunicativas dos grupos sociais, propôs o conceito de falante competente (competente speaker), segundo o qual alguém é competente linguisticamente quando sabe utilizar a língua adequadamente em cada contexto sociocultural. Para esse estudioso, portanto, ser competente vai além do domínio de estruturas linguísticas, das regras gramaticais, pois o individuo precisa saber se comunicar também com base em regras sociais do uso linguístico. E o entendimento de língua como elemento de comunicação é o que justificava a sua existência, tese compartilhada por outros linguistas contemporâneos, entre os quais os linguistas funcionalistas, como Roman Jakobson (1970). Esse conceito de Hymes repercutiu em várias áreas das ciências sociais, entre as quais na que trata do ensino de L2 e de LE. A palavra de ordem adotada nesse contexto era comunicação. Dizendo de outro modo, a ideia a ser alcançada era a de que ensinar e aprender uma língua não consistia somente em passar a dominar um conjunto de regras gramaticais fundamentadas, em grande parte, em preceitos da gramática tradicional, mas, sim, em saber se comunicar em diversas situações da língua-alvo.
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Os modelos de competência na perspectiva comunicativa O conceito de competência foi ampliado em vários modelos propostos para o ensino de LE. Um deles, sem dúvida de grande repercussão nesta área, foi o de Canale e Swain (1980), que contempla quatro componentes, sendo a gramática um dos aspectos. O modelo é composto por: a) competência sociolinguística, que se refere à compreensão adequada da língua em contextos sociolinguísticos diferentes, dependentes de fatores contextuais, como status dos participantes, propósito da interação e normas ou convenções de interações; b) competência discursiva, que diz respeito à capacidade de combinar formas gramaticais e significados para alcançar um texto unificado, escrito ou falado, em diferentes gêneros, à capacidade de elaborar um discurso coeso e coerente; c) competência gramatical, que consiste no domínio do código linguístico verbal, como vocabulário, estruturas, pronúncia, ortografia e semântica; e d) competência estratégica, que é a habilidade de ter atitudes estratégicas no sentido de compensar problemas de comunicação por ausência de conhecimento linguístico quando se pretende expressar alguma ideia. Além de Canale e Swain, Bachman (1980) apresenta outro modelo para descrição de competência comunicativa. Denominado de “Communicative Language Ability Model (CLA), consiste no conhecimento, ou competência, e
na capacidade
de implementação, ou na execução da competência, no uso contextualizado da comunicação linguística” (2005, p. 88). Tal modelo é assim constituído: competência linguística (conhecimento), que inclui competência organizacional e competência pragmática. Essas duas contemplam subtipos de competências: a primeira, competência gramatical e competência textual; a segunda, competência funcional e competência sociolinguística. 140
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Para Bachman (2005), a competência gramatical envolve os aspectos do sistema linguístico, como vocabulário, morfologia, sintaxe e fonologia. Já a competência textual diz respeito ao conhecimento sobre a organização dos enunciados que formam um texto. A competência funcional ou ilocucionária refere-se, como o próprio nome sugere, às funções exercidas pela língua como ideacional, manipulatória, regulatória, intencional, heurística e imaginativa, portanto, considera o discurso. Essa competência, segundo afirma a autora, possibilita a compreensão e a interpretação dos textos e, assim, as intenções dos usuários da língua. A competência sociolinguística é definida em termos de sensibilidade em relação a aspectos do contexto de uso linguístico, como questões de cunho dialetal, registros, aspectos culturais e aqueles relacionados à fala. Canale e Swain (1980) não incluem a habilidade comunicativa de uso de Hymes, e justificam apontando duas razões: 1) alegam que tal noção não foi investigada com rigor nas pesquisas sobre competência comunicativa; 2) têm dúvidas de que exista uma teoria de ação humana que possa adequadamente explicar “habilidade de uso” e fornecer base para explicar os princípios do syllabus design4, ao invés de apenas refletir tal noção (CANALE E SWAIN, 1980). Sendo assim, para o uso da língua, os autores falam em desempenho comunicativo, que é “a realização das competências e suas interações na produção e compreensão dos enunciados” (CANALE E SWAIN, 1980, p.7). Assim surgiu o que se tem denominado de Abordagem Comunicativa, adotada como aquela única que garantiria 4 O termo é recorrente nas áreas de L2 e LE e diz respeito tradicionalmente à ordem gramatical da língua.
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efetivamente o processo de aprendizagem de uma língua. Nessa perspectiva, surgiram os livros didáticos fundamentados na ideia de que a comunicação na língua estudada era a meta a ser atingida e, por isso mesmo, verificou-se uma recorrência a textos que espelhavam situações possíveis de uso daquela língua, como apresentações pessoais, identificações em recepções de hotéis, situações em restaurantes etc. O objetivo era, por assim dizer, a apreensão de diálogos para que o aprendiz percebesse o uso linguístico. Essa concepção de língua como elemento de comunicação contrapõe-se radicalmente àquela de cunho estruturalista, tendo seguidores até os dias atuais. Nessa direção, também caminham os estudos no campo de pesquisa e no ensino de segunda língua ou de língua estrangeira: a comunicação é o objetivo da instrução na aprendizagem nesses contextos, sendo a gramática um componente ancilar na aprendizagem de alguns alunos (WIDDOWSON, 1978). Embora a Abordagem Comunicativa seja reconhecidamente um avanço por conceber a língua além das estruturas sintáticas, a maioria das atividades contempladas em livros de língua estrangeira espelha técnicas da Abordagem Estruturalista, a começar pelo tratamento dado aos textos que, apesar de terem sido incluídos como recursos metodológicos, não são estudados como unidades de sentido, senão vejamos. Em diversos livros didáticos, observase que os textos são abordados apenas como um pretexto para o ensino de regras gramaticais. Além disso, detectam-se técnicas como repetição, preenchimento de lacunas, correlação entre colunas e exercícios, realizáveis com base no modelo cujas respostas são sempre previsíveis, caracterizando assim a presença de técnicas
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estruturalistas, fundamentadas nos automatismos proclamados pelo Behaviorismo. No livro de português para estrangeiros de Lima et al. (1991), por exemplo, há uma grande quantidade de diálogos que introduzem situações motivadoras para curtas produções guiadas. A título de ilustração, citamos um breve diálogo da lição “hotel e cidade”, ao qual se segue uma pequena lista com problemas referentes a um quarto de hotel. Essa lista deverá servir de apoio para que os aprendizes substituam a expressão do diálogo original, gerando novas situações. O chuveiro não está funcionando • Pois não? •
Queria mudar de quarto.
•
Algum problema?
•
É que o chuveiro não está funcionando e o quarto tem cheiro de mofo.
•
Não tem problema. A senhora pode mudar para o 308. rua barulhenta / elevador ao lado é muito barulhento ar condicionado/ chuveiro / telefone / televisão não está funcionando cama muito dura quarto muito escuro/muito pequeno/ abafado/ com cheiro de mofo O que a distância revela
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Como podemos observar, o aprendiz já é, de algum modo, apresentado a possível situação comunicativa, uma vez que é convidado a exercer o papel de hóspede e/ou de recepcionista, mas, encontra-se fora do contexto real em questão, visto que é a atividade uma encenação. Assim, como o aprendiz provavelmente vai simular diferentes papéis durante o processo de aprendizagem, papéis que podem ser desempenhados, algum dia, e que podem ser completamente alheios à sua realidade, vemos nesse procedimento uma participação do aprendiz como repetidor de estruturas de modelo, ainda que usual em situações das práticas. Desse modo, tal aprendiz não se insere como autor de seu discurso na prática social. Acresce-se a isso, o fato recorrente de se encontrarem exercícios gramaticais que não estão adequadamente relacionados à construção estrutural do texto estudado na unidade. Desse modo, em que pese a massiva adoção pelos cursos de línguas, essa abordagem parece possuir identidade híbrida, tanto do ponto de vista de uma teoria cognitivista que a fundamente, por por basear-se apenas em conceito de falante competente, como do ponto de vista metodológico, em razão de contemplar atividades de cunho estruturalista.
Abordagem Comunicativa: um ritual de passagem Apesar dessa identidade movediça, não se pode negar o importante papel que essa abordagem cumpre no contexto de letramento educacional de L2 e de LE, pois constitui um momento de mediação e de engajamento da estrutura linguística no conjunto das práticas sociais, aspecto contemplado na Abordagem Sociointeracional, a ser comentada na seção seguinte. Ademais, os modelos podem constituir recurso relevante quando utilizados 144
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adequadamente. Considerem-se, por exemplo, situações de ensino da escrita do português para surdos, que são usuários de língua espaço-visual, para índios e para estrangeiros de línguas semíticas ou de línguas orientais, em que tanto o modelo de textos escritos como os de situação de fala podem constituir ponto de partida em direção a uma posterior construção de autonomia do aprendiz em relação à língua estudada. Além da aprendizagem linguística, o modelo situado pode ser revelador de aspectos socioculturais importantes para o conhecimento de padrões de comportamento na cultura alvo, em que atitudes como movimentos corporais, por exemplo, podem e devem ser compreendidos pelos aprendizes. O português brasileiro, língua em foco, constitui parte integrante de uma cultura marcada, em geral, pela solidariedade, pelo riso aberto, pela descontração, o que resulta, na recorrência de uso de gestos e de proximidades físicas entre os interlocutores, de tal modo que tocar alguém com quem se está conversando, atitude corriqueira sobretudo em estados do nordeste, é um ato comum, mas não em estados sudeste e, sobretudo, do sul brasileiro, onde há forte influência do reservado comportamento europeu. Assim sendo, trabalhar com simulacros de situações linguísticas, considerando contextos culturais pode ser de grande valia como recurso metodológico no ensino de qualquer língua, e o português não foge à regra.
Sociointeracionismo Uma terceira teoria cognitivista, desta feita, com grande impacto em contexto de ensino e de aprendizagem, é a que trata da aquisição do conhecimento como resultado de um processo baseado nas relações de interação do sujeito com o mundo e
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com os seus pares e vice-versa. Nessa perspectiva cognitivista, o conhecimento não está focado apenas no sentido único ambiente indivíduo, como pretendem os comportamentalistas, nem na direção exclusiva indivíduo ambiente, como propõem os inatistas. A relação aqui se estabelece dialeticamente. Isso significa ir além da atividade de comunicar, muito embora essa esteja contemplada na de interagir. Essa ideia tem base na propositura de estudiosos como Piaget e Vigotski, para quem “conhecer” é um processo inter e intraindividualmte, isto é, constrói-se social e individualmente. Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior (intrapsicológica). VIGOTSKI (1984, p. 64).
Mas não se trata aqui de juntar as concepções behaviorista e inatista em uma terceira, longe disso, significa uma relação entre os dois lados, de modo que um influencia diretamente o outro. Dizendo de outra maneira, a cognição não é descarnada, mas não é simples promiscuidade com o empírico e o experimental. Não se trata de defender algum tipo de fundacionalismo internalista nem externalista, mas de pensar a tensão entre esses dois pólos. (MARCUSCHI, 2006).
Embora a teoria interacionista tenha efeitos em contextos pedagógicos, como assinalado anteriormente, os estudos de Vigotski são os que trazem maior contribuição àqueles concernentes ao ensino de L2 e de LE, sobretudo por considerar a língua como um elemento fundamental da cultura. Para esse autor, os signos cumprem um papel fundamental, pois são, por um lado, proporcionados pela cultura, pelas pessoas
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do meio - pelos outros - e, por outro, porque ao “interiorizarem-se, transformando-se em meios de regulação interna ou auto-regulação, (modificam) dialeticamente a estrutura da conduta externa, e, portanto, essa não seria mais mera expressão de reflexos” (FREITAS, 2003, p.91). Desse modo, todo processo de internalização ocorre exatamente desde a atividade externa, que passa, posteriormente, a ser a própria construção interna dessa atividade, cumprindo a linguagem importante papel. A noção de cognição na perspectiva vigotskiana envolve, pois, componentes sociais da cultura e da história. O homem desenvolve-se inserido em contextos sociais, de modo que o conhecimento por ele adquirido resulta do processo interativo com o meio, moldando o seu próprio funcionamento psicológico. A dimensão social nas ideias de Vigotski é de tamanha importância que, quando trata do aspecto biológico no funcionamento psicológico, o autor postula forte ligação entre os processos psicológicos e a inserção em contextos sócio-históricos específicos. Segundo defende, os sistemas simbólicos construídos socialmente é que irão definir as muitas possibilidades de funções do cérebro, concretizadas em tarefas que o sujeito venha a cumprir. Ponto fundamental no sociointeracionismo de Vigotski é a ideia de mediação. A mediação consiste no fato de o homem ter acesso aos objetos reais por meios dos sistemas simbólicos construídos socialmente. Isso permite estabelecer relações mentais mesmo na ausência de referentes concretos. Cada objeto tem, pois, modos de representação na mente do sujeito, mas que são construídos com base em informações culturais. Assim, a estrutura mental não é algo fechado, apresentando natureza flexível para absorver novas experiências e construir conceitos desde as mudanças que a própria sociedade apresenta. O que a distância revela
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Outro aspecto nessa teoria, e de grande repercussão nos projetos atuais de educação, é o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). A expressão diz respeito ao momento em que processos cognitivos já maturados pela criança potencializam o aprendizado de outros novos, ou seja, representa o nível de desenvolvimento potencial para que outras habilidades, experiências possam ser aprendidas. A ZDP é, pois, o espaço entre o conhecimento real, que o indivíduo já detém, e conhecimento potencial, que é aquele que o indivíduo é capaz de apreender. A escola pode cumprir um importante papel ao considerar esse conceito em suas práticas pedagógicas, preparando a criança para aquilo que ela ainda não é capaz de fazer.
Vigotski e a Abordagem Sociointeracional As ideias de Vigotski contribuíram sobremaneira para o surgimento da Abordagem Sociointeracional, cujo objetivo, como o próprio nome já sugere, consiste em que os aprendizes alcancem a interação, considerando os contextos socioculturais dos usos linguísticos. Portanto, aqui a meta vai além do ato de comunicar, pois a língua é concebida na perspectiva da ação: quem fala age e provoca em seu interlocutor uma interação. O conhecimento não é dado a priori, baseado em modelos, mas é construído no ato interacional. Isso não significa a exclusão das estruturas linguísticas, o que em se tratando de segunda língua seria impossível, pois não se fala uma língua sem dominar as suas estruturas, mas o aspecto estrutural é contemplado dentro de uma prática social, portanto, o aspecto gramatical é engajado na funcionalidade do texto, que, nessa perspectiva, é abordado, considerando-se o gênero e o discurso. O aprendiz é convidado a agir como autor do seu dizer nas interações emergentes dos contextos de práticas. 148
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Um trabalho com abordagem sociointeracional implica proposta, por princípio, incompleta, tendo em vista que a sua completude se dá em cada contexto de aplicação. Exemplo desse tipo de tratamento se encontra na obra de Henriques/Grannier (2001). Sendo coerentes com o fundamento teórico que embasa o material pedagógico, as autoras apresentam todos os diálogos sob a rubrica “Quem são estas pessoas?”, dando espaço ao aluno para exercer o autêntico papel que lhe cabe em sala da aula, a saber, o de aprendiz de uma L2. Assim, os aprendizes vão compor suas interações orais, autênticas e espontâneas, com seus pares, reconstituindo o contexto do diálogo desde as pistas linguísticas nele contidas, o que podemos constatar no diálogo abaixo. Quem são estas pessoas? A: Lá, nos Estados Unidos, sua vida era muito diferente do que é agora? B: Muito. Meus horários, principalmente. Eu acordava às seis, corria antes do café, depois ia pra casa tomar banho, tomar café e me aprontar prá escola. A: Você voltava pra casa pra almoçar? B: Que nada. Eu passava o dia todo na universidade. No almoço, eu só comia sanduíche e, à noite, a gente jantava. B: E você já se acostumou com o esquema brasileiro? A: Mais à vontade? B: É isso aí. (Henriques/Grannier: vol. 2, 2002, p. 48) A reconstituição da situação que deu origem a esse diálogo vai ser feita com base em informações linguístico-culturais, no exemplo em questão: hábitos da cultura norte-americana, uso do pronome “você”, que dá indícios de um repertório próprio de determinadas faixas etárias e de certo grau de intimidade, além do uso de expressões de natureza informal, como “É isso aí”, evidenciando a presença do fenômeno de variação linguística. O que a distância revela
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O texto escrito, assim como o diálogo, exerce o papel não somente de contextualizar, apresentando a realidade sociocultural, como o de envolver o aprendiz com o tema, provocando reações e permitindo que ele manifeste suas opiniões. Do mesmo modo que nos gêneros da oralidade, nem sempre há atividades propostas, préestabelecidas. Encontramos esse procedimento em Henriques/Grannier (2002), em que os gêneros se apresentam em configuração multimodal, com fotos de pessoas públicas e anônimas, paisagens e cenas de cotidiano da cultura brasileira, quadrinhos, cartoons, receitas culinárias. Outra atividade que exemplifica técnicas da abordagem sociointeracional é a exemplificada a seguir: Construção de diálogos nas instâncias da interação.
Apresentações espontâneas em que a conversa flua no
próprio curso da interação, podendo surgir discussões de assuntos diversos no decorrer da conversa.
O professor divide a turma em dois grupos e propõe um
debate em sala de aula sobre o assunto X, de modo que um
dos grupos se posicione a favor e outro se posicione contra.
Para tanto, os dois grupos deverão utulizar argumentos bem fundamentados, inclusive com exemplos. A atividade proposta conduz os aprendizes a se colocarem como sujeitos autores da sua “voz” no curso dessa atividade dialógica, que é o debate. É importante observar que essa abordagem assume um papel mais predominante em estágios avançados de cursos de L2 e L1. Mas isso não significa necessariamente que outros aspectos desse procedimento não se encontrem presentes desde os primeiros dias de aula. A conduta interacional se traduz, não só na metodologia 150
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formal da abordagem linguística, mas também na atitude do professor no sentido de prestigiar, de algum modo, a participação de seus alunos e de proporcionar aproximação entre eles mesmos.
Competência Interacional A tese da Teoria Sociocultural, proposta por Vigotski, conduziu às primeiras manifestações do sociointeracionismo em termos de língua estrangeira com os estudos teóricos investigadores da Competência Interacional. De acordo com essa visão, a interação, originalmente, ocorre nas práticas orais, práticas essas que consistem em eventos de fala e são configurações convencionalizadas socioculturalmente na dinâmica dos processos comunicativos face a face entre os membros de um grupo. Assim, interagir é algo mais do que comunicar: é agir na aquisição e na construção do conhecimento e do desenvolvimento de habilidades. É pela participação nas práticas interativas que os indivíduos adquirem recursos de muitos tipos, como “vocabulário e sintaxe, conhecimento sobre mudança de turnos, aspectos retóricos e habilidades” (JOHNSON APUD, YONG & HALL, 2003, p.97).5 A interação, desse modo, é vista como algo social e não como questão unicamente cognitiva, que reside apenas na mente do indivíduo. É vista como um processo de co-construção, definido como um “conjunto de criação de dada forma, interpretação, postura, ação, atividade, identidade, instituição, habilidade, ideologia, emoção ou outra realidade de significação cultural” (JOHNSON, APUD OCHS, 2003, p. 97).6 Por essa razão, é cada dia mais unânime a defesa pela importância do processo interativo na aprendizagem de língua 5 6
Tradução da autora. Tradução da autora.
