LETRAS 1ยบ Semestre
© 2013. Universidade Salvador – UNIFACS – Laureate International Universities É proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização. Curso de Letras: Licenciatura em Língua Portuguesa e suas respectivas literaturas
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1º Semestre
Formação e Diversidade Sociolinguística da Língua Portuguesa Autora: Gilce Almeida e Vívian Antonino
APRESENTAÇÃO Olá! Seja muito bem-vindo aos estudos da disciplina Formação e Diversidade Sociolinguística da Língua Portuguesa.
Embora saibamos que você já tem consciência de que uma língua não é falada da mesma forma por todos os seus falantes, cremos que ainda não tenha feito uma discussão mais ampla e aprofundada sobre a importância de conhecer essa diversidade linguística. Pois bem, ao longo de dez aulas, você poderá ampliar o seu conhecimento acerca da língua portuguesa e da realidade linguística que caracteriza o país. Como estudante de Letras e futuro professor de língua materna, é bem importante que você reconheça a necessidade de compreender e respeitar a diversidade linguística e que adote uma postura científica, desprovida de julgamentos sociais, ao analisar os fatos da língua. Para isso, preparamos a disciplina Língua Portuguesa I com muito cuidado para você. É por ela que você será introduzido a essa reflexão. Em nossa primeira aula, você compreenderá que é impossível estudar uma língua sem considerar as questões sociais e históricas, afinal a língua que uma sociedade fala resulta de transformações dessa natureza. Assim, a variação e a mudança linguísticas, que são propriedades inerentes a todas as línguas, não ocorrem ao acaso, mas motivadas por questões sociais e também linguísticas. Essa postura, como você verá, é adotada pela teoria sociolinguística, cujos principais fundamentos serão apresentados neste curso. Além disso, você será conduzido a uma passeio pela língua portuguesa, no qual conhecerá um pouco sobre a sua evolução histórica, sua difusão atual pelo mundo e algumas diferenças entre as variedades europeia e a brasileira. Fazendo uma parada no Brasil, conheceremos as nossas diferenças linguísticas tanto do ponto de vista espacial como social. Por fim, discutiremos questões importantes acerca do ensino de língua portuguesa. Para além do conteúdo apresentado ao longo das aulas, você poderá aprofundar ainda mais as discussões, consultando os textos complementares e os sites sugeridos ao final de cada aula. Também, ao final de cada aula, apresentamos uma questão para reflexão, que lhe permitirá exercitar a sua postura de cientista da língua. Esperamos que, depois deste curso, os diferentes sotaques, as diferentes construções sintáticas possam parecer a você expressões legítimas dentro da língua e que você perceba a necessidade de desenvolver sua futura atuação profissional fora do campo excessivamente normativo que tem dominado o ensino de português nas escolas brasileiras. Abraços!
ral das línguas: a variação linguística Autora: Gilce de Souza Almeida “Um dia de espantos, hoje. Conversando com uma rapariga em flor, estudante, queixa-se ela da dificuldade da língua portuguesa,
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AULA 01 - conhecendo o estado natu-
espanto-me:
- Mas como pode ser difícil uma língua em que você está falando comigo há dez minutos com toda a facilidade?
Ela ficou espantada. (Mário Quintana)”
Olá! Como futuro professor de Formação e Diversidade Sociolinguística da Língua Portuguesa, você está convidado, a partir de agora, a assumir um olhar científico sobre a língua. Preparado?
O texto que serve de epígrafe a esta aula faz referência a um equívoco bastante recorrente entre os falantes: dominar a língua é privilégio daqueles que usam sintaxe e vocabulário rebuscados. Por essa visão, existe uma forma correta de falar, e todos aqueles - e são muitos - que se afastam desse uso são desconhecedores da língua que falam. Espantoso, não? Afinal, todos os dias estamos imersos em uma enorme varie- ________________________ dade de situações comunicativas em que, salvo pelos mal-entendidos que possam ________________________ existir, nos saímos muito bem. Isso é possível porque a língua se adapta às diferentes ________________________ condições de uso. Você já deve estar começando a elaborar a ideia de que é impossível usarmos a língua da mesma forma em todas os contextos sociais, não é mesmo? Pois bem! É este o assunto desta unidade: a flexibilidade que caracteriza as línguas humanas. Nas próximas seções, você compreenderá o significado de variação linguística e será capaz de responder: “Por que as línguas variam?” Além disso, entrará em contato com os diferentes tipos de variação existentes e alguns conceitos importantes para a sua atuação como professor de língua portuguesa.
Bons estudos!
Para início de conversa: definindo a maneira de olhar a língua Desde cedo, construímos a ideia de que não sabemos falar português corretamente. Isso ocorre porque a língua sempre foi descrita como um objeto homogêneo, o que significa pensar que há apenas uma forma de utilizá-la - aquela prescrita na gramática. Por essa crença, são ilegítimos quaisquer usos em desacordo com o padrão gramatical estabelecido. Mas, veja só como esse pensamento é falho. Pensemos no caso da famigerada mesóclise no português brasileiro, estabelecida como regra de
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colocação pronominal com verbos no futuro do presente e no futuro do pretérito.
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Fonte: http://www.sxc.hu/photo/1323680
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minal na fala corrente. Estariam, então, errados todos os falantes? Se a resposta for
tamente. Esse pensamento até passa pela cabeça de algumas pessoas, porque, como afirma Bagno (2007, p. 35), “o que se convencionou chamar de ‘língua’ nas sociedades letradas é, na verdade, um produto social, artificial, que não corresponde àquilo que a língua realmente é.” Isso quer dizer que a língua é vista como algo pronto, engessado, que não pode ser modificado. Entretanto, a postura assumida pela linguística não considera lógico ou aceitá-
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positiva, está-se concordando com a ideia de que ninguém sabe falar português corre-
vel pensar que os falantes não saibam falar a sua própria língua materna. Muito pelo contrário! A essa visão interessa encarar a língua como ela realmente se manifesta na boca dos seus falantes, nos diferentes espaços sociais. Assim, devemos pensar que todo indivíduo sabe muito bem a língua que fala. Segundo o linguista americano Charles Hockett:
Pela idade de 4 a 6 anos, a criança normal é um adulto lingüístico. Ela domina, com pequenas exceções, se alguma, o sistema fonológico de sua língua; maneja sem esforço o essencial da gramática; conhece e emprega o vocabulário básico da língua. (HOCKETT, 1970, p. 360 apud TERRA, 1997, p. 21).
Está evidenciado, na observação de Hockett (1970), que todo falante conhece as regras de funcionamento de sua língua. Vejamos o que ele quer dizer com isso. Você acha que algum falante de português diria algo como a frase a seguir? as gostam flores meninas
Claro que não! Afinal, mesmo quem nunca frequentou a escola sabe, inconscientemente, que: o artigo só pode ser usado antes do substantivo, nunca antes do verbo; verbos como “gostar” requerem um complemento com preposição.
O falante pode não saber o que é um artigo ou para que serve um objeto indireto, mas, ao formar suas frases, coloca-os no seu devido lugar. Vejamos outro exemplo desse conhecimento internalizado. Qual das palavras a seguir pertence à sua língua? hjem
calibo
Como bom falante de português que você é, mesmo sem saber o significado de calibo, deve ter escolhido essa opção. Ao fazer essa escolha, você está usando seu conhecimento internalizado sobre a sua língua. Afinal, você sabe que o grupo consonantal hj não
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faz parte do padrão silábico do português, diferentemente de ca, li, bo que têm o padrão comum de sílaba do português - consoante seguida de vogal. Diante do que se expôs até aqui, reiteramos a ideia de que todo indivíduo sabe falar a sua língua, uma vez que é capaz de produzir frases gramaticais, ou seja, frases com as quais se pode estabelecer comunicação. Acontece que, em matéria de língua, sempre fomos acostumados à dicotomia do certo e do errado. Dessa forma, diante das frases abaixo, As meninas gostam de flores
As menina gosta de flores
Reservamos à primeira o estatuto da correção e à segunda o do erro. Mas pense um pouco. Essas frases não querem dizer a mesma coisa? Note que em nenhuma delas houve infração às regras internas da língua. São, portanto, construções gramaticais. Embora, na segunda frase, esteja ausente a marca de plural no substantivo e no verbo, qualquer um de nós é capaz de entender que mais de uma menina gosta de flores, já que a marcação de plural foi mantida no artigo. O que se pode dizer disso tudo é que não há qualquer razão para classificar a frase As menina gosta de flores como uma construção errada. Ela é uma possibilidade oferecida pela língua.
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Talvez você esteja um pouco confuso, porque estamos afirmando que é correta uma frase que, por muito tempo, você soube que era errada. Mas você já deve ter percebido que essa definição depende da maneira de se olhar a língua. Não se avexe ou, ainda, não tenha pressa, que tudo isso lhe será explicado. Para começar, o questionamento a ser feito neste momento é: Como a língua realmente é? Ou O que é a língua?
O que é a língua, então? Ao pensar sobre o conceito de língua, o que imediatamente nos vem à mente é a ideia de língua enquanto código de comunicação, o que não é de todo errado. Afinal, a língua serve mesmo para comunicar. Essa visão, contudo, põe no centro da atenção a mensagem, visto que, sendo a língua um código de comunicação, sua função é transmitir uma mensagem. A comunicação humana, entretanto, não se faz apenas a partir da transmissão de informações. Para facilitar o entendimento do que estamos falando, vejamos uma ilustração simples. Uma esposa que, passeando no shopping com o marido, para diante da vitrine de uma joalheria e diz: Olha, amor, que anel lindo!, poderia não estar apenas expressando sua admiração pela jóia, mas, implicitamente, revelando o seu desejo de ganhá-la. Vemos, dessa forma, que nem tudo o que queremos dizer está aparente na mensagem produzida. Muitas vezes, aquilo que pensamos está nos implícitos. Como afirma Bagno (2007, p. 36), “a língua é uma atividade social, um trabalho coletivo, empreendido por todos os seus falantes, cada vez que eles se põem a intera-
se constrói na interação entre os falantes. Essa ideia também foi muito bem apresentada pelo importante linguista romeno Eugênio Coseriu, para quem “A língua [...] não está feita, mas faz-se continuamente pela atividade linguística” (COSERIU, 1979, p. 63, grifo do autor). Nas palavras de Coseriu (1979), a língua faz-se e refaz-se continuamente nas situações de comunicação vivenciadas pelo falante. Encarada dessa maneira, a língua jamais poderá ser vista pela ótica da homo-
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gir por meio da fala.” Por essa concepção, entende-se que a língua não está pronta. Ela
geneidade, mas, como afirma Castilho (2007, p. 101), como “um somatório de usos concretos, historicamente situados, que envolve sempre um locutor e um interlocutor localizados num espaço particular, interagindo a propósito de um tópico previamente negociado.” Note que, por essa visão, a língua não é reduzida a um conjunto de regras preestabelecidas aos seus usuários. Ela é vista em relação ao contexto extralinguístico em que é utilizada. Basta observar uma situação concreta de comunicação e você mesmo chegará à conclusão de que a língua é muito mais do que aquilo que está exposto nas gramáticas. Diferentemente do que se estabelece, ela não é estática, não é um conjunto de regras imutáveis. Isso é facilmente percebido quando lemos textos antigos. Veja só:
Figura 1 - Carta de Pero Vaz de Caminha
Snõr posto que o capitam moor desta vossa frota e asy os outros capitaães screpuam a vossa alteza a noua do achamento desta vossa terra noua que se ora neesta naue gaçom achou, nom leixarey tambem de dar disso minha comta a vossa alteza asy como eu milhor poder ajmda que pera o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer
Fonte: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carta-caminha.png
A carta de Pero Vaz de Caminha, escrita ao rei D. Manuel, dando conta do achamento do Brasil, é um exemplo bastante ilustrativo das transformações da língua portuguesa ao longo do tempo, ou seja, em sua diacronia. Essas transformações, contudo, não são percebidas apenas diacronicamente. Você já deve ter notado outras situações reveladoras dessas diferenças num momento específico do tempo, ou seja, na sincronia. Bom, já que falamos em sincronia e diacronia, vamos entender melhor esses conceitos. Caso desejemos fazer uma análise diacrônica, deveremos observar a língua,
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em estágios diferentes do tempo. Podemos, por exemplo, verificar, comparativamente, o emprego de nós e a gente pelos brasileiros nas décadas de 1970 e 1990 ou ainda no intervalo de 1970 a 1990. Se o desejo for apenas observar o uso dessas formas num momento específico, 1970 ou 1990, o estudo será sincrônico.
Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/images/livros/12986_gg.jpg http://mmdominique.blogspot.com.br/
As discussões que fizemos até aqui já lhe permitem reconhecer uma propriedade muito importante das línguas sobre a qual, talvez, você ainda não tenha pensado criticamente - a variação linguística. Como futuro professor de português, você deverá estar mais atento a essa questão, a fim de ter mais segurança ao lidar com os fatos
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da língua em sua prática docente. Vamos adiante!
A variação linguística Ouvindo as pessoas ao seu redor, você já notou que, no Nordeste, costumamos usar uma pronúncia mais aberta para as vogais [e] e [o] em certos contextos, ao passo que em outros lugares do país, como no Sul, a tendência é usar uma pronúncia mais fechada? Assim, enquanto aqui se diz “NOventa1 por cento da turma acErtaram a quEstão”, lá se diz “Noventa por cento da turma acertaram a questão”. Sem dúvida, você já percebeu que, em Salvador, dizemos aipim e tangerina para aquilo que, em outros lugares, se conhece como macaxeira e mexerica, respectivamente. E já observou que, a depender do nosso interlocutor e da situação em que estamos inseridos, fazemos escolhas linguísticas diferentes das que faríamos em outros contextos? Os exemplos apresentados ratificam o que dissemos ainda há pouco sobre a natureza das línguas: elas se alteram, se transformam. Recorreremos às palavras de Marcos Bagno (2007, p. 36) para traduzir esse pensamento: “a língua é intrinsecamente heterogênea, múltipla, variável, instável e está sempre em desconstrução e reconstrução”. Aquilo que conhecemos como língua portuguesa é, na verdade, uma representação abstrata, pois ela é, em si, um feixe de variedades, entendendo por variedade cada uma das maneiras de determinado grupo social usar a língua. Assim, a maneira como se fala em Salvador é um exemplo de variedade do português, dentro da qual existem outras variedades: a variedade falada pelos pescadores, a variedade falada pelos jovens etc. 1
O - pronunciado como em nó; o - pronunciado como em novo; E - pronunciado como em pé; e - pronunciado como em ipê.
da variação linguística seja o conhecido episódio sangrento relatado no livro bíblico de Juízes, em que o reconhecimento das diferenças dialetais na pronúncia dos fonemas /∫/2 e /s/ era utilizado para detectar a presença de efraimitas entre os gileaditas, povos que, segundo o relato bíblico, tinham a mesma origem – o povo de Israel saído do Egito que peregrinou por 40 anos no deserto – e falavam a mesma língua – o hebraico. Após a chegada a Canaã, estabeleceram-se em regiões distinas: os gileaditas, a leste do rio Jordão, e os efraimitas, além do rio Jordão. Os gileaditas, conhecendo a
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Talvez, o fato mais antigo a que se possa fazer referência no que respeita à ideia
diferença fonética entre os dois povos, ao desconfiarem da presença de fugitivo efraimita entre os seus, ordenavam-lhe que pronunciasse Chibolete, mas o que este dizia era Sibolete, “porque não o podia pronunciar bem” (Juízes, 12: 6). Descoberto, o intruso era, então, degolado. Fernão de Oliveira, na primeira gramática do português, já demonstrava sua percepção acerca da diversidade linguística presente em Portugal no século XVI:
[...] os [homens] da Beira têm umas falas, os do Alentejo outras e os homens da Estremadura são diferentes dos de Entre Douro e Minho, porque, assim como os tempos assim também as terras criam diversas condições e conceitos. E o velho, como tem o entender mais firme, com o que mais sabe, também suas falas são de peso, e as do mancebo, mais leves. (OLIVEIRA, 1975[1536], p. 98)
O ilustre gramático deixa clara a ideia de que a língua não se realiza de uma única maneira. Ademais, observa que as variações existentes têm “uma razão de ser”. Veja-se, por exemplo, como menciona a diferença de falares entre homens de diferentes origens geográficas: “porque os da Beira têm umas falas, os do Alentejo outras e os homens da Estremadura são diferentes dos de Entre Douro e Minho”. Por fim, salienta a diferença de falar entre velhos - “suas falas são de peso” - e jovens - [as falas são] mais leves. A variação, comum a todas as línguas humanas, existe e independe da vontade do falante. Nem mesmo os esforços da gramática normativa e dos que se dizem defensores da língua poderão contê-la. Ela existe em todos os níveis da língua (fonológico, morfológico, sintático, lexical e semântico) Mas, o que se entende por variação linguística? Para explicar esse conceito, vamos continuar pensando sobre a forma de falar em algumas regiões do país. No Rio de Janeiro, o /s/ em final de palavra ou de sílaba, como em as duas meninas, é pronunciado como um “chiado” (“ax duax meninax”), diferentemente do que acontece em São Paulo. Em algumas cidades do interior de São Paulo, o [r] de palavras como porta, corta, torta é pronunciado como o [r] da palavra door (porta), em inglês, mas no Rio de Janeiro e em Salvador, por exemplo, a pronúncia para essa consoante é aspirada3 (pohta, cohta, tohta). Nota-se, que, apesar da diferença na pronúncia, o significado permanece o mesmo. Chamamos, então, variação linguística às diferentes maneiras de dizer uma mesma coisa sem que haja diferença de sentido. 2
Corresponde à pronúncia do “ch” em chuva.
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Pronúncia correspondente à do h em hot.
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As sentenças assinaladas com o asterisco infringem alguma regra de funcionamento da língua, impedindo, por isso, a comunicação. Trata-se de frases impossíveis de serem geradas e compreendidas na língua.
Acabamos de examinar um exemplo no nível fonológico da língua, mas, como você já sabe, essa variação acontece em outros níveis. Vamos ver alguns exemplos:
No nível morfológico, a variação afeta a forma das palavras. Algumas pessoas usam o particípio irregular chego (Eu tinha chego) para o verbo chegar, em variação com sua forma regular chegado; outras usam pensemo para pensemos. No nível sintático, a variação afeta o uso das palavras na frase ou a estrutura desta, a exemplo da alternância entre os pronomes nós e a gente e da realização da concordância verbal de terceira pessoa, cujas possibilidades de uso são a marcação da concordância Eles querem estudar - e a não marcação - Eles quer estudar. No nível lexical, a variação refere-se ao uso de diferentes vocábulos para designar o mesmo elemento: garoto, menino, guri, piá; sacolé, dindim, geladinho; as gírias, os neologismos4 e os estrangeirismos5 também são exemplos de variação no nível lexical.
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No nível semântico, ocorre variação quando uma palavra apresenta significados diferentes, como acontece com a palavra boia, que pode designar o objeto usado como auxílio a quem não sabe nadar e a comida de trabalhadores.
Enfim, são inúmeros exemplos de variação, mas não pense que tudo na língua varia. Existem fatos invariáveis, denominados regras categóricas. Em português, não se interpõe nenhum elemento entre o verbo e o pronome oblíquo átono, como em *Ela me aquele deu livro/*Ela deu aquele me livro, uma vez que o sistema estabelece que o pronome oblíquo átono não deve aparecer isoladamente, mas ligado a outra palavra, no caso, o verbo. Essa é uma regra categórica e não pode ser violada pelo falante sob pena de comprometer a comunicação. Outro exemplo de regra categórica na língua, agora no nível fonético, é a pronúncia da consoante /f/, para a qual inexiste forma alternante. Em todos os contextos esse fonema é pronunciado da mesma forma por todos. Os fatos linguísticos em variação apresentados até aqui exemplificam o que conhecemos por regras variáveis. Em resumo, as regras variáveis são os fenômenos linguísticos para os quais existe mais de uma forma disponível com o mesmo sentido. Vejamos mais um exemplo. O uso da preposição com o verbo de movimento ir é uma regra variável, para a qual há três alternativas possíveis: Fui à feira / Fui na feira / Fui para a feira. Cada uma dessas alternativas recebe o nome de variante. É importante saber que as escolhas que o falante faz por uma determinada variante - palavra, estrutura sintática ou forma de pronunciar uma palavra - não são 4
Palavras recém-criadas na língua: deletar, escanear.
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Palavras oriundas de outra língua: mouse, notebook, blog.
você entenda melhor o que é essa “motivação”, preste atenção à fala do personagem do quadrinho a seguir:
Figura 2 - Exemplo de variação
Fonte: Adaptação em clipart. Diálogo da autora.
Na ilustração, o rapaz sugere à garota que mude a sua maneira de falar durante a entrevista, certamente por se tratar de um contexto de maior formalidade. Pense se não é isso que acontece normalmente com você. Quando está em entre os amigos, certamente, você deve falar de uma maneira mais descontraída, mas, em situações de maior formalidade, deve dar mais atenção à sua fala. Observamos, então, que o contexto em que se dá a comunicação condiciona a forma de usar a língua. A motivação pode estar relacionada a questões internas à própria língua ou externas a ela. Ora, como assim? Vamos esclarecer essa questão recorrendo a um exemplo. A realização da concordância verbal em português é um fato linguístico em variação. E, aliás, você já sabe por quê. Essa regra variável apresenta duas variantes: a marcação da concordância (As meninas chegaram) e a não marcação (As meninas chegou). Pense um pouco: o que será que leva alguns falantes a optarem pela primeira e outros pela segunda forma? Como já vimos, as escolhas não se dão ao acaso. Aliás, relembrando Marcos Bagno (2007), “Nada na língua é por acaso”. Creio que você tenha apontado o nível de escolaridade como um fator que condiciona a escolha dos falantes. É isso mesmo: quanto mais escolarizado for o falante, maior será o uso das formas de prestígio na língua, e quanto menor for o nível de escolarização, maior será a probabilidade de escolha das formas menos prestigiadas - as consideradas erradas pela sociedade. Isso quer dizer que há um fator social - a escola-
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aleatórias. Isso quer dizer que há sempre uma motivação para escolhê-la. Para que
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ridade - motivando a escolha do falante. O sexo, a profissão, a origem geográfica do falante, a situação comunicativa são outros fatores que podem condicionar a variação. Continuemos com o exemplo da concordância para verificar a atuação dos fatores internos. Veja os pares de exemplos a seguir:
1. As meninas chegaram. As meninas chegou. 2. Chegaram as meninas. Chegou as meninas.
No primeiro par de exemplos, as frases estão organizadas seguindo a ordem padrão do português, que é sujeito + verbo. No segundo, por sua vez, a ordem padrão não foi obedecida. Como isso influencia na realização da concordância? O fato é que os falantes estão habituados às frases que seguem a ordem padrão, conseguindo, por isso, reconhecer nelas o sujeito. No segundo par, o falante tem mais dificuldade de identificar o sujeito, que está poposto (após) ao verbo, daí haver menos probabilidade de utilização da marcação do plural no verbo em frases como essa. Essa é uma observação muito importante no tratamento da variação linguística, porque fica evidente que não há uma situação de caos na língua; ao contrário, a
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variação que existe é organizada. Há um termo bastante usado que traduz essa ideia: heterogeneidade ordenada. A língua se transforma, mas essa transformaçao segue regras. No caso do exemplo discutido, as regras são: 1) falantes menos escolarizados têm maior tendência à não utilização das marcas de plural do que os mais escolarizados; 2) a posposição do sujeito ao verbo influencia a não marcação de plural. Bem, você já sabe bastante coisa sobre a língua, mas ainda não vamos parar por aqui. Continuemos nossa empreitada. Diferentemente do que se costuma propagar, a variação não é algo maléfico às línguas, não é um defeito, antes é uma propriedade intrínseca, como já afirmado. É preciso ter consciência agora do porquê dessa variação. O questionamento agora é: “Por que as línguas variam?”.
Entendendo a variação: a relação entre língua e sociedade A língua é um instrumento de interação entre os indivíduos e estes fazem parte de uma sociedade e de uma cultura. Pensando assim, você acha possível desconsiderar questões sociais e culturais quando discutimos língua? Creio que sua resposta tenha sido negativa. Afinal, como afirma o filósofo da linguagem Borges Neto (2004, p. 19), a língua “não ‘páira’ sobre a sociedade, mas está presente nela e com ela se confunde”. Dessa forma, a língua está intimamente ligada à cultura e à história social do grupo que a utiliza, de modo que a forma como uma comunidade usa a língua, seu vocabulário, sua pronúncia, reflete os elementos de sua cultura, de suas experiências históricas e de sua organização social. O caso do pronome você na língua portuguesa ilustra como o contexto social
arcaica Vossa Mercê (graça), que era usada para tratamento da realeza portuguesa, a partir do século XV, em substituição à forma vós, que havia se popularizado e já não conseguia manter a diferenciação hierárquica existente na sociedade. De acordo com Rumeu (2008), diante da reestruturação da sociedade portuguesa, as novas relações interpessoais, daí decorrentes, deveriam também ser demarcadas do ponto de vista linguístico, de modo que as formas de tratamento respeitosas6 evidenciassem a soberania do rei. Com o passar do tempo, Vossa Mercê foi se tornando cada vez mais popular
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tem influência sobre a língua. Como você sabe, esse pronome originou-se da forma
e seu uso estendeu-se à sociedade de modo geral. Nesse processo de popularização, passou por diferentes estágios - vossamecê, vossancê, voismecê, vancê -, chegando ao atual você, que varia com cê e ocê. Na linguagem rápida da internet, popularizou-se o uso de vc nas mensagens trocadas pelos internautas. Podemos ilustrar, ainda, a relação entre língua e sociedade observando a maneira de falar entre homens e mulheres. Em algumas sociedades, os dois sexos têm comportamentos sociais bem distintos, o que se reflete nas evidentes diferenças na forma de falar de ambos. Em países árabes, por exemplo, as mulheres são proibidas de pronunciar o nome do sogro, da sogra e do marido. Em sociedades como a nossa, homens e mulheres têm comportamentos sociais mais parecidos; logo, sua forma de falar tem diferenças menos evidentes, mas elas continuam existindo. Você já percebeu que as mulheres costumam falar mais diminutivos do que os homens? Pense um pouco sobre isso. O linguista americano William Labov, cujas ideias você conhecerá mais detidamente na Aula 05, mostrou em seus estudos a relação entre língua e sociedade. Um dos aspectos pesquisados por Labov (1966) foi a pronúncia da consoante /r/ em contextos pós-vocálicos (como em car, door) na cidade de Nova Iorque. Labov fez sua pesquisa investigando a fala das pessoas em três lojas de departamento, cada uma delas frequentada por indivíduos de classes sociais distintas: classe alta, classe média e classe baixa. O que ele queria saber? Se a variação existente na forma de pronunciar o /r/ em Nova Iorque tinha relação com alguma questão social, a classe econômica no caso. Para observar isso, ele induzia os funcionários a produzirem a expressão fourth floor (quarto andar), perguntando-lhes onde ficariam certos produtos. Dentre suas conclusões, o linguista observou que, na loja de classe alta e na de classe média, houve maior preservação do [r] mais vibrante (aquele parecido com a forma de falar do paulista de algumas cidades do interior) do que na de classe baixa. Cremos que você já esteja consciente de que não tem validade o discurso sustentado pelos supostos defensores da língua. Eles insistem em acusar os falantes de usarem uma linguagem cheia de erros e responsabiliza-os por uma suposta decadência, como se, em algum momento, tivesse existido uma língua perfeita. O fato é que essa perfeição, que já foi atribuída ao grego e ao latim clássicos e também ao português antigo, nunca existiu. As línguas sempre se revelaram “imperfeitas”, na medida em que nunca foram faladas da mesma forma pelos seus utentes. A seguir, vamos apresentar alguns tipos de variação existentes na língua. Con6
As formas nominais de tratamento foram instituídas em Portugal por Felipe I, em 1597, na Provisão del Rei Sobre o estilo e modo
de falar e escrever. De acordo com a legislação, o uso de Vossa Majestade era destinado ao casal real, Vossa Alteza aos Príncipes, Princesas e seus sucessores, Vossa Excelência aos sucessores dos Infantes e ao Duque de Bragança e Vossa Senhoria ao Clero e autoridades do Império Português.
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tinue atento!
Variação diacrônica A variação diacrônica refere-se às transformações por que uma língua passa ao longo do tempo - do grego dia (através) + kronos (tempo). Essa variação é percebida quando comparamos estágios diferentes da língua no tempo. As transformações diacrônicas, como os demais tipos que você conhecerá adiante, manifestam-se na pronúncia, na morfologia - flexão e derivação de palavras -, na estrutura das frases, no significado das palavas e na criação de palavras novas ou empréstimos. Além da observação de textos antigos, como já mencionado, outra maneira de se perceber a variação diacrônica é na observação da fala de jovens e velhos. Note, na tirinha a seguir, como fica evidente a variação diacrônica na fala dos personagens.
Figura 3 - Exemplo de variação diacrônica
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Fonte: Adaptação em clipart. Diálogo da autora.
A palavra pão, nesse caso, fazia parte do vocabulário gírio de uma época e significava pessoa bonita. Seu uso nessa acepção, entre os jovens de hoje, certamente causará um estranhamento, porque pão, para eles, é apenas o alimento. Vejamos outros exemplos: cousa - coisa
ceroula - cueca
vossa mercê - você
ficar - relacionamento breve
urinol - penico
soidade - saudade
variação diatópica É comum sabermos a região de procedência de uma pessoa pelo seu sotaque ou por alguns traços linguísticos particulares de sua fala. Assim é que identificamos como mineiro o indivíduo que fala sô e como baiano quem fala oxente. O português é língua oficial de oito países, a saber, Portugal, Brasil, Angola, Mo-
isso, já é possível imaginar que haja inúmeras diferenças do ponto de vista geográfico. Quando as diferenças se dão no plano espacial, dizemos que há uma variação diatópica - dia+topos (lugar). Internamente, em cada país, essa variação espacial é também evidente. O Brasil, por exemplo, é um país de dimensões continentais, com muitos dialetos regionais. Assim, reconhecemos o falar do sul, o falar da Bahia etc. É importante saber que, dentro desses dialetos, existem variações. Ora, nem todo mundo na Bahia fala da mesma forma ou usa as mesmas designações para certos elementos da
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çambique, Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Somente por
realidade. Vejamos alguns exemplos dessa variação diatópica: pipa - pandorga - papagaio
tu - você
mandioca - macaxeira - aipim
tElEfone - telefone
abóbora - jerimum
soluço - saluço
Variação diástrática A variação social ou diastrática - dia + strato (estrato, camada) - diz respeito à variação que se observa entre a forma de falar de grupos sociais diferentes. No Brasil, a variação diastrática é observada considerando-se o nível de escolaridade. Comumente, indivíduos das camadas mais privilegiadas da população são os mais escolarizados e os das camadas mais abaixo na pirâmide social são menos escolarizados. Seguem alguns exemplos desse tipo de variação:
planta - pranta
igual - ingual
nós fomos - nós foi
mulher - muié - mulé
Variação diafásica A variação diafásica - dia + phasis (discurso) - está relacionada ao uso da língua de acordo com a situação de fala ou com o interlocutor. Veja como isso acontece na situação exemplificada a seguir:
Gerente — Alô, gerência do Banco XXX. Em que eu posso ajudá-lo? Cliente — Estou interessado em financiamento para compra de veículo. Gerente — Nós dispomos de várias modalidades de crédito. O senhor é nosso cliente? Cliente — Eu sou Júlio César Fontoura, também sou funcionário do banco. Gerente — Julinho, é você, cara? Aqui é Helena! Cê tá em Brasília? Pensei que você ainda estivesse na agência de Uberlândia! Passa aqui pra gente conversá com calma. E vamu vê seu financiamento. (adaptado de BORTONI-RICARDO, 2004, p. 73-74)
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20 A gerente do banco altera a sua forma de falar ao se dar conta de que o cliente com quem falava ao telefone era, na verdade, seu amigo. Da mesma maneira que dispensamos um cuidado especial na escolha da linguagem a ser utilizada no diálogo com um superior hierárquico ou um desconhecido a fim de não parecermos demasiado informais, no trato com os amigos, devemos também cuidar dessa escolha, dessa vez, para evitar formalidade desnecessária. Um fenômeno altamente influenciado pela situação comunicativa é monotongação, ou seja, a redução dos ditongos ai, ei, ou para a, ê, ô, como em caixa - caxa, beira bera, roupa - ropa. Essas ocorrências são bastante comuns, mesmo entre os segmentos da sociedade com alto nível de escolarização. Em situações de grande formalidade, o falante costuma monitorar mais a sua forma de falar, isto é, presta mais atenção à maneira como fala; em contrapartida, em situações mais informais, usa um estilo de fala menos cuidadoso. Você já percebeu que, encarando a língua por uma concepção variacionista, não faz sentido falar em erro. Pensar que o indivíduo que diz pranta ou nós fez está falando errado é um julgamento equivocado que só faz sentido se se considera uma variedade - no caso, aquela apresentada na gramática - melhor do que outra. Se, por outro lado, entendemos essa variedade como uma das formas possíveis de se usar a língua, não há lugar para o entendimento de que as outras variedades que dela se
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afastam sejam encaradas como erro. Diante disso, talvez você esteja se questionando se a escola deve, então, ensinar o chamado “português correto”. Isso, porém, é assunto para outra aula. Aguarde!
