Articulo-A-dinamica-cultural

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A dinâmica cultural no encontro do Velho e do Novo Mundo

Ubiratan D’Ambrosio ubi@usp.br

Resumo: Esta é uma tentativa de reinterpretar a história da ciência a partir do encontro do Velho e do Novo Mundo no século XVI, recorrendo a tradições intelectuais, práticas culturais e atores históricos que têm sido negligenciados. Essas tradições estão presentes nas etnomatemáticas e etnociências das culturas da região. A abordagem baseia-se nos instrumentos teóricos do ciclo do conhecimento e comportamento e da metáfora da bacia, e considera a troca de idéias, os gostos estéticos, a cultura material, e as explicações e interpretações em contextos locais e globais, que tem como conseqüência a geração de novas idéias, práticas e explicações resultantes dos encontros culturais. Palavras

chave:

Dinâmica

cultural,

etnomatemática,

etnociência,

conhecimento, transdisciplinaridade.

Resumen: La dinámica cultural en el encuentro del viejo y del nuevo mundo.

Esta es una tentativa de reinterpretar la historia de la ciencia a partir del encuentro del Viejo y del Nuevo Mundo en el siglo XVI, recurriendo a tradiciones intelectuales, prácticas culturales y actores históricos que han sido descuidados. Esas tradiciones están presentes en las etnomatemáticas y etnociencias de las culturas de la región. El abordaje se basa en los instrumentos teóricos del ciclo del conocimiento y comportamiento y de la metáfora de la bacía, y considera el cambio de ideas, los gustos estéticos, la cultura material y las explicaciones e interpretaciones en contextos locales y globales, que tienen como consecuencia

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la generación de nuevas ideas, prácticas y explicaciones resultantes de los encuentros culturales. Palabras clave: dinámica cultural, etnomatemática, etnociencia, conocimiento, transdisciplinariedad.

Abstract: Cultural dynamics in the encounter of the old and the new world

This is an attempt to reinterpret history of science, from the encounter of the Old and the New World in the 16th century, looking into intellectual traditions, cultural practices and historical actors that have been neglected. These traditions are present in the ethnomathematics and ethnosciences of the region. The approach is based on the theoretical instruments of the cycle of knowledge and behavior and the basin metaphor, and considers the exchange of ideas, aesthetic tastes, material culture, and the explanations and interpretations in local and global contexts, which have as a consequence the generation of new ideas, practices and explanations which result of the cultural encounters. Key words: Cultural dynamics, ethnomathematics, ethnosciences, knowledge, transdisciplinarity.

Data de recepção: maio 2009 Versão final: julho 2009

Etnociência e Etnomatemática

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Em meados da década de setenta, propus um programa em história e educação que denominei Etnomatemática (D’Ambrosio, 1985 e D’Ambrosio, 1990). A proposta foi logo ampliada para o conceito de Etnociência, visando a inclusão de todas as ciências, de fato de todo

o

conhecimento,

nesse

enfoque

histórico

e

metodológico

(D’Ambrosio,

1991).

Posteriormente adotei a denominação Programa Etnomatemática para um amplo programa de pesquisa sobre conhecimento (D’Ambrosio, 2001). Embora o nome sugira ênfase na Matemática, esse é um estudo transdisciplinar e transcultural da evolução da humanidade no seu sentido amplo, a partir da dinâmica cultural, que se nota particularmente nas manifestações matemáticas. Mas que não deve ser confundida com a Matemática no sentido acadêmico, estruturada como uma disciplina. Sem dúvida, essa Matemática é importante, mas ela representa uma área muito pequena da atividade consciente que é praticada por uma pequena minoria de seres humanos para uma fração muito limitada de sua vida consciente. O mesmo se pode dizer sobre a Ciência acadêmica, em geral. A essência do Programa Etnomatemática é uma proposta de teoria do conhecimento. Na verdade, poderia igualmente ser denominado Programa Etnociência. Um exercício de etimologia nos lembra que ciência vem do latim scio, que significa saber, conhecer, e matemática vem do grego máthema, que significa explicação, ensinamento. Está claro que os Programas Etnomatemática e Etnociência se complementam. Na verdade, eles se confundem na acepção que proponho. O ponto de partida é o exame da história das ciências, das artes, das religiões em várias culturas. Adoto um enfoque externalista, o que significa procurar as relações entre o desenvolvimento das disciplinas científicas ou das escolas artísticas ou das doutrinas religiosas e o contexto socio-cultural em que tal desenvolvimento se deu. O programa vai além desse externalismo, pois aborda também as relações íntimas entre cognição e cultura. Ao reconhecer que o momento social está na origem do conhecimento, o programa, que é de natureza holística, procura compatibilizar Cognição, História e Sociologia do Conhecimento e Epistemologia Social num enfoque transdisciplinar e transcultural.

O encontro do Velho e do Novo Mundo O encontro de mundos com civilizações inteiramente distintas exige uma nova proposta historiográfica, o que foi proposto em D’Ambrosio, 1988.

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A grande epopéia dos descobrimentos revelou aos viajantes europeus a existência de outro céu, outras terras e outros povos. Quem eram esses viajantes? É importante lembrar que os navegantes que comandavam as expedições tinham boa formação científica, muitas vezes com formação universitária. Vamos antes notar que costumamos recorrer a dois tipos de viajantes como fontes históricas: aqueles que vieram, viram, ouviram e ficaram, incorporando-se ao Novo Mundo; e aqueles que vieram, registraram o que viram

e ouviram, e retornaram, estimulando o

imaginário europeu sobre o Novo Mundo. Esse imaginário é notado nas artes, na literatura e na ficção em geral. Mas o saber e o fazer científico europeu foram, igualmente, afetados por esse imaginário.

Elementos

dessas novas fontes de informação foram incorporados aos

desenvolvimentos da ciência européia. Particularmente na farmacopéia, um clássico é o livro

Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia, de autoria de Garcia de Orta (ca1490-1568). Outros cronistas, como Duarte Pacheco Pereira (1465-1533) e sua obra maior, o Esmeraldo de situ orbis, de 1506, influenciaram o pensamento científico da época. O próprio título da obra é objeto de especulações. Neste livro, fica clara a conceituação de ciência que serve de apoio às navegações. A conhecidíssima frase “A experiência é a madre de todas as cousas, per ela soubemos radicalmente a verdade..." revela que o método científico, baseado em experimentações, era na verdade o reconhecimento e observação da prática. Em ambos os casos, o fenômeno da dinâmica cultural é fundamental. Como um organismo, as culturas estão em permanente transformação. Essa transformação está sujeita a uma dinâmica muito complexa e constitui um dos temas mais intrigantes na moderna historiografia das ciências. No caso do viajante que vem e fica, os desafios da sobrevivência nas novas terras têm como resultado a criação de uma nova tecnologia. Particularmente no caso das Américas, alguns exemplos dessa criatividade são notáveis. Por outro lado, muitas vezes a adoção pura e simples de tecnologias desenvolvidas em outros ambientes naturais, sociais e culturais mostrase inútil e mesmo prejudicial. Essas são o que o sociólogo-historiador Fernando Flores Morador denomina tecnologias quebradas (broken technologies) (Flores, 2009). Como exemplo, o processo de mineração foi central na colonização espanhola. Inicialmente, os conquistadores entraram num processo de comercialização com os nativos, como fica evidente pela publicação do primeiro livro não religioso nas Américas, o Sumario

compendioso de las quentas de plata y oro que en los reinos del Pirú son necessarias a los mercaderes y todo genero de tratantes. Con algunas reglas tocantes al aritmética , por Juan Diez Freyle (Mexico, 1556). Poucos anos depois, os colonizadores assumiram a produção, com a abertura de novas minas. O modelo adotado para essa mineração foi aquele ensinado por

