Sumário Apresentação
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A Pedagogia da Educação Infantil Construída no Cotidiano: Ideais, Concepções, Tensões, Desafios e Possibilidades
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Educação, Barbárie e Semiformação: Aportes da Teoria Crítica e do Pensamento Adorniano Para Analise da Prática Educativa
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A Política de Caridade, Assistência e Proteção à Infância Desvalida em Belém do Pará: do Império à República
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Contributo das Tecnologias Digitais Para o Desenvolvimento de Competências do Século XXI em uma Aula Invertida
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Em Busca dos Sentidos da Educação: Reflexões Sobre a Tendência Tecnicista na Educação de Jovens e Adultos no Brasil na História Recente
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Ludicidade: O Jogo e a Brincadeira na Linguagem da Dança
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Resenha da Obra de Michèle Kail
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Apresentação Profa. Dra. Magali Reis
Caros leitores e leitoras de @rquivo Brasileiro de Educação, É com grande satisfação que chegamos ao número seis de nosso periódico, que vem se firmando no cenário acadêmico como um veículo de difusão de conhecimento de grande apreço para estudiosos de temas concernentes à educação e a cultura em suas distintas expressões. Reafirmamos nosso compromisso com a apresentação de estudos e pesquisas significativos para a área e para a formação de professores e pesquisadores da educação em todos os níveis e modalidades. Como não poderíamos deixar de cumprir, neste número optamos por publicar artigos de demanda espontânea com temas diversificados que dialogam com distintas áreas afins à educação. O primeiro artigo intitulado A Pedagogia da Educação Infantil Construída no Cotidiano: Ideais, Concepções, Tensões, Desafios e Possibilidades, e escrito por Maria das Graças Oliveira, analisa a atual conjuntura da Educação Infantil no Brasil, segundo a autora esta denota, cada vez mais, a necessidade de produção de saberes sobre a pedagogia que se delineia no cotidiano das instituições públicas de ensino do país. De acordo com Oliveira, perguntas são postas a todo instante sobre esses saberes pedagógicos, como: quais são as possibilidades existentes nas práticas pedagógicas desenvolvidas no dia a dia com as crianças que legitimam o seu direito a uma educação coletiva de qualidade? Outra questão emerge dessa primeira: quais são as limitações existentes nessas práticas que dificultam o cumprimento do objetivo de consolidar esse direito das crianças, para que elas possam viver as suas infâncias em contextos que respeitem as suas especificidades? Ao longo do texto a autora procura respondera estase a outras questões concernentes à educação infantil, apresentando os resultados de sua pesquisa de doutorado realizada no município de Belo Horizonte – MG. O artigo é instigante, pois coloca em destaque algumas questões ainda pouco
Doutora em Educação pela Unicamp, Docente do PPGE PUC Minas, Editora da Revista @rquivo Brasileiro de Educação
problematizadas pelas pesquisas da área. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Profa. Dra. Magali Reis
O segundo artigo foi escrito por Thiago Luiz da Silva, e intitula-se Educação, Barbárie e Semiformação: Aportes da Teoria Crítica e do Pensamento Adorniano para Analise da Prática Educativa. Nele o autor aborda a relevância dos conceitos de educação, barbárie e semiformação, a partir do pensamento crítico de Theodor Adorno para o entendimento da prática educativa. Nesta perspectiva evidencia a importância da educação para a superação dos processos de dominação e para a formação de sujeitos plenos, capazes da reflexão autônoma. Neste artigo, Oliveira destaca que tanto Adorno quantos os demais fundadores da matriz da Teoria Critica, posteriormente conhecida como “Escola de Frankfurt” não eram especificamente teóricos da educação. Ainda assim, enfatiza o autor, é possível e pertinente a utilização do arcabouço teórico adorniano nas reflexões sobre a pratica educativa. Sendo a educação campo de pesquisa social pautada pela pluralidade de análises e pela interdisciplinaridade faz-se importante o entendimento epistemológico dos preceitos principais que orientam a Teoria Crítica, que podem de fato ser utilizados para a análise sociológica da pratica pedagógica Laura Alves discute no terceiro artigo as políticas de caridade, assistência e proteção à infância desvalida em Belém do Pará no período do império até o advento da república. Segundo a autora o objetivo deste artigo é trazer a lume a política de caridade, assistência e proteção à infância desvalida em Belém do Pará, do período que se estende do Império à República. Alves, afirma que no século XIX, a infância deveria ser assistida na capital do Pará em decorrência da política idealizada e implementada pela elite paraense. Assim, a infância que precisava ser assistida era designada de “órfã” e “exposta”. A primeira, dizia respeito, também, à criança que tinha perdido um dos pais, e a segunda, chamada, também, “enjeitada” ou “desvalida”, correspondia à criança que alguém não quis cuidar ou receber. O artigo inspira reflexões sobre o lugar social da criança pobre, mas, sobretudo nos instiga a pensar nas crianças amazônidas ainda pouco conhecidas pelos estudos da infância, se pensarmos no conjunto de produções sobre o tema, desenvolvido no país. O mérito do artigo situa-se na possibilidade de colocar à cena algumas instituições que foram criadas em Belém do Pará, no período do Império à República, para abrigar a criança órfã e desvalida. Os contributos das tecnologias digitais para o desenvolvimento de competências do século XXI, em uma aula invertida, é o sugestivo tema desenvolvido Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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no quarto artigo que compõe este volume da revista. Escrito pela pesquisadora Adelina Silva, o estudo tem por objetivo de apresentar uma reflexão sobre a forma como as tecnologias digitais contribuem para o desenvolvimento das competências para o aluno do século XXI, relacionando-as com a produção de conhecimento na escola, por meio da implementação de uma prática pedagógica, na modalidade de aula invertida. A autora parte do pressuposto de que os alunos estão enquadrados no conceito de "nativo digital", e procura refletir sobre as competências, nos vários domínios, que se espera que o aluno atinja, detenha e alcance, na sala de aula, com recurso a tecnologias digitais e a ferramentas da Web 2.0. Para cumprir esse objetivo e o desafio educativo de uma escola em mudança, a autora apresenta 3 ferramentas aplicadas em sala de aula: uma plataforma educativa de partilha de conteúdo (Edmodo), um jogo (kahoot) e uma plataforma de avaliação de conhecimentos (Socrative). O tema por si é instigante pois coaduna com as perspectivas formativas em pauta nas escolas de formação de professores, e ocupa as preocupações de docentes sobre condução de aulas mais dinâmicas e dialogas comas novas gerações. O quinto artigo escrito por Adálcio Carvalho de Araújo, Intitula-se Em busca dos sentidos da educação: reflexões sobre a tendência tecnicista na educação de jovens e adultos no brasil na história recente. Nele Araújo reflete sobre os sentidos que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) tem tomado – ou mantido – no contexto socioeconômico da última década do século XX a meados da segunda década do século XXI. Por meio da revisão bibliográfica de autores que discutem a temática, apresenta discussões dos marcos legais e de alguns programas governamentais para a modalidade de ensino, procurando entender como o sistema econômico vigente (capitalismo neoliberal) influenciou e influencia o modelo educacional proposto e oferecido à EJA. O autor retoma alguns dos posicionamentos freireanos sobre a Educação de Adultos, como sua crítica à educação meramente tecnicista, destacando a prática educativa promotora de mudanças, capaz de dialogar e suscitar novos modelos de agir e interagir na sociedade. O artigo destaca-se por abordar um tema ainda pouco discutido em nosso periódico, mas que merece destaque dada a sua relevância no cenário político e educacional atual. Para finalizarmos nossa seção de artigos, deste volume, trazemos as reflexões de Mariana Marques Kellermann sobre a ludicidade, isto é, o jogo e a brincadeira na linguagem da dança. A autora propõe refletir sobre a importância do desenvolvimento psicomotor no ensino-aprendizagem da dança, seja nos conteúdos apresentados pela Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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escola formal, seja nas escolas de dança que se interessam pelos estudos da percepção corporal e por seu desenvolvimento lúdico como fio condutor para a compreensão de um ser integrado. O objetivo do artigo pautou-se em mapear jogos e brincadeiras surgidos da intensidade e da espontaneidade nas aulas de dança com crianças de 7 a 9 anos de idade que pretendiam ingressar em Cursos de Formação para Bailarinos na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA) em 2003, na cidade de Belém do Pará. De modo dinâmico e coerentemente lúdico a autora nos faz refletir sobre o processo criativo levando ao conhecimento do corpo, tema fundamental para uma perspectiva lúdica de educação. Na seção de Resenha, Pedro Perini apresenta a obra de Michèle Kail, intitulada Aquisição da Linguagem. Segundo Perini a obra é uma importante referência para estudiosos da aquisição da linguagem. De fato, a forma de apresentação do livro desenvolvida por Perini, nos deixa instigados a lê-lo! Os escritos apresentados neste número propiciam importantes reflexões sobre questões emergentes da educação, ou ainda dão visibilidade a temas ainda pouco perscrutados por analistas de políticas públicas em educação, pesquisadores e estudantes da área de educação. Esperamos que este número da @rquivo Brasileiro de Educação possa trazer reflexões e inspirações intelectuais aos interessados nos temas tratados. Boa leitura a todxs!!
Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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A PEDAGOGIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL CONSTRUÍDA NO COTIDIANO: IDEAIS, CONCEPÇÕES, TENSÕES, DESAFIOS E POSSIBILIDADES Maria das Graças Oliveira RESUMO A atual conjuntura da Educação Infantil no Brasil denota, cada vez mais, a necessidade de produção de saberes acerca da pedagogia que se delineia no cotidiano das instituições públicas de ensino do país. Desse modo, perguntas são postas a todo instante sobre esses saberes pedagógicos, como: quais são as possibilidades existentes nas práticas pedagógicas desenvolvidas no dia a dia com as crianças que legitimam o seu direito a uma educação coletiva de qualidade? Outra questão emerge dessa primeira: quais são as limitações existentes nessas práticas que dificultam o cumprimento do objetivo de consolidar esse direito das crianças, para que elas possam viver as suas infâncias em contextos que respeitem as suas especificidades? Neste artigo, serão abordadas essas duas questões a partir das análises dos dados de uma pesquisa de doutorado realizada em duas creches públicas, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Para tanto, será utilizada a abordagem da sociologia da infância, que nos permite ver as crianças, as professoras e as famílias como coautoras dos processos pedagógicos na construção da pedagogia da infância, cotidianamente, nas relações e interações de uma com as outras. As práticas educativas desenvolvidas com crianças de zero a três anos de idade, as tensões, os desafios e os embates entre esses atores sociais, na creche pública, também serão aqui descritos. Os resultados mostram que se delineia, nesse contexto, uma pedagogia participativa permeada por contradições acerca das seguintes concepções: da função da creche, da educação familiar na educação coletiva e dos cuidados à criança na creche pública. Palavras-chave: Pedagogia da infância. Cotidiano. Participação
Universidade Federal de Campina Grande UFCG/PB, email: gracaeieduc@ terra.com.br
ABSTRACT The current situation of Children Education in Brazil increasingly denotes the necessity to produce knowledge on the pedagogy regarding the daily life of public institutions of education in the country. In this sense, there are questions to be made Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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about this pedagogical knowledge at all times, such as: what are the existing possibilities in the teaching practices developed day-by-day with children that affirm their right to a quality collective education? From this question emerges another: what are the existing limitations in these practices hampering the assurance of this right, so that the children may live their childhood in respectful conditions to their peculiarities? In this article, those two questions will be approached from the data analysis of a doctoral research carried out in two public daycares in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais. For this purpose, The Childhood Sociology approach will be employed, which allows us to see the children, the teachers and the families as coauthors of the teaching processes in the construction of the childhood pedagogy, in their relationships and interactions with each other in the daily living. The teaching practices developed with 0-to-3 year old children, the tensions, the challenges and the conflicts between these social actors at the public daycare will also be here descripted. The results demonstrate that, in this context, a participative pedagogy takes shape, permeated by contradictions around the following conceptions: the role of the daycares, of the family in the collective education, and of children care at the public daycares. Keywords: Childhood Pedagogy; Daily Life; Participation.
INTRODUÇÃO O limiar do século XXI trouxe consigo a emergência da consolidação de uma pedagogia da infância que atendesse aos direitos das crianças e à nova concepção de criança, de sua educação e de seus cuidados em instituições de educação infantil, especificamente as creches e as pré-escolas. Em primeiro lugar, o direito à educação pública e de qualidade é o princípio almejado pelas postulações da política educacional brasileira, referendada pelas legislações federal e municipal. Entre elas, podemos citar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/96 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI/2009. Em segundo lugar, temos as contribuições da sociologia da infância, cujos princípios norteadores delineiam as crianças como sendo atores sociais. Estudiosos como Plaisance (2004), Sirota (2001) e Montandon (2001) apresentam, na sociologia da infância, o conceito de criança como sendo um sujeito social. Nessa condição, as crianças, inclusive os bebês, são sujeitos com participação ativa em seus processos educativos, os quais se dão por meio das negociações que elas realizam com as pessoas adultas e com as outras crianças, com as quais convivem. A sociologia da infância rompe, assim, com o conceito de educação, desenvolvido por Émile Durkheim, à medida que constrói a noção da educação da criança pequena como Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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sendo uma ação interativa. Isso é, a criança desempenha um papel ativo “na construção do ser social por meio de múltiplas negociações com seus próximos e, ao mesmo tempo, na construção da identidade do sujeito” (PLAISANCE, 2004, p. 225), diferentemente do papel passivo que lhe era atribuído na perspectiva de Durkheim (1987), em uma educação determinada amplamente pela ação do adulto. No processo de educação dos homens, surge a necessidade de se pensar nos princípios e nos valores que norteiam esse caminho educativo, o qual pode acontecer em vários lugares sociais e em diversos contextos. A escola, na atualidade, é um dos espaços dedicados pela sociedade à educação dos homens, e a educação infantil é uma modalidade escolar que atende às crianças de zero a cinco anos de idade e que ganha relevância no cenário educativo contemporâneo. A educação infantil dá-se em contextos educativos nas modalidades creche (para crianças de zero a três anos de idade) e pré-escola (para aquelas com idade entre quatro a cinco anos). Nessa perspectiva, a função precípua do atendimento às crianças nessas modalidades de ensino é a promoção do seu desenvolvimento pleno, como determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil: A proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e a interação com outras crianças (BRASIL, 2009).
Pode-se dizer que essa legislação institui, nas instituições de educação infantil, a concepção de criança como sendo um ator social de direitos, portanto um coautor de seu processo de inserção no mundo da cultura, seja a cultura familiar, seja a cultura da creche ou a cultura considerada socialmente legítima. Isso denota a elaboração de propostas pedagógicas fundamentadas em uma referência teórica acerca da criança e de suas linguagens, aliada à observação das crianças, feita pelos professores, em suas relações e interações sociais e culturais na instituição de educação infantil. E, para essa tarefa, é fundamental que eles sejam conhecedores das crianças com as quais atuam e as respeitem como cidadãs de direito, construtoras de cultura na relação que estabelecem com o adulto. Este artigo parte da premissa de que, nas creches públicas, há uma pedagogia da infância em construção no cotidiano. Ou seja, é no processo de educação e de cuidados às crianças, delineado pela ação dos atores sociais envolvidos, as crianças, as professoras e as famílias, e pelo confronto entre os seus saberes, os seus Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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conhecimentos e as suas concepções, que essa pedagogia se configura. Além disso, ela ainda apoia-se no pressuposto de que as ressignificações e as apropriações que esses atores fazem das prescrições da legislação educacional em vigor são também “fios” constitutivos dessa trama cotidiana da pedagogia da infância. Dessa forma, pode-se indagar: o que é, afinal, a pedagogia da infância? Em que ela se fundamenta? Essas questões desafiadoras apresentam-se como pano de fundo no contexto da educação infantil contemporânea. Acredito que o desvelamento das práticas pedagógicas desenvolvidas no cotidiano das instituições de educação infantil pode contribuir, sobremaneira, para que as pedagogias da infância, construídas pelos atores sociais nos contextos reais das creches, tenham visibilidade e possam desencadear reflexões profícuas acerca dessa temática, e para que sejam vislumbradas possibilidades para uma consolidação da pedagogia da infância que atenda aos princípios educativos específicos para as crianças na faixa etária de zero a três anos. Essas considerações permitem levantar outras indagações: qual a pedagogia que melhor atende a esses princípios? Quais as condições reais existentes no cotidiano das creches e pré-escolas para a criação e o desenvolvimento da pedagogia da infância? São essas as questões que nortearão este texto, o qual está organizado da seguinte forma: inicialmente, será discutida a pedagogia da infância conceitualmente e os valores emanados dessa perspectiva na educação e nos cuidados às crianças nas instituições de ensino; em seguida, será analisada a construção da pedagogia nas creches públicas da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, a partir das práticas pedagógicas das professoras da Educação Infantil; e por fim, serão apresentadas as considerações finais deste estudo. A PEDAGOGIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA ABORDAGEM NA PERSPECTIVA DO DIREITO DAS CRIANÇAS A temática da pedagogia da infância torna-se cada vez mais relevante no campo da Educação Infantil. Professores dessa modalidade de ensino, pesquisadores, famílias das crianças e gestores buscam a construção e o desenvolvimento de uma pedagogia que atenda às crianças em suas especificidades nas instituições de Educação Infantil. Nesse debate, as contribuições de Oliveira (2007) são significativas, pois ela argumenta que, historicamente, os pedagogos buscam modos Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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alternativos para fazer pedagogia, suplantando a pedagogia transmissiva que, no seu fazer pedagógico, “ignora os direitos da criança a ser vista como competente e a ter espaço de participação” (OLIVEIRA, 2007, p. 13). Desse modo, a autora defende a necessidade da construção de uma pedagogia da participação, pois: Uma pedagogia centrada na práxis de participação procura responder à complexidade da sociedade e das comunidades, do conhecimento, das crianças e de suas famílias, com um processo interativo de diálogo e confronto entre crenças e saberes, entre saberes e práticas, entre práticas e crenças, entre esses pólos em interação e os contextos envolventes (OLIVEIRA, 2007, p. 15).
O desenvolvimento de uma pedagogia participativa, na perspectiva da autora, abrange três tarefas básicas: a construção de contextos educativos nos quais haja múltiplas possibilidades e que o conhecimento seja construído de forma participativa; a centralidade nas relações, uma vez que esse modo pedagógico pode ser definido como sendo o espaço para a interação e a escuta; e por fim, o diálogo com a história, aderindo-se a um fazer pedagógico de forma reflexiva e compartilhada, a fim de contribuir para a construção de conhecimento sobre o modo de fazer adotado (OLIVEIRA, 2007). No contexto da Educação Infantil, o debate acerca da pedagogia da infância tem como foco a especificidade das ações de cuidado e de educação da criança de zero a cinco anos de idade, de forma integrada. Sendo assim, torna-se relevante atribuir à Educação Infantil características que a distingam do Ensino Fundamental. Ou seja, buscar uma identidade própria para o atendimento à infância, em instituições de educação coletiva, fora do âmbito familiar. Pode-se perceber também essa argumentação em autores como Faria (2007), Bujes (2001) e Plaisance (2004), os quais defendem que a Educação Infantil não se configura como um espaço de “escolarização precoce” das crianças. A escolarização precoce, nessa perspectiva, refere-se às atividades que envolvem lápis e papel, alfabetização e a pouca experiência das crianças com a brincadeira, entre outras. A pedagogia da infância “constitui-se de um conjunto de fundamentos e indicações de ação pedagógica que tem como referência as crianças e as múltiplas concepções de infância em diferentes espaços educacionais” (BARBOSA, 2010). A partir dessa definição, a autora descreve algumas características dessa pedagogia, como, por exemplo: compreende que as ações educativas devem considerar as crianças e os seus contextos sociais; toma as crianças como seres humanos, históricos, capazes de múltiplas relações, produtores de formas culturais próprias Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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construídas com seus pares; afirma a infância como categoria geracional, social, histórica e geograficamente construída, permeada por relações de classe, gênero, religião e etnia; admite a criança como um sujeito de direitos. A autora argumenta ainda que: A afirmação das crianças como sujeitos de direitos exige a definição de indicativos pedagógicos que possibilitem às crianças a experiência da infância de forma a tomar parte em projetos educacionais fundados na democracia, na diversidade, na participação social, a partir de práticas educativas que privilegiem as relações sociais entre todos os segmentos envolvidos (crianças, famílias e educadores) (BARBOSA, 2010).