Síntese Ao longo desta aula, percebemos que usar uma língua de forma eficiente nada tem a ver com a elaboração de frases com sintaxe esdrúxula. Antes, a comunicação eficiente se dá pela capacidade de adequarmos a nossa maneira de falar aos diferentes contextos em que estamos inseridos. Essa adequação é possível porque as línguas são variáveis. Você ficou sabendo também que essa variação não acontece de forma aleatória, mas é motivada por aspectos internos e externos à língua.
questão para Reflexão A revista Veja, em sua edição de 10/09/1997, publicou uma entrevista com o professor Pasquale Cipro Neto, em que ele fala sobre os “maus-tratos cotidianos infligidos ao nosso dioma”, conforme texto da revista. Acompanhe alguns trechos dessa entrevista: Veja: Em que lugar do Brasil se fala o melhor português? Pasquale: Certa vez fui ao Maranhão porque me disseram que lá se falava um português menos contaminado. Pura lenda. Acho que, no cômputo geral, o carioca é o que se expressa melhor sob a ótica da norma culta. Ele não come o “s” quando usa o plural,
linguagem mais criativa. Veja: E onde se fala o pior? Pasquale: A São Paulo que fala “dois pastel” e “acabou as ficha” é um horror. Não acredito que o fato de ser uma cidade com grande número de imigrantes seja uma explicação suficiente para esse português esquisito dos paulistanos. Na verdade, é inexplicável.
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utiliza os pronomes com mais propriedade, não erra tanto nas concordâncias e tem uma
(SABINO, Mário. Língua enrolada. Veja. 10/09/1997).
Considerando as discussões realizadas nesta aula, você acha possível julgar a fala de uma região melhor e mais correta do que a de outras regiões? Pense nisso!
Leituras indicadas BAGNO, M. A língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2003. MENDES, R. B. A variação lingüística. In: FIORIN, José Luiz. Introdução à Lingüística II. São Paulo: Contexto, 2005. ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. Português do Brasil: a variação que vemos e a variação que esquecemos de ver. In: _____. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2007.
Sites Indicados http://marcosbagno.com.br/site/ http://www.museulinguaportuguesa.org.br/files/mlp/texto_27.pdf http://www.stellabortoni.com.br/
Referências BAGNO, Marcos. Mas o que é mesmo variação linguística. In: _____. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística. São Paulo: Parábola, 2007. p. 35-57.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004
BORGES NETO, J. Ensaios de Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola, 2004.
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CASTILHO, A. T. Fundamentos teóricos da gramática do português culto falado no Brasil: sobre o segundo volume, Classes de palavras e as construções gramaticais. Alfa (ILCSE/UNESP), v. 51, p. 99-135, 2007.
COSERIU, Eugenio. Sincronia, diacronia e história: o problema da mudança lingüística. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca e Mário Ferreira. Rio de Janeiro: Presença; EDUSP,1979.
LABOV, William. The social stratification of English in New York city. Washington, D.C: Center for Applied Linguistics, 1966.
RUMEU, Márcia Cristina de Brito. A implementação do ‘Você’ no Português Brasileiro Oitocentista e Novecentista: Um estudo de painel. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2008.
OLIVEIRA, Fernão de. 1536. Grammatica da lingoagem portuguesa. Introdução, leitura e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1975.
TERRA. Ernani. Linguagem, língua e fala. São Paulo: Scipione, 1997.
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tuguesa
Autoras: Gilce Almeida e Vívian Antonino
História antiga, de sempre e de agora, o expandir-se de uma
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AULA 02 - Breve História da Língua Por-
língua de dominação leva consigo o estigma da morte e da vida, de glotocídios e de nascimentos linguísticos - lamentavelmente com o predomínio daqueles e não destes.
(MATTOS E SILVA, 1988, p. 02)
Olá! Seja muito bem-vindo à nossa segunda aula. Nela faremos um passeio pela história da língua portuguesa.
Vimos que não há sociedade sem língua, nem língua sem sociedade. Através da língua, as pessoas agem umas sobre as outras, se influenciam mutuamente, criam as suas identidades. A língua que falamos é algo que faz parte de nós de uma forma tão íntima que, muitas vezes, sequer paramos para pensar sobre ela, para saber de onde ela veio. Na aula anterior, você ficou sabendo que as línguas se diversificam no tempo e ________________________ no espaço. Pois bem, nesta aula, você conhecerá um pouco do percurso histórico da ________________________ língua portuguesa, desde a sua origem até atualidade. Munido dessas informações, ________________________ você compreenderá as transformações por que a língua passou e vem passando ao ________________________ longo do tempo. Saber a origem de nosso idioma é de extrema importância para compreender a sua configuração atual. Vamos juntos ver como se originou o português, como aconteceu a sua formação e quais caminhos seguiu para chegar onde hoje está. Preparado para mergulhar na história da sua língua?
No ínicio está o latim Você já se perguntou de onde veio o português? Já parou para pensar que houve um momento em que a sua língua não existia? E como será que ela surgiu? É capaz de você também já ter se perguntado, por exemplo, por que a morfologia verbal do português é tão diversificada, diferentemente da simplificação do inglês. Bem, são muitas as indagações e esperamos responder a algumas delas nesta aula. O que reconhecemos hoje como língua portuguesa integra o conjunto das conhecidas línguas românicas ou neolatinas, que resultaram das transformações de um antepassado muito distante: o latim. Conhecer a história do português e suas características exige, então, que voltemos ao latim. O português é uma língua de origem latina, ou seja, a sua língua-mãe, a língua
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de que se originou é o latim. Mas o que você sabe sobre o latim? O latim pertence ao ramo linguístico românico, que, juntamente com o helênico, o germânico, o céltico e o eslavo compõem os cinco ramos linguísticos conhecidos. Era falado na região central da Itália, conhecida como Lácio, no primeiro milênio antes de Cristo. Quando falamos em latim, podemos ser levados a imaginar uma língua homogênea, mas o que foi falado na Aula 01 sobre o português também vale para qualquer outra língua: havia variações da língua latina. O latim que era levado pelos soldados em suas investidas em terras conquistadas era um latim popular, conhecido como latim vulgar. Foi esse latim e não o latim clássico que deu origem ao português e a todas as línguas românicas. O clássico era uma variante literária, aquela utilizada pelos grandes autores da época em suas produções literárias. E já que falamos em soldados e em terras conquistadas, vamos contar a história do começo. Os latinos, habitantes do Lácio, ao conquistarem Roma, lá estabeleceram a sede do Império Romano, que, como se sabe, expandiu-se por grande parte da Europa, pelo norte da África e por várias regiões da Ásia, chegando a dominar 25% da população mundial. Confira no mapa, a seguir, as regiões por onde se expandiu o Império Romano. Dá para ter uma ideia de quão importante foi esse império, não?
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Figura 1 - O Império Romano no seu apogeu
Fonte: Gonçalves e Basso (2010, p. 21)
Lembrando-nos das palavras do gramático espanhol Antonio de Nebrija (1492), que afirma “Sempre a língua foi companheira do império”, entendemos que o latim foi levado a todos os povos conquistados, que, além da cultura, assimilaram também o idioma estrangeiro. No mapa, você pode ver a configuração do Império Romano em 116 d.C., durante o seu apogeu. Pela própria extensão territorial do Império, o latim não seria falado da mesma forma em todas as regiões por onde se expandiu. Você já sabe que o latim levado a essas regiões era o latim do povo, uma língua sem registros escritos. Há, contudo, uma famosa lista, cuja organização é atribuída ao
latim. O objetivo do gramático era advertir quanto ao mau uso da língua, por isso, ao lado das expressões vulgares (à direita), há a palavra “non” (não). Veja alguns exemplos a seguir: LISTA DE PALAVRAS Speculum, non speculum
QUE SE APRENDE COM ISSO A vogal depois da tônica estava sumindo; é por isso que dizemos agora espelho, que deriva do vulgar speclum
Aquaeductus, non aquiductus
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gramático Probo, que apresenta algumas palavras nas variedades clássica e vulgar do
O genitivo –ae estava mudando para i, daqui tendo derivado Português aqueduto
Formica, non furmica
A vogal antes da tônica estava se fechando, o que ocorre ainda hoje em cumida, escrito comida.
Plebes, non pelvis
A consoante b estava mudando para v, por isso dizemos agora amava e não amaba, imperfeito do indicativo culto de amare.
Fonte: http://www.museulinguaportuguesa.org.br/files/mlp/texto_9.pdf. Acesso: 21 jan. 2013.
A romanização da Península Ibérica e a existência de povos e culturas pré e pósromanos no território, segundo Castilho (2009), foram condições favoráveis ao surgi- ________________________ mento do português, mas isso não se deu de forma rápida. Obviamente, a expansão de uma língua é um processo lento. Assim, a língua latina foi, aos poucos, sendo incorporada no dia a dia das pessoas e acabou por absorver as línguas locais existentes antes da conquista. Além do contato linguísticos, destacamos outros fatores responsáveis pela formação das línguas românicas, tais como: a língua levada pela expansão era o latim popular, que já sofria os processos de variação inerentes a qualquer língua; as conquistas dos povos romanos ocorreram em diferentes épocas e em diferentes territórios. Dessa forma, os povos conquistados, certamente, incorporaram ao latim seus hábitos linguísticos, como cartacterísticas articulatórias e vocabulário. O resultado dessa dialetação do latim vulgar na Península Ibérica foi o romance, língua intermediária entre o latim vulgar e as línguas românicas surgidas posteriormente. De acordo com Castilho (2009), o romance (romanço) variava diatopicamente e, devido às inúmeras alterações gramaticais, não poderia ser considerado latim, mas também não era ainda alguma das línguas românicas.
O nome romance deriva da expressão latina romanice fabulare (falar à maneira dos românicos).
Além dos fatores mencionados anteriormente, destacam-se como responsáveis pela formação desses dialetos diferentes e posterior evolução para as línguas românicas: “a distância com relação aos grandes centros, o tempo maior ou menor de romanização, as invasões bárbaras, a queda do poder do Império, o declínio das atividades
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intelectuais, entre outros” (GONÇALVES; BASSO, 2010, p. 48). Por volta do século IX, já era notória a diferenciação entre os dialetos do romance. Paulatinamente e em diferentes épocas, os dialetos do romance vão dando lugar às conhecidas línguas românicas: português, francês, espanhol, galego, catalão, provençal, italiano, romeno, reto-romanico, sardo e, o já extinto, dalmático. Dos povos que habitavam a Península Ibérica antes da romanização, apenas os bascos, povos que habitam o norte da Espanha e o sudoeste da França, conseguiram manter sua língua livre de influências latinas.
SITUAÇÃO LINGUÍSTICA DA PENÍNSULA IBÉRICA Por volta de 218 a. C., os latinos chegaram à Península Ibérica (onde atualmente localizam-se a Espanha e Portugal), durante a guerra contra os cartagineses, povos que ocupavam parte da região. Tendo expulsado os cartagineses, os romanos deram início à ocupação desse território, estabelecendo ali o latim. A Península Ibérica, inicialmente, foi dividida em duas províncias: Hispânia Citerior e Hispânia Ulterior. Esta última, em 27 a. C., foi dividida em duas províncias: a Lusitânia e a Bética. Posteriormente, a Gallaecia, parte da Lusitânia situada ao norte do Douro, foi anexada à província Terracolense. Cada província dividiu-se em circunscrições chamadas conventus. Acompanhe essa divisão territorial e política no mapa a
________________________ seguir. ________________________ Figura 2 - Divisão geopolítica da Península Ibérica ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Fonte: Gonçalves e Basso (2010, p. 67) ________________________ ________________________ ________________________ Entre os séculos V e VII, a Península Ibérica foi invadida por vários povos bárba________________________ ros, de origem germânica – vândalos, suevos e alanos, mas, conforme afirmam Gonçalves e Basso (2010), o latim continuou a ser falado na região, sendo a língua de cul-
românicas que se desenvolveriam no território limitou-se a empréstimos lexicais na toponímia e antroponímia. O domínio visigodo resistiu até 711 a. C., quando os árabes invadiram a Península Ibérica. Em 722 a.C., teve início o longo período da Reconquista Cristã, concretizado apenas em 1492, com a conquista de Granada e a expulsão dos árabes. Ao norte, o domínio dos cristãos pelos mouros (árabes) encontrou mais resistência, pois aqueles
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tura da Península. A contribuição dos dialetos germânicos para a formação das línguas
refugiaram-se nas montanhas das Astúrias. A guerra para expulsão dos mouros ocasionou o surgimento de vários reinos, que se ampliaram à proporção que a reconquista avançava, e foi responsável pela definição do mapa geopolítico e linguístico da Península (GONÇALVES; BASSO, 2010). Ainda de acordo com Gonçalves e Basso (2010, p. 70),
os reinos cristãos de Portugal, a oeste, Leão e Castela, no centro, e Aragão, a leste, cada um a seu modo, ao conquistarem territórios árabes, repovoavam o local e ampliavam os limites de seus reinos, gerando grandes mudanças populacionais e reestabelecendo as monarquias de modo bastante diverso das tendências de formação de Estados germânicos anteriores à chegada dos árabes.
A Península Ibérica estava, então, dividida em condados (territórios governados por condes) e reinos. O Condado Portucalense pertencia ao Reino de Leão, governado por D. Afonso VI. Ajudado pelos nobres - D. Henrique de Borgonha e D. Raimundo -, D. Afonso VI expulsou os mouros e conquistou o Reino da Galiza (território atual da Galícia e norte de Portugal). Em reconhecimento pelo favor recebido, ofereceu a D. Henrique a mão de sua filha Teresa de Leão e a parte do Condado Portucalense. A D. Raimundo foi dado o Condado da Galícia e a mão de sua filha Urraca. Figura 4 - Condado Portucalense
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Spanish_reconquista.gif . Acesso: 21 jan. 2013.
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Figura 4 - Algumas batalhas da Reconquista
Fonte: Teyssier (1982, p. 8)
No século XII, D. Afonso Henriques, filho de D. Henrique de Borgonha com D. Teresa, lutou contra a própria mãe, que assumira o governo do Condado com a morte de
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D. Henrique. Vitorioso, dedicou-se a lutar pela independência do Condado Portucalense em relação à Galiza e sua expansão ao sul, região ocupada pelos mouros. Portugal tornou-se reino independente de Leão e D. Afonso Henriques foi aclamado primeiro rei de Portugal. Na Figura 4, o mapa mostra algumas das regiões tomadas dos árabes durante os anos da Reconquista. Note que somente no século XIII os mouros foram completamente expulsos do sul de Portugal (região do Algarve), tendo sido, então, fixadas as fronteiras atuais do país. Ao todo, foram 552 anos de domínio árabe em Portugal. Do domínio árabe na Península Ibérica, restaram influências na cultura, na gastronomia e na arquitetura. Observam-se influências linguísticas no português e no espanhol, verificadas em alguns empréstimos linguísticos. No português, há cerca de 800 a 1000 palavras de origem árabe, algumas facilmente identificáveis porque se iniciam por al (artigo definido em árabe), como em: almofada (al + mohada) e azeitona (al + ceitun). Veja outros exemplos a seguir:
alface
refém
alfaiate
Alcântara
açúcar
alcachofra
aldeia
tapete
laranja
alicate
alferes
alfinete
formação linguística da Península Ibérica:
A invasão muçulmana e a Reconquista são acontecimentos determinantes na formação das três línguas peninsulares - o galegoportuguês a oeste, o castelhano no centro e o catalão a leste. Estas três línguas, todas nascidas no Norte, foram levadas para o Sul pela
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Observe o que afirma Paul Teyssier sobre a influência da Reconquista para a
Reconquista. (TEYSSIER, 1982, p. 5-6)
Em fins do século XII, como você deve se lembrar, o latim já não era falado na Península Ibérica. Em Portugal e na Galícia, falava-se o galego-português. A Canção da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós, provavelmente escrita em 1198, é o primeiro texto em galego-português de que se tem notícia. Leia-a a seguir, observando a comparação do galego-português com o português atual.
No mundo non me sei parelha,
No mundo ninguém se assemelha a mim
mentre me for’ como me vai,
Enquanto a vida continuar como vai,
ca ja moiro por vós - e ai!
Porque morro por vós e - ai! -
mia senhor branca e vermelha,
Minha senhora alva e de pele rosadas,
Queredes que vos retraia
Quereis que vos retrate
quando vos eu vi em saia!
Quando eu vos vi sem manto.
Mao dia me levantei,
Maldito seja o dia em que me levantei
que vos enton non vi fea!
E então não vos vi feia!
E, mia senhor, des aquel di’, ai!
E minha senhora, desde aquele dia, ai!
me foi a mi muin mal,
Tudo me ocorreu muito mal!
e vós, filha de don Paai
E a vós, filha de Dom Paio
Moniz, e ben vos semelha
Moniz, parece-vos bem
d’haver eu por vós guarvaia,
Que me presenteeis com uma guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
Pois eu, minha senhora, como presente,
Nunca de vós ouve nem ei
Nunca de vós recebera algo,
valía d’ũa correa.
Mesmo que de ínfimo valor. Fonte: Nicola (1992, p. 28)
A separação do galego e do português ocorre no século XIV. No século XVI, o
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português, embora ainda com alguns traços do galego-português, sobretudo na ortografia, começa a assumir as feições que hoje conhecemos. Nas próximas seções desta aula, você conhecerá um pouco sobre as características da língua portuguesa ao longo da sua evolução.
DO PORTUGUÊS ARCAICO AO PORTUGUÊS ATUAL Quando analisamos línguas, sempre nos deparamos com alguma periodização. É necessário pensar, no entanto, que as estratégias de periodização não são estabelecidas assim de uma forma tão simples como se pode imaginar. Não se dorme falando de uma maneira e se acorda com a língua exibindo características diferentes. As mudanças são lentas e sempre relacionadas a questões sociais, já que a história da língua e a história da sociedade são indissociáveis. A seguir, é possível visualizar algumas propostas de periodização de autores diversos, indicando que cada um toma um fato diferente como referência para marcar os períodos por que passou o português.
Quadro 1: Proposta de periodização
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Fonte: (ILARI; BASSO, 2006)
a história do português em: - Português arcaico: vai do surgimento da língua portuguesa, por volta dos fins do século XII e início do século XIII, até o começo das grandes navegações portuguesas, em 1415. - Português clássico: tem início em torno de 1415 e consolida-se em 1572, tendo como marco a obra de Camões, Os Lusíadas.
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Aqui, seguiremos a periodização proposta por Ilari e Basso (2006), que dividem
- Português moderno: corresponde ao período dos Lusíadas até os dias atuais.
Passemos, então, a uma breve análise de cada um desses períodos.
Português arcaico O período do Arcaico do português abrange desde a passagem do latim ao romance falado na região da Galiza e cobre as primeiras manifestações escritas do português até fins do século XIV e início do XV. Nesse período, foram muitas as modificações estruturais na língua, que deixava de ser latim e ia ganhando a forma de uma língua diferenciada, o nosso português. Vejamos algumas mudanças que ocorreram, mas saiba que não discutiremos todas, pois isso certamente será feito em uma disciplina específica. As palavras que, em latim, eram escritas com os grupos de consoantes pl , cl e fl, passaram a ser pronunciada com o som de ch, como se pode ver no quadro abaixo.
Latim pleno clamare flagrare
Galego-português cheio chamar cheirar
Numa categoria de palavras menos populares, os grupos pl, cl, e fl se transformaram, em galego-português, em pr, cr e fr. Veja os exemplos:
placere>prazer, clavu>cravo, flaccu>fraco
O mesmo ocorreu com o grupo consonantal bl, que passou a br, como em blandu>brando. Há de se notar, no entanto, que essas não são regras categóricas, pois, em português moderno, há um grande número de palavras eruditas em que os grupos iniciais pl, cl e fl, assim como bl, foram conservados ex: pleno, clima, flauta, bloco. Ocorreu também a queda do l intervocálico, provavelmente em fins do século X, pois em um documento em latim bárbaro de 995 lê-se Fiiz (<Felice) e Fafia (<Fáfila).
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Esse fenômeno atingiu muitas palavras e criou, em galego português, vários grupos de vogais em hiato, como se pode ver a seguir.
salire>sair, palatio>paaço, colore>coor, colubra>coobra, voluntade>voontade
Esta queda do l intervocálico explica o plural das formas terminadas em l, como sol>soes, hoje sóis. O n intervocálico, assim como o l, também caiu. No entanto, essa queda se deu posteriormente, no século XI, e provavelmente ainda estava em curso no século XII. Esse fenômeno é um pouco mais complexo, pois, antes do n cair, ocorreu a nasalização da vogal que o precede.
manu > mãnu > mão
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As mudanças não se restringiram à fonética e atingiram a morfologia e a sintaxe do galego-português. A morfologia dos nomes se simplificou e, as muitas formas vindas dos diferentes casos latinos se reduzem a duas originadas apenas do acusativo: uma para o singular e outra para o plural. Como consequência, a ordem das palavras na frase se torna mais rígida, como uma forma de compensar o empobrecimento da morfologia nominal. A morfologia verbal também se simplifica. No latim não havia artigo, mas o artigo definido se forma com base no demonstrativo ille. As quatro formas saídas do acusativo, diferenciadas em número e em gênero – illum, illam, illos, ellas – dão inicialmente lo, la, los, las. Como estes artigos vinham frequentemente precedidos de palavras terminadas por vogal ex: vejo lo cavalo, o l desapareceu, chegando às formas: o, a, os, as. Uma outra modificação muito importante tem a ver com o gênero dos nomes: inicialmente havia masculino, feminino e neutro. É nesse período que se suprime o neutro, e os gêneros reduzem-se a dois. A partir de 1.200, como já vimos, Portugal se torna independente da Galiza e de Leão, dando origem à fase do português propriamente dito. Dessa separação se seguem as conquistas dos territórios mouros ao sul, de modo que, em pouco tempo, como você já viu aqui, o território de Portugal já estaria praticamente idêntico ao de hoje. A língua portuguesa é levada ao sul com os movimentos da Reconquista, e com a capital transferida para Lisboa em 1255, a fixação da língua culta não mais derivará dos falares do norte, mas sim da zona de influência da capital e de Coimbra. O quadro de vogais do português arcaico já era bastante próximo do português moderno, com as sete vogais orais tônicas derivadas do latim vulgar. A criação das cin-
anteriormente (a queda do n). A queda do n intervocálico gerou hiatos nasais, como em vĩ-o e pĩ-o. Isso causou uma instabilidade em muitos casos, que foi resolvida com a epêntese (inserção) da consoante palatal
, como em vinho e pinho, ou com a queda da nasalização,
como em bo-a > boa. Com relação aos possessivos meu, teu, seu, havia uma forma átona distinta,
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co vogais nasais se deu pela perda de consoantes nasais que as seguiam, como vimos
como se vê no quadro a seguir.
Quadro 2: Possessivos no português arcaico
Fonte: Gonçalves e Basso (2010)
Ao fim desse período, o sistema verbal já era idêntico ao do português moder- ________________________ no.
Português clássico A fase do português clássico engloba o período que vai de 1415 até 1572, coincidindo com o início das grandes navegações portuguesas e culminando com a publicação do épico Os Lusíadas. Em 1415, com a conquista de Ceuta, no norte da África, inicia-se um processo que levará o português para muitas regiões como o Brasil e vários territórios na costa da África, além da Índia e de outros territórios asiáticos. Nesse período, a Universidade de Coimbra, fundada em 1290, é instalada em Lisboa e depois retorna a Coimbra, exercendo papel importante na produção e disseminação das letras, da gramática, da dialética e da retórica. O centro de cultura de Portugal é transportado do norte conservador galego-português para o sul, no eixo Coimbra-Lisboa. Como resultado, há uma mudança nos caminhos seguidos pela língua do sul, que se baseia nos clássicos para desenvolver uma língua literária comum, que exercerá uma forte influência nos períodos posteriores. A ruptura com o galego-português se dá com a independência de Portugal e com o deslocamento da corte para o sul, além do declínio natural na atividade literária trovadoresca (e a ruptura com a influência provençal), ocorrendo, assim, uma mudança geral no panorama linguístico-literário em Portugal. Estruturalmente, nota-se que, com a já mencionada perda do gênero neutro, muitas palavras passaram a apresentar flutuação de gênero, apresentando-se ora no masculino, ora no feminino. Algumas formas terminadas em consoante, como ‘se-
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nhor’, não possuíam distinção de gênero. Veja esse uso no título da cantiga de amor “Quant’eu, fremosa mia senhor”, do rei Dom Dinis. Por conta da queda dos l, n, d e g intervocálicos, uma grande quantidade de hiatos foi criada. Para se resolver o problema dos hiatos neste período clássico, a língua recorreu a três processos básicos: a monotongação, a ditongação e a epêntese.
Monotongação:
Quando o hiato consistia de vogais idênticas, ocorria a crase: dolore > door > dor; Quando o hiato consistia de vogais diferentes, em alguns casos, houve inicialmente a assimilação de uma das vogais, com posterior crase: palumbu > pa-ombo > poombo > pombo.
Ditongação:
Uma das vogais do hiato passa inicialmente a semivogal, com posterior ditongação: deus >
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> /dews/.
Epêntese (inserção de um segmento fônico- vogal ou consoante):
Há dois tipos de epêntese para resolver os hiatos: a vocálica, criando ditongos, e a consonantal. A epêntese vocálica inicial permite a criação de ditongo posteriormente: credo > cre-o > creio. As epênteses de consoantes preenchem o hiato com uma consoante diferente da que havia sido sincopada anteriormente: vinu > vĩ-o > vinho (epêntese de
), uma > ũ-a > uma (epêntese de /m/).
Ocorreu também a unificação das terminações em ditongo nasal. Formas variadas como leõ (leão) e cã (cão), entre outras, resultariam no ditongo –ão
.
Nesse período, as sibilantes1 /ts/ e /dz/ já começavam a perder a oclusiva inicial, gerando algumas confusões por causa de homofonia com formas em /s/ e /z/. No século XV, no entanto, é possível afirmar que o sistema de quatro sibilantes ainda era /ts/, /dz/, /s/ e /z/, devidamente marcadas ortograficamente. A mudança para um sistema com apenas duas sibilantes, /s/ e /z/, completou-se em torno do século XVII. Por volta de 1500, muitas das grandes navegações portuguesas já haviam ocorrido, por conta do movimento expansionista português. O contato com diferentes 1
Há um grupo de consoantes identificado por fricativas. Esses sons são produzidos com a passagem do ar através de um canal
estreito feito pela colocação de dois articuladores (lábio, língua, dentes etc.) próximos. Entre as fricativas, há um subgrupo conhecido por sibilantes, que recebem esse nome por ter um som que se assemelha a um assobio. São exemplos, no português [s] sopa, [z] zebra, gente.
chato, e
principalmente em relação ao seu léxico, que incorporou inúmeras palavras originárias desses locais então exóticos.
Português moderno O marco para a passagem do português clássico ao português moderno é a
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realidades, povos, culturas e línguas exerceu algum impacto na língua portuguesa,
data de publicação da obra Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, que é 1572. Nesse ano, durante a batalha de Alcácer-Quebir, Portugal perdeu seu rei, Dom Sebastião, que não deixou herdeiros. Devido aos direitos da sucessão de Dom Sebastião, oito anos depois, o rei Felipe II da Espanha reivindicou a sucessão real portuguesa e fez de Portugal uma província espanhola de 1580-1640. Esses 60 anos de dominação deixaram marcas no Português Europeu (PE), como o uso do objeto direto preposicionado, como em “amar a deus” e não “amar deus”. No século VII, em Portugal, o ditongo /ow/ sofreu monotongação para /o/, além de alternar-se, às vezes, com /oj/, como em touro – toro, louro – loiro. Ainda nesse mesmo século, a africada2
simplificou-se em
, como em macho e chave.
Passando ao século XVIII, encontramos a pronúncia “chiante” de /s/ e /z/ em finais de sílaba e de palavras como em dois
, mesmo
, paz
.
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Nas próximas aulas, você conhecerá outras características do português mo- ________________________ derno, especialmente do português brasileiro. Aguarde! ________________________
Síntese Nesta aula, você tomou conhecimento da história da língua portuguesa e pôde verificar que não é possível tratar de questões linguísticas, sobretudo no que diz respeito à evolução da língua, sem conhecer a história da sociedade que a utiliza. Também acompanhou algumas das transformações do português desde o período arcaico até a atualidade. Esses conhecimentos são muito importantes para que você possa entender melhor a configuração atual da língua.
questão para Reflexão O trecho a seguir é de A Notícia de Torto, documento do século XIII que contém queixas do fidalgo Lourenço Fernandes da Cunha contra os filhos do nobre Gonçalo Ramires. Identifique as mudanças gramaticais em relação ao português atual.
2 ou /z/).
Uma consoante africada, em sua pronúncia, combina o som de uma oclusiva (como /t/ e /d/) com o de uma fricativa (como /s/
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De noticia de torto que fecerũ a Laurcius Fernadiz por plazo qve fece Gocauo Ramiriz antre
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quome uno de suos filios, daquato podesẽ auer de bona de seuo pater; e fiolios seu pater e
suos filios e Lour zo Ferrnadiz quale podedes saber: e oue auer, de erdade e dauer, tato sua mater. E depois fecerũ plazo nouo e couẽ uos a saber quale; in ille seem taes firmamentos quales podedes saber Ramiro Gocaluiz e Gocaluo Goca [luiz e] Eluira Gocaluiz forũ fiadores de sua irmana que o[to]rgase aqu[e] le plazo come illos.
Leitura indicada TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Tradução de Celso Cunha. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Site Indicado http://www.museulinguaportuguesa.org.br/files/mlp/texto_9.pd
Referências ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2009.
GONÇALVES, Rodrigo Tadeu; BASSO, Renato Miguel. História da língua. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC,
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2010.
MATTOS E SILVA, R. V. Diversidade e Unidade: A Aventura Linguística do Português. Revista ICALP, v. 11, Março de 1988, 60-72; Revista ICALP, vol. 12/13, Junho-Setembro de 1988, 1-14.
NICOLA, J. Literatura portuguesa da Idade Média a Fernando Pessoa. São Paulo: Scipione, 1992. ed. 2. p. 28.
e usos
Autora: Vivian Antonino
Pronominais
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AULA 03 - Norma linguística: conceitos
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do porfessor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
Oswald de Andrade
Olá, aluno! Preparado para aumentar os seus conhecimentos sobre a língua?