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Agrícola, no clássico De Re Metálica (1556). Naturalmente, as técnicas de Agrícola eram inadequadas nas novas terras e surgem então os primeiros tratados de mineração nas Américas. 1 Outro caso que merece destaque é o da urbanização. O encontro de cidades majestosas, sobretudo no México e no Peru, conduziu a um modelo urbanístico que adquiriu características próprias, mas muito distintas em diferentes regiões das Américas. Na verdade, desenvolveram-se várias escolas de urbanização, como bem estudado por Catalá (1996). O resultado dessa criatividade é a formação de um novo conhecimento, que incorporou e enriqueceu o conhecimento dos países centrais. Uma pergunta básica questiona os conhecimentos que os colonizadores encontraram nas novas terras. Os registros das viagens dos navegantes e dos cronistas que os acompanhavam é uma das mais importantes fontes históricas. São muito importantes as crônicas de Cristóvão Colombo e de Vasco da Gama. No descobrimento do Brasil, os três únicos documentos foram escritos por Pero Vaz de Caminha, pelo Mestre João Faras e por um piloto anônimo. 2 Todos os primeiros viajantes silenciaram sobre o que encontraram que pudesse ser identificado como ciência nas novas terras. Nem mesmo na organização do espaço, seja na urbanização dos altiplanos, seja nas aldeias, e construções das tabas. Na verdade, deve-se atribuir isso ao não reconhecimento da especificidade de certas formas de conhecimento, que viriam a ser identificada como ciência e como matemática somente muito mais tarde. Uma das divergências mais interessantes refere-se ao conhecimento numérico. O sistema de contagem do tempo, tipo calendário, que implica um elaborado sistema de contagem, foi reconhecido por um viajante, Binot Paulmier de Gonneville, em 1504. Ele diz: “Arosca consentiu que seu jovem filho...viesse para a cristandade, porque prometiam ao pai e ao filho traze-lo de volta dentro de 20 luas o mais tardar; pois assim significam eles os meses”. (Ribeiro, 1992, p.110)

Porem, outros viajantes se referem apenas a outra forma, muito limitada, de conhecimento numérico dos nativos. Os sistemas de contagem são apontados como a capacidade de apenas contar com os dedos das mãos e, como recurso excepcional, dos pés. Segundo relata Nicolas Barré, em 1556:

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Esse tema é bem discutido por Tapia, 1999. Para os textos e comentários, ver Pereira, 1999.

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“Sua linguagem é bastante copiosa em expressões, mas sem números, tanto que quando querem significar cinco, eles mostram os cinco dedos da mão”. (Ribeiro, 1992, p. 81)

Uma explicação para a ausência de um sistema de numeração reconhecido como contagem de objetos é dada por Frei Vicente do Salvador (1564?-1636?) na primeira História do Brasil, que foi completada em 1627: “Pois hei tratado neste capítulo do contato matrimonial deste gentio, tratarei também dos mais contratos, e não serei por isso prolixo ao leitor, porque os livros que hão escrito os doutores de Contractibus sem os poderem de todo resolver, pelos muito que de novo inventa cada dia a cobiça humana, não tocam a este gentio; o qual só usa de uma simples comutação de uma coisa por outra, sem tratarem do excesso ou defeito do valor, e assim com um pintainho se hão por pagos de uma galinha. Nem jamais usam pesos e medidas, nem têm números por onde contem mais que até cinco, e, se a conta houver de passar daí, a fazem pelos dedos das mãos e pés. O que lhes nasce de sua pouca cobiça; posto que com isso está serem mui apetitosos de qualquer coisa que vêem, mas, tanto que a têm, tornam facilmente de graça ou por pouco mais que nada”. (Salvador, 1965, p. 89-90)

A etnociência procura enveredar pela história das tradições na construção do conhecimento científico. Por exemplo, resquícios de sistemas de numeração e a riqueza das figuras geométricas que intervém na decoração, são indicadores de uma organização de conhecimentos

sobre

quantificação,

classificação,

ordenação

e

outras

categorias

que

manufatura

de

caracterizam o conhecimento matemático. 3 Um

grande

desafio

ao

papel

das

tradições

está

ligado

à

instrumentos/ferramentas, particularmente à pedra lascada, presente em praticamente todos os ambientes culturais. A incorporação desses artefatos dá-se por observação e imitação ou há um processo de ensino/aprendizagem? Nesse caso, pergunta-se se haveria uma intencionalidade, o que significa a busca de explicações. Uma interessante discussão sobre esse tema foi iniciada por Craig T. Palmer, Kathryn Coe and Reed Wadley (Palmer, 2005) comentando sobre a pesquisa de I. Mc Nabb, F. Binyon e L. Hazelwood sobre uma cultura africana que ainda fabrica instrumentos com as técnicas de pedra lascada (Mc Nabb, 2004). No século XVI, temos relatos muito ricos sobre as conquistas espanholas. As crônicas da conquista nos dão muita informação sobre a matemática nas civilizações Asteca, Maia e Inca, bem como de outras culturas andinas. Particularmente interessante é o relato de Bernabe Cobo,

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S.J. (1582?-1657), num capítulo intitulado “Del cómputo del tiempo; de los quipos o memoriales y modo de contar que tenían los índios peruanos.” (Cobo, 1964, p.141) Curioso notar que Bernabe Cobo, S.J., vê, como de Goneville, o sistema numérico dos nativos associado à contagem do tempo, enquanto Frei Vicente do Salvador tem uma percepção essencialmente mercantilista dos sistemas de numeração. O que podemos saber hoje dessas culturas vem de estudos da etnociência e da etnomatemática de culturas sobreviventes (um livro que trata de várias dessas culturas é Closs, 1986). Obviamente, as pesquisas nos mostram a cultura atual, resultado de uma dinâmica cultural que, durante séculos, modificou, e em alguns casos até eliminou, o conhecimento tradicional, sobretudo no que se refere à matemática. O grande interesse das populações indígenas tem sido, ao longo da história, a aquisição do conhecimento do dominador. O dominador se identifica no conquistador, no evangelizador, no colonizador, no mercador, no patrão, no agente do governo, no professor. A busca de instrumento intelectuais que permitem dialogar e eventualmente enfrentar o dominador não se limita à aquisição do seu conhecimento, mas eventualmente se manifesta na absorção desse conhecimento pelo dominado. Assim o conhecimento do dominado é encarado por este como de pouca importância nas relações com o dominador e leva ao esquecimento e mesmo rechaço de seu conhecimento original. Isto é muito claro na linguagem e mesmo na religião. Porém, a absorção do conhecimento do dominador se faz com dificuldade, o que provoca grande transformação desse conhecimento. O conhecimento adquirido é modificado e mantém resquícios do conhecimento do dominado. São bem estudados o conhecimento adquirido mas modificado, das línguas, que dão origem a inúmeras línguas mistas nascidas do contato de um idioma europeu com línguas nativas, línguas maternas de certas comunidades socioculturais: crioulos franceses (Haiti, Martinica, Guadalupe), crioulos ingleses (Jamaica, Estados Unidos), crioulos portugueses (África, Índia, China), crioulos neerlandeses (Indonésia). Essas línguas são mais eficientes que aquelas trazidas pelos europeus no atendimento a necessidades básicas de comunicação das populações dominadas. Também são estudadas as religiões que apresentam como mistura ou ajuntamento de elementos fundamentalmente diferentes e heterogêneas do cristianismo com as práticas religiosas, pagãs, do dominado. Menos estudados são os conhecimentos de ciências naturais e matemática. Esse é um dos objetivos do Programa Etnomatemática. A recíproca também se dá, isto é, o conhecimento do dominador também é transformado pelo conhecimento do dominado. Isso se dá nos costumes, na linguagem, nas artes, nas crenças e nas religiões, e em inúmeras outras manifestações de conhecimento. Alguns 3

Para mais detalhes, ver Ferreira, 1998; Bello, 1995; e Amâncio, 1999

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elementos do conhecimento do dominado se incorporam ao conhecimento do dominador, enriquecendo-o e sendo aceito. Como evidência dessa dinâmica temos a farmacopéia, a culinária, a linguagem, a música, as artes plásticas a matemática e a própria religião. Nosso esforço tem sido reconhecer os efeitos dessa dinâmica cultural (D’Ambrosio, 1999).

