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Kryssia Ettel
A TERRA SOMOS NÓS.
Ettel https://www.facebook.com/kryssia.ettel/
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É no hoje e no antigamente que, às margens da Rio Santos, encontra-se essa gente que vive como em uma falha (no melhor sentido possível) de tempo. São os membros das 150 famílias do Quilombo Campinho da Independência, situado nas bordas do Rio Carapitanga. Quem sabe pelo costume de chutar as amarguras e driblar as adversidades- além do natural entusiasmo de muitos dali pelo futebol- há, no centro do Quilombo, um grande campo gramado. Tal peculiaridade faz com que, atualmente, o local seja conhecido simplesmente por Quilombo do Campinho.
Circundados pelas fartas águas de rio e abrangidos pela mata atlântica do sudeste brasileiro, são cortados em dois pela Estrada Rio Santos. As casas simples, em ruas de terra batida e chão coberto de flores em muitos trechos estão há apenas 20km de Paraty, cidade agitada e muito turística, de indiscutível importância cultural e histórica para o país, mas trazendo em seu bojo, paradoxalmente, todo o ônus e o bônus de sua fama. Quem tem a oportunidade de ir ao Centro Histórico de Paraty e ao Quilombo em um mesmo dia nota a diferença dos ritmos e dos valores para o que esses dois grupos de pessoas consideram, vamos dizer assim, o bem viver.
Cada núcleo familiar possui sua casa de farinha, suas árvores frutíferas, ervas, galinhas e porcos. São muitas as espécies de pássaros; são variados os tipos de banana e palmeiras... Uma pessoa de cidade fica surpresa em ver como os sentidos podem ser todos aguçados de uma forma tão genuína, estimulados pelos sabores da terra e colorido natural. E a apenas uns 15 passos do centro do Quilombo está a via expressa com os ônibus, carros de passeio e caminhões ruidosos. Nada disso atrapalha o caminhar de seus habitantes. Pelo contrário: convivem bastante bem com o turismo frequente em seu restaurante e suas festas tradicionais.
O Seu Dico e a Dona Dica são figuras fáceis de serem encontradas por ali, bem próximo ao campo. Casados há uns 50 anos, residem naquela terra “toda uma vida inteira”- (o sentido é esse mesmo, o de imensidão). Ele agricultor e ela artesã e dançarina de Jongo- a idade não a impede de seguir com sua paixão por mover-se com destreza. Enquanto fala, trança fios de palha, criando cestos e tapetes e flores, cada qual com seu ponto, seu nó, tudo tirado de sua ampla experiência de vida e talento.
Outros ilustres habitantes são Dona Dilma e Paulo, artesãos e filhos de uma notável parteira local. Possuem sua loja de artes- que alguns chamam artesanato- e produzem tudo ali mesmo, com a ampla gama de matérias que a natureza ostenta. São tantas
luminárias, esculturas, bolsas e acessórios que em um dia seria impossível catalogar toda aquela quantidade de itens singulares.
Dona Arlete tem seu bar e restaurante. Comida simples, galinha caipira com coentro do quintal, conversa mansa, um pouco de timidez e muita inteligência para fazer prosperar o negócio de sua família. Até um camping ela organizou para receber os visitantes em dias de festejo.
Na última comemoração do Dia da Consciência Negra, ainda antes da Pandemia, apareceu por lá um sujeito malicioso. Em meio ao Tambor de Crioula, ao encontro de jongueiros, ao cortejo de maracatu, à apresentação de Passinho, ao desfile de beleza, ao bloco Afro Quilombo, ao Baile Black, à capoeira angola (o evento é muito amplo, tenhamos paciência com a enumeração, leitor), ao samba de roda, à Campanha pela libertação do Rafael Braga e, finalmente, ao show de Reaggae, o sujeito tentou se destacar. Bebeu mais caipirinhas de Jussara do que o corpo supunha processar, subiu no palco atrapalhando os artistas e bradou, enquanto tirava o microfone das mãos do Presidente da Associação de Moradores: “tudo isso aqui é meu, e eu vou expulsar cada um que toma banho no meu rio”.
Os quilombolas e visitantes não deram palanque aos delírios do ingrato visitante.Apenas o guiaram até
seu carro, que estava do outro lado da pista, e o deixaram lá, dormindo com as portas fechadas para não morrer comido por muriçocas.
“Vira e mexe aparece gente assim, deslocada da realidade”, disse uma senhora funcionária do Restaurante do Quilombo. “É só a gente seguir com a nossa vida e ignorar. Deixa ele passar essa vergonha sem holofote”, seguiu ela.
Entre muito trabalho, tradições, amor aos seus e frescor de mata atlântica eles seguem. Passam o conhecimento ancestral, dão valor à educação formal- essa de livros escolares mesmo- e avançam, com os olhos bem abertos para o futuro, e mais abertos ainda para o passado, que os fez ser quem hoje, orgulhosamente, são. Combativos e atentos às más línguas de quem não os respeita e os reconhece, eles resistem. E vivem.
Afinal, essa terra não pode ser de mais ninguém, senão deles. Porque, muito além do conceito de propriedade, eles são a terra, verdadeiramente. E disso eles bem sabem.