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estrangeira. Tomando como base a Teoria Sociocultural, observa-se a forte presença do que foi denominado por Donato de “Andaime Coletivo” - Collective Scaffolding (DONATO, 1998), nas negociações do jogo interativo em contexto de aprendizagem de língua estrangeira, não só para estabelecer relação de troca de input entre os aprendizes, mas, sobretudo, para expandir os seus próprios conhecimentos. Segundo esse princípio, durante o processo interativo os indivíduos estão socialmente situados, o que possibilita a construção do conhecimento linguístico e social. O mecanismo do “andaime” é usado para promover a internalização do que é considerado “novidade”, que é construída primeiramente na atividade social desenvolvida entre os pares. Portanto, a participação coletiva cria uma espécie de “ajuda” que permite a cada participante da interação elevar o nível de conhecimento linguístico com base no que é negociado em grupo. Esse mecanismo, utilizado com sucesso em vários contextos de letramento, encontra fundamento no princípio vigotskiano segundo o qual o conhecimento individual (intra) é socialmente (inter) e dialogicamente derivado. A atividade interativa, por sua vez, pode constituir uma fonte de fossilização7. No entanto, esse é um momento de estudo fornecedor de elementos para se estabelecerem diferenças entre comportamento linguístico fossilizado e não-fossilizado. Assim sendo, considerar a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), proposta da teoria de Vigotski, pode despertar para o significativo desenvolvimento dos aprendizes, diferenciando os falantes que apresentam fossilizações daqueles que não apresentam. 7 Fossilização em contexto de L2 e de LE consiste na repetição do erro cometido pelo aprendiz e que não foi corrigido. A incidência do erro leva a incrustação, fixação na mente do aprendiz, de modo “fossilizado”.
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Alguns estudos têm revelado que, embora no mesmo nível de aprendizagem, aprendizes exibiram ZDPs diferentes, e, por isso mesmo, requisitaram níveis de regulação ou assistência diferentes. Mas, também se observou que a aprendizagem não ocorre satisfatoriamente quando a oferta de input é demasiada ou se a tarefa a ser solucionada for considerada fácil. Isso reforça uma atenção maior sobre a regulação da ZDP de cada aprendiz, o que pode trazer contribuições para o planejamento pedagógico nesse contexto de aprendizagem. Um terceiro princípio da Teoria Sociocultural de Vigotski, relevante na aprendizagem de língua estrangeira, diz respeito ao papel da “fala privada”. Segundo defende o autor, a fala privada é clara ilustração da relação linguagem-pensamento. No contexto de LE, essa fala assinala a atenção do aprendiz para a auto-regulação e, assim, para controle do seu crescimento cognitivo (CAFFERTY, 1998). Aliados a esse, outros fatores auxiliam a conexão entre fala privada e proficiência: natureza da tarefa, predisposição, motivação e antecedentes culturais do sujeito. Para exemplificar algumas das técnicas que revelam a presença dessa teoria no ensino e, consequentemente, a adoção da Abordagem Sociointeracional, que prevê a construção do conhecimento nas instâncias da interação, destaquem-se os exercícios contextualizados e de retextualização, os diálogos que refletem situações do cotidiano, utilização dos textos autênticos na perspectiva do gênero textual e do discurso, leituras críticas (opinião), produção/construção textual, que demonstrem a inclusão de um sujeito-aprendiz, partícipe da construção de seu conhecimento.
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Considerações finais Nessa
breve
exposição,
discutiram-se
as
teorias
cognitivistas que influenciaram diretamente ou motivaram, de algum modo, o surgimento das abordagens de ensino em contexto de segunda língua e de língua estrangeira. Viu-se também que essas abordagens apresentam técnicas que espelham princípios dessas teorias, como, por exemplo, a Abordagem Estruturalista e a Sociointeracionista. Já a Comunicativa, pelo fato de não ter sido fundamentada em uma teoria cognitivista diretamente, mas, sim, pelo conceito de competência comunicativa, proposto por Hymes, apresenta técnicas presas ao estruturalismo. Observou-se, ainda, que cada abordagem expressa, por meio das técnicas, a concepção teórica da aquisição do conhecimento, no caso, o linguístico. Isso pode levar à compreensão de que, pelo fato de ter concepção distinta, deve-se adotar apenas umas dessas abordagens na prática pedagógica, para não resultar em incoerência teórica. Embora esse raciocínio seja lógico, não é o que se tem verificado do ponto de vista do ensino, em que tanto as estruturas linguísticas quanto o seu enquadre nos contextos de uso constituem conteúdos da mesma forma relevantes para o aprendizado. De outro modo, não se fala ou se escreve uma língua sem conhecer e se apropriar de suas estruturas, mas essas estruturas precisam fazer sentido no contexto das práticas sociais, uma vez que língua é comunicação e interação. Talvez pelo fato de cada teoria cognitivista conceber a língua sob uma perspectiva particular seja exatamente o aspecto que as complementem em termos de aplicação ao ensino de L2, propiciando uma compreensão linguística que vai desde a estrutura até ao funcionamento no contexto das práticas sociais. Desse modo,
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ao que tudo indica, a adoção do ecletismo de abordagens pode proporcionar ao aprendiz o acesso mais bem-sucedido à língua e à cultura alvo. O importante é saber utilizar a abordagem adequada a cada conteúdo, considerando-se sempre as demandas dos aprendizes.
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Capítulo VII
Discursos Multmodais e Educação no Contexto da Globalização Candice Assunção
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Discursos Multmodais e Educação no Contexto da Globalização Candice Assunção1
Apresentação Antes de iniciarmos nossa discussão, é necessário retomarmos o conceito e as características da globalização, bem como seus impactos na educação para em seguida investigarmos como essa nova ordem social tem suas marcas nas diversas formas de discurso e como esse novo discurso tem corroborado na construção de práticas sociais globalizadas.
Globalização e seus impactos na educação O processo de globalização trata-se de um fenômeno impulsionado pelo discurso do capitalismo, em busca de um mercado comum que transforma o que antes eram práticas sociais locais em práticas sociais globais. Os Estados ajustam-se cada vez mais aos ritmos dessa nova ordem discursiva mundial, como afirma Kress (2009), abandonando o modelo de poder vertical para dar lugar ao poder horizontal. Essa nova ordem discursiva caracteriza-se por significativas e rápidas transformações políticas, econômicas e culturais. Vejamos. 1 Doutoranda em Línguística e Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Graduada em Letras e em Direito pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e especialista em docência e aquisição da linguagem pela mesma instituição. Atualmente é pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), membro da Associação Latino-Americana dos estudos do Discurso (ALED) e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Análise de Discurso Crítica (CEPADIC).
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• • • •
Formação de blocos regionais; Surto de expansão das empresas multinacionais; Crescimento do comércio internacional; Interligação dos mercados financeiros;
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Revolução nas comunicações; Avanço dos meios de transportes; Envolvimento do comércio, produção e capitais e também de serviços, arte e educação.
Com a globalização, a educação passa a ser o maior recurso disponível para enfrentar essa nova estrutura do mundo. As práticas educacionais, portanto são transformadas para dar continuidade ao atual processo de desenvolvimento econômico e social. Para ressaltar tais transformações no campo da educação, é necessário um breve histórico.
Do Iluminismo à Globalização O processo educacional, na perspectiva do Iluminismo, era extremamente local, baseado na cultura familiar, regional e nacional, gerido pelas famílias e pelas comunidades locais. Após esse período, a escola passou a ser uma instituição pública, mas ainda permaneceu o objetivo de formar os indivíduos para assumirem papeis de trabalho que atendiam a um contexto próximo. Mesmo em sistemas escolares públicos centralizados e nacionalizados, as políticas educacionais impõem uma tradição nacional em uma comunidade maior em um contexto mais amplo, ainda assim continuam a se basear na proximidade e na homogeneidade relativa. Contudo, gradativamente a educação constitui um conjunto de decisões que afetam a sociedade maior, daí vem a importância da educação como política pública e o papel do Estado Nação de controlar, de regular,
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de coordenar, de comandar, de financiar e de certificar o processo de ensino e de aprendizagem. Com o atual processo de globalização, o estreito vínculo entre as práticas sociais da economia e as práticas sociais do conhecimento gera um discurso que sustenta a comercialização da educação, que acaba transformando as escolas em empresas e os alunos em consumidores e clientes. As empresas estão se tornando tão poderosas que muitas estão criando programas educacionais pós-secundários e vocacionais próprios. A Burger King abriu "academias" em 14 cidades norte-americanas, e a IBM e a Apple estão contemplando a idéia de abrir escolas devido ao lucro que estas produzem. A Whittle Communications (uma empresa cujos principais proprietários são a Time Warner e a British Associated Newspapers) não apenas fornece antenas parabólicas e aparelhos de televisão em troca de publicidade para mais de 10 mil escolas (o projeto Channel One), como também está planejando abrir mil escolas com fins lucrativos para atender a 2 milhões de crianças dentro dos próximos dez anos» Além disso, as empresas norte-americanas gastam aproximadamente 40 bilhões de dólares a cada ano, aproximando-se dos gastos anuais totais de todas as faculdades e universidades de graduação e pós-graduação, para treinar e educar seus funcionários atuais. Já em meados da década de 1980, a Bell and Howell tinha 30 mil estudantes em sua rede de ensino pós-secundário e a ITT possuía 25 instituições pós-secundárias." Diz-se que a AT&T sozinha realiza mais funções de educação e formação do que qualquer universidade no mundo. (NICHOLAS C. BURBULES E CARLOS ALBERTO TORRES, 2004).
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Essa retomada histórica evidencia as transformações nas práticas sociais da educação. Destaca-se que essas mesmas práticas sociais constroem um novo discurso que gradativamente reforça as práticas globalizantes e capitalistas. Para melhor esclarecer essa afirmativa, veremos a seguir as teorias que sustentam essa posição.
Base Teórica A análise proposta, neste artigo, encontra respaldo teórico na Análise de Discurso Crítica (ADC), na qual o discurso é visto como texto e interação. Nesse sentido, qualquer exemplo de discurso é considerado simultaneamente texto e prática social, sendo que a dimensão textual está relacionada com a análise linguística de texto, enquanto a prática social, por sua vez, cuida das circunstâncias institucionais e organizacionais, em que ocorrem o evento discursivo e a análise da maneira como a prática social molda o discurso. A Análise de Discurso Crítica (ADC) considera que o uso da linguagem é uma prática social, isso implica ser o discurso constituído socialmente e constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e de crença. Essa concepção constitui a dialética entre discurso e sociedade, pois o discurso é moldado pela estrutura social, mas, ao mesmo tempo, constitui a mesma estrutura social que o molda. Assim, o objetivo da Análise de Discurso Crítica é analisar os textos, a fim de identificar as manipulações e as dominações presentes de modo geral, tendo, portanto como objeto de análise o encoberto do discurso. Fairclough (2006) diz: A Análise de Discurso Crítica (ADC) constitui uma fonte valiosa na pesquisa das relações entre o discurso e outros elementos sociais, vendo-as como relações dialéticas. Uma vantagem é que ela permite incorporar a análise textual dentro da análise da globalização.
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Metodologia e Análise A metodologia usada será a qualitativa por ser esse o melhor método para a análise social. Para o instrumental de investigação, utilizaremos Fairclough (2001, 2003, 2006) van Leeuwen e Kress (1996) e David Machin e van Leeuwin (2007). Escolha do Vocabulário ou Fairclough ( 2001)
Léxico Escolha da Estrutura do Texto
Fairclough ( 2003) Fairclough (2006)
Interdiscurso por meio de suposição Utilização de Termos Globalizantes Importância da Escolha dos Elementos Tipográficos, Signos
Van Leeuwen e Kress (1996)
Opacos, Posicionamento Centro/Margem, Construção da Narrativa.
Van Leeuwen e David Machin (2007)
Dimensões de Articulação de Modalidade
Serão analisadas e comparadas 4 (quatro) reportagens da Revista Veja sobre educação, publicadas no ano de 2012, nas quais investigaremos como os textos, aqui analisados, veiculam o processo de globalização em uma crescente inculcação das ideias capitalistas e de como as práticas sociais da globalização estão presentes nos discursos. O primeiro artigo (anexo I) constrói o pensamento de que escolas vistas como empresas certamente iriam à falência, essa ideia é defendida ao longo do texto nos propondo uma comparação na qual
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os alunos estão no lugar de clientes; os professores, por sua vez, são os empregados que não defendem a suposta empresa, ou melhor, por não serem cobrados acabam negligenciando seu trabalho. O segundo artigo da referida revista (anexo II) defende o pensamento de que escolas “modernas” e de sucesso estão adotando o sistema de meritocracia, ou seja, valorizam os professores pelo que produzem, como as empresas fazem com seus empregados. São exemplos de como a escola pode abandonar o fracasso. O terceiro texto, aqui, analisado, (anexo III) trata-se de um artigo que apresenta os tablets e os smartphones como uma ferramenta que pode transformar o aprendizado, contudo destaca que os professores ainda não sabem como usar esses recursos em sala de aula, mesmo fazendo uso dessas tecnologias em suas vidas particulares. O último e quarto artigo em análise (anexo IV) apresenta as redes sociais educativas como algo que veio para transformar e unir a educação em toda parte do mundo apresenta uma dessas redes e a compara ao Facebook. Passemos ao exame do primeiro artigo.
'Nossa escola não é feita para dar certo' Isso se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial. (Veja, Gustavo loschpe, 16/05/2012). Empresas - tocadas como escolas iriam à falência (Iconica/ Getty Images) Washington Alves/AE O professor apaixonado - supera deficiências 164
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Neste artigo, o tema é o fracasso na gestão das escolas, destacando a maneira como o sistema educacional brasileiro funciona e o que a aplicação dessa forma de administração ocasionaria se utilizada em uma empresa. A escolha dos termos e das imagens conecta o local e o global, reforçando as marcas de dominação e de disseminação das ideias corporativistas veiculadas pela globalização. Apesar da abordagem do artigo ser voltada para as falhas do sistema educacional brasileiro, o interdiscurso, por meio de suposição (FAIRCLOUGH, 2003) deixa transparecer, veladamente, a noção de que a gestão da escola como empresa é o que transformaria o modelo educacional em algo efetivo. Conforme os estudos de Kress e van Leeuwen (1996), a variação no uso de meios de expressão visual (cor, definição etc.) expressa aumentos ou diminuições no ‘nível de realidade’ que se quer expressar por meio das imagens. A escolha de fotografias coloridas reforça o perfil documental da revista, que se pretende como jornalística e confiável. Destaca-se a utilização de uma imagem de empresa moderna, organizada e bem-sucedida utilizada na primeira parte do artigo. Essa imagem, proveniente de um banco de imagens, reforça o conceito de modernidade e de sucesso largamente disseminado pela globalização. Kress e van Leeuwen destacam ainda que a escolha dos elementos tipográficos não é aleatória, pois carrega significados importantes, nem sempre percebidos, são os signos opacos segundo esse autor. O que podemos perceber na reportagem de nossa análise, pois trata-se de um artigo da revista Veja (revista de grande circulação, com caráter informativo, dotada de prestígio e confiança por parte dos leitores). Nesse sentido, os elementos tipográficos utilizados são tradicionais, reforçando a ideia de veracidade de compromisso com a informação veiculada. A mesma ideia de O que a distância revela
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seriedade e de comprometimento pode ser percebida na imagem, o que está de acordo com a ideia de dimensão de articulação proposta por van Leeuwen e David Machin (2007) ao comparar a modalidade de desenhos com a da fotografia em publicações jornalísticas. Na fotografia, as dimensões de articulação costumam ser ampliadas para conterem o caráter de veracidade, de informação documental.
Empresas - tocadas como escolas iriam à falência A legenda posicionada abaixo da fotografia traz a palavra ‘empresas’ duplamente destacada, pois o termo vem em primeiro lugar e negritado, levando o leitor a assimilar a ideia de que o conceito de empresa é mais eficiente. Esse é reforçado com a afirmação de que se as empresas fossem ‘tocadas como escolas’ faliriam. Desse modo, o interdiscurso solidifica a concepção de que a escola só é efetiva se administrada como empresa. Tal ideia é reprisada no corpo da reportagem: Imagine que você trabalha em uma empresa em que os funcionários não ganham de acordo com sua competência, mas sim segundo seu tempo de casa e nível de estudo. Não há promoções, mas também só há demissão em casos de violação grotesca. Mesmo faltando repetidamente ao serviço, não alcançando sua meta ano após ano e maltratando seu cliente, você continua no posto até se aposentar. Ela fracassa porque esse arranjo institucional requer a irracionalidade de todos os envolvidos, do prefeito ao professor. Nossa escola não é feita para dar certo — se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial. (Veja, 16/05/2012). Gustavo loschpe
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O primeiro trecho, retirado da parte inicial do artigo, faz constante comparação entre a gestão de uma escola e a gestão de uma empresa, destacando claramente que a aplicação do modelo de gerenciamento utilizado na escola em qualquer empresa redundaria em falência. Aqui, são utilizados vários termos para reforçar a ótica corporativa: ‘empresa’, ‘funcionários’, ‘meta’, ‘cliente’. No segundo trecho em destaque, embora o autor negue a ideia de que o modelo corporativo seja a solução, são apontadas falhas no sistema educacional que impedem a formação de indivíduos com “habilidades mínimas para navegar o mundo”, deixando perceptível a contradição entre suas afirmações, pois fica claro que o objetivo da educação, para o autor, é a formação de pessoas para o mercado global. Vale reforçar que a utilização da empresa como o tema de discussão proposto no início do artigo, incute no leitor a ideia da eficiência das empresas, embora o autor a contradiga no fim do texto. Essa negativa não é tão perceptível ao leitor, uma vez que o conceito de que a escola deve se assemelhar às empresas é tema recorrente em várias edições da revista, como veremos no próximo exemplo. “O regime de meritocracia dá resultados na educação” (Veja, 25/06/2012). Renata Betti. Como em uma empresa - escola de São Paulo: bônus para os que atingem as metas (Claudio Gatti). Novamente, a escolha dos elementos tipográficos é proposital e impregnada de signos opacos. O que podemos perceber na análise deste artigo é que há um padrão para a composição visual da revista que objetiva priorizar o caráter informativo. Por essa razão, os elementos tipográficos empregados são tradicionais, mantendo-
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se o aspecto jornalístico. Mais uma vez, a imagem escolhida é uma representação fotográfica e colorida, que retrata uma sala de aula tradicional, com recursos básicos, correspondendo à imagem que temos da realidade da escola pública brasileira e de acordo com a ideia de dimensão de articulação de van Leeuwen. Contrariamente à ideia local retratada na imagem, que ilustra a concepção de ambiente escolar do homem médio brasileiro, a legenda referente à imagem traz um aspecto da globalização, uma vez que faz referência ao mundo corporativo. Assim, a maneira como a imagem e a legenda se apresentam sugerem a interação entre esses dois aspectos. “Como em uma empresa - escola de São Paulo: bônus para os que atingem as metas” A legenda apresentada reforça a ideia de que se a escola funcionar como uma empresa, premiando a produtividade dos seus funcionários, o problema educacional estará resolvido. Nesse texto, a sentença “como uma empresa” aparece em destaque por força do negrito, chamando a atenção para o termo ‘empresa’. Além do destaque, este termo vem no início da frase, topicalizando a ideia veiculada pelo capitalismo e pela globalização. Segundo Fairclough (2001), a estrutura do texto e a escolha do léxico não são aleatórias, o que demonstra que a globalização e seu caráter capitalista ganham destaque na escola e nas políticas públicas implementadas para a resolução dos problemas educacionais. O que podemos confirmar ao longo da leitura do artigo: Ali, as escolas têm metas de aprendizado e, se elas forem atingidas, seus funcionários, incluindo diretores e mestres, são agraciados com um bônus no salário.