Para um enfoque transcultural e transdisciplinar à História da Ciência Estamos passando por grandes transformações na sociedade e, em particular, na educação. Hoje falamos em educação bilíngüe, em medicinas alternativas, no diálogo interreligioso. Inúmeras outras formas de multiculturalismo são notadas nos sistemas educacionais e na sociedade em geral. As profundas transformações nos sistemas de comunicação, de informatização, de produção e de emprego, são resultados de um processo que vem sendo chamado mundialização e que tem suas origens nos grandes descobrimentos a partir do século XV. Vai muito além do que se chama globalização, termo associado ao termo globalização, que se refere a o processo no qual os mesmos princípios de economia de mercado são aplicados em todo o planeta e que, portanto, leva em conta apenas o setor econômico. Mundialização refere-se a um processo muito mais complexo, examinando a diversidade e a singularidade dos diferentes processos de globalização existentes em todas as áreas de atividade. A mundialização contempla o conjunto de processos culturais, sociais, econômicos, políticos e de informação, aplicados a todo o planeta. Trata-se de tudo que é divulgado em escala mundial, independentemente das barreiras de origem nacionais, geográficas, tecnológicas, lingüísticas, capazes de ter um impacto no mundo como um todo, na terra inteira, nas atividades humanas, qualquer que seja o contexto étnico, geográfico e cultural. Os reflexos da mundialização na geração e aquisição de conhecimento são evidentes. Um resultado esperado dos sistemas educacionais é a aquisição e produção de conhecimento. Isso ocorre fundamentalmente a partir da maneira como um indivíduo percebe a realidade nas suas várias manifestações: •

uma realidade individual, nas dimensões sensorial, intuitiva, emocional, racional;

uma realidade social, que é o reconhecimento da essencialidade do outro;

uma realidade planetária, o que mostra sua dependência do patrimônio natural e cultural e sua responsabilidade na sua preservação;

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uma realidade cósmica, levando-o a transcender espaço e tempo e a própria existência, buscando explicações e historicidade.

As práticas ad hoc para lidar com situações problemáticas surgidas da realidade são o resultado da ação de conhecer. Isto é, o conhecimento é deflagrado a partir da realidade. Conhecer é saber e fazer. A geração e acúmulo de conhecimento em uma cultura obedece a uma forma de coerência. Há, como dizia J. Kepler no Harmonia Mundi, 1618, uma comunhão de idéias e de ações na qual se manifesta o “zeitgeist”, que viria a se fundamental na proposta historiográfica de G. W. F. Hegel (1770-1831). Essa comunhão de idéias e de ações é característica de uma cultura. Ela é identificada pelos seus sistemas de explicações, filosofias, teorias, e ações e pelos comportamentos cotidianos. Tudo isso se apóia em processos de comunicação, de quantificação, de classificação, de comparação, de representações, de contagem, de medição, de inferências. Esses processos se dão de maneiras diferentes nas diversas culturas e se transformam ao longo do tempo. Eles sempre revelam as influências do meio e se organizam com uma lógica interna, se codificam e se formalizam. Assim nasce o conhecimento. O objetivo maior da pesquisa no enfoque transdisciplinar e transcultural é entender o conhecimento e o comportamento humanos nas várias regiões do planeta ao longo da evolução da humanidade, naturalmente reconhecendo que o conhecimento se dá de maneira diferente em culturas diferentes e em épocas diferentes.

Conhecimento e Cultura O ponto de partida para minha análise da história é o conhecimento e sua geração e produção, sua organização intelectual e social e sua difusão. No enfoque disciplinar, essas análises se fazem desvinculadas, subordinadas a áreas de conhecimento muitas vezes estanques: ciências da cognição estudam a geração do conhecimento, a epistemologia estuda sua organização e a história e a política estudam a difusão. Meu enfoque procura integrar essas várias etapas no estudo do conhecimento. Considerando que a percepção de fatos é influenciada pelo conhecimento, ao se falar em história do conhecimento estamos falando da própria história do homem e do seu habitat no sentido amplo, isto é, da Terra e mesmo do Cosmos. Mas não há como falar da Terra e do Cosmos, desligado da visão que o próprio homem criou e tem da Terra e do Cosmos.

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A ciência moderna, ao propor “teorias finais”, isto é, explicações que se pretendem definitivas sobre a origem e a evolução das coisas naturais, esbarra numa postura de arrogância. Minha proposta (D’Ambrosio, 1997) é o enfoque transdisciplinar, que substitui a arrogância do pretenso saber final, cujas conseqüências inevitáveis são comportamentos incontestados, ancorados por uma forma de fundamentalismo, pela humildade da busca incessante, cujas conseqüências são respeito, solidariedade e cooperação. A transdisciplinaridade é, então, um enfoque holístico ao conhecimento que procura levar a essas conseqüências e se apóia na recuperação das várias dimensões do ser humano para a compreensão do mundo na sua integralidade. A

transdisciplinaridade

contempla

o

processo

psico-emocional

de

geração

de

conhecimentos, que é a essência da criatividade, e pode ser categorizado através de três questões básicas: 1. Como passar de práticas ad hoc a modos de lidar com situações e problemas e a métodos? 2. Como passar de métodos a teorias? 3. Como proceder da teoria à invenção? Essas perguntas envolvem os processos de: •

geração e produção de conhecimento;

sua organização intelectual;

sua organização social;

sua institucionalização, transmissão e difusão,

que, como foi dito acima, são normalmente tratados de forma isolada, como disciplinas específicas. O método chamado moderno para se conhecer algo, explicar um fato e um fenômeno, baseia-se no estudo de disciplinas específicas, o que inclui métodos específicos e objetos de estudo próprios. Esse método pode ser traçado a Descartes e resulta na postura reducionista. Logo esse método se mostrou insuficiente. Em 1699, B. de Fontenelle, Secretário da Academia de Ciências de Paris, expressou essa insuficiência do seguinte modo: "Até agora a Academia considera a natureza só por parcelas... Talvez chegará o momento em que todos esses membros dispersos [as disciplinas] se unirão em um corpo

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regular; e se são como se deseja, se juntarão por si mesmas de certa forma." (Fontenelle, 1699, p.xix)