Podemos dizer, a partir dessas considerações, que a emergência da pedagogia da infância no contexto atual demanda que haja, nos processos pedagógicos, a valorização dos atores sociais – os professores, as crianças e suas famílias –. Isso porque a elaboração de uma pedagogia da infância participativa implica na necessidade do estabelecimento de relações mais próximas entre os envolvidos. Ou seja, uma nova ética emerge desse contexto: aquela que acredita na potencialidade das crianças e que oportuniza a elas experiências educativas em que sejam coautoras no cotidiano das instituições de ensino e referência para as tomadas de decisões, a partir de reflexões fundamentadas nos aportes teóricos do campo da infância. Desse modo, buscar nas linguagens das crianças a inspiração para a criação de espaços educativos e de cuidados competentes e adequados para suas diferentes faixas etárias e considerar a diversidade social, cultural e histórica, delas e de suas famílias contribui, significativamente para a construção de propostas educacionais que atendam às especificidades das crianças na creche e na pré-escola. O PERCURSO DA PESQUISA A pesquisa de abordagem qualitativa foi realizada em duas Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEIs), localizadas em Belo Horizonte, Minas Gerais. Os dados da pesquisa foram coletados por meio de observação do cotidiano dessas creches públicas, de realização de entrevistas semiestruturadas com as professoras, as famílias e as coordenadoras, e pela análise documental. A análise dos dados baseou-se na perspectiva da análise de conteúdo, que se constitui em “um conjunto de técnicas de análise das comunicações”, ou seja, há uma busca pelo rigor e pela necessidade de descobrir, de adivinhar e de compreender as comunicações que estão sendo alvo das análises (BARDIN, 2000, p. 31-32). Essa técnica pode ser, Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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também, segundo o autor, uma análise dos significados ou dos significantes das comunicações em questão. Os dados coletados foram submetidos a várias leituras para o estabelecimento de categorias de análise e, posteriormente, foram organizados e categorizados a partir de sua interpretação. Buscava-se, dessa maneira, apreender os modos pelos quais os professores, as crianças e suas famílias construíam a relação entre si, no cotidiano das creches públicas, e os possíveis consensos, conflitos e desafios advindos dessa relação. ENTRELAÇANDO CONCEPÇÕES NA CONSTRUÇÃO COTIDIANA DA PEDAGOGIA
DA
CRECHE
PÚBLICA:
EDUCAÇÃO,
CUIDADO,
CIDADANIA E CULTURA No ano de 2004, são criadas as Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEIs) em Belo Horizonte. Inaugura-se, desse modo, o atendimento público às crianças de zero a três anos de idade na cidade. Trata-se de um “novo tempo” em que as atenções dos gestores, dos professores, das famílias e da comunidade em geral têm como foco este desafio emergente: os cuidados e a educação coletiva das crianças na tenra idade, nessa instituição pública de ensino. Ou seja, pensar a organização do espaço físico e dos tempos de forma a favorecer as interações entre as crianças, suas famílias, o meio sociocultural e os adultos. Além disso, surgem os Educadores Infantis (atualmente professores para a Educação Infantil), conquista de uma década de lutas pelo reconhecimento da docência nas UMEIs. Esse novo profissional chega às UMEIs trazendo experiências de outras áreas de atuação, tais como: o Ensino Fundamental, a saúde e a Educação Infantil na rede particular de ensino. Atraídos pela estabilidade profissional, a qualidade do espaço físico e a materialidade, os educadores buscam conhecer as crianças, as famílias e o modus operandi da prática educativa com os bebês. Tais novidades desencadearam tessituras diversas no campo da Educação Infantil mineira. A criação da carreira do Educador Infantil trouxe também, para o cenário da educação pública, uma organização “inovadora” de trabalho para as creches, de maneira que essa demanda a regência múltipla das turmas. Nessa organização, para se cumprir a carga horária diária com as crianças (das 7h às 17h30min) na instituição, os tempos, nas turmas, são compartilhados por seis professoras da seguinte forma: no horário da manhã (de 7h às 11h30min), duas professoras; no horário intermediário (de 9h30min às 13h30min), outra dupla; e por fim, à tarde (de Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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13h às 17h30min), assumiam outras duas professoras. A transição era sempre feita pelas professoras do turno intermediário, as quais repassavam, brevemente, os aspectos daquela rotina que elas consideravam importantes para as outras professoras que chegavam, tais como: crianças que haviam se alimentado mal ou que estavam doentes, crianças que sofreram quedas, que se machucaram, e, até mesmo, sobre os projetos que estavam pensando em desenvolver com a turma. Um caderno de nota e as anotações em um quadro branco também auxiliavam na comunicação, que, em algumas situações, se mostravam ineficientes. Essa pluralidade de relações interpessoais e pedagógicas, ocasionada por essa forma de regência, teve implicações importantes na construção da pedagogia nas UMEIs pesquisadas. Uma pedagogia que, de acordo com os princípios estabelecidos por seus Projetos Políticos Pedagógicos, centrava-se nas crianças e buscava articulação com suas famílias no cotidiano. Tanto a ação educativa quanto os cuidados das crianças fundamentavam-se prioritariamente nas linguagens infantis. Essas linguagens, para Lima (2003), envolvem o corpo, o som, o movimento, o humor e as emoções, a vivência do tempo e do espaço, constituindo-se como recursos da função simbólica necessária para que as pessoas possam construir e utilizar as linguagens. Estavam presentes, nas práticas docentes dessas UMEIs, as linguagens da Música, da Arte e a linguagem Corporal. Assim, a pedagogia da infância delineava-se por meio da promoção de espaços para a exploração, pelas crianças, dos objetos, das coisas, da natureza, e para as interações entre adultos e crianças nas brincadeiras, nas ações de cuidado com a higiene e a alimentação, e para o contato dos pequenos com a produção cultural para a infância (artefatos musicais e teatrais, brinquedos industrializados, livros de literatura e outros). OS RITMOS DOS TEMPOS E DOS ESPAÇOS NOS COMPASSOS DA MÚSICA E DA BRINCADEIRA A organização dos tempos e dos espaços nas UMEIs analisadas teve como características básicas a versatilidade e o dinamismo. Pois, assim, as professoras concebiam essa ação: “Olha, a rotina do berçário muda muito. Cada dia é um dia diferente; não dá para falar: tal hora nós vamos fazer isso, depende muito de como estão os bebês [...]” (Extrato do Diário de Campo, junho de 2008). Pode-se dizer que havia, por parte delas, uma atitude de observação, de maneira a conhecer as crianças naquele espaço educativo. Dessa forma, os gostos, as reações e preferências dos Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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meninos e das meninas tornaram-se conhecidos pelas professoras. E, a partir da análise que faziam dessas particularidades infantis, buscavam organizar os tempos e os espaços para que as crianças experimentassem várias formas de expressão corporal e expressassem as suas linguagens no espaço da creche, na relação com os adultos e com as outras crianças. O fragmento abaixo, nota da observação das atividades desenvolvidas com as crianças em uma das UMEIs pesquisadas, mostra como esses atores sociais tecem os seus lugares sociais e as suas experiências educativas. O tempo pela manhã parece passar mais devagar. As atividades desenrolam-se uma a uma, regidas pela orquestra da música que toca no aparelho de som. No começo do dia, canções mais tranquilas para convidar professoras, crianças e pesquisadora (eu) para explorar o espaço e as coisas que nele existem. Um tatame e muitos brinquedos coloridos que se revezam passando pelas mãos curiosas dos meninos, que convidam as meninas para brincarem. Não basta tirar os brinquedos da bacia, eles precisam experimentar esse espaço tão complicado para entrar e brincar. Aprender que a bola é um brinquedo coletivo é muito rápido, e eles alegram-se quando o outro, seja adulto ou criança, aceita o convite para jogar e pegar a bola. Os carrinhos de bebês colocados na sala significam que é chegada a hora do passeio no parquinho e de tomar banho de sol. Esse é o espaço para brincar no balanço, correr atrás das bolinhas de sabão, ou de simplesmente engatinhar e explorar o pátio. Mais um pouco e a música muda. É um acalanto, avisando que é hora da mamadeira, das trocas de fraldas que se fizerem necessárias e do descanso. Os carrinhos balançam devagar, um a um, eles (os bebês) entregam-se ao sono. Uns dormem mais tempo, outros menos tempo, e, com isso, o dia segue. Ao acordarem, é hora do banho, da brincadeira no banheiro e do almoço. Para aqueles que não dormem após o almoço, o final da manhã e a chegada da tarde são movimentados. A música convida-os para dançarem junto com a professora que chega. A brincadeira é mais agitada, são desafios colocados pela professora, instigando a ação para resolver o que fazer: dançar, explorar uma caixa de papelão, arrastar para pegar os brinquedos, brincar com o boneco de pano. Aos poucos, os que acordam se juntam ao grupo e continuam a brincar (Extrato do Diário de Campo, junho de 2008).
A docência compartilhada pelas seis professoras traz, para as crianças, essa possibilidade de terem experiências diferenciadas no espaço da creche. As docentes, ao desenvolverem as suas práticas a partir do princípio de escutar, de dialogar com as crianças e de dar espaço para que sejam ativas e colaboradoras nas atividades, o fazem a partir desse olhar para as crianças, dos saberes de sua formação e de suas características pessoais, como, por exemplo: a seleção musical e os ritmos dados por cada uma delas às atividades. Essa dinâmica requer que essas profissionais desenvolvam habilidades para negociar e discutir as suas concepções com as outras colegas e para analisar e negociar com as crianças sob uma perspectiva antropológica, com o intuito de observar como se apresentam no cotidiano. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Dessa observação da ação pedagógica com as crianças na UMEI, pode-se depreender que uma pedagogia participativa na creche demanda o reconhecimento, por parte do professor, das crianças como sendo cidadãs de direito, acreditando nas possibilidades reais dessas crianças no espaço de educação coletiva. No contexto atual da emergência de uma pedagogia da infância de cunho participativo, os pressupostos de Loris Malaguzzi, educador italiano, podem contribuir de forma significativa, pois ele defende o protagonismo das crianças, dos(as) professores(as) e das famílias nos processos educativos e de cuidados, na Educação Infantil. Nessa perspectiva, em uma carta redigida por Malaguzzi, em 1993, são apresentados os direitos dos pais, dos profissionais e das crianças como complementares: aos pais, é atribuído o direito de participação ativa e a adesão aos princípios educativos da instituição de ensino onde suas crianças estão matriculadas; aos profissionais, os direitos referem-se ao seu papel ativo na elaboração e no desenvolvimento de conteúdos, metodologias, projetos e outros, juntamente com a coordenação pedagógica; e às crianças, os direitos dizem respeito ao seu reconhecimento como sujeitos de direitos, portadores e construtores de culturas e de suas identidades nas relações com seus coetâneos e com os adultos. Pode-se dizer que se trata de uma perspectiva coletiva de Educação Infantil, que busca, na ação dos sujeitos, os caminhos para que as crianças tenham garantidos os seus direitos, principalmente o de ser criança em sua totalidade, na instituição de educação coletiva, fora de sua família. Nessa organização investigada, notou-se que, entre as professoras responsáveis pelas turmas, existia o consenso de que a criança tinha centralidade no processo educativo e de que era necessário buscar formas de compartilhar com as famílias essa educação. Entretanto, despontava nelas a insegurança sobre a legitimidade teórica da prática pedagógica adotada. Por vezes, as educadoras expressavam o sentimento de que precisavam buscar alguém para dialogar sobre suas experiências na docência com os bebês. Elas buscavam, na literatura acadêmica, as respostas sobre as suas dúvidas, mas destacavam que eram poucas as opções disponíveis que abordavam a educação e os cuidados na creche, na perspectiva da prática cotidiana.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS A observação das práticas educativas das professoras da Educação Infantil nas UMEIs analisadas possibilitou a aproximação das concepções e das estratégias utilizadas pelas docentes na elaboração e no desenvolvimento dos projetos pedagógicos com as crianças menores de três anos. E ainda, possibilitou conhecer as diferentes formas de interação entre os atores sociais – professoras, crianças e suas famílias –, no cotidiano das instituições de ensino, e os conflitos gerados nessa interação, e também as respostas das crianças às propostas de atividades das professoras. Essa possibilidade de traçar caminhos em conjunto e a partir das linguagens das crianças corrobora com a perspectiva da pedagogia da participação, em que a criança é vista como sendo um sujeito de direitos, capaz de participar ativamente na sua inserção no universo da cultura da creche. Desse modo, argumenta-se que a análise dessas práticas pedagógicas contribui para que elas tenham visibilidade no cenário da Educação Infantil, havendo, além disso, a necessidade de realização de outras pesquisas sobre a temática para ampliação dos debates e do conhecimento a respeito das tensões e possibilidades da pedagogia da infância no cotidiano das creches públicas, tendo em vista que a educação coletiva e os cuidados das crianças, nessas instituições, são uma realidade no cenário educacional brasileiro. REFERÊNCIAS BARBOSA, M. C. S. Pedagogia da infância. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M. C.; VIEIRA, L. M. F. DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. 1 CD-ROM. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto, Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70, 2002. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Lei n. 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Brasília: LDB, 1996. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Conselho Nacional da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília, DF: MEC, SEB, 2009.
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EDUCAÇÃO, BARBÁRIE E SEMIFORMAÇÃO: APORTES DA TEORIA CRÍTICA E DO PENSAMENTO ADORNIANO PARA ANALISE DA PRÁTICA EDUCATIVA Thiago Luiz Santos Oliveira RESUMO Neste artigo procurar-se-á abordar a relevância dos conceitos de educação barbárie e semiformação, a partir do pensamento crítico de Theodor Adorno para o entendimento da prática educativa. Dentro dessa perspectiva buscar-se-á evidenciar a importância da educação para a superação dos processos de dominação e para a formação de sujeitos realmente plenos, capazes da reflexão autônoma. É importante frisar no entanto que Adorno e os fundadores da matriz da Teoria Critica, posteriormente conhecida como Escola de Frankfurt não eram especificamente teóricos da educação. Mesmo assim é possível e pertinente a utilização do arcabouço teórico adorniano nas reflexões acerca da pratica educativa. Ora, sendo a educação enquanto campo de pesquisa social pautada pela pluralidade de análises e pela interdisciplinaridade faz-se importante o entendimento epistemológico dos preceitos principais que norteiam a Teoria Crítica, que podem de fato ser utilizados para a análise sociológica da pratica pedagógica. Palavras Chaves: Teoria Crítica, Educação, Indústria Cultural, Barbárie, Formação. ABSTRACT In this article we will try to approach the relevance of barbarism education concepts and erudition, from critical thinking Theodor Adorno to the understanding of educational practice. Within this perspective will be sought to evidence the importance of education to overcome the domination of processes and the formation of subjects really full, capable of independent thought. It is important to note however that Adorno and the founding mother of Critical Theory, later known as the Frankfurt School were not specifically educational theorists. Yet the use of Adorno's
Professor da Rede Estadual de Minas Gerais, Doutorando da PUC Minas.
theoretical framework in the reflections of the educational practice is possible and relevant. Now, with education as a social search field guided by the plurality of analysis and the interdisciplinarity is an important epistemological understanding of
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the key principles that guide the Critical Theory, which can in fact be used for sociological analysis of pedagogical practice. Keywords: Critical Theory, Education, Cultural Industry, Barbarism, Formation. 1. Teoria Crítica e educação A relevância do arcabouço sociológico da Teoria Crítica na análise das praticas escolares e na superação da massificação do indivíduo é patente. Portanto neste trabalho pretende-se a interlocução constante entre a Teoria Crítica, o pensamento adorniano que a ela em termos epistemológicos se filia, e o próprio sentido da práxis pedagógica. A prática educativa é primaz na superação da barbárie, mediante analise das representações e significações da educação na sociedade capitalista contemporânea, sobretudo no que tange à massificação e mercantilização dos bens culturais e educacionais. A prática educacional é sempre uma forma de práxis social, carregada de tensão, e com uma lógica pedagógica própria, o que a difere de outras práticas sociais. O entendimento da realidade da escola só é possível por meio de processos hermenêuticos que objetivem o desvelamento da realidade social. Trata-se de uma questão dialética, onde estão concatenadas a reflexão teórica e a realidade social observada. (PFLUGMACHER, 2012). Segundo Adorno: A dialética não permite que nenhuma exigência de pureza lógica a impeça de passar de um gênero a outro, de fazer com que a coisa fechada sobre si própria se ilumine através do olhar voltado para a sociedade, de apresentar à sociedade a conta que a coisa não é capaz de pagar. (ADORNO 1998, p.24). Mediante a temática proposta no título deste capítulo procurar-se-á elucidar aspectos referentes á importância e relevância da educação na superação da barbárie e do processo de Halbbildung 1. Mais do que analisar a pertinência do termo Indústria Cultural, busca-se demonstrar a importância de uma educação emancipadora, que possibilite a ruptura com o processo de massificação e contribua para a Bildung 2 na autonomia do sujeito. Em termos epistemológicos a Teoria Crítica contesta a premissa de que a sociologia é a ciência da verificação e não da intervenção. Para tal tradição de Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Semiformação, que mediante o pensamento adorniano significa os impeditivos à formação plena do sujeito. A semiformação não se refere em seu conceito epistemológico, a ausência de formação intelectual e técnica, mas sim a primazia do conhecimento tecnificado sobre um conhecimento humanizante, o que de fato é impeditivo a uma formação plena e esclarecida.
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Formação do sujeito pleno e esclarecido, capaz de pensar por si mesmo, em termos críticos e reflexivos. A formação é pressuposto básico para a humanização que tolhe e impede a barbárie.
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pesquisa a sociologia chamada de positivista se torna conformista quando se coloca como uma ciência apenas descritiva, e não atuante. Faz-se necessária então uma reflexão, uma crítica aos princípios e a atitude metodológica da própria sociologia. Dentro dessa perspectiva, a crítica social se faz patente, numa relação dialética com a investigação empírica e com a observação. A crítica social é imanente à própria pesquisa sociológica, não sendo possível a dissociação. Mas, acima de tudo, a sociologia que quer reconhecer somente o “positivo” corre o perigo de perder toda a consciência crítica. Tudo que é diferente desse “positivo” e obriga a formular interrogações sobre a legitimidade de uma determinada entidade social, em vez de se limitar a comprova-la e classifica-la, como dado verificável, torna-se alvo de suspeitas. (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p.21). Dessa forma percebe-se na construção intelectual da Teoria Crítica que a sociologia enquanto ciência não pode se ater à rigidez metodológica, ou a preceitos técnicos. A sociologia, principalmente no que concerne à educação deve buscar ser uma ciência ética, que resgate uma perspectiva humanista, onde a investigação procure mais do que a observação e o discernimento purista do fenômeno social, mas que sobre tudo também seja uma ciência da contribuição, uma ciência da possibilidade de transformação da sociedade e do individuo. Para Cohn (2009) a primeira observação concernente a critica adorniana a sociologia enquanto ciência reside na importância que se atribuía à observação em detrimento da teoria. Adorno era um crítico contundente da “[...] primazia concedida aos dados da observação sem mais, reservando posição subalterna à teoria reduzida a mero subproduto da pesquisa.” (COHN, 2009, p. 20). Isto não significa que enquanto cientista social Adorno não considerasse a importância do método, da descrição, da coleta e da observação dos dados, mas sim acreditava de forma veemente que a construção teórica e a reflexão não poderiam de forma alguma serem desconsideradas do processo de pesquisa sociológica. Era necessário então estabelecer uma relação dialética entre o empirismo e a teoria. Dentro dessa perspectiva percebe-se que Teoria Crítica deitou seu olhar crítico sobre a importância do conceito na pesquisa social. A partir deste posicionamento o conceito se torna mais do que mera nominação a um fenômeno, ou objeto social estudado. O conceito é parte intrínseca do objeto, é algo que é evidenciado além da aparência. A dinâmica da pesquisa sociológica calcada no Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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positivismo não captava essa dimensão imanente dos conceitos acerca dos objetos e fenômenos sociais. A sociologia deveria então buscar a “essência” dos fenômenos e dos processos sociais. Aquilo que é aparente é reflexo daquilo que é intrínseco, daquilo que faz parte da constituição do objeto. Por isso para Adorno além de simplesmente observar, é necessário que a sociologia teorize, reflita sobre os fenômenos sociais, e sobre o componente humano. Mais do que refletir propõe-se uma sociologia da investigação empírica, onde teoria e prática se concatenam para melhor contribuir com a ação efetiva do homem na sociedade. Sabemos que um dos pontos centrais da crítica de Adorno à sociedade contemporânea é a de que nem esta nem os indivíduos que a compõem tem como se alçar à condição de sujeitos, obstados que estão pela conformação da totalidade histórica em curso. (COHN, 2009, p.30). Faz-se necessário então que a sociologia busque as sutilezas, aquilo que aparentemente é secundário, que esmiúce os aspectos mais finos e subliminares da sociedade, aquilo que corresponde a “essência”, aquilo que é pouco perceptível. Numa concepção adorniana é importante então que o empírico negocie e dialogue com o teórico, é necessário que a ciência “pense além”3 . Talvez uma das principais implicações filosóficas educacionais do pensamento de Adorno refira-se a defesa intransigente de um modo de pensar, que não se entrega diante das facilidades de um raciocínio condicionado a permanecer na superfície do dado imediato. O frankfurtiano defende, pelo contrário a manutenção de um pensamento que ensina a ler as entranhas de cada objeto analisado. (ZUIN; PUCCI; OLIVEIRA, 2001, 109). Adorno procurava valorizar a reflexão e a crítica no estudo sociológico. Para ele a sociedade interage de forma dialética com o indivíduo, são polos comunicativos constantes, e essa relação deve sempre ser considerada. Dessa forma, mais do que pensar a sociedade, a sociologia a partir de um prisma adorniano deve pensar o homem, nos seus conflitos e problemas, inserido nesta mesma sociedade.