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Quem extrapolar o esperado ganha mais, como no mundo corporativo” Ao contrário do Brasil, onde a ideia de distinguir os melhores sempre esbarrou no corporativismo, os países mais ricos já acolhem há décadas esse princípio. (Veja, 27 de junho/12. p. 127) Helena Borges
No primeiro trecho destacado, a ideia da legenda é reforçada, repetindo-se a mesma frase e abordando o mundo corporativo diretamente. Já no segundo exemplo, há uma comparação entre a aplicação da meritocracia em outros países e no Brasil, ressaltando um suposto atraso brasileiro em relação aos países mais ricos. Dispositivos móveis podem revolucionar a educação.Tablets e smartphones podem, pela primeira vez, integrar mundos dentro e fora da escola, diz professor da Faculdade de Educação da Universidade Harvard. (Veja, 15/11/2011). Nathalia Goulart
Alunos do Colégio Visconde de Porto Seguro utilizam o iPad na sala de aula (BRENO ROTATORI). No terceiro artigo analisado, o foco da revista sai da escola pública e enfatiza a escola privada, ressaltando o uso de novas tecnologias que passarão a ser incorporadas em algumas escolas paulistas de forma que, mesmo sendo uma revista de enfoque jornalístico, a imagem utilizada veicula uma ideia de propaganda do colégio Visconde de Porto Seguro. Na imagem, o tablet aparece no centro da fotografia, os alunos estão a sua volta e a professora está em segundo plano. Essa configuração remete à ideia de disposição espacial centro/margem, proposta por Kress e van Leeuwen (1996) em que o núcleo do que se pretende comunicar é o centro e os demais elementos são as margens que, de certa maneira são auxiliares ou dependentes dele. O que a distância revela
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No caso em análise, a atenção dos estudantes está voltada para o tablet que passa a ser, segundo o que a imagem veicula, o educador de quem os alunos dependem. A presença da professora é ignorada pelos estudantes que estão de costas para ela. Esses alunos estão dispostos de maneira a ressaltar a igualdade entre eles, vê-se então, um número igual entre meninos e meninas, uma identidade socioeconômica de classe média alta, assim como uma identidade racial, uma vez que todos os alunos são brancos: “Alunos do Colégio Visconde de Porto Seguro utilizam o iPad na sala de aula” A legenda da imagem remete à propaganda tanto do colégio (Visconde de Porto Seguro) como do produto (iPad). Notese que, ao contrário do restante do texto, a legenda menciona um tipo específico de tablet, levando à compreensão de que um termo e outro são sinônimos. Relativamente aos elementos tipográficos, não há destaque nas palavras utilizadas na legenda. A opção por essa ausência do negrito ou de qualquer outra forma de destaque pretende suavizar o caráter de propaganda que foi dado à matéria, uma vez que a revista é informativa. O retorno às aulas em ao menos duas escolas paulistanas é promissor. O motivo: essas instituições passarão a adotar, de forma sistemática e programada, o tablet em sala de aula. Para Christopher Dede, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Harvard, a ferramenta é promissora. "Graças a dispositivos, como tablets e smartphones, é possível, pela primeira vez, unir de maneira tão integrada o mundo dentro e fora da escola. (Veja, 15 de novembro de 2011). Nathalia Gourlart
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Nos dois trechos em análise, aparece o termo ‘promissor’ como um indicativo de sucesso atrelado as novas tecnologias, o que tem uma relação direta com o discurso do capitalismo global. No primeiro exemplo, faz-se menção a ‘escolas paulistanas’, mas não fica claro se as escolas são públicas ou privadas. O termo ‘paulistanas’ generaliza de certa forma, todo o sistema educacional do estado de São Paulo, ocultando qualquer diferença entre elas, como se qualquer uma das escolas pudesse optar pela utilização de novas tecnologias. Contudo, é sabido que isso não é a realidade da rede pública em nenhum estado brasileiro. No segundo trecho, a menção da opinião de um professor pesquisador de Harvard quanto aos efeitos benéficos do uso de tecnologia nas escolas legitima o suposto avanço das instituições de ensino pela inserção de tablets e smartphones na vida acadêmica. A parte final do excerto destaca a questão da importância da conexão com o mundo, o que expressa à marca da globalização dentro do sistema educacional. “Parece Facebook, mas não é: são as redes educativas”. Serviços ganham força nos Estados Unidos e desembarcam no Brasil. Professores e alunos podem fazer quase tudo ali, desde que seja educativo. (Veja, 15 de novembro de 2011). Nathalia Goulart
Edmodo: rede social voltada para professores e alunos tem quase 10 milhões de usuários (Reprodução). Nesse artigo, a revista também ressalta o uso de ferramentas tecnológicas como solução para problemas na educação, enfatizando positivamente o serviço de redes sociais de conteúdo exclusivamente educacional. A imagem reforça a ideia proposta no título, ou seja, que as redes sociais podem ser novas ferramentas para o desenvolvimento da aprendizagem. Apresentadas de maneira extremamente similar as redes sociais existentes, como o Facebook, essas O que a distância revela
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redes sociais de conteúdo educacional se tornam algo muito familiar aos usuários que estão habituados a usar redes sociais. Queremos tornar a escola mais colaborativa, divertida e social”, “diz Shivanu Shukla, fundador da Teamie, uma rede nascida em Singapura que já mira o mercado brasileiro. O funcionamento da Edmodo, da Teamie e dos demais serviços nascentes é bastante parecido. Em geral, o professor se inscreve na plataforma – que pode ser gratuita ou paga, dependendo da empresa desenvolvedora e dos recursos oferecidos –, cria comunidades para os cursos que ministra em determinada instituição de ensino e, em seguida, "adiciona" seus alunos, franqueando o acesso deles à rede. (.......) (Veja, 01 de setembro de 2012). Nathalia Goulart
Embora o trecho inicie com uma proposta de cunho social pela transformação da escola em um ambiente colaborativo, divertido e social, ao final fica clara a característica mercantilista do novo sistema, pela expressão ‘já mira o mercado brasileiro’. O segundo trecho trata do funcionamento das redes sociais educativas, destacando que o serviço pode ser gratuito ou pago, conforme os recursos oferecidos pela empresa desenvolvedora. Nesse sentido, conclui-se que, quanto maiores os recursos oferecidos, maiores são as chances de o serviço ser pago. Outro ponto que merece destaque neste trecho é a escolha do termo ‘franquear’ para significar a permissão de acesso aos alunos, pois esta palavra está diretamente ligada à visão empresarial.
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Construção da narrativa veiculada pela revista Veja nos quatro artigos analisados Inicialmente, vale ressaltar a ordem cronológica dos artigos apresentados. Os dois primeiros de maio e junho de 2012 falam claramente sobre a escola pública brasileira. O primeiro faz uma comparação da escola com a empresa e, de forma bem simplificada, termina propondo que a mudança do modelo de gestão da escola para o modelo empresarial não é a solução. Já o segundo artigo, do mês subsequente, ressalta a competitividade entre os professores e a bonificação por mérito ou produtividade como saída para melhoria da qualidade do ensino. Pode-se inferir que o primeiro artigo funciona como uma preparação para a ideia veiculada pelos demais, que gradativamente constroem a concepção de que a educação também é um produto de mercado. Essa lógica é sedimentada no terceiro artigo que funciona praticamente como uma propaganda da escola e dos aparelhos eletrônicos nele mencionados. Nesse artigo, já se fala na conexão dos alunos com o mundo, revelando a presença da globalização como fator de evolução das práticas educacionais. O quarto artigo apresenta esse sentido global e mercantilista de forma bem clara e tende a considerar essas transformações como positivas, inevitáveis e responsáveis pelo avanço da sociedade, que para fazer parte da nova ordem mundial precisa estar inserida e conectada com essas tendências. As imagens apresentadas seguem o mesmo raciocínio, quando o assunto são as escolas públicas, as imagens são tradicionais e retratam a existência de recursos escassos, como quadro negro e giz. A posição dos alunos também é tradicional e fica perceptível a ocorrência de miscigenação. Já os professores estão à frente das
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turmas conforme a ideia que fazemos da escola, destacando a responsabilidade do professor pelo ensino. No terceiro artigo, o professor fica afastado, de certa forma é ignorado pelos alunos, uma vez que o tablet esta em posição central recebendo a total atenção dos estudantes que estão ao seu redor. Nessa imagem a escola se sofistica, aparecem elementos tecnológicos e os alunos são muito mais homogêneos do que nas imagens anteriores. Já no quarto e último artigo dessa análise, as pessoas, alunos ou professores são totalmente apagados aparecendo apenas à imagem de um perfil de rede social, levando a crer que cada vez mais é necessário conectar-se a este mundo virtual e global para ter uma educação de qualidade no contexto da globalização e numa ótica mercantilista que prioriza o mercado em detrimento do individuo e das questões sociais. De acordo com Kress e Van Leeuwen (1996) (...) os padrões narrativos servem para apresentar ações e eventos, processos de mudança, arranjos espaciais transitórios. A marca de uma proposta de narrativa visual é a presença de um vetor: as estruturas narrativas sempre têm um, estruturas conceituais nunca têm um vetor.
Considerações Finais O processo de globalização tem invadido inúmeros espaços da sociedade, sejam eles econômicos, sejam sociais ou culturais, inclusive e de maneira bastante marcante tem se infiltrado na educação, transformando as práticas sociais antes existentes em novas práticas sociais que atendem, agora, as exigências da Globalização. As mudanças nas práticas sociais ocorrem quando, também há um novo discurso sendo veiculado, pois é por meio desse discurso que as práticas sociais são construídas e reforçadas. 174
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Os textos da Revista Veja selecionados para a análise aqui proposta são exemplos do poder dos discursos na construção de novas práticas sociais no campo educacional, além de atuar no processo de inculcação de uma ideia e na manipulação dos sujeitos. Os discursos veiculados nas reportagens, que formaram o corpus desta análise, constroem, por meio de discursos multimodais, crescente apagamento da figura do professor, como sujeito agente e ao mesmo tempo dá a esse sujeito o papel de mero mediador. Essa ideia fica evidente nos argumentos veiculados nos multidiscursos que a revista utiliza. Outro argumento desenvolvido ao longo das reportagens é a transformação das escolas em empresas, nos quatro artigos analisados, obedecendo a sequencia cronológica da revista. As imagens e os textos multimodais da revista veiculam o pensamento capitalista que move o processo de globalização, além de naturalizar a ideia de que o modelo empresarial seria a solução para os problemas da educação na rede pública. Esse argumento tem início com o primeiro artigo analisado, comparando a escola com uma empresa e assim construindo o raciocínio de que se fosse uma empresa estaria falida, mas deixando transparecer que se as escolas fossem administradas como empresas solucionariam os problemas que a educação enfrenta. Essa ideia é reforçada no segundo artigo ao apresentar o regime de meritocracia como um sucesso para as escolas que adotaram esse método de administração. Já o terceiro e o quarto artigo apresentam instituições de ensino privadas como exemplos de modernidade e sucesso. A utilização da teoria e do método de Análise de Discurso Crítica e da abordagem da Multimodalidade, aqui utilizados, O que a distância revela
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permitem que os processos sutis de transformação social veiculados nos discursos sejam melhor percebidos, desvelando o que está incutido neles e aumentando a consciência com relação ao conteúdo, ensejando maior autonomia e consciência dos cidadãos ao se depararem com discursos multimodais, como os aqui apresentados.
Referências BURBULES, Nicholas e TORRES, Carlos A. Globalização e educação – perspectivas críticas - Porto Alegre: Artmed Editora, 2004. CHAVES, Helena. Globalização, ideologia e discurso: uma análise sobre a dimensão ideológica do processo de globalização. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Coord. trad. rev. técnica e pref. I. Magalhães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. ____________. Language and globalization. New York: Perpetua, 2006. ____________. Analysing discourse: Textual analisys for social research. London: Routledge, 2003. KRESS, Gunther. Multimodality: A social semiotic approach to contemporary communication. New York: Routledge, 2010. KRESS, Gunther; VAN LEEUWEN, Theo. Reading images:The grammar of visual design. USA e Canada: Routledge, 2006. MACHIN, David e VAN LEEUWEN, Theo. Global Media Discourse: A critical introduction. New York: Routledge, 2007.
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Anexos I - Matéria 1 'Nossa escola não é feita para dar certo' Isso se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial Gustavo Ioschpe Empresas - tocadas como escolas iriam à falência (Iconica/ Getty Images) Imagine que você trabalha em uma empresa em que os funcionários não ganham de acordo com sua competência, mas sim segundo seu tempo de casa e nível de estudo. Não há promoções, mas também só há demissão em casos de violação grotesca. Mesmo faltando repetidamente ao serviço, não alcançando sua meta ano após ano e maltratando seu cliente, você continua no posto até se aposentar. Imagine que não exista, em sua região, universidade que prepare bem para o seu emprego, de forma que você já chega ao trabalho não sabendo muito. Pior: tem gente que trabalha em área diferente daquela em que foi formada; o cara de vendas se formou em letras. Imagine que essa empresa só tenha dois cargos (funcionário e chefe) e que quase metade dos chefes tenha chegado ao cargo por indicação de um conhecido dos donos (o restante é majoritariamente eleito para a posição pelos funcionários). Imagine que os donos são muitos, que eles não costumam frequentar a empresa e que a herdaram como parte de um conglomerado, do qual a sua empresa é uma das que agregam menos valor aos donos. Imagine agora que o serviço prestado pela sua empresa é complexo e dirigido a crianças e jovens. Imagine também que essas crianças e seus pais não saibam julgar a qualidade do serviço, mas achem que está tudo
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bem, desde que você o empacote em uma embalagem bonita e dê aos clientes alguns brindes (uns livros, umas roupas, de repente até um laptop aos mais sortudos). A empresa consegue dar todos esses brindes; a maioria dos clientes está, portanto, satisfeita. Imagine que os clientes e seus familiares não precisem pagar diretamente pelo serviço: o pagamento vem da empresa-mãe (a que congrega todos os negócios do grupo) e é baseado na compra de outros produtos e serviços oferecidos por outras empresas do grupo. Agora pense nesse ambiente de trabalho e responda às seguintes perguntas. Se você trabalhasse nele, estaria motivado a dar o seu melhor ou pegaria leve, esperando o contracheque no fim do mês? Como você acha que seus outros colegas de empresa se comportariam? Se lhe dessem um aumento salarial, você se esforçaria mais? Se você fosse uma pessoa carreirista, permaneceria nessa empresa? Aliás, você teria entrado nela? No caso dos chefes indicados pelos amigos dos donos, você acha que eles estariam mais preocupados em agradar aos clientes ou aos donos e seus amigos? No caso dos chefes eleitos por você e seus colegas, acha que eles comprariam briga com você para defender os interesses dos clientes ou virariam seus aliados? Presumindo que os clientes permanecessem satisfeitos e que continuassem pagando indiretamente pelo serviço, você acha que os donos se interessariam em reformar a empresa para que ela servisse melhor sua clientela, desse mais resultados? Ou será que suas prioridades seriam manter a coisa no estado em que se encontra e devotar suas energias para os outros braços do conglomerado, os que dão mais retorno?
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Não sei qual o grau de sua fé na humanidade nem suas crenças na natureza humana, mas eu tendo a achar que a empresa acima seria uma balbúrdia, com profissionais desmotivados e trabalhando abaixo de sua capacidade, clientes mal atendidos, conchavos entre funcionários e chefes, donos desinteressados e pouco envolvidos. Eu acho que melhorar o salário dos funcionários não mudaria o problema. Vou além: enquanto essa estrutura de incentivos não fosse alterada, qualquer investimento numa empresa assim seria um desperdício de tempo e dinheiro. Aliás, não é uma opinião, até porque esse cenário não é hipotético nem trata de empresas. O quadro descrito retrata a maioria das escolas públicas brasileiras. Os funcionários são os professores, os chefes são os diretores de escola, os donos são a classe política, os clientes são os alunos. O resto não carece de alterações para chegar à realidade. Aposto que você sabe que nossa educação é péssima e que esse problema é fatal para nossas possibilidades de desenvolvimento. Aposto também que você acha que esse problema não o afeta, especialmente se você põe seu filho em escola particular. Aposto que gasta mais tempo na seção de esportes do seu jornal do que naquela que cuida de educação. Se é que o seu jornal tem uma seção devotada ao assunto, já que 90% da cobertura do tema se limita a notícias sobre greves, ameaças de greve e outras reclamações salariais. E, até porque o assunto é apenas esse — dinheiro — você acha (acha não: você tem certeza, depois de vinte ou trinta anos de leituras sobre o assunto) que o principal problema da educação brasileira é o salário dos professores. Aposto também que, dois parágrafos antes, você respondeu que aumentar o salário
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dos funcionários não resolveria nada, e aposto também que você gosta dos brindes (se você for mais pobre, merenda; se mais rico, lousa eletrônica ou currículo bilíngue) que a escola do seu filho dá. Antes que os patrulheiros se arvorem, não estou querendo comparar a escola a uma empresa. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Apenas propus um exercício mental. O que espero que esse exercício tenha deixado claro é o seguinte: não é que a educação brasileira fracassa misteriosamente apesar dos melhores esforços de todos os envolvidos. Ela fracassa porque esse arranjo institucional requer a irracionalidade de todos os envolvidos, do prefeito ao professor. Nossa escola não é feita para dar certo — se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial. Washington Alves/AE O professor apaixonado - supera deficiências Não faz sentido para um professor brasileiro comprar a briga: com má formação, precisaria de um esforço hercúleo para obter grandes resultados. Mas esses resultados não lhe trariam reconhecimento, promoções, prêmios ou aumentos. Não faz sentido para o aluno brasileiro se esforçar: a aula que ele recebe é extremamente chata, a maioria dos professores não está muito preocupada com o seu aprendizado, e ele sabe que, se fizer um esforço mínimo, vai continuar sendo aprovado, mesmo sem aprender bulhufas. Não faz sentido para o diretor de escola se insurgir contra essa situação e querer mudar radicalmente o status quo. Se a sua nomeação depende de eleição dos professores, ele não vai querer exigir de seus eleitores mais trabalho e dedicação, até por não ter nada a lhes oferecer em troca. Se o diretor tiver indicação política, então, Deus o livre de qualquer incômodo: o importante é dar vida 180
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fácil a todos, carregar nos "brindes" e deixar os eleitores do seu padrinho político felizes. Não faz sentido para os pais dos alunos protestar contra o atual estado de coisas, porque a maioria deles está satisfeita com a educação que o filho recebe (em pesquisa recente do Inep, a nota média dada pelos pais de alunos da escola pública à qualidade da educação do filho foi 8,6!). E a maioria está satisfeita porque não tem condições intelectuais de avaliar o que é uma boa educação, pois é semiletrada, e nem sabe que existem avaliações oficiais sobre a qualidade do ensino do filho. Finalmente, não faz sentido para o político trabalhar para melhorar a qualidade do ensino: não há pressão por parte de alunos nem de seus pais, e há uma enorme resistência a qualquer mudança por parte dos sindicatos de professores e funcionários. Politicamente, só há custos, sem benefícios. Nenhum político racional mexe nesse vespeiro. Há, é claro, as exceções. O professor apaixonado pelo que faz, que dá duro independentemente do salário, da carreira desanimadora, dos alunos desmotivados e dos colegas que o pressionam para se aquietar. O diretor comprometido, que se orgulha de fazer uma grande escola e seleciona profissionais que comprem essa batalha. Os alunos e seus pais que querem melhorar de vida e sabem que precisam de educação de qualidade, que lutam contra a pasmaceira. E os políticos comprometidos com a próxima geração, e não com a próxima eleição. Mas esses são minoria, e o sistema está contra eles. Enquanto a lógica do sistema não for alterada, todas as ações pontuais para melhorá-lo — da lousa eletrônica ao salário mais alto — provavelmente irão para o ralo. Acredito que o quadro só mudará quando a população passar a ver a educação brasileira como ela realmente é. Somente aí poderemos esperar a pressão popular por uma educação de qualidade, que gerará incentivo para que políticos cobrem desempenho dos funcionários do sistema. Ou seja, o problema é seu. Está esperando o que para fazer alguma coisa? O que a distância revela
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O regime de meritocracia dá resultados na educação. Mais de 30000 escolas públicas brasileiras já adotam sistemas que premiam os professores com base no desempenho de seus alunos
Anexo II - Matéria 2
Renata Betti
Como em uma empresa - escola de São Paulo: bônus para os que atingem as metas (Claudio Gatti) “A meritocracia precisa vir acompanhada de um conjunto de medidas acertadas para realmente transformar uma escola”, Maria Helena Guimarães de Castro, diretora da Fundação Seade. Mais de 30000 escolas públicas brasileiras já adotam sistemas que premiam os professores com base no desempenho de seus alunos. É coisa recente, daí saber-se ainda tão pouco sobre seus efeitos. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, se debruçaram sobre a rede estadual de São Paulo, uma das primeiras no país a adotar um regime de meritocracia, em 2008. Ali, as escolas têm metas de aprendizado e, se elas forem atingidas, seus funcionários, incluindo diretores e mestres, são agraciados com um bônus no salário. Quem extrapolar o esperado ganha mais, como no mundo corporativo. O estudo da USP, que investigou os dados da Prova Brasil, aplicada pelo Ministério da Educação (MEC) a alunos de colégios públicos, concluiu que o avanço verificado nas notas é um sinal de que o sistema está funcionando. Diz o economista Luiz Guilherme Scorzafave, coordenador da pesquisa: “O resultado faz refletir sobre a necessidade de propagar esse tipo de iniciativa por todo o país”. Os números são particularmente animadores nas classes de 5º ano, nas quais o maior progresso se deu nas aulas de matemática. 182
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Segundo a escala do MEC que define o aprendizado desejado para o fim de cada ciclo, a evolução dos estudantes em São Paulo na disciplina — registrada em um intervalo de apenas dois anos — equivale a um semestre escolar. O entusiasmo provocado pela política que premia talento e esforço tem seu peso, mas evidentemente não explica tudo. “A meritocracia precisa vir acompanhada de um conjunto de medidas acertadas para realmente transformar uma escola”, observa Maria Helena Guimarães de Castro, diretora da Fundação Seade. Ao contrário do Brasil, onde a ideia de distinguir os melhores sempre esbarrou no corporativismo, os países mais ricos já acolhem há décadas esse princípio. Muitas vezes, os saltos são extraordinários; noutras, os efeitos são ainda tímidos ou não conclusivos — o que faz refletir sobre maneiras de aprimorar o sistema. A experiência não deixa dúvida de que só com boas e entusiasmadas cabeças é possível vencer o duro caminho que leva à excelência.