Esta afirmação sugere a multidisciplinaridade, que procura reunir resultados obtidos mediante o enfoque disciplinar, o que também se mostra insuficiente para o tratamento de questões mais complexas que são objeto das pesquisas a partir do século XVIII. Uma tentativa de superar essa insuficiência é a interdisciplinaridade, que transfere métodos de algumas disciplinas para outras, mesclando métodos e identificando novos objetos de estudo. A interdisciplinaridade teve um bom desenvolvimento no século passado e deu origem a novos campos de estudo. Surgiram a neurofisiologia, a físico-química, a mecânica quântica. Inevitavelmente, essas áreas interdisciplinares foram criando métodos próprios e definindo objetos próprios de estudo e, como conseqüência, tornaram-se disciplinas em si e passaram a mostrar as mesmas limitações das disciplinas tradicionais. A transdisciplinaridade procura ir além das disciplinas, das multidisciplinas e das interdisciplinas. Não nego que o conhecimento disciplinar, conseqüentemente o multidisciplinar e o interdisciplinar, são úteis e importantes, e continuarão a ser ampliados e cultivados. Enquanto os instrumentos de observação (aparelhos — artefatos) e de análise (conceitos e teorias — mentefatos) são mais limitados, o enfoque interdisciplinar pode se mostrar satisfatório. Mas com a sofisticação de novos instrumentos de observação e de análise, mesmo o enfoque interdisciplinar vai se tornando insuficiente. A história da ciência no século XX nos dá inúmeros exemplos. A ânsia por um conhecimento mundializado, significativo para todos os povos e por uma cultura planetária, não poderá ser satisfeita com as práticas interdisciplinares. Da mesma maneira, o ideal de respeito, solidariedade e cooperação entre todos os indivíduos e todas as nações não será realizado somente com a interdisciplinaridade. Esse ideal exige a transdisciplinaridade e a transculturalidade. É oportuno conceituar cultura. Conceituo cultura como o conjunto de os sistemas de mitos e valores, de normas de comportamento e estilos de conhecimento, compartilhados por um grupo de indivíduos vivendo num determinado tempo e espaço. Há muitos escritos e teorias, muitas fortemente ideológicas, sobre o que é cultura. Uma linha de pensamento, que podemos chamar imperialismo ocidental, característico do século XIX, origina-se nos descobrimentos e no interesse de escravização de indígenas. Foi necessário a bula Sublimus Dei, de Paulo III, em 29 de maio de 1537, para afirmar que indígenas são humanos. A resistência a aceitação de plena racionalidade de indivíduos de etnias não-européias ainda se mantém em setores populares e mesmo em alguns setores da academia. Para estes setores, a racionalidade está associada aos princípios da não-contradição e do terceiro excluído, o tertium non datur aristotélico. Ver Greiffenhagen & Sharrock (2006) para uma discussão

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interessante sobre o tema, com exemplos da história. Ainda prevalentes nas ciências disciplinares, esses princípios tem sido apontado como o determinante do racionalismo. Os grandes conflitos paradigmáticos que deram origem ao pensamento transdisciplinar estão relacionados com esses dois princípios (D’Ambrosio, 1997). O estudo de culturas que deixam de seguir esses dois princípios, da não-contradição e do terceiro excluído, é um campo fértil de pesquisa. Ao longo da história, tempo e espaço foram se transformando. A comunicação entre gerações e o encontro de grupos com culturas diferentes cria uma dinâmica cultural e não podemos pensar numa cultura estática, congelada em tempo e espaço. Essa dinâmica é lenta e o que percebemos na exposição mútua de culturas são dois tipos de dinâmica: 1. imposição e subordinação de uma cultura a outra; 2. convivência multicultural. O primeiro tem como conseqüência a repressão, e algumas vezes, até mesmo a eliminação e destruição da cultura subordinada. O segundo resulta numa nova cultura. Obviamente, os dois tipos não constituem uma separação estanque e a história nos ensina que sempre há elementos dos dois tipos de dinâmica presentes no que chamamos progresso. Particularmente na história das ciências, os dois tipos de dinâmica estão presentes, como fica evidente na medicina, em especial na farmacologia. Esse tema tem sido objeto de sérias divergências entre historiadores da Antiguidade Clássica. As divergências são, também, carregadas de ideologia. Particularmente importante tem sido a discussão, focalizada nas influências afro-asiáticas na Grécia, particularmente as polêmicas originadas da contestação da obra de Martin Bernal por Mary Lefkovitz. A postura multicultural e, naturalmente, a intercultural, que é uma extensão natural das considerações intraculturais, revela a insuficiência das disciplinas. Essa insuficiência é explicitada por René Descartes (1596-1650), no seu Discurso do Método, de 1637, um marco do pensamento moderno, Descartes diz: “Quando era mais jovem, eu estudara um pouco de filosofia, de lógica, e, das matemáticas, a analise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam poder contribuir com algo para o meu propósito. No entanto, analisando-as, percebi que, quanto à lógica, seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar aos outros as coisas já conhecidas, ou mesmo, como a arte de Lúlio, para falar, sem formar juízo, daquelas que são ignoradas, do que para aprendê-las (…) no que concerne à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a assuntos muito abstratos, e de não parecerem de utilidade alguma, a primeira permanece sempre tão ligada à consideração das figuras que não pode propiciar a compreensão sem cansar muito a imaginação; e, na segunda, esteve-se de tal maneira

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sujeito a determinadas regras e cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que atrapalha o espírito, em vez de uma ciência que o cultiva. Por este motivo, considerei ser necessário buscar algum outro método que, contendo as vantagens desses três, estivesse desembaraçado de seus defeitos.” (Descartes, 1999, p.48-49)

As disciplinas são, evidentemente, constructos internos a uma cultura. A atitude intercultural exige a superação da diferenciação disciplinar. Torna-se necessário abordar o conhecimento transdisciplinarmente, pois ao tentar identificar disciplinas em outras culturas, o pesquisador

desvirtua

a

textura

da

cultura

estudada.

A

liberdade

intrínseca

à

transdisciplinaridade tem como conseqüência uma postura transcultural. Assim, transdisciplinar e transcultural estão em relação natural, como que simbiótica, nas estratégias de entender e explicar conhecimento em diferentes culturas. O mesmo em relação à metodologia. As pesquisas sobre culturas variadas exigem uma grande liberdade metodológica. Sintetizando, o conhecimento evolui, na história da humanidade, em um processo cíclico, holístico, transdisciplinar e transcultural, sintetizado como geração, organização intelectual e social, e transmissão, institucionalização e difusão do conhecimento.

Sobre a historiografia na América Latina Ao estudar a história da humanidade, a partir do final do século XVII e século XX, a historiografia tende a “disciplinar” esse ciclo, procurando a entender a história de cada disciplina como um fato histórico em si. Essa distorção prevalece nos estudos de Historia da Ciência, embora tenha sido denunciada, timidamente, por Karl Marx e por Lucien Febvre e Marc Bloch e, posteriormente, por Boris Hessen, no Segundo Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia, realizado em Londres em 1931, quando apresentou uma nova interpretação para a contribuição de Newton (Hessen, 1985). Digo timidamente, pois todos tratam, apenas, da organização social e da institucionalização das disciplinas. Não se referem à sua geração e organização intelectual. Minha proposta é estudar a História da Ciência procurando entender e explicar o processo cíclico, holístico, transdisciplinar e transcultural de geração, organização intelectual e social, e institucionalização e difusão do conhecimento em toda a humanidade e as consequências dos encontros culturais nesse processo. 4 A meta de uma Historia do Mundo, é identificar e entender o surgimento e a evolução de comportamentos e conhecimentos 4

Essa proposta está em concordância com o movimento denominado World History. Para detalhes visitar o site http://www.thewha.org.