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sociologia então deve perpassar as amarras do positivismo e evocar enquanto questão principal o homem, contribuindo empiricamente para que este mesmo homem supere suas questões, seus problemas, buscando na investigação das questões sociais mostrar que é possível a emancipação do individuo. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Na tradição do pensamento adorniano significa pensar o próprio pensamento, ou seja, a reflexão racional que leva ao esclarecimento.
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A partir de uma leitura crítico-reflexiva da Teoria Crítica, sobretudo a partir da construção intelectual de Adorno uma das principais responsabilidades do processo educacional, é romper com a barbárie. E o que seria barbárie? A barbárie é a violência não só no âmbito físico, mas também a ausência das mínimas condições para que o individuo se realize. Bem, dessa forma a educação deve objetivar a liberdade e a promoção da capacidade de reflexão crítica e emancipação dos indivíduos. A educação deveria então se configurar como ferramenta para a humanização e a escola um dos principais lócus deste processo. “Dessa feita, outra contribuição filosófica-educacional e a de que Adorno estimula a importância do pensamento que reflete sobre si mesmo.” (ZUIN; PUCCI; OLIVEIRA, 2001, p.112). Assim a educação seria condição básica para a luta contra a massificação e a alienação, promovendo a formação de indivíduos cultos e responsáveis, prontos para intervir de forma ética numa sociedade de vertente democrática. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontram atrasadas de um modo particularmente disforme em relação a sua própria civilização. (ADORNO, 2011b, 155). A barbárie se dá na não correspondência entre o estado do desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento humano. A primazia da técnica constrói um invólucro aparente de progresso, mas que de fato não considera o entendimento do outro como algo possibilitado pela razão. A razão se torna meramente instrumental, e perde sua capacidade esclarecedora e cidadã. A subjetividade não encontra espaço para se realizar enquanto experiência cotidiana autônoma. A autonomia humanista é suprimida, e o domínio técnico é elevado ao “Olimpo” social. No lugar da emancipação, percebe-se a pujança da reificação 4, da materialização da própria consciência cooptada que perde seu caráter abstrato se tornando dogmática e totalizante. Padrões são repetidos, na moda, na produção cultural, nas formas de pensar e de agir. Perde-se o componente autônomo da razão que permite e tolera a diferença.
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Conceito marxista denotativo de um tipo de alienação, onde as relações sociais e conceitos abstratos são tratados como objetos materiais.
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2. Indústria Cultural como processo de dominação Para Adorno e Horkheimer (2006) na sociedade contemporânea, de capitalismo avançado, tudo ganha um ar de semelhança. Essa similitude desenvolvida pela reificação das consciências, pela fetichização5 da cultura e pela imposição verticalizada, tanto de bens matérias como de bens culturais é a própria Indústria Cultural. Padrões são repetidos e reproduzidos, e a racionalidade torna-se um elemento de dominação, à medida que não estimula a reflexão. Assim cada indivíduo “[...] deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu nível, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher os produtos de massa fabricados para o seu tipo.” (ADORNO HORKHEIMER, 2006, p.102). Dentro dessa perspectiva, o autor tece considerações acerca das características similares das edificações nas zonas urbanas. Tudo é igual, tudo é padronizado, das edificações á estética das ruas e avenidas. A Indústria Cultural cria uma falsa impressão totalizante, daquilo que na verdade é particular, o que traduz o domínio das massas por um grupo restrito. Os padrões estabelecidos nessas relações de dominação retiram do individuo a capacidade de agir de forma crítica e reflexiva. O cientista social disserta ainda acerca da importância dos meios de comunicação neste processo. Os meios de comunicação difundem padrões, e estéticas a serem avidamente consumidos pelas massas de forma objetiva, uniformizada, sendo na verdade um instrumento de controle. A Indústria Cultural padroniza até os aspectos referentes ao lazer e à diversão. Mesmo nos momentos de lazer o indivíduo segue modelos e roteiros esquemáticos, como se estivesse numa linha de produção. O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque esse pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. (ADORNO, HORKHEIMER 2006, p. 104). A Indústria Cultural torna o estilo uma caricatura. Não existe autenticidade, não existe singularidade, o estilo apenas traduz uma forma de dominação. O estilo para os grandes artistas, por exemplo, era uma forma de refletir, de pensar a realidade, era uma maneira comprometida de expressão, de negação. Para a Indústria Cultural o estilo se torna algo corrompido, se torna instrumento de dominação, de imposição. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Mediante a tradição do pensamento marxista, quando a própria interação psicológica do indivíduo em relação ao objeto ganha uma caráter mercantilizado.
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O próprio capitalismo cria um sistema de dominação que neutraliza a capacidade de critica e de reflexão do indivíduo. Esses artifícios de dominação são intrínsecos ao sistema, portanto de difícil rejeição. Para Adorno a crítica é dotada de um caráter histórico, de inserção e capacitação do homem para pensar o mundo a partir das suas demandas enquanto sujeito histórico. A sociedade contemporânea, a sociedade do capitalismo administrado se caracteriza pela padronização cultural, onde a venda de bens culturais se torna um mecanismo de controle social. A Indústria Cultural constrói um sentido de estética restrito, padronizado, ao mesmo tempo “massificante”. A Indústria Cultural ao estabelecer padrões estéticos e de consumo de uma maneira verticalizada promove relações de dominação, servindo ao interesse de grupos sociais específicos, controlando a consciência dos indivíduos, que são expropriados da sua capacidade de reflexão, e apenas assimilam aquilo que é imposto. “A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior. Com o prejuízo de ambos.” (ADORNO, 1972, p.286). Na sociedade contemporânea de capitalismo administrado, aquilo que se torna validado verticalmente pela Indústria Cultural, torna-se uma verdade apropriada de forma acrítica, o que de fato gera uma falsa consciência, de que aquilo que na realidade é uma construção particular é uma verdade total. Processa-se então o controle das consciências, numa tendência totalizante e homogeneizante. Para Adorno e Horkheimer (2006) a utilização do termo Indústria Cultural se faz mais apropriado do que “cultura de massa”. Os dois cientistas sociais postularam que o sentido de “cultura de massas” poderia ser equivocadamente utilizado, sugerindo uma cultura eminentemente popular que emanaria do povo, uma arte popular. Ora, sabe-se que para Adorno a arte se distinguia de forma patente da Indústria Cultural e dos seus produtos. A Indústria Cultural age de forma verticalizada, de cima para baixo, sendo um instrumento de controle e condicionamento das massas. Cultura de massas parece indicar uma cultura solicitada pelas massas, como se fossem sujeito pressuposto acriticamente, fora do alcance da totalização. Já o termo indústria cultural ressalta o mecanismo pelo qual a sociedade como um todo seria construída sob a égide do capital reforçando o vigente. (MAAR, 2003, p. 2).
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Na concepção da Teoria Crítica a Indústria Cultural exclui a perspectiva crítica do indivíduo e os bens culturais se tornam mercadorias. O homem perde sua capacidade de individuação 6, de ser vetor de transformações sociais, políticas e culturais. O indivíduo não é sujeito de suas escolhas, mas sim objeto das ações da Indústria Cultural. Normalmente aquilo que a Indústria Cultural apresenta como novo, é apenas um verniz sobre aquilo que já foi apresentado. A Indústria Cultural ao operar sobre as massas cria padrões universalizantes e totalizantes de ação, de pensamento, desconsiderando aspectos que proporcionem a reflexão e a analise crítica. Na “sociedade de massas” pautada pelo domínio da Indústria Cultural, a reprodução da vida principalmente no que tange as suas condições materiais e imateriais são dotadas de um caráter homogeneizante. Dessa maneira na formação social capitalista percebe-se certo determinismo no que se refere às opções do sujeito. O que de fato parece escolha é algo determinado previamente e concebido pela Indústria Cultural. As “massas” são semiformadas à medida que não constroem reflexões acerca de suas escolhas, mas sim reproduzem como cópia as afirmações e modelos já vigentes. Na “sociedade massificada” o mundo do indivíduo é pautado por uma sistematização que substitui a experiência, e por consequência a reflexão. O sujeito semiformado se torna um prolongamento da produção da Indústria Cultural. Aquilo que é colocado por um grupo, é validado como verdade universal, o que gera uma falsa consciência, uma cópia a ser reproduzida como realidade imposta ao sujeito. Dessa forma, os indivíduos aderem a essa lógica imposta pela Indústria Cultural. Além de aderir, se sujeitam à lógica do capital. A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio perderam todas as suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, descentes e racionais. (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p.21). A Indústria Cultural debilita a individualidade, ao ponto que produz a massificação, pautando as relações pela lógica do mercado, tanto em termos objetivos como subjetivos.
O pensamento crítico é dificultado uma vez que a
repetição de padrões ditados acontece de forma ressonante, sendo de difícil rejeição Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Capacidade do individuo, mediante a Teoria Crítica de agir por sim mesmo, de forma emancipada e autônoma.
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pelos indivíduos. Esse processo de fetichização, onde os bens culturais, e o próprio afeto se transformam em mercadorias, tolhe e cerceia o indivíduo em sua humanidade, muitas vezes aproximando-o da barbárie. A ideologia se confunde com a própria cultura. Em uma sociedade massificada, percebe-se que a própria escola muitas vezes é veiculadora dessa ideologia totalizante, à medida que não a critica, simplesmente adere às veleidades da massificação. “Em vez disto a argumentação deveria voltar para os sujeitos que são os interlocutores.” (ADORNO, 2011d, p. 48). O homem enquanto sujeito social, que de fato opera sobre a dinâmica política, social e econômica do mundo deveria assumir seu papel de protagonista da práxis ativa. A Indústria Cultural no seu processo de massificação inverte esta lógica, corrompendo o sujeito em sua ação autônoma, uma vez que a autonomia em um mundo massificado se torna uma falácia retórica. 2.3 Processo de dominação, semiformação e o desafio da educação O entendimento da Indústria Cultural relaciona-se com o a matriz de uma sociedade que estabelece cópia dela mesma, reproduzindo de forma acrítica essa mesma sociedade, que já se traduz como cópia. Dentro dessa perspectiva a cultura enquanto ideologia permeia toda sociedade. O processo dialético é congelado o que gera uma sociedade semiformada. A semiformação é fruto de um complexo enlace das relações sociais, econômicas e políticas dominantes. É a sujeição a aquilo que se adere, àquilo que é socialmente estebalecido de forma não reflexiva e determinante. Para romper com esta lógica estruturante faz-se necessário perceber as condições objetivas determinantes em meio aquilo que é subjetivo, assim percebendo o que é a dialética da produção, intervindo na realidade histórica e social. Primordial na questão da semiformação é não perder de vista a constelação em que dá seu foco Para Adorno não basta examinar formação, semiformação ou cultura, tais como se verificam na sociedade vigente. É preciso investiga-las tendo como referencia o contexto de produção da sociedade, como formação social autogerada pelos homens e aprendida em sua dialética histórica. Cultura e formação precisam ser examinadas fora do âmbito estritamente cultural e pedagógico definidos na sociedade, para serem investigadas no plano da própria produção social da sociedade em sua forma determinada. A via régia de acesso ao essencial é o processo de sua reprodução vigente em seu aparecer real e presente. (MAAR, 2003, p.10).
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A superação dessa realidade só seria possível pela negação, pela crítica. A reflexão possibilitaria a emancipação do sujeito, a superação das determinações objetivas. O mundo dos homens é organizado de determinada maneira e é preciso decifrar as condições e os condicionantes que causam seu modo determinado de ser. A emancipação como conscientização é a reflexão racional pela qual o que parece natural, essencial na sociedade cultural, decifra-se como ordem socialmente determinada em dadas condições da produção real efetiva da sociedade. (MAAR, 2003, p.14). O processo de massificação é algo tão presente na sociedade tecnificada, que a vida passa a ser organizada pela lógica da divisão técnica do trabalho. A Indústria Cultural necessita de consumidores acríticos, que não questionem essa lógica de mercantilização das relações sociais. Dentro desse contexto totalizante, apenas a educação crítica teria condição de luta contra a massificação e a alienação, promovendo a formação de indivíduos reflexivos e emancipados, prontos para participar e promover a democracia.
A educação, ao combater o processo de
semiformação e a lógica da massificação imposta pela Indústria Cultural, contribuiria para o não desenvolvimento da barbárie. A educação tem o explicito papel de levar os homens a perceber as contradições da sociedade em que vivem. A educação deve ser reflexiva e emacipadora, mas esta emancipação deve ser pautada na crítica da realidade e dos condicionantes objetivos da sociedade. A educação perdeu o seu sentido de formação a partir do momento que se tornou algo instrumental, ou seja, utilitarista e mensurável. O sujeito inserido neste processo totalizante perde sua capacidade de individuação, de agir e pensar com criticidade. Faz-se necessário que a escola recupere seu caráter de formação ampla, onde o indivíduo possa ser capaz de se tornar sujeito, ou seja, agente criador do seu próprio projeto, sem deixar-se apoderar pela Indústria Cultural. A real função social da educação é trazer o sujeito à sua humanidade, levando-o a superar os problemas e as determinações da sua realidade (ADORNO, 2011c). Isso seria educar para o esclarecimento, educar para romper com os determinismos estruturantes, educar para autonomia e para a cidadania. A construção dessa autonomia só é possível através da crítica, e a partir de relações sociais concebidas historicamente, mediante a inserção reflexiva do sujeito na sociedade. A reflexão é a chave da prática pedagógica. Não a reflexão utilitarista e mecanicista ensinada em muitas escolas, mas sim uma reflexão Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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através da experiência, da individuação, do processo que é construído na alteridade, no contato e na percepção do outro. A prática educativa e pedagógica deve então criar artifícios para que o indivíduo produza seus espaços e experiências, ao passo que vai se tornando sujeito autônomo. A escola mediante uma analise alicerçada na Teoria Crítica, deve ser o lócus da produção da autonomia, a partir de uma inflexão hermenêutica do sujeito no mundo. A partir dessa premissa a escola se torna, ou tornaria o local onde o indivíduo no processo em que se percebe enquanto sujeito, seja capaz de diagnosticar as bases da inércia e caminhar para a transformação. Para que isso ocorra em sua efetividade, a experiência da sala de aula não pode contribuir para que se ratifique a expropriação do pensamento. A educação não deve contemplar em suas práticas e nuances apenas o considerado socialmente útil ou validado, mas, principalmente aspectos que valorizem a formação plena do sujeito. E o que seria a formação plena do sujeito? Para Kant (1996) o sujeito dotado de plenitude é aquele educado para o bem, não só no que concerne a sua individualidade, mas também no que tange a participação ética na vida pública. O filosofo alemão afirma que a humanidade só pode ser desenvolvida a partir da educação e da prática pedagógica. O homem não pode se tronar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber educação de outros homens, os quais receberam igualmente de outros. (KANT, 1996, p. 444). Quando se fala da recuperação do sentido pleno da educação, fala-se também do resgate de uma prática educativa fundada numa teoria social e filosófica pautada na realidade. Qualquer pratica ou teoria educacional será infundada se não postulada a partir das condições materiais da realidade social. A prática pedagógica calcada nesses princípios proporciona a real inserção ética dos indivíduos na sociedade democrática, se afastando portando da barbárie. Mediante a Teoria Critica esse processo de inserção e participação democrática só poderia ser forjado a partir da negação do instituído. Essa negação embora para muitos seja carregada de um viés pessimista e fatalista da análise social, é para a Teoria Crítica na verdade ir além do aparente, daquilo que é falseado pela Indústria Cultural. Neste sentido reside a importância da critica para a educação. Ademais, a escola seria o lugar do fomento de uma cultura da humanização, da construção de uma ordem social para além da massificação. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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A escola não pode ser o lócus da exclusão da expropriação, mas sim da participação, da emancipação, da cidadania. A expropriação conhecimento cerceia a humanização do indivíduo. A humanidade plena é construída e forjada no processo histórico, nas praticas e relações sociais. É a partir da negação do instituído que os indivíduos se tornam sujeitos e se qualificam para a vida em uma sociedade democrática. Uma educação danificada representa uma sociedade danificada. A premissa embora soe pessimista, é necessária para que a mudança possa se realizar. Superar a semiformação do indivíduo de fato é contribuir para sua autonomia. “É preciso reconstruir a individualidade do sujeito na experiência com outros sujeitos, para que essa individualidade seja a força impulsionadora da resistência num mundo danificado.” (ZUIN; PUCCI; OLIVEIRA, 2001, p. 131). A ocupação com a filosofia deveria promover a identidade de seu interesse verdadeiro com o estudo profissional que elegeram, mas na verdade apenas alimenta a auto-alienação. Esta possivelmente se avoluma ainda mais na medida em que a filosofia é percebida como um peso morto que dificulta a aquisição de conhecimentos uteis, seja na preparação das disciplinas principais, prejudicando o progresso nessa área, seja na aquisição do conhecimentos profissionais. (ADORNO, 2011d, p. 69). A reflexão é a chave para a autonomia crítica. Ao se renegar a especulação filosófica a uma espécie de limbo epistemológico, se perde o caráter crítico da educação. A reflexão está no amago tanto da abstração como da técnica em sua práxis. Para Adorno a preocupação basilar da sociologia não deveria ser essa ou aquela sociedade, e nem a sociedade com um todo. A real preocupação da sociologia enquanto ciência da investigação empírica é homem, em seus nuances e conformações particulares (ADORNO; HORKHEIMER, 1973). Uma sociedade que renega a reflexão em prol do tecnicismo exacerbado renega a própria energia criticoreflexiva existente nas atividades humanas, sejam tecnológicas ou filosóficas, pois ambas se relacionam intrinsicamente. Configura-se como um sofisma a crença na existência de uma ciência eminentemente técnica, de uma atividade profissional puramente tecnológica, que nas suas bases não esteja a reflexão filosófica. Educa-se para o esclarecimento. Retoma-se no âmago do conceito de esclarecimento o projeto iluminista de formação do sujeito preparado para liberdade, emancipado na sua formação intelectual, política e social o que de fato humaniza. Ninguém nasce humano, se constrói como humano mediante o contato e o convívio Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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com os outros homens. Apenas a experiência formativa e reflexiva é capaz de dotar o espírito de humanidade. Adorno busca a retomada do projeto iluminista da importância de se perpassar a cultura de massa, a dominação vertical e a ideologização da sociedade. Busca-se a ruptura com a semiformação, com a barbárie, com a capacidade do homem não se realizar em sua plenitude, em sua humanidade. “A auto-reflexão, o esforço crítico são dotados por isso de uma possibilidade real, a qual seria precisamente o contrário daquela dedicação férrea que a maioria decidiu.” (ADORNO, 2011d, p. 69). Para Adorno os arcabouços necessários para o rompimento da Indústria Cultural, estão presentes na própria sociedade dominada pela massificação do capital. Esclarecer significa romper com a barbárie, romper com a semiformação do sujeito, ou seja, quando o sujeito percebe-se o empoderamento7 do conhecimento. A própria sociedade do capitalismo administrado de progresso técnico, e acesso às commodities8 dessa mesma técnica permitem a superação do status quo, do conformismo da integração, que na verdade empobrece a experiência do sujeito. O mundo da Indústria Cultural toma dos sujeitos a tarefa e capacidade de operar o esquematismo, ou seja, aquilo que Kant pensava como construção da razão, da interpretação hermenêutica do mundo, pois o mundo já é dado interpretado. A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na alma devia atuar um mecanismo secreto destinado a preparar os dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o segredo hoje está decifrado. Muito embora o planejamento do mecanismo pelos organizadores dos dados, isto é, pela indústria cultural, seja imposto a esta pelo peso da sociedade que permanece irracional apesar de toda a sua racionalização, essa tendência fatal é transformada em sua passagem pelas agências do capital do modo a aparecer como sábio desígnio dessas agências. (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p.103). Conferir poder ao indivíduo, em termos da capacidade crítico reflexiva de tomar decisões éticas e esclarecidas tanto em termos subjetivos, como em termos coletivos.