Anexo III - Matéria 3 'Dispositivos móveis podem revolucionar a educação' Tablets e smartphones podem, pela primeira vez, integrar mundos dentro e fora da escola, diz professor da Faculdade de Educação da Universidade Harvard Nathalia Goulart Alunos do Colégio Visconde de Porto Seguro utilizam o iPad na sala de aula (Breno Rotatori) "É preciso, em primeiro lugar, ter um propósito educacional e só depois escolher que tecnologia melhor se adequa a esse plano”. O retorno às aulas em ao menos duas escolas paulistanas é promissor. O motivo: essas instituições passarão a adotar, de forma sistemática e programada, o tablet em sala de aula. Para O que a distância revela
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Christopher Dede, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Harvard, a ferramenta é promissora. "Graças a dispositivos como tablets e smartphones, é possível, pela primeira vez, unir de maneira tão integrada o mundo dentro e fora da escola", diz o especialista. Dede, no entanto, faz ressalvas. "Os educadores pensam em tecnologia como mágica e acreditam que apenas usando o computador ou a internet coisas boas vão acontecer. Na educação as coisas não funcionam dessa forma", salienta. Ao adotar novos aparatos, as escolas devem estar munidas de um projeto pedagógico consistente, ou os aparelhos perdem sentido. Fazer dessas tecnologias ferramentas pedagógicas é, portanto, o grande desafio da escola do século XXI. Confira a seguir os principais trechos da entrevista que Dede concedeu a VEJA. A tecnologia ainda é um desafio para a educação. Por quê? Os educadores pensam em tecnologia como mágica e acreditam que apenas usando o computador ou a internet coisas boas vão acontecer. O fogo é assim: você acende e já desfruta dos benefícios dele. Mas na educação as coisas não funcionam dessa maneira, não é possível obter resultado algum apenas sentando-se ao lado de um laptop ou tablet. A tecnologia precisa ser pensada como um catalisador, uma ferramenta que propicia mudanças. Essas transformações, sim, são poderosas. Ou seja, se um professor usa o tablet para aprofundar currículo, melhorar suas práticas em sala de aula e dar acesso à informação, então podemos dizer que a tecnologia foi usada de maneira efetiva e, de fato, provocou mudanças.
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Arquivo pessoal Christopher Dede, da Universidade Harvard Podemos dizer que os professores não estão preparados para a tecnologia? Não acredito nessa hipótese. Na vida pessoal, os professores lidam com a tecnologia de forma natural: eles usam computador, celular, fazem videoconferências e, em breve, usarão o tablet. A questão é: eles sabem utilizar tudo isso em prol da educação? O que acontece é que eles ainda não sabem como inserir a educação nesse contexto digital. Eles acreditam que basta usar o celular em uma aula para que seus alunos aprendam mais. As escolas brasileiras apenas começam a discutir o uso do tablet na sala de aula. As instituições americanas parecem mais avançadas nesse sentido. Como senhor avalia a experiência até o momento? Nos Estados Unidos, creio que o processo se deu de forma inversa da ideal. Aqui, as escolas adquiriram iPads sem ter em mente quais mudanças esses aparatos poderiam trazer para a prática pedagógica. Essa não é a maneira como as coisas devem acontecer. É preciso, em primeiro lugar, ter um propósito educacional e só depois escolher que tecnologia melhor se adequa a esse plano. O problema é que esses aparelhos têm um apelo comercial muito grande. As empresas querem vender seus produtos e, para isso, dizem que podem satisfazer todas as necessidades da escola. Mas sabemos que isso não é verdade. Não existe um único aparelho capaz de fazer tudo. Nos Estados Unidos, muita gente não pensa dessa maneira, infelizmente. E só depois percebem que compraram algo que não valia tanto assim. É possível medir o impacto da tecnologia no desempenho acadêmico dos alunos? Existem muitas evidências
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de que, quando a tecnologia é usada de maneira efetiva, ou seja, quando é identificado um propósito e estruturado um projeto para atingi-lo, ela pode melhorar o processo de ensino e aprendizagem. Isso porque a escola se torna mais atrativa para o aluno. Perguntar qual o efeito da tecnologia na escola é o mesmo que perguntar qual o efeito do quadro negro na sala de aula. Depende do que se escreve nele. Agora, se pesquisarmos apenas se a tecnologia tem um efeito positivo na educação, sem levar em conta em que contexto ela foi inserida, não teremos uma resposta. Quando analisamos pesquisas sobre os projetos bem realizados, que estão preocupados com as transformações que a tecnologia pode nos proporcionar, então, sim, existem muitas evidências de que a tecnologia é um ótimo investimento em termos de aprendizagem. Alguns analistas apontam que o tablet tem poder de revolucionar a educação devido à sua portabilidade e interatividade. O senhor compartilha desse pensamento? Sim. Graças a dispositivos como tablets e smartphones, é possível, pela primeira vez, unir de maneira tão integrada o mundo dentro e fora da escola, porque os alunos terão esses aparatos sempre à mão. Então, não se trata apenas de aprender dentro da escola. O conhecimento passa a estar disponível para o aluno durante todo o dia: ele pode aprender a qualquer momento, pode tirar fotos em qualquer lugar, levá-las para a sala de aula, discuti-las com amigos, mostrá-las aos professores. É um grande passo o fato de que podemos armazenar todas esas informações em um celular ou um tablet e depois usálas em prol da educação. Mas só sentiremos o impacto disso tudo à medida em que todos os alunos tenham acesso a esses aparelhos. Recentemente, a Coreia do Sul anunciou que irá aposentar todos os livros escolares até 2015, fazendo do tablet uma importante ferramenta pedagógica. Como o senhor avalia 186
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essa notícia? Existem dois aspectos a serem analisados. Um deles é a migração de conteúdo impresso para o meio digital. Se este for mais barato, atualizado mais rapidamente e mais interativo, então espero ver o fenômeno da Coreia do Sul se repetir em muitos lugares do mundo. O segundo aspecto é que muitas pessoas dizem que não precisaremos mais do conteúdo dos livros impressos, porque qualquer pessoa poderá criar seu próprio conteúdo e disponibilizá-lo na internet. Em relação a esse último aspecto, sou muito mais cético. Que conselho o senhor daria para as escolas que estão pensando em adotar o tablet na sala de aula? A coisa mais importante a se pensar é que o tablet não é a grande inovação. Ele não deve ser o foco do investimento das escolas. Eles devem se preocupar em primeiro lugar em oferecer um currículo mais atraente e práticas pedagógicas mais inovadoras. Quando isso estiver claro, será hora de pensar de que maneira elas farão isso. Repito: é preciso ter em mente um objetivo claro e só depois pensar nos meios para atingir essa meta.
Anexo IV - Matéria 4 Parece Facebook, mas não é: são as redes educativas Serviços ganham força nos Estados Unidos e desembarcam no Brasil. Professores e alunos podem fazer quase tudo ali, desde que seja educativo Nathalia Goulart Edmodo: rede social voltada para professores e alunos tem quase 10 milhões de usuários (Reprodução) Seus usuários trocam mensagens, compartilham fotos e comentam atividades recentes. Até parece o Facebook, mas não é. Nesse território, os usuários têm um único assunto: educação. São O que a distância revela
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as chamadas redes sociais educativas. Elas funcionam como uma rede social virtual, mas são mais seguras – o que agrada professores e escolas – e tornam o endizado mais interessante para a geração que já nasceu conectada à internet. Além disso, permitem aos pais dar uma espiadinha na rotina escolar dos filhos. "Queremos tornar a escola mais colaborativa, divertida e social", diz Shivanu Shukla, fundador da Teamie, uma rede nascida em Singapura que já mira o mercado brasileiro. Leia também: Conheça seis redes sociais voltadas à educação No Facebook, estudante de 13 anos narra rotina de problemas de escola pública. Por enquanto, uma das poucas redes internacionais que disponibilizam conteúdo em português é a Edmodo, sucesso nos Estados Unidos. Nascida em 2008 no Vale do Silício, na Califórnia, já recebeu 47,5 milhões de dólares em investimento (25 milhões no último mês) e soma hoje mais de 9,8 milhões de usuários espalhados por quase 100.000 instituições de ensino. O número representa apenas a centésima parcela de usuários do Facebook, mas é considerado um feito e tanto em matéria de ambientes dedicados exclusivamente ao ensino. Conta Jeff O'Hara, um dos fundadores da plataforma: "A ideia surgiu enquanto eu trabalhava na área de TI de uma secretaria de educação. Vi que muitas redes sociais e sites de vídeo eram bloqueados, e comecei a pensar em alternativas. Percebi que a educação precisava de um espaço só seu." O funcionamento da Edmodo, da Teamie e dos demais serviços nascentes é bastante parecido. Em geral, o professor se 188
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inscreve na plataforma – que pode ser gratuita ou paga, dependendo da empresa desenvolvedora e dos recursos oferecidos –, cria comunidades para os cursos que ministra em determinada instituição de ensino e, em seguida, "adiciona" seus alunos, franqueando o acesso deles à rede. A partir daí, em um ambiente restrito, é possível compartilhar mensagens, material didático, textos e livros e também criar fóruns de discussão. (confira o funcionamento das redes no quadro abaixo). Tudo isso é exibido em uma espécie de linha tempo, bem semelhante à do Facebook. Os estudantes podem entregar trabalhos pela ferramenta, e o professor pode atribuir as notas ali mesmo. Para os docentes, é oferecida ainda uma biblioteca virtual, onde é possível organizar livros, textos e artigos interessantes a cada disciplina. Caso um estudante use a rede para fins não educativos, os professores têm autonomia para deletar comentários impróprios ou arquivos indesejados. "Sabemos que a segurança e a privacidade são imprescindíveis nesse campo da educação", diz Nic Borg, cofundador da Edmodo. De fato, o medo de perder o controle da situação é preocupação permanente dos docentes. A bem-sucedida experiência internacional da Edmodo entusiasmou o professor de história Rodrigo Abrantes, do Colégio Joana D'Arc, de São Paulo. Desde o início do ano letivo, ele vem integrando a rede social a seus cursos. "Fiquei empolgado com a possibilidade de intercâmbio de ideias e compartilhamento de conteúdos e experiências em um ambiente virtual especificamente escolar", conta. O trabalho tem fluido bem, principalmente nos anos O que a distância revela
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finais do ensino médio. "Em uma aula de atualidades, por exemplo, os livros didáticos ficam defasados rapidamente. Com a ajuda da internet, fica mais fácil compartilhar material complementar com os alunos." Entre as ferramentas que fazem mais sucesso nas aulas de Abrantes está o quis, aquele jogo de perguntas e respostas. Se um ponto da matéria não foi bem assimilado pelos estudantes, o professor cria testes on-line que ajudam a fixar o conteúdo e, de quebra, treinar para o vestibular. "Não digo que eles me pedem para passar dever de casa, mas eles se empolgam mais em responder questões na internet do que no papel." Continue a ler a reportagem
Como funcionam as redes sociais educativas Estudantes e professores não são os únicos empolgados com as novas ferramentas. Estudiosos também veem com bons olhos as redes sociais educativas. "Esses sistemas permitem uma experiência educacional mais maleável, no sentido de que o professor pode adaptá-la segundo as necessidades da classe. Além disso, ela extrapola os muros da escola. O estudante passa a estar 'conectado' ao saber mesmo fora do período de aula", diz Christopher Quintana, especialista em tecnologia da educação da Universidade de Michigan. Outro ponto positivo: sites como o Edmodo permitem a participação dos pais, mantendo-os atualizado sobre as atividades escolares dos filhos. "Nosso objetivo é criar uma comunicação transparente entre família e escola para que toda comunidade escolar acompanhe de perto a evolução dos estudantes", diz Shivanu Shukla, da Teamie. O entusiasmo dos especialistas com os serviços, contudo, não deve ser compreendido como aprovação total. "Tudo ainda é muito novo, e não houve tempo para a medição de impactos", diz Quintana. "É preciso evitar exageros, como avaliar que esta é a 190
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salvação para todos os males da educação." Em resumo: é preciso dar tempo ao tempo e às redes para avaliar a capacidade de inovação delas no campo da educação. O estudioso lembra ainda que nem todos os conteúdos se adaptam bem ao formato. "O professor precisa ter discernimento para saber quando alguma interação precisa ser real, não virtual." Na esteira da Edmodo, outras redes vicejam. Há, por exemplo, serviços voltados ao ensino superior. É o caso do Lore. Criada por quatro jovens amigos, a rede já é acessada por estudantes de mais de 600 universidades, majoritariamente nos Estados Unidos. "Percebemos que, para fortalecer os laços sociais, existia o Facebook; para estreitar relações profissionais, o LinkedIn. E para as relações acadêmicas?", diz Hunter Horsley, criador do Lore. Não existia alternativa à vista. Ou os estudantes criavam comunidades fechadas no Facebook ou trocavam mensagens por meio de grupos de e-mail. "Mas era tudo improvisado", diz Horsley. O criador compara o Lore ao Facebook da fase original (mas sem a eleição da "garota mais quente", que marcou o nascimento do site de Mark Zuckerberg), quando só estudantes de Harvard podiam se cadastrar na plataforma universitária. Assim como Zuckerberg, Hunter abandonou os estudos e não chegou a concluir seu curso, na Universidade da Pensilvânia. Hoje, dedica-se exclusivamente ao negócio. O lucro dessas redes pode vir de duas fontes: a cobrança de uma taxa de acesso ou a venda de acessórios. No caso da Edmodo, o dinheiro vem da venda de aplicativos educativos, comercializados em uma loja virtual nos moldes da AppleStore. As vendas ainda não estão liberadas para os usuários brasileiros, mas isso deve acontecer em breve. Já a Teamie cobra pelo acesso. A taxa é de 5,50 dólares (equivalente a cerca de 12 reais) por aluno ao mês.
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Por aqui, a onda das redes sociais educativas já inspirou um negócio genuinamente brasileiro. O site Passei Direto foi idealizado por Rodrigo Salvador quando ele tinha apenas 17 anos. Seis anos depois, a ideia saiu do papel. Lançado em 4 de junho, já tem 110.000 usuários espalhados por 30 instituições de ensino. Para fazer parte, o usuário cria um perfil e seleciona a universidade e o curso do qual faz parte. Lá, encontra outros estudantes na mesma condição: a partir daí, começa o compartilhamento de arquivos e mensagens. Os professores até podem fazer parte rede, mas são identificados como qualquer outro usuário. Ou seja, o negócio é mesmo dedicado aos estudantes. E a um assunto: a educação. (Revista Veja, 1 de setembro de 2012)
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Capítulo VIII
A representação do professor-tutor à luz da Linguística SistêmicoFuncional Josenia Antunes Vieira Auriane Meneses Mesquita Silva
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A representação do professor-tutor à luz da Linguística Sistêmico-Funcional Josenia Antunes Vieira1 Auriane Meneses Mesquita Silva 2
Introdução Diante da realidade do mundo globalizado, centrada no uso e na aplicação de informação e de conhecimento, cuja base material está sendo aceleradamente alterada por uma revolução tecnológica, concentrada na tecnologia da informação, que penetra em todas as esferas da atividade humana (CASTELLS, 1999. p. 24) e que gera mudanças em todos os níveis e esferas da sociedade, criando novos estilos de vida e de consumo, novas maneiras de ver o mundo e novas exigências nas práticas pedagógicas. Assim, com o advento da informática, aliada aos meios de comunicação, o 1 Josenia Antunes Vieira realizou dois Pós-Doutoramentos, um pela Universidade de Lisboa, (2001), patrocinado pelo CNPq, e outro (2008), com apoio da CAPES. É doutora em Linguística Aplicada pela PUC/RS (1986). Desde 1991 é professora do Doutorado e do Mestrado do Programa de Pós- Graduação em Linguística, do Instituto de Letras, do Departamento de Linguística, Português e Língua Clássica do Instituto de Letras da UnB. Atualmente, é professora associada. Dirige, desde 2005, o Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (Cepadic), do qual é sócia fundadora. Realizou pesquisas pela FINEP, FAPERGS e CNPQ. Realizou pesquisas pela FINEP, FAPERGS, CNPq. Membro da Associação Latino Americana de Analistas do Discurso (ALED) e da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) e do GT Práticas Identitárias em Linguística Aplicada, afiliado à ANPOLL. Orientou entre teses de Doutoramento e Dissertações de Mestrado mais de cinquenta pesquisas. Autora de vários livros, capítulos e artigos em Análise de Discurso Crítica, Multimodalidade e Letramento. 2 Auriane Meneses Mesquita Silva é Mestre em Linguística pela Universidade de Brasília e filiada ao Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade. Atua em várias disciplinas como tutora e pesquisadora do curso de Letras a Distância da Universidade de Brasília – UnB. Entre as suas publicações estão os artigos: O discurso argumentativo no gênero carta de solicitação, 2009; o processo ensino/aprendizado da língua escrita , 2009, a resenha Teoría y metodología de la investigación linguística: metodo sincronico- diacronico de analisis linguistico, de Maria Laura Pardo.