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refletindo a diversidade das experiências humanas e a dinâmica do encontro dos vários modos e estilos de comportamento e conhecimento. A necessidade de uma História do Mundo é consequência de um intenso processo de mundialização que se iniciou a partir dos grandes navegações do século XV e que se intensificou com o surgimento de novos meios de produção, transporte, e comunicação. A multiplicidade de fatores envolvidos na produção e no reconhecimento do conhecimento científico é muito complexa e não se explica por nomes, resultados, datas e localidades. É impossível situar conhecimento científico como tendo começado num contexto, em determinada época, sendo alguém o “herói” responsável por ele. Os heróis são identificados

a posteriori. Geralmente a amplitude do novo pensar, refletindo o novo espírito da época, não é reconhecido no culto aos heróis. Aparecem na sua época e não são os determinantes da história. Naturalmente, há exceções, por exemplo no caso de Newton, quando o reconhecimento foi em vida. A partir do século XIX, com crescente interesse dos complexos político e financeiro, a institucionalização das ciências e o reconhecimento de indivíduos que propõem novas direções, vem se dando em vida. Exemplo disso é a instituição do Prêmio Nobel e outros tipos de reconhecimento de “heróis”. O reconhecimento da importância de cientistas pelos pares tem sido objeto de uma interessante linha de pesquisa, baseada na análise de relatos, descritiva e biográfica, de pares e de público em geral. Muitas vezes analisadas até mesmo formas de vulgarização. Como já disse acima, procuro entender o conhecimento científico a partir da análise de sua geração, de sua organização social e intelectual e de sua transmissão, institucionalização e difusão, o que constitui um processo cíclico inserido numa realidade espacial e temporal que informa os indivíduos e grupos que irão deflagrar o processo. Essas várias etapas, que já foram apresentadas acima, são, normalmente, estudadas em disciplinas autônomas, respectivamente cognição, história, epistemologia e política. Uma análise histórico-crítica da elaboração e da evolução do conhecimento pode ser feita considerando sete etapas. Para efeito de exposição, vou apresentá-las linearmente. 1. O ambiente natural e cultural, no qual está inserida a história de cada indivíduo, da sua comunidade, de sua cultura informa indivíduos; 2. estes intercambiam essas informações através de sistemas crescentemente mais sofisticados de comunicação; 3. dessa informação, enriquecida pela comunicação e coletivizada, é gerado conhecimento para explicar e lidar com o ambiente;

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4. esse conhecimento se organiza socialmente, sendo compartilhado pelos pares e pela comunidade; 5. e se organiza intelectualmente em sistemas de conhecimento que ajudam a comunidade na sua busca de sobrevivência e de transcendência; 6. são então expropriados pela estrutura de poder; 7. através de sua difusão, são devolvidos ao povo, mediante filtros institucionais (códigos, normas, escolas, diplomas e certificados), que mistificam o conhecimento. Mas o ciclo do conhecimento é, obviamente, não linear e as várias etapas se influenciam mutuamente. As várias fases na elaboração e evolução do conhecimento se mesclam. Não se dão em qualquer forma de linearidade. Muitos chamam esse enfoque de “relativismo cultural” e chegam a contestá-lo. Particularmente na História da Matemática há muitos que negam a contextualização. Naturalmente, fica evidente nessa negação o que se entende pela natureza do conhecimento matemático, isto é, o posicionamento filosófico. As sete etapas dão origem a inúmeras questões. Destaco as seguintes: •

O que é realidade?

Como o indivíduo recebe informações que deflagram o processo cognitivo? Como funcionam os mecanismos sensoriais? O que é memória? O que é intuição?

Como se dá a geração individual do conhecimento?

Como se dá a comunicação? Quais seus limites? Quais as conseqüências da interação comunicativa?

Qual o processo de organização social do conhecimento?

Como o conhecimento, já coletivizado, se estrutura e é validado como um corpo de conhecimento? O que é verdade?

Como o conhecimento é reconhecido como elemento de poder?

Quais os mecanismos de expropriação e de hierarquização de conhecimento?

Como se organiza a difusão do conhecimento? Como se disponibiliza e se sdisparte o conhecimento? Quais os interesses e filtros que canalizam a disponibilidade e o dispartir?

Como tem sido quebrado o ciclo geração-organização-expropriação-difusão ao longo da história, particularmente nas chamadas revoluções?

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Cada uma dessas questões é uma área ativa de investigação e tem sido objeto de considerações dos pensadores de todos os tempos. O conjunto dessas questões constitui uma proposta historiográfica. Devemos reconhecer que aos países periféricos é reservada uma situação de serem não mais que afluentes do curso principal do atual do desenvolvimento científico e tecnológico. Nisso consiste a Metáfora da Bacia, que considera o conhecimento dos países centrais como a massa de água de uma grande caudal e a contribuição dos países periféricos como as águas dos afluentes. As águas da grande caudal não penetram afluente acima. O conhecimento chega ao destino, nas margens dos afluentes, após grandes transformações e é, em geral, deficiente. Enquanto o conhecimento produzido pelas nações centrais segue seu curso, como a grande caudal, a contribuição dos afluentes é, como um todo, trivial e marginal. Mas mesmo assim, as águas dos afluentes incorporam-se e dão vida à grande caudal. (Para detalhes, ver D’Ambrosio, 2000) É importante notar que se a produção dos países periféricos é, relativamente à dos países centrais, insignificante, essa produção, trivial e marginal -- como tem sido a produção científica e tecnológica dos países periféricos – é, relativamente a seu próprio curso, da maior importância. Isso leva a contestar os critérios quantitativos de avaliação da produção científica, com as técnicas da chamada scientometrics, dentre as quais o citation índex, naturalmente inadequados para avaliar a produção científica dos países periféricos (veja Leydesdorff, 1995). Essa produção é qualitativamente diferenciada, portanto sua importância deve refletir os benefícios que dela resultam para a sociedade na qual ele é produzida.

Estilos de desenvolvimento O conceito de modelos ou estilos de desenvolvimento é relativamente recente na historiografia, adquirindo grande força a partir da segunda metade do século XX, particularmente

graças

a

uma

significativa

contribuição

dos

estudos

emanados

do

CEPAL/Comisión Econômica para América Latina de las Naciones Unidas, em Santiago do Chile (veja Graciarena, 1976). Sendo desenvolvimento entendido como a estratégia resultante de acordo político ou aliança interpartidária para alcançar um fim comum, então um modelo de desenvolvimento resulta da relação de poder e dos conflitos sociais resultantes de formas dominantes de acumulação de capital e distribuição de riquezas, das conjunturas internas e externas, e dos valores arraigados em uma cultura.

Uma nova história da educação, em

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particular da história do ensino de ciências, proposta por Gregório Weinberg (Weinberg, 2001), reflete essas novas tendências historiográficas. Vou aplicar esse conceito à conquista e colonização das Américas, onde toda região era habitada por povos com culturas próprias. Todas as terras, que passaram a ser chamadas Américas, eram berços de civilizações milenares, com características muito diferentes daquelas européias. Sabe-se pouco da origem dessas civilizações. Sabemos que sua organização política e social era centralizada. O sistema de produção agrícola e mineral denotava um bom nível de industrialização entre astecas, maias e incas e nas planícies do norte. A cultura de caçadores e coletores da região amazônica, começava a dar sinais de estar se encaminhando para a revolução agrícola, particularmente com os tupis, na chegada dos europeus, conforme afirma Helio Jaguaribe. (Jaguaribe, 2001) Os sistemas educacionais refletiam o estado autocrático e a mística religiosa. Havia o que chamamos hoje educação para todos, eminentemente prática, com setores teóricos ligados a preocupações teológicas, onde se praticava ciência e matemática. A educação era marcadamente separada para meninos e meninas, em função dos papéis destinados a homens e mulheres nas sociedades. O que se sabe dos sistemas educacionais resulta da análise das narrativas de cronistas da época e dos comentaristas contemporâneos. Ainda falta uma obra de síntese da educação pré-colombiana. É importante notar que muitos elementos desses sistemas educacionais sobreviveram os 500 anos de supremacia da cultura européia e ainda se revelam nas pesquisas sobre educação nas culturas indígenas, mesmo em se tratando de comunidades aculturadas. (Bello, 2000). A partir de 1492, as grandes navegações trouxeram europeus às Américas e imediatamente procedeu-se à conquista, caracterizada pela posse indiscriminada das terras, em nome de soberanos europeus, e a subordinação das culturas autóctones às culturas dos conquistadores. Como sempre acontece nos encontros culturais, não há uma extinção da cultura dominada, mas uma mescla, que cria novas formas culturais, geralmente muito enriquecedoras, muitas vezes latentes, ainda não explicitadas, e que emergem nas mais diversas circunstâncias. Isto é evidenciado pela manutenção das línguas indígenas e, de modo muito marcante, o tupi-guarani no Brasil. A conquista mostrou as possibilidades econômicas das novas terras, dando origem à empresas coloniais. A diferença dos modelos de colonização reflete-se, particularmente, no modelo de exploração econômica. Uma especulação resulta da maneira como os europeus denominavam as colônias. Espanha, Inglaterra e Holanda denominavam Nova Espanha, Nova Granada, Nova Amsterdam, Nova Inglaterra, o que sugere a intenção de se estabelecer uma nova sociedade. No entanto a