Na aula anterior, você conheceu a história da língua e, agora, já sabe um pouco mais sobre a sua origem. A partir desta aula, vamos conhecer e discutir sobre alguns termos que são velhos conhecidos da maioria, mas que, na ciência linguística, ganham novas significações. Certamente, você já ouviu as expressões norma, gramática e erro, mas, ao final desta aula, você conseguirá perceber que elas podem trazer significados diferenciados que serão de extrema importância ao longo de todo o seu curso.
O que vem a ser NORMA? O termo norma pode ter duas acepções diferentes, uma derivando do adjetivo normal e outra, do adjetivo normativo. Vejamos melhor:
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I. Norma pode estar relacionada ao que é normativo, a regras, imposições. Dentro do sistema linguístico, tem a ver com o que seria ideal a ser seguido dentro de uma comunidade. Por exemplo, a gramática normativa nos impõe que a única regência possível para o verbo pisar é sem preposição, ou seja, o correto é dizer Não pise a grama. II. Norma pode, também, estar relacionada ao que é normal, habitual, costumeiro, recorrente em uma comunidade. Retomando o exemplo anterior, com o verbo pisar, o que se nota é um uso comum, recorrente, habitual acompanhado da preposição em, como se pode ver na imagem abaixo. Figura 1 - Exemplo de recorrente do verbo ‘pisar’
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Fonte: UNIFACS
Comparando as duas definições possíveis para norma e recorrendo aos estudos do linguista Eugenio Coseriu, podemos fazer um distinção entre norma objetiva e norma subjetiva. A norma objetiva, como o próprio nome já indica, é aquela que se pode observar objetivamente nas atividades linguísticas diárias dos falantes, é algo real e visível. A norma subjetiva, por sua vez, não é assim tão real e tão perceptível. Ela está mais relacionada a um conjunto de valores subjetivos que norteiam o julgamento que as pessoas fazem sobre o desempenho linguístico dentro de uma comunidade. Melhor dizendo, a norma objetiva designa aquilo que realmente se fala, enquanto a norma subjetiva designa aquilo que se “deveria falar”. Para exemplificar a norma objetiva e a norma subjetiva, recorramos à epígrafe, em que Oswald de Andrade brinca com o uso dos pronomes:
Norma subjetiva Dê-me um cigarro.
Me dá um cigarro
Ainda que se conheça a regra de colocação pronominal, segundo a qual não se inicia uma sentença com pronome oblíquo átono (no caso, o me), a maioria dos falantes, mesmo escolarizado, costuma falar como no segundo exemplo. A forma utilizada
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Norma objetiva
no primeiro exemplo, uma ênclise, acaba por ser utilizada somente em situações formais de escrita. Dessa forma, o Me dá um cigarro é bem representativa de uma norma objetiva, real e comprovável no uso diários dos falantes, enquanto a forma Dê-me é nitidamente de uma norma subjetiva. Ficaram claras a definição de norma e a distinção entre norma objetiva e norma subjetiva? Concorda que é inquestionável que a língua não é uniforme? Então, estamos preparados para discutir sobre as normas popular, culta e padrão.
“O português são três” Tomando emprestada, já no título, a colocação que Mattos e Silva (2004) faz sobre a língua portuguesa, iniciamos esta seção chamando a atenção para o fato de,
________________________ ________________________ Podemos perceber a existência de três normas (no sentido ii, mencionado na ________________________ seção anterior: normal, recorrente, costumeiro) no português: a norma popular, a nor- ________________________ ma culta e a norma padrão. ________________________ ________________________ ________________________ Figura 2 - Diagrama sobre as normas da língua ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ além de não ser uniforme, a nossa língua ser tripartida.
Fonte: Adaptada de Bagno (2007, p. 106)
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Vamos entender mais detalhadamente o que é cada uma delas. Norma popular - é a norma típica de falantes populares, ou seja, daqueles que ocupam a base da pirâmide social e que normalmente têm pouca escolarização. Marcos Bagno, no livro Nada na língua é por acaso, diz que a norma popular também pode ser chamada de norma estigmatizada, por trazer construções linguísticas que costumam ser criticadas pelos mais escolarizados. Um exemplo que é bem recorrente e estigmatizado na norma popular é a variação na concordância verbal.
Os menino vai sair cedo
Norma culta - no extremo oposto à norma popular, a norma culta é a típica de falantes altamente escolarizados. A norma culta é uma norma objetiva, real e, segundo Bagno, também pode ser chamada de norma de prestígio.
Norma padrão - é a norma que definimos, na seção anterior, como subjetiva. A norma padrão reúne as normas prescritas pela gramática, ou seja, ela não representa um uso real e, sim, um uso ideal da língua. Não há falante que se utilize, a todo mo-
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mento, de todas as regras contidas na gramática; então, não há falantes que utilizem a norma padrão da língua. Por essa razão, pode-se dizer que ela é um ideal ou, como se pode ver na figura anterior, ela é como uma nuvem sobre as cabeças dos falantes, pairando com as suas regras “que devem ser seguidas”. Para que não restem dúvidas sobre as três normas do português, convém discutir um pouco mais sobre as diferenças entre as normas culta e padrão.
Norma culta x norma padrão Há, inclusive entre os autores de livros e os linguistas, uma grande confusão terminológica quando o assunto é norma culta e norma padrão. Muitos usam os dois termos como se fossem sinônimos e, como já vimos, norma culta e norma padrão designam coisas diferentes. Devemos concluir esta aula sem nenhuma dúvida quanto aos usos e às definições das normas.
Norma culta Inicialmente, pensemos um pouco mais sobre a norma culta. Definir quem vem a ser o falante culto não é uma tarefa tão simples quanto parece. Na década de 70, o projeto Norma Urbana Culta (NURC), que se propunha a estudar a variante culta da língua portuguesa nas principais capitais do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Porto Alegre), traçou o perfil de quem seria o seu falante culto: o indivíduo
mudanças de perfil social dos brasileiros, o falante culto continua sendo designado como aquele altamente escolarizado. Você deve estar pensando: “Mas não há pessoas que não cursaram o nível superior e, ainda assim, falam a língua de uma forma considerada culta?” Certamente que há, e essa é uma questão que precisa ser repensada dentro da linguística. Outro ponto relevante e que precisa ficar bem claro é que o uso do adjetivo
culto, que aparece em oposição a popular, não tem a intenção de dizer que os
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com ensino superior completo. Por essa razão, nos dias de hoje, mesmo diante das
falantes da norma popular não têm cultura.
Esta qualificação do termo decorreu da necessidade de se distinguir com mais precisão os diversos modos sociais de falar e escrever a língua, buscando dar adequado acolhimento à heterogeneidade liguística e à correlação das normas com seus diferentes condicionantes sociais. (FARACO, 2008, p. 55)
A escolha pelo adjetivo culto para acompanhar o termo norma se deu por conta da necessidade de indicar, dentro das várias possibilidades de manifestação da língua, que há formas diferentes de falar, a depender do grupo social. De forma alguma se deve pensar que os falantes da norma popular são “incultos”. E se já está claro que a norma culta é uma norma real, observável, você já deve ter pensado que ela também sofre variação. Toda língua, utilizada por pessoas heterogêneas, vai também se realizar de forma heterogênea, como você estudou na Aula 1. Dessa forma, não se deve fazer uma relação direta entre norma popular e informalidade x norma culta e formalidade. A norma culta em uso pode, a depender do contexto, ser realizada de uma maneira menos monitorada (mais informal) ou de uma maneira mais monitorada (mais formal). Para explicar tal possibilidade de variação, Bortoni-Ricardo (2004) discute sobre a existência de um contínuo de monitoração estilística, em que se podem encontrar manifestações linguísticas que vão desde uma fala completamente espontânea até falas previamente palejadas, por isso bastante monitoradas.
Figura 3 - Contínuo de monitoração estilística
Fonte: Bortoni-Ricardo (2004, p. 62)
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Um mesmo falante pode se situar ao longo desse contínuo de monitoração, a depender da situação social em que está inserido. Por exemplo, uma mesma pessoa pode se comportar linguisticamente de maneira bastante descontraída em companhia da família ou de amigos, estando, assim, em um extremo do contínuo menos monitorado. Numa situação mais formal, porém, como numa entrevista de emprego, a sua maneira de falar será afetada, adequando-se também ao momento de interação; nesse caso, o falante poderá estar situado no extremo mais monitorado do contínuo. Costuma-se usar uma conhecida metáfora para esclarecer tal situação: uma pessoa não usa trajes de banho para ir a uma festa de gala, nem vai de roupa social à praia. Sabe-se bem qual roupa usar em cada situação, assim como se sabe qual estilo de linguagem usar em cada momento. É importante salientar que essa monitoração, muitas vezes, não é feita de forma consciente. Dessa forma, pode-se depreender que a norma culta não é homogênea e que não é, também, sinônimo de formalidade. Por isso, não esqueça: norma popular não é sinônimo de informalidade e norma culta não é sinônimo de formalidade.
Norma padrão A norma padrão, como já mencionado anteriormente, é uma norma subjetiva, é uma norma que não é empiricamente observável, ou seja, que não se consegue ver
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na prática, na realidade dos falantes. A norma padrão é aquela que determina o “como deve ser” na língua, é a que “mora” nas gramáticas. E se a norma padrão é um ideal linguístico, ela não sofre tanta variação quanto as normas popular e culta, que estão em uso mais constante pelos falantes. Por conta desse caráter ideal da norma padrão, há uma grande distância entre a norma culta, falada pelos altamente escolarizados, e a tal norma padrão, que não é, de fato, falada por ninguém. Vejamos isso em exemplos para ficar mais claro.
Quadro 1 - Paradigma da flexão verbal nas normas padrão, culta e popular
Norma Padrão
Norma Culta
Eu trabalho
Eu trabalho
Norma Popular Eu trabalho Você trabalha ~
Tu trabalhas
Você trabalha
Ela/ela trabalha
Ela/ela trabalha
tu trabalha Ela/ela trabalha Nós trabalha ~ Nós trabalhamos ~
nós trabalhamos
a gente trabalha
A gente trabalha ~
Nós trabalhamos
a gente trabalhamos Vocês trabalha ~ Vós trabalhais
Vocês trabalham vocês trabalham
Eles/elas trabalham
Eles/elas trabalham
Eles/elas trabalha ~ eles/elas trabalham
Fonte: Adaptado de Lucchesi et al. (2009, p. 331 e 333)
uma redução significativa quando se comparam as três normas. Na norma padrão, para cada pessoa, há uma forma verbal correspondente, com seus morfemas que indicam modo, tempo, número e pessoa bem marcados. Quando se passa a analisar a norma culta, já se percebe uma diferença significativa, pois o tu e o vós foram substituídos pela forma você(s), trazendo, consequentemente, uma forma verbal com morfologia verbal reduzida. Nota-se, ainda, o uso do a gente, não reconhecido e nem aceito na norma padrão como pronome pessoal.
43 Formação e Diversidade Sociolinguística da Língua Portuguesa
Você pode perceber, olhando o quadro acima, que a morfologia do verbo sofre
Se olharmos as formas verbais de acordo com a norma popular, vamos notar que o distanciamento da norma padrão aumenta ainda mais. Na norma popular, ocorre uma forte redução da morfologia dos verbos, como se pode notar no quadro: tu trabalha, nós trabalha, a gente trabalha, eles trabalha.
Lembre-se: toda vez que falamos de norma popular e norma culta aqui, estamos nos referindo ao segundo sentido exposto na primeira seção desta aula: aquilo que é normal, habitual, costumeiro, recorrente
Um outro exemplo que nos ajuda a perceber a distância entre a norma culta e a norma padrão é o uso do ele (pronome pessoal do caso reto) na posição de objeto da oração. O padrão nos diz que apenas pode figurar como objeto da oração pronome ________________________ oblíquo, no caso, o o. Veja: ________________________
Norma padrão Eu o comprei ontem Sempre o vejo falando de linguística
Norma culta Eu comprei ele ontem Sempre vejo ele falando de linguística
Quando um falante diz uma frase como as dos exemplos da norma culta, ninguém o repreende por isso, ou seja, o uso do pronome do caso reto como objeto, como complemento verbal, não tem estigma na sociedade. No entanto, a norma padrão tacha como erro o uso do pronome ele como objeto direto, apenas aceitando o pronome no caso oblíquo. Ao observar as formas verbais mencionadas e a variação no uso pronominal em posição de objeto da oração, notamos que existe uma inquestionável distância entre a norma padrão (ideal) e a norma culta (real). Esses são apenas alguns dos muitos exemplos que atestam o abismo que há entre o que a norma padrão “quer que se diga” e o que a norma culta “realmente diz”. Quando se pensa em norma popular, as distâncias
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aumentam ainda mais expressivamente. Mas, por que toda essa distância? De onde veio essa norma padrão?
Figura 2 - Mapa do Império de Alexandre Magno
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Imperio_de_Alejandro_Magno_con_ruta.svg
Figura 3 - Homero - poeta grego que teria escrito Ilíada e Odisséia. ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Homeros_Caetani_Louvre_Ma440_n2.jpg ________________________ ________________________ ________________________ A constituição de uma norma padrão ________________________ ________________________ Você já parou para pensar em por que se cria uma norma padrão? Segundo ________________________ ________________________ Bagno (2007), a norma padrão é um construto sócio-histórico que tem um objetivo ________________________ claro de uniformizar a língua. Constitui-se um padrão para uma língua com o intuito ________________________ de conter a sua variação.
Foi assim há muito anos, no século III a. C., na ocasião da expansão da cultu-
território, que ia desde a Grécia até o Egito. Por conta dessas conquistas, a cultura e a língua gregas foram difundidas por esse extenso território. A língua grega passou a ocupar uma região muito maior do que a Grécia e, consequentemente, surgiu a necessidade de se criar uma norma, um padrão a ser seguido, para que a língua não se “perdesse” no espaço que agora ocupava. Esse padrão veio com o objetivo de homogeneizar a língua e evitar as influências dos vários povos que
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ra grega. Alexandre, o Grande, liderando as conquistas gregas, dominou um enorme
com ela estariam convivendo. Mas, quem era o responsável pela criação desse padrão? Normalmente, essa tarefa cabia aos “sábios”, aos mais eruditos ou, ainda, aos representantes de classes sociais mais prestigiadas. Essas pessoas costumavam considerar a sua língua como sendo exemplar, ideal, como modelo de um “bem falar” e, por essa razão, passaram a impor uma única língua correta a ser seguida. Foi nessa mesma época, no século III a.C., que surgiu aquilo que chamamos hoje de Gramática Tradicional, também conhecida como gramática normativa ou prescritiva. Como já dito acima, os eruditos, os filósofos se ocuparam da elaboração da Gramática Tradicional, tendo como modelo a escrita literária da época. Dessa forma, as características linguísticas constantes em obras como Ilíada e Odisséia serviram para a definição da norma padrão, criando a grande distância que se pode observar até hoje entre um uso ideal e um uso real da língua. É de se imaginar que a linguagem utilizada para se escrever uma obra literária esteja distante da linguagem utilizada no dia a dia das pessoas, mesmo as mais cultas e em atividades mais formais. No entanto, a forma como a gramática se impôs, exercendo uma “força coercitiva”, como afirma Faraco (2008), fez a maioria da população acreditar que a única língua possível é a da gramática. Essa tradição gramatical foi herdada pelas nações europeias no período em que se contituíram como estados centralizados. Toda nação precisa de uma língua com a qual se identifique e, diante de uma multiplicidade de línguas e de suas variantes, as nações europeias acabaram por eleger uma variedade de língua como sendo a oficial, a que deveria ser seguida. Bagno (2007) nos chama atenção que, quando a variedade de francês falada em Paris foi eleita como “a língua francesa”, isso ocorreu por questões políticas e ideológicas, e não por questões estritamente linguísticas.
Nenhuma dessas línguas ou variedades de língua foi escolhida por ser mais “bonita”, mais “lógica”, mais “exata”, mais “elegante”, mais “refinada” que as outras. A escolha se fez por critérios exclusivamente políticos e ideológicos: quem está no poder vai querer impor o seu modo de falar a todo o resto da população. (BAGNO, 2007, p. 89)
Ao se definir uma língua padrão, está se elegendo uma variedade de língua
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como sendo melhor que as demais e, para isso, automaticamente, se colocam outras variedades de língua numa posição de menos merecedoras de respeito. Essa “idelogia da língua padrão”, como bem indica Faraco (2008), nos faz crer que a língua é a norma padrão e que tudo que foge ao padrão é corrupção linguística, é feio, é erro e não merece respeito. E por falar em erro, falemos um pouco mais sobre o que vem a ser o erro nos estudos linguísticos.
A noção de erro No senso comum, considera-se erro tudo aquilo que foge ao que está prescrito nas gramáticas normativas. E se, como vimos ao longo desta aula, a gramática normativa abriga o padrão, que é um ideal linguístico, há, no dia a dia das pessoas, muito mais coisas em desacordo com a gramática do que se pode imaginar. Assim, somos levados a acreditar que, na norma popular, há mais erros do que acertos.
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Fonte: UNIFACS
Mas isso faz sentido? Pode uma imensa maioria “não saber falar a sua língua” ou falar mais errado do que certo? Essa concepção de erro do senso comum se baseia em preconceitos sociais e faz com que se julguem, como diz Bagno (2007, p. 69), “toda pronúncia, todo vocabulário e toda sintaxe que revelem a origem social desprestigiada do falante”. Como afirma o mesmo autor, julgamos muito mais o falante do que a língua. Você pode insistir: e o que foge à gramática não é mesmo um erro? Para responder a essa pergunta, é bom voltar e ler a aula para perceber de onde vem a norma padrão, como ela surgiu e quem ela representa. É a gramática que acaba por dizer o que é certo e o que é errado em nossa sociedade, mas, quando ela surgiu, foi pensada por uma elite que se considerava a representante da “língua exemplar”. Acontece que faziam parte dessa elite apenas homens, brancos, livres, ricos e membros de uma aristocracia política, ou seja, eles eram minoria e em nada se identificavam com a maioria da população. Resultado: o padrão criado por eles não tem identificação com a maioria da população, que se sente inferiorizada, por falar fora desse padrão restrito. Sua fala é sempre considerada errada. Os estudos linguísticos, diferentemente do senso comum, não desconsideram a origem dessa norma padrão. Para a ciência linguística, não existe erro na língua.
se organizam sintaticamente para permitir a interação humana, toda e qualquer manifestação linguística cumpre essa função plenamente. (BAGNO, 2007, p.61)
Se a comunicação se efetiva, a língua está cumprindo a sua função. Só vai ser considerado erro, nos estudos linguísticos, aquilo que for agramatical, ou seja, as cons-
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Se a língua é entendida como um sistema de sons e significados que
truções que um falante nativo da língua jamais faria, como a colocação de um artigo depois de um nome:
*Casa a é bonita.
Então, pode tudo em linguística? Eu não vou corrigir os meus alunos? Não quer dizer que pode tudo em linguística, quer dizer que a linguística trabalha com a língua em uso, com o que é real, que ela não se prende apenas ao ideal proposto pela norma padrão. Citando Bagno (2007) mais uma vez: não é que vale tudo na linguística; na linguística, tudo vale alguma coisa. Ao longo das aulas, essas questões vão ficando mais claras. Na Aula 9, discutiremos sobre o ensino e você verá que o professor não só pode como deve corrigir os alunos. A grande questão é como fazer isso! Ainda vamos retomar todos os conceitos estudados até aqui e pensar em sua aplicação na sala de aula. Na próxima aula, focaremos o nosso olhar no português do Brasil, em sua constituição e na sua caracterização. Será uma viagem interessante e que ajudará a compreender muito do perfil linguístico contemporâneo de nosso país.
Síntese Vimos nesta aula as concepções de normas e aprendemos um pouco mais sobre as normas popular, culta e padrão, traçando as semelhanças e as diferenças entre o que é culto e o que é padrão. Por fim, refletimos um pouco sobre o conceito de erro, notando que os julgamentos acerca do erro estão muito mais guiados por fenômenos sociais do que por fenômenos estritamente linguísticos.
questão para Reflexão Imagine que, no Brasil atual, não exista uma norma padrão. Diante dessa ausência de uma norma padronizadora, resolveu-se que era chegada a hora de se criar um parâmetro a ser seguido linguisticamente. Agora, reflita: quais seriam as pessoas responsáveis pela elaboração dessa norma padrão? Seriam de alguma região específica
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do nosso país? Deveriam ser altamente escolarizadas ou o povo seria convocado para se estabelecer o padrão? A língua proposta como padrão representaria bem todos os brasileiros? Após essas reflexões para a atualidade, pense sobre o que representa a norma padrão para a maioria dos brasileiros.
Leituras indicadas BAGNO, Marcos. Por uma reedeucação sociolinguística. In: _______. Nada na língua é por acaso - por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.. BAGNO, Marcos. A construção histórica de um abismo. In: _______. Nada na língua é por acaso - por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007 BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2006. FARACO, Carlos Alberto. Afinando conceitos. In: ________. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
________________________ ________________________ Site Indicado ________________________ ________________________ http://www.stellabortoni.com.br/ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Referências ________________________ ________________________ BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso - por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: ________________________ Parábola Editorial, 2007. ________________________ ________________________ BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São ________________________ Paulo: Parábola Editorial, 2004. ________________________ ________________________ FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. ________________________ ________________________ LUCCHESI, Dante et al. (orgs.). O português afro-brasileiro. Salvador, EDUFBA, 2009. ________________________ ________________________ MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. “O português são dois”: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: ________________________ Parábola Editorial, 2004. ________________________ ________________________ ________________________ ________________________
Português do Brasil Autora: Vivian Antonino
“[...]Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
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AULA 04 - um olhar sobre as origens do
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil[...]”
Manuel Bandeira - Evocação do Recife
Olá, aluno! Muitos conhecimentos novos até aqui?
Na aula anterior, discutimos bastante sobre norma, no entanto não nos aprofundamos nos aspectos específicos do português do Brasil. Nesta aula, nós vamos voltar um pouco à história da formação da língua portuguesa em terras brasileiras, para conseguir compreender a configuração atual de nosso idioma. Certamente, ao final da discussão, ficará cada vez mais claro que é impossível pensar sobre uma língua sem pensar sobre a sociedade que fala essa língua.
Um pouco mais de história Na segunda aula, falamos sobre a origem histórica do português, porém não nos detivemos na história do protuguês do Brasil. Vamos a ela? Com certeza, você já leu bastante sobre a história do Brasil e sabe como se deu o “descobrimento”. Mas, você já pensou sobre a situação da língua nesse período colonial? Já tentou imaginar como funcionava a convivência entre portugueses, africanos trazidos forçadamente de diversos países diferentes, e indígenas, também de tribos diferenciadas? Havia aqui falantes de muitas línguas que foram, na maioria das vezes, forçados a conviver entre si e, assim, tornou-se inevitável a necessidade de se comunicar minimamente. É baseado nesse panorama que se costuma dizer que houve, no período da colozinação do Brasil, um multilinguismo generalizado. Afinal, eram muitas línguas diferentes sendo utilizadas. E, para compreender a realidade linguística desse período, tão decisiva para o futuro do português do Brasil, faz-se necessário ver mais de perto a história da contribuição de índios e negros. Compreender o quanto cada grupo influenciou na formação do português nos ajudará a entender a realidade linguística atual da sociedade brasileira.
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O indígena Figura 1 - Johan Morutz Rugendas
Fonte: www.dominiopublico.gov.br/
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia um grande número de índios nativos que habitavam as terras brasileiras. Leite e Franchetto (2006) sugerem que a
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população indígena girava em torno de 1.000.000 na época do “descobrimento”. Num primeiro momento de contato social, os brancos europeus chegados ao Brasil tentaram uma relação de escambo, de troca, com os indígenas, porém essa relação mais amistosa logo foi abandonada em favor da escravização do índio. Os índios passaram a ser submetidos materialmente e, também, espiritualmente, já que até a fé cristã estava sendo imposta pelos colonizadores. Os índios brasileiros pertenciam a variadas tribos, sendo, portanto, falantes de variadas línguas, o que atesta a realidade multilíngue do Brasil colonial, já mencionada (MATTOS e SILVA, 2004, p. 76). Aryon Rodrigues (1986 apud MATTOS e SILVA, 2004), famoso estudioso das línguas indígenas, afirma que, se nos dias atuais existem cerca de 180 línguas sobreviventes, na época do descobrimento, é possível que houvesse o dobro desse número. Em artigo posterior (1993 apud MATTOS e SILVA, 2004), o mesmo autor passa a admitir a possibilidade de terem existido 1.175 línguas quando da chegada dos portugueses em terras brasileiras. Mesmo diante de números tão distantes, é indiscutível que a realidade linguística era de fato múltipla. E, nesse contexto, o homem branco recém-chegado começava a aprender, de forma rudimentar, as línguas indígenas com que tinha contato. Devido à prática do cunhadismo entre os índios, que consistia na entrega de uma das filhas ou irmãs em casamento como prova de amizade, os casamentos interraciais aumentavam. Os mestiços, filhos dessas relações, normalmente tinham o tupi como língua materna, mas, muitas vezes, eram bilíngues, com o português como segunda língua. Padre Antonio Vieira, em 1964 (apud TEYSSIER, 2007, p.95), dizia que
hoje umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender à escola.
Durante os dois séculos iniciais de
As línguas gerais eram línguas francas
colonização, uma língua geral tomou conta
de base indígena utilizadas em território
das terras brasileiras. Essa língua foi usada
brasileiro para possibilitar a comunicação
pelos jesuítas como um instrumento de
entre os povos falantes de línguas diversas.
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As famílias dos portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas
catequização e, portanto, de imposição da fé cristã.
A política adotada durante a colonização foi dizimando a população indígena aos poucos. Os índios resistiam ao trabalho forçado, principalmente ao trabalho agrícola, que eles consideravam uma atividade inferior, relegada apenas a mulheres e crianças. Essa resitência à escravidão gerou confrontos, muitas vezes armados, que levaram à extinção vários povos indígenas e, por consequência, as suas línguas. Na tabela que se segue, é possível perceber o declínio acentuado da população
indígena, em consequência das constantes investidas contra os índios que resistiam ________________________ à escravidão.
Tabela 1 - População do Brasil por etnia do século XVI ao XIX
Etnias
1538-
1601-1700
1701-1800
1600 Africanos
1801-
1851-
1850
1890
20%
30%
20%
12%
2%
Negros brasileiros
-
20%
21%
19%
13%
Mulatos
-
10%
19%
34%
42%
Brancos brasileiros
-
5%
10%
17%
24%
Europeus
30%
25%
22%
14%
17%
Índios integrados
50%
10%
8%
4%
2%
Fonte: Mussa (1991, p. 163)
Nota-se que, até 1600, os indígenas correspondiam à metade da população e que, no século XIX, chega-se ao índice extremamente baixo de 2%. Em 1758, um Diretório criado pelo Marquês de Pombal, ministro de Portugal, proibia o uso da língua geral e impunha o uso obrigatório da língua portuguesa. Ainda que tenha sido dizimado ao longo dos anos, o elemento indígena legou muitas marcas ao idioma português, fruto do intenso convívio. Diante da situação social em que o índio foi colocado, a busca por outro tipo de
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mão de obra se fez indispensável e, para manter ativa economicamente a sociedade colonial, deu-se início ao tráfico negreiro, que trouxe, à força, milhares de africanos de nações diferentes.
As contribuições linguísticas dos indígenas
As línguas indígenas contribuíram, consideravelmente, permeando o vocabulário do português com palavras até hoje utilizadas. A maior parte dessa herança lexical está relacionada a nomes da flora e da fauna brasileiras, além de se perceber uma grande influência nos topônimos, ou seja, nos nomes de localidades. Foram diversas as línguas indígenas que deixaram a sua contribuição para o português; no entanto, aqui, observaremos algumas palavras, mencionadas por Teyssier (2007), que são de origem tupi.
Flora Abacaxi Mandioca Mandacaru Ipê Pitanga Maracuja
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Fauna Capivara Quati Tatu Sagui Piranha Sabiá Urubu
Toponímia Aracaju Guanabara Carioca Tijuca Itapuã
O negro A regularização do tráfico negreiro ocorreu com um alvará de D. João III, de 1549, que autorizava que cada engenho podia adquirir até 120 escravos por ano. A partir desse momento, o Brasil passou a receber um número crescente de escravos, que eram trazidos de diferentes regiões da África e, consequentemente, falavam diferentes línguas. No mapa, a seguir, é possível ver que os negros escravizados eram retirados de diferentes locais da Áfica.
53 Formação e Diversidade Sociolinguística da Língua Portuguesa
Figura 1 - Mapa da rota do tráfico negreiro
Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=26788 http://www.portalventrelivre.com/wp-content/uploads/2009/08/Mapa-Escravos.jpg
Não é possível dizer, com precisão, quantas línguas africanas diferentes conviveram no Brasil colonial. A certeza que há é que eram muitas e que, por uma questão estratégica, os donos de engenho buscavam escravos de diferentes regiões, falantes de diferentes línguas, para trabalhar numa mesma localidade. Isso era feito com o intuito de evitar rebeliões, já que a dificuldade de comunicação seria um empecilho para a organização de atos revoltosos. Falantes de tantas línguas ininteligíveis entre si, os africanos precisaram de uma língua em comum para se comunicar, que acabou sendo o português, a língua do colonizador. O aprendizado dessa nova língua se deu na oralidade, sem a normatização da escola, cabendo, na maioria das vezes, ao feitor a tarefa de ensinar a nova língua (ou os rudimentos dela) aos negros africanos. Era grande o número de africanos e de seus descendentes em terras brasileiras, e isso certamente influenciou a língua potuguesa de algum modo. Alguns hitoriadores, como Mattoso (1990), afirmam que chegaram em torno de três milhões e meio de escravos; outros, como Darcy Ribeiro (1997), apontam um número, talvez exagerado, de mais de seis milhões de indivíduos desde o início do tráfico negreiro até 1860. Para termos uma melhor visão da distribuição racial da população brasileira ao longo dos primeiros séculos de ocupação do Brasil, podemos recorrer à tabela a seguir, organizada por Lobo (1996). Tabela 2 - População do Brasil por etnias branca e não branca
1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890
etnias não brancas
etnia branca
70% 70% 68% 69% 59%
30% 30% 32% 31% 41%
Fonte: Lobo (1996)
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Após olhar cuidadosamente a Tabela 2, você pode notar que, numericamente, as etnias não brancas (índios, negros e seus descendentes) foram bastante expressivas ao longo de três séculos de história. Dessa forma, a sua influência na língua portuguesa foi também bastante expressiva. Há correntes de estudos linguísticos que atribuem um papel bastante relevante a este contato entre línguas ocorrido no momento de formação do português do Brasil. Essa corrente afirma que, no período da colonização, o massivo contato entre as línguas africanas, indígenas e a língua portuguesa, a língua do colonizador, poderia conduzir à formação de uma língua nova ou, ainda, a uma variedade de língua modificada por essa inter-relação. Dessa forma, essa corrente busca comprovar a hipótese de que, ainda que no Brasil não tivesse surgido uma língua nova, a variedade popular do português sofreu fortes modificações graças ao contato entre línguas. Essa origem marcada pelo multilinguismo teria sido determinante para a configuração atual do português. Uma outra corrente, no entanto, defende a deriva linguística e postula que a língua segue um rumo natural, que as mudanças que nela ocorrem já estariam prefiguradas em sua estrutura e que aconteceriam de qualquer forma. O contato entre línguas teria, apenas, acelerado aquilo que já iria mudar na língua.