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computador foi inserido na educação como tecnologia educacional inovadora. E, por consequência, essa inserção está provocando mudança da identidade docente, que está se reconfigurando aos moldes das novas tecnologias da informação. Frente a essa realidade, o contexto em que é exercida a docência pressiona os professores a redefinirem papéis, tarefas e identidades. Nesse sentido, é necessário que a formação continuada do docente priorize o uso das novas tecnologias de informação e de comunicação, a fim de prepará-lo para as novas demandas profissionais do mundo pós-moderno. Nesse intuito, este artigo propõe apresentar uma pesquisa de caráter documental, cujos dados foram coletados de material escrito, publicado no Curso: Oficina de Formação em Ead para Tutores- Nível 1: do texto “As funções do tutor online”, a fim de compreender como os autorespesquisadores do texto, Gilmar Pereira Duarte e Jossivaldo de Carvalho Pacheco, representaram os atores sociais - os professores tutores – à luz da Linguística Sistêmico Funcional, pois essa teoria permite analisar textos para descrever a materialidade linguística. Desse texto, foram retirados 12 verbos que mais ocorreram no texto, a fim de observar, em termos da metafunção ideacional, qual o processo que ocorre com mais frequência e o motivo pelo qual ocorre. Depois, coletamos trechos que explicitam a representação do tutor online para fazer análises à luz da metafunção interpessoal. O texto “As funções do tutor online” é composto por 1.051 palavras distintas, contudo as palavras tutor, tutores e tutoria, no referido texto, só ocorrem 39 vezes. Esta análise será realizada na tentativa de responder às seguintes perguntas: em termos da metafunção ideacional, qual o
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processo mais frequente dentro do texto? O texto analisado é usado para trocar informações (proposições) ou é usado para trocar bens & serviços (propostas)? Em que posição a palavra tutor aparece? Ele é agente ou é paciente? Há uma reconfiguração do papel do professor tutor em relação ao papel do professor presencial? Para responder a esses questionamentos, nós nos servimos da teoria da metafunção interpessoal. O
arcabouço
teórico-metodológico
adotado
neste
artigo é o da Linguística Sistêmico-Funcional - LSF [(HALLIDAY E MATTHIESSEN, 2004, FUZER, C. e CABRAL, S.R.S. (2010), BUTT, D. et. al (2001) e HALLIDAY e HASAN (1989)], no que tange, principalmente, à parte da teoria a respeito da metafunção ideacional e à metafunção interpessoal. Preparando o terreno para a discussão central desta pesquisa, iniciamos o artigo com algumas abordagens relacionadas à Linguística Sistêmico Funcional, depois traremos algumas observações relevantes a respeito da teoria dos atores sociais, cunhados por Theo van Leeuwen (1997). Finalizamos o artigo analisando o corpus à luz da Linguística Sistêmico Funcional.
Análise de Discurso Crítica A Análise de Discurso Crítica (ADC) foi concebida como ciência social, destinada a identificar os problemas que os sujeitos enfrentam em decorrência de formas particulares da vida social e direciona-se, igualmente, a desenvolver recursos com os quais os sujeitos possam se valer, a fim de abordar e de superar esses problemas (FAIRCLOUGH, 2003, p.185). Assim, a ADC investiga o discurso nas instituições sociais e as relações entre o discurso, o poder e a ideologia. Além disso, discorre a respeito dos efeitos construtivos do discurso: a construção das identidades sociais e as posições de
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sujeito, a construção das relações sociais entre os indivíduos e a construção de sistemas de conhecimento e de crenças. Entre as diferentes abordagens de ADC, algumas já se tornaram basilares, inspirando diversos trabalhos acadêmicos. É o caso das propostas de Norman Fairclough, de Teun Van Dijk e de Ruth Wodak, que estabelecem diferentes relações interdisciplinares em suas versões de ADC. Assim, Fairclough (2003) propõe uma articulação entre a Linguística Sistêmica Funcional e a Sociologia. Já van Dijk (1989) estabelece diálogo entre a Linguística Textual e a Psicologia Social, e Ruth Wodak (1996) volta-se para a Sociolinguística e para a História. Desse modo, a ADC, conforme Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 2), contribui com um diálogo ‘transdisciplinar’. Segundo esses autores, a ADC (idem, p. 16): Traz uma variedade de teorias ao diálogo, especialmente teorias sociais, por um lado, e teorias linguísticas, por outro, de forma que a teoria da ADC é uma síntese mutante de outras teorias; não obstante, o que ela própria teoriza em particular é a mediação entre o social e o linguístico – a 'ordem do discurso', a estruturação social do hibridismo semiótico (interdiscursividade).
Além disso, Fairclough (2010, p. 234) acrescenta que a interdiscursividade do texto é um aspecto de sua intertextualidade, uma questão a que gêneros, discursos e estilos recorrem e que trabalha com eles em articulações particulares. Com base nos pressupostos da ADC, o termo discurso é compreendido como parte da prática social, dialeticamente interconectado a outros elementos (FAIRCLOUGH, 2003), por exemplo, o mundo material, as relações sociais, a ação e a interação, as pessoas com suas crenças, seus valores e seus desejos (CHOULIARAKI e FAIRCLOUGH, 1999, p. 21). Assim, o discurso é determinado pelas estruturas sociais que são entidades 200
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muito abstratas. Pode-se, portanto, pensar em uma estrutura social (tal como uma estrutura econômica, uma classe social, um sistema de parentesco ou uma língua) em termos da definição de um potencial, um conjunto de possibilidade. Assim sendo, tem efeito sobre a sociedade ao reproduzir ou transformar tais estruturas. O discurso, assim, configura-se como elemento da vida social, que se alicerça em três modos principais da prática social: por gêneros (modos de agir), por discursos (modos de representar), e por estilos (modos de ser). Sustentando relações de poder, além de ideologias, transformandoas, constituindo relações sociais e identidades. No enquadre da Análise de Discurso Crítica, de Chouliaraki e Fairclough (1999), as práticas sociais englobam diversos momentos da vida social, que alcançam os domínios da economia, da política, da cultura, incluindo a vida cotidiana. Desse modo, concebendo a vida social como constituída de práticas, esses autores defendem uma abordagem com foco voltado à problematização das práticas sociais. Nesse contingente, é nas práticas sociais, que a linguagem se manifesta como discurso e como uma parte irredutível da maneira como agimos e interagimos, representamos e identificamos a nós mesmos, aos outros e aos aspectos do mundo por meio do discurso. A origem do conceito de discurso é explicada nas práticas sociais. Nesse sentido, o discurso como centro, como foco dominante de análises, cede lugar à centralidade das práticas sociais, de forma que o discurso passou a ser visto como um momento das práticas sociais, interconectado a outros momentos igualmente importantes e que funcionam como partes constituintes da sociedade. Nas
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práticas sociais, a linguagem manifesta-se como discurso, como uma parte irredutível da maneira como agimos e interagimos, como representamos e identificamos a nós mesmos, aos outros e a aspectos do mundo por meio do discurso. Tendo em vista que o discurso é visto como um momento das práticas sociais, interconectado a outros momentos igualmente importantes e que funcionam como partes constituintes da sociedade, apresentamos o quadro que resume os momentos da prática social:
Figura 1. Momentos da prática social
Atividade Material
Discurso e Semiose
Prática Social
Relações Sociais
Fenômeno Mental
Fonte: Elaborada pelas autoras, baseada em Chouliaraki e Fairclough (1999)
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Análise de Discurso Crítica aliada à Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) Fairclough (2003) considera a Linguística SistêmicoFuncional (LSF) uma teoria voltada para a relação entre discurso e outros elementos e aspectos da vida social, cuja abordagem à análise linguística de textos é sempre orientada para o caráter social dos textos, nessa direção, a gramática funcionalista busca uma estrutura do sistema linguístico que por si só é social. Segundo Halliday e Matthiessen (2004), a LSF é funcional em sua interpretação dos textos, assim um texto não é mero reflexo do que está além dele, é um parceiro ativo na construção da realidade e nos processos de sua transformação da realidade, do sistema e dos elementos da estrutura linguística. Ademais, a LSF é voltada para a descrição da linguagem como uso em determinado contexto; logo, a maneira como a língua é utilizada varia de situação para situação, o que implica a relação entre o texto e o contexto, que interagem mutuamente, em uma relação dinâmica e de permanente mudança. Em suma, é uma teoria de uso que se assenta no léxico-gramática e na semântica, por isso podemos entender que, quando se faz Análise de Discurso Crítica, aliada à Linguística Sistêmico Funcional, nós estamos fazendo análises linguisticamente orientadas. Para Halliday (1989), o sucesso na comunicação pode ser explicado pela previsão inconsciente, pois quase nunca é surpresa o que queremos dizer em determinadas situações. Essas previsões são feitas com base no contexto de uso. O tipo de descrição ou interpretação do contexto de uso que vem a ser mais adequado para o linguista é o que caracteriza os termos usados em uma interação. Halliday e Hasan (1989, p. 12) propõem também três conceitos fundamentais para descrever o contexto de situação
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específico: o campo (field), as relações (tenor) e o modo (mode). Sendo que campo se refere ao marco institucional, em que se inclui a atividade do agente, refere-se à natureza da prática social realizada pelo uso da linguagem, correspondendo ao conteúdo de que trata o falante e de seus objetivos. Segundo Halliday, o campo implica descrever o que está acontecendo, já as relações se referem aos participantes da interação, às suas posições e aos seus papéis, é também a análise das interações (quem está se comunicando com quem?). A descrição dessa variável implica as informações sobre os tipos de relações entre os participantes (hierárquica ou não) e a distância social entre os participantes. E, o modo, por sua vez, referese à função que o discurso desempenha no momento da interação, à organização simbólica do texto, ao canal (fônico ou gráfico), ao meio (falado ou escrito) da mensagem e também ao modo retórico, incluindo categorias, como persuasão, exposição, entre outros. Podemos observar abaixo que as variáveis do contexto de situação relacionam-se diretamente com as metafunções da linguagem. Segundo Gouveia (2008, p.28), as variáveis de registro relacionam-se, dessa forma, com as metafunções.
Quadro 1. As variáveis de registros e as metafunções VARIÁVEIS DE REGISTRO
METAFUNÇÃO
CAMPO
IDEACIONAL
RELAÇÕES
INTERPESSOAL
MODO
TEXTUAL Fonte: Gouveia (2008, p.28)
Halliday (2004) defende a perspectiva de que a LSF valoriza a teoria da linguagem pautada na metafuncionalidade, que permite perceber a linguagem presente no texto como representante e 204
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constitutiva das identidades e das práticas sociais. Fairclough discorre sobre os aspectos dos efeitos construtivos do discurso: a construção das identidades sociais e as posições de sujeito, a construção das relações sociais entre os indivíduos e a construção de sistemas de conhecimento e de crenças. Esses efeitos correspondem a três funções de linguagem e a dimensões de sentido, denominadas por Halliday (1973) de funções ‘identitária’, ‘relacional’ e ‘ideacional’, que coexistem e interagem em todo discurso. O discurso existe nessas três dimensões: na da identidade, como as identidades sociais são constituídas no discurso; na função relacional, em que o discurso funciona como um contexto de interação e de negociação entre os participantes e na função ideacional do discurso, quais sejam as maneiras pelas quais o mundo, seus processos, suas identidades e suas relações são representadas no discurso. Em Analysing Discourse Textuals Analysis for Social Research, Fairclough (2003) concebe o discurso como elemento da vida social, que se configura em três modos principais na prática social: por meio de gêneros (modos de agir), de discursos (modos de representar), e de estilos (modos de ser). É por meio dessa obra que Fairclough (2003) propõe uma articulação entre as macrofunções de Halliday e os conceitos de gênero, discurso e estilo, sugerindo, no lugar das funções da linguagem, três tipos principais de significado: o significado acional, o significado representacional e o significado identificacional. Fairclough (2003) tomou, também, como ponto de partida a esses significados sua própria revisão de alguns pontos da teoria Sistêmico-Funcional, proposta em 1992, como as funções relacional, ideacional e identitária. Ele também postula que a função textual está incorporada ao significado acional. O que a distância revela
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Assim, é possível traduzir as transformações propostas por Fairclough em relação às metafunções de Halliday no quadro seguinte
Quadro 2. Transformações propostas por Fairclough em relação às metafunções de Halliday Linguística Sistêmico Funcional (HALLIDAY, 1991) METAFUNÇÃO IDEACIONAL METAFUNÇÃO INTERPESSOAL
Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 1992) FUNÇÃO IDEACIONAL FUNÇÃO IDENTIFICACIONAL
Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2003) SIGNIFICADO REPRESENTACIONAL (DISCURSO) SIGNFICADO (ESTILO)
IDENTIFIICACIONAL
FUNÇÃO RELACIONAL METAFUNÇÃO TEXTUAL
FUNÇÃO TEXTUAL
SIGNIFICADO ACIONAL (GÊNERO)
Fonte: Elaborado pelas autoras, baseado em Fairclough (1992, 2003) e Halliday (1994)
Como podemos observar, Fairclough estabelece uma correspondência entre ação e gêneros, representação e discursos, identificação e estilos. Desse ponto de vista, assim, gêneros, discursos e estilos são modos relativamente estáveis de agir, de representar e de identificar, respectivamente. Fairclough (2003) relaciona o significado representacional ao conceito de discurso, como modos de representação de aspectos do mundo, os quais podem ser representados diferentemente, de acordo com a perspectiva de mundo adotada. Conforme Fairclough (2003, p. 124). Diferentes discursos são diferentes perspectivas do mundo, associadas a diferentes relações que as pessoas estabelecem com o mundo, o que, por sua vez, depende de suas posições no mundo, de suas identidades pessoal e social, e das relações sociais que elas estabelecem com outras pessoas.
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De acordo com suas posições, em qualquer prática, os atores sociais percebem e representam a vida social, com diferentes discursos e produzem representações de outras práticas, bem como representações ‘reflexivas’ de sua própria prática. Tais representações são configuradas, para esses atores, em consonância com o modo como eles se posicionam e são posicionados. Por esse ângulo, compreender os textos como forma de representação, conforme Fairclough, com base nos estudos de Theo van Leeuwen (1997; 2008), implica investigar a representação dos atores sociais. Esses estudos analisam os textos pelo viés semântico em que os atores sociais podem ser completos ou parcialmente excluídos ou incluídos no discurso, observa, também, de que forma esse processo de inclusão-exclusão ocorre. Para van Leeuwen (2008, p. 5), todo texto - considerando-o como discurso – toda representação do mundo e o que se passa nele, mesmo que abstratamente, deve ser interpretado como representações de práticas sociais. Vejamos na figura seguinte a representação de algumas categorias de atores sociais de van Leeuwen (2008).
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Figura 2. Algumas categorias de atores sociais de van Leeuwen (2008)
Categorização
Exclusão
Inclusão
Fonte: Elaborada pelas autoras, baseadas em van Leeuwen (2008)
Segundo van Leeuwen (1997), quando os atores sociais não estão incluídos, a exclusão pode ocorrer de duas formas: por supressão, quando não há como resgatar o ator excluído, não há indícios dele no texto ou colocado em segundo plano, quando ocorre um encobrimento e é parcialmente excluído, mas há como resgatar o ator em outros momentos no texto, por representação direta ou por referenciação. Já a inclusão pode ocorrer quando o autor é incluído por nomeação, em que se realiza por meio de nomes próprios, ou por categorização, que ocorrem por funcionalização (função à qual estão ligados, por exemplo, professor-tutor de ensino a distância) ou por identificação, que é representado por aquilo que os caracteriza, sexo, idade, condição social etc. A representação dos atores sociais – os tutores a distância – é uma das categorias utilizadas na análise do texto apresentado neste artigo. Essa categoria é diretamente relacionada à função ideacional e ao sistema da transitividade (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004). Portanto, para efeito deste estudo, nossa análise será focada na Metafunção Ideacional e na Metafunção Interpessoal. 208
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A Metafunção ideacional e o sistema de transitividade A função ideacional do discurso, qual seja a maneira pela qual o mundo, seus processos, suas identidades e suas relações são representadas no discurso, ocupa um lugar central, visto que confere o tom experiencial a esse mesmo enunciado. Halliday e Matthiessen (2004, p.170) apresentam, primeiramente, três tipos de processos: o material, o relacional e o mental que constituem um grupo predominante no âmbito da Gramática da Transitividade, configurando, respectivamente, as três instâncias básicas da experiência: (1) ações e eventos, (2) estados e relações abstratas entre elementos do mundo real e ainda (3) registros mentais da nossa experiência interior. Os processos materiais estão relacionados ao “fazer” (transitivos) e ao[s]“acontecer” (intransitivos), os quais envolvem as ações físicas que retratam o mundo externo do falante. A significação fundamental é que alguém ou algo faz alguma coisa. De acordo com Halliday e Matthiessen (2004), os processos materiais podem ter como participantes: ator, meta, escopo, beneficiário (recebedor ou cliente) e atributo. Na seguinte frase: eu forneço todo conteúdo, temos, por exemplo:
Quadro 3. Análise do processo Material (Nós)
fornecemos
todo conteúdo.
Ator
Processo material de movimento
Meta
Fonte: Elaborado pelas autoras
Veja que a meta é para onde todo o processo se dirige e pode ser afetado também. Ao contrário do escopo que não pode ser O que a distância revela
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afetado, por exemplo, nós seguimos o caminho certo. Observe que o “caminho” existe independentemente do processo, mas indica o seu domínio. A representação é feita assim:
Quadro 4. Análise do processo Material (Nós)
seguimos
o caminho certo.
Ator
Processo material de movimento Escopo. Fonte: Elaborado pelas autoras
O beneficiário é um participante que se beneficia de um processo, contudo não está associado ao recebimento de coisas positivas. E quando o beneficiário recebe bens materiais ele é o recebedor e quando recebe serviços ele é o cliente. (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004). Por exemplo:
Quadro 5. Análise do processo Material (Nós)
fornecemos
aos alunos
suporte técnico.
Ator
Processo material
Beneficiário
Meta
de possessão
cliente
Fonte: Elaborado pelas autoras
Já os processos relacionais sinalizam a existência do relacionamento entre os participantes e são usados para caracterizar ou identificar as entidades. Há dois tipos de processos relacionais: atributivo e identificativo. Segundo Halliday (2004, p.119), todas as línguas acomodam formas sistemáticas de realização dos processos relacionais, sendo que o autor identifica três como sendo as principais: 1.
intensivo: onde X (atributivo) é (ou está) Y (identificativo).
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2.
circunstancial: onde X (atributivo) é (ou está) em Y (identificativo). Sendo que o identificativo mostra, nesse caso, uma circunstância.
3.
possessivo: onde X (atributivo) tem (ou possui) Y (identificativo).
Cada um desses tipos são classificados, conforme já antecipamos, de dois modos: 1.
atributivo: onde X é um atributo de Y.
2.
identificativo: onde X é a identidade de Y. Isso gera algumas categorias de processos relacionais, as quais podem ser observadas no quadro 6:
Quadro 6. Categorias de processos Relacionais combinados METAFUNÇÃO
ATRIBUTIVA “X é um atributo de Y” INTENSIVA
Ela é tutora a
XéY
Distância.
POSSESSIVA X tem Y CIRCUNSTANCIAL X é/está em Y
“X é a identidade de Y” Maria é coordenadora da UaB.