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colônia portuguesa denominava-se Brasil, que destaca o produto natural que interessava ao colonizador. A estratégia dos primeiros impérios coloniais, isto é, Espanha, Portugal, Inglaterra, França e Holanda, lançava mão de escravizar nativos e, posteriormente, esses impérios promoveram a imigração forçada de escravos africanos, mais facilmente subordináveis, e uma pequena e desordenada imigração de europeus. O encontro cultural que resultou em todas as colônias, teve em comum polarizar as culturas subordinadas dos índios e dos negros à cultura dominante do colonizador branco. Dos cinco impérios coloniais, a influência de Espanha, Portugal e Inglaterra foi predominante, embora com características muito diferentes. A educação, com forte cunho religioso e controlada pela Igreja, era exercida por diferentes ordens religiosas católicas nas colônias espanholas e portuguesa, e pelas várias denominações protestantes nas colônias inglesas. A educação era um elemento importante no projeto colonial. Isso é evidenciado pelo número de universidades nas colônias inglesas e espanholas. No entanto, a colonização portuguesa teve um comportamento diferente e no Brasil nota-se uma quase total ausência de facilidades escolares. Por que a exceção de Portugal nesse aspecto da empresa colonial? Uma possibilidade de explicação encontra-se no modelo econômico de expropriação das riquezas das colônias. Isto é, por razões de Estado. Pode-se explicar a especificidade da colonização portuguesa pela natureza da sua empresa colonial. O modelo de colonização inicial do Brasil era puramente extrativo, particularmente visando o pau-brasil. Esse interesse extrativo pelo pau-brasil prolongou-se até o século XVIII, e pode ser considerado responsável pela transformação das feitorias em vilas e povoados, mas a presença do explorador é transitória. Os aglomerados têm características mais próximas a entrepostos. Mesmo após o ciclo da cana-de-açucar, o pau-brasil continuou o grande atrativo. Inclusive parece ter sido este um atrativo nas tentativas holandesas e francesas de estabelecer colônias no Brasil. O modelo de expropriação das riquezas das colônias espanholas e inglesas dependia fortemente de mineração e agricultura, com maior ênfase nas coloniais espanholas e nas inglesas, respectivamente. Ambos, mineração e agricultura, exigem uma fixação do colonizador. De fato, há uma fixação do colonizador espanhol e inglês nas novas terras, diferentemente do ideal de retorno do colonizador português. Por que essas razões de Estado? Nas treze coloniais inglesas do Norte, a vinda do colonizador da Inglaterra tinha características de um quase-exílio voluntário. No caso do colonizador espanhol, a motivação pessoal era, muito provavelmente, associada ao fato de, na Espanha, a expulsão definitiva dos muçulmanos ter se dado no mesmo

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ano do descobrimento da América. Isso aconteceu mais de dois séculos após a expulsão dos mouros de território português. Ora, dois séculos de Portugal como um reino cristão, territorialmente consolidado e em conflito latente com os reinos espanhóis vizinhos, que aos poucos iam expulsando os mouros, foram, muito provavelmente, causadores de um sentimento atávico que resultou no ideal português de retorno. Diferentemente, o ideal de reconquista para o cristianismo, na Espanha, sugeria a fixação nas terras conquistadas e o esforço de converter outros povos, com civilização avançada, ao cristianismo. Na verdade, é um processo permanente de reconquistar os desviantes da fé. Eram povos que se desejava converter tinham avançado grau de desenvolvimento e a educação era absolutamente justificada. Inclusive a universitária. Posteriormente, principalmente após as independências das colônias, a imigração voluntária de europeus, particularmente os vindos dos países não colonizadores, provocou um complexo encontro de culturas, refletindo interesses e distintas visões de mundo, muitas vezes conflitantes. Identifica-se, assim, uma sabedoria popular nos novos países, que constituem a sua textura cultural, que é contextualizada em tempo e lugar.

Os movimentos de independência e o ideário republicano Os movimentos de independência das colônias, nos séculos XVIII e XIX, embora visando liberar-se de impérios coloniais distintos, estão muito próximos na motivação e na ação revolucionária. Revolucionários dos Vice-Reinados espanhóis, do Brasil e das Treze Colônias do Norte, tinham contatos e há uma considerável aproximação entre os movimentos. Esses movimentos, que polarizavam conservadores e liberais, tinham, ao lado dos conhecidos motivadores econômicos, um ideal republicano, anti-monárquico. Como bem diz o historiador Herbert Aptheker, a Revolução Americana, que resultou na criação dos Estados Unidos da América, foi mais propriamente uma guerra civil inglesa, contra a monarquia, que teve como palco o território americano (Aptheker, 1960). O mesmo pode-se dizer dos movimentos de independência da colônias de Portugal e de Espanha. Um forte motivador era o ideal antimonárquico, republicano. Isso é o que se nota na leitura dos filósofos políticos da época. Isso é muito evidente nos filósofos norte-americanos, e na sua presença e influência na França prérevolucionária, que aglutinava as idéias republicanas efervescentes nas monarquias européias. Essa leitura das especificidades das independências é contestada por Jurandir Malerba (Malerba, 2000). Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, elevando o Rio