Ainda é cedo para você se posicionar e
O primeiro livro discute sobre a hipótese do
________________________ decidir com qual corrente concorda. Leia contato entre línguas, enquanto o segundo ________________________ mais sobre o assunto e siga pensando na se debruça sobre a defesa da deriva linguística. Leia mais! ________________________ história da língua! ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Fonte: http://www.edufba.ufba.br/2011/12/o-portugues-afro-brasileiro ________________________ Fonte:http://www.livrariaunesp.com.br/livrariaunesp/Produto/26941/ORIGENS+DO+PORTUGUES+BRASILEIRO ________________________ ________________________ ________________________ As contribuições linguísticas dos negros ________________________ ________________________ ________________________ Ainda que a corrente linguística que defende o contato entre línguas alegue ________________________ ________________________ que a contribuição dos negros para o português atinja profundamente a sua estrutura, aqui nos deteremos nas contribuições para o vocabulário, assim como fizemos com
Como já dito inúmeras vezes, foram muitas as línguas africanas faladas no Brasil, mas duas, segundo Teyssier (2007), legaram um maior número de palavras: o iroubá e o quimbundo. Segundo o autor, o iorubá está “na base do vocabulário próprio da Bahia, relativo às cerimônias de camdomblé [...] ou à cozinha afro-brasileira” (TEYSSIER, 2007, p.110).
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relação aos indígenas.
Orixá Vatapá Abará Acarajé Acará
O quimbundo deixou ao nosso vocabulário palavras mais integradas à língua comum e, ainda, palavras relacionadas ao modo de vida dos escravos.
Caçula Cafuné Moleque Senzala Samba
Uma realidade polarizada Ao chegar até esse ponto dos seus estudos, você já não deve mais ter dúvidas de que a realidade linguística está intimamente relacionada à realidade social de um povo. Sendo assim, ao imaginar a história do Brasil, em que se via nitidamente um segregação social, pode-se constatar também a existência de uma segregação linguística. Vejamos melhor. Ao longo de muito tempo, de meados do século XVI até final do século XIX, a realidade socioeconômica brasileira sofreu pouca alteração. Como afirma Lucchesi (2009), o país era uma grande sociedade rural, com pequenos núcleos urbanos, onde a minoria elitizada se instalava. Apesar de numericamente reduzida, as camadas médias e altas da população brasileira mantinham um comportamento linguístico conservador, se esforçando ao máximo para conservar os laços linguísticos e culturais com Portugal. Por essa razão, por longos anos, até os professores das classes mais abastadas eram trazidos de além-mar para manter o caráter conservador da língua. Era esse o perfil daqueles que falavam a variedade culta do português do Brasil Na outra “ponta” da sociedade, estavam aqueles sobre os quais já discutimos nas seções anteriores e que eram maioria populacional: índios, negros e mestiços, que viviam na base da pirâmide social, segregados, sem direito às condições mínimas de uma vida com dignidade. Eles eram a mão de obra disponível para manter o país, fazendo funcionar as lavouras de cana-de-açúcar, o cultivo do pau-brasil, algodão, café, tabaco e, mais tarde, trabalhando até na mineração. Nessa camada da população, não havia professores de português vindos de Portugal; o povo falava uma variedade de língua completamente afetada pela sua realidade, o que podemos chamar de variedade popular. É possível perceber, após esse pequeno apanhado histórico, que a realidade liguística brasileira não era apenas heterogênea e variável, como você já aprendeu na Aula 1, mas ela era polarizada, com as normas populares em um extremo social e as
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normas cultas em outro. Observe que as expressões foram colocadas no plural. Isso foi feito justamente para que você não se esqueça de que, quando nos referimos à norma culta ou à norma popular, não estamos tratando de uma coisa uniforme e homogênea, pois a língua é sempre múltipla.
A atenuação dos polos A partir do século XIX, o Brasil passou a receber muitos imigrantes europeus e asiáticos, com o objetivo, segundo Kreutz (2000), político e social de modernizar a economia e de embranquecer a população local. Do ponto de vista linguístico, esses imigrantes ajudaram a diminuir as distâncias que separavam o polo culto do polo popular. Os imigrantes chegam sem qualquer condição econômica; no entanto, alguns deles tinham alguma instrução, fato que facilitava a sua ascensão social. Ao ascender socialmente, os imigrantes acabavam por conviver com os brancos e seus descendestes, a classe média do período, já que ofereciam a estes mão de obra especializada. Nessa convivência, a interação verbal com as pessoas falantes da norma culta se tornava inevitável e, assim, traços do português popular que os imigrantes haviam aprendido junto a índios e negros eram passados adiante, assim como eram absorvidos traços da variedade culta.
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A realidade bipolar, bem marcada anteriormente, passa a ser um pouco mais atenuada, porém ainda persiste. Se você observar, essa realidade polarizada existe até os dias atuias, com falantes de norma popular de um lado e falantes de norma culta de outro. Hoje, a distância está ainda mais atenuada graças ao maior acesso aos meios de comunicação, que trazem influências linguísticas muitas vezes não observadas na realidade do falante; ao sistema de transporte mais acessível, que permite o deslocamento das pessoas; e, ainda, à possibilidade de frequantar escolas, onde, bem ou mal, se tem acesso a uma outra variedade de língua. Lucchesi (2001, p. 107) afirma que essa diminuição da distância entre as normas populares e as normas cultas é uma realidade e que: [...] há uma tendência da mudança do português popular em direção aos modelos da norma culta, que atingem e influenciam as camadas mais baixas da população através da televisão, do rádio ou pelo contato direto, proporcionado pelas modernas condições de transporte, ou mesmo através do precário sistema de ensino.
Mesmo com essa diminuição de distância, é inquestionável que a relidade sociolinguística brasileira é, hoje, ainda polarizada. Como afirma Lucchesi (2009), existe um abismo que separa uma minoria que tem acesso a bens e serviços, que é composta por indivíduos que podem ser considerados cidadãos, por terem seus direitos sociais básicos atendidos. Essa minoria, que tem acesso à escola, fala a norma culta. É herdeira “dos modelos [linguísticos] transmitidos aos longos dos séculos nos meios da elite colonial e do Império; modelos esses decalcados da língua da Metrópole portuguesa” (LUCCHESI, 2009, p. 42).
mal consegue ter acesso a seus direitos básicos de cidadão, que tem problemas quando precisa de atendimento médico, que não consegue concluir os estudos básicos, que não tem direito a lazer. A língua falada por essa imensa maioria da população vem, historicamente, da língua falada pelos índios, pelos negros e por seus descendentes. Não se pode correr o risco de pensar que, ao falar em polos na língua, estamos firmando que há dicotomias estanques, paradas. Não existe, quando o assunto é lín-
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A norma popular, por sua vez, é falada pela grande maioria da população, que
gua, um “lado de lá” e um “lado de cá” que não dialogam, que não se misturam; não há fronteiras rígidas. Dessa forma, ainda que haja diferenças entre as normas populares e as normas cultas, o ideal seria recorrer ao conceito de contínuo, proposto por BortoniRicardo (2004). Ao longo de cada contínuo, observando a origem hostórico-social do falante, este pode estar mais próximo ou mais distante de um dos polos. Consciente de onde vem cada variedade de língua, você, futuro professor de português, passa a ter um olhar mais crítico sobre a realidade sociolinguística de seu país. Esse novo olhar vai ajudar a pensar a sua prática docente e fazê-lo perceber que tudo o que acontece na língua tem uma motivação histórico-social.
Síntese A realidade multilíngue brasileira, no período da colonização e do Império, pode ter deixado marcas relevantes no atual português do Brasil. Por essa razão, com- ________________________ preender o papel exercido por índios, negros e brancos é de extrema importância para ________________________ o trabalho consciente com a língua portuguesa em sala de aula. Para além de uma realidade heterogênea e variável, nota-se, em terras brasileiras, uma situação linguístico polarizada, com as normas populares em um extremo e as normas cultas em outro. Ainda que o abismo que separa as normas esteja diminuindo, ele ainda existe, pois a língua é reflexo da sociedade que a fala.
questão para Reflexão É possível pensar sobre a língua sem estabelecer uma relação com o povo que a fala? É importante refletir sobre o quanto a história da formação da sociedade brasileira pode ter influenciado na configuração atual da língua, por isso busque responder às seguintes questões: de onde vêm as características do português em sua variedade popular? Por que há uma distância tão grande entre o que fala uma camada mais culta da população e o que fala a camada popular? Sempre que estudar alguma língua, tente fazer reflexões acerca da relação língua x sociedade.
Leituras indicadas LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan; RIBEIRO, Ilza. (Orgs.) O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009.
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NARO, Anthony Julius; SCHERRE, Maria Marta Pereira. Origens do português brasileiro. São Paulo: Paábola, 2007.
Site Indicado www.vertentes.ufba.br
Referências KREUTZ, Lúcio. A educação de Imigrantes no Brasil. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cyntia Greive. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000
LEITE, Yonne; FRANCHETTO, Bruna. 500 anos de línguas indígenas no Brasil. In: CARDOSO, Suzana A. M. et al. (Orgs.). Quinhentos anos de história linguística do Brasil. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 2006.
LOBO, Tânia. A formação histórica do português brasileiro. O estado da questão. Comunicação ao XI Congresso da ALFAL. Gran Canária, 1996.
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LUCCHESI, Dante. As duas grandes vertentes da história sociolingüística do Brasil (1500-2000). D.E.L.T.A., 17:1, 2001.
LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan; RIBEIRO, Ilza. (Orgs.) O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009.
MATTOS e SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2004.
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
MUSSA, A. O papel das línguas africanas na história do português do Brasil. dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1991.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
TEYSSIER, Paul. História da língua Portuguesa. Tradução Celso Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
do a variação
Autora: Gilce de Souza Almeida “Este tipo de pesquisa tem sido às vezes rotulado de ‘sociolinguistica’, embora este seja um uso um tanto enganoso de um termo estranhamente redundante. A língua é uma forma de comporta-
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AULA 05 - A sociolinguística: estudan-
mento social [...]. De que maneira, então, a ‘sociolingüística’ pode ser considerada algo separado da ‘lingüística’?” (LABOV, 2008 [1972], p. 215).
Olá, aluno! Continuemos nossas reflexões acerca desse fascinante objeto de estudo que é a língua.
A linguagem medeia todas as relações humanas, de modo que dela depende o desenvolvimento das sociedades. Como podemos ler em Alkimim, (2001, p. 21), “a história da humanidade é a história de seres organizados em sociedade e detentores de um sistema de comunicação oral, ou seja, de uma língua”. Diante dessa relação intrínseca entre língua e sociedade, já vimos que é impossível desconsiderar os contextos socioculturais em que ocorrem as interações linguísticas. Aliás, há muitos fatos na língua difíceis, ou mesmo impossíveis, de serem explicados sem levar em conta essas questões.
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Antes de iniciar a nossa discussão, não é demais relembrar que não há línguas ________________________ homogêneas ou imutáveis. Qualquer que seja ela, será sempre um conjunto de va- ________________________ riedades. Na Aula 01, já demos claros exemplos a respeito dessa questão. É muito im- ________________________ portante que você tenha consciência dessa diversidade e saiba explicar por que ela ________________________ ocorre, para que possa lidar melhor com as diferenças linguísticas em sala de aula.
Nesta aula, você conhecerá o campo da linguística que estuda a língua em sua heterogeneidade, relacionando-a a aspectos socioculturais - a Sociolinguística. Entrará em contato com os princípios básicos e os conceitos com que este modelo opera. Vamos lá!
O advento da sociolinguística Para conhecermos o campo de atuação da sociolinguística, partiremos da observação de uma amostra de fala real:
[...] “já é tarde, tu... daqui pra lá... tu vai sair daqui uma hora dessa pra ir pra casa sozinha [...] de manhã levanta e vai mais descansada e mais livre de tudo, do perigo”. Eu sou mais de oferecer a dormida, não sou muito assim de ir levar, porque se for levar uma pessoa tarde, quem mora longe como a gente volta? Só se a gente tiver com duas pessoa, três, uma situação como agora mesmo... então a gente oferecendo a dormida, dorme... no outro dia sai despreocupada, a gente e ela também
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Ao ler esse trecho de fala, você deve ter notado alguns fenômenos linguísticos que se encontram em variação no português brasileiro, como:
1) o uso do pronome tu - “tu vai sair daqui uma hora dessa [...]” -, que ocorre ao lado do pronome você em muitas cidades do país. 2) o uso do pronome a gente - “então a gente oferecendo a dormida, dorme...” -, que está em variação com o nós em todo o país. 3) ausência da marca de concordância nominal - “com duas pessoa” -, que alterna com forma padrão em que aparece a marca de concordância.
É justamente para fatos como esses, muito comuns em situações reais de comunicação, que a sociolinguística volta a sua atenção, na tentativa de descrever como e por que acontecem. Recorrendo ao que dizem Cezário e Votre (2009, p. 142), interessa a essa área da linguística responder, por exemplo:
a) Em que contexto social um mesmo falante se utiliza de cada uma
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das variantes?
b) Ou será que há um contexto para uma das formas?
c) Há diferenças ao se comparar a fala de crianças, jovens e adultos?
d) Há diferenças ao se compararem pessoas cultas com pessoas analfabetas?
e) E quanto a pessoas de nível socioeconômico distinto?
f) É possível saber se a forma mais coloquial [...] está substituindo a forma mais canônica[...]?
g) Há verbos [...] que motivam o uso [...]? Quais seriam esses verbos?
Note que o princípio de toda a análise está assentado no pensamento de que a língua se encontra em permanente estado de variação. Você sabia que a ideia da variação linguística, apesar de nos parecer tão natural hoje, nem sempre foi considerada por aqueles que se dedicavam a estudar as línguas no passado? Aliás, se você pensar bem, mesmo atualmente, há quem ignore esse pensamento e prefira defender, de um lado, a existência de uma língua certa, merecedora de todo respeito e atenção, e, do outro, um monte de falares errados, que, sequer, merecem ser chamados de língua.
estudos do renomado linguista Ferdinand Saussure, a diversidade linguística foi excluída da pauta dos estudos estruturalistas. Veja bem. Não é que não se reconhecesse que as línguas se modificam. Os estruturalistas tinham consciência da existência da variação, mas não a tomavam como prioridade em seus estudos, pois acreditavam que era impossível descrevê-la. O fato de os falantes terem à disposição mais de uma forma para dizerem a mesma coisa - “tu vai sair”, “tu vais sair”, “você vai sair” - configurava um universo aparentemente caótico com o qual os estudos linguísticos da época não
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Quando a linguística despontou como ciência no início do século XX, com os
conseguiam lidar. Esse “caos”, como você pode perceber, era a variação. Mas, será que a variação é desorganizada a ponto de não poder ser estudada? Como nos informa Tarallo (2005), aceitar que a heterogeneidade linguística não podia ser estudada significa aceitar que os membros de uma comunidade não conseguiriam se comunicar. Mas não é o que acontece, não é mesmo? A língua encontra-se em estado permanente de transformação sem que isso comprometa o seu funcionamento. Diante da limitação para explicar a variação, o Estruturalismo fez um corte metodológico, dividindo o estudo da língua em duas partes: a langue (a língua) e a parole (a fala). A langue corresponde ao sistema da língua, sua estrutura, suas regras de funcionamento (fonológicas, morfológicas e sintáticas) e a parole é o uso individual, heterogêneo, portanto. Para que você entenda melhor os elementos dessa dicotomia saussuriana, pen- ________________________ semos num exemplo. Imagine que você e seus amigos tenham presenciado um epi- ________________________ sódio qualquer. Ao relatarem essa situação a alguém, certamente, cada um o fará de ________________________ modo diferente, não? A escolha de alguns termos, a decisão pelo uso da concordância ________________________ verbal ou nominal, a opção por a gente ou nós para representar o sujeito etc. não serão ________________________ iguais para todos, já que a fala é um ato individual. Não há dúvida, porém, de que to- ________________________ dos, como falantes de português, usarão a mesma língua. Então, que fique claro: usar a ________________________ mesma língua não significa falar da mesma forma, mas usar o mesmo sistema línguís- ________________________ tico. É possível, por exemplo, que você possa dizer “Nós corremos” ou “A gente correu”, ________________________ mas, como domina as regras de organização das frases em português, ninguém falará ________________________ “*Nós corremos ele”. Diante da impossibilidade de explicar algo tão individual como a fala, a melhor opção naquele momento era eleger para estudo um objeto homogêneo: a langue. A corrente estruturalista objetivava estudar a língua em si mesma, ou seja, o sistema linguístico, em detrimento da fala. Esta, por ser heterogênea, era vista como caótica, desorganizada, conforme citado há pouco. Era como se os falantes não tivessem nenhuma razão para fazer suas escolhas. Os estruturalistas chamavam isso de variação livre. Dizendo de outra forma, é como se os falantes usassem uma frase como “tu vai sair daqui uma hora dessa” para qualquer pessoa e em qualquer situação. Você deve estar lembrado que não é assim que as coisas funcionam na língua. As ideias estruturalistas tiveram continuidade, de certa forma, no modelo gerativo desenvolvido pelo linguista americano Noam Chomsky, que, como Saussure, separa língua e fala, definindo a dicotomia competência, capacidade de linguagem comum a todos os seres humanos, e performance, uso individual dessa capacidade.
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Para o referido linguista, deve ser a competência o objeto de estudo da linguística, não importando os aspectos externos à linguagem. Por volta dos anos de 1960, contudo, essas limitações para explicar a língua em funcionamento real começaram a inquietar alguns estudiosos, que, em vez de estudar o sistema da língua, prefiraram se dedicar à fala em seu contexto de uso. Veja o que diz o linguista norte-americano William Labov a esse respeito: “Quando eu comecei a entrevistar pessoas e gravar suas falas, descobri que a fala cotidiana envolvia muita variação linguística, algo com que a teoria padrão não estava preparada para lidar” (LABOV, 2007). Foi essa percepção que conduziu Labov à realização de importantes estudos que punham em xeque as teorias tradicionais - estruturalismo e gerativismo.
PRINCÍPIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA SOCIOLINGUÍSTICA Nas aulas anteriores, você ficou sabendo que as experiências socioculturais e históricas de um grupo social se refletem na língua por ele utilizada. Se essas experiências são diferentes, por que não haveria de sê-lo a forma de utilizar a língua?
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HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICA E ESTRUTURA SOCIAL A ideia da homogeneidade linguística e a exclusão do contexto social no tratamento dos fatos da língua passaram a ser rejeitadas por estudiosos que defendiam a variação como condição normal da língua influenciada por questões internas e externas. Vale lembrar que, muito antes de Labov desenvolver seus estudos sociolinguísticos, outros estudiosos já dispensavam atenção à variação linguística, correlacionando-a à estrutura social. Coube a ele, porém, a definição de uma disciplina com teoria e método apropriados para o estudo dessas questões. A sociolinguística teve ínicio nos anos de 1960 e sua denominação foi fixada durante um congresso denominado Sociolinguistics, que ocorreu na Universidade da California (UCLA), em Los Angeles, em 1964. William Bright, responsável pela publicação dos trabalhos, escreveu um texto introdutório, As dimensões da Sociolinguística, considerado o marco fundador na nova área de estudo, em que destaca a preocupação da nova disciplina em pôr em evidência a relação entre língua e sociedade e define que o seu objeto é a variação e a mudança linguística. A sociolinguística teve como uma de suas preocupações introduzir o estudo do componente social na configuração da língua. Como se pode observar no texto que serve de epígrafe a esta aula, Labov (2008 [1972]), considerado o iniciador dessa corrente de estudos, vê como inapropriado o uso do termo ‘sociolinguística’ por considerá-lo redundante. Em sua concepção, qualquer estudo da língua deve estar voltado para as questões sociais.
[1972], p. 21) afirma:
[...] não se pode entender o desenvolvimento da mudança lingüística sem levar em conta a vida social da comunidade em que ela ocorre. Ou, dizendo de outro modo, as pressões sociais estão operando continuamente sobre a língua, não de um ponto remoto no passado,
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Referindo-se à incontestável relação entre língua e sociedade, Labov (2008
mas como uma força social imanente agindo no presente vivo.
Labov é bastante incisivo ao postular que a vida social da comunidade atua sobre os fatos da língua. Desse modo, a variação linguística é investigada não na fala individual, mas na coletividade. O indivíduo refletiria as tendências de uso do grupo, já que, como se lê em Faraco (1998, p. 18),
Cada variedade é resultado das peculiaridades das experiências históricas e socioculturais do grupo que a usa: como ele se constitui, como é sua posição na estrutura socioeconômica, como ele se organiza socialmente, quais seus valores e visão de mundo, quais suas possibilidades de acesso à escola, aos meios de informação e assim por diante.
Os indivíduos constituem grupos em que partilham características comuns, como a faixa etária, a classe socioeconômica, o sexo, a escolaridade, a religião etc. e, como interagem uns com os outros dentro de seus grupos, acabam assumindo comportamentos linguísticos e atitudes em relação à língua também semelhantes. Assim, na abordagem da variação, a sociolinguística leva em conta esses fatores para explicar o comportamento linguístico da comunidade. Na perspectiva variacionista, a língua é propriedade da comunidade, por isso Labov afirma que a tarefa do sociolinguística é descrever o funcionamento real da língua, ou seja, como ela é de fato usada na comunidade de fala, esta entendida como um conjunto de pessoas que interagem verbalmente e seguem o mesmo conjunto de normas linguísticas (LABOV, 2008 [1972]). Em outras palavras, os membros dessa comunidade não apenas compartilham a mesma língua, mas imprimem a ela os elementos de sua configuração social e de sua cultura. Para atestar a relação entre língua e estrutura social, Labov fez importantes estudos sobre a língua falada. Na Aula 01, você tomou conhecimento de seu trabalho realizado em Nova Iorque. Antes disso, porém, em 1963, o eminente sociolinguista realizou uma pesquisa na ilha de Martha’s Vineyard, no Estado de Massachusetts (EUA), na qual investigou algumas características do inglês falado na ilha, explicando-as com base na atuação dos fatores sociais. Martha’s Vineyard, cuja situação econômica estava em declínio, era uma comu-
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nidade relativamente isolada em Massachusetts. Durante o verão, a ilha recebia grandes levas de turistas vindos do continente, o que provocava reações diferentes nos habitantes: enquanto alguns reagiam contra a invasão, outros se enquadravam nos padrões culturais trazidos pelo continente. Ao estudar a fala da comunidade, Labov observou um traço característico dos habitantes da ilha: a centralização dos ditongos /au/ e /ai/, como em out, house e white, right. Ele distinguiu quatro formas diferentes de pronunciar esses fonemas e as relacionou a aspectos da estrutura social. Sua observação concluiu que os habitantes mais velhos, que queriam manter sua identidade, intensificavam o uso da variante local, ao passo que os indivíduos mais jovens preferiam a variante dos veranistas, inovadora e não estigmatizada. Labov conclui que os habitantes começaram a reagir à presença dos turistas na ilha e, por isso, exageravam na pronúncia que os identificava como grupo social daquela região uma forma de marcar seu espaço, sua identidade. Com esse estudo, Labov demonstrou que as escolhas linguísticas feitas pelos indivíduos têm sempre uma motivação, que pode ser social ou linguística. Na pesquisa reaizada em Martha’s Vineyard, Labov empregou uma abordagem teórico-metodológica inteiramente nova, baseada em cálculos estatísticos. A utilização de uma análise matemática fez com que esse modelo ficasse também conhecido como Sociolinguística Quantitativa.
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O VERNÁCULO Uma vez que a intenção do pesquisador é analisar fatos em variação na língua, é importante que esses dados sejam colhidos em situações de fala espontânea. Labov afirma que objeto de estudo da Sociolinguística é “a língua, o instrumento que as pessoas usam para se comunicar com os outros na vida cotidiana”. Nessas situações, o falante dá pouca atenção à maneira como elabora seu discurso e produz o que interessa ao pesquisador - o vernáculo. Você está acostumado ao significado de vernáculo referindo-se àquilo que é “próprio de um país, nação, região”, conforme registro dos dicionários. Em sociolinguística, contudo, esse termo ganha um novo sentido e refere-se à fala pouco monitorada. Segundo Labov, é preciso analisar “a língua tal como usada na vida diária por membros da ordem social, este veículo de comunicação com que as pessoas discutem com seus cônjuges, brincam com seus amigos e ludibriam inimigos” (LABOV, 2008 [1972], p. 13). Nessas situações, a atenção dada à maneira de falar é mínima, de modo que o falante deixa evidente a sua fala espontânea e revela os fatos em variação que interessam ao pesquisador. Todos nós temos o nosso vernáculo, que deixamos aparecer quando estamos em situações de grande descontração, na conversa com os amigos, familiares. Observe o modo de falar de alguém durante uma situação dessas e compare-o com um contexto de maior monitoramento. Você verá que as diferenças são significativas. Os dados para um estudo sociolinguístico são coletados por meio de grava-
vistados - denominados informantes - que relatem experiências pessoais. Envolvidos emocionalmente com o assunto, dispensam menos atenção à maneira como usam a língua e deixam emergir uma fala despreocupada. O estudo do vernáculo é muito importante porque, de acordo com Bagno (2007, p. 52), permite identificar:
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ções de áudio e, para conseguir uma fala natural, frequentemente, pede-se aos entre-
[...] quais são as regras gramaticais que realmente pertencem ao português brasileiro contemporâneo, aquelas que são mais usualmente empregadas pelas pessoas em suas interações cotidianas. Ao mesmo tempo, podemos identificar quais são as regras que estão deixando de ser usadas, caindo em obsolescência, com probabilidade de desaparecer da língua num futuro próximo.
Os contextos de maior monitoramento, como situações formais de fala e de língua escrita, são mais resistentes à variação e à mudança, de modo que é a observação do vernáculo que fornece dados para a caracterização sociolinguística da comunidade. Vamos ver um exemplo disso. Você sabe que, em português, o pronome oblíquo lhe tem como função descri- ________________________ ta na gramática tradicional representar o objeto indireto de terceira pessoa. Veja: ________________________
Quando encontrei Maria ontem, dei-lhe o recado.
Essa variante padrão, contudo, quase não existe na língua falada espontânea. Nesta, os falantes recorrem a outras variantes menos formais, a saber:
Quando encontrei Maria ontem, dei o recado a ela. Quando encontrei Maria ontem, dei o recado pra ela. Quando encontrei Maria ontem, dei__ o recado.
Embora, na Aula 01, já tenhamos visto a definição de variante, não é demais relembrá-la aqui, por ser um termo técnico bastante usual na sociolinguística. Dessa vez, recorreremos às palavras de Tarallo (2005, p. 8): “Variantes linguísticas são [...] diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade”. Observe que as quatro formas de representação do objeto indireto de terceira pessoa apresentadas acima - lhe, a ela, pra ela e o não preenchimento - não alteram o significado da informação. São, portanto, variantes. A um conjunto de variantes, ainda relembrando Tarallo (2005), chamamos variável.
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Dizemos que a representação do objeto indireto de terceira pessoa é uma variável porque, como mostrado anteriormente, existe mais de uma forma para a sua expressão.
Estudando a variação
Fonte: http://www.sxc.hu
Como você já sabe, a sociolinguísitica investiga a variação linguística. Vejamos como isso é feito, observando alguns dos passos descritos em Tarallo (2005, p. 10-11):
1) Um levantamento exaustivo de dados de língua falada, para fins de análise, dados estes que refletem mais fielmente o vernáculo da
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comunidade;
2) descrição detalhada da variável, acompanhada de um perfil completo das variantes que a constituem;
3) análise dos possíveis fatores condicionadores (lingüísticos e não-lingüísticos) que favorecem o uso de uma variante sobre a(s) outra(s);
Bem, o primeiro passo para o estudo da variação é a coleta, por meio de gravações em áudio, da fala dos informantes. A fim de que se tenha um retrato linguístico da localidade pesquisada, os pesquisadores costumam dar preferência a falantes naturais da comunidade ou aos que a ela chegaram até os 5 anos1. Considera-se que, com essa idade, a criança ainda não tenha recebido influências significativas da escola e do grupo social. Os entrevistados também não podem ter se afastado do lugar de origem por muito tempo. A escolha dos indivíduos pesquisados deve ser aleatória, podendo-se recorrer ao método aleatório simples ou ao aleatório estratificado. No primeiro caso, todos os indivíduos têm as mesmas chances de serem escolhidos para a pesquisa. Funciona como uma espécie de sorteio. No segundo caso, os informantes são agrupados em células, definidas com base em alguns critérios sociais, como sexo, faixa etária e escolaridade. Neste caso, nem todos os indivíduos têm as mesmas possibilidades de fazerem parte da amostra, tendo em vista que há critérios preestabelecidos, mas a escolha para 1 tal critério.
Há situações em que se torna difícil encontrar informantes que se adequem a esse perfil, de modo que é necessário relativizar
Se quisermos fazer um estudo em uma comunidade levando em conta as variáveis sociais aqui citadas, poderemos ter um esquema como este: Figura 1 - Exemplo de critérios de estratificação de uma amostra
Sexo
Escolaridade
Masculino Feminino
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compor as células é aleatória.
Fundamental (5º ao 9º ano) Ensino superior completo Faixa 1: 25 a 35 anos
Faixa etária
Faixa 2: 45 a 55 anos Faixa 3: 65 a 75 anos
Fonte: Elaborada pela autora.
A partir dos critérios de estratificação definidos, usa-se uma análise combinatória , chegando-se à composição de doze células, que, como já dito, são preenchidas ________________________ 2
por indivíduos selecionados aleatoriamente. Veja, abaixo, o esquema dessa distribui- ________________________
________________________ ________________________ Figura 2 - Exemplo de composição de células sociais ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Fonte: Elaborada pela autora ________________________ ________________________ Note que um estudo sociolinguístico é feito por amostragem e, com base em ________________________ informações estatísticas, pode-se estender os resultados alcançados à comunidade. ________________________ ção.
2
Multiplica-se, um pelo outro, o número total de fatores de cada variável definida para estratificação: sexo (2 fatores), escolaridade
(2 fatores), faixa etária (3 fatores).
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Feitas as gravações, as falas são transcritas, fonética ou grafematicamente, a depender do interesse da pesquisa, a fim de facilitar o manuseio dos dados pelo pesquisador. Essa transcrição deve ser feita com muito cuidado, a fim de evitar equívocos e, consequentemente, a perda de informações. O segundo passo descrito por Tarallo (2005) é a descrição detalhada da variável dependente3 e de suas variantes. Veja o exemplo a seguir:
VARIÁVEL DEPENDENTE: Realização da concordância verbal de terceira pessoa
VARIANTES: 1) com marca explícita - Eles chegaram cedo 2) sem marca explícita - Eles chegou__ cedo.
Fonte: Elaborada pela autora.
No modelo sociolinguista de investigação da língua, não há lugar para a ideia
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de variação livre. Para esse modelo, a questão importante é determinar os fatores que estariam condicionando a variação/mudança. Para tanto, definem-se circunstâncias linguísticas e extralinguísticas/sociais que concorrem para a sua existência. Tais circunstâncias são denominadas tecnicamente de variáveis independentes. Como exemplo, citamos, a seguir, algumas das variáveis independentes comumente consideradas no estudo da concordância verbal de terceira pessoa.
VARIÁVEIS LINGUÍSTICAS: posição e distância do verbo em relação ao sujeito, saliência fônica4. VARIÁVEIS SOCIAIS: faixa etária, escolaridade, sexo
Os resultados obtidos acerca dos efeitos dos fatores são obtidos após a realização de procedimentos metodológicos rigorosos e cálculos matemáticos realizados com base em programas estatísticos. De posse dos resultados, cabe ao pesquisador interpretá-los com base nas hipóteses levantadas e nos princípios da teoria. Embora tenhamos um espaço específico para discutir as contribuições da sociolinguística para o ensino de língua portuguesa, é válido antecipar que as contribuições dessa área de estudo têm sido muito importantes para o ensino de língua materna, na medida em que oferece ao professor uma consciência acerca dos fenômenos variáveis da língua e uma nova maneira de lidar com tais usos. 3
Assim chamada porque sua realização está condicionada a fatores internos e externos à língua.