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A emancipação não reside na integração indiscriminada, mas sim na Bildung, na formação para a liberdade para autonomia. O papel da educação incide diretamente na Bildung, na formação integral do sujeito. Não uma educação normativa, e padronizada, mas sim da resistência, e essa resistência nasce no homem na composição das suas experiências sociais. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Bens e serviços materiais mercantilizados.
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3. Conclusão Para Adorno a educação, ao combater o processo de semiformação e a lógica da massificação imposta pela Indústria Cultural, contribuiria para o não desenvolvimento da barbárie. A barbárie reforça a semiformação, e a coisificação da consciência, uma vez que destitui a reflexão de seu caráter esclarecedor, da possibilidade o sujeito por meio da crítica agir de maneira humanista, não de um humanismo retórico, mas sim um humanismo da emancipação, da autonomia do entendimento da alteridade. O sujeito semiformado, não é aquele que desconhece a técnica, a produção material, a semiformação não se vincula a ignorância total e avassaladora. A questão fundante do processo semiformatório concerne à primazia da técnica sobre a formação emancipatória. O processo de semiformação coisifica a consciência, numa racionalidade instrumental9 exacerbada, na qual a técnica e o domínio do mudo produtivo se traduzem como elementos prioritários da educação. “Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em sim mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é uma extensão do braço dos homens.” (ADORNO, 2011b, p.132). A coisificação da consciência incide na massificação irrestrita do sujeito, a consciência instancia primordial da crítica, é cooptada pela Indústria Cultural, a reflexão é mero espectro, que de fato traduz um sistema de imposições verticalizadas.
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Razão instrumental, na adequação entre meios e finalidades, que dentro da perspectiva da Teoria Crítica se referia a razão técnica, mecanicista que se contrapunha a uma racionalidade crítica, que de fato seria emancipatória e reflexiva.
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ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2006. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. O conceito de Sociologia. In: ADORNO, Theodor, HORKHEIMER Max (Orgs). Temas Básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix/USP, 1973 ADORNO, Theodor. O que significa elaborar o passado. In: ADORNO, Theodor. Educação para a emancipação. Petrópolis: Vozes, 2011d. ADORNO, Theodor. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Editora Ática, 1998. COHN, Gabriel. A sociologia como ciência impura. (Apresentação à edição brasileira). In. ADORNO. Introdução à sociologia. São Paulo: Editora Unesp, 2009. KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. São Paulo: Editora UNIMEP, 1996. MAAR, Wolfgang. Adorno, semiformação e educação. In: Educação e Sociedade. Campinas, v. 24. n. 83, ago.2003. PLFUGMACHER, Torsten. Reconstrução empírica da aula: a relação dialética presente no processo pedagógico. In: Teoria Crítica e crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. PUCCI, Bruno; COSTA. Berlamino C. G; DURÃO, Fábio A. (Orgs). São Paulo:, Autores Associados, 2012. ZUIN, Antônio; PUCCI, Bruno, OLIVEIRA, Newton. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. 3 ed. Petrópolis. Editora Vozes, 2001.
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A POLÍTICA DE CARIDADE, ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À INFÂNCIA DESVALIDA EM BELÉM DO PARÁ: DO IMPÉRIO À REPÚBLICA Laura Maria Silva Araújo Alves RESUMO O objetivo deste artigo é trazer a lume a política de caridade, assistência e proteção à infância desvalida em Belém do Pará, do período que se estende do Império à República. No século XIX, a infância deveria ser assistida na capital do Pará em decorrência da política idealizada e implementada pela elite paraense. Assim, a infância que precisava ser assistida era designada de “órfã” e “exposta”. A primeira, dizia respeito, também, à criança que tinha perdido um dos pais, e a segunda, chamada, também, “enjeitada” ou “desvalida”, correspondia à criança que alguém não quis cuidar ou receber. Este artigo está divido em três partes. Na primeira, situo a cidade de Belém do Pará, em termos políticos, econômicos e sociais, no cenário do Brasil República, em interface com a infância. Na segunda parte, destaco as políticas assistenciais e filantrópicas no atendimento à infância no Pará e o ideário higienista. E, por fim, na terceira, trago à cena algumas instituições que foram criadas em Belém do Pará, no período do Império à República, para abrigar a criança órfã e desvalida. Palavras-Chave: Grão Pará. Infância. Crianças Desvalidas. Higienismo. Filantropia. Assistencialismo. ABSTRACT The objective of this article is to bring to light the charity, assistance and protection policy for disfavored childhood in Belém-PA, from the period of the Empire to the Brazilian Republic. In the 19th century, children should be assisted in the capital of the state of Pará as a result of the political idealization implemented by this state’s elite. Therefore, the ones who needed to be assisted were designated as “orphans” or “exposed”. The former ones, not exclusively, were the children who had lost one of their parents; the latter ones, also referred to as “rejected” or “disfavored”, corresponded to the children none would look after or welcome. This article is divided into three parts. In the first, the city of Belém is situated in political, economic and social terms, interfaced with childhood, in the scenario of the Brazilian Republic. In the second, the assistance and philanthropic policies for childhood care, as well as the hygienist ideas, are highlighted. Finally, institutions created to shelter orphan and disfavored children in Belém, from the period of the Empire to the Republic, are brought to centre stage. Keywords: Grão Pará; Childhood; Disfavored Children; Hygienism; Welfarism; Philantropy. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Psicóloga, Pesquisadora e Professora Associada III da Universidade Federal do Pará. Desenvolve pesquisas na área da História da Infância na Amazônia paraense, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA. 34
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INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é trazer a lume a política de caridade, assistência e proteção à infância desvalida em Belém do Pará, do período que se estende do Império à República. No século XIX, a infância deveria ser assistida na capital do Pará em decorrência da política idealizada e implementada pela elite paraense. Assim, a infância que precisava ser assistida era designada de “órfã” e “exposta”. A primeira, dizia respeito, também, à criança que tinha perdido um dos pais, e a segunda, chamada, também, “enjeitada” ou “desvalida”, correspondia à criança que alguém não quis cuidar ou receber. Para o final do século, o termo “desvalido” passou a ser mais utilizado, significando a criança miserável (RIZZINI, 2009). É importante destacar que no século XIX não existia uma relação direta entre a falta de condição dos pais em criar os filhos e o abandono, pois nem todas as crianças pobres da capital do Pará eram deixadas nas instituições de abrigamento. Muitos pais, por razões relacionadas à ausência de recursos materiais para criá-las, recorriam a essas instituições como uma forma de seus filhos receberem uma educação profissional. Por todo o Brasil a infância abandonada deveria ser assistida pelas Misericórdias, por meio da Roda e Casa dos Expostos, e pelas políticas de assistência das províncias. Maria Luiza Marcilio (1998, p. 134), assim define o sistema social da caridade: Do período colonial até meados do século XIX vigorou a fase [...] caritativa. O assistencialismo dessa fase tem como marca principal o sentimento da fraternidade humana, de conteúdo paternalista, sem pretensão a mudanças sociais. De inspiração religiosa, [...] privilegiam a caridade e a beneficência. Sua atuação se caracteriza pelo imediatismo, com os mais ricos e poderosos procurando minorar o sofrimento dos mais desvalidos, por meio de esmolas ou das boas ações [...], esperam receber a salvação de suas almas, o paraíso futuro e, aqui na terra, o reconhecimento da sociedade e o status de beneméritos. Ideologicamente, procura-se manter a situação e preservar a ordem, propagando-se comportamentos conformistas.
Para Marcílio (1998) e Venâncio (1999), a história da institucionalização da assistência à infância no Brasil foi dividida em três fases: caritativa, filantrópica e de bem-estar social. A fase caritativa foi amplamente difundida no Brasil Colonial, originando um grupo com status social indefinido, os chamados “filhos de criação”. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Em meados do século XVIII, são fundadas as primeiras instituições de assistência à infância, como roda dos expostos e casas de recolhimento para meninas pobres geridas pelas Irmandades das Misericórdias (NASCIMENTO, 2008). A segunda fase da institucionalização da assistência à infância, denominada filantropia, foi marcada pela tímida presença do Estado na organização do movimento de assistência, quando as províncias do Império implantaram um novo modelo, que incluía a instrução primária e a profissional para meninos e meninas. É, justamente, nessa fase que a saúde da infância tornou-se o principal foco das instituições de assistência, e os médicos, como homens de ciência, exerceram um papel relevante no combate à mortalidade infantil e nos cuidados com a mulher mãe de família. Já a fase de bem-estar social se dissemina no século XX. As políticas destinadas à infância, no Estado Novo, configuraram ações de tutela e proteção, ampliadas pela regulamentação e pela criação de diversas instituições públicas voltadas à primeira infância (RIZZINI, 2008; SCHUELER, 2002). No contexto do Pará, muitas instituições foram criadas para o acolhimento das crianças abandonadas e órfãs. Contudo, a responsabilidade de assistir à infância paraense recaiu sobre a iniciativa religiosa. Muitas congregações abraçaram a missão de cuidar e educar um contingente de crianças órfãs e enjeitadas. Ainda no Pará, nos finais do século XIX, os médicos com as políticas higienistas foram sobremaneira relevantes para o atendimento da infância com medidas que pretendiam diminuir a mortandade infantil. Eles defendiam práticas educativas que tinham o intuito de salvar a criança com o conhecimento da ciência. A medicina higienista e filantrópica atuou, a partir de 1870, baseada em modelos de assistência à infância em fóruns nacionais e internacionais e ancorados no espírito nacionalista da época. É a partir desse contexto de atendimento à criança em Belém do Pará que questionamos: Que medidas higienistas foram implementadas no cuidado com a infância na capital do Pará? O que trouxeram de mudanças os médicos higienistas e sanitarista para a infância paraense nesse contexto desolador de mortandade infantil? Que instituições foram criadas do Império à República em Belém do Pará para atender a infância órfã e desvalida? O presente artigo está divido em três partes. Na primeira, situo a cidade de Belém do Pará, em termos políticos, econômicos e sociais, no cenário do Brasil República, em interface com a infância. Na segunda parte, destaco as políticas assistenciais e filantrópicas no atendimento à infância no Pará e o ideário higienista. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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E, por fim, na terceira, trago à cena algumas instituições que foram criadas em Belém do Pará, no período do Império à República, para abrigar a criança órfã e desvalida. 1. SITUANDO A BELÉM DO PARÁ DO INÍCIO DO SÉCULO XX E A INFÂNCIA Para começar a falar da infância na Belém do Pará do Império à República trago um poema de Manoel Bandeira, publicado em 1928, após uma visita à capital do Pará. Diz Manuel Bandeira:
BELÉM DO PARÁ Bembelelém! Viva Belém!
Belém do Pará porto moderno integrado na equatorial Beleza eterna da paisagem Bembelelém! Viva Belém! Cidade pomar (Obrigou a polícia a classificar um adjetivo novo de delinqüente: O apedrejador de mangueiras) Bembelelém! Viva Belém! Belém do Pará onde as avenidas se chamam Estradas: Estrada de São Gerônimo Estrada de Nazaré Onde a banal Avenida Marechal Deodoro da Fonseca de todas [as cidades do Brasil Se chama liricamente Brasileiramente Estrada do Generalíssimo Deodoro Bembelelém! Viva Belém! Nortista gostosa Eu te quero bem. Terra da castanha Terra da borracha Terra de biribá bacuri sapoti Terra de fala cheia de nome indígena Que a gente não sabe se é de fruta pé de pau ou ave [de plumagem bonita. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Nortista gostosa Eu te quero bem. ME obrigarás a novas saudades Nunca mais me esquecerei do teu Largo da Sé Com a fé macinça das duas maravilhosas igrejas barrocas E o renque ajoelhado de sobradinhos coloniais tão [bonitinhos Nunca mais me esquecerei Das velas encarnadas Verdes Azuis Da doca de Ver-o-Peso Nunca mais E foi pra me consolar mais tarde Que inventei esta cantiga: Bembelelém! Viva Belém! Nortista gostosa Eu te quero bem. Manuel Bandeira, Belém, 1928 Esse poema de Manuel Bandeira traz, com bom humor e muito lirismo, o encantamento por Belém do Pará. Ao longo do poema, repete-se sonoramente o refrão que se vale da onomatopéia evocada pelo nome da cidade: “Bembelelém/ Viva Belém!”. Esta é a Belém do Pará dos anos 20 do século passado: terra tropical; presença portuguesa; porto moderno; frutas exóticas; terra da castanha, da borracha, de igrejas barrocas e sobrados coloniais; cidade das velas coloridas e da doca de “Ver-o-Peso”. Em Belém, o poeta descobre um outro Brasil desconhecido do resto do país. Assim como Manuel Bandeira, Mario de Andrade, na mesma proporção de encantamento por Belém dos anos 20, expressou o seu amor à capital paraense numa carta que enviou ao amigo escritor Manu (Manuel Bandeira) na qual confidencia as suas mais sinceras impressões por Belém. Diz Mario na carta escrita em 1927: Manu, estamos numa paradinha pra cortar canarana da margem pros bois dos nossos jantares. Amanhã se chega em Manaus e não sei que mais coisas bonitas enxergarei por este mundo de águas. Porém, me conquistar mesmo, a ponto de ficar doendo no desejo, só Belém me conquistou assim. Meu único ideal de agora em diante é passar uns meses morando no Grande Hotel de Belém. O direito de sentar naquela terraça em frente das mangueiras tapando Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí. Você que conhece mundo, conhece coisa melhor do que isso, Manu? [...]. Belém eu desejo com dor, desejo como se deseja sexualmente, palavra. Não tenho medo de parecer anormal pra você, por isso que conto esta confissão esquisita, mas verdadeira, que faço de vida sexual e vida em Belém. Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim. (ANDRADE, 1927, p.)
Ambos falam de uma Belém do Pará que, embora já com o declínio da economia da borracha, ocorrido por volta de 1920, ainda encantava os viajantes, poetas, cientistas, empresários, comerciantes e muitos estrangeiros que chegavam à metrópole da Amazônia. Manuel Bandeira e Mario de Andrade, em suas passagens pela capital do Pará, destacaram aspectos da cidade que desde os finais do século XIX, vinha atraindo pessoas em decorrência da situação econômica advinda da comercialização da borracha, que passou a receber medidas de embelezamento da cidade e que atraía a todos pelo progresso e pela ideia de civilização (CANCELA, 2008). A carta de Mario de Andrade e o poema de Manuel Bandeira estão repletos de detalhes mostrando o valor de Belém no cenário nacional e internacional, que a fez ser conhecida como a “francesinha do Norte”. A imagem visual da cidade de Belém misturava aspectos provincianos com ar de modernidade, ressaltadas pelos poetas, bem de acordo com as noções de progresso da
época.
Possivelmente,
essas
características
foram
intencionalmente
confeccionadas baseadas em uma concepção de cidade que permeou todo o trajeto de sua construção, marcado por ações políticas para deixar a cidade bastante atraente. Tudo isso, pela riqueza criada pelo látex, que contribuiu significativamente para uma reorganização do espaço urbano e para migração de muitos estrangeiros (SARGES, 2002). O embelezamento visual da capital do Pará, narrado na carta de Mario de Andrade, estava diretamente ligado à economia da borracha e a ampliação populacional. Assim, as ações estabelecidas pelo intendente Antônio Lemos, no início do século XX, intencionavam deixar a cidade com aspectos de uma cidade moderna, e oferecer, ao segmento da população em ascensão, uma cidade sem problemas socais e muito segura. Para isso, Antônio Lemos teve que (re)planejar a cidade para ter seu espaço disciplinado, e, para isso, estabeleceu regulamentos (Código de Posturas) da vida social na cidade. Como se vê, toda essa idealização do intendente estava associada aos valores estéticos de uma classe social em ascensão
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composta por seringalistas, comerciantes, fazendeiros e intelectuais (SARGES, 2002). Projetar Belém nos finais do século XIX como uma cidade civilizada exigia de Antônio Lemos medidas de planejamento de reforma principalmente sobre os hábitos da população. O intendente constatou que grande parte dos belenenses, sobretudo, da população pobre, não possuía um comportamento civilizado compatível com os modelos de comportamentos dos europeus. Diante dessa situação, o intendente se utilizou de mecanismos capazes de prover as necessidades educacionais da população para evitar o “mau comportamento”, como evitar: chamar palavrões em ruas e vias públicas, jogar lixo nas ruas, não haver mendicância, evitar a vadiagem de jovens, embriaguez, prática de prostituição, jogos, aglomerações de pessoas, gritarias, gargalhadas, batuques e sambas, crianças brincando na rua e praças, dançar em cordões de pássaros fora da época carnavalesca etc. (SILVA, 2009). Nesse contexto dos anos 20 do século passado que foi referenciada pelos poetas sobre a capital do Pará, encontrava-se a criança. Embora com todo o embelezamento da cidade e sua prosperidade, a mortalidade infantil era intensa. O óbito de crianças foi considerado à época como um sério problema, muito por conta da miséria, da pobreza e da falta de conhecimentos voltados para alimentação e cuidados com a higiene da criança, bem como pela própria fragilidade física destes pequenos sujeitos (DEL PRIORE, 1999). Sabe-se que na primeira década do século XX apenas uma pequena parcela de crianças chegava à vida adulta. A pesquisa realizada por Alves, Chagas e Viana (2015) nos Livros Perpétuos de Sepultamento de Menores no Cemitério de Santa Isabel que trata do número de óbitos de criança, ilustra essa realidade frágil da infância, ao evidenciar que, no período de 1908 a 1911, existia um assustador índice de mortandade de crianças na capital do Pará. Muitas crianças morriam ainda na primeira infância de diversas doenças como: infecção intestinal, gastroenterite, febre intermitente, infecção pulmonar, dentição, diarreia, verminoses etc. Em decorrência do grande número de óbitos de crianças, as famílias apressavam o batismo para os primeiros dias de vida, pois já contavam com a morte breve delas. As mães ficavam aflitas quando suas crianças ficavam doentes, pois a morte em geral batia na porta das famílias pobres. Dalcídio Jurandir (1941), nosso maior escritor amazônico, retrata no seu romance Chove nos Campos de Cachoeira uma passagem da pequena Mariinha, irmã do menino Alfredo, personagem central Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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do romance, que vivia escapando da morte deixando a sua mãe, D. Amélia, cada dia mais aflita com a saúde delicada de sua filha. Diz o narrador: Mariinha todo mundo dizia que não se criava. D Amélia (mãe), levava noites e noites, sozinha [...] velando o sono da Mariinha com febre. Era pano com vinagre, era lavagem, era defumação. Dona Maria dos Navegantes foi a primeira que disse: - Ah, D. Amélia, paciência, mas essa menina não se cria. Parece de sete meses. Alfredo media a grossura do bracinho dela pelo dedo polegar. Tudo em Mariinha era mole, frágil, sem vida mesmo. Mas D. Amélia perdia noites ao pé da filha. [...] Alfredo saia da rede, pé-ante-pé, para espirar, pelas frestas da porta do quarto, se Mariinha estava mal. Mariinha morria e vivia. [...] perder Mariinha era o que toda a hora podia acontecer (JURANDIR, 1941, p.302303).