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de Janeiro à condição de capital do Império Português, esvaziou-se o ideal republicano no Brasil, retardando a criação de uma Republica até 1889. O ideário republicano tinha outros objetivos desenvolvimentistas, na qual a educação se inseria. Era essencial integrar os países, superando a fragmentação lingüística, a pobreza, criar novos meios de produção. A doutrina de solidariedade entre as novas repúblicas, proclamada pelo Presidente James Monroe (1758-1831) em 1823, visando a consolidação dos países independentes das Américas, é característica desse ideal. Na educação, destacam-se o norte-americano Horace Mann (1796-1859), o argentino Domingo Faustino Sarmiento (18111888) e o uruguaio José Pedro Varela (1845-1879), que sintetizam o que poderia ser um ideal educacional das repúblicas das Américas. Defende-se uma escola pública voltada a um projeto de desenvolvimento nacional, privilegiando um crescimento para dentro, a expansão do mercado interno e uma agricultura expandida. Esse ideal começa, na prática, a divergir entre a América Latina e os Estados Unidos, sobretudo após a Guerra Civil (1861-1865) e a conseqüente industrialização deste último. Na América Latina, os conflitos não resolvidos entre conservadores e liberais tiveram como conseqüência a busca da paz através da proposta de ordem e progresso da filosofia positivista. Um ordenamento que favorecia a proposta conservadora. Como dito acima, com a independência, os novos sistemas de produção, as novas organizações sociais, políticas e religiosas e, naturalmente, os novos sistemas educacionais, passam a receber influências de outros países, não mais das metrópoles coloniais, e adquirem características próprias. Internacionalmente, os novos países são reconhecidos e integrados numa nova geopolítica. A busca de modelos próprios é uma característica dos novos países. Isso afeta profundamente a filosofia e a prática da educação. Embora os modelos de desenvolvimento dos Estados Unidos e dos países da América Latina divirjam a partir da Guerra Civil americana, os ideais republicanos são, ainda, um fator de aproximação. A doutrina de Monroe, de solidariedade entre as novas repúblicas, é revivida em 1904 pelo Presidente Theodore Roosevelt (1858-1919), por ocasião da guerra com a Espanha. Mas esse reviver é, na verdade, o prenuncio do expansionismo intervencionista dos Estados Unidos na América Latina. A busca de uma regionalização das Américas se reflete na criação, em 1910, da União Pan-Americana, que, em 1948, transforma-se na Organização dos Estados Americanos. O afastamento dos países independentes de Espanha e Portugal prolonga-se por todo o século XIX. As repúblicas tardias de Portugal (1910) e da Espanha (1931), que abriram espaço para o golpe militar de 1926 e o regime de Salazar, e para a sangrenta Guerra Civil na Espanha (1936-39) e o regime de Franco, deram continuidade a um período de estagnação e de

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isolamento da península ibérica. Não obstante, há um surto de desenvolvimento científico, principalmente matemático, em Portugal e na Espanha, na década de 30, com a ida de jovens para se doutorarem nos países mais avançados da Europa. Muito desses jovens tinham considerável envolvimento político e não encontraram ambiente ao regressarem a seus países. Uma opção era emigrar para a América Latina. Isso é muito intenso após a Guerra Civil espanhola. Nos anos 50 temos uma significativa presença de intelectuais espanhóis e portugueses na América Latina, uma presença de dissidentes. A influência desses intelectuais no desenvolvimento das artes, ciências, humanidades e política se dá em descompasso com o que acontecia na comunidade acadêmica de Portugal salazarista e da Espanha franquista. Na mesma época, com grande influência dos interesses envolvidas com a Guerra Fria, vê-se a retomada de uma política de aproximação dos Estados Unidos e da América Latina, com fortes objetivos intervencionistas. Não podemos esquecer que na Guerra Fria, a América Latina tinha um grande valor estratégico para os blocos liderados pela União Soviética e pelos Estados Unidos. Essa aproximação, que tem na Organização dos Estados Americanos e na UNESCO, bem como na Coopération Française, no British Council, no Peace Corps e em outras organizações, seus instrumentos de apoio, descarta um relacionamento governamental com as ditaduras de Portugal e Espanha. O pós-guerra trouxe um intenso processo de globalização, que torna efetivo o interesse em organizações regionais. Mesmo reconhecendo a contextualização cultural, há um evidente reconhecimento de componentes comuns na formação histórica dos países das Américas. Esse reconhecimento dá força à UNESCO e à Organização dos Estados Americanos. Surgem as comissões interamericanas para a melhoria do ensino das ciências. Surgem, assim, os comitês interamericanos de educação em Física, em Química, em Biologia e em Matemática, com quatro línguas oficiais (Espanhol, Francês, Inglês e Português). Não se apaga o fato histórico da aproximação das culturas nativas das Américas, particularmente do que hoje chamamos América Latina, com as culturas dos conquistadores espanhóis e portugueses. Muito ficou dessa aproximação. Mas o distanciamento, a partir dos movimentos de independência, já comentados acima, prevaleceu, até meados do século XX. A partir do século XX, particularmente devido a circunstâncias políticas em todas as repúblicas da América Latina, nas democracias emergentes de Portugal e Espanha e, mais recentemente, de interesses econômicos, podemos identificar um reencontro das culturas ibéricas e latino-americanas. Esse reencontro sugere, na verdade exige, a discussão e a busca de propostas comuns para inúmeros setores da vida política, econômica e social. Particularmente, a criação, em 1949, da Organização dos Estados Ibero-Americano para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) evidencia esse reencontro.

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O reencontro preconiza a valorização das culturas autóctones, o que abre grande espaço para a história das etnociências e das etnomatemáticas. Um novo enfoque historiográfico faz-se necessário.

A Ciência Moderna e o Novo Mundo A ciência moderna nasceu enquanto o chamado Velho Mundo se deslumbrava com a nova realidade que representou o Novo Mundo e a partir de então sua evolução se fez com a necessária participação de todos. Ao reconhecermos uma contribuição mais intensa de cientistas do Velho Mundo na construção do conhecimento científico nos primeiros quatro séculos após o primeiro encontro, também é importante lembrar que o cenário natural, cultural e social do Novo Mundo foi fundamental para o imaginário que serviu de base para essa mesma construção e que, até os dias de hoje, a natureza e a cultura exuberantes do hemisfério conquistado ainda ativam esse imaginário. A presença das Américas na elaboração do pensamento científico e cultural da Europa cresceu em importância desde o primeiro século do encontro até os dias de hoje. Um notável esforços de conciliação faz com que episódios que não podem ser classificados de outra maneira que genocídio humano e cultural, perpetrados nos anos difíceis da época colonial e durante a independência crioula, hoje cedam lugar à busca de novos rumos para a humanidade, com a finalidade maior de sobrevivência do planeta e da civilização. Aos historiadores das ciências cabe a recuperação de conhecimentos, valores e atitudes, muitas vezes relegados a plano inferior, ignorados e às vezes até reprimidos e eliminados, e que poderão ser decisivos na busca desses novos rumos. Cabe reconhecer que somos uma cultura triangular, resultado das tradições européias, africanas e ameríndias, e que isso tem um impacto permanente em nosso dia-a-dia latino-americano. Tomamos de Arnaldo Momigliano a expressão da complexidade dessa composição cultural triangular quando ele se refere a "uma ordem muito distante do nosso prazer profissional ou diletante nas amenidades de civilizações mais distantes.” Momigliano (1975, p.9) ao se referir às civilizações judaica, grega e romana para explicar a complexidade cultural européia. Creio que é hora de nos encaminharmos para o reconhecimento, na história das ciências e da tecnologia, do equilíbrio triangular, resultado das tradições européias, africanas e ameríndias, mesmo diante da difícil, ingrata e às vezes desconcertante tarefa de enveredarmos para novas concepções de ciência e mesmo para novas propostas historiográficas e epistemológicas.