A UnB tem
O computador é
professores
da Universidade
pesquisadores.
Aberta.
A reunião do colegiado será numa quinta-feira.
A reunião será em 15 de outubro.
Fonte: Elaborado pelas autoras, baseado em Fuzer & Cabral (2010)
Já os processos mentais estão ligados à experiência interna, àquilo que experienciamos no mundo da consciência O que a distância revela
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e da imaginação. São os processos do “sentir”. Assim, envolvem participantes humanos ou entidades humanizadas. Eles codificam o mundo interior da consciência, por isso retratam ações cognitivas da percepção dos cooperados ou dos administradores, tais como ‘conferir’, ‘verificar’ e ‘examinar’. Por exemplo:
Quadro 7. Análise do processo material (Nós)
reconhecemos
essa ideia
Experienciador
Processo mental
Fenômeno
Fonte: Elaborado pelas autoras
Além desses, os autores juntam mais três outros processos: o verbal, o comportamental e o existencial, a saber: processos verbais, aqueles que expressam formas de dizer ou que constroem o dizer; existenciais, são a representação de algo que existe ou acontece e comportamentais, exprimem comportamentos físicos e psicológicos.
Metafunção Interpessoal - sistema de interações e de uso da oração como troca A oração, nesse sistema, é compreendida como troca de significados. Nesse sentido, há dois tipos de valores que podem ser trocados nessa interação: informação ou bens&serviços. Na troca de informação, aquilo que é trocado é a própria linguagem. Já na troca de bens e serviços, o sujeito usa a linguagem para influenciar o comportamento de alguém. As informações feitas por meio de trocas verbais têm a forma de proposição e, quando a língua é usada para trocar bens e serviços, a oração é chamada de proposta. Essas duas categorias definem as quatro funções primárias da fala: oferta, comando, declaração e pergunta, como mostra o quadro 8. 212
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Quadro 8. Funções da fala Papel na troca DAR
Valor trocado INFORMAÇÕES
BENS E SERVIÇOS
DECLARAÇÃO
OFERTA
A Capes concedeu-
Você quer uma bolsa
me uma bolsa de
de estudo?
estudo. SOLICITAR
PERGUNTA
COMANDO
O que ele lhe
Conceda-me uma
concedeu?
bolsa de estudo.
PROPOSIÇÃO
PROPOSTA
Fonte: Elaborado pelas autoras, baseado em Halliday e Matthiessen, 2004, p. 107
A estrutura do MODO A parte da oração que desempenha a metafunção interpessoal é chamada Sistema de MODO. O Sistema de MODO “é o recurso gramatical para a realização de movimentos interativos no diálogo” (MARTIN, MATTHIESSEN e PAINTER, 1997, P.58). O sistema gramatical de modo e de modalidade constitui-se de dois elementos: o modo e o resíduo, sendo que modo equivale ao sujeito + finito (tempo, polaridade e modalidade). O Sujeito é um grupo nominal, é a referência pela qual a proposição pode ser afirmada ou negada. Já o finito é a essência do sistema de modo. Apresenta-se pela parte do grupo verbal que carrega o tempo ou a opinião do falante. As funções do elemento finito são: Tempo – durante quanto tempo em relação ao momento da enunciação a proposição é válida; modalidade – em que medida a proposição é válida, e polaridade – a proposição poderá ter validade positiva ou negativa.
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O resíduo é constituído da parte restante da oração que não foi classificada como Modo, assim equivale ao predicador, ao complemento e aos adjuntos que correspondem aos advérbios. Observe que ambos têm uma motivação semântica, portanto contribuem de formas diferentes na oração, por isso devem ser considerados separadamente. Por exemplo:
Quadro 9. Representação do Sistema de MODO O papel do tutor não (incluem) produzir
materiais didáticos.
Sujeito
Complemento
Polaridade: Negativa Modalidade:
Predicador
Finito- Presente
obrigatoriedade Modo
Resíduo
Fonte: Elaborado pelas autoras, baseado em Halliday e Matthiessen ( 2004)
A função ideacional do discurso, qual seja a maneira pela qual o mundo, seus processos, suas identidades e suas relações são representados no discurso, ocupa um lugar central, visto que confere o tom experiencial a esse mesmo enunciado. Halliday e Matthiessen (2004, p.170) apresentam, primeiramente, três tipos de processos: o material, o relacional e o mental que constituem grupo predominante no
âmbito
da
Gramática
da Transitividade,
configurando,
respectivamente, as três instâncias básicas da experiência: (1) ações e eventos, (2) estados e relações abstratas entre elementos do mundo real e, ainda, (3) registros mentais da nossa experiência interior. Além desses, os autores juntam mais três outros processos: o verbal, o comportamental e o existencial. Processos verbais são 214
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aqueles que expressam formas de dizer ou constroem o dizer; existenciais são a representação de algo que existe ou acontece e comportamentais exprimem comportamentos físicos e psicológicos. Observe que, no exemplo anterior, há uma classificação da modalidade que para esse exemplo é de obrigatoriedade. Isso acontece, porque, ao produzir um enunciado, o falante inscreve nele, algumas marcas que servem para balizar a compreensão a ser realizada pelo interlocutor, por exemplo, permissão, obrigatoriedade etc. Nesse momento, nós observamos, à luz da linguística, a modalidade deôntica, que se liga ao eixo da conduta: o falante considera o conteúdo da fala como um estado de coisas que deve, que precisa ocorrer obrigatoriamente, ou simplesmente há uma permissão, que seria a modalidade deôntica de possibilidade. Tendo em vista esse tipo de modalidade, observaremos também como se dá a atitude dos autores do texto, foco da análise, perante a validade do conteúdo fixado no enunciado, que poderá ser apresentado como coincidente ou não coincidente com a realidade. O conteúdo do documento corresponde realmente às práticas delegadas aos tutores na plataforma de EaD?
Como os professores são representados no texto: as funções do tutor online. Para Fairclough, o discurso contribui para constituir (e mudar) o conhecimento e seus objetos, as relações sociais e a identidade social. Nessa direção, as pessoas têm suas identidades construídas de acordo com o modo por meio do qual vinculam a um discurso – no seu próprio, e nos discursos dos outros. Nesse sentido, verificamos que a identidade discente passa por intensas mudanças globais, sociais, culturais e econômicas,
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características da pós-modernidade, centrada no uso e na aplicação de informação e de conhecimento, cuja base material está sendo alterada por uma revolução tecnológica concentrada na tecnologia da informação, que penetra em todas as esferas da atividade humana (CASTELLS, 1999. p. 24). Hall (2003) postula que a discussão sobre as identidades sugere o pressuposto: as identidades pós-modernas estão sendo descentradas, deslocadas, fragmentadas e, portanto, reconfiguradas (grifos nossos). Assim, afetadas pelas mudanças, de âmbito global, local e pessoal, as identidades tornaram-se fluidas e desestabilizadas. Isso porque, construídas histórica e socialmente, estão sempre em um estado de fluxo (RAJAGOPALAN, 1998; HALL, 2003). É esse o cenário paradoxal da modernidade líquida, conforme Bauman (2001), no qual os atores sociais, que, neste estudo, são os tutores online, individualmente situados, além de experimentarem uma nova temporalidade, uma concepção de tempo e de futuro que os impede de um delineamento minimamente inteligível de projetos de vida, são responsabilizados por suas escolhas ou trajetórias e, portanto, por suas consequências. A construção das identidades, além de implicar a interação entre os sujeitos, agindo em práticas sociais nas quais estão posicionados (CASTELLS, 2002) ela, ainda, recebe a influência de fenômenos externos, afetando aspectos da intimidade dos sujeitos, modificando vidas e o modo de ser de cada um deles (VIEIRA, 2005, p. 209). Diante desses pressupostos, a representação do professor está passando por uma reconfiguração tendo em vista o advento
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das novas Tecnologias de Comunicação e de Informação, as (TIC's). Como defende Louro (2004, p. 98), as representações de professoras e professores dizem algo sobre esses sujeitos, delineiam seus modos e traços, definem seus contornos, caracterizam suas práticas. Nesse sentido, é preciso compreender como o professor-tutor está sendo representado pelos autores do texto, até porque o texto é vinculado ao curso de formação de tutores. Portanto, para entender melhor o papel do professor-tutor dentro do curso, faremos a análise do texto: as funções do tutor online, acessível por meio da página: http:// pt.scribd.com/doc/72178114/As-Funcoes-Do-Tutor-Online-1, à luz da Linguística Sistêmico-Funcional, A fim de fazer uma análise minuciosa desse texto, recorremos à ferramenta computacional WordSmithTools, que possibilita quantificar o tamanho do arquivo, a quantidade de palavras diferentes, e a frequência de repetições que há nesse texto. Essa ferramenta nos possibilitou identificar que o texto “As funções do tutor online” é composto por 1.051 palavras distintas e, por meio deste programa, faremos a análise linguística-discursiva dos recursos lexicais utilizados para a tessitura desse texto. A análise revela como as pessoas que o escreveram representaram o professor-tutor. Essa representação se dá pela metafunção ideacional, por meio do principal papel de transitividade – os processos, e da Metafunção Interpessoal, por meio do sistema de modo.
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Análise dos dados à luz da Metafunção Ideacional Com base na Gramática Sistêmico-Funcional, realizamos a classificação dos doze verbos mais frequentes no texto analisados, conforme quadro abaixo:
Quadro 10. Processos recorrentes no texto. Processos
Freq.
Relacional Atributivo Relacional Existencial
Freq.
%
15
48%
10
33%
7
23%
4
13%
10 5
Identificativo
Verbos
Ser/São
5
Relacional
5
Identificativo
Inclui
Mentais Perceptivos
7
Material
7
Relacional Atributivo
7
Materiais
2
Trata
4
13%
Mentais Cognitivos
2
Aprender
4
13%
Materiais
4
Coordenar
4
13%
Materiais
4
Dando
4
13%
Materiais
4
Fazer
4
13%
Materiais
4
Promover
4
13%
Relacional Atributivo
4
Refere
4
13%
Materiais
3
Ensinar
3
10%
Identificamos Pode
Fonte: Elaborado pelas autoras.
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Os verbos que aparecem em todo texto são, no total, 186. Em relação aos processos mais frequentes, conforme vimos no quadro 10, temos: 17 % de ocorrência de processos relacionais (31), sendo que 11% são relacionais atributivos e 6 % são relacionais identificativos; além disso, há 15% de ocorrência de processos materiais (28). Da análise, 5% dos processos são mentais, sendo que 4% são de mentais perceptíveis e 1% é de mental cognitivo. De processos existenciais, temos a ocorrência de 2,6%, com 5 ocorrências. Contudo, entre esses 12 verbos analisados, não há ocorrências de processos verbais, nem de processos comportamentais, conforme foi observado no quadro 10. Observamos
que
os
processos
relacionais se sobressaem porque, por ser um texto cuja finalidade é mostrar as funções do tutor online, ele preocupa-se, em sua totalidade, em
nomear,
identificar
e
classificar
as coisas com os quais o tutor terá de se relacionar. Dessa maneira, os processos relacionais estabelecem uma relação entre dois participantes. Os processos relacionais atributivos servem para caracterizar. Assim, o portador constrói-se como um membro de uma classe descrita por um atributo e a relação é estabelecida entre um membro e uma classe. Observe o fragmento: “Estes atos pedagógicos, além do próprio desenho do curso, são fatores que podem afetar o bom desempenho da aprendizagem em uma disciplina online”. Nesse fragmento, por exemplo: “Nesse contexto, mais do que ensinar, trata-se de fazer aprender, concentrando-se na criação, na gestão e na regulação das situações de aprendizagem”, a forma verbal indica o funcionamento do verbo como processo relacional, podendo ser dado para o verbo
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ser (é). Observamos que a incidência do processo relacional revela a preocupação dos autores do texto em organizar conceitos e atribuir características ao “objeto”, o ensino, e ao “participante”, o tutor. O segundo processo mais frequente foi o material, pois as funções do tutor online envolvem deveres, a saber: aprender, coordenar, dar, fazer, promover e ensinar. Desse modo, esses processos representam tudo o que pertence ao mundo físico do fazer e do acontecer de um tutor na plataforma virtual. Nesse ambiente, ele é operacional, é o executor das tarefas já pré- estabelecidas pelo professor supervisor e pelo professor autor. A incidência dos processos mentais foi de 5%, indicando que as ações a serem desenvolvidas pelo tutor não são apenas físicas. É de responsabilidade do professortutor executar ações do mundo da percepção, evocadas pelos verbos: identificar e aprender.
Análise dos dados à luz da Metafunção Interpessoal Analisando agora o enunciado que traz claramente o papel do tutor, em relação ao sistema de modo e os valores trocados, temos:
Quadro 11. Análise da Metafunção Interpessoal nos períodos: é levar
a aprender.
o aluno
Sujeito
Finito- Presente
Predicador
Complemento
Polaridade: Positiva Modalidade: 0
220
Predicador
O papel do tutor
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Modo
Resíduo
Valor trocado: informações (PROPOSIÇÃO) Fonte: Elaborado pelas autoras
Quadro 12. Análise da Metafunção Interpessoal no período O tutor
deve se submeter
à criação, à gestão e à regulação de situações de
Sujeito
Finito- Presente Polaridade: Positiva Modalidade: obrigatoriedade
Modo
Predicador
aprendizagem Complemento
Resíduo
Valor trocado: informações (PROPOSIÇÃO) Fonte: Elaborado pelas autoras
O texto atribui ao professor-tutor ora um papel ativo, ora um papel passivo, pois, como assinala van Leeuwen (1996, p. 187), a ativação ocorre quando os atores sociais são representados como forças ativas e dinâmicas em uma atividade, e a passivação quando são representados como ‘submetendo-se’ à atividade, ou como sendo ‘receptores dela’. O papel passivo do tutor mostra que esse professor, que em uma situação presencial, tem autonomia para criar; nesse ambiente online, deve se submeter à criação, à gestão e à regulação de situações de aprendizagem, isso porque ele é o mediador, aquele que facilitará a vida do estudante em suas tarefas, como é ilustrado no exemplo: “O tutor atua como mediador, facilitador, incentivador, investigador do conhecimento, da própria prática e da aprendizagem individual e grupal”. O que a distância revela
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Quadro 13. Análise da Metafunção Interpessoal no período O tutor
atua
como
da própria prática
mediador,
e da aprendizagem
facilitador,
individual e grupal.
incentivador, investigador Sujeito
Finito –
Complemento
Polaridade: Positiva Modalidade: 0
Predicador
Presente
Modo Valor trocado: BENS & SERVIÇOS (PROPOSTA) Fonte: Elaborada pelas autoras
Em relação ao sentido de passivação, com base em Fairclough (2003), o tutor que não cria, somente reproduz o conhecimento já estabelecido pela gestão do curso, na pessoa do professor supervisor e de toda a equipe pedagógica que está por traz desse tutor, traz para esse ator social certo grau de limitação à instauração de mudanças, portanto isso expressa uma polaridade negativa a esse profissional, que se reconfigura não como agente, mas como sujeito paciente.
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Quadro 14. Análise da Metafunção Interpessoal no período
Sujeito
É
Finito – Presente Polaridade: Positiva Modalidade: 0
Modo
uma das tarefas
nessa
mais complexas da
modalidade de
prática docente
ensino
Complemento
Adjunto
Predicador
A tutoria
Resíduo
Valor trocado: informações (PROPOSIÇÃO) Fonte: Elaborado pelas autoras.
Quadro 15. Análise da Metafunção Interpessoal no período Exigindo
diferentes
para o
competências
desempenho das funções de tutor, tais como competências técnicas, pedagógicas, comunicacionais, de iniciativa e criatividade, gerenciais, sociais, profissionais, entre outras.
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Finito – Presente Polaridade: Positiva Modalidade: obrigatoriedade
Complemento
Adjunto
Predicador
Sujeito
Modo
Resíduo
Valor trocado: BENS & SERVIÇOS (PROPOSTA) Fonte: Elaborado pelas autoras.
Quadro 16. Análise da Metafunção Interpessoal no período A função
Inclui
pedagógica
os atos do
com o objetivo de
tutor
apoiar o estudante para que ele possa alcançar uma determinada competência de aprendizagem relevante para a disciplina.
Finito – Presente Polaridade: Positiva Modalidade: 0
Modo
Complemento
Adjunto
Predicador
Sujeito
Resíduo
Valor trocado: BENS & SERVIÇOS (PROPOSTA) Fonte: Elaborado pelas autoras
Observamos que, nesse momento, a posição do tutor está no resíduo (complemento). Mais precisamente sua posição sintática 224
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é de adjunto adnominal, que, em termos de interpretação semântica, temos que o tutor atua com o objetivo de apoiar o estudante para que ele possa alcançar uma determinada competência de aprendizagem, não obstante a escolha dos autores tenha sido a de delegar ao tutor o papel de mero complemento do sujeito, que é a função pedagógica. Mais uma vez há a passivação do tutor.
Quadro 17. Análise da Metafunção Interpessoal no período Os atos
incluem definir e
os estudantes do
do
relembrar
papel de todos
tutor
no processo educativo
os envolvidos (incluem) organizar
dias e horas
para encontros virtuais, encontros presenciais
(incluem) organizar
Sujeito
a avaliação da
para encontros virtuais,
disciplina
encontros presenciais,
(incluem) discutir
revisões e
na disciplina para futuras
modificações
modificações
Finito – Presente
Complemento
Adjunto
Predicador
Polaridade: Positiva Modalidade: obrigatoriedade Modo
Resíduo
Valor trocado: BENS & SERVIÇOS (PROPOSTA) Fonte: Elaborado pelas autoras
Embora seja apresentado que os atos dos tutores incluem definir, relembrar e organizar, sem a presença de um verbo que traduza obrigatoriedade, a modalidade aqui não pode ser nula, uma O que a distância revela
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vez que esses atos têm de ser seguidos, pois fazem parte do papel do tutor, a modalidade deôntica aqui é de obrigação, uma vez que representa a obrigação do tutor na plataforma online. O que veremos a seguir é a modalidade deôntica realizada de forma explícita, por meio do verbo ter, poder, exigir:
Quadro 18. Análise da Metafunção Interpessoal no período O tutor
tem funções a cumprir
Seu
(não) pode ser
aleatório
Exige
o conhecimento dessas funções
Finito – Presente
Complemento
Sujeito
Polaridade: Negativa Modalidade:
Predicador
trabalho
obrigatoriedade Modo
Resíduo
Valor trocado: BENS & SERVIÇOS (PROPOSTA) Fonte: Elaborado pelas autoras
Considerações finais Em termos de proposição ou proposta, percebemos que nos trechos analisados, ora o texto oferece informações a respeito do tutor, ora sua função é apresentado como fosse um bem ou um serviço. Segundo van Leeuwen (1997), esse procedimento acontece, pois o ator social, o tutor, está sendo incluído por nomeação, que se realiza por categorização, que ocorre por funcionalização (função à 226
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qual está ligado, por exemplo, o professor-tutor de ensino a distância) ou por identificação, quando fala que a tutoria é uma das tarefas mais complexas das práticas docentes (o que se quer dizer é que papel do tutor é complexo), além disso, temos que o tutor é incluído também como se fosse um bem ou serviço, pois é assim que ele está sendo caracterizado. Nesse sentido, podemos observar a questão mercadológica que circunda essa função, que por hora se caracteriza como um sujeito de ação operacional e não como um agente produtor do conhecimento. E, quando os autores colocam a função do tutor como sendo de bem e serviço, eles, na verdade, querem que os seus possíveis leitores, que são tutores, façam aquilo que é anunciado: que eles sejam, de fato, operacionais. Assim, nessa perspectiva de ensino a distância, o tutor serve como um ajudante do professor supervisor na organização da disciplina, no apoio aos alunos, sendo mediador, facilitador, incentivador, investigador, só que nesse caso, ele é investigador do grupo, como se fosse para monitorá-los, em termos de saber se eles estão fazendo as atividades, se estão cumprindo os prazos, se estão entrando nos fóruns etc. Outra questão é em relação à modalidade, como observamos, ao produzir os enunciados, os autores inscreveram nele algumas marcas que serviram como balizadores da compreensão a ser realizada pelo interlocutor, por exemplo, permissão, obrigatoriedade etc. Nesse momento, observamos, à luz da linguística, a modalidade deôntica, que se liga ao eixo da conduta: o falante considera o conteúdo da fala como um estado de coisas que deve, que precisa ocorrer obrigatoriamente, ou simplesmente há uma permissão, que seria a modalidade deôntica de possibilidade. Tendo em vista esse tipo de
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modalidade, observamos também como se dá a atitude dos autores do texto foco da análise perante a validade do conteúdo fixado no enunciado, que ora está no campo da obrigatoriedade, ora não. Por fim, os discursos resultam das diferentes perspectivas de mundo das pessoas, do ‘lugar’ em que elas se posicionam, ou são posicionadas em seus contextos sociais, também são resultados das relações sociais estabelecidas. A representação do professortutor, por vezes, não é o de agente de mudança do ensino, pois o material didático vem sempre pronto, fruto da colaboração do professor-autor. Nessa perspectiva, o tutor, como o próprio texto traz, é o mediador e o facilitador do processo ensino-aprendizagem. Assim, a representação do tutor é bem diferente do realizado sobre o professor presencial, que tem poder de decisão e de ação. Logo, em face do exposto, a representação do professor está, de fato, sendo reconfigurada com o advento das novas Tecnologias de Comunicação e de Informação, as (TIC's).
Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999. FAIRCLOGH, N. Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992.
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Capítulo IX
O Plágio em Ambientes Virtuais de Aprendizagem e a Promoção da Autoria Acadêmica Francisca Cordelia Oliveira da Silva Eni Abadia Batista
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O Plágio em Ambientes Virtuais de Aprendizagem e a Promoção da Autoria Acadêmica Francisca Cordelia Oliveira da Silva1 Eni Abadia Batista2
Inquietações O objetivo deste artigo é apresentar uma discussão sobre o plágio em trabalhos acadêmicos. Inclui sugestão de algumas ações que podem ser adotadas por docentes e por tutores de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs) em situações que envolvem a ética no uso da internet (e de outras fontes de pesquisa) como condição essencial para a busca da promoção da autoria acadêmica. Consideramos o tema relevante, uma vez que tem sido um problema recorrente vivenciado por docentes e por tutores no decorrer do curso, na elaboração de trabalhos corriqueiros das disciplinas, e ganha proporções alarmantes na construção do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), momento em que o aluno deveria mostrar mais autonomia na construção do seu texto e, paradoxalmente, os orientadores veem-se às voltas com colchas de 1 Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Adjunta do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas da UnB. Coordenadora do Curso de Licenciatura em Letras EaD da UnB. Pesquisadora do Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (Cepadic). Áreas de interesse: Produção de Texto (leitura, compreensão, produção e avaliação), Avaliação em Língua Portuguesa e Análise de Discurso Crítica. 2 Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professora de Língua Portuguesa e tutora do Curso de Licenciatura em Letras EaD da UnB. Pesquisadora do Centro de Pesquisas em Análise de Discurso Crítica (Cepadic). Áreas de interesse: Produção de Texto (leitura, compreensão, produção e avaliação), Avaliação em Língua Portuguesa e Análise de Discurso Crítica.
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retalhos mal costuradas. Esses docentes fazem parte do grupo que se encontra em luta constante para mudar a habitual prática do “ctrl-c e ctrl-v” já incorporada à prática de estudos de muitos alunos, mesmo quando na etapa de conclusão do curso. A pesquisadora Obdália Santana Ferraz Silva, da Universidade do Estado da Bahia (UFBA), escreveu um artigo sobre a questão do plágio nas universidades que muito nos chamou a atenção e que compartilhamos nas referências desta produção. Não o iremos resenhar, mas, de um lado, tomá-lo como via de acesso para algumas reflexões sobre como lidar pedagogicamente com tal problema para, de outro, promover a autoria acadêmica. Primeiro, pensamos que não há como negar a magnitude das mudanças que ocorrem nas práticas sociais deste novo século, com abrangência em todos os níveis. Nessa medida, as práticas de ensino e de aprendizagem também estão inseridas na movimentação nesse processo de transformação, haja vista o próprio advento da Educação a Distância (EaD) nas proporções em que hoje se configura. No entanto, a maior manifestação de mudança encontra-se nas relações do homem com as tecnologias. As interações têm sido mediadas pelas mais variadas mídias, que estão ao alcance de nossos alunos, principalmente, daqueles que escolheram os Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs), para construir a sua identidade profissional. Esse ingresso facilita a dinamicidade no contato com uma imensa quantidade de informações necessárias à formação acadêmica e contribui para o acesso às mais diversas informações em menor escala de tempo possível, mas, ao mesmo tempo, sugere uma liberdade muito grande de apropriação da criação intelectual alheia.
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Sugere ainda a ideia de que, nesse imenso universo de informações, essa apropriação indébita passará despercebida. Imerso nesse infindável ambiente de possibilidades oferecido por um teclado e por uma tela, o estudante de qualquer nível de ensino pode acabar adotando um caminho que requer menor esforço. Isso é óbvio em qualquer nível e ambiente de aprendizado e, como consequência, a prática do plágio tornou-se fato/problema recorrente. Professores e graduandos, de modo geral, devem refletir sobre as medidas necessárias para minimizar os efeitos negativos dessa prática e disseminar, entre o corpo discente principalmente, a importância do desenvolvimento de habilidades que levem à produção de textos que reflitam a autoria do seu produtor.
Identificando o Problema Como linguistas, pesquisadores e docentes preocupados com a aprendizagem de nossos alunos, não há como fechar os olhos para a prática do plágio ou das cópias de trabalhos, nem desconsiderar que esse comportamento tem se tornado rotina para alguns estudantes, sobretudo, pelos orientandos de TCC dos cursos de graduação. Isso acontece porque, para fechar a matriz curricular, os alunos devem elaborar/produzir o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). É nesse momento que os professores se deparam com um impasse frequente e precisam buscar alternativas razoáveis para o desenvolvimento do trabalho (tendo em vista todo o contexto da EaD) e, ao mesmo tempo, ter a segurança de que os alunos por ele orientandos sejam efetivamente autores de seus próprios textos. A maior parte dessa problemática surge em função do advento da era digital, representada pelo uso da internet, que trouxe facilidade de comunicação e, como utilidade peculiar, permite aos usuários o acesso a diversas publicações, promovendo, assim, o alcance a um número imensurável de informações. O que a distância revela
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O acesso oferecido pelo Google, empresa que oferece softwares de produtividade online, como o e-mail Gmail, e redes sociais, entre outros, é executado por mais de um milhão de servidores do mundo e processa mais de um bilhão de solicitações de pesquisa por usuários todos os dias, segundo site de significados online. Esse web site de busca foi classificado pela revista Fortune3 como o quarto melhor lugar do mundo para se trabalhar e para se pesquisar, além de ser apontado como a marca mais poderosa no mundo pela BrandZ.4 É inegável que essa facilidade serviu para intensificar tanto o acesso à leitura hipertextual quanto à prática de plágio no meio acadêmico. Patrícia Peck Pinheiro Advogados (PPPA), uma empresa de consultoria jurídica brasileira, publicou, em 2007, um Guia para as instituições educacionais sobre as boas práticas legais para o uso das tecnologias dentro e fora da escola. Esse guia traz informações relevantes para nós, educadores, e refere-se aos conhecimentos jurídicos e às medidas que precisamos tomar em relação a alguns problemas, como os relacionados na ilustração abaixo:
3 FORTUNE é uma revista americana de negócios publicada pela Times. É conhecida pela publicação do ranking anual das empresas pelo faturamento. Outra característica da revista é a publicação regular de listas pesquisadas, no caso de recursos humanos, por exemplo, uma lista das melhores empresas para trabalhar, receitas e perfil de seus negócios. 4 BrandZ é um banco de dados que é usado para estimar as avaliações de marcas e a cada ano; desde 2006, tem sido usado para gerar uma lista das 100 maiores marcas globais. Informações obtidas por meio do dicionário de significados online. Disponível em: http://www.significados.com.br. Acesso em: 9/8/2013.
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Ilustração 1: Problemas gerados pelo uso inadequado da Internet. Falta de boas maneiras
Limites de liberdade de expressão
Plágio
Pirataria
INTERNET Assedio Digital
Uso indevido de imagens
Falta de privacidade
Fraude eletrônica
Segurança eletrônica
Fonte: Elaborada pelas autoras com base no Guia para as Instituições de ensino: PATRÍCIA PECK PINHEIRO ADVOGADOS, 2006-2007, p. 4.
No centro dos círculos que compõem a ilustração, podemos ler uma lista de aspectos que são considerados problemas gerados pelo uso inadequado da internet. Para estudarmos todos estes aspectos, seria necessário um texto maior. Como aqui estamos no âmbito de capítulo de um livro, focaremos apenas à questão do plágio na produção trabalhos e de textos em AVAs com vistas à obtenção de melhores resultados (com o empenho do menor esforço possível) e chamaremos a atenção para algumas formas que podem ser desenvolvidas para buscar a promoção da autoria. O nosso interesse, portanto, está voltado às situações vivenciadas nas práticas acadêmicas de cursos online, mas as reflexões podem se estender aos cursos presenciais. O que a distância revela
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O Plágio no Meio Acadêmico: Eis a Questão! Segundo Fonseca (2004), a expropriação do texto de outro autor e a apresentação desse texto como sendo de cunho próprio caracteriza o plágio e, de acordo com a Lei de Direitos Autorais, Lei nº 9610/1998, o plágio é considerado violação grave à propriedade intelectual e aos direitos de autoria, além de ser um modo de agredir frontalmente a ética e ofender a moral acadêmica. Dessa forma, essa questão requer uma discussão mais ampla nos cursos de formação docente. O termo plágio significa, conforme Fonseca (2004), a expropriação de direitos intelectuais. É um termo que vem do latim “plagiarius”, um abdutor de “plagiare”, ou seja, “roubar” [...]. Assim, o significado etmológico da palavra carrega o sentido de ofensa à ética e à lei, segundo os preceitos da legislação que resguarda a autoria. Em dicionário não técnico, mas de uso escolar, o plágio é definido como “1. Ato de apropriar-se de trabalho, ideia ou projeto alheio. 2. Cópia ou imitação de trabalho alheio apresentada como própria” (ABL5, 2008, p. 993). Observe-se que o problema do plágio não é a cópia, mas o fato de a autoria ser negada ou indevidamente apropriado pelo plagiador. De acordo com as considerações feitas por Fonseca, em sua obra intitulada A Expropriação de propriedade intelectual (2004), apesar de o plágio entre os alunos, habitualmente, ficar apenas nas instâncias acadêmicas, essa é uma grande preocupação para os docentes. É uma inquietação que se deve à formação do caráter ético da formação moral e profissional do estudante, pois é de conhecimento de todos que a atitude de tomar o texto do outro e assiná-lo como seu é uma forma de desmerecer a contribuição que 5
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Academia Brasileira de Letras.
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o pesquisador ofereceu aos estudos sobre o tema. Por essa razão, o autor frisa que o plágio ocorre pelas ações que desrespeitam os critérios de referências. Essas ações, portanto, retiram oportunidades profissionais de quem as merece, causando prejuízos para seu reconhecimento intelectual. A respeito dessa questão que envolve a prática de plágio, não foi difícil encontrar nos artigos lidos, indicações de sugestão de medidas a serem tomadas junto aos estudantes ou que envolvam a atuação e o desempenho docente. Essa é mais uma forma de atribuir responsabilidade ao professor, sem dúvida, contudo precisamos compreender que posturas éticas devem ser discutidas com os nossos alunos e, se o plágio é uma prática aprendida durante o processo de formação acadêmica, é nesse mesmo processo que ela pode ser transformada. Assim,
é
no
ambiente
de
aprendizagem que os alunos precisam receber orientações decisivas a respeito do assunto para que o plágio não seja visto como uma prática naturalizada. Sabemos que, muitas vezes, o nosso aluno encontra, em um trabalho pronto de um colega, o meio para obter a nota necessária para ser aprovado, isso é sinal de que precisamos rever também as nossas práticas de avaliação. Quem sabe, buscar novas formas de usar a prática do plágio de nosso aluno como um meio de uma nova aprendizagem com mais ética. Para que isso ocorra, é de crucial importância que o docente, no início de cada trabalho a ser realizado em AVAs, estabeleça uma interação mediada por meio de fórum que incentive a pesquisa, indicando as devidas fontes e as referências a serem utilizadas. Em um fórum virtual, cria-se uma possibilidade de acompanhar o
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desenvolvimento das atividades, uma vez que o docente ou o tutor poderá indicar o tema a ser discutido sob o ponto de vista de autores previamente definidos. O docente pode ainda promover discussões sobre a questão do plágio e solicitar leitura de textos informativos, assim uma reflexão crítica sobre o tema pode ser um dos caminhos a ser trilhado.
A Informação Como Medida Crítica e Reflexiva Na sociedade atual, caracterizada por mudanças constantes e velozes, os desafios para nós, professores, são cada vez mais complexos, e, esse panorama nos instiga a repensar continuamente a nossa prática. Não podemos negar que a prática da punição pelo docente, mesmo que de modo reduzido, ainda existe, no entanto, serve, em quase todas as situações e instâncias, para constituir maior impasse entre professores, tutores ou orientadores e orientandos, sem obtenção de sucesso. Sabemos que nossos alunos precisam aprender sobre a responsabilidade de seus atos na sociedade digital, em que as relações são cada vez mais individualizadas e “as testemunhas são as próprias máquinas” (PPPA, 2007). Precisamos, como educadores, lembrar ao nosso aluno que cada um é responsável não somente pelo que escreve, mas também pelo que assina, ou seja, que, com apenas um clique, podemos além de outras ações, fazer o download de um arquivo que nos permite praticar um ato não ético e ilícito: a cópia. Esse novo cenário exige uma postura reflexiva. Para isso, precisamos de políticas de segurança e de promover novas ações para o hábito da leitura. O nosso aluno precisa compreender o
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conceito de privacidade, conhecer os termos de uso e de preservação de direitos autorais. Para colaborar com as práticas didáticas, o Guia da PPPA (2007) recomenda: É preciso pensar várias vezes antes de publicar e de copiar algo online porque o mal conteúdo pode ser utilizado para o bem, ou para o mal. A tecnologia pode facilitar a comunicação entre as pessoas..., ou ao contrário... Tudo depende de como fazemos uso dela, de como nos educamos para o seu uso. (PATRÍCIA PECK PINHEIRO ADVOGADOS, 2006-2007, p. 5).
E, assim, o Guia para as Instituições de Ensino alerta quanto às decisões tomadas com base em fontes inseguras, pois a internet é um poderoso meio de comunicação, mas temos que ter em mente que, no espaço virtual, tudo que pode ser postado também pode ser captado, sem triagem de qualidade. A seleção deve ser feita pelo próprio usuário e, para isso, é preciso ter prévio conhecimento do assunto sobre o qual se está pesquisando e senso para analisar a validade e, até mesmo, a veracidade das informações disponíveis na rede. Portanto, nessa conjuntura, não podemos confundir liberdade de expressão com oportunismo, nem facilidade com irresponsabilidade. Ao contrário, reforça o documento do PPPA (2007, p. 5), “a Constituição Federal de 1988, juntamente com o Código Civil e o Código Penal, todos em vigor, determinam liberdade com responsabilidade” (PPA, 2007). Dessa forma, fica clara a necessidade de conscientização de nossos alunos de que a ética e as boas práticas existem para as produções também nos cursos a distância, elas não estão fora de moda e devem ser aplicadas às pesquisas realizadas na internet. Essas medidas preventivas são significativas para nós, professores, pois, em qualquer situação de aprendizagem, como mencionamos anteriormente, somos apontados como os responsáveis por criar, junto aos nossos alunos, O que a distância revela
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uma cultura de uso da internet, mas que esse uso possa contribuir para uma sociedade mais digna, mais ética. O Guia da PPPA(2007) lembra que a Internet foi concebida como um ambiente de informação e de pesquisa, depois evoluiu para um ambiente de transação e de relacionamento. Por isso, de certo modo, reflete uma dimensão do conhecimento humano atual, sejam fatos relevantes, como boas pesquisas e notícias interessantes, sejam banalidades, como fofocas sobre a vida dos atores de novelas, ou até mesmo vídeos de humor do cotidiano, flagrantes da vida íntima das celebridades e de pessoas comuns. A internet é, portanto, um espaço para produções com todas os adjetivos possíveis, sendo assim vemos que essas possibilidades podem ser tomadas como vantagens para a educação. Fazer uma pesquisa em tempo recorde e com eficiência, no entanto, requer maior criticidade, pois sabemos que a conexão da internet, por possibilitar o acesso a todos os tipos de informações, não garante a veracidade de nenhuma delas. De tal modo, com o objetivo de promover a autoria acadêmica, nós, educadores, somos desafiados a educar sob os novos parâmetros de uma realizade conectada. É preciso que nosso aluno seja alertado por nós de que muitas pessoas publicam suas produções na internet e permitem acesso por todos, mas isso não representa confiabilidade. É preciso, então, saber fazer escolhas, conforme João Cabral de melo Neto, “catar feijão, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco”. 6 6 Melo Neto, João Cabral de. Catar feijão. Poema citado por Ribeiro, Ormezinda no Projeto do Curso de Formação Continuada do CARE (2013).
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Precisamos orientar os estudantes para que sejam críticos em relação aos conteúdos, pois, apesar de podermos encontrar na rede uma gama de conteúdos desenvolvidos, é preciso que fiquemos atentos para não sermos enganados por informações fáceis e/ou falsas. Não é tarefa fácil para um educador promover essa capacidade crítica de separar o que é bom do que não tem valor, mas podemos refletir sobre o assunto com esse objetivo. Dessa forma, urge pensarmos novas práticas como docentes e como tutores em AVAs para que possamos abordar tais questões, pois elas, de certa forma, refletem o compromisso com o nosso trabalho.