Assim como a mãe Mariinha, muitas mães viviam o assombro diante da morte frequente de filhos. A fragilidade de Mariinnha era a mesma de muitas crianças, não somente da região do Marajó, mas também a da capital onde se tinha assistência à saúde com as ações dos médicos higienistas. Além das epidemias, falta de sistema de esgotamento sanitário, precariedade dos sistemas de abastecimento de água, condições miseráveis das habitações, hábitos inadequados de higiene e problemas com a alimentação da criança, os médicos condenavam ainda práticas culturais que prejudicavam o desenvolvimento da criança. 2. POLÍTICA HIGIENISTA NOS CUIDADOS COM A CRIANÇA EM BELÉM DO PARÁ No início do século XX, a ciência moderna começa a se preocupar com a mortalidade de crianças, ao produzir estudos referentes às descobertas da origem de muitas doenças, assim como de métodos preventivos e medicamentos para tratá-las, e no caso da infância, especificamente, alguns pesquisadores começaram a produzir estudos voltados para esse seguimento social, os quais se referiam à alimentação da criança, à saúde das mães, ao parto, às peculiaridades do recém-nascido, ao banho, às vestimentas e, sobretudo, às pesquisas que se ocuparam das doenças que mais acometiam as crianças (ALVES, 2012). Com o raiar da República nos finais do século XIX e início do XX, a mortandade infantil tornou-se um problema mais intensamente discutido, uma vez que a infância foi concebida como o “embrião” do país, o sujeito que necessitava ser “saudável”, “forte” e “robusto” para ser capaz de contribuir para o progresso da Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Nação, por isso, as crianças, enquanto “as sementes do futuro”, necessitavam ser cuidadas e higienizadas. É nesse cenário que surge a preocupação com a infância, que passava a ser considerada importante para o progresso e desenvolvimento do país, ou seja, descobre-se a infância, e a necessidade de se constituir uma sociedade sadia, moral e fisicamente forte, que pudesse dar continuidade aos processos de modernização do Brasil (ARAÚJO, 2014). Nesse contexto republicano, surgem as ideias relacionadas à Puericultura, com um discurso médico de preocupações com a alimentação, brinquedos, tratamento diferenciado, dentição, desenvolvimento físico e moral da criança. Portanto, em razão da grande mortalidade infantil houve por parte dos higienistas e sanitaristas a emergência de se promover a conscientização de que as crianças necessitavam receber cuidados especiais. Em Belém, a problemática da elevada mortandade das crianças era algo inaceitável pela elite urbana reformista, uma vez que estava em desacordo com os anseios republicanos de ordem e progresso instalado em todo o Brasil. Vale ressaltar que foi no século XIX, em decorrência da urbanização que os médicos passaram a se preocupar com mais intensidade com os cuidados e a higiene dos locais e das pessoas, tais como: a localização de cemitérios, controle dos espaços físicos, controle das epidemias, principalmente, os cuidados com a criança e as mulheres. A grande preocupação era neutralizar os perigos que ameaçavam a saúde da sociedade. As medidas higienistas abrangiam os cuidados com a saúde da criança nos primeiros anos de vida, cuidados com a gravidez e o parto, além de cuidados com a amamentação realizada pelas amas de leite (FERREIRA; GONDRA, 2007). Com a exploração da borracha na Amazônia nos finais do século XIX, a sociedade da capital paraense não estava dissociada do contexto nacional e viviam grandes transformações nos campos político, econômico e cultural. Essa economia provocou um intenso processo migratório, fazendo com que a população de Belém crescesse consideravelmente. Eram pessoas vindas de muitas partes do Brasil e do exterior, que traziam consigo suas crianças e procuravam, mediante as dificuldades enfrentadas, um lugar para acolhê-las. Tal acontecimento obrigava o poder público a tomar diferentes medidas para garantir a ordenação da cidade de Belém e atender a uma elite formada pelos barões da borracha, que impunha um novo modelo de vida baseado em ideias trazidas das cidades europeias. Ao tempo em que a população
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crescia em um ritmo frenético, normas eram estabelecidas para que nada interferisse no projeto de modernização na capital do Pará. A concepção médico-higienista, que embasava o projeto civilizador do final do século XIX, e que se estendeu para as primeiras décadas do século XX, estabelecia muitas diretrizes para a formação de uma nova sociedade e a capital da província do Grão Pará e depois o estado do Pará, a ela não esteve alheia, muito pelo contrário. A criança era o foco principal para o estabelecimento dessa nova sociedade e as ações de assistências e proteção começavam a ser pensadas para elas (BORDALO, 2000). Nas propagandas do Jornal Folha do Norte, de 1900, observamos bem a preocupação em combater as parasitoses e o raquitismo das crianças com as propagandas do “Vermífugo Paraense” e “Emulsão de Scott” (Foto1). Nas propagandas, notamos um discurso em que há uma preocupação em proteger a saúde das crianças que, no início do século XX, morriam acometidas por verminoses. As propagandas dos referidos remédios davam destaque a sua eficácia no combate as verminoses, anemias e raquitismo das crianças (PINHEIRO, 2013).
Foto 1: Propaganda de “Vermífugo Paraense” e “Emulsão de Scott”
Fonte: JORNAL FOLHA DO NORTE, jul. 1909.
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No Pará do início do século XX, em razão da economia da borracha, houve uma migração de estrangeiros para a Amazônia, particularmente para a cidade de Belém. Esses imigrantes traziam consigo suas crianças, a maioria de classe pobre e já apresentando um estado de saúde debilitado pela má alimentação e condições de vida. Atrelado às condições físicas fragilizadas, as crianças eram vítimas de epidemias e de doenças infectocontagiosas, doenças trazidas pela miséria, má alimentação e falta de cuidado. Assim, muitas medidas caritativas, de assistência e proteção à infância desvalida em Belém do Pará foram pensadas para “salvar a criança”. As políticas caritativas e de assistência à infância começaram a ser implementadas no período de início do “boom da economia da borracha” (1850-1912). A partir dos anos de 1850, muitas instituições foram criadas para abrigar as crianças consideradas perigo para a sociedade paraense. Para Rizzini (2008), esses espaços destinados ao acolhimento e ao cuidado de meninos e meninas órfãs e abandonadas sofreram mudanças de cunho ideológico, especialmente no Brasil, na passagem do século XIX para o XX, quando as práticas em relação à assistência foram incorporadas ao discurso e à ação dos higienistas, provocando o esmorecimento do caráter da misericórdia. Essas instituições de caridade de natureza filantrópica que, num primeiro momento tinham caráter assistencialista, passaram a assumir, também, a missão de instruir seus internos, oferecendo, no caso das meninas, conhecimentos rudimentares em primeiras letras, práticas manuais e aprendizagens domésticas. Essa estratégia serviu para afastar das ruas muitas crianças que começavam a causar transtornos e má impressão aos moradores dos emergentes centros urbanos, principalmente das principais cidades brasileiras, que se encontravam em processo de formação (FERREIRA & FREIRE, 2011). 3.
CRIAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À
INFÂNCIA EM BELÉM DO PARÁ DO SÉCULO XIX AO INÍCIO DO SÉCULO XX Como palco de atuação de medidas filantrópicas, de assistência e proteção à infância, Belém do Pará se destaca no cenário brasileiro com a criação de diversas instituições de abrigamento de criança ao longo do século XIX e início do século XX. Metade das instituições criadas na Primeira República era custeada pela Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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filantropia e, a outra metade, pelos poderes públicos. Floresceu na capital do Pará as ações filantrópicas que refletiam o dever de socorrer os mais necessitados (MARQUES, 2000). No contexto da infância paraense houve um esforço das elites locais em assumir os cuidados e educação de crianças órfãs e desvalidas. Enfim, nos primeiros anos da República, a infância em Belém do Pará adquiria importância por representar o futuro. Para atingir esse ideal, a criança deveria ser preservada tanto em seu nascimento quanto nos primeiros anos de vida. Nesse ambicioso projeto, engajaramse, principalmente, os médicos sanitaristas e higienistas e as mulheres da elite local envolvidas em movimentos filantrópicos de amparo à infância. A seguir destaco algumas instituições que tiveram papel importante na educação de meninos e meninas em Belém do Pará, como: Casa de Educandos Artífices, Companhia de Aprendizes Marinheiros, Colégio Nossa Senhora do Amparo, Orpahanato Paraense e
Instituto de Proteção e Assistência à Infância do
Pará. Para tal, recorri aos seguintes autores: Barbosa (2011), Araújo (2014), Sabino (2012), Monteiro (2013), Pinheiro (2014) e Alves (2012). 3.1 Casa dos educandos artífices A Casa de Educandos Artífices foi criada para atender a classe de meninos desvalidos e pobres enjeitados, a fim de oferecer instrução profissional e educacional, tais como as noções das primeiras letras e noções de aritmética entre outras atividades. A criação dessa instituição visava retirar a população de menores incivilizada das ruas para outro enquadramento social, pois, direcionando os menores desvalidos a uma ocupação útil, a sociedade estava cumprindo com a formação de indivíduos civilizados. Na Província do Pará em 1840, foi instalada a primeira Casa de Educandos Artífices do Brasil. Este estabelecimento denominado “Casa” preparava os meninos para vida profissional “ofícios de carpinteiro de machado, calafete, marceneiro, poleiro, funileiro e sapateiro”. Os menores tinham uma rotina a seguir, pois era um cenário ditado por regras e disciplinas, contudo, esta política de controle trazia sérias consequências a estes meninos desvalidos que sofriam profundos maus tratos em relação às práticas punitivas entre elas: jornadas de trabalho extensas, privação de intervalo, isolamento, prisão, uso da palmatória entre outras. Nas últimas décadas do século XIX, foi introduzido o aprendizado de tipografia. Novas matérias foram Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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adotadas, conforme as necessidades profissionais da época, como o desenho e geometria (BARBOSA, 2011). Na Casa de Educandos Artífices do Pará, os alunos viviam sob uma política rígida de controle com horários apropriados para estudo, alimentação, descanso e jornada de trabalho. Mesmo com os estabelecimentos de regras regidas pelo regulamento do estabelecimento, tal prática não garantia a disciplina dentro da Casa “constantes as contravenções da ordem pelos alunos”. Devido haver resistência dos alunos acerca da aceitabilidade do confinamento e a obediência dos meninos desvalidos, os diretores solicitavam que fossem instaladas prisões para separar os alunos mais novos dos maiores. Dessa maneira, os alunos que mantivesse uma má conduta dentro dos estabelecimentos de ensino eram severamente punidos. Portanto, havia um rígido controle sobre os meninos que vez ou outra se rebelavam às normas comportamentais da instituição. No mais, o trabalho desenvolvido pelos meninos era amplamente aproveitado pela elite local. Têm-se notícias que parte das cadeiras do imponente Teatro da Paz e o portão de ferro do magnífico Colégio Gentil Bittencourt foram confeccionados pelos meninos da instituição. Como se vê, os meninos de certa maneira foram explorados com a produção de seus trabalhos. 2.2 Companhia de aprendizes da marinha No século XIX, o governo imperial cuidou da educação na Corte e das necessidades de suas instituições, especialmente as da Marinha e do Exército, ao criar em todo o país Companhias de Aprendizes Marinheiros e Escolas/Companhias de Aprendizes dos Arsenais de Guerra. Os Arsenais de Guerra recebiam meninos dos colégios de órfãos e da casa de educando, que lá iam receber treinamento nas oficinas (RIZZINI, 2009). As Companhias de Aprendizes Marinheiros, que eram escolas do tipo internato recebiam meninos recolhidos nas ruas pelas polícias das capitais brasileiras. O número de meninos enviados pelas companhias imperiais aos navios de guerra foi maior do que o de homens recrutados e voluntários. Nos anos de 1870 a 1910, a sociedade brasileira vivenciou uma realidade marcada pelo crescimento desenfreado de casos de menores ligados ao crime. Furtos, esfaqueamentos, defloramentos, entre outros, eram os delitos cometidos com frequência por crianças e adolescentes. Diante da crescente marginalidade, o Estado Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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foi pressionado a dar uma resposta para solucionar este problema na cidade, buscando melhorá-la por meio da criação de uma rede assistencial que auxiliasse os mais necessitados. Essa cultura filantrópica era regida por normas jurídicas e assistencialistas, o que gerou pormenorizar a questão da criminalidade da criança e do adolescente para a criação de leis e políticas públicas para formalizar normativas correcionais e penais. Nos anos de 1870 a 1930, as políticas, higienistas fizeram parte do processo de modernização das cidades brasileiras, desenvolvendo neste período novas forma de sociabilidade dos espaços públicos1 (ARAÚJO, 2014). A proposta do Estado para o progresso nacional também passava pelas questões sociais como saúde, educação e trabalho. Nos meios médicos e jurídicos a preocupação com a infância pobre, estava ligada aos aspectos higiênicos, uma vez que o Estado tentava normatizar a sociedade segundo os padrões de comportamento e hábitos cotidianos da sociedade paraense em ascensão. E para que isso acontecesse de fato, a desordem social e moral nos centros urbanos deveria ser eliminada. Sendo assim, construiu-se a ideia de inserir o menor nas frentes de trabalho para aprender um ofício e acabar com o ócio (ARAÚJO, 2014). Os menores eram enviados ao arsenal da Marinha para se alistarem na Companhia de Aprendizes Marinheiros ou de Artífices por meio dos chefes de polícia ou Juízes de Órfãos de qualquer localidade na Província do Pará. Havia, também, os menores que chegavam à companhia em diversas situações como: órfãos, desvalidos, aprendizes, voluntários e filhos de famílias extremamente pobres 2. À medida que a criminalidade se avolumava, os aparelhos policiais e até as forças armadas entravam em ação no combate à criminalidade de menores considerados “delinquentes”. Desse modo, exigiu-se do Estado que fossem criadas políticas públicas de atendimento à infância que dessem conta desta realidade, uma vez que todas as iniciativas no âmbito da infância “estigmatizada” eram de cunho privado, religioso ou filantrópico (ARAÚJO, 2014). Sabe-se
que
o
período
supracitado
ficou
marcado
por
diversos
acontecimentos sociais, econômicos e políticos no Brasil. A sociedade patriarcal da recém proclamada República galgava por interesses que vislumbravam a hegemonia da classe dominante. A população pobre do país ficou subjugada às forças dominantes de produção. Entretanto, todo o crescimento socioeconômico não acompanhou o desenvolvimento da sociedade como um todo, desvelando que sobre essa realidade ainda havia muito a se fazer (ARAÚJO, 2014).
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Higienismo foi uma medida que influenciou muitas práticas e políticas públicas fortemente implantadas no Brasil. Pode-se dizer que o higienismo, como uma forma de pensar, é um desdobramento da “medicina social”. A urbanização sem planejamento decorrente da industrialização emergente que acontecia no Brasil no final do século XIX e início do século XX traz como consequência problemas de toda ordem, entre os quais se destacam os de natureza médica: as condições sanitárias ameaçadoras e os surtos epidêmicos. Morria-se de uma ampla variedade de doenças, como varíola, febre amarela, malária, tifo, tuberculose, lepra, disseminadas mais facilmente pela concentração urbana. (ALVES, 2012, p. 3302)
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Os chefes de polícia das Províncias, como da corte, tinham a função de recolherem menores abandonados, órfãos e desvalidos das ruas ou em situações em que o menor não possuísse nenhum parente ser seu tutor. Os chefes de polícia os enviavam não somente para a Companhia de Aprendizes Marinheiros, mas outras instituições que acolhiam esses menores, como a Santa Casa de Misericórdia, o Instituto Paraense dos Educandos Artífices, Companhia de Aprendizes Artífices do Arsenal de Marinha, Liceu Paraense, Nossa Senhora do Amparo e outras da província do Pará.
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O ideal republicano consolidou, portanto, a necessidade de inserir o menor criminoso na atividade produtiva, de educá-lo, corrigi-lo e discipliná-lo, preparandoo para um futuro digno, condizente com o contexto social daquela época. O mundo do trabalho se tornou importante por objetivar o aperfeiçoamento do caráter de menores em situação de risco e por lhes ensinar um ofício. 3.2 Instituto orfanatório do outeiro O Instituto Orfanológico do Outeiro, criado por decreto em 1904, desde sua aprovação ficou em um longo período em fase de adaptação, haja vista que esse foi instalado em um prédio já existente desde meados do século XIX, a hospedaria para imigrantes em Outeiro, como informa a mensagem ao Congresso Legislativo do Estado do Pará, do então governador Augusto Montenegro.
Foto 2: Fachada do Instituto Orfanológico
Fonte: Álbum do Pará, 1908. Biblioteca Artur Vianna. Setor de Obras Raras.
Segundo relatos oficiais do Governador Augusto Montenegro, contidos no Álbum do Pará de 1908, a principal motivação para a criação do Instituto tem relação com a carência de instituições destinada a meninos abaixo dos 12 anos de idade em Belém, o que se agravou ainda mais com a mudança no estatuto do Instituto Lauro Sodré instituição criada no século XIX que recebia meninos órfãos desvalidos, que passou a limitar o ingresso de alunos com idade a partir de 12 anos, pois meninos
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menores a essa faixa etária não conseguiam bom aproveitamento nos cursos profissionalizantes lá oferecidos (PINHEIRO; ALVES, 2014). De acordo com a Foto 2, podemos ter uma ideia aproximada da fachada do Instituto Orfanológico pela sua imponência em um lugar simples e pouco habitado. Os jornais da época noticiaram, com muita precisão, toda a reforma do prédio assim como da sua inauguração que teve todo um requinte para receber não somente as autoridades, mas principalmente a elite local que estava a investir a favor dos mais necessitados. Nas matérias de jornais sobre o Instituto Orfanológico era relatado a qualidade de toda mobília, objetos e materiais de ensino da instituição e que eram considerados os artefatos mais modernos trazidos da França.
Foto 3: Internos posando em frente ao Instituto Orfanológico do Outeiro
Fonte: Álbum do Pará, 1908. Biblioteca Artur Vianna. Setor de Obras Raras.
Desse modo, o Instituto Orfanológico viria suprir a demanda de meninos muito pequenos que precisavam de cuidados e educação, conforme o que foi relatado. O Instituto Orfanológico do Outeiro destinava a “educação dos menores de 6 a 9 annos, filhos de Paes pobres ou órfãos, que, a falta de recursos, vêm pedir a tutela do estado os elementos que, mais, tarde, os tornem cidadãos úteis a communhão social” (PINHEIRO; ALVES, 2014). O Instituto Orfanológico do Outeiro era uma escola em sistema de internato, modelo que se apresenta como um regime de educação adequado ao exercício da Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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vigilância e da disciplina. Na Foto 3, podemos observar o perfil de crianças que a instituição recebia. Eram crianças mestiças que variavam entre 6 a 9 anos de idade. Constatamos, ainda na Foto 3, um grupo de aproximadamente 60 crianças que foram fotografadas na frente da instituição, permite também verificar o traje branco usado pelas crianças, e ao fundo os professores e diretores da instituição. Foto 4: Sala de aula do Instituto Orfanológico do Outeiro.
Fonte: Álbum do Pará, 1908. Biblioteca Artur Vianna. Setor de Obras Raras.
Durante todo o governo de Augusto Montenegro, divulgava-se que o Instituto era “destinado à educação e ao aparo da infância” e de fundamental relevância social, pois é o local “onde os desprotegidos vão encontrar abrigo carinhoso que não puderam receber do seio materno” (PINHEIRO; ALVES, 2014). Na Foto 4, podemos observar uma representação da sala de aula do instituto com 25 crianças uniformizadas e duas professoras ao fundo. A sala aparentemente arejada e com objetos dispostos no ambiente como artefatos escolares, já que o globo, o quadro negro e os cavaletes com ilustrações fazem da sala um lugar educativo.