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As várias tentativas de levar a humanidade a um padrão de vida digno e decente, através de organismos como a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas, têm sido frustradas por ações, prepotentes e arrogantes. Essas ações são identificadas desde a conquista e o processo colonialista e a constituição dos grandes impérios, até o aparente desmoronamento desses impérios e o aparecimento de grandes blocos econômicos, destinadas a manter as características essenciais do regime colonialista, embora com outros rótulos. O fato é que o mundo "descoberto" a partir do grande feito de Colombo tornou-se, com raras exceções, o Terceiro Mundo. As raras exceções conduziram ao aparecimento de novas estrelas na diminuta constelação imperial, especificamente os Estados Unidos da América. Em meio às comemorações não podemos deixar de reconhecer que a grandeza do êxito dos grandes descobrimentos fica ofuscada pelo insucesso da empresa de se levar qualidade de vida digna e padrões mínimos de sobrevivência à parte "descoberta" da humanidade. As exceções são raras e os fatores excepcionais, como no caso dos Estados Unidas da América, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e poucos outros, são facilmente identificáveis. As razões da não manutenção do colonialismo em praticamente todo o mundo parecem ser intrínsecas à prosperidade dos impérios coloniais que deram origem a um complexo poderio capitalista. De outra forma, os países tão ricos de hoje não poderiam ser tão ricos sem ter empobrecido tão profundamente a periferia colonial. Em outros termos, o colonialismo torna-se desnecessário para se cumprir os mesmos objetivos que resultaram na prosperidade dos impérios coloniais. De uma forma mais sutil, o mesmo desígnio colonialista se mantém, agora na ação dos complexos capitalistas e a manutenção da prosperidade desses complexos parece depender da continuação da pobreza na periferia, seja países periféricos, seja comunidades periféricas nos países mais ricos. O complexo capitalista, que é transnacional, depende dos avanços da ciência e da tecnologia, muitas vezes orientados para satisfazer o desígnio desse complexo capitalista. Temos refletido sobre essa orientação com relação ao desenvolvimento do poderio militar associado aos avanços da ciência e da tecnologia. O momento nos convida a algumas reflexões sobre o próprio sentido de História. Somente através de um conhecimento aprofundado e global de nosso passado é que poderemos entender nossa situação no presente e a partir daí ativar nossa imaginação e nossa criatividade com propostas que ofereçam ao mundo todo um futuro melhor. O próprio mundo que há quinhentos anos nos "descobriu" -- hoje Primeiro Mundo -- não conseguiu até o presente se descobrir nas relações humanas mais elementares e suas perspectivas de futuro não são das melhores. Mais e mais eles estão sentindo que, diferentemente do que parecer dar tranqüilidade à ordem colonial, vai sendo insustentável a manutenção de desigualdades tão gritantes. A interdependência resultante de relações íntimas dos meios de produção, o estilo de

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propriedade da terra e de recursos naturais e consequentemente de soberania e, sobretudo, o atual conceito de propriedade intelectual, que inclui cultura, ciência e tecnologia são insustentáveis. Se estamos na transição do capitalismo para uma sociedade do conhecimento, que é a tese defendida por Peter Drucker no seu último livro, entender o processo de aquisição de conhecimento ao longo da história é essencial. Como diz Drucker, a grande transformação que se dá é o fato de conhecimento "ter sido sempre um bem privado. Quase de um dia para outro ele se torna um bem público” (Drucker, 1993, p. 19). Ele está se referindo principalmente à ciência e tecnologia. Essa reconceituação de conhecimento tem profundas implicações para propriedade intelectual se estamos procurando uma nova ordem mundial, diferente da ordem colonial. Uma historiografia que nos dê uma percepção do passado como orientação para o futuro deve repousar sobre estudos comparados da produção científica e da aquisição de ciência nos países centrais e periféricos. Esse é um primeiro ponto de controvérsia. Como fazer comparações com o que não houve? De fato, a produção científica nos países periféricos no apogeu do período de impérios coloniais é, pelos padrões historiográficos vigentes, irrisórias. No entanto há produção de novos modos de explicar e de fazer, no sentido amplo, nesses países durante esse período. Produção que escapa ao reconhecimento acadêmico e produção que não serviu de lastro para o chamado progresso científico e tecnológico. Particularmente interessante é o processo de desenvolvimento industrial, que deve ser analisado no seu contexto social, econômico e especialmente político. No entanto, sobretudo na tecnologia com forte componente científico, que alguns chamam tecnociência, sua legitimização tem utilizado a história da ciência. Este é um dos problemas mais notáveis da historiografia da ciência contemporânea. (Hughes, 1997) Esse processo de legitimação é responsável pelo mito de ser o progresso científico determinante do progresso social e econômico (D’Ambrosio, 1979). Com esse falso pressuposto tem havido investimentos maciços em educação e formação de quadros científicos pelos países do Terceiro Mundo após a Segunda Grande Guerra e os resultados tem sido irrisórios. Efetivamente, o que se vê ao longo da história é um investimento modesto e muitas vezes a contra-gosto em ciência pelos governos dos países que se tornaram países sede de grandes impérios desde a antigüidade, sendo o investimento sempre subordinado a resposta mais imediata às grandes questões sociais e econômicas. O mesmo se dá ainda hoje nos países chamados do Primeiro Mundo e isto foi particularmente verdade nos impérios coloniais (Dorn, 1991). Constata-se que a academia pouco contribuiu para a transferência de conhecimentos tecnológicos e industriais para os países de periferia. O investimento em ciência e tecnologia sem uma subestrutura social e econômica conduz a nada. E, por mais chocante que possa

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parecer, o investimento em educação e ciência por si não tem se traduzido na criação de uma infra-estrutura social e econômica que conduz a progresso (D’Ambrosio, 1976 e 1979). A uma atitude romântica -- o fascínio pela ciência e pela cultura nos países periféricos -- associou-se o interesse das nações centrais, sede dos impérios coloniais, interessadas na preservação de seu domínio de conhecimento, ciência e tecnologia de ponta. A procura de novas vias para o progresso tem sido dominada por padrões acadêmicos rígidos, amparados por uma História e Filosofia das Ciências que sugere um progresso científico e tecnológico único. A procura de novas vias para o progresso tem sido dominada por padrões acadêmicos rígidos, amparados por uma História e Filosofia das Ciências que sugere um progresso científico e tecnológico linear, cumulativo, no qual não há a possibilidade de se escapar da desvantagem atual. "O reboque jamais se aproxima da locomotiva se mantiver no trilho" diz um provérbio das tradições indígenas da América do Norte. A busca de alternativas historiográficas e metodológicas que conduzam a uma história que não venha embebida de um determinismo eurocêntrico que favorece a manutenção do

status quo, é essencial no processo que estamos vivendo de questionamento da atual ordem internacional.

Considerações finais Ao historiador das ciências e da tecnologia cabe não apenas o relato dos grandiosos antecedentes e conseqüentes científicos e tecnológicos das grandes descobertas, mas sobretudo a análise crítica que revelará acertos e distorções nas fases que prepararam os elementos essenciais para essas descobertas.

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Igualmente, ao filósofo das ciências e da tecnologia cabe entender as tramas conceituais que permitem reconhecer, identificar e valorizar formas de explicações e de ações classificadas como científicas e tecnológicas. Os descobrimentos e nos próprios processos de conquista e colonização. Distorções que deram como resultado a angustiante situação atual de coexistirem um mundo de fartura e prosperidade, com um mundo de miséria e desumanidade e a aterrorizante perspectiva de extinção da civilização no planeta. Sem dúvida a ciência e a tecnologia modernas nos oferecem uma história das mais fascinantes. Abundam os heróis e seus feitos magníficos, particularmente no século XVII e grande parte do século XVIII. Mas onde estávamos, na periferia, como povo e cultura, enquanto tais fatos se passavam? Onde estávamos, particularmente no final do século XVIII e durante o século XIX enquanto novos fatos consolidam os grandes avanços das ciências e da tecnologia? Onde estavam e o que faziam os nossos heróis? Após três séculos da chamada missão civilizatória, que foi uma das principais justificativas da conquista e do colonialismo, o aparecimento desses heróis deveria ser igualmente distribuídos pela população mundial. Por que isso não se deu? Condições adversas? E porque durante todo o século XX, após dois conflitos mundiais envolvendo todas as nações, praticamente eliminando o estatuto colonial e dando início à governança planetária através das Nações Unidas, essas condições adversas subsistem? Essas são as questões maiores sobre o estado atual da civilização. Acredito que o enfoque histórico proposto poderá servir de base para abordar essas questões.

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