4
O princípio da saliência fônica refere-se à diferença de pronúncia entre as formas verbais no singular e no plural (conhece/conhe-
cem; ganha/ganham; é/são).
cará mais fácil pensar sobre os fenômenos em variação no português. Na aula seguinte, faremos um passeio pelos espaços em que se fala português, enfocando algumas diferenças linguísticas entre o Brasil e Portugal. Além disso, iniciaremos nosso percurso pelo espaço brasileiro, observando algumas de nossas diferenças linguísticas do ponto de vista diatópico.
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Agora que você já tem algumas informações sobre a teoria sociolinguística, fi-
Síntese Nesta aula, você ficou sabendo que sociolinguística se ocupa da análise da língua em condições reais de uso, destacando que as variações são motivadas por circunstâncias internas à língua e circunstâncias sociais, como a faixa etária, o sexo, a escolaridade, a classe social etc.
questão para Reflexão Já sabemos que a variação linguística é caracterizada pela existência de duas ou mais formas variantes que se alternam em um mesmo contexto, remetendo ao mesmo significado. Observe o fato variável apresentado a seguir:
________________________ ________________________ Ontem te vi na entrada do cinema. ________________________ Ontem lhe vi na entrada do cinema. ________________________ ________________________ Agora que você já tem informações sobre alguns postulados da sociolinguís- ________________________ tica, pense mais um pouco: que hipóteses extralinguísticas explicariam o uso dessas ________________________ ________________________ formas? ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Leituras indicadas ________________________ CAMACHO, Roberto Gomes. Sociolingüística: parte II. In: MUSSALIN, Fernanda; ________________________ BENTES, Anna C. (Org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 3. ed. São ________________________ Paulo: Cortez, 2003. v. 1. p. 49-75. ________________________ ________________________ TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. 7. ed. São Paulo: Ática, 2005. ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Sites Indicados ________________________ ________________________ http://www.vertentes.ufba.br/a-teoria-da-variacao-linguistica ________________________ http://www.infopedia.pt/$sociolinguistica-%28linguistica%29 ________________________
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Referências ALKMIM, Tânia Maria. Sociolingüística: parte I. In: MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Anna C. (Org.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. v. 1.
CEZÁRIO, Maria Maura; VOTRE, Sebastião. Sociolinguística. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo. Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2009. p. 140-156.
FARACO, Carlos Alberto. Lingüística histórica. 2. ed. São Paulo: Ática, 1998.
LABOV, William. Sociolinguística: uma entrevista com William Labov. Revista Virtual de Estudos da Linguagem - ReVEL. v. 5, n. 9, agosto de 2007. Tradução de Gabriel de Ávila Othero. ISSN 1678-8931 [www. revel.inf.br].
LABOV, William. Padrões sociolingüísticos. Tradução de Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008 [1972].
MOLLICA, Maria Cecília. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In: MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza. (Org.). Introdução à sociolingüística: o tratamento da variação. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2007. p. 9-15.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. 7. ed. São Paulo: Ática, 2005.
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WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. I. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança lingüística. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2006[1968].
GUÊS
Autora: Gilce de Souza Almeida “Quase me apetece dizer que não há uma língua portuguesa, há línguas em português. É uma língua que tinha que passar[...] por transformações, segundo os lugares, segundo como a falam,
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AULA 06 - VARIAÇÃO ESPACIAL DO PORTU-
segundo as culturas, as influências... Mas isto não tira a evidência da existência do corpo da língua portuguesa, mas é um corpo espalhado.”
(José Saramago)
Olá! Pronto para uma viagem pelas diferenças linguísticas das diversas regiões onde se fala português? Sigamos!
Na Aula 02, fizemos um passeio pela história da língua portuguesa, observando como esta língua foi se alterando diacronicamente até assumir a configuração que conhecemos hoje. Nesta aula, iremos explorar a dimensão espacial da variação do português, focalizando as diferenças entre o português brasileiro e o português europeu. Além disso, conheceremos um pouco sobre a divisão dialetal do português brasileiro. É muito importante que o futuro professor de língua portuguesa conheça a realidade diatópica da língua, não apenas em sua dimensão interna - no espaço brasileiro -, mas também em sua dimensão externa - em relação ao português europeu -, porque, consciente dessa variação, ficará mais fácil garantir um ensino de português que privilegie o ensino da norma-padrão sem desprezar o conhecimento da realidade linguística do país. Está feito o convite!
Uma língua, muitas línguas A língua portuguesa está entre as línguas mais faladas no mundo e, embora não haja consenso sobre a posição que ocupa nesse ranking, estima-se que seu número de falantes nativos esteja em torno de 230 milhões de pessoas, espalhadas por oito países, nos quais, apesar de ser língua oficial, nem sempre é falada pela maioria da população.
A língua oficial de um país é aquela de uso obrigatório nas atividades oficiais do Estado (constituição, leis, tratados internacionais, atos administrativos).
Desde o século XV, quando saiu das fronteiras do espaço europeu, levado pelo
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colonialismo, o português assumiu grande importância no cenário mundial. Destacase, por exemplo, que até o século XIX foi usada como língua franca nos portos da Índia e no sudeste asiático, além de ter se generalizado no litoral africano (MIRA MATEUS, 2002) e, posteriormente, ter chegado à América. O português tornou-se, dessa forma, uma língua presente em quase todos os continentes - Europa, África, Ásia e América. Submetido a diferentes fatores históricos, culturais, sociais e demográficos em cada um dos espaços em que se instalou, não se pode pensar que não tenha assumido em cada território características particulares. Mesmo nos países que seguem o padrão europeu - Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste -, as diferenças são notáveis. Nesse sentido, como afirma Raposo (1984, p. 585), “ela [a língua portuguesa] recobre todo um conjunto de variantes, ou normas, ou dialectos (o termo exacto não nos interessa agora aqui) que diferem entre si quer sintacticamente, quer foneticamente, quer no que diz respeito ao seu léxico”. Contudo, apesar das diferenças e das feições que a língua assumiu em cada lugar, há uma estrutura comum que faz com que os seus falantes se identifiquem como falantes de português. Vamos conhecer um pouco acerca dessa dispersão do português.
Figura 1 - Países de língua portuguesa na África
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o Umbundo, Kimbundo, Kikongo e Tchokwé. Em Cabo Verde, o crioulo cabo-verdiano, mescla de português com línguas africanas, é falado por grande parte da população como língua materna, e o português, como segunda língua. O português é, contudo, a língua dos veículos de comunicação e da escolarização. Em Guiné-Bissau, apenas cerca de 10% população têm o português como língua materna. A outra parte da população divide-se entre falantes do crioulo da Guiné-Bissau e falantes de línguas africanas. Em Moçambique, de acordo com o Recenseamento Geral da População e Habitação de
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da população e convive com dezenas de línguas nativas, dentre as quais se destacam
1997, cerca de 39,6% da população declararam-se falantes de português, mas apenas 6% consideram-no como primeira língua. A maioria da população usa línguas do grupo banto. Nas ilhas de São Tomé e Príncipe, apenas 2,5% dos habitantes falam a língua portuguesa. Na Ásia, o português é idioma oficial do Timor Leste, embora apenas uma pequena parcela tenha domínio da língua. A língua majoritária desse país é o tétum. No continente asiático, o português sobrevive, ainda, na cidade de Goa, na Índia, embora ameaçado pela expansão do inglês. Em Macau, o português é língua oficial, ao lado do chinês, mas é falado por um percentual bem pequeno da população. Fala-se crioulo de origem portuguesa em Damão e Diu, na Índia; em Málaca, na Malásia; em Macau; no Sri-Lanka; em Java, na Indonésia.
Fonte: Adaptado de Clip-art
Na América, o Brasil é o único país de língua portuguesa. Aqui, como você já sabe, encontra-se a maior população de falantes de português. Como já fizemos referência ainda há pouco, apesar da unidade que caracteriza a língua portuguesa, é certo que, espalhada por espaços geográficos tão distantes, não se pode falar em uma língua portuguesa, mas em muitas línguas portuguesa, ou, relembrando José Saramago, cujas palavras abrem esta aula, muitas línguas em português. Com o objetivo de unificar a ortografia, os oito países que têm português como língua oficial - membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) - assinaram o Acordo Ortográfico, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2009. No texto do referido acordo, justifica-se a necessidade de unificação da ortografia, alegando-se que tal ato “constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da lín-
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gua portuguesa e para o seu prestígio internacional” (ACORDO ORTOGRÁFICO, 2008, p. 01). Sem pretensão de questionar a validade do acordo, pergunta-se, contudo, se essa unidade pretendida poderá ser alcançada. Afinal, as diferenças entre as variedades do português continuam a existir no léxico e na morfossintaxe, áreas que não são atendidas pelas mudanças propostas. Na seção a seguir, focalizaremos algumas dessas diferenças, especificamente em relação às variedades faladas em Portugal e no Brasil, daqui em diante identificadas como PE e PB, respectivamente.
Diferenças entre o PE e o PB Você já deve ter ouvido um português falando e deve ter notado muitas diferenças entre sua fala e a nossa aqui no Brasil. Veja bem: não estamos nos referindo à norma-padrão, mas aos usos reais da língua. A configuração assumida pelo PB em suas variantes culta e popular, como você já estudou na Aula 03, decorre dos fatos sociais e históricos que serviram de pano de fundo à transplantação do português para o Brasil. Considerando, por exemplo, a situação multilíngue que caracterizou o país no período pré e pós-colonial bem como a sua demografia, é de se esperar que o português que
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aqui se desenvolveu tenha assumido características peculiares, como as que você já conheceu ao longo das aulas e outras de que tomará conhecimento a partir de agora. As diferenças entre as duas variedades vão além da mera questão ortográfica, já referida, e estendem-se por todos os níveis da língua: fonético-fonológico, morfossintático e semântico-lexical. Um fenômeno bastante investigado quando se fala de diferenças entre PB e PE é o objeto nulo, que consiste no apagamento do objeto direto ou indireto. Vamos entender melhor do que se trata. Se você pergunta a um amigo brasileiro: “Você encontrou Maria ontem?”, é quase certo que ouvirá como resposta: “Encontrei”/”Não, não encontrei”. Note que a posição de objeto direto não foi preenchida. A resposta foi dada apenas com o verbo. Um falante português, por sua vez, responderia à pergunta feita por você desta forma: “ Encontrei-a”/”Não a encontrei”. Cyrino (2001), examinando as diferenças entre o PE e o PB em relação a esse fenômeno, analisou anúncios de revistas portuguesas e brasileiras, observando 76% de uso de objeto não preenchido no PB contra apenas 3% no PE. A autora confirma, então, que o preenchimento do objeto é uma característica do PE enquanto o apagamento caracteriza o PB. Assim como o uso do objeto nulo, o preenchimento do objeto direto de terceira pessoa por um pronome pessoal do caso reto é bastante comum no português brasileiro. Para entender melhor esse fenômeno, relembre a pergunta que você fez ao seu amigo: “Você encontrou Maria ontem?”. Outra opção de resposta a ser dada por ele é: “Encontrei ela sim”/”Não, não encontrei ela”. Embora muito comum entre nós, falantes do PB, essa construção é descrita como erro pela gramática tradicional, uma vez que o pronome pessoal reto ela, que está preenchendo a posição de objeto direto, deve
algumas exceções que você pode consultar em qualquer boa gramática do português. Como você sabe, cabe ao pronome oblíquo (me, te, o, a, nos etc.) a função de objeto direto, segundo a prescrição tradicional. O falante de PE recorreria a esse pronome e diria: “Encontrei-a”/”Não a encontrei”. Diante disso, muitas pessoas tenderiam a pensar que os falantes de português falariam melhor do que os brasileiros, que, quase sempre, optam pela construção com
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desempenhar, segundo a prescrição normativa, a função de sujeito da oração, salvo
o pronome reto. Você, entretanto, já conhecedor da ideia de que não há maus falantes de sua língua materna, não concorda com esse pensamento. Já sabemos que “[…] do ponto de vista linguístico não há hierarquias entre as variedades de uma língua, não há normas mais ou menos correctas” (MIRA MATEUS, 2002, p, 24). Seguindo o ponto de vista expresso por Mira Mateus (2002), podemos dizer que o fato de os falantes de PE usarem construções mais próximas da norma-padrão não significa que falem melhor do que os brasileiros. Podemos acrescentar ainda: não significa que o português em Portugal não sofra variações. Um exemplo dessa variação experimentado pelo português em terras d’além mar é o uso do pronome ele expletivo1, que, segundo Cunha e Cintra (1984, p. 284), aparece “na linguagem popular ou popularizante de Portugal”, funcionando “como sujeito gramatical de um verbo impessoal, à semelhança do francês il (il y a)”. Veja alguns exemplos de construções correntes no PE, mas agramaticais no PB.
“Hoje há nuvens, hoje está o céu nublado”. Ele aqui nem se diz nublado, eu cito-lhe até a palavra que aqui se emprega: “nuvrado”. (Porto de Espada, CORDIAL AAL69)
O Santo mais festejado aqui? Ele agora já não festejam santos nenhuns, nem resguardam nada!... (Odeleite, in Segura da Cruz 1967, p. 152)
Nos exemplos acima, o pronome ele não retoma um substantivo mencionado anteriormente, como é de se esperar em seu uso corrente no português. Nesses casos, a função é apenas enfática e a sua exclusão não traz prejuízo à frase. Bem, poderíamos ampliar a exemplificação acerca da variação no PE, entretanto cremos que você já esteja convencido de que a variação é condição normal de qualquer língua. Passemos, então, à proposta desta seção: comparação entre o português europeu e o português brasileiro. Mira Mateus (2002) aponta algumas diferenças entre o PE e o PB nos níveis fonético-fonológico e morfossintático, as quais são aqui reproduzidas.
a) Nível fonético-fonológico
1
Um elemento expletivo enfatiza a informação sem, contudo, ser indispensável ao sentido da frase.
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Vogais átonas: No Brasil, quer esteja em posição átona, quer em posição tônica, o tim-
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posição átona, a vogal sofre uma redução. Veja só: nas palavras “fita”, “pulo” e “gato”, as
bre (abertura) da vogal permanece inalterado. Em Portugal, por sua vez, quando em vogais destacadas são tônicas e, por isso, são pronunciadas da mesma forma nas duas variedades. Em “fitinha”, “pulinho” e “gatinho”, essas vogais passam a átonas, de modo que, no PE, são pronunciadas com mais brevidade. Em algumas variedades do PE, essa redução pode chegar à neutralização e, por causa disso, a palavra “diferente” pode ser pronunciada da mesma forma que “de frente”.
Quanto à tonicidade, as vogais podem ser tônicas e átonas e quanto ao timbre (abertura da boca), podem ser abertas, fechadas e reduzidas. Na redução das vogais, estes segmentos perdem abertura e intensidade.
/t/ e /d/ antes de /i/ (tido, dia, ditar) e de /e/ pós-tônico (pede, bate): No PB, esses fonemas são realizados como [t∫],
2
e, no PE, como [t], [d]. Salienta-se que, em algumas
localidades do Brasil, em cidades do Nordeste, como Recife, João Pessoa, Aracaju, Juazeiro, é muito comum a pronúncia [t], [d].
/l/ em final de sílaba (maldade, animal): No Brasil, a regra para a pronúncia desse fonema é a semivocalização [u] (maudade, animau), enquanto em Portugal a pronúncia é
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realizada como [l].
Sequências de consoantes: Na pronúncia brasileira, é comum a introdução de uma vogal epentética3 (abisurdo, afita, pineu), diferentemente da europeia, em que se pronunciam as duas consoantes seguidas (absurdo, afta, pneu).
b) Nível morfossintático Colocação dos pronomes átonos: No PB, usa-se quase sempre a próclise4 (Me diga uma coisa. Você se senta aí.). No PE, a regra é a colocação em ênclise (Diga-me uma coisa. Você senta-se aí.).
Utilização de fazer, ter e haver: Em português brasileiro, o uso comum é “Ele está em Paris faz anos”, “Ele se licenciou tem dois meses”, “Tem fogo naquela casa” e, em português europeu, “Ele está em Paris há anos”, “Ele licenciou-se há dois meses”, “Há fogo naquela casa”.
Possessivo e artigo: Em português brasileiro, a regra é a ausência de artigo diante do possessivo (“Vou ver meu irmão.” “Não conheço tua mulher.”), enquanto no PE é a presença do artigo (“Vou ver o meu irmão.” “Não conheço a tua mulher.”)
2
Pronúncia semelhante a “tchia” e “djia”, respectivamente, contrastando com “tia” e “dia”, em que a língua fica entre os dentes.
3
A epêntese é o acréscimo de um fonema no interior da palavra.
4
Ocorre próclise quando os pronomes oblíquos átonos - me, te, se, o, a, lhe, nos, vos, os, as, lhes - são colocados antes do verbo e
ênclise quando são colocados depois do verbo.
das ao vocabulário da língua, são inúmeras. Segundo Teyssier (2001), desde o século XIX, usa-se o estudo do léxico para mostrar diferenças entre as duas variedades. Muitas dessas diferenças, ainda de acordo com o referido autor, se devem ao fato de, no Brasil, diversas palavras terem sido incorporadas ao português a partir de línguas africanas e indígenas. A seguir, veja alguns exemplos: palavras de origem indígena: capim, cupim, caatinga, curumim, guri, buriti, carnaúba, mandacaru, capivara, curió, sucuri, piranha, urubu, mingau, moqueca, abacaxi, caju,
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As particularidades do PE e do PB no nível semântico-lexical, isto é, relaciona-
Tijuca, etc. Como você viu na Aula 05, essas palavras designam lugares e elementos da flora e da fauna. palavras de origem africana: caçula, cafuné, molambo, moleque, orixá, vatapá, abará, acarajé, banguê, senzala, mocambo, maxixe, samba. No léxico, a influência africana relaciona-se a elementos do candomblé, da cozinha de influência africana, do universo das plantações de cana, do universo de vida dos escravos.
As diferenças lexicais não param por aí, estendendo-se a diversos campos semânticos. Alimentação claras em neve / claras em castelo sanduíche / sande pizza / piza suco / sumo
Vestuário calcinha / cueca short / calções cueca / cueca, boxers meias /meias, peúgas
Higiene e limpeza absorvente/penso higiênico água sanitária / lixívia descarga / autoclismo vaso sanitário / sanita
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Não podemos deixar de mencionar o uso das formas de tratamento como diferenciador do português do Brasil e do europeu. Aqui, a distinção entre tu e você é restrita a algumas regiões, contudo, em Portugal, esse constraste é generalizado: usase tu no trato com interlocutores com quem se tenha algum grau de intimidade e você nas relações de respeito/cortesia. Você viu que são numerosas as diferenças entre o PE e o PB. Agora, pense bem: são elas suficientes para caracterizarem duas línguas distintas? Ao longo do tempo, muitas foram as respostas a esta questão. No fim do século passado, Leite de Vasconcelos, dialetólogo português, considerava o português brasileiro um dialeto do PE. O emprego do termo dialeto para designar o português não é adequado, visto que está subjacente uma “idéia de dependência (mais unilateral que recíproca) entre o dialeto, modalidade linguística tida como inferior e o idioma nacional, concebido sempre como a síntese superior” (STEPANOV, 1971, p. 1166 apud CUNHA, 1985, p. 64). Serafim da Silva Neto, filólogo brasileiro, entendia o PE e o PB como duas variedades da mesma língua, ou seja, para o filólogo, não há dúvida de que a língua falada no Brasil é a portuguesa, com as variações locais que não comprometem a sua unidade . Na visão de Silva Neto, tanto no Brasil como em Portugal, a língua apresenta diferenças internas, de modo que não se justifica a defesa de uma língua brasileira. Linguistas como Galves (2001) e Tarallo (1993) advogam a existência de duas línguas
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distintas, embasando sua defesa na ideia de que as diferenças entre elas são tantas a ponto de caracterizarem dois sistemas linguísticos. Não é objetivo desta aula tomar partido de alguma posição, entretanto é importante dizer que, a depender do conceito de língua que se adote, na definição de uma língua, não estão envolvidas apenas questões linguísticas, mas também políticas e ideológicas.
Variação espacial no português brasileiro É claro que você já sabe que a língua é falada de forma diferente nos diversos espaços que ela ocupa. Veja só o caso do Brasil. Como você já viu na Aula 04, em decorrência de fatores sociais e históricos, o português brasileiro seguiu um caminho próprio, distanciando-se da variedade europeia. Internamente, ou seja, no espaço brasileiro, as diferenças também são notórias. São muitas as maneiras de falar o português brasileiro. Cada uma delas tem suas características fonológicas, sintáticas, semânticas e morfológicas. Essas diferenças linguísticas no espaço geográfico, como você já sabe são chamadas variações diatópicas, as quais também são chamadas dialetos regionais. Nos dialetos regionais, encontramos o que se conhece por regionalismos, palavras e expressões de uma dada região. Veja um exemplo desse falar regional na voz do poeta nordestino Ismael Gaião da Costa:
Tem um jeito diferente Que a outro não se iguala Alguém chato é Abusado Se quebrou,
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O Nordeste é excelente
Tá Enguiçado É assim que a gente fala [...]
O pão-duro é Amarrado Verme no bucho é Lombriga Com raiva Tá Com a Bixiga E com medo é Acuado Tocar de leve é Triscar O último é Derradeiro E para trocar dinheiro Nós falamos Destrocar Tudo que é bom é Massa O Policial é Praça Pessoa esperta é Danada Disponível em: <http://culturanordestina.blogspot.com.br/2009/03/uma-versao-nordestina-de-falar.html>. Acesso: 13 nov. 2012.
O poeta ressalta as particularidades linguísticas do Nordeste apenas no nível lexical, mas você já sabe que essa diferença se estende aos outros níveis da língua. É tarefa da Dialetologia estudar os sistemas linguísticos sob o ponto de vista dessa variação diatópica, sem, contudo, desprezar os fatores sociais que determinam as especificidades linguísticas. Isso quer dizer que a Dialetologia estuda a maneira como a língua é usada em diferentes lugares, mas também se preocupa, por exemplo, em investigar as diferenças de falar entre os indivíduos de faixas etárias diferentes ou com diversos níveis de escolarização. Além dos dialetos regionais, podemos falar também em dialetos sociais, que correspondem às formas de falar de um grupo social, com suas características fonológicas, sintáticas, semânticas e morfológicas. Na Aula 08, você entenderá melhor essa variação social - ou diastrática - no português brasileiro.
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Retomando a afirmação que fizemos na Aula 01, dizemos que toda língua é, então, um conjunto de dialetos regionais e sociais. No Brasil, contrariamente ao que acontece em Portugal, as diferenças sociais são mais evidentes do que as regionais. Sobre isso, Teyssier (2001) assinala que:
A realidade, porém, é que as divisões ‘dialetais’ no Brasil são menos geográficas que sócio-culturais. As diferenças na maneira de falar são maiores, num determinado lugar, entre um homem culto e o vizinho analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nível cultural originários de duas regiões distantes uma da outra” (TEYSSIER, 2001, p. 98).
Entendemos, então, que dois soteropolitanos de níveis sociais diferentes apresentarão mais diferenças na maneira de falar do que um soteropolitano e um gaúcho, por exemplo. Assim, as diferenças diatópicas no Brasil existem, mas são menos visíveis do que as sociais. Em 1920, o dialetólogo Amadeu Amaral já atentava para a existência dessas diferenças regionais ao afirmar que:
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O falar do Norte do país não é o mesmo que o do Centro ou o do Sul. O de S. Paulo não é igual ao de Minas. No próprio interior deste Estado se podem distinguir sem grande esforço zonas de diferente matiz dialetal - o Litoral, o chamado “Norte”, o Sul, a parte confinante com o Triângulo Mineiro (AMARAL, 1920, p. 43).
Na segunda metade do século XIX, a delimitação de áreas dialetais no Brasil já despertava interesse de dialetólogos, que empreenderam esforços no sentido de definir fronteiras linguísticas no interior do PB. As primeiras propostas foram feitas por Júlio Ribeiro, em 1891, e Rodolfo Garcia, que foram bastante criticadas. Em 1922, Antenor Nascentes apresenta sua primeira proposta de divisão dialetal do Brasil, a qual sofre alterações em 1933 e 1953. Esta última, segundo o próprio autor, é “um tanto próxima da verdade”. Tomando como critério a realização aberta das vogais pretônicas5 [e] e [o] ao Norte e sua inexistência ao Sul, bem como a cadência (pronúncia) diferente, cantada ao Norte e ‘descansada’ ao Sul, Nascentes (1953) propõe a divisão do território brasileiro em dois grupos de falares: o falar do Norte e o falar do Sul, cujo limite se faz da foz do rio Mucuri, entre Espírito Santo e Bahia, até o estado de Mato Grosso. De acordo com Nascentes (1953), palavras como relâmpago, neblina, noventa e coração teriam a pronúncia das vogais pretônicas [e] e [o] mais fechada no falar do Sul e mais aberta no falar no Norte. 5 O - pronunciado como em nó; o - pronunciado como em novo; E - pronunciado como em pé; e - pronunciado como em ipê.
(1953). Figura 2 - Áreas dialetais do PB propostas por Nascentes (1953)
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Acompanhe, no mapa a seguir, a divisão dialetal proposta por Nascentes
Fonte: Ferreira e Cardoso (1994, p. 18)
Como indica o mapa, no subfalar do Norte, encontram-se os falares amazônico (Acre, Amazonas, Pará e noroeste de Goiás); nordestino (Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e o nordeste de Goiás). No subfalar do Sul, estão os falares baiano (Sergipe, Bahia, Minas Gerais – norte, nordeste e noroeste –, Goiás – parte leste); fluminense (Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais – zona da Mata e pare do leste); mineiro (centro, oeste e parte do leste de Minas) e o sulista (São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais – sul e triângulo mineiro –, Goiás –sul – e Mato Grosso). Nascentes delimitou, ainda, a existência de um território ‘incaracterístico’ - indefinido -, despovoado na época, que corresponde à fronteira boliviana e à fronteira de Mato Grosso com Amazonas e Pará. Atualmente, não há uma proposta de divisão dialetal do PB, como assinala Mota (2006), mas muitos estudiosos têm analisado fatos linguísticos característicos de diferentes regiões do Brasil. Essa preocupação com a investigação da variação diatópica, ainda de acordo com a autora, resultou na publicação de diversos atlas linguísticos regionais: Atlas Prévio dos Falares Baianos, o Esboço de um Atlas Linguístico de Minas Gerais, Atlas Linguístico da Paraíba, Atlas Linguístico de Sergipe, Atlas Linguístico do Paraná, Atlas Linguístico e Etnográfico da Região Sul, Atlas Linguístico de Sergipe II, Atlas Linguístico Sonoro do Pará, Atlas Linguístico do Ceará.
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Um atlas linguístico, de forma semelhante a um atlas geográfico, reune um conjunto de mapas. Nestes mapas, registram-se fenômenos relevantes do falar de uma determinada área geográfica, definindo-se, assim, isoglossas - limites imaginários que marcam as áreas em que um fenômeno linguístico acontece.
Alguns trabalhos foram realizados com vistas a atestar a divisão dialetal elaborada por Nascentes (1953). Um estudo bastante conhecido é o de Cardoso (1986), que examina a distribuição das pretônicas em 16 estados, demonstrando que, de modo geral, a proposta de Nascentes é confirmada:
predominância de vogais abertas nos dois estados do falar (Acre e Amazonas), em quatro do falar nordestino (Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas) e em três do falar baiano (Sergipe, Bahia e parte setentrional de Minas Gerais);
predominância das vogais fechadas nas áreas do sul do país, no falar fluminense (Rio de Janeiro e parte de Minas Gerais), no mineiro (centro-oeste e parte leste de Minas Gerais) e no sulista (parte de Minas – sul e Triângulo Mineiro –, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul).
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Além dos atlas citados e de outros projetados ou em andamento, o Brasil, embora com atraso em relação a vários países da Europa, dispõe de um projeto de alcance nacional, cujo interesse é delimitar as variedades do português brasileiro. Trata-se do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Projeto ALiB), cuja criação foi regulamentada em março de 1952, mas somente em 1996 foi retomado. Reunidos na Universidade Federal da Bahia, durante o seminário “Caminhos e perspectivas da geolinguística no Brasil”, um grupo de pesquisadores lançaram a ideia da elaboração do um atlas nacional, que, de acordo com Mota (2006, p. 329),
virá, certamente, preencher as lacunas hoje ainda existentes, permitindo uma proposta de subdivisão do País em áreas dialetais elaborada com rigor científico, a partir da análise de dados empíricos recolhidos com a mesma metodologia em todo o País, sob coordenação nacional.
A proposta do ALiB é coletar amostras de fala de 1100 indivíduos de 250 localidades de todo o país, das quais 234 já foram concluídas. Sem dúvida, o Atlas Linguístico do Brasil representará um avanço para os estudos linguísticos no país e deverá auxiliar professores de português no conhecimento de nossa realidade linguística.
rizam a diversidade linguística regional do português brasileiro. Aguarde!
Síntese Nesta aula, você compreendeu que o português, ao mesmo tempo em que mantém sua unidade, apresenta-se diversificado nos diferentes espaços por onde se
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Na próxima aula, você conhecerá alguns dos aspectos linguísticos que caracte-
espalhou. Ao entrar em contato com algumas diferenças entre as variedades europeia e brasileira, apresentadas ao longo do texto, foi-lhe possível observar que nenhuma delas pode ser vista como melhor ou pior do que a outra. Por fim, você começou a ser apresentado ao campo da variação espacial do português brasileiro, tomando conhecimento da divisão dialetal proposta por Antenor Nascentes e dos atlas linguísticos, que buscam registrar a variação espacial e social do PB.
questão para Reflexão Observe a fala de pessoas de diferentes regiões do país - seus vizinhos, amigos, personagens de novelas, apresentadores de telejornais ou outros programas de tv etc. O que você nota em relação à pronúncia das vogais médias pretônicas [e] e [o]? Você
________________________ ________________________ te? ________________________ Continue pensando sobre a realização das vogais pretônicas no PB: o que você ________________________ responderia a um aluno que insiste em dizer que a forma como ele pronuncia as vo- ________________________ gais [e] e [o] é a correta? ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Leitura indicada ________________________ ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato. Português do Brasil: a variação que vemos e a variação ________________________ ________________________ que esquecemos de ver. In: _____. O português da gente: a língua que estudamos, ________________________ a língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2007. ________________________ ________________________ ________________________ Sites Indicados ________________________ ________________________ http://cvc.instituto-camoes.pt/cpp2/index.html ________________________ ________________________ http://www.alib.ufba.br ________________________ ________________________ ________________________ Referências ________________________ ________________________ acha que Nascentes tinha razão quanto à abertura das vogais pretônicas no Nordes-
AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira: gramática, vocabulário. 4. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1982.
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CARDOSO, Suzana Alice. Tinha Nascentes razão? Estudos Lingüísticos e Literários, 5, Instituto de Letras/ UFBA, 1986, p. 47-59.
CYRINO, Sonia M.L. Algumas diferenças entre o português brasileiro e o português europeu e a sua relação com a mudança sintática no português brasileiro. Signum, 4, 2001, p. 95-112.
CUNHA, Celso. A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
CUNHA, Celso; CINTRA, Luís Filipe Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Sá da Costa, 1984.
DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de lingüística. São Paulo: Cultrix, 1978.
FERREIRA, Carlota; CARDOSO, Suzana. A dialetologia no Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.
GALVES, Charlotte. Ensaios sobre as gramáticas do português. Campinas, SP: Unicamp, 2001.
MIRA MATEUS, Maria Helena. Unidade e diversidade da língua portuguesa. In:______. A face exposta da língua. Lisboa: IN-CM, 2002.