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3.3 Colégio Nossa Senhora do Amparo No Pará, em 1804, é criada a Casa da Caridade pelo bispo D. Manoel de Almeida Carvalho, que após uma viagem pelo interior traz para a capital 15 meninas indígenas de Aldeias do Rio Negro (posteriormente, Província do Amazonas) para educá-las. Contudo, o projeto de criação da “obra pia” é de autoria de seu antecessor, o bispo Caetano Brandão 3. A Casa destinada ao acolhimento de enfermos era inadequada para o atendimento de meninas. Assim, no mesmo ano, tratou-se de transferi-las para outra habitação. Com os anos, a instituição dedicou-se ao recolhimento e educação de meninas pobres da capital do Pará, afastando-se de sua finalidade original do “resgate” de indígenas. Por volta de 1838, a Casa das Educandas é transformada no Colégio de Nossa Senhora do Amparo, quando o governo do Pará assumiu a sua administração e manutenção, conforme se observa nos relatórios de Províncias da época (SABINO, 2012). As meninas do Amparo tinham aulas de cozinha, corte, costura e confecção de flores, todas realizadas em grupo. As educandas aprendiam, ainda, a cantar (canto coral, etc.), declamar, orar, colaborar e participar dos atos religiosos, além de despenderem de suas aptidões artísticas, porém essa educação foi questionada pelo presidente da província, com o argumento de ser muito luxuosa para meninas que fora do colégio não passariam de simples empregadas domésticas. O ensino e a educação das meninas do Colégio de Nossa Senhora do Amparo consistiam no curso primário e secundário (este ministrado a partir de 1871 quando se instala a escola normal, de onde as meninas seriam designadas professoras ou normalistas). Fazia parte do currículo o ensino de práticas de serviços e prendas domésticas, como também o ensino da religião católica, destinados à formação moral/cristã das meninas (SABINO, 2012). Na Foto 5, há a representação da aula de flores que as meninas do Colégio do Amparo tinham durante a semana. É possível observar nessa classe um grupo de 25 educandas do Amparo usando uniforme igual e distribuída harmonicamente.
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Dom Frei Caetano Brandão foi bispo do Pará de 1783 a 1789. Religioso da Ordem Terceira da Penitência, foi sagrado a 02 de fevereiro de1783, chegando ao Pará em outubro do mesmo ano. Governou o bispado durante cinco anos. Entre as suas obras, está a fundação e instalação do primeiro hospital da Amazônia, o “Hospital do Bom Jesus dos Pobres”, depois Santa Casa de Misericórdia. Em 1788, foi transferido para a Sede Primacial de Braga, Portugal, onde faleceu em 15 de dezembro de 1805.
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Foto 5: Aula de Flores das educandas do Colégio Nossa Senhora do Amparo
Fonte: Biblioteca Pública Artur Vianna. Setor de Obras Raras, 1868.
Foto 6: Aula de corte e costura no Colégio Nossa Senhora do Amparo em 1868.
Fonte: Biblioteca Pública Artur Vianna. Setor de Obras Raras, 1868.
Já na Foto 6, podemos verificar que as educandas estavam em aula de costura que diariamente eram realizadas. O que nos chama muito a atenção nessa foto é a ordenação das meninas na sala. Enquanto algumas delas estavam sentadas a frente das máquinas de costura, outras educandas estavam junto das Irmãs tendo aula de corte e costura. Sabe-se que parte dessas produções (flores e costuras) era vendidas nos bazares da instituição. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Na Foto 7, verificamos as educandas na cozinha, possivelmente tendo as primeiras noções de culinária na formação que elas tinham para poder ter o papel de mães de família ou de damas de companhia. No que se refere às estratégias de disciplinamento no Colégio Nossa Senhora do Amparo, havia regras de conduta rigorosas às meninas, expressas no regimento. Quando a direção considerava as alunas incorrigíveis e insubordinadas, essas sofriam graves punições. Nos documentos da instituição de 1875, podemos observar um caso da menina Ana Brasil que após ameaçar as companheiras, chegando inclusive a maltratá-las fisicamente, uma menina de 7 anos foi castigada rigorosamente e, mostrando-se incapaz de se corrigir, foi expulsa da instituição (SABINO, 2012). Foto 7: Aula de prendas domesticas para as educandas do Colégio Nossa Senhora do Amparo em 1868.
Fonte: Biblioteca Pública Artur Vianna. Setor de Obras Raras, 1868.
3.4 Orphelinato paraense No ano de 1893, é criado pelo intendente Antônio Lemos uma casa para atender órfãs, denominada Orphelinato Paraense, criada por iniciativa de uma associação formada por importantes famílias da sociedade paraense, chamada “Associação Protectora dos Orphãos”, instituição filantrópica que tinha como objetivo abrigar meninas órfãs e desvalidas. Porém, poucos anos depois, em virtude das dificuldades enfrentadas pela associação, o governo municipal resolveu assumila, transformando-a, a partir de então, num dos mais importantes e polêmicos projetos da municipalidade, confiando à Ordem Religiosa Filhas de Sant’Anna a sua direção interna. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Entre os critérios de aceitação das órfãs a serem amparadas pelo Orphelinato seria que “em primeiro lugar no Orphelinato serão admitidas órfãs de pai e mãe, qualquer que seja a idade, religião e nacionalidade, em segundo lugar e nas mesmas condições, as órfãs de pai, e finalmente as de mãe, cujos pais nada tenham para mantê-las e educá-las (MONTEIRO, 2013). Na Foto 8, é possível observamos a magistral fachada da instituição que estava de acordo com as normas arquitetônicas dos prédios escolares e atendia aos princípios higienistas. Afastado do centro da cidade de Belém, o prédio do Orphelinato Paraense tinha muitas janelas que evitava, assim, a proliferação de doenças. Foto 8: Fachada completa do Orphelinato Paraense
Fonte: Biblioteca Pública Artur Vianna. Setor de Obras Raras, 1892.
O Estatuto da Associação Protetora dos Órfãos afirmava ainda que os órfãos receberiam da Associação benefícios como “casa, mesa, luz, vestuário, instrução primária, ensinando-se aos do sexo feminino toda sorte de costura, chá, prendas de agulha, e serviços domésticos”. Podemos observar, também, nesse excerto, que a educação para as meninas órfãs era pensada de forma distinta da educação para os meninos órfãos. O Orphelinato também pode ser entendido como uma estratégia higienista, visto que iria retirar e livrar a sociedade de órfãos entregues ao vício e ao crime, por Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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isso “enxugai as lágrimas da pobreza, suavizai a sorte da orfandade, erguei da miséria esses entesinhos, a quem a mão da fatalidade, por vezes arroja ao abismo dos infortúnios, no isolamento da vida entregues ao vício e ao crime” (MONTEIRO, 2013). Na foto 9, visualizamos a entrada do Orphelinato Paraense, que era amplamente divulgado como uma instituição enquadrada nos princípios do higienismo. A instituição serviu de internato para meninas, sendo, inclusive, destinado para receber meninas que tinham condições de bancar financeiramente sua formação. As educandas que ali eram formadas recebiam uma educação refinada e, portanto, adequada para as meninas filhas de elite. Foto 9: Entrada do Orphelinato Paraense
Fonte: Biblioteca Artur Vianna, 1892
3.2. Instituto de proteção e assistência à infância do Pará No Pará, em 1912, o jovem médico Pediatra, Ophir Pinto de Loyola, que, de um lado, sensibilizado com a situação de abandono das crianças órfãs, pobres e desvalidas, e de outro, do quadro de desnutrição e falta de higiene vivida pelas crianças que atendia na Santa Casa de Misericórdia do Pará, funda um estabelecimento de caridade e assistência à criança − o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Pará (MARTINS, 2000). Similar ao Instituto criado no Rio de Janeiro pelo médico Moncorvo Filho, o IPAI do Pará tinha o objetivo de auxiliar as crianças desvalidas e orientar as mães Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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nos princípios da puericultura, tão necessários à grandeza de uma raça, e tão garantidoras do futuro de uma nação forte e civilizada. Pela abnegação e sensibilidade com a criança carente do Estado do Pará e por ser considerado pioneiro na proteção materno-infantil, coube-lhe o título de “Pai da Pediatria no Pará” (BORDALO, 2002). Na foto 10, é possível identificar o grupo de médicos higienistas do Pará que fazia parte o IPAI. Sentados, o Dr. Ophir Loyola, primeiro diretor, à direita, o Dr. Penna de Carvalho, chefe de clínica, à esquerda. De pé, o Dr. Evaristo Silva, chefe de clínica, à direita, o cirurgião dentista, Dr. Raymundo Cabral, chefe do gabinete dentário, à esquerda. Foto 10: Corpo Clínico do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Pará.
Fonte: Revista Pará Médico, 1912 (Arquivo Público Artur Vianna)
O IPAI é uma instituição privada, de caráter filantrópico, que, nascendo sob a bandeira da República e, sobretudo dos valores positivistas, encontra respaldo para sua criação em ideias da medicina higienista. É o início do conflito entre caridade e filantropia. Enquanto a primeira era campo exclusivo das Irmãs de Caridade, a segunda tem compromisso com a ciência. Inicia-se uma campanha contra os asilos de caridade e o sistema de Roda, levada a cabo por médicos e juristas (MARTINS, 2006). A questão da racionalização da saúde do menor é levantada devido às altas taxas de mortalidade infantil, tanto na sociedade em geral quanto nos asilos. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Nesse cenário, sobressaía-se o papel dos médicos higienistas no atendimento das crianças pobres. Dispostos a enfrentar o “problema da infância” por meio de medidas higienizadoras, tais médicos defendiam não apenas a assistência maternoinfantil, mas também proposições a respeito da educação das mães, com vistas à formação física e moral dos filhos. A atuação desses médicos higienistas foi o que instituiu o novo modelo filantrópico de assistência, que iria combinar intervenção pública, filantropia e ciência médica. Fundam-se nessa época as bases da puericultura no Brasil, definida como a ciência que trata da higiene física e social da criança. Nascido na Inglaterra e na França no século XVIII, a base da puericultura era na orientação à higiene da maternidade e da infância (ALVES, 2013). Foto 11: Primeira Sede do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Pará.
Fonte: Revista Pará Médico, 1912. Arquivo Público Artur Vianna.
O Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Pará era uma instituição filantrópica que foi reconhecida como de utilidade pública em 1912. Essa foi indubitavelmente a grande obra de Ophir de Pinto Loyola no Pará. Ali consolidou cada vez mais sua política na assistência médico-social à infância e fez valer os seus princípios em relação ao desenvolvimento saudável da criança. Na atuação como diretor do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Pará e da Santa Casa de Misericórdia do Pará irradiava suas ideias, suas denúncias, seus projetos, sua influência no campo da proteção à infância na Amazônia paraense Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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(ALVES, 2013). Na foto 11, verificamos a primeira casa que funcionou o IPAI sob a direção Dr. Ophir Loyola, fundador, rodeado de crianças e mães em 1912. A fotografia indica que, embora funcionando em uma casa simples, o IPAI já no primeiro ano de fundação atendia um número significativo de crianças pobres. Um homem de ciência, à frente de seu tempo, imprimindo uma marca própria na sua atuação como médico pediatra, Ophir Pinto de Loyola foi um defensor da assistência médico-social à criança pobre. Na atuação como diretor da Santa Casa de Misericórdia do Pará e professor da Cadeira de Pediatria Clínica da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará irradiava suas ideias, suas denúncias, seus projetos, sua influência no campo da proteção e assistência à infância pobre. Dotado de espírito renovador e progressista, destacou-se nos estudos das doenças infantis, sobretudo as doenças tropicais que atingiam as crianças da região amazônica. Foto 12: Primeira Sede do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Pará.
Fonte: Revista Pará Médico, 1932. Arquivo Público Artur Vianna.
Na segunda casa do IPAI (Foto 12), em 1933, já tinha credibilidade pelas suas ações no combate a mortandade infantil. Com a ajuda das Damas da Sociedade o IPAI, havia atendido muitas crianças com vacinações e outros atendimentos. Na foto podemos observar que a maioria das crianças atendidas era mestiça e na faixa etária de 1 a 7 anos.
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No caso da história social das crianças desvalidas no Pará como a criação do IPAI, resultava de uma política social, educacional e econômica pautada no progresso e nas ideias de civilização e modernidade. Para essa nova sociedade, que tentava superar a ideia de que a Amazônia é terra de índio e que estava à margem da história, como dizia Euclides da Cunha, era preciso transformar as crianças em cidadãos úteis para o desenvolvimento da nação. Ophir Pinto de Loyola foi um defensor da assistência médico-socialeducacional às crianças pobres, desvalidas, órfãs, maltratadas, abusadas, defeituosas e enjeitadas. Um homem de ciência, à frente de seu tempo, imprimindo uma marca própria na sua atuação como médico pediatra. Iniciou uma intensa atuação a favor da higiene infantil e de uma Puericultura (medicina moderna) no atendimento da criança desvalida no Pará. Ophir Loyola é tido hoje como o grande missionário da causa da infância desvalida. A terceira seda do IPAI do Pará (foto 13) teve sua ampliação atendida com recursos garantidos pela elite local. Foto 13: Terceira Sede do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Pará
Fonte: Revista Pará Médico, 1933. Arquivo Público Artur Vianna.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS A racionalização da assistência era indiscutivelmente um imperativo do século XIX. No Pará, assim como por todo o Brasil, o ideário republicando destacava a criança como sujeito de processo de civilização. Salvá-la das mazelas sociais era um dos objetivos centrais. Daí a necessidade da criação de inúmeras instituições para abrigar, educar e proteger a infância. A pesquisa realizada sobre a historiografia da infância e das instituições criadas no século XIX e XX no Pará destacada neste estudo, mostra-se que nessa área de estudos ainda são tímidas as produções desenvolvidas. Temos muito a investigar sobre o atendimento da criança órfã e desvalida. Há, para isso, muitos documentos oficiais e não oficiais que precisam ser analisados para que possamos entender parte dessa infância que foi silenciada pela nossa história. Sendo assim, termino meu artigo divulgando uma carta de recomendação aos pesquisadores que querem se atirar no campo da História da Infância. A carta não será como a de Mario de Andrade que escreve para Mario Bandeira, demonstrando seu encantamento pela cidade de Belém nos anos 20 do século passado. Será uma carta que estimula aos que querem remar no universo da História da Infância e da Sociologia da infância. Caros Colegas, nos estudos sobre a Infância alguns elementos são indispensáveis na construção da pesquisa e escrituração da história da Infância. Portanto, recomendo aos pesquisadores principiantes:
1. Procure colocar em discussão as formas com as quais a historiografia, a sociologia, a psicologia, a literatura, a pedagogia enfim, quase todos os ramos disciplinares das ciências humanas abordam a História da infância enquanto objeto de estudo. 2. Se sua pesquisa é histórica, defina claramente o período histórico e busque se amparar teoricamente nos autores da história da infância. 3. Definido o seu campo de investigação sobre a infância, faça inicialmente um estudo exploratório das fontes para sua pesquisa, pois é ela que vai definir o seu corpus de pesquisa. 4. Elabore um estado da arte sobre o seu objeto de investigação sobre a infância, ou seja, investigue as produções de estudiosos locais, regionais, nacionais e Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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internacionais. 5. Sobre a história da infância, busque ampliar seus documentos para compor o corpus da pesquisa como, por exemplo, material iconográfico, relatórios, atas, cartas, desenhos, cartilhas, manuais etc. 6. Incentive a formação de arquivos em suas escolas, bibliotecas e em outros ambientes de sua atuação, com documentos que possam contribuir para a preservação da memória da infância. 7. Se sua pesquisa é sobre a criança contemporânea e que tem como objetivo as culturas infantis, por exemplo, indico que é preciso dar voz às crianças, conhecer quem são, como vivem, como é seu grupo de interação, quais suas preferências e o que elas pensam a respeito de si mesmas, das relações com seus pares e com os adultos, acerca do mundo em que vivem entre outros. Nesse movimento entrelaçam-se histórias, narrativas, interpretações, sentidos, ações sobre a criança. 8. Nas entrevistas com crianças não cometa o erro de silenciar a criança, ou seja, de achar que elas são, do ponto de vista do desenvolvimento humano, demasiadamente imaturas e incapazes de dar seu testemunho. 9. Um dos principais desafios das pesquisas é o aspecto Ético no contexto de entrevistas com crianças, pois elas têm o direito de serem tratadas de forma ética e moralmente aceitável. 10. Ouse na análise do seu corpus, isso é, seja criativo nas análises dos dados e na escritura do seu texto. No mais, muita dedicação, altivez e serenidade para construir um trabalho de qualidade e que contribua para a História da infância. Sucesso a todos e todas!!!!!!!! Um abraço.
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CONTRIBUTO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA O DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS DO SÉCULO XXI EM UMA AULA INVERTIDA Adelina Silva RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar uma reflexão sobre a forma como as tecnologias digitais contribuem para o desenvolvimento das competências para o aluno do século XXI, relacionando-as com a produção de conhecimento na escola, por meio da implementação de uma prática pedagógica, na modalidade de aula invertida. Partindo do pressuposto que os alunos estão enquadrados no conceito de "nativo digital", reflete-se sobre as competências, nos vários domínios, que se espera que o aluno atinja, detenha e alcance, na sala de aula, com recurso a tecnologias digitais e a ferramentas da Web 2.0. Para cumprir esse objetivo e o desafio educativo de uma escola em mudança, serão apresentadas 3 ferramentas aplicadas em sala de aula: uma plataforma educativa de partilha de conteúdo (Edmodo), um jogo (kahoot) e uma plataforma de avaliação de conhecimentos (Socrative). Palavras-chave: Competências século XXI. Aula invertida. Tecnologias digitais. Web 2.0. ABSTRACT The purpose of this article is to produce a reflection on how digital technologies contribute to the development of skills of the 21 st century student, linking them to knowledge production in school, through the implementation of a pedagogical practice in the classroom known as flipped classroom. Assuming that students are "digital natives", this article focus on the skills in various areas that students are expected to accomplish and hold as well as how to achieve them in a classroom, using digital technologies and Web 2.0 tools. To achieve this goal and the educational challenge of an ever changing school, three tools were applied in the classroom: an educational platform for sharing content (Edmodo), a game (Kahoot) and a knowledge evaluation platform (Socrative). Keywords : 21st century skills. Flipped classroom. Digital technologies. Web 2.0 Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Investigadora do Grupo de Investigação em Media e Mediações Culturais (CEMRI), Universidade Aberta, Portugal, e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Tecnologia Educacional e Educação a Distância (GETED) da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Brasil. E-mail: silvadelina@ gmail.com 65
Contributo das Tecnologias Digitais Para o Desenvolvimento de Competências(...)
Adelina Silva
1INTRODUÇÃO
A forma como experienciamos a aprendizagem está em mudança. Seymour Papert aventou que os computadores se tornariam o instrumento-chave para a educação. A previsão de Papert tornou-se uma realidade. A evolução tecnológica e a sua implementação na sala de aula tem um forte impacto na educação. Os ambientes de aprendizagem tradicionais dizem muito pouco aos alunos, que se dizem da geração millenium. Cada vez mais, aos alunos proporciona-se uma forma individualizada e personalizada de ensino que pode ser acessado em qualquer lugar e em qualquer momento. Essa geração de alunos, que veem a tecnologia como um recurso rotineiro, enquadra-se no que Prensky chamou de "nativos digitais". O impacto da tecnologia na educação deixou de ser novo e excitante; pelo contrário, tornou-se simplesmente uma necessidade. A tecnologia, e em particular a Internet, as plataformas da Web 2.0, os dispositivos móveis, os computadores e as realidades virtuais, tornaram-se um aferidor do funcionamento da sociedade. Graças às iniciativas BYOD (Bring Your Own Device) ou BYOT (Bring Your Own Technology), e à computação em nuvem, assistimos a uma mudança radical de paradigma educativo. Além disso, como nativos digitais, os alunos sentem-se confortáveis com esta tecnologia, pelo que os programas de desenvolvimento necessários para a sua implementação só serão exigidos àqueles que não estão familiarizados com a tecnologia digital e com as ferramentas Web 2.0. Este artigo irá abordar a forma como a era digital está impulsionar as práticas educativas para uma mudança, de acordo com as exigências das competências que se exigem para o século XXI, nas várias vertentes. As ferramentas Web 2.0 apresentadas neste artigo são de fácil aplicabilidade e utilização, quer por parte de professores quer de alunos. É importante que, no ensino de competências exigidas aos alunos de hoje, essa mudança de paradigma se realize ao nível do processo de aprendizagem, envolvendo o próprio aluno, de uma forma mais motivadora e responsável, tornando-o autor/produtor de conteúdo. Para se concretizar esse objetivo há que repensar as metodologias pedagógicas em sala de aula, aliando-as às tecnologias digitais – flipped classroom.