A Situação de Plágio e a Promoção da Autoria Acadêmica Em muitas situações, o educador, alarmado com essa atitude do estudante, passa a acatar como prática a disposição de passar horas a fio, como nós também já fizemos muitas vezes, colocando trechos de trabalho de alunos no Google, como se fosse um desejo incontido de descobrir qualquer vestígio de plágio. Hoje, já temos softwares que nos permitem fazer isso com mais rapidez. Sem dúvida, ao agirmos assim, demonstramos, por um lado, certo desejo de punição, mesmo que simbólico, e isso pode não ser uma ação saudável, mas é necessária; de outro, agimos como educadores que foram formados para detectar o erro e punir ou corrigir, dependendo do caso. Entretanto, o simples fato de o professor submeter o trabalho do aluno a um programa de detecção de plágio já é evidência de que há suspeitas que geram estresse e insegurança e, também, e pior ainda, que a relação de confiança entre professor e aluno está abalada, uma vez que o professor hoje, na maioria das vezes, “deve”
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partir do pressuposto de que o trabalho foi copiado, principalmente quando se trata de um TCC em que professor e aluno são coautores e corresponsáveis pela produção (mas estão fisicamente distanciados). Nesse cenário, surge uma série de questionamentos: a)
o que fazer com o aluno que me entregou um trabalho plagiado? b) o que fazer quando o seu trabalho é uma cópia integral de outro trabalho já publicado na internet? c) como abordar esse aluno e mostrar-lhe o peso da ação ilegal e imoral que ele está praticando? Esses são questionamentos recorrentes nas mentes de professores e nas reuniões pedagógicas de grupos que trabalho em conjunto. Sobre o fato, arriscamo-nos a emitir uma opinião, pois vemos que há uma banalização do termo plágio em nosso meio e, por isso, o ato em si, passou a ser uma ação que poderia ser vista de outra forma e até mesmo trazer algo de positivo e, nessa perspectiva, expomos o nosso ponto de vista. Hoje, em nosso atual estágio de experiência, passamos a considerar que, se o aluno está exposto a tantos conteúdos e informações disponíveis por meio de hipertextos digitais, uma pesquisa facilitada por esse recurso também precisa ser considerada, e, para isso, precisamos colocar, em caráter prioritário, claras orientações para as produções que ele deve construir para obter a nota exigida naquela disciplina ou naquele trabalho. Por exemplo, dizer-lhes que a pesquisa na internet é uma possibilidade aceita, desde que sejam levados em conta critérios anteriormente estabelecidos. E assim, listar os critérios, incluindo a identificação da autoria como o mais importante. Com muita lucidez, Alexandre Campos Silva, professor do Departamento de Computação da Pontifícia Universidade Católica de 242
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São Paulo (PUC-SP), lembra que, a internet tem, sim, suas limitações e, para o autor, “depende da boa-fé dos usuários”. Mas o professor aposta que a busca por informações online tende a aumentar, e, sendo assim, pensamos que não somos nós, professores, que deteremos essa prática, o que não exclui o fato de que temos responsabilidade no direcionamento de nossos alunos para que usem a internet de forma produtiva. Uma razão para refletirmos sobre isso é o número crescente de usuários da rede. Outra é, conforme Silva (2008), de extrema lógica: nada melhor que pedir ajuda ao mundo, se você precisa resolver um problema. As pessoas têm pressa, querem ser mais produtivas. É natural que recorram a esses sites se ali encontrarem informação confiável (SILVA, 2008). Concordamos com a autora, pois vemos também que esse estágio de violação de autoria é transitório, que sempre ocorrerá não como uma prática cristalizada pelo mesmo estudante, porque, afinal, chegará o momento em que ele sentirá necessidade de atravessar a fronteira da aprendizagem e passar a ter consciência do valor de sua própria criação para a construção de seu conhecimento. Assim, o estudante também chegará a um estágio em que se sentirá mais seguro em termos de familiaridade com os conteúdos abordados. Devemos, portanto, acreditar que, no seu tempo, nosso (a) aluno (a) criará laços com o saber e romperá o cordão de dependência da internet. Enfim, essa questão de plágio, considerada um calo para as nossas avaliações, não deve ser considerada totalmente nociva, principalmente, quando a tecnologia é usada como meio de aprendizagem, pois nela também se encontra a proposta de Pierre Lévy (2007) sobre inteligência coletiva, que inclui o capital
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cultural, representado pelo conhecimento registrado na world wide web (www). Para o pesquisador, “esse é o espaço do saber” (PIERRE LÉVY, 2007, p.25), um ambiente em que se encontra a maior fonte de disseminação cultural. Como professores de cursos em AVAs, devemos, portanto, incluir no rol de nossas missões a de orientar o nosso aluno sobre como buscar conhecimentos na fonte mediada pela internet. Lévy, em sua obra Inteligência Coletiva (2007, p. 26), alerta-nos que o trabalho do futuro é criar ideias interessantes e trocá-las como uma prática de construção coletiva de conhecimentos e a internet é a maior fonte desses saberes. Em palestra proferida no Brasil, o autor sugere a cooperação e a troca de conhecimentos entre comunidades de estudantes e entre universidades
diferentes
como
ações
primordiais para compor a concepção de inteligência coletiva, justificando que essa é uma prática formativa para os alunos, porque é exatamente isso que farão na vida profissional.7 Tomamos como base essas concepções e confirmamos que o plágio pode ocorrer de fato, porque o espaço é propício e repleto de informações, entretanto, alguns deles, quando detectados e bem trabalhados por professores e alunos, poderão servir para construir conhecimentos. Por isso, entendemos que o papel do professor é insubstituível também diante dessa situação, pois não se trata apenas de informações, mas do modo como o desejo de conhecimento é despertado no estudante. Acreditamos que seja 7 Palestra pronunciada no Brasil, SESC, São Paulo (2012) sobre a sua pesquisa que originou a obra A Inteligência Coletiva: por uma antropologia no ciberespaço. Tradução da 5ª Ed. de Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2007.
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possível contribuirmos para que fiquem atentos para fazerem com segurança as suas escolhas. Desse modo, a voz do professor ou a qualidade do modo como nos comunicarmos dentro do grupo é de suma importância. Entendemos que as transformações que têm ocorrido, em todas as formas de atividade humana, não pouparam as atividades do pesquisador iniciante. Agora as pesquisas podem ser realizadas em escala de tempo reduzida, mas essa prática ainda nos deixa preocupados, principalmente devido às questões legais. No entanto, compreendemos que esse pode ser o indício de que estamos no percurso de uma história, e assim, não podemos deixar de participar dos lucros desse processo, buscando formas que sejam, do mesmo modo, proveitosas para o estudante e para a nossa prática docente. Gabriel Perissé (2003), no artigo, O conceito de plágio criativo, afirma que a questão preocupante com o plágio no meio acadêmico traz à baila um conceito já utilizado antes. Isso porque, na Idade Média, segundo o autor, era permitido estimular a busca de exemplos e de modelos do passado que servissem de base para uma nova criação, mesmo que, posteriormente, todos pudessem perceber ali, na obra realizada, mais o antigo que o novo. O autor cita exemplos e diz que não se trata de uma simples cópia ou imitação, mas de um plágio criativo. No século XII, por exemplo, na escola, lembra o autor, ensinavam-se aos alunos que o segredo da filosofia e do escrever bem estava em ler os grandes mestres do passado e redigir como se os estivessem encarnando-os em um novo contexto histórico. O autor indica a obra de Décio Valente, publicada em 1986 e intitulada O plágio, composta por rigorosa identificação O que a distância revela
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de cópias. Segundo Perissé, a obra traz produções “conscientes ou inconscientes, voluntárias ou involuntárias, mal feitas ou magistrais, de pensamentos, versos e poemas, como cópias realizadas por autores conhecidos ou desconhecidos, geniais ou medíocres” (2003, p. 77). Como exemplo, cita a semelhança entre o poema Mãe Preta, de Augusto Linhares, e o poema bem mais conhecido de Manuel Bandeira, Irene no céu. A comparação evidencia as semelhanças, como se pode perceber abaixo: Irene no céu
Mãe preta
Irene preta
Quando Dodora ao Céu chegar, é minha
Irene boa
crença,
Irene sempre de bom humor.
e ao Chaveiro disser: — Dá licença, meu
Imagino Irene entrando no céu:
Santo?
— Licença, meu branco!
São Pedro, vendo-a, lhe dirá com certo
E São Pedro bonachão:
espanto:
— Entra, Irene. Você não precisa
— Você, Dodora, não precisa de licença!...
pedir licença.
E a porta lhe abrirá paternalmente. E ela, para de todo ser feliz numa tal hora, seu cachimbinho acende. Acende-o numa estrela; mas São Pedro lhe diz: — Não, aqui não, Dodora..
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Explica o autor, que, segundo o poeta, no diálogo com o poema de Manuel Bandeira, ele quis mostrar que até São Pedro demonstra preconceito, ao impedir Dodora de fumar seu cachimbo no céu. Dessa forma, Perissé faz uma crítica aos professores orientadores obcecados pela ideia de que a originalidade consiste em fazer coisas absolutamente novas. Gabriel Perissé defende, ainda, que o plágio pode ser criativo. Na voz do autor, o escritor que procura, desesperadamente, dizer o que antes jamais se disse não conseguirá atingir esse objetivo, mesmo que se isole do mundo, e não leia mais nada, e não converse com mais ninguém. Insiste que a única forma de iludir-se, de pensar que é totalmente original, que nada se deve ao passado e... ou ao presente é não conhecer que já foi feito. Contudo, não conseguirá evitar, afinal, que, em seu texto, sejam identificáveis pelo menos um pouco do que já leu ou ouviu em sua vida. Para o autor: Estamos às vezes de tal forma obcecados pela ideia de que a originalidade consiste em fazer coisas absolutamente novas, que mal nos damos conta de que também não é nem um pouco original pensar assim, na medida em que muitas pessoas “originais” vivem pensando que são originais (PERISSÉ, 2003, p.78).
Pensando assim, o autor defende o plágio como algo que pode ser criado, originado de uma seara alheia, de autores conhecidos ou não, algo que pode tornar o trabalho mais fértil e promissor. Mais ainda, de forma humorada, o autor emprega uma metáfora e defende que devemos ser tão “bons ladrões” que: Ninguém perceba que fizemos com o alheio algo melhor. O plágio criativo perfeito é uma imitação inteligente de versos e de metáforas, de ideias e de frases, de resultados e de conclusões de outros
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autores, e, devo esclarecer, esse processo criativo é utilizadíssimo pelos grandes escritores, que são, ao mesmo tempo, grandes leitores e descobriram o óbvio: nada existe de novo sob o sol... frase que o autor do Eclesiastes deve ter copiado de algum outro escritor (PERISSÉ, 2003, p. 79).
Para defender ainda mais esse processo como criativo, Perissé indica que todos os grandes escritores são cientes e conscientes do dogma que o crítico norte-americano Harold Bloom soube consignar numa frase contundente: “A grande escrita é sempre reescrita”, e a coloca ao lado de outra frase, da autoria de Salvador Dalí: “De quien no quiere imitar a nada, no sale nada” (PERISSÉ, 2003, p.80)8. Assim, como docentes, como tutores e como alunos, precisamos nos conscientizar de que a produção escrita faz parte da valorização
da
aprendizagem
que
privilegia uma ecologia cognitiva de um arsenal de conhecimento. Isso significa que os conteúdos que se encontram em um ambiente virtual de aprendizagem são apenas parte do que é socialmente construído e, para que o estudante seja completamente autônomo, capaz produzir seu próprio texto, leva algum tempo. Sabemos que a grande nuance dessa geração é “zapear”. 9 O zapear consiste em mudar rápida e repetidamente de canal 8 Harold Bloom crítico literário estadunidense, é atualmente um dos críticos literários mais populares do mundo ocidental. Sempre defendeu os poetas românticos do século XIX, e é também um crítico de livros de aventura. A frase de Salvador Dalí é um provérbio espanhol que significa “Daqueles que não querem imitar nada, nada vem” Fonte: Fonte: Revista VEJA, Edição 1961, de. 21 de junho de 2006. 9 Conceito disponível em http://www.dicionarioinformal.com.br/zapear/. Acesso em 22 ago.2013. O termo não é registrado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portu-
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de televisão ou frequência de rádio, de forma a encontrar algo interessante para ver ou ouvir, geralmente por meio de um controle remoto. O termo talvez tenha se originado da onomatopeia “zap!”, que remete a algo feito rapidamente, tal qual o zapear constante de algumas pessoas que não simplesmente o fazem por não achar nada que agrade na programação televisiva ou simplesmente por hábito. Etimologicamente, o zapear pode também ser demonstração de angústia, desatenção, hiperatividade, tique ou mania. No entanto, no processo educacional a distância, o zapear é um processo material transformativo que traduz essa mobilidade do jovem de hoje em dia. Ele percorre rapidamente, vários sites e aplicativos da internet, e troca de uma visão de mundo à outra de forma rápida, provocando reflexos nos aspectos particulares
da
construção
de
suas
identidades. É uma geração que, em sua maioria, não concebe um mundo sem mobilidade, pois foi influenciada, desde criança, pelo mundo complexo e veloz que a tecnologia engendrou. Em ambiente AVA, o primeiro aprendizado que muitos de nossos alunos abraçam é o de selecionar as informações, com apenas um clique. Em seguida, pode vir ou vem o copiar e colar, deparando-se, na sequência com o desafio de conter o desejo do plágio, tentado pela facilidade de acesso. Enquanto isso, diferentemente, nós, professores, ainda queremos que eles busquem “doses homeopáticas” de informações.
guesa (VOLP), portanto deve ser entendido como um neologismo.
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Dessa forma, precisamos, de modo contínuo, procurar formas de adaptar a nossa cultura de práticas docentes às necessidades atuais de nossos alunos. A leitura de Perissé pareceunos relevante para repensarmos o plágio de modo mais fecundo como algo que pode tornar o nosso árduo trabalho mais fértil. Pacheco, professor português da escola da Ponte, em entrevista à revista brasileira Profissão Mestre, lembra que o sucesso na docência depende da cultura pessoal e profissional de cada professor, caracterizada, infelizmente, como uma cultura feita de solidão e autossuficiência. Para o professor, quando essa cultura se reelabora, a maior dificuldade pode ser imediatamente dissipada.10 Nesse sentido, para conseguirmos dissipar as incertezas, em relação ao problema do plágio nas orientações de monografia e de trabalhos acadêmicos, precisamos reelaborar nossas crenças, nosso conceitos e rever nossos preconceitos.
Considerações Finais O estudo sobre a questão do plágio levou-nos a refletir também sobre questões que envolvem essa nova agenda cultural que traz a tecnologia como vilã, permitindo configurações textuais cada vez mais diversificadas e complexas. Sabemos que essa inquietação se deve à preocupação constante que nós, professores, carregamos como fardo, que é a formação do caráter ético do estudante. A informação como medida, para nós, é a maneira mais simplificada de conscientizar nossos alunos sobre as consequências acarretadas pela atitude indevida de tomar o texto do outro e assiná10 Entrevista escrita por Kelen Trevisan, Publicado em 6 de março de 2013. Revista profissão Mestre. Disponível em: http://www.profissaomestre.com.br/index.php/reportagens/entrevistas/108-excelencia-academical. Acesso em: 10/8/2013.
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lo como seu. Essa, sem dúvida, é uma forma de cumprirmos nosso papel e isso pode nos oferecer certo alívio, devendo reestabelecer a confiança necessária nas interações entre professor e aluno. Por essa razão, devemos reiteradamente lembrar ao nosso aluno que o plágio ocorre pelas ações que desrespeitam os critérios de referências e que implica um ato ilegal que causa prejuízos ao outro. Por isso, é importante conhecer as sanções previstas para o autor de plágio, de acordo com a Lei nº 9.610 (que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências): Art. 102. O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível. Art. 103. Quem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido. Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudulenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos. Art. 104. Quem vender, expuser a venda, ocultar, adquirir, distribuir, tiver em depósito ou utilizar obra ou fonograma reproduzidos com fraude, com a finalidade de vender, obter ganho, vantagem, proveito, lucro direto ou indireto, para si ou para outrem, será solidariamente responsável com o contrafator, nos termos dos artigos precedentes, respondendo como contrafatores o importador e o distribuidor em caso de reprodução no exterior. Art. 105. A transmissão e a retransmissão, por qualquer meio ou processo, e a comunicação ao público de obras artísticas, literárias e científicas,
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de interpretações e de fonogramas, realizadas mediante violação aos direitos de seus titulares, deverão ser imediatamente suspensas ou interrompidas pela autoridade judicial competente, sem prejuízo da multa diária pelo descumprimento e das demais indenizações cabíveis, independentemente das sanções penais aplicáveis; caso se comprove que o infrator é reincidente na violação aos direitos dos titulares de direitos de autor e conexos, o valor da multa poderá ser aumentado até o dobro. Art. 106. A sentença condenatória poderá determinar a destruição de todos os exemplares ilícitos, bem como as matrizes, moldes, negativos e demais elementos utilizados para praticar o ilícito civil, assim como a perda de máquinas, equipamentos e insumos destinados a tal fim ou, servindo eles unicamente para o fim ilícito, sua destruição. Art. 107. Independentemente da perda dos equipamentos utilizados, responderá por perdas e danos, nunca inferiores ao valor que resultaria da aplicação do disposto no art. 103 e seu parágrafo único, quem: I - alterar, suprimir, modificar ou inutilizar, de qualquer maneira, dispositivos técnicos introduzidos nos exemplares das obras e produções protegidas para evitar ou restringir sua cópia; II - alterar, suprimir ou inutilizar, de qualquer maneira, os sinais codificados destinados a restringir a comunicação ao público de obras, produções ou emissões protegidas ou a evitar a sua cópia; III - suprimir ou alterar, sem autorização, qualquer informação sobre a gestão de direitos; IV - distribuir, importar para distribuição, emitir, comunicar ou puser à disposição do público, sem autorização, obras, interpretações ou execuções, exemplares de interpretações fixadas em fonogramas e emissões, sabendo que a informação
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sobre a gestão de direitos, sinais codificados e dispositivos técnicos foram suprimidos ou alterados sem autorização. Art. 108. Quem, na utilização, por qualquer modalidade, de obra intelectual, deixar de indicar ou de anunciar, como tal, o nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor e do intérprete, além de responder por danos morais, está obrigado a divulgar-lhes a identidade da seguinte forma: I - tratando-se de empresa de radiodifusão, no mesmo horário em que tiver ocorrido a infração, por três dias consecutivos; II - tratando-se de publicação gráfica ou fonográfica, mediante inclusão de errata nos exemplares ainda não distribuídos, sem prejuízo de comunicação, com destaque, por três vezes consecutivas em jornal de grande circulação, dos domicílios do autor, do intérprete e do editor ou produtor; III - tratando-se de outra forma de utilização, por intermédio da imprensa, na forma a que se refere o inciso anterior. Art. 109. A execução pública feita em desacordo com os arts. 68, 97, 98 e 99 desta Lei sujeitará os responsáveis a multa de vinte vezes o valor que deveria ser originariamente pago. Art. 110. Pela violação de direitos autorais nos espetáculos e audições públicas, realizados nos locais ou estabelecimentos a que alude o art. 68, seus proprietários, diretores, gerentes, empresários e arrendatários respondem solidariamente com os organizadores dos espetáculos.
Dessa forma, o nosso papel é o de conscientizar nossos alunos de que a ética e as boas práticas devem ser aplicadas às pesquisas realizadas na internet e nas produções nos AVAs. Essas são medidas preventivas aplicadas ao nosso dia a dia que podem ser valiosas para diminuição do problema de plágio, que tem afetado a aprendizagem e a autonomia de nossos alunos.
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A disseminação cultural apontada por Pierre Lévy (2007) representa um vasto campo de informações e de conhecimento, que precisa ser selecionado, pois nem todas as fontes são confiáveis. O uso de tecnologia para o ensino tem como vantagem a familiaridade do estudante com a navegação para fins de estudo. Essa facilidade proporciona maior comodidade também para a pesquisa na web, daí a necessidade de um momento destinado às atividades esclarecedoras sobre como deve utilizar o espaço para uma pesquisa. Analisando com o olhar de analistas de discurso, é compreensível que ocorra mudança lexical e de significados principalmente dos processos como navegar, clicar, zapear, tuitar, curtir, compartilhar entre outros. Assim, os textos materializam-se de modo cada vez mais atraente, nesse infinito zapear, em diferentes modalidades, e configuram-se como imagens, sons, vídeos, mas essas transformações fascinantes trazem a necessidade de maior cuidado, pois é um ambiente que possui leis próprias, que devem ser respeitadas.
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