MOTA, Jacyra Andrade. Áreas dialetais brasileiras. In: CARDOSO, Alice Marcelino; MOTA, Jacyra Andrade Mota; MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Org.). Quinhentos anos de história lingüística do Brasil. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 2006. p.321-356.
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NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. 2. ed. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953.
RAPOSO, Eduardo Paiva. Algumas observações sobre a noção de “língua portuguesa”. Boletim de Filologia, Lisboa, 29,1984, p.585-592.
TEYSSIER, Paul. O português do Brasil. In: ______. História da língua portuguesa. Tradução de Celso Cunha. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TARALLO, Fernando. Diagnosticando uma gramática brasileira: o português d’aquém e d’além mar ao final do século XIX. In: KATO, Mary; ROBERTS, Ian. O português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas, SP: Unicamp, 1993 p. 69-105.
GUÊS BRASILEIRO Autora: Gilce de Souza Almeida
“O falar do Norte do país não é o mesmo que o do Centro ou o do Sul. O de S. Paulo não é igual ao de Minas. No próprio interior deste Estado se podem distinguir sem grande esforço zonas de
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AULA 07 - VARIAÇÃO ESPACIAL DO PORTU-
diferente matiz dialetal.”
(Amadeu Amaral)
Bem-vindo à nossa aula sobre a variação espacial do português brasileiro!
Continuando nosso passeio pelos espaços onde se fala português, nossa parada agora é no Brasil. Na aula anterior, vimos que Antenor Nascentes propôs uma divisão do Brasil em cinco áreas dialetais com base, principalmente, na pronúncia das vogais pretônicas /e/ e /o/. Desde então, muitos estudos passaram a se preocupar em comprovar as fronteiras dos falares definidos por Nascentes, observando, para tanto, fenômenos linguísticos diversos. O interesse desta aula não é discutir a validade dessa divisão, mas apresentar fenômenos linguísticos que diferenciam áreas geográficas no país. Sem dúvida, você já conseguiu descobrir a região de procedência de um falante simplesmente por ouvi-lo pronunciar algumas palavras ou nomear algo e, se não conseguiu ser preciso na identificação, ao menos deve ter percebido algumas diferenças em relação ao modo de falar de sua região. Vamos conhecer algumas dessas diferenças nas próximas seções.
UM PAÍS DE MUITOS FALARES
Por muito tempo, foi corrente o mito de uma pretensa unidade linguística brasileira, alimentado pela ideia da intercompreensão entre falantes de diversos pontos do país. O argumento, contudo, é precário e cai por terra quando nos lembramos de que é possível a intercompreensão entre brasileiros e portugueses e não há quem conteste aí a existência de diferenças. Diatopicamente, o Brasil, apesar de suas dimensões continentais, não tem diferenças linguísticas tão acentuadas a ponto de definirem dialetos particulares, como ocorre em países como Itália, Espanha e Portugal. Conforme já visto, as diferenças linguísticas aqui são muito maiores entre indivíduos que vivem na mesma região, mas pertencem a classes sociais distintas do que entre indivíduos que vivem em regiões diferentes. Isso quer dizer que o fator social, muitas vezes, sobrepõe-se ao diatópico. Mas é claro que as diferenças do ponto de vista geográfico existem e não escapam à nossa percepção.
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Segundo Ferreira e Cardoso (1994), uma língua apresenta três tipos fundamentais de características internas: as diatópicas, as diastráticas e as diafásicas. No primeiro caso, como você já sabe, estamos falando das diferenças linguísticas entre áreas geográficas distintas; no segundo, referimo-nos aos aspectos da estrutura social que interferem na maneira como o indivíduo usa a língua (você estudará sobre isso na Aula 09); a terceira característica diz respeito à influência da situação de comunicação e dos interlocutores envolvidos na interação, sobre o que já falamos na Aula 01. O foco da nossa atenção agora é a questão diatópica, que, no Brasil, como você já sabe, é menos saliente do que a social. É claro que, num país tão grande como o nosso, a língua receberá marcas bem particulares em cada região, de acordo com a história social e cultural que se desenvolveu. É de se esperar, por exemplo, que o sul do país, que vivenciou um processo de povoamento mais tardio (concluído em meados do século XX) do que outras regiões e que contou com a presença de imigrantes europeus chegados a partir do século XIX, tenha características linguísticas diferentes do restante do país. Mesmo dentro da região Sul, há diferenças diatópicas motivadas por diversas questões sócio-históricas, tais como: a presença de açorianos no leste de Santa Catarina; a existência de fronteiras políticas com países de fala hispânica, no extremo sul, e o consequente contato português-espanhol; o contato entre paulistas e gaúchos em dois fluxos migratórios opostos, o papel das rotas dos tropeiros paulistas, no comércio do gado; a existência de áreas bilíngues originadas do estabelecimento de imigrantes não-lusos a partir do
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século XIX e as migrações internas no processo de ocupação da região (ALTENHOFEN, 1995). As diferenças linguísticas espalhadas por todo o território brasileiro motivaram e têm motivado estudos que objetivam delimitar áreas dialetais. Tal empreendimento é notório desde a primeira metade do século XX, como visto na aula anterior, e foi muito bem ressaltado por Amaral (1920, p. 43), ao afirmar que:
Fala-se muito num “dialeto brasileiro”, expressão já consagrada até por autores notáveis de além-mar; entretanto, até hoje não se sabe ao certo em que consiste semelhante dialetação, cuja existência é por assim dizer evidente, mas cujos caracteres ainda não foram discriminados. Nem se poderão discriminar, enquanto não se fizerem estudos sérios, positivos, minuciosos, limitados a determinadas regiões.
Amaral (1920) menciona em sua fala a categorização do PB como dialeto do PE, que, como já vimos na Aula 06, não é adequada, e ressalta a necessidade de estudos precisos que possam definir as especificidades linguísticas das regiões. Esses estudos começaram a ser feitos na primeira metade do século XX, do que resultaram importantes contribuições, como O dialeto caipira, de Amadeu Amaral, O linguajar carioca, de Antenor Nascentes, e A língua do Nordeste, de Mário Marroquim. Na década de 60, podemos nos lembrar das primerias pesquisas linguísticas em áreas rurais iniciadas pelo professor Nelson Rossi e, em 1970, dos trabalhos para a descrição da norma cul-
objetivo era oferecer uma descrição dos usos linguísticos das cinco maiores capitais brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife e Porto Alegre). Nas próximas seções, apresentaremos alguns dados de estudos sobre a ocorrência de alguns fenômenos diatópicos.
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ta brasileira, com o surgimento do projeto Norma Urbana Culta (Projeto Nurc), cujo
A variação lexical no espaço brasileiro
A leitura do trecho abaixo, do escritor gaúcho Simões Lopes Neto, poderá causar certo estranhamento devido ao uso de formas regionais características do dialeto gaúcho:
Vancê pare um bocadinho: componha seus arreios, que a cincha está muito pra virilha. E vá pitando um cigarro, enquanto eu dou dois dedos de prosa àquele andante... que me parece que estou conhecendo ... e conheço mesmo!... É o índio Reduzo, que foi posteiro dos Costas, na estância do Ibicuí. (Simões Lopes Neto, Contos gauchescos e lendas do sul)
O léxico é o componente da língua que revela mais claramente as influências socioculturais do indivíduo. As palavras que usamos para designar os elementos que nos cercam são testemunhos da nossa visão de mundo, de influências étnicas e do ambiente físico e social da comunidade (SORBA; ISQUERDO, 2009). Por essa razão, as diferenças regionais de uma língua são bem visíveis no nível lexical. Percorrendo o Brasil de norte a sul, de leste a oeste, encontraremos denominações diferentes daquelas que conhecemos para muitas coisas. Em Salvador, por exemplo, para nomear a fruta cítrica, de cor alaranjada, que pode ser descascada sem auxílio de uma faca, usamos a palavra tangerina. Os falantes do Sudeste, por sua vez, usam mexerica, e os do Sul, bergamota ou vergamota. Muitos trabalhos com base na Dialetologia têm revelado as inúmeras diferenças lexicais no português brasileiro, fornecendo também informações sobre o caráter inovador e conservador do sistema lexical das comunidades pesquisadas. Bem, falaremos de alguns exemplos para que você possa compreender melhor essa ideia. Você conhece a brincadeira em que uma criança, com olhos vendados, tenta pegar as outras? Como a chama? Santos e Isquerdo (2009) realizaram um interessante trabalho sobre as formas de designação dessa brincadeira nas regiões Norte, Centro Oeste, Sul e Sudeste. A intenção das autoras era relacionar o uso das variantes a aspectos da história social das regiões onde os dados foram coletados. Aqui vale a pena relembrar que nesse tipo de
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estudo, aplicam-se questionários ou entrevistas aos falantes a fim de se obterem as formas linguísticas desejadas.
A carta linguística é um mapa da região estudada em que se registram os fatos linguísticos observados.
As ocorrências registradas no estudo foram, em ordem de maior frequência, cobra-cega, pata-cega, cabra-cega e brincadeira de cego. Acompanhe na carta linguística, a seguir, a distribuição dessas variantes nas regiões pesquisadas pelas autoras:
Figura 1 - Carta linguística das designações para cabra-cega em capitais brasileiras das regiões Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
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Fonte: Santos e Isquerdo (2009
Note que, na região Norte, é predominante o uso de cobra-cega entre quase todos os informantes do sexo masculino (representados pelo quadrado). Entre as mulheres (representadas pelos círculos) ocorrem pata-cega, cabra-cega e cobra-cega. A forma pata-cega aparece também no Sul. Cobra-cega predomina nas capitais do Sul e do Sudeste, sendo registrada também no Norte. Veja que cabra-cega é a única variante comum a todas as regiões. Observe que alguns informantes não deram respostas à questão, alegando não conhecerem a brincadeira. Segundo as autoras, trata-se principalmente de jovens do sexo masculino. A ausência de resposta deve-se, segundo Santos e Isquerdo (2009), ao fato de a brincadeira estar em desuso, em decorrência de limitação imposta pela vida moderna.
paço mais restrito, a Bahia. Para isso, recorreremos a dados do Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB - 1963), que foi o primeiro atlas linguístico publicado no Brasil. A carta de número 68 representa as variantes encontradas para a resposta à pergunta: Como se chama a peça do vestuário que serve para segurar os seios? Imaginamos que você conheça essa peça como sutiã, mas será que é essa a única denominação corrente em toda a Bahia?
89 Formação e Diversidade Sociolinguística da Língua Portuguesa
Vamos continuar exemplificando a variação lexical, examinando-a em um es-
Em estuddo realizado por Paim (2012), foram registradas nos dados do APFB as designações califom, corpinho, corpete, porta-seio, aperta-seio, sustenta-seio e guardaseio, cuja distribuição pode ser conferida no quadro a seguir:
Quadro 1 - Denominações para sutiã no APFB (1963)
Fonte: Paim (2012, p. 274)
Pelas informações do quadro, vê-se que a variante preferida, na maior parte das cidades pesquisadas para o APFB, é califom, registrado no dicionário Houaiss como regionalismo usual no Nordeste. Os dados do referido atlas foram coletados na década de 60, o que nos leva a questionar a vitalidade dessa variante ainda hoje. Embora mais presente na fala de indivíduos mais velhos, Paim (2012) observou a ocorrência desse item lexical nos dados do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) ao lado de outras formas - guarda-peito e corpete -, como se pode observar no quadro a seguir:
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Quadro 2 - Denominações para sutiã nos dados do Projeto ALiB (2003)
Fonte: Paim (2012, p. 276)
Sem dúvida, a nossa diversidade lexical é bastante expressiva e é um testemunho das experiências socioculturais e históricas. Como outras variações na língua, não há uma designação melhor ou pior. Existem, sim, aquelas a que, por razões sociais, atribuem-se menor ou maior prestígio.
A variação fonético-fonológica Esperamos que você esteja gostando de conhecer o português brasileiro mais detalhadamente. É bom que você perceba que, para além das regras que a gramática apresenta, há na língua uma riqueza de formas em variação que não podem ser desprezadas nas aulas de língua portuguesa. Do ponto de vista fonológico, há fenômenos linguísticos bastante peculiares a
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determinadas regiões. Nesta seção, conheceremos alguns deles. Fique atento!
Variação na pronúncia das consoantes /t, d/ antes da vogal [i]
As consoantes /t, d/, quando aparecem antes da vogal [i], como você já sabe, podem ser pronunciadas de duas maneiras: articulação dental ,
e a realização palatal -
,
,
,
, . Essa pro-
núncia é bem marcada diatopicamente. Na Paraíba, constata-se a articulação dental como lembrado por Hora (1997, p. 136): “Exemplos como rede, pote, cujas consoantes oclusivas em outros dialetos seriam fortes candidatas à palatalização, no dialeto pessoense, apresenta baixa probabilidade de aplicação da regra.” No Ceará, de acordo com estudo de Castro (1958), há duas áreas distintas no que tange à realização das consoantes oclusivas (/t, d/) antes de [i]: “Ceará litorâneo” e “parte oeste do Ceará”, com predominância das variantes palatalizadas e o “resto do interior cearense, principalmente a fronteira com Pernambuco e Paraíba”, que acompanha a pronúncia do d dental. Em Salvador e no Rio de Janeiro, a ocorrência de variantes palatalizadas é categórica antes da vogal [i]. Na região Sul, a palatalização está presente no Paraná, excetuando-se as regiões em que a vogal final de palavras como
,
não sofrem alteamento, ou seja, não são pronunciadas como
[i]. Em Florianópolis, não ocorre palatalização, enquanto no Rio Grande do Sul, segundo Bisol (1985), a palatalização é categórica.
Outra característica fônica que merece destaque é a pronúncia das consoantes e /r/, que podem ocorrer no início da sílaba ou no final e em encontro consonantal. A consoante
pode ocorrer em português brasileiro como:
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Variação na pronúncia das consoantes
O padrão nacional é a forma vocalizada, que antes recebia estigma. Assim, em grande parte do país, fala-se Brasiu, funiu, barriu, pronúncias que já foram consideradas erradas na língua, mas hoje são de uso corrente por todos os segmentos sociais em todos os contextos de fala. Callou, Leite, Moraes (1995), em estudo com base em dados das cinco capitais do NURC 70 e 90 (Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre), observam que: Há predomínio da forma vocalizada em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Em Porto Alegre, maior incidência de realizações velares
e alveolares, sendo a
realização alveolar praticamente exclusiva dessa localidade.
Algumas das realizações da consoante líquida não lateral /r/ no PB são:
O trabalho de Callou et alli (1995), com base em dados do NURC, evidencia um forte condicionamento geográfico na distribuição das variantes. De um lado, São Paulo e Porto Alegre com variantes vibrantes; de outro, Salvador, Recife e Rio de Janeiro com fricativas. O tepe
ocorre em final de sílaba na fala de indivíduos de algumas regiões do
país, como, por exemplo, nas variedades paulistas. Concorrendo com esta pronúncia, ocorre em alguns dialetos do português uma variante fricativa r, que corresponde a um som aspirado como em hot, e, em outros, ocorre o conhecido r retroflexo (semelhante ao r de car, em inglês). Em Salvador, dizemos ca[h]ta, ma[h]ta, mas em Curitiba, por exemplo, dizem
,
.
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São Paulo e Porto Alegre diferem de Rio de Janeiro, Recife e Salvador, pois nestes locais quase não ocorre vibrante simples. Os maiores índices de fricativa estão em Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
Variação na pronúncia das consoantes /s, z/
As consoantes /s/ e /z/, em final de sílaba ou em sequências como três livros, no português brasileiro, realizam-se como alveolares: ra[s]pa, de[z]de e ,
palatais
. Tais realizações podem distinguir áreas brasileiras,
como a carioca, em que há predominância das variantes palatais; a mineira, marcada pela presença das alveolares. Há, ainda, áreas em que ocorre a variação entre alveolares e palatais, condicionada por fatores internos e externos. Em algmas regiões, a ocorrência dessas variantes é condicionada pela posição em que o segmento fônico aparece no vocábulo – em sílaba interna, em sílaba final, diante de consoante de vocábulo seguinte e em sílaba final antes de pausa. Noll (1999, p. 45) assinala que, na região norte, encontram-se as duas variantes. O autor afirma que, em Belém, registra-se “um chiamento comparável ao do Rio de Janeiro”. No Nordeste, registram-se as palatais apenas em determinados contextos, en-
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tre os quais se destacam aqueles em que se encontram consoantes dentais (/t, d, n, l/), como em teste, desde, transporte, os lábios. Castro (1958) refere-se à existência de realizações palatais, no Ceará, em posição medial diante de /t, d, n, l/ e realizações alveolares sonoras antes de /b, g, m, r, v/ e surdas quando o “s precede as demais letras ou está no fim das palavras (embora sem a ênfase habitual dos belo-horizontinos, por exemplo)”. Em Natal, no Rio Grande do Norte, encontram-se variantes palatais em contextos coincidentes com os do Ceará, em posição medial de palavra, diante das oclusivas dentais não sonoras e sonoras (/t,d/): festa, desde; em final de palavra, diante das consoantes anteriores nasal e lateral (/n,l/) e das oclusivas dentais (/t,d/) iniciais de palavra seguinte, como em eles trabalham, todos dois, dois livros, daqueles núcleos. Na Bahia, há registro das variantes palatais e dentais, com predominância destas, tanto em sílaba interna quanto em final de palavra diante de pausa. Em Sergipe, há predominância de palatais apenas em sílaba interna (67%), contexto favorecedor dessas realizações, no qual se admite tenha se iniciado o processo de palatalização. As alveolares registram-se com um percentual de 73% em final de vocábulo diante de pausa.
A VARIAÇÃO MORFOSSINTÁTICA
Os fenômenos fônicos e a variação lexical representam mais claramente as diferenças diatópicas no Brasil, contudo, há diferenças de região para região também
referindo à organização e ao papel que as palavras exercem na frase. Quando falamos, organizamos frases, não é isso? Mas as nossas frases não são organizadas de qualquer modo. As palavras são combinadas entre si. Ao emitir uma mensagem verbal, o emissor procura transmitir um significado completo e compreensível. Para isso, as palavras são relacionadas e combinadas entre si.
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do ponto de vista sintático. Só para lembrar, quando falamos em sintaxe, estamos nos
O artigo definido diante de nomes próprios (antropônimos) e possessivos
O uso do artigo diante de antropônimos (nomes de pessoas) e possessivos é facultativo em português:
Não vi Maria ontem / Não vi a Maria ontem. Traga meu livro / Traga o meu livro.
No caso dos antropônimos, como assinalam Cunha e Cintra (1984) e Bechara (2003), o emprego do artigo definido está associado ao grau de familiaridade (ou afetividade) do falante com a pessoa com cujo nome se emprega o artigo. No português brasileiro, contudo, essa não é uma regra de aplicação geral, ou seja, não é categórica. Para ilustrar o que estamos dizendo, basta lembrar que em Salvador, por exemplo, o uso do artigo diante do antropônimo não está na norma do falante, diferentemente de Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre. Podemos dizer, então, que esse é um fenômeno influenciado pela região de origem do falante. Callou (2000) realizou um estudo extensivo do uso variável do artigo antes de antropônimos, conjugando análise sincrônica e diacrônica. Interessam-nos aqui os resultados referentes ao estudo sincrônico, que controlou a influência de variáveis sociais e pôs em destaque a variação geográfica, observada em dados orais de diferentes capitais brasileiras (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife). A autora observou que no português brasileiro a frequência de artigo antes de antropônimos aumenta à medida que vamos do Nordeste ao Sul do Brasil. São Paulo, com 87% de uso do artigo, e Porto Alegre, onde se observou 79%, opõem-se a Recife, com 17%, e Salvador, com 32%. O Rio de Janeiro ocupa uma posição intermediária, com 43%.
O uso de tu e você
Ao consultar o quadro dos pronomes pessoais nas gramáticas tradicionais da língua portuguesa, você verificará que, para a representação da segunda pessoa do singular, o pronome tu continua a figurar sozinho como pronome reto. O pronome você, corrente em todo o Brasil desde o início do século XX, não é incluído no quadro, figurando apenas em notas e observações. Cunha e Cintra (1984), por exemplo, reconhecem o uso generalizado de você em todo o país para tratamento em situações de intimidade e também fora desse campo. Os referidos gramáticos assinalam que o
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pronome tu tem seu uso ao extremo sul do país e a alguns pontos da região Norte. O que você acha disso? Já parou para pensar sobre a distribuição deste pronome no Brasil? Façamo-lo agora. A tabela a seguir, reproduzida de Cardoso (2008), apresenta a distribuição das formas tu e você em seis capitais do Nordeste e duas do Sudeste:
Tabela 01 – Distribuição diatópica dos pronomes tu e você
Localidades
TU Ocorr./total
Pronomes ARACAJU MACEIÓ RECIFE SALVADOR JOÃO PESSOA TERESINA SÃO PAULO RIO DE JANEIRO TOTAIS
03/49 04/64 06/37 -09/69 05/37 ---
6 6 16 0 13 13 --27/712
%
VOCÊ Ocorr./total 46/49 60/64 31/37 85/85 60/69 32/37 189/189 182/182
%
94 94 84 100 87 87 100 100 685/712
Fonte: Cardoso (2008)
Pelos dados mostrados há um forte condicionamento diatópico no uso dos pronomes tu e você. Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro aparecem sem registros do pronome tu, opondo-se a Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa e Teresina, onde alternam-se as duas formas de tratamento. Vale lembrar que há estudos que atestam o uso
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desse pronome na fala carioca. Embora Salvador não tenha apresentado registros de tu, sabe-se que essa é uma forma bem recorrente em cidades do interior da Bahia, como Feira de Santana e Santo Antônio de Jesus. Na região Sul, os estudos têm atestado a alternância tu/você em Florianópolis e Porto Alegre. O tu catarinense é mais frequentemente acompanhado do verbo com marcação de pessoa e o porto alegrense aparece, na maior parte das vezes, sem a concordância. Em Curitiba, o uso de você é categórico.
O uso de te e lhe
Outro fenômeno marcado diatopicamente no português brasileiro é o uso dos pronomes te e lhe como objeto direto. Você sabe que o pronome te pode exercer na frase as funções de objeto direto e de objeto indireto, a depender da transitividade verbal, como exemplificam, respectivamente, as frases a seguir:
Não te vejo desde o Natal. Não te entregarei os livros amanhã.
Um soteropolitano pode dizer essas frases de maneira diferente, usando o pro-
de objeto indireto, de acordo com a tradição normativa, como é possível dizer “Não lhe vejo desde o Natal”? Pois bem! Saiba que essa é uma construção bastante comum em todo o português falado na Bahia e no Nordeste de modo geral. Ramos (1999) identifica o Nordeste do Brasil como a área em que esse fenômeno ocorre com mais intensidade, de modo que passa a ser esse uso de lhe descrito por alguns pesquisadores como marca dialetal no PB. Mário Marroquim (1934) registrou o fenômeno na região Nordeste, particularmente nos estados de Alagoas e Pernambuco e Almeida (2009),
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nome lhe no lugar de te. Você deve estar se questionando: Se o lhe representa a função
em Salvador. Ramos (1999) descreve a existência de três comportamentos distintos em relação ao uso de lhe como objeto direto no PB, os quais estão relacionados à forma de tratamento usada (tu/você) e à relação - intimidade ou respeito - que há entre os falantes:
Nas regiões em que se usa você como expressão universal de tratamento, usa-se lhe para representar o objeto indireto de segunda pessoa numa relação de respeito/cortesia e te para o trato mais familiar e informal. Segundo a autora, este uso é comum no eixo Rio-São Paulo. Reproduz-se de Ramos (1999, p. 85) o exemplo abaixo:
... eu vou entrar nesse negócio... se você não me vender... eu tenho poder... e posso concorrer com você... posso concorrer com você e te derrubar... (NURC/RJ).
Há regiões em que você é a forma de tratamento generalizada e o lhe substituiu o te como objeto direto e como objeto indireto. Esse uso corresponde, segundo a autora, aos estados de Maceió, Recife, Salvador e João Pessoa; Há regiões em que se manteve a distinção tu-você para tratamento íntimo/familiar e de respeito/cortesia, respectivamente. Nessas áreas, há também distinção entre o uso de te e lhe. O primeiro é usado como pronome correspondente a tu e o último como correspondente de você. Esse uso é comum na região Norte e no estado do Maranhão. Acompanhe os exemplos, a seguir, extraídos de Ramos (1999):
Tia, mamãe está lhe chamando. Mana, queres que te telefone à noite?
Observe que o uso do lhe como objeto direto ocorre no Brasil como um todo, mas, como apontado em muitos estudos, sua frequência é muito maior no Nordeste. Na carta linguística 62 do Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul – ALERS – (KOCH; KLASSMAN; ALTENHOFEN, 2002), registra-se o uso de lhe – “lhe (picou)” – como objeto direto em alternância com “(picou) você” e “te (picou)”. Pelos dados apresentados, a variante preferida é te em todas as capitais, seguida de você. Essa é mais uma evidência de que o lhe como objeto direto caracteriza a fala nordestina. Agora que você tomou contato com diversos fenômenos condicionados pela
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fator geográfico, é importante ressaltar que esse fator não age isoladamente. Isso quer dizer que questões sociais podem atuar em conjunto. Prepare-se para aprender sobre a variação social do português na próxima aula.
Síntese Nesta aula, examinamos a variação diatópica no PB. Embora não tenhamos variedades diatópicas muito diferentes, existem algumas especificidades linguísticas que definem áreas geográficas. Você conheceu alguns fatos fonético-fonológicos, morfossintáticos e lexicais que caracterizam algumas áreas do Brasil. Esse conhecimento sobre a língua que falamos, sem dúvida, lhe permitirá adotar uma postura mais coerente no ensino de língua portuguesa, afastando-se dos estereótipos que se criam em torno do falar de algumas regiões.
questão para Reflexão Agora é a sua vez de atuar como pesquisador. Procure identificar, na fala de cinco pessoas nascidas em diferentes regiões da Bahia, que vocábulos usam para designar “bananas que nascem grudadas”, “adereço em forma de arco que as mulheres usam no cabelo”, “último dente a nascer nos adultos”. Em seguida, analise as coincidências e diferenças que você notou.
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Leituras indicadas AGUILLERA, V. de A. De onde vieram e por onde andam as nossas libélulas e jacintas? um estudo da etimologia popular com base em dados do Atlas linguístico do Brasil. In: Revista Estudos Linguísticos e Literários, n. 41. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2010. p. 291-309. BRANDÃO, Silvia Figueiredo. A geolinguística no Rio de Janeiro: as vogais médias pretônicas. In: Estudos Linguísticos e Literários. nº 41. Salvador: 2010. p. 229-257. ISQUERDO, Aparecida Negri; CUBA, Marigilda Antônio. Vocabulário da área semântica de cavalo na região centro-oeste: um estudo com dados geolinguísticos. In: Revista Estudos Linguísticos e Literários, n. 41. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2010. p. 258-290.
Site Indicado http://www.alib.ufba.br
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BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.
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Editora da UEL, 2009, p. 72-86. Disponível em: <http://www.faccar.com.br/eventos/desletras/hist/2007_g/ textos/18.htm>. Acesso: 01 dez. 2012.
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guês
Autora: Vívian Antonino “Nunca é demais repetir: a avaliação [linguística] é essencialmente social, isto é, não é propriamente a língua que está sendo avaliada, mas, sim, a pessoa que está usando a língua daquele modo”
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AULA 08 - Variação social do portu-
(BAGNO, 2007, p. 77).
Olá, estudante!
Nas duas aulas anteriores, você aprendeu um pouco mais sobre a variação geográfica ou espacial do Português e teve a oportunidade de estudar as semelhanças e diferenças entre o português falado na Europa e o português do Brasil. Além disso, você viu, através dos estudos de alguns fenômenos fonéticos, sintáticos, semânticos e morfológicos, como se configura o português ao longo do território brasileiro. Depois dessa análise aprofundada da variação espacial do português, chegou a hora de saber mais sobre a variação social ou diastrática. A partir da análise de trechos de fala real, você conseguirá perceber que há características da língua que estão intimamente relacionadas ao estrato social a que o indivíduo pertence. Como avidencia a epígrafe, sempre que se avalia uma manifestação linguística, está-se avaliando a pessoa que usa aquela língua; a língua não existe fora do falante e, então, é impossível dissociar língua e sociedade. Ao falar em variação social, torna-se imperioso tratar mais detidamente do preconceito linguístico, que é extremamente difundido em nossa sociedade. Diferentemente de outros tipos de preconceito, as pessoas parecem não se envergonhar de discriminar o outro por conta de sua forma de falar. Depois de nossa discussão, você perceberá que o preconceito linguístico é tão violento quanto qualquer outro tipo de preconceito e que, por essa razão, deve ser combatido por todos, principalmente por você, futuro professor de português.
Retomando a variação social Como já foi visto na Aula 01 e ao longo de nossos estudos, língua e sociedade estão intimamente relacionados. Não se consegue imaginar um grupo de pessoas sem uma língua ou, ainda, uma língua que não pertença a um grupo de pessoas. Dessa forma, como você já sabe, as características dos grupos sociais se refletirão diretamente na língua. Quando se fala em variação social ou diastrática, remetemos às manifestações linguísticas típicas de determinadas classes sociais. Sabe-se, no entanto, que, no Brasil, as classes sociais não são tão bem definidas como em outros países, em que se iden-
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tificam claramente classes A, B, C etc. Por essa razão, sempre que se fala em variação social nos estudos do português brasileiro, faz-se uma associação com o grau de escolaridade. É triste, porém incontestável, que, em nosso país, quem tem mais condições financeiras tem também mais facilidade para prosseguir nos estudos. Ao contrário, as pessoas mais carentes acabam estudando menos. Claro que, como toda regra, há exceções; no entanto, infelizmente, a grande maioria da população se encaixa nessa relação classe social x grau de escolaridade. Muitas vezes, por conta dessa não tão clara divisão entre as classes, os trabalhos de investigação sociolinguística categorizam seus informantes a partir da quantidade de anos de estudo formal.
Como você já viu em aulas anteriores, as investigações sociolinguísticas partem de entrevistas, em que se busca a fala espontânea do informante.
Para entender um pouco mais essa variação social do português do Brasil, recorreremos a alguns alguns techos de fala real e aos conceitos de traços graduais e descontínuos. Ao analisá-los, você poderá ver, para além da teoria, como se configura a sua língua.
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Traços graduais e descontínuos
Ao longo de nosso curso, já aprendemos que existem diferentes normas atuando no português do Brasil: a popular, a culta e a padrão. A norma popular é a típica do segmento não escolarizado da população, também conhecida como norma estimatizada; a norma culta é aquela utilizada pela camada da população que atingiu um alto grau de escolarização; e a norma padrão é um ideal linguístico que, de fato, não está em uso real e é, portanto, a norma “das gramáticas”. Por motivos que já estudamos, há grandes distâncias entre a norma popular e a norma culta, com características que marcam, de forma peculiar, cada uma das normas. No entanto, nem só de diferenças vivem as normas. Na verdade, há muito mais semelhanças do que diferenças entre elas, e você pode constatar isso ao ver que um falante de norma popular compreende, na maioria das vezes, um falante da norma culta e vice-versa. Aos fenômenos em variação, porém comuns às duas normas, chamamos de graduais. É um traço gradual, por exemplo, a redução do ditongo [ou] em [o], como nas palavras ouro, que falamos ôro, pouco, que falamos pôco ou louça, que falamos lôça. Pense um pouco e responda: essas palavras com os ditongos reduzidos, ao serem ditas, causam algum estranhamento? Certamente você responderá que não, já que esse é um traço típico do que Bagno (2007) chama de um vernáculo brasileiro mais geral.
espontâneo de um falante.