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2 DAS COMPETÊNCIAS DO SÉCULO XXI À AULA INVERTIDA Vivemos num mundo orientado pela mudança, em grande parte, imposta pela inovação tecnológica. Na escola de hoje, não aderir às mais recentes tecnologias educacionais está fora de questão e, os que não o fazem correm o risco de não acompanhar os tempos modernos. Nem todos concordam que as tecnologias per si sejam de obrigatória integração na sala de aula, sendo certo que não é o uso da tecnologia que conduz a uma mudança significativa na aprendizagem do aluno. O sucesso educativo alcança-se quando se proporciona aos alunos um conjunto de competências que os prepara para os desafios da sociedade, nomeadamente, os da era digital. O que se exige aos profissionais da educação vai muito mais além do que um perito tecnológico, um pedagogo ou um especialista em conteúdo. Hoje, os professores têm de apreender quais as competências que se exigem no século XXI e desse modo poder transmiti-las aos seus alunos. As boas práticas educativas compreendem uma interação dinâmica assente em três pilares: conteúdo, pedagogia e tecnologia, vulgarmente chamado de TPACK. John Dewey, no livro Escola e Sociedade, escrevia que o conhecimento não é mais um sólido imóvel, pois o conhecimento tornou-se “liquefeito” ou “líquido”, na perspectiva de Zygmunt Bauman, à medida que se move ativamente no sentido das correntes da própria sociedade. Esta ideia poder-se-ia aplicar ao potencial educativo da Web 2.0, às tecnologias móveis ou às novas ferramentas educativas que foi surgindo a uma velocidade desenfreada. Contudo, esse pensamento foi registado por volta de 1900, há um século atrás, muito antes da internet ter sido concebida, muito antes dos primeiros computadores e dos dispositivos que temos hoje à nossa disposição. A própria noção de movimento e circulação de informação à velocidade da luz, a uma escala planetária, na qual textos, imagens e sons são manipulados e digitalizados, é o culminar de conceito de um educador visionário. Dentro dessa conceção do conhecimento liquefeito ou líquido, não podemos ignorar as ferramentas que nos são proporcionadas pela Web 2.0, quer para o professor quer para o aluno, que impulsionam e estimulam a mudança de práticas pedagógicas dentro e fora da sala de aula. Nos tempos que vivemos, o que temos de constante é a mudança. Assim, a flexibilidade, quer no uso das tecnologias ou no nível da pedagogia, é um imperativo da escola de hoje.
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Contudo, essa flexibilidade pressupõe um conhecimento da aplicabilidade pedagógica dessas ferramentas, pois só desse modo os professores estarão prontos para os desafios educativos que se afiguram. Assistimos, muitas vezes, as escolas de hoje que não ensinam as competências necessárias e exigidas pela sociedade de hoje, porque estão reféns de um sistema educativo do século XX. Por exemplo, se analisarmos a própria disposição das salas, verificamos que existem diferenças mínimas nas salas de aula de hoje em comparação com salas de aula do século anterior. Continua-se a solicitar e a exigir aos alunos que dominem conhecimentos básicos, factuais, na sala de aula, sendo avaliados por apenas esse conhecimento. Certo é que tem havido um crescente movimento para incutir as competências do século XXI no sistema de ensino. Alguns opinam que isso não passa de uma tendência passageira, impulsionada por diversas organizações. A verdade é que teve o mérito de chamar a atenção de todos os envolvidos no processo de ensinoaprendizagem para a necessidade de formação para uma escola que se diz na era digital. As competências do século XXI estão estruturadas em 4 pilares. O primeiro assenta na forma de pensar e abrange a criatividade, a inovação, o pensamento crítico, a resolução de problemas e a capacidade de decisão – é o aprender a aprender –. O segundo consiste na forma de trabalhar, ou seja, nas relações interpessoais que se estabelecem, para as quais a colaboração e o trabalho em equipe contribuem com bastante destaque. O terceiro, prende-se com as ferramentas para trabalhar, isto é, engloba a literacia para a informação, as tecnologias da comunicação e os media. Finalmente, o viver no mundo, aponta para a responsabilidade pessoal e social, a cidadania local e global, a vida e a carreira. Exige-se que os indivíduos compreendam o seu lugar no mundo e a forma em que se relacionam (comunicação, partilha, colaboração), com criatividade e inovação (capacidade de aplicar com êxito os conhecimentos adquiridos no desenvolvimento de novas soluções para os problemas e de enfrentar situações de desafio, “pensar fora da caixa”). Os espaços de aprendizagem (quer na escola, quer na Web 2.0, como extensão da escola enquanto espaço físico) são locais propícios para explorar, utilizar e aplicar as competências educacionais para este século, de uma forma eficaz e inovadora, preparando os alunos não só para a aprendizagem na escola, mas também para a aprendizagem ao longo da vida. Exigem-se dos professores e dos alunos competências técnicas para reforçar as capacidades para, por si próprios, aprenderem sobre o mundo, por meio de uma Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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pesquisa, por exemplo. Exigem-se, também, competências de pensamento crítico e comparativo, incluindo a capacidade de pensar criticamente e integrar conhecimento, mais do que aceitar conhecimento de forma não crítica. Essa capacidade de avaliar e analisar criticamente informação é crucial, mas não é a única. A produção de informação e conteúdo utilizando ferramentas multimodais (áudio, vídeo e texto), a publicação do conteúdo e o trabalho em rede com outras pessoas online é uma imposição nos dias hoje. As competências requeridas aos estudantes de hoje são, muitas vezes, referidos como os C‘s de mudança – criatividade, pensamento crítico, colaboração, comunicação, contexto cultural e conectividade. A comunicação e a colaboração são a capacidade dos indivíduos para efetivamente usar ferramentas digitais para discutir e resolver problemas que surjam, com criatividade e inovação. A distância ou tempo, ou ambos, podem separar os envolvidos, mas nunca deve ser um empecilho para o sucesso do projeto. O contexto cultural aponta para a capacidade de usar ferramentas digitais para encontrar informação, filtrar recursos disponíveis e avaliar a validade dos dados apresentados, além de envolver a capacidade de escolher a ferramenta mais eficaz para concluir o projeto e encontrar um nível de conforto pessoal para trabalhar com ferramentas digitais. O pensamento crítico e a resolução de problemas são conceitos transversais a todos os aspetos da vida, trabalho e escola, e podemos centrá-lo no ato de ensinar as pessoas a tomar decisões bem informadas e avaliar o efeito que ações pessoais terão sobre os outros. A mudança é exigida tanto para professores como para alunos. Trata-se de repensar não só no que é ensinado, mas como é ensinado, tornando necessário preparar os nossos atuais professores e futuro promissor os professores com um completo conjunto de conhecimentos e de recursos que lhes permitam implementar as competências na sala de aula, de maneira relevante e significativa, pois é certo que não se altera a forma como os alunos aprendem até que os professores estejam preparados para ensinar de novas formas. Seria irracional pensar que os alunos adquirissem as competências e os conhecimentos necessários para o sucesso, se essas fossem ensinadas por professores pouco preparados. O professor do século XXI é, sobretudo, um indivíduo que se adapta às mudanças. Deve ser capaz de adaptar o currículo e os requisitos para ensinar de forma imaginativa. Devem ser capazes de adaptar software e hardware em ferramentas utilizáveis por uma variedade de grupos de idade e habilidades. Deve ser capaz de se adaptar a uma experiência de ensino dinâmico e interativo. Deve aplicar Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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diferentes estilos de aprendizagem, adaptando o estilo de ensino a diferentes modos de aprendizagem. O ensino e a aprendizagem do século XXI são caracterizados pelas competências e ferramentas disponíveis para se tornar o produtor e criador, e (re)fazer conteúdo. As ações de formação direcionadas aos docentes devem ter um objetivo – trabalhar com os alunos. A questão é saber o quão preparados estão para trabalhar com os alunos de hoje, com as necessidades em constante mutação. Falamos de nativos da era digital, com experiência tecnológica e suficiente à vontade para se movimentarem num mundo onde as respostas estão disponíveis ao alcance de seus dedos e a tecnologia é uma ferramenta tanto como um brinquedo. Vivem e aprendem no mundo da Web 2.0, o que torna aos professores as expectativas tão díspares como excitantes ou assustadoras. Não basta deter conhecimento científico e competências pedagógicas. Há que, acima de tudo, ter competências técnicas e tecnológicas, sobretudo ao nível das ferramentas Web 2.0, e a sua aplicação pedagógica, na sua prática letiva. Nos últimos 200 anos, o conteúdo educativo e a forma como foi desenvolvido na sala de aula sofreu poucas alterações. Katie Ash (2012) designa esse período de “educação industrializada”, na qual os alunos são obrigados a memorizar factos e simplesmente aplicá-los nos campos de interesse, numa lógica muito idêntica à dos trabalhadores durante a Revolução Industrial. Porém, já nessa altura, os professores de Inglês e de Artes exigiam aos alunos que lessem em casa e viessem para a aula preparados para discutir e sintetizar a sua aprendizagem, no que hoje se assemelha à metodologia no modelo de aprendizagem de aula invertida – flipped classroom. Dois séculos após a Revolução Industrial, o ambiente de trabalho mudou. A internet e os computadores móveis tornaram-se onipresentes e o acesso à informação é prolixo. O mundo que existe fora das escolas está a mudar, mas a tradicional sala de aula não. Os alunos ainda são obrigados a demonstrar compreensão através da memorização, embora a acessibilidade à informação esteja à disposição. Testes padronizados continua a testar o conhecimento memorizado que, muitas vezes, não reflete o nível de compreensão dos conteúdos (ROEHL; REDDY; SHANNON, 2013). Conquistas recentes de tecnologia, alteraram e ampliaram o conceito de aprendizagem para os professores. Por exemplo, o uso de software de vídeo na gravação de uma palestra ou de uma aula, e a sua distribuição em sites de Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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alojamento, torna-a onipresente e acessível, libertando tempo de aula para a interação face-a-face com os alunos. Desde 2007, o conceito de aprendizagem aula invertida – flipped classroom – tem começado a enraizar na escola, em diversos níveis de escolaridade. Tudo começou quando dois professores de Ciências da Woodland Park High School, no Colorado, Estados Unidos da América, Jonathan Bergmann e Sams Aaron, decidiram usar software de captura de imagem e som para gravar aulas introdutórias e solicitavam que os alunos assistissem a esses vídeos como trabalho de casa. Os alunos utilizavam, então, o tempo de aula para atividades mais construtivas. Embora o conceito de aula invertida já tivesse sido utilizado na educação antes de 2007, o objetivo era ensinar principalmente cursos online, via Internet. No entanto, no livro Flip your Classroom, Bergmann e Sams (2012) afirmam que a sua iniciativa foi um pouco diferente. Eles começaram fazendo os vídeos para que pudessem aumentar o tempo de contato despendido face-a-face com cada aluno durante a aula. Isso permitiu uma avaliação mais formativa, uma aula mais orientada e uma aprendizagem diferenciada. Sal Khan começou oficialmente a Kahn Academy em 2008, fornecendo vídeos sobre conceitos matemáticos e de ciência, passo a passo. A ideia de criar esses vídeos surgiu das sessões de tutoria online com a sua sobrinha. Khan utilizava os vídeos para produzir o máximo de conteúdo. De imediato descobriu que, ao gravar os seus vídeos, a sua sobrinha podia parar, retroceder ou visioná-los múltiplas vezes se necessário, ao invés de uma sala de aula tradicional, o que o levou a repensar a educação formal. Com o apoio financeiro de vários mecenas, Khan criou a Khan Academy, que se tornou o sítio em que mais aulas funcionaram no mesmo espaço. Nos últimos anos, o conceito de flipped learning tem tido uma maior divulgação no campo educativo, em que a ênfase é colocada sobre o processo de aprendizagem. Assiste-se a uma mudança pedagógica, os professores começam a olhar para o conceito de aprendizagem invertida como uma possível mudança do formato tradicional para um modelo que se assemelhe mais a um ambiente no qual os alunos são familiarizados fora da sala de aula. A implementação de uma nova metodologia levanta sempre algumas questões, nomeadamente a da sua eficácia. Há quem o avalie pela taxa de sucesso na avaliação e na prestação escolar do aluno nos testes e questione se uma mudança pedagógica baseada em vídeos oferece mais e melhor conteúdo educativo. Se o velho método de aulas expositivas, lápis e Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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papel, quadro e giz são eficazes, questiona-se o porquê da utilização de outros métodos que exigem muitas horas de preparação e equipamento. No entanto, a maioria dos estudos não se centra apenas nas classificações e na prestação do aluno (DAVIES; DEAL; BALL, 2013; ENFIELD, 2013; GAUGHAN, 2014; LAGE; PLATT; TREGLIA, 2000; MURPHREE, 2014; STRAYER, 2012; WILLEY; GARDNER, 2013). Muitos desses autores apresentam e incluem dados qualitativos que exploraram as percepções dos alunos do novo ambiente de aprendizagem. Nem todos os professores que aplicam a metodologia da aula invertida têm sucesso. Alguns que estão tentando inverter a aula têm relatado que por vezes a sua implementação é difícil. Isso pode dever-se a duas razões (BERGMANN; SAMS, 2012): a) o ambiente da aula não está adequadamente alinhado com o conceito de aula invertida. b) o conteúdo é “empurrado” para fora do horário da aula e pressupõe que os alunos o tenham estudado e, quando não o fazem, os professores têm dificuldade em utilizar plenamente a aula programada para uma aprendizagem significativa. Segundo Bergmann e Sams (2012), o ponto fraco da abordagem tradicional é a de que nem todos os alunos vêm para a aula preparados para aprender. A utilização dessa metodologia na sala de aula e as mudanças que se impõem à escola a par da exigência das competências educativas para o século XXI colocam as seguintes questões a todos os professores: a) que mais valias existem num ambiente de aprendizagem invertido versus ambiente tradicional? b) quais os efeitos do ambiente de aula invertida no envolvimento do aluno? c) quais os efeitos de uma aula invertida na aprendizagem dos alunos? 3 UMA EXPERIÊNCIA DE AULA INVERTIDA A aula invertida – flipped classroom – assenta fundamentalmente em tecnologia e, particularmente, nas ferramentas da Web 2.0. Mas, o que é que a Web 2.0 tem a oferecer aos professores? As mudanças que se têm vivenciado na escola Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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têm reforçado uma série de práticas que evidenciam o potencial de aprendizagem da web. A Web 2.0 possibilita e facilita a socialização, a colaboração, a criatividade, a autenticidade e a partilha. Com a socialização os alunos podem desenvolver a linguagem e as competências comunicacionais, ao mesmo tempo que aprendem a construir redes e desenvolver competências relacionais. Fortalecem o espírito de equipe, pois trabalhando em conjunto com os outros constroem e compartilham conhecimento, criam conteúdos e produtos numa ampla gama de ferramentas e de mídia, para uma audiência real, tornando-os produtores/autores. As tarefas e as atividades que desenvolvem e os indivíduos com quem interagem são um fator motivacional para o bom desempenho educativo. Finalmente, mas não menos importante, existe a possibilidade de compartilhar o que criaram e aprender uns com os outros em rede. Irei proceder à apresentação de uma prática de aula invertida, com alunos de 8º ano, do ensino básico, com idades compreendidas entre os 12 e os 14 anos. A turma é constituída por 20 alunos, 11 do sexo feminino e 9 do sexo masculino. Desses, 2 alunos estão diagnosticados como sendo alunos com necessidades educativas especiais, o que requerem uma atenção mais individualizada e personalizada em sala de aula. A turma é composta por 5 alunos que estão a repetir o ano pela segunda vez. No artigo Da aula convencional para a aula invertida – ferramentas digitais para a aula de hoje, Silva (2015) apresenta 16 ferramentas que poderão ser aplicadas na sala de aula. Nessa experiência, utilizei três ferramentas da Web 2.0: kahoot, Edmodo e Socrative. 3.1 Ferramenta Edmodo Logo no início do ano letivo, foi apresentada à turma a plataforma Edmodo (www.Edmodo.com), na qual foi criada a sala da turma e os alunos foram inscritos. As principais características dessa plataforma assentam nos princípios da cooperação e da colaboração e permitem, entre diversas operações, efetuar algumas das seguintes: a) os professores e os alunos podem colaborar num ambiente seguro e fechado;
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b) o sistema de mensagens permite a comunicação segura e aberta, com monitorização e controle por parte do professor; c) a interação dos alunos é fácil de monitorar; d) os professores podem definir trabalhos num prazo pré-determinado que serão submetidos pelos alunos e fichas de avaliação que serão avaliadas automaticamente; e) os professores e outros membros da escola podem criar grupos para alargar as comunidades por área temática; f) os professores e os alunos podem armazenar e partilhar documentos e ficheiros de vários formatos num ambiente baseado em computação na nuvem – cloud computing; g) os professores podem manter uma biblioteca de conteúdos com a possibilidade de partilha com outros membros; h) o sistema de partilha permite aos professores a partilha de conteúdos por unidades curriculares, grupos de alunos ou membros individuais; i) o encarregado de educação ou a família pode ter uma conta de controle parental; j) a interface é simples e intuitiva - sem necessidade de conhecimentos prévios; k) serviço gratuito e livre de publicidade. A utilização do Edmodo começa com a criação de um perfil. A conta de professor no Edmodo cria-se na página principal na hiperligação “I’m a Teacher”. Antes de um aluno se registar no Edmodo, necessita de um código de 6 dígitos que é fornecido pelo professor. Esse tipo de registo não carece de uma conta de e-mail. No entanto, é recomendável, que o aluno efetue a sua inscrição, sugerindo a sua conta de correio eletrónico, para assim receber as notificações no futuro. Existe, também, a possibilidade de controlo parental. As contas de controlo parental são uma excelente forma de manter os pais, ou encarregados de educação, informados sobre as atividades da sala de aula, das tarefas, das notas e dos eventos escolares. Neste tipo de conta, o processo de registo é semelhante ao do registo do aluno, com uma segurança adicional - cada encarregado de educação terá de se registar com um código correspondente ao seu educando. Dessa forma, garante-se uma interação segura entre pais e professor.
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Figura 1 – Plataforma Edmodo
A plataforma tem uma interface muito parecida com uma rede social. Na página principal vão surgindo as notificações, do que vai sendo partilhado pelos seus membros. Figura 2 – Postagens do grupo
Uma vantagem é a constituição de pequenos grupos de trabalho, dentro da mesma turma. Para promover a participação e o engajamento de todos há a hipótese de atribuir medalhas aos alunos, quer pelo índice de participação, de desempenho ou de ajuda aos colegas, entre outros. Algumas estão predefinidas, outras poderão ser criadas pelo professor.
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Figura 3 – Medalhas
É possível a programação de tarefas e a consequente entrega do trabalho pela plataforma. Figura 4 – Calendarização de entrega de trabalhos
Uma vez entregue o trabalho, ele poderá ser avaliado e comentado pelo professor, que lhe atribui uma classificação numa escala definida por ele. Os encarregados de educação têm acesso ao trabalho, à classificação quantitativa e qualitativa, bem como do prazo das datas de entrega do trabalho. Figura 5 – Trabalhos entregues ou em falta
Os trabalhos podem ser consultados pelo colegas da turma. Dessa forma, todos aprendem com todos, e o processo de avaliação é mais transparente.