De forma oposta, quando se ouvem palavras como probrema, pranta e broco, no lugar de problema, planta e bloco, o falante que as utilizou recebe logo um julgamento social. Com certeza, você também associou a pronúncia de tais palavras a uma falta de escolarização, não foi? Esses traços são chamados de descontínuos e costumam
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Na Aula 05, você viu que vernáculo é o estilo de língua menos monitorado, mais
receber uma carga maior de preconceito. O que muitos não sabem é que mesmo esses traços descontínuos, tão estigmatizados, têm uma razão de ser, uma lógica interna, que não acontecem ao acaso. Preparados para perceber a língua mais de perto? Faremos nossa análise a partir de trechos reais de fala de informamantes do Projeto Vertentes1, que investiga a fala popular da Bahia2. Todos os trechos foram retirados de entrevistas sociolinguísticas que aconteceram tal qual você estudou na Aula 05.
Exemplo 1 INF(03): Ah, eu tinha um... uns quinze ano já, é sim, ia fazé quinze ano lá, quano cheguei, que eu me lembre, quano eu cheguei lá o primêro mês... que eu já tinha um mês trabaiano de casa, quano deu no dia primêro de julho ININT fez
________________________ ________________________ agora... ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ Exemplo 2 ________________________ INF(03): ...escrevia pos pai da gente, tinha notícia sempre era o ININT e aí ________________________ quano deu em oitenta e dois, já tinha cin... compretado cinco ano que eu num ________________________ vinha aí, quando deu ni oitenta e dois, resolveu tirá féras, aí eu tive que... aí eu nem ________________________ fiquei, fiquei um bocado aqui, passei um mês, depois voltei de novo, dexei de traba________________________ lhá, até vim embora de vez, né? ________________________ ________________________ ________________________ Exemplo 3 ________________________ ________________________ INF(07): Pode acreditá em Deus. Os menino foi que as coisa aí de qualqué ________________________ jeitcho. Eu não levantei pa fazê nada, porque não aguentava. Quando eu levanto a ________________________ cabeça um pôquinho assim, menina, revira tudo assim, ó, que eu me travo assim na ________________________ cabecêra da cama e num pára de rodá não. ________________________ ________________________ ________________________ Comecemos a nossa análise com os exemplos que trazem traços graduais, ou ________________________ seja, os traços utilizados, indistintamente, por falantes de diferentes classes sociais. ________________________ 1 O Projeto Vertentes é sediado na Universidade Federal da Bahia e coordenado pelo professor Dante Lucchesi. Para mais informações sobre as atividades do projeto, visite o site www.vertentes.ufba.br ________________________ anivesário, fui eu que fiz, isso foi dizê, isso tem quinze ano, já tô com trinta e cinco
2 Salvador.
O INF(03) é informante da cidade de Helvécia, extremo sul da Bahia, e o INF(07) é unformante de Cajazeiras, bairro da cidade de
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Nos exemplos anteriores, os traços graduais aparecem nas paravras sublinhadas. Observe as palavras tô e poquinho, que são faladas no lugar de (es)tou e pouquinho. Ocorre, na fala, a monotongação do ditongo [ou], ou seja, ocorre uma redução desse ditongo, que aparece com o som de ô. A grande maioria da população fala com o ditongo reduzido. Bortoni-Ricardo (2004) chama atenção para o fato de que esse fenômeno pode ter se originado desde o latim e afirma que também em Portugal acontece tal monotongação. O fenômeno é tão abrangente, que praticamente todos os ditongos [ou] sofrem redução. Veja mais alguns exemplos:
Cantou > cantô Cansou> cansô Louco > lôco Couro> côro
Nas palavras primêro, dexei e cabecêra também ocorre monotongação do [ei], que se apresenta com o som de ê. A monotongação também ocorre com o ditongo
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[ai], que passa a a, porém não há ocorrências nos exemplos. Um caso de redução do ditongo [ai] é caxa, dita no lugar de caixa. Essas regras para os ditongos [ei] e [ai], quando comparadas à redução do ditongo [ou], estão um pouco menos avançadas. Pense um pouco: será que reduzimos, da mesma forma, os ditongos da seguintes palavras?
Queijo Jeito Almeida Baixa Gaita
Você deve ter percebido que se diz quêjo, mas não se diz jêto. E, ainda, que se diz baxa, mas não se diz gata. Isso nos mostra que o som que vem depois do ditongo vai condicionar a monotongação, ou seja, o som /j/ de beijo e o /x/ de caixa favorecem a monotongação, enquanto o som /t/ de jeito desfavorece a monotongação. O que determina se ocorrerá a monotongação não são fatores sociais e, sim, fatores linguísticos e estilísticos. São traços graduais - que ocorrem na norma culta e na popular - a redução do /r/ final de palavra, como em dizê, tirá, trabalhá, acreditá e rodá. Bortoni-Ricardo (2004) chama atenção para o fato de a supressão do /r/ ser bastante comum em formas ver-
palavras políssílabas terminadas em /r/, como ventilador, que pode ser pronunciada como ventiladô. Esses traços graduais aqui apresentados são apenas alguns dos muitos que existem em sua língua. Pensar sobre eles pode ajudar na sua prática docente, pois, se você já sabe que há uma tendência natural de o aluno suprimir certos segmentos fônicos, é possível desenvolver um trabalho específico com a turma, a fim de evitar
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bais, como as retiradas dos exemplos anteriores, mas que também pode ocorrer em
problemas de grafia. No entanto, como dito no início da seção, há também os traços descontínuos, que são aqueles mais típicos de uma fala estigmatizada, das pessoas com menos escolarização. Os traços descontínuos costumam carregar consigo uma avaliação negativa da sociedade. Analisemos alguns, presentes nos exemplos de fala anteriores. No exemplo 2, encontramos a palavra compretado, que traz um traço descontínuo bastante comum na norma popular. Assim como na palavra citada, essa troca do /l/ pelo /r/ acontece em muitas outras palavras, como em brusa, craro, prano e broco, por exemplo. Essa troca tem um nome: rotacismo, e acontece, mais comumente, nos econtros consonantais. É possível também ocorrer em fim de palavra, como é carnavar e paper ditas no lugar de carnaval e papel. As consonates /l/ e /r/ são consideradas consoantes líquidas, que, segundo Callou e Leite (2003, p. 26), têm esse nome “herdado dos gramáticos da antiguidade e abrange a classe das laterais3 e das vibrantes4”. Essas consoantes são chamadas líquidas por conta da articulação do som que ocorre com certa fluidez. As laterais e as vibrantes são sons muito próximos, ou seja, para articulá-los, nosso aparelho fonador se comporta de uma maneira muito parecida. Isso justifica o porquê de não haver troca do som de /l/ pelo de /t/ ou de /m/ nas palavras e, sim, entre /l/ e /r/. Como diz Bagno (2007), nada na língua é por acaso, tudo tem uma razão, uma justificativa. Além das questões articulatórias relacionadas ao rotacismo, esse mesmo autor nos lembra que muitas palavras hoje ditas com /r/, lá no latim, eram usadas com /l/. Vamos ver? Quadro 1 - Comparação entre latim e português
Latim BlanduClavuDupluFlaccuFluxuObligarePlacerePlicarePlumbu-
Protuguês Brando Cravo Dobro Fraco Frouxo Obrigar Prazer Pregar Prumo
Fonte: Bagno (2007, p. 217)
Esse quadro nos mostra que, quando um falante da norma popular usa um traço descontínuo como o rotacismo, ele não está agindo assim ao acaso, sem qualquer motivação. Desde o latim, já se podia notar a possibilidade de troca entre as líquidas, 3
No português, são laterais as consoantes /l/ de lama e /λ/ de lhama.
4
No português, são vibrantes os diferentes sons de /r/, como em ramo, branco, mar, carro etc.
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tanto que, na passagem para o português, houve mudanças como as vistas no quadro 1. E, para reforçar ainda mais seu argumento, Bagno (2007) apresenta algumas frases em que Camões, em Os Lusíadas, usa palavras que foram modificadas pelo rotacismo: “Era este ingrês potente.” (VI, 47) Toda essa explicação não tira o estigma social que o rotacismo traz consigo, mas mostra a você, futuro professor, que as variações presentes na língua podem sempre ser estudadas e sistematizadas, que há sempre uma motivação, seja linguística ou social. Outro traço descontínuo bastante recorrente é o que se pode ver no exemplo 1, em trabaiano, por trabalhando. Além da troca do /λ/ por /y5/, conhecida como iotização, há ainda a possibilidade de uma simples despalatalização, ou seja, de o /λ/ ser pronunciado como /l/ ou, ainda, de ser suprimido. Vejamos exemplos para que tudo fique mais claro.
Mulher - mulé - muié Tabalho - trabaio Colher - culé - cuié Piolho - pioio
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Milho - mio
Vamos entender melhor: o som /λ/ é pronunciado com a língua bem próxima ao palato duro (o céu da boca) e, justamente por isso, é chamado de som palatal. Muitas vezes, notadamente em classes menos escolarizadas ou em algumas regiões específicas do país, o som /λ/ é pronunciado com a língua se afastando do palato, ou seja, de forma despalatalizada, o que dá origem a pronúncias como mulé e culé. A iotização é um fenômeno que decorre da despalatalização e, de acordo com Câmara Júnior (2000, p. 149), é a mudança “de uma vogal ou consoante para a vogal anterior alta /i/ ou para a semivogal correspondente ou iode”. Prevista nas possibilidades da língua, a pronúncia de trabaio por trabalho ou de moio por molho não é uma realização que demonstra a preguiça ou o descaso do falante, como alguns mais preconceituosos podem crer. O falante jamais relizaria trocas aleatórias, que não fossem permitidas por sua língua. Assim também ocorre com a pronúncia palatalizada de /t/. Na aula anterior, você viu que a pronúncia palatalizada de /t/ diante da vogal alta /i/ é um fenômeno marcado geograficamente. Explicando melhor: há localidades que pronunciam tchia e djia, como em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, mas há lugares em que essas mesmas palavras são pronunciadas sem a palatalização, tia e dia. No Nordeste, observamos essa pronúncia em Recife, por exemplo. Sem grandes dúvidas, ao ouvir uma pronúncia não palatalizada diante de /i/, 5
A repesentação de semivogal [i] é feita por /y/.
lização ocorre diante de /u/, já evidencia uma questão social, pois essa é uma realização bem típica de segmentos pouco escolarizados. De forma geral, quem diz mutcho, otcho e jetcho são as pessoas que estudaram menos, por isso essa palatalização pode ser considerada um traço descontínuo. É interessante, porém, chamar atenção para o fato de esse fenômeno ser também marcado diatopicamente. Em Maceió, é possível ouvir a palatalização diante de
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pensamos logo na origem geográfica do falante. No entanto, quando a mesma palata-
/u/ na boca de pessoas altamente escolarizadas. Isso nos mostra que, para se fazer um estudo linguístico, é indispensável a análise do grupo social que usa a língua. Mais uma vez se vê que é inegável que língua e sociedade são indissociáveis. Até aqui, só vimos exemplos de aspectos fonético-fonológicos, mas não se engane: há fenômenos sintáticos que também são traços descontínuos na língua. Certamente, não é difícil ouvir sintagmas nominais6 como os destacados nos exemplos retirados de inquéritos do Projeto Vertentes: uns quinze ano, cinco ano, pos pai, as coisa. Mas você já prestou atenção que mesmo o sintagma sendo realizado sem a marcação de plural, isso se dá de forma regular? Observe os casos abaixo:
i - As menina bonita. ii - *A meninas bonita. iii - * A menina bonitas.
Quando o falante não utiliza a marca de plural em todos os itens do sintagma, ele, incoscientemente, percebe a marcação de número como redundante e acaba por marcar apenas o primeiro elemento do sintagma, como em i. Um falante nativo do português jamais utilizaria a única marca de número em outros elementos do sintagma que não o primeiro, como em ii e iii. Há uma lógica interna na língua, mesmo quando não se segue a norma padrão. Se não houvesse tal lógica, as pessoas, ao usarem elementos em variação numa língua, não conseguiriam se compreender mutuamente. Apesar de já se perceber que a falta de concordância nominal é mais típica em pessoas de classe social mais baixa, hoje, já é possível notar que, em situações de pouca formalidade, falantes de classe mais alta também realizam sentenças sem concordância. A maior diferença é observada na escrita, em que os falantes mais escolarizados buscam seguir o padrão, tentando ao máximo fazer a concordância nominal. A variação na concordância verbal também é um traço descontínuo na língua e traz ainda mais estigma do que a concordância nominal. Os falantes escolarizados fazem uma avaliação extremamente negativa daqueles que usam sentenças como As menina é bonita, pois o seu uso costuma denotar ausência nos bancos escolares, pouca oportunidade na vida. Assim como com a concordância nominal, o falante parece perceber a realiza6
O sintagma nominal (SN) é o grupo de palavras, dentro de uma sentença, que tem como núcleo um nome, ou seja, um susbtan-
tivo. Ex: As duas belas meninas saíram cedo.
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ção da concordância verbal como algo redundante, já que o pronome que acompanha o verbo já traz as informações de pessoa e número, por exemplo. Por essa razão, tornase recorrente a não concordância verbal. Naro (1981), investigando a fala de indivíduos semi-escolarizados do Rio de Janeiro, observou um nível de aplicação da concordância verbal 48%. Ao se investigar a fala de pessoas escolarizadas, nota-se que o percentual aumenta consideravelmente: Scherre e Naro (1997), analisando falantes do Rio de Janeiro, e Monguilhott e Coelho (2002), com falantes de Florianópolis, registraram, respectivamente, 73% e 79% para a variante com marca explícita. Já no português culto falado no Rio de Janeiro, a frequência de uso da regra encontrada por Graciosa (1991) foi de 94%. O que se nota é que a variação na concordância verbal, assim como a nominal, não está restrita à classes baixas, mas a sua maior ocorrência se concentra nelas. É interessante, também, notar que há sentenças sem concordância verbal, mas que recebem avaliação diferente:
a) As comida acabou. b) Essas mulher consegue tudo. c) Acabou finalmente as aulas.
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Os exemplos a) e b) são rapidamente apontados como errados de acordo com a norma padrão, mas os mesmos que fazem tal julgamento não percebem o problema na sentença c). Isso ocorre porque, em c), o sujeito vem após o verbo, fato que faz com que o falante não o encare como sujeito, mas como complemento verbal, esquecendo, assim, de realizar a concordância. Além disso, há um material interveniente entre o verbo e o sujeito, fato que dificulta a concordância: quanto mais distantes verbo e sujeito, maior a dificuldade para marcar a concordância verbal. Linguisticamente está explicado, mas será que todo falante conhece essa explicação? Por que as pessoas costumam condenar certas construções e aceitam outras, também em desacordo com a gramática, sem julgá-las com o mesmo rigor? Isso tem uma explicação bem clara: preconceito linguístico!
Preconceito Linguístico pode? Quando se toma a gramática normativa como modelo de única língua possível, tudo o que foge a suas regras é considerado erro. Dizer Eu te enviarei a carta amanhã ou Essa é a garota que eu mais gosto é tão errado, para a gramática normativa, quanto dizer Nós vai sair. Mas você, futuro professor de português, sabe apontar os erros das duas primeiras sentenças? Na primeira, a gamática normativa diz que, com verbos no futuro do presente ou no futuro do pretérito, a única colocação pronominal possível é a mesóclise, ou seja, só se considera certa a construção enviar-te-ei, com o pronome colocado nem antes
pelo verbo gostar, e a construção correta para a gramática normatica é Essa é a garota de que mais gosto. Mas por que as duas primeiras sentenças não incomodam a maioria da população letrada, mas a última sentença “machuca os ouvidos” dos normativistas, como gostam de dizer por aí? Simples: ao se julgar a língua, na verdade, julga-se a pessoa que a fala, ou seja, as duas primeiras frases podem ser ditas por pessoas cultas - por
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nem depois do verbo, mas lá no meio dele. No segundo caso, falta a preposição exigida
mim, por você-, mas a terceira frase é típica de pessoas pouco escolarizadas. Por conta disso, a carga de estigma da última frase é bem maior! No entanto, você já percebeu que, de acordo com o padrão, as três frases seriam igualmente erradas. O preconceito linguístico nos impede de ver que nossas atitudes com relação à língua são permeadas de outros preconceitos. E por falar em outros preconceitos, por que não parece tão feio ter preconceito linguístico? As pessoas se envergonham de suas atitudes preconceituosas com relação a raça ou classe social e dissimulam, tentando passar a imagem de que não possuem preconceitos. Com relação à língua, no entanto, parece não haver qualquer constrangimento: as pessoas interferem na forma de falar das outras a todo tempo; inclusive, é comum encontrar programas de TV, rádio ou mesmo jornais que ensinam uma suposta “língua certa”, desvalorizando toda e qualquer manifestação linguística que não se adeque à norma gramatical. Uma outra crença permeada de preconceito é a de que existem localidades do ________________________ país, como o Maranhão, por exemplo, em que se fala um português melhor, mais culto. ________________________ Esse mito de o português maranhense ser melhor, assim como os outros mitos que ________________________ envolvem a língua, tem justificativas sócio-históricas. Desde o século XVIII, São Luís, ________________________ capital do Maranhão, na fase de ouro de sua economia, conviveu muito com pessoas ________________________ vindas de cidades europeias. São Luis, já nessa época, possuía calçamento e ilumina- ________________________ ção, coisa rara em outras cidades. Uma efervercência cultural tomava conta do Mara- ________________________ nhão, que chegou a ser conhecido como a “Atenas Brasileira”. Além disso, até os dias ________________________ de hoje, é possível se ver que alguns habitantes utilizam o pronome tu fazendo a sua ________________________ concordância tradicional: Tu vais sair? Esses fatos, porém, não querem dizer que lá se fale ________________________ um português melhor ou pior. Fazer a concordância com o tu não tem maior importância ________________________ do que fazer qualquer outro tipo de concordância. Bagno (1999), em seu livro Preconceito Linguístico, busca desfazer alguns mitos sobre a língua portuguesa e diz que não há nada do ponto de vista geográfico que determine se um grupo fala melhor o português. Ele afirma que, se compararmos as falas de uma pessoa altamente escolarizada do Acre, de São Paulo e do Maranhão, por exemplo, serão notadas muito mais semelhanças do que diferenças entre elas. Com isso, ele quer mostrar que, de fato, a questão social influencia muito mais do que a geográfica, quando se fala sobre norma padrão. É importante ter sempre isso claro, pois, ao discriminar a linguagem de uma aluno, não estamos apenas o enquadrando num modelo considerado certo de falar e escrever, estamos, acima de tudo, negando uma história, a sua história com a sua língua. Não se trata de não oferecer ao aluno a oportunidade de aprender a norma padrão, já que a escola, muitas vezes, é o único espaço em que ele pode ter contato com essa norma. Deve-se, sim, ensinar o padrão, porém respeitando aquilo que o aluno já
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sabe, partindo norma que ele já conhece. Não há falante melhor nem pior, não há variedade de língua boa ou ruim, há modalidades de língua que se adéquam a cada situação de comunicação. O professor de português precisa ter isso em mente, para não seguir disseminando preconceitos e agindo como se fosse o dono da única língua possível. Uma atitude menos preconceituosa frente ao ensino de língua poderá gerar como fruto alunos mais seguros e com uma relação mais forte com o seu idioma.
Síntese Através de exemplos reais de fala e dos conceitos de traços graduais e descontínuos, foi possível conhecer e analisar um pouco mais da realidade social do português. A partir de tal compreensão, pode-se concluir que o preconceito linguístico é tão cruel e violento quanto qualquer outro tipo de preconceito, devendo, assim, ser combatido em sala de aula e fora dela.
questão para Reflexão ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________ ________________________
Nessa aula, discutimos alguns traços graduais e descontínuos. Observe a fala de pessoas ao seu redor, faça anotações, exercitando o seu perfil de professor pesquisador, e busque categorizar os traços presentes nas falas analisadas. Pense sobre o que é típico de um grupo social e o que é recorrente em todos os grupos. Além disso, pesquise a justificativa da existência de determinados traços descontínuos que você encontrará. Use sites de referência para fazer suas pesquisas.
Leitura indicada BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
Sites Indicados www.vertentes.ufba.br http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-4450&lng=en&nrm=is o
Referências BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso - por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
GRACIOSA, D. Concordância verbal na fala culta carioca. 1991. Dissertação (Mestrado em Linguística), UFRJ, Rio de Janeiro, 1991.
MONGUILHOTT, I.; COELHO, I. Um estudo da concordância verbal de terceira pessoa em Florianópolis. In: VANDRESEN, P. (Org.). Variação e mudança no português falado na região sul. Pelotas: EDUCAT, 2002. p. 189-216.
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CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de linguística e gramática: referente à língua portuguesa. 21.
SCHERRE, M. M. P.; NARO, A. J. A concordância de número no português do Brasil um caso típico de variação inerente. In: HORA, D. da (Org.). Diversidade Lingüística no Brasil. João Pessoa: Ideia, 1997. p. 93-114.
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co mais sobre o funcionamento da língua Autora: Vivian Antonino “[...] qualquer um de nós é capaz de perceber que a língua está sujeita não só a variações, mas também a mudanças.Uma pessoa
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AULA 09 - Mudança linguística: um pou-
idosa não deixa de sentir que diversos fatos linguísticos que existiam em sua juventude despareceram ou se transformaram. Inversamente, um jovem pode constatar que certos traços presentes em seu modo de falar são evitados pelos mais velhos. [...] Ou seja, a mudança linguística parece acompanhar de perto a evolução da própria sociedade. (MONTEIRO, 2000)”
Olá, aluno! Vamos juntos em mais uma viagem pela língua portuguesa?
Até aqui, falamos bastante da língua em variação, seja ao longo do espaço geográfico, nas diferentes classes sociais ou ainda num mesmo indivíduo, que, como você já sabe, nunca tem um estilo único. Nesta aula, discutiremos um pouco mais sobre o processo de mudança linguística, analisando os conceitos sociolinguísticos de tempo real e tempo aparente. Além disso, conheceremos mais de perto os cinco problemas da mudança linguística, propostos pela sociolinguística. Após essa discussão, você conseguirá compreender mais claramente por que e como as línguas mudam e que tal mudança é algo natural e, muitas vezes, inevitável. Vamos estudar mais sobre a língua! Algumas questões básicas sobre a mudança linguística Como é evidenciado na epígrafe, não é difícil para ninguém, nem mesmo para os não estudiosos da linguagem, perceber que a língua muda através do tempo. Basta olhar algum trecho escrito em português de épocas mais remotas para perceber que, assim como as pessoas e seus comportamentos sofreram alterações, a língua que elas usam também se modificou. Veja este curto exemplo a seguir:
Figura 1 - Placa antiga, contendo aviso escrito em português antigo, anterior a 1911.
Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/e/e3/Placa_pre-1911_(Porto).jpg/799px-Placa_pre-1911_(Porto).jpg
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Nessa velha placa, contendo aviso escrito em português antigo, é possível perceber algumas grafias que não são as do português padrão atual, como prohibido, collocar, annuncios e d’esta. Ao olhar tal placa, você chega à conclusão de que a língua mudou. Mas como se dá essa mudança? Uma pessoa dorme falando de um jeito e acorda falando de outro? Certamente não é assim. Para haver uma mudança linguística, é preciso que ocorra um período de variação, em que duas formas concorrentes estejam convivendo. Por exemplo, durante algum tempo, certamente, as formar vosmecê e você conviveram, até que uma das formas, por questões muitos mais político-sociais do que linguísticas, ganha a “batalha da variação” e se implementa como forma preferida. Aí ocorre a mudança linguística. Baseado nessa explicação, pode-se afirmar que, para que a mudança ocorra, é preciso haver a variação, mas nem todas as vezes em que a língua estiver em variação, será concretizada uma mudança linguística. Vejamos isso com mais detalhes. Como já dito exaustivamente ao longo de todas as aulas, a língua, que está longe de ser algo homogêneo e imutável, só existe dentro de uma sociedade, múltipla e heterogênea. Diante de toda essa heterogeneidade, a existência de formas em variação na língua é algo natural e recorrente. A variação linguística pode ocasionar a mudança, como dito no parágrafo anterior, ou pode apenas se manter em variação durante um longo tempo.
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Quando duas formas se mantêm em variação, sem que uma predomine sobre a outra, ocorre o que se conhece como variação estável. Por exemplo, de uma forma geral, há um uso variável do preenchimento do sujeito, que ora aparece com o pronome explícito, ora sem ele. Veja nos exemplos a seguir. Nós vamos à praia. Vamos à praia.
O falante não recebe qualquer avaliação estigmatizada ao usar alguma das duas formas mencionadas, que, muitas vezes, são utilizadas alternadamente por uma mesma pessoa até em uma mesma frase. Não há sinais de que uma forma vá desaparecer e só a outra vá se manter; o que tudo indica é que esse quadro de variação, com as duas formas sendo utilizadas, vai se manter. A essa situação chama-se variação estável. A pesquisa sociolinguística, porém, aponta uma outra possibilidade, a da mudança em progresso. Nesse caso, uma variante linguística demonstra uma tendência a sobrepujar a outra e a ter seu uso bastante difundido. Em situações de mudança em progresso, caso as condições sociais e linguísticas observadas sejam mantidas, é possível que uma variante caia em desuso e que a variante predominante passe a ter seu uso categórico. Isso provavelmente ocorreu com o uso do pronome vós, que era a forma mais recorrentemente usada para se referir à segunda pessoa do plural. Aos poucos, o vocês foi ganhando espaço; certamente conviveu por um período com a forma vós, até que a população optou, conscientemente ou não, pelo uso do vocês. Nos dias atuais, no português do Brasil, observa-se a mudança implementada, com os
Como já mencionado, é sempre bom lembrar que o que determina a escolha de uma variante é, quase sempre, uma questão social ou política, e não uma questão estritamente linguística. No caso de você e vosmecê, o você acabou ganhando espaço por perder a sua marca de formalidade, de cortesia, sendo o seu uso ampliado para uma gama maior de situações mais solidárias. O você passou a ser mais usado, em mais contextos, por mais pessoas, o que certamente exerceu alguma influência para que o
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falantes já não fazendo mais uso do vós1.
falante optasse por essa forma, e não pelo vosmecê. Isso prova, mais uma vez, que é impossível estudar a língua sem pensar na comunidade que a usa em seu dia a dia. Com esse conceito de mudança em progresso, algumas crenças com relação à língua foram alteradas. Sempre se acreditou que era impossível estudar a mudança linguística antes que ela se implementasse, ou seja, antes que ela ocorresse completamente. Acreditava-se que só seria possível estudar uma mudança depois de ocorrida; mas, com a ideia de mudança em progresso ou mudança em curso proposta por William Labov, isso foi alterado. Lucchesi (2004, p.166) diz que:
O recurso utilizado por Labov para superar esse obstáculo [o de estudar a mudança antes de estar implementada] foi o de procurar entrever a mudança em progresso na variação observada na língua num determinado momento, o que ele definiu como o estudo da mudança no tempo aparente.
Esse conceito de tempo aparente se coloca como uma novidade nos estudos linguísticos, possibilitando a observação da já mencionada variação em curso ou em progresso. Vejamos mais sobre o conceito de tempo aparente e tempo real.
Estudo linguístico em tempo aparente e em tempo real Um estudo linguístico em tempo real, como o próprio nome já indica, vai se desenvolver a partir da análise de situações num tempo real, ou seja, são comparadas duas sincronias num intervalo de tempo. Este tipo de estudo pode comparar sincronias distantes, num estudo em tempo real de longa duração, ou sincronias próximas, num estudo em tempo real de curta duração. Para a primeira situação, estudo em tempo real de longa duração, é possível checar, como exemplificam Paiva e Duarte (2003), a variação do uso de artigo antes de possessivo em português europeu (a minha casa/ minha casa) entre os séculos XV e XVI. Para esse estudo de longa duração, em séculos passados, recorre-se a textos escritos a fim de se observar o comportamento linguístico de uma dada época. Já no segundo caso, estudo em tempo real de curta duração, uma análise de um fenômeno em variação pode ser feita, mas com intervalo de tempo bem menor, como de 2005 a 2010, por exemplo. 1
Uma outra situação deve ser também pensada: é possível estar observando uma situação de mudança em progresso, em que se
imagina que haverá a implementação da mudança; mas, se com o passar do tempo, as condições sociais forem fortemente alteradas, a mudança pode não se implementar. Daí se perdecebe que, na verdade, nem sempre a mudança em progresso é garantia de implementação da mudança.
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É possível, ainda, fazer um estudo em tempo real chamado de painel, em que os mesmos indivíduos são comparados em momentos diferentes da vida. O tempo necessário para a realização desse recontato é de uma geração, ou seja, em média, 18 anos. Por exemplo, entrevistam-se algumas pessoas na década de 1990 e, alguns anos depois, volta-se a essas mesmas pessoas para fazer novas entrevistas sociolinguísticas e comparar as suas falas em busca de indício de estabilidade ou de mudança em seu comportamento linguístico. Além desse estudo em tempo real em forma de painel, há também o de tendência, em que são analisados indivíduos diferentes, de uma mesma comunidade, mas com as mesmas características dos indivíduos que compuseram a primeira amostra. Por exemplo, se foram estudados falantes jovens e idosos, analfabetos e com nível superior, essas mesmas características são utilizadas para compor a nova amostra de fala. A partir desse estudo, analisa-se a tendência de comportamento linguístico da comunidade, pois imagina-se que haja um padrão comportamental. Há de se imaginar, contudo, que nem sempre um estudo em tempo real é possível, por questões relativas ao tempo gasto em uma pesquisa em tempo real ou mesmo por outras dificuldades práticas da pesquisa, como a de reencontrar um informante 18 anos depois, por exemplo. Para solucionar essa questão, há o estudo em tempo aparente, já mencionado. O tempo aparente baseia-se numa hipóstese clássica, segundo a qual a fala de
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uma pessoa hoje com 40 anos é a mesma de quando tinha 25, pois supõe-se que a estabilidade linguística do falante aconteça por volta dos 15 anos. O tempo aparente é uma espécie de projeção sobre o tempo real. O conceito de tempo aparente postula que as diferenças de comportamento linguístico que são percebidas em algumas gerações seriam reflexos de momentos anteriores diferentes no desenvolvimento da língua.
Considerando que a amostra foi estratificada de acordo com três faixas de idade – 25 a 35 anos (faixa 1), 45 a 55 anos (faixa 2) e 65 a 75 anos (faixa 3) – e o fato de que a hipótese clássica prevê a estabilidade linguística do falante por volta dos 15 anos, é possível estabelecer que: a) os falantes da faixa 3 refletem os usos linguísticos das décadas de 1948 a 1958; b) os da faixa 2 refletem os usos de 1968 a 1978; e c) os da faixa 1, das décadas de 1988 a 1998. Assim, com base na observação dos usos linguísticos de cada faixa revelados na amostra será possível fazer uma projeção sobre o comportamento da variante [...] nesse recorte temporal. (ALMEIDA, 2009, p. 143).
Através desse estudo, é possível chegar a conclusões de variação estável ou de mudança em curso. Se, entre os falantes da faixa etária mais nova e os da mais velha, não há um uso privilegiado de uma forma linguística inovadora, é possível inferir que as variantes em uso convivem harmonicamente e que podem se manter dessa forma, sem que uma ganhe o espaço da outra, sem que haja a mudança linguística. Este é um
De forma oposta, se o falante mais jovem tende a usar predominantemente uma forma linguística inovadora, ao passo que os velhos exibem um uso cada vez menor de tal forma, pode-se supor que se está diante de uma mudança em curso. Um bom exemplo dessa situação é o caso de Poções, município do interior da Bahia. Lá, por conta do seu histórico de contato entre negros e brancos no período da colonização, a não marcação da concordância nominal é bastante acentuada, principalmente
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caso de variação estável.
entre os mais velhos. Os mais jovens, por sua vez, estão utilizando cada vez mais a regra de concordância nominal, devido ao maior acesso que hoje têm à escola, meios de transporte e meios de comunicação. Nota-se que os jovens vêm atuando na implementação de uma regra que estava sendo cada vez menos utilizada, o que nos faz perceber uma mudança em curso. Provavelmente, daqui a alguns anos, a comunidade fará muito mais concordância do que nos dias atuais. Vê-se que, com o recurso do estudo em tempo aparente, é possível estudar a mudança antes que ela aconteça, fato que comprova que a variação linguística não é aleatória e, sim, condicionada por fatores linguísticos e sociais. Pensar sobre a mudança sempre fez parte dos estudos linguísticos, mas é a sociolinguística que traz essa metodologia que permite o seu estudo enquanto ainda está em progresso. Os estudos não mais se restingem à descrição de mudanças já concluídas, mas, agora, pensa-se sobre o rumo que a mudança pode ter e o que a está levando por esse caminho. E nessa busca pela compreensão da mudança linguística, a ________________________ sociolinguística evidencia a necessidade de se conseguir responder a cinco questões, ________________________ que são conhecidas como os cinco problemas da mudança linguística.
Os cinco problemas da mudança linguística Em busca de sistematizar a mudança linguística, a sociolinguística aponta que é preciso pensar e discutir os cinco problemas a seguir.
O problema das restições; O problema do encaixamento; O problema da transição; O problema da avaliação e O problema da implementação.
Vamos ver cada um mais de perto? O primeiro problema mencionado, o das restrições, também é conhecido como problema dos fatores condicionantes. Esse problema nos leva a pensar que há fatores que determinam a mudança linguística, indicando em qual direção a língua seguirá. Para responder a essa questão, pensa-se em quais mudanças e quais condições são
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possíveis ou impossíveis em uma determinada língua, definindo-se fatores linguísticos e extralinguísticos que propiciem a transformação na língua. Santos (2010), ao falar sobre o problema das restrições, aponta dois exemplos esclarecedores: a tendência que há de as consoantes tornarem-se vozeadas2 quando se encontram entre vogais. Nunca, nesse contexto, as consoantes seriam desvozeadas, o que evidencia a questão dos fatores condicionantes ou da restrição. Outro exemplo mencionado é o da marcação variável de plural no sintagma nominal, em que a marca única sempre recairá sobre o primeiro elemento, como em As menina bonita, e não *A meninas bonita.
Este problema, de acordo com Lucchesi (2004), incorre numa busca por universais, visão incompatível com a concepção de língua do modelo. Ainda segundo o autor, esta teria sido a motivação para que, mais tarde, o próprio Labov descartasse esse problema, fundindo-o com o problema do encaixamento. (SANTOS, 2010, p. 25)
O segundo problema, já mencionado na citação de Santos (2010), é o do encaixamento, que traz a ideia de que a mudança linguística não ocorre de forma isolada e, sim, dentro, encaixada em uma estrutura linguística e em uma estrutura social. Em toda mudança deve ter analisado seu encaixamento no sistema linguístico e na matriz social da comunidade, já que não há como dissociar as questões linguísticas de ques-
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tões, culturais, ideológicas, políticas e históricas. Apesar de aparentemente parecerem duas questões separadas, Labov (2008 [1972]) chama atenção para o fato de ser um problema único, com dois aspectos distintos, o linguístico e o social. Um exemplo que pode esclarecer o encaixamento é o que aconteceu na ilha de Martha’s Vineyard, já discutido em aulas anteriores. Labov chama atenção para o fato de que a centralização do ditongo (aw) teria sido precedida pela centralização do ditongo (ay), estando, assim, encaixada num processo mais amplo de mudança no sistema dos ditongos. Além desse encaixamento linguístico, ocorreu também o social, já que a centralização do ditongos estaria associada à atitude de resitência cultural dos nativos da ilha aos veranistas que a invadiam temporariamente. Além da questão do encaixamento, é preciso pensar no problema da transição. Se o processo de mudança ocorre de forma contínua e discreta, surge a necessidade de se pensar como a língua muda, como se passa de um estágio de uso da língua para outro, até que se processe a mudança. Para isso, uma análise da comunidade de fala em que a mudança ocorre é indispensável. Em busca de analisar e definir o percurso transcorrido pela mudança, pode-se fazer um estudo do uso da forma analisada através das gerações sucessivas que compõem uma comunidade de fala. Esse problema busca explicar como se passou do uso de vossa mercê, para vosmecê e, por fim, para você, por exemplo. Certamente que as mudanças não foram abruptas, do dia para a noite, e o caminho seguido pela língua é o que se quer delinear com essa questão da transição. Um outro ponto que desperta muito interesse é como as pessoas se comportam diante de uma mudança linguística. A sociolinguística discute tal questão através 2
Consoantes vozeadas são também chamadas sonoras, aquelas em que as cordas vocais vibram durante a sua produção.
mudanças que ocorrem na língua e, dessa forma, podem reagir a elas de forma positiva ou negativa. Essas reações avaliativas com relação à mudança na língua podem exercer efeito sobre a sua implementação, fazendo com que ocorra de maneira mais rápida ou mais lenta. De acordo com Labov (2008 [1972]), a análise do problema da avaliação pode ocorrer de forma direta ou indireta. De maneira direta, analisa-se quando os desejos e
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do problema da avaliação. Os falantes têm, em grau maior ou menor, consciência das
as atitudes do informante influenciam em seu comportamento linguístico, ou seja, observa-se se, ao se considerar uma forma como mais privilegiada, mais elegante, mais interessante, um indivíduo pode optar diretamente por ela, rejeitando outras formas que avalia negativamente. Dessa maneira, a avaliação do uso linguístico pode acabar conduzindo o caminho da mudança. Numa abordagem de maneira indireta, o pesquisador pode aplicar mecanismos para medir a reação dos falantes diante do uso de determinadas variantes linguísticas. Para isso, há testes elaborados com o fim de observar como o falante avalia ou produz determinadas formas linguísticas. A partir do material colhido, é posível perceber a reação do falante frente a algum fenômeno linguístico, se ele considera a forma utilizada como estigmatizada ou de prestígio dentro daquela comunidade. É importante notar que, a depender da comunidade de fala estudada, as avaliações dos falantes com relação à língua podem ser diferentes. Por exemplo, numa comunidade urbana, o uso da forma carnavar por carnaval pode ser considerada es- ________________________ tigmatizada, mas, em uma comunidade rural, ela pode ser avaliada como algo normal ________________________ e recorrente. Cada grupo de falantes, dentro de sua realidade, fará uma avaliação dife- ________________________ rente, e essa avaliação, positiva ou negativa de um fato linguístico, pode determinar o ________________________ rumo da mudança. Nem todo fenômeno linguístico, no entanto, está sujeito ao juízo do indivíduo. Há mudanças que acontecem abaixo do nível da consciência do falante, sem que ele se dê conta do que de fato está acontecendo. Partindo dessa possibilidade de maior ou menor consciência da variação que afeta os fenômenos linguísticos, é possível classificá-los em indicadores, marcadores ou estereótipos.
Indicadores: são fenômenos que variam de acordo com o estrato social do indivíduo, no entanto não sofrem influência do nível de formalidade. Eles se encontram abaixo do nível da consciência. É o caso preenchimento do sujeito: eu falo/ falo. Marcadores: também variam de acordo com o estrato social do falante, mas estão mais ou menos abaixo do nível da consciência. Eles podem ser observados em testes de avaliação subjetiva. Um exemplo é o uso variável das preposições junto a verbos de movimento: vou ao shopping/ vou no shopping. Estereótipo: são formas linguísticas com fortes marcas do ponto de vista social, sendo avaliada de forma estigmatizada pelos falantes/ouvintes. Um bom exemplo é a marcação de concordância verbal: Nós compramos/ Nós compra.
É interessante notar que toda e qualquer manifestação linguística deve ser es-
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tudada dentro de uma comunidade de fala, pois o que é estereótipo num centro urbano pode não ser numa comunidade rural isolada, por exemplo. O último problema estudado pela sociolinguística é o da implementação. Para responder à questão da implementação, busca-se compreender por qual razão uma mudança linguística ocorre em determinado tempo e espaço e não em outro tempo e espaço quaisquer. Analisam-se quais fatores são propícios à implementação da mudança e, para isso, recorre-se aos outros problemas já discutidos. É impossível pensar em como uma mudança se implementa, sem discutir sobre quais fatores a condicionaram, como ela se encaixou linguística e socialmente e como os falantes a avaliaram. Ainda que, meteodologicamente, os problemas sejam apresentados separados, a análise deve ocorrer de forma integrada. O que se conclui, após uma breve análise de questões relativas à mudança, é que, assim como a variação é algo natural a todas as línguas humanas, a mudança também o é. A íntima relação entre a sociedade e a sua língua nos mostra que a mudança é inevitável, pois as sociedades mudam, e suas línguas acompanham a mudança. Estudar a mudança linguística em salas de educação básica pode ajudar a desfazer a ideia que os alunos têm de que a língua é algo pronto, acabado e inatingível. Perceber que a língua muda pode ser um passo importante para compreender o caráter heterogêneo e variável da mesma. Na próxima aula, estudaremos mais sobre variação linguítica e ensino e podere-
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mos aprofundar questões que já levantamos ao longo das aulas.
Síntese Nesta aula, percebeu-se que é possível estudar a mudança linguística antes mesma que ela tenha ocorrido e que a mudança não é aleatória e, sim, condicionada por fatores linguísticos e sociais. Além disso, discutiram-se conceitos importantes, como variação estável, mudança em progresso, tempo real e tempo aparente, buscando compreender os cinco problemas da mudança, propostos pela sociolinguística.
questão para Reflexão Tire um momento do seu dia para observar algumas pessoas falando e faça anotações: você consegue perceber fenômenos em variação? Algumas das variantes parece ter mais espaço? Alguma das variantes tem estigma ou prestígio? Por fim, pense se seria possível imaginar o rumo que uma mudança linguística seguiria em sua comunidade analisada.
Leituras indicadas MONTEIRO, José Lemos. A mudança linguística. In: _________. Para compreender Labov. Petrópolis: Vozes, 2000.
http://www.vertentes.ufba.br/a-teoria-da-variacao-linguistica http://www.aldobizzocchi.com.br/artigo3.asp
Referências
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Sites Indicados
ALMEIDA, G. Quem te viu quem lhe vê: a expressão do objeto acusativo de referência à segunda pessoa na fala de Salvador. 193 f. 2009. Dissertação (Mestrado em Letras). Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.
CHAMBERS, J. K.; TRUDGILL, Peter. Dialectology. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.
LABOV, William. Padrões Sociolingüísticos. Tradução: Marcos Bagno, Maria Marta Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola, 008[1972].
LUCCHESI, Dante. Sistema, Mudança e Linguagem: um percurso na história da lingüística moderna. São Paulo: Parábola, 2004.
PAIVA, Maria da Conceição de e DUARTE, Maria Eugenia Lamoglia. Mudança linguítica: observações em tempo real. MOLLICA, Maria Cecilia e BRAGA, Maria Luiza (orgs.). Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003.
SANTOS, Lanuza Lima. A ordem verbo-sujeito: uma análise sociolinguística da fala popular do interior do estado da Bahia. Dissertação de mestrado. UFBA, 2010.
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Autoras: Gilce Almeida e Vivian Antonino “em toda e qualquer sociedade socialmente estratificada, o conhecimento do padrão ou o conhecimento de variedades de prestígio é, de fato, uma ferramenta de afirmação, enquanto o uso de formas não-padrão ou de formas sem prestígio pode conduzir à domina-
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AULA 10 - variação linguística e ensino
ção e exploração econômica. Enquanto esta ampla situação não mudar, negligenciar as formas padrão ou as formas de prestígio na educação é quase equivalente a negligenciar os próprios falantes das variedades sem prestígio, no sentido de dificultar a sua inserção no processo produtivo (NARO; SCHERRE, 2006, p. 236-237).”
Olá, estudante!
Ao longo de todas as aulas, sempre, em algum momento, questões relativas ao ensino da língua materna foram discutidas, uma vez que tivemos sempre a preocupação de evidenciar que os estudos, com base em dados da realidade linguística, podem, e devem, subsidiar o ensino de língua materna. Nesta aula, discutiremos mais detidamente sobre o que ensinar e como ensinar. Afinal, depois de tantas discussões, você deve estar se perguntando: “Que língua deverei ensinar”, “É preciso ensinar gramática?”, “Que saberes gramaticais devem ser privilegiados?”, “Quais as estratégias para ________________________ garantir a eficiência desse ensino?”. ________________________ Pelas discussões realizadas até aqui, você já tem consciência de que não existe mais lugar para um ensino sustentado pelos conceitos de ‘certo’ e ‘errado’ ou em nomenclaturas, como há muito tempo tem sido feito. Se essa ‘fórmula’ fosse eficiente, sem dúvida, não estaríamos aqui discutindo os problemas referentes ao ensino de português. Bem, vamos em frente. Temos muito sobre o que conversar.
Existe uma crise no ensino de língua portuguesa?
Alguns professores de português, certamente, já se depararam com este questionamento feito por algum aluno: “Por que precisamos aprender português, se já falamos português?”. O aluno que questiona isso não está errado. Afinal, em seu dia a dia, ele mantém uma comunicação eficiente nas diversas situações em que se envolve. O professor precisa, antes de tudo, se dar conta de que seu aluno já sabe português. Como lembrado na Aula 01, por volta dos quatro a seis anos, a criança já é um adulto linguístico, na medida em que domina as principais estruturas de sua língua. E o que compete então à escola? A tarefa da escola e, por conseguinte, do professor é ampliar a competência comunicativa do aluno. Em outras palavras, é torná-lo capaz de se comunicar eficien-
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temente nas diversas situações de comunicação orais e escritas, adaptando sua atividade linguística a tais eventos. O que se tem observado, contudo, é que, decorridos os onze anos (agora doze) da educação básica, os alunos, sobretudo os oriundos das camadas mais populares, deixam a escola com sérias dificuldades no que respeita à utilização da variedade linguística ensinada pela instituição escolar. Ao final do Ensino Médio, por exemplo, muitos alunos ainda não são capazes de escrever um bom texto. Os resultados de exames que buscam avaliar a educação no Brasil têm apontado para a existência de uma crise no ensino, já que a escola não tem sido eficiente na tarefa que lhe compete. Daí, falar-se também em uma crise no ensino de língua portuguesa. O sustentáculo dessa crise está no fato de que a língua que se ensina na escola é uma língua diferente daquela que o falante utiliza em situações diárias, ou seja, há uma completa falta de funcionalidade nesse ensino. Além disso, conta-se ainda com problemas de ordem metodológica, uma vez que se prioriza a memorização de regras e de nomenclaturas. As atividades de leitura e produção textual são relegadas ao esquecimento em função de uma excessiva preocupação com a análise gramatical e o estudo da metalinguagem. Apesar da mudança na concepção do ensino da língua materna ressaltada com a publicação das diretrizes para o seu ensino nos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1998, uma abordagem primordialmente normativa do ensino da gramática ainda
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vigora em muitas salas de aula pelo Brasil afora. A escola continua impondo um padrão linguístico idealizado, reforçando o distanciamento entre a fala do aluno e este padrão. Nesse sentido, estabelece como uma impropriedade uma estrutura como “Nós vimos ele ontem1”, não a considerando como uma das possibilidades à disposição do falante. Essa concepção equivocada de ideal alimenta a existência de uma suposta incompetência linguística do falante, o qual acaba se convencendo de que não se consegue usar corretamente a própria língua. A essa altura você deve estar querendo saber que língua a escola deve ensinar. Pois bem, façamos uma discussão sobre isso.
Ensinar a norma padrão?
Muitas pessoas acreditam que a função da escola é ensinar a norma padrão. Mas você lembra o que é a norma padrão? Norma padrão é aquele ideal linguístico, a norma subjetiva; são as regras prescritas pela gramática. Sendo um ideal, sabe-se que a norma padrão não é utilizada, efetivamente, por nenhum falante. Surge então a pergunta do título: deve-se ou não ensinar a norma padrão na escola? Possenti (1996) diz que é função da escola criar condições para que a norma padrão do português seja aprendida e apreendida. Faraco (2008), por sua vez, propõe que, ao invés de se ensinar a norma padrão, ensine-se a norma culta, que é real e típica 1
De acordo com as normas gramaticais, o pronome o caso reto ele não poderia ser utilizado na função em que aparece na frase,
como complemento verbal. A única função aceitável, de acordo com a gramática tradicional, é a de sujeito da oração.
Perceba que, quando Faraco questiona o ensino da norma padrão, ele não propõe um ensino de língua portuguesa que não se baseie em regras. Ele não propõe que se trabalhe apenas e exclusivamente com a norma popular. De jeito nenhum! O que o autor propõe é que se trabalhe com uma variedade de língua real, observável. Diante de um estudo da norma culta, o estudante pode comprovar as coisas aprendidas a partir da fala das pessoas escolarizadas a sua volta.
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de falantes escolarizados.
Não se pode nunca perder de vista que o objetivo das aulas de português é oferecer ao aluno uma variedade de língua diferente da popular, que, na maioria da vezes, já é de seu domínio. A norma popular deve ser usada como “pontapé” inicial de uma aula, pois, normalmente, parte-se do que já se sabe para, depois, apresentar conhecimentos novos. Essa não é nenhuma proposta inovadora. Em qualquer área do saber, em uma sequência didática, buscam-se os conhecimentos prévios do aluno antes de se oferecerem conhecimentos novos. De forma similar, na aula de português, deve-se partir daquilo que o aluno já sabe, porque ele é falante de língua portuguesa e sabe falar a sua língua. É preciso respeitar a bagagem linguística de cada estudante, pois aquilo que ele fala representa as suas origens sociais, a sua história de vida. Agir de forma preconceituosa frente a um ‘erro’ linguístico de um aluno só vai intimidá-lo e, possivelmente, fazer com que ele evite participar das aulas, por se sentir incapaz. Ao estimular a autoestima linguística dos alunos, criam-se pessoas que se arriscam, que percebem que a língua tem muitas facetas e que há muito o que se aprender. Mas cuidado! Dizer que você deve respeitar a forma de falar de seu aluno não significa dizer que você não deve fazer qualquer tipo de intervenção ou de correção. Na verdade, o que está em discussão é como fazer tal intervenção e tal correção. Até hoje, tudo o que presenciamos foi um ensino de língua impositivo, tachativo, cheio de “isso pode, isso não pode”, “isso é certo, isso é errado”, “isso é feio, isso é bonito”. Toda essa forma categórica de ensino não tem surtido muito efeito, pois o que mais se encontram são pessoas, falantes nativas de português, que repetem em alto e bom som que “não sabem português”. É preciso refletir sobre como abordar o aluno que “erra”, para que não se perca a oportunidade de discutir com ele uma variedade de língua que a sociedade prestigia. O abismo existente entre a fala do aluno e a norma ensinada pela escola só diminuirá quando se adotar, para o ensino de língua portuguesa, a consciência de que se devem formar indivíduos bidialetais. Nessa perspectiva, a missão da escola, segundo Lemle (1978): [...] não é de fazer com que os educandos abandonem o uso de sua gramática ‘errada’ para a substituírem pela gramática ‘certa’, e sim a de auxiliá-los a adquirirem, como se fora uma segunda língua, competência no uso das formas linguísticas da norma socialmente prestigiada, à guisa de um acréscimo aos usos linguísticos regionais e coloquiais que já dominam (LEMLE, 1978, p. 62).
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A ideia, como você pode perceber, não é a de que o aluno deva substituir uma norma pela outra, do contrário estaríamos legitimando a existência de um ideal linguístico, mas que ele possa, por meio da escola, adquirir a norma de prestígio como se fosse uma segunda língua, a ser usada nos contextos adequados. Conforme ressaltado, reconhecemos que é papel da escola ocupar-se preferencialmente da dita norma oficial, uma vez que, como assinalado na epígrafe que abre esta aula, dominar os usos socialmente prestigiados pode garantir o acesso à cidadania e impedir que se perpetuem a dominação e a exploração econômica. Ensinar essa norma, entretanto, não tem necessariamente a ver com o ensino de gramática da maneira como tem sido feito. Isso significa que é preciso abandonar o ensino de gramática nas aulas de português? Acompanhe essa discussão a seguir.
E AS AULAS DE GRAMÁTICA COMO FICAM? As aulas de português são frequentemente confundidas com aulas de gramática, em que o aluno é levado a identificar e reconhecer funções sintáticas em infindáveis listas de exercícios, num estudo baseado na mera utilização de nomenclaturas ou na reprodução de regras. Essa atividade puramente mecânica e metalinguística nada tem a ver com a ampliação da competência comunicativa do aluno, que deve ser o
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objetivo primordial do ensino de português. Ao contrário, está sustentada em uma visão normativa, segundo a qual “gramática é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores” (FRANCHI, 1991, p. 48). Por essa perspectiva, língua é entendida como sinônimo de norma padrão, e tudo o que desta se afasta é tido como ilegítimo. Por essa concepção equivocada, fica sugerido que outras variedades diferentes do padrão são desprovidas de organização, de gramática. Entretanto toda variedade linguística tem uma organização gramatical, tem gramática, portanto. Uma construção como “Os menino joga bola” tem organização gramatical da mesma forma que “Os meninos jogam bola”. O que as diferencia, contudo, é o fato de que esta última segue normas da gramática prescritiva e a primeira, as normas da gramática internalizada pelo falante em seu processo de aquisição da linguagem. Estudar uma língua em qualquer de suas variedades significa estudar a sua gramática, por isso “a escola não pode criar no aluno a falsa e estéril noção de que falar e ler ou escrever não têm nada que ver com gramática” (Neves, 2000, p. 52). Assim, note que a questão fundamental não é ensinar ou não ensinar gramática, mas o que priorizar nesse ensino. Para começar, é importante que se leve em conta o funcionamento real da língua, observando a existência de formas alternantes - padrão e não-padrão. As atividades propostas devem distanciar-se da ideia do ‘certo’ e do ‘errado’ e promover a reflexão sobre os fatos linguísticos, não perdendo de vista que o objetivo do ensino de língua portuguesa deve estar centrado na proposta de capacitar o aluno para a produção de textos orais e escritos.
tações para que o aluno possa empregar adequadamente as unidades linguísticas e combiná-las para atingir os efeitos pretendidos na interação comunicativa (a descrição de como empregar os pronomes; de como usar as flexões de tempo e de modo; de como estabelecer relações semânticas entre partes do texto etc.). A escola também deve capacitar o aluno para decodificar sentidos em estruturas mais complexas, comuns em gêneros textuais mais eruditos (BARBOSA, 2007).
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Segundo Antunes (2003), devem-se ensinar regras de gramática como orien-
Esclarecemos que também é importante trabalhar metalinguagem na sala de aula, mas não como um fim em si mesmo. É importante que o aluno saiba o que é um pronome pessoal, uma conjunção adversativa ou conclusiva, porém esse conhecimento só terá validade se souber usá-los com eficiência em textos orais e escritos. De acordo com Barbosa (2007), o ensino da língua portuguesa deve sempre considerar os saberes envolvidos nesse processo: o saber do aluno (saber da norma vernácula de uso do falante), o saber do professor (recebidos nos cursos de graduação) e a norma subjetiva (linguístico prescritivo). Assim, diante da pergunta do aluno “Está certo?”, o professor deve refletir com ele observando: 1) o que dizem os falantes; 2) o que diz a tradição; e 3) o que dizem as pesquisas linguísticas. Primeiramente, o professor deve saber observar e descrever as variedades trazidas por seus alunos, localizando os contextos de uso (escrita e oralidade). Em seguida, investiga-se o que dizem as gramáticas tradicionais, de que maneira o ponto aparece designado, descrito, prescrito. Por fim, a escola deve, com auxílio de dialetólogos e ________________________ sociolinguistas, descrever as normas cultas locais e fornecer generalizações descriti- ________________________ vas a partir das pesquisas, esquivando-se, dessa forma, das explicações sem sentido ________________________ sobre ‘certo’ e ‘errado’. Como informa Barbosa (2007, p. 46), “dos estudos científicos virá ________________________ a matéria-prima para a reflexão que o leva a entender não só a dinâmica da mudança ________________________ linguística, mas a mudança na própria norma padrão.”
Reeducação sociolinguística Bagno (2007), no livro Nada na língua é por acaso, assinala que uma revolução no ensino da língua passa por uma reeducação sociolinguística do professor. Um professor que não acredita que a língua não é uniforme, que há diversas variedades de língua e que todas são dignas de serem trabalhadas em sala, certamente, não vai conseguir levar adiante um ensino de português que respeite a variação. A mudança de atitude deve partir das salas de aula dos cursos de Letras e Pedagogia, pois é preciso formar professores conscientes, reeducados sociolinguísticamente, para que eles possam desenvolver diacussões frutíferas em sala de aula.
É imperioso que os educadores de língua materna reconheçam a diversidade linguística e tornem o aluno apto para empregar a língua, adequando-as à intenção comunicativa do contexto e dos seus interlocutores. Como destacado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), para essa tarefa:
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a escola precisa livrar-se de vários mitos: o de que existe uma forma
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outras, o de que a fala correta é a que se aproxima da língua escrita,
correta de falar, o de que a fala de uma região é melhor da que a de o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua difícil, o de que é preciso consertar a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. (BRASIL, 1997, p. 31)
É dever do professor conversar com os alunos sobre o prestígio e o estigma que detarminadas variedades de língua trazem consigo, contudo cabe ao aluno decidir qual variedade de língua vai querer usar. Impor ao aluno que abandone a variedade popular que veio usando até o dia em que conheceu algumas regras de português é algo violento e pode não surtir o efeito desejado. Quando o ensino de português é eficiente, o aluno, muitas vezes, por conta própria, passa a usar de forma alternada as variedades ou, ainda, pode optar por abandonar a sua antiga forma de se expressar e adotar a que a escola lhe apresentou. Isso, porém, tem que ser uma decisão do estudante, não uma imposição do professor.
Nesse sentido, Bortoni-Ricardo (2005) diz que é preciso desenvolver nos professores uma pedagogia culturalmente sensível, ou seja, o professor precisa estar atento ao que cerca o grupo com o qual trabalha, pois apenas o conhecimentos das regras
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gramaticais não será suficiente para ser um bom professor de português. A abordagem do conteúdo a ser trabalhado será, certamente, diferenciado quando se ensina português em uma comunidade pobre, em que falta comida no dia a dia, e em uma escola de classe alta, em que os meninos não passam nenhum tipo de necessidade. É preciso perceber o que cada grupo demanda para conseguir conduzir uma discussão sobre língua de forma eficaz.
NA PRÁTICA, O QUE PODEMOS FAZER?
Depois de toda a nossa discussão, você já sabe que encontrará grandes desafios em sua tarefa como professor de língua portuguesa, entretanto estará munido de muitos conhecimentos para “acertar o tom” em sua sala de aula. Ao longo de nossa conversa, insistimos na necessidade de introduzir a variação linguística nas aulas de português pelo seu papel na formação da consciência linguística do aluno e no desenvolvimento de sua capacidade comunicativa.
A seguir apresentamos algumas sugestões de atividades, reproduzidas dos PCNs (BRASIL, 1998, p. 82-83), para o exercício dessas práticas em sala:
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Pelo que se pode ver, há mais de uma década os documentos oficias que regulam o ensino de português no Brasil já discutem a necessidade de se realizarem aulas que respeitem a diversidade linguística. É fato, ainda, que, mesmo diante de tais documentos, o professor se sente pressionado e em dúvidas sobre como ensinar as regras de gramáticas, requeridas pela escola tradiconalista, e, ao mesmo tempo, fazer um ensino de língua que inclui e respeita o estudante. A resposta está em fazer aulas reflexivas, que levem os estudantes a construírem conceitos a partir de amostras reais de fala. Apenas elencar uma lista interminável de regras não tem sido algo eficiente, não acha? Pensemos em como tratar, por exemplo, a concordância verbal em sala de aula. É possível partir de frases escritas pelos próprios estudantes, e o professor logo vai deixar claro que são manifestações liguísticas perfeitamente possíveis. A partir de tais frases, com os estudantes em grupos, para que possam debater questões, pode-se problematizar alguns apectos observados. Veja alguns supostos exemplos retirados de atividades de alunos:
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1 - Acabou as aulas. 2 - Os estudos começou. 3 - Maria e seu marido falam sempre muito alto. 4 - Muitas coisas boas, que Maria costuma fazer urante o ano, são esquecidas em dezembro.
Ao conversar com os alunos sobre frases como as colocadas anteriormente, pode-se discutir o porquê de a frase 1 soar tão natural e a frase 2 parecer tão alarmantemente errada. Deve-se fazê-los notar que a posição do sujeito após o verbo leva o falante a “esquecer” que o sujeito deve concordar com o verbo. De forma semelhante, os alunos podem ser conduzidos a reflexões sobre o que acontece com frases com sujeito composto ou mesmo com frases em que o sujeito fica muito distante do verbo, como a 4. Após toda a discussão, que pode e deve ser conduzida pelo professor, é possível solicitar que os alunos redijam possíveis regras de concordância, partindo daquilo que eles problematizaram. Depois de tal redação das regras, a turma deve recorrer à gramática para confirmar ou refutar as hipóteses que criaram. Dessa forma, seguramente, os conhecimentos apreendidos farão muito mais sentido e serão muito mais facilmente internalizados.
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A princípio pode parecer um tanto difícil, mas essa sensação é apenas porque se trata de uma atividade diferente. Com vontade e algumas tentativas, você, futuro professor, também encontrará um caminho eficiente para ensinar uma língua real. Não há receitas prontas, pois cada turma é diferente e precisa de atividades diferentes. Esperamos, de verdade, que, ao fim dessas aulas, possamos ter contribuído para que você tenha um novo olhar sobre a língua e que possa, com isso, fazer um ensino que respeite a identidade de seu aluno, sem, contudo, perder de vista que é função das aulas de português oferecer uma nova possibilidade ao aluno, um novo viés, a norma culta. Sucesso ao longo de sua caminhada pelas estradas da educação.
Síntese Nesta aula, reservada à discussão sobre a variação linguística e ensino, foram retomadas questões discutias ao longo de todo o curso. Inicialmente, discutiu-se sobre uma crise no ensino de português e sobre qual língua ensinar, se a norma padrão ou a culta. Em meio a essa polêmica, mostrou-se que as aulas de gramática precisam estar mais ligadas à realidade dos alunos, assim como os professores necessitam se reeducar sociolinguisticamente para conseguirem passar adiante valores em que realmente acreditem. Por fim, de forma breve, foram apresentadas sugestões de atividades que
questão para Reflexão O ensino tradicional de língua portuguesa tem surtido o feito desejado? Já tentou pensar exatamente por que isso ocorre? Um ensino de língua respeitando a diversidade seria mesmo mais eficiente? Tente elencar pontos positivos e negativos de cada modalidade de ensino, a fim de, ao final, ter clara qual a melhor opção para as
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respeitem a variação linguística e que estão disponíveis nos PCNs de Português.
suas futuras aulas de português.
Leituras indicadas BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares nacionais: Língua Portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, 1998. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
Referências ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.
BARBOSA, Afrânio Gonçalves. Saberes gramaticais na escola. In: BRANDÃO, Sílvia Figueiredo; VIEIRA, Sílvia Rodrigues. Ensino de Gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?: Sociolingüística e educação. São Paulo: Parábola, 2005.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares nacionais: Língua Portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:MEC, 1998.
FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira - desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.
FRANCHI, C. Mas o que é mesmo “gramática”? In: Língua portuguesa: o currículo e a compreensão da realidade. São Paulo, SE/CENP,1991.
LEMLE, Mirian. Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática: conhecimento e ensino. In: AZEREDO, José Carlos de (Org.). Língua Portuguesa em debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 52-73.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
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