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Figura 6 – Avaliação dos trabalhos
A plataforma permite a realização de testes de múltipla escolha, de verdadeiro e falso e de preenchimento de espaços. A partir do momento que o teste é enviado para um grupo ou para alguns membros, os alunos podem selecionar a opção “Take Quiz”, localizada ao lado da data limite de realização, para iniciar a resolução do teste. Se as questões forem do tipo múltipla escolha, verdadeiro ou falso ou preenchimento de espaços, as respostas estarão já marcadas com correto ou incorreto, com base nas indicações dadas na especificação inicial do teste. Para mostrar os resultados aos alunos basta ativar a opção "Show results to quiz takers". Também é possível a avaliação de um teste sem correção automática. No final da correção basta ativar a opção "Show results to quiz takers", que permitirá ao aluno verificar a pontuação do seu teste. Se for conveniente, é possivel adicionar a classificação do aluno ao Gradebook – o sistema de avaliação da turma do Edmodo.
3.2 Ferramenta Kahoot A ferramenta Kahoot (www.Kahoot.it) é uma plataforma que permite em tempo real a aprendizagem baseada num jogo de multijogadores. Trata-se de uma abordagem inclusiva para a aprendizagem, usando qualquer dispositivo com acesso à Internet. Permite a criação de um jogo, com uma bateria de perguntas sobre um tópico específico, com vídeos incorporados, aparência, gráficos e imagens, com base em conteúdo educacional e o seu consequente compartilhamento. As perguntas podem ser colocadas sob a forma de questionário, discussão ou sondagem, criados quer pelo professor quer pelos próprios alunos.
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Figura 7 – Início do jogo em Kahoot
Essa ferramenta é um excelente exemplo de aprendizagem, baseada em jogos e aplicando o modelo de "sala de aula invertida", para gerar uma experiência que seja envolvente e emocionante para os alunos. Figura 8 – Utilização de celular na sala de aula
Cada aluno pode aceder e participar no jogo por meio do seu próprio dispositivo móvel, e promove uma atmosfera competitiva amigável. Por exemplo, os alunos sabem individualmente, em cada dispositivo, se cada pergunta respondida por si está certa ou errada. Contudo, na parte da frente da turma, normalmente exibido em um projetor ou quadro interativo, eles podem ver os resultados globais da classe em
gráfico, sem nomear quem errou. A aprendizagem torna-se divertida,
introduzindo a possibilidade de "ganhar", o que envolve significativamente os estudantes e encoraja o comportamento positivo e o pensamento crítico.
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Figura 9 – Informação individual da prestação de cada jogador
Outro aspeto extremamente exclusivo para a pedagogia do Kahoot é que os alunos são incentivados a criar, mais tarde, os seus próprios testes, a partir dos quais o professor pode escolher o melhor para aplicar na aula, como teste formativo, por exemplo. Essa possibilidade é única e inovadora porque fomenta um maior envolvimento a nível conceitual com o tópico em questão. Devido à natureza dos questionários de escolha múltipla, ao criar o seu próprio questionário, os alunos são estimulados a considerar possíveis respostas erradas, o que exige um maior envolvimento intelectual e compreensão da matéria em estudo, fortalecendo o seu espírito crítico. As análises fornecidas pelo Kahoot, num ficheiro em formato Excel, para pais, alunos e professores, permitem uma avaliação mais precisa do desempenho e um melhor acompanhamento de progresso de aprendizagem do aluno, bem como permitem, no curto prazo, um "instantâneo" do nível de conhecimentos do educando sobre uma determinada matéria. Figura 10 – Escolha múltipla
Na primeira aula, foi aplicado um teste diagnóstico sobre a matéria a abordar na disciplina, usando a ferramenta Kahoot. Com base nos resultados obtidos, foi produzido um relatório, que reportou as lacunas individuais de cada aluno. Esse Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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relatório serviu de base para a planificação anual da disciplina, de acordo com as dificuldades detetadas. Figura 11 – Identificação de cada jogador
Numa outra aula, foi apresentada a ferramenta e solicitou-se aos alunos que em pares apresentassem um questionário sobre determinada matéria. Cada um dos grupos apresentou, numa outra aula ainda, o trabalho produzido aos colegas, que procederam à realização individualizada de cada um dos questionários. Com o Kahoot, a aula inverteu-se de tal modo que permitiu aos alunos que se tornassem criadores/autores de conteúdo educacional. 4 SOCRATIVE O Socrative (www.socrative.com) é uma ferramenta de avaliação baseada na web, que contém um sistema de sala de aula. Os alunos recebem um código para entrar na sala do professor para começar uma avaliação. O professor tem opção de escolha do tipo de prova que vai aplicar bem como o feedback a dar (ao ritmo do aluno ou ao ritmo do professor).
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Figura 12 – Escolha da tipo de prova
A entrada na plataforma acontece após a identificação do professor e do aluno, depois de se conhecer o código da sala.
Figura 13 – Identificação no Socrative
Após a entrada na sala da turma atribuída pelo código gerado, o aluno poderá escolher a modalidade de avaliação individual ou de grupo, de acordo com o estabelecido pelo professor. No caso de ser de grupo, o aluno procede de seguida à escolha do grupo. Figura 14 – Escolha da equipa
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Dando início ao teste, a avaliação inclui feedback imediato, questões de resposta aberta ou de escolha múltipla, de acordo com o que o professor tiver construído. Figura 15 – Feedback imediato
A atividade de grupo é apresentada sob a forma de uma corrida espacial, transformada num gráfico de resultados. O grupo que tiver mais respostas corretas é o que mais rápido percorre a pista. Figura 16 – Corrida espacial
O professor usa as opções de resposta curta para obter feedback instantâneo sobre um objetivo de aprendizado. Por meio do uso desta ferramenta, o professor pode avaliar rapidamente o aluno ou o progresso classe inteira para determinar se eles estão prontos para passar para o próximo tópico.
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Figura 17 – Avaliação final do professor
Cada sala Socrative, gratuita para professores e para alunos, tem capacidade para 50 alunos, em simultâneo, responderem a um questionário. Depois de um questionário estar concluído, pode ser gerado um relatório, que pode ser descarregado pelo professor.
Figura 18 – Produção de relatório de avaliação
5 CONCLUSÃO A implementação da tecnologia na escola não é um conceito inovador. A aplicação prática das tecnologias mencionadas neste artigo poderá, contudo, considerar-se inovadora. Essas tecnologias, articuladas, estão a provocar uma mudança no panorama educativo. Essa mudança inverte os papéis, colocando o aluno como aprendiz autonomo, em vez de um professor como único detentor do conhecimento. Ao professor é reservado o papel de orientador do processo educativo. Por consequência, impulsionados pelos avanços tecnológicos na educação, os alunos são incentivados a assumir um papel mais ativo na sua própria educação. Utilizar a tecnologia tornou-se um imperativo na escola a exemplo do que acontece no mundo fora dela. A padronização da tecnologia na vida cotidiana tem Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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sido em grande parte uma consequência da Internet. A Internet mudou, fundamentalmente, como a sociedade interage, comunica e apresenta a informação. Ela é a chave do desenvolvimento, da promoção e da implementação das tecnologias apresentadas neste artigo, na sala de aula, desenvolvendo uma das competências do século XXI - a literacia digital. Os cenários educacionais como a “aula invertida” também seriam impossíveis sem a Internet. Mas, sobretudo, permitem que a educação se projete para além da sala de aula, tornando-se uma extensão dessa. À medida que o mundo físico se funde cada vez mais com o mundo virtual, é imperativo que os alunos tenham acesso seguro e constante tanto à Internet como a um dispositivo de aprendizagem móvel. Só assim a educação poderá dizer-se individualizada, personalizada, interativa, flexível e acessível para todos os alunos. As aulas da escola do século XXI assentam em práticas de gamificação, em plataformas Web 2.0, em aulas invertidas e na consequente análise de resultados de aprendizagem, munindo, assim, os professores de ferramentas facilitadoras de orientação, acompanhamento e apoio aos alunos de forma personalizada. Os alunos também serão capazes de utilizar esses dados para refletir sobre seus estilos de aprendizagem e sobre o seu progresso. O mundo virtual online pode oferecer aos alunos a capacidade de adquirir e aplicar conhecimentos, vivenciar experiências e receber feedback num ambiente que de outras formas, poderiam não ter acesso. Este artigo centrou-se na tecnologia digital e no seu impacto no futuro da educação e nas competências exigidas para o século XXI. Este impacto, no entanto, não está reservado para o futuro; a tecnologia tem vindo a inovar as ideias e os métodos de ensino. Ser aluno nos dias de hoje, é viver um momento de mudança tecnológica emocionante; porém, a vantagem da tecnologia digital na sala de aula apresentada neste artigo é que ela permite a todos nós ser estudantes, em qualquer lugar, em qualquer idade e em qualquer momento. As práticas pedagógicas com recurso a tecnologia da Web 2.0 expostas reinventam a sala de aula, a educação, e se implementadas corretamente, ajudar-nos-ão a tornar a educação globalmente inovadora, envolvente, personalizável e acessível.
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EM BUSCA DOS SENTIDOS DA EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE A TENDÊNCIA TECNICISTA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL NA HISTÓRIA RECENTE Adálcio Carvalho de Araújo RESUMO O presente trabalho reflete sobre os sentidos que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) tem tomado – ou mantido – no contexto socioeconômico da última década do século XX a meados da segunda década do século XXI. Por meio da revisão bibliográfica de autores que discutem a temática, apresenta discussões dos marcos legais e de alguns programas governamentais para a modalidade de ensino, procurando entender como o sistema econômico vigente (capitalismo neoliberal) influenciou e influencia o modelo educacional proposto e oferecido à EJA. Retoma alguns dos posicionamentos freireanos sobre a Educação de Adultos, como sua crítica à educação meramente tecnicista, destacando a prática educativa promotora de mudanças, capaz de dialogar e suscitar novos modelos de agir e interagir na sociedade. Palavras-chave: Sentidos da educação. Redemocratização. Capitalismo neoliberal. Educação de Jovens e Adultos. Tendência tecnicista da EJA. ABSTRACT This paper reflects on the ways that the Education of Young People and Adults (EYPA) has been taking – or keeping – in a socio-economical context from the last decade of the 20th century to the early 21st century. By means of a literature review, this paper discusses legal frameworks and governments programs for this type of education seeking to understand how the current economic system (neoliberal capitalism) has had and still has an affect on the EYPA’s proposed model of education. It also retraces some of Freire’s inferences about the Education of Adults, such as the criticism to the merely technical education; highlighting the education as a promoter of changes which interacts and constructs new manners of thinking and relating to society. Keywords: Senses of Education. Redemocratization.Neoliberal capitalism.Education of Young People and Adults. EYPA’s technical trends. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Docente da Faculdade de Politicas Públicas – UEMG, gabinete@uemg. br 87
Em Busca dos Sentidos da Educação
Adálcio Carvalho de Araújo
1 INTRODUÇÃO Após duas décadas de governos militares que subverteram a política democrática do estado brasileiro e cujas repercussões atingiram, inclusive, o campo educacional, o país estava novamente se reestruturando como uma república democrática de posse de uma nova carta constituinte, promulgada em 1988, dando poder ao povo. A Educação de Jovens e Adultos (EJA), nesse contexto e de modo particular, pela a Lei nº 9.394/96 (BRASIL, 1996), de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, começa a ocupar um lugar pelo qual sempre lutou: ser reconhecida nacionalmente nas políticas de educação 1 como uma modalidade de ensino. Reconhecida como uma modalidade de ensino em um contexto de redemocratização do país, a EJA traz consigo a perspectiva de um espírito novo, de novos olhares, para a educação de adultos, constituindo, esse período, um momento oportuno para a retomada de algumas reflexões sobre os sentidos que a educação de adultos deveria ter e suas contribuições ao seu público, como as reflexões de Paulo Freire sobre a modalidade. Entretanto, não é somente um período de redemocratização e redefinição dos rumos da educação no país, economicamente, as tendências capitalistas neoliberais assumem no mundo, e, na década de 1990, no Brasil, o lugar de definidoras dos rumos da economia. Consequentemente, essas novas configurações econômicas, associadas à realidade social do país, que, naquele momento, era mundialmente conhecido pelos elevados índices de pobreza, vão também interferir no modelo educacional do país. Este presente trabalho não pretende trazer invencionismo à temática Educação de Jovens e Adultos. O que se pretende aqui, por meio da revisão bibliográfica de autores que discutem a temática, é refletir sobre os sentidos que essa modalidade de ensino tem tomado – ou mantido – no contexto socioeconômico da última década do século XX a meados da segunda década do século XXI. A partir do que essa modalidade deveria garantir aos jovens e adultos, como propõe o parágrafo primeiro do artigo 37 da Lei nº 9.394/96 e das características a serem consideradas para a efetiva garantia das oportunidades previstas, as reflexões propostas chamam a atenção para a hiperbolização da característica “condições de trabalho” nas propostas governamentais de promoção dessa modalidade, induzindo a uma formação mais técnica e menos humana. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Ainda que outras legislações anteriores tenham tratado a Educação de Adultos, é a LDB de 1996 que a coloca no campo das políticas públicas como uma “modalidade de ensino”.
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Em Busca dos Sentidos da Educação
Adálcio Carvalho de Araújo
As discussões/reflexões deste trabalho estão divididas em quatro eixos, a saber: a) educação de jovens e adultos no contexto da redemocratização – que propõe uma reflexão um pouco mais histórica sobre a EJA e algumas das conquistas na última década do século XX e início do século XXI, chamando a atenção para as propostas dos programas governamentais e suas tendências formativas; b) tendência tecnicista da economia capitalista neoliberal na EJA – reflete sobre a centralidade da formação para o trabalho na EJA, considerando a influência do sistema capitalista neoliberal sobre o campo da educação, especialmente na educação de adultos, que tem como maioria de seu público parte da população economicamente ativa; c) fendas e sendas para o desvencilhamento da tendência tecnicista da economia capitalista neoliberal na EJA – essa reflexão apresenta-se como um contraponto à reflexão anterior, apontando a não omissão dos normativos e programas de EJA as demais características a serem observadas na formação de Jovens e Adultos; e, d) o sentido da formação de jovens e adultos no pensamento freireano na obra pedagogia da indignação – que em si já expressa as reflexões adjacentes.
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EDUCAÇÃO
DE
JOVENS
E
ADULTOS
NO
CONTEXTO
DA
REDEMOCRATIZAÇÃO A última década do século XX iniciou-se num clima esperançoso e ao mesmo tempo experimental. Após duas décadas de governos militares que subverteram a política democrática do estado brasileiro e cujas repercussões atingiram, inclusive, o campo educacional, o país estava novamente se reestruturando como uma república democrática, de posse de uma nova carta constituinte, promulgada em 1988, dando poder ao povo. Não obstante uma constituição nova para um novo momento, como era de se esperar, a educação também começava a ser repensada, promulgando-se, em 20 de dezembro de 1996, a Lei nº 9.394, estabelecendo as novas Diretrizes e Bases da Educação Nacional. As abordagens dessa nova legislação educacional foram, sem dúvida, inovadoras, pois emergiram de uma necessidade de renovação e Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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reestruturação da educação no país, clamada pelas vozes que há muito tinham seus sons silenciados. Entre as inúmeras abordagens da Lei nº 9.394/96, a Educação de Jovens e Adultos passa a ser reconhecida – demonstrativo de um grande avanço –, mas sua concretização não se consolidaria nessa etapa histórica do século XX. Ainda que um sistema democrático estivesse vigente, era necessário muito mais do que uma ‘democracia de privilégios’2 para poder garantir a funcionalidade do estado e garantir ao povo, especialmente aos desprovidos da educação na “idade apropriada”3 (DI PIERRO, 2005, p. 1119), o que lhe era de direito. Assim, afirmava Freire (2000): “não creio na democracia puramente formal que “lava as mãos” em face das relações entre quem pode e quem não pode porque já foi dito que “todos são iguais perante a lei” (FREIRE, 2000, p. 24). A expressão “lavar as mãos”, posição que o Estado assume em face à realidade social e educacional, deixando o povo à deriva dos acontecimentos de um sistema segregacional, reflete o distanciamento entre os conceitos de igualdade e de justiça, que deveriam permear uma democracia. Mais do que dizer ou escrever isto, é preciso fazer isto. Em outras palavras, a frase se esvazia se a prática prova o contrário do que nela está declarado. Lavar as mãos diante das relações entre os poderosos e os desprovidos de poder só porque já foi dito que “todos são iguais perante a lei” é reforçar o poder dos poderosos. É imprescindível que o Estado assegure verdadeiramente que todos são iguais perante a lei e que o faça de tal maneira que o exercício deste direito vire uma obviedade (FREIRE, 2000, p. 24).
A ação do Estado, apontada por Freire pela expressão “é preciso fazer isto”, se traduz em não somente garantir a igualdade, mas também promover a justiça para que a igualdade de fato exista. A igualdade de direitos permaneceria uma teoria no papel e sua prática uma quimera dos injustiçados e depreciados pelo sistema, já que não teriam como alcançá-la, num princípio de igualdade em uma pátria das desigualdades sociais num contexto capitalista neoliberal, sem a devida promoção da justiça por instrumentos e ação do Estado que a torne uma “obviedade”. No espectro da Educação de Jovens e Adultos, a Lei nº 9.394/96, sozinha, não garantiu os direitos de igualdade. Nos dois pleitos do presidente Fernando Henrique Cardoso, “o governo federal conferiu lugar de marginalidade à educação básica de Jovens e Adultos na hierarquia de prioridades da reforma e da política educacional” (DI PIERRO, 2005, p.1128).
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Termo utilizado como forma de crítica a ‘política democrática’ brasileira que concede privilégios a pessoas ou grupos em detrimento a outros. Sobre esse termo, discute o texto “Privilégios que não podem existir numa democracia”, de Taveira (2010).
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“Corrente no discurso especializado, a expressão consta nos documentos legais vigentes, a começar pela Constituição Federal de 1988, cujo artigo 208 inscreve dentre os deveres do Estado com a educação a garantia de “ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria” (DI PIERRO, 2005, p.1132).
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A década de 1990 teve suas contribuições à Educação de Jovens e Adultos, mas foi na primeira década do século XXI, afirmam Ciavatta e Rummert (2010), que ocorre “a passagem da descrença e descaso com a educação de jovens e adultos para uma inédita oferta de programas governamentais que se propõem a associar o resgate da escolarização básica com a educação profissional” (CIAVATTA; RUMMERT, 2010, p. 463). Marcam essa década de “passagem” da Educação de Jovens e Adultos, o Parecer CNE nº. 11/2000, que estabelece Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, e os programas governamentais, referenciados por (CIAVATTA; RUMMERT, 2010, p. 463), a saber: 1) Projeto Escola de Fábrica, criado pela Lei nº 11.180, de setembro de 2005 que tinha como finalidade “ampliar as possibilidades de formação profissional básica, favorecendo o ingresso de estudantes de baixa renda no mercado de trabalho” (BRASIL, 2005c) Programa Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM), instituído pela Lei no 11.129, de 30 de junho de 2005, que visava a “elevação do grau de escolaridade [...] visando à conclusão do ensino fundamental, qualificação profissional voltada a estimular a inserção produtiva cidadã e o desenvolvimento de ações comunitárias” (BRASIL, 2005b) Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), instituído pelo Decreto nº 5.478, de 24 de junho de 2005. (BRASIL, 2005a). Surgem, desses programas de governo, grandes preocupações. Que tipo de educação estava se pensando para os Jovens e Adultos do nosso país? “Associar o resgate da escolarização da educação básica com a educação profissional” não seria prioritariamente e exclusivamente preparar para o trabalho? Não seria entrar numa discussão que fomentava cada vez mais a economia capitalista e, ao mesmo tempo, o modelo proposto não estaria somente a serviço dessa economia? Se por um lado, viu-se nos projetos governamentais uma alavancada que o Estado, pelo governo federal, deu à política de Educação de Jovens e Adultos; por outro, não se pode deixar de resgatar a discussão das proposições para a Educação de Jovens e Adultos preditos no parágrafo primeiro do artigo 37, da Lei nº 9.394, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que reza: § 1º. Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames (BRASIL, 1996). Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Ainda que a educação profissional devesse estar atrelada, também, à Educação de Jovens e Adultos, como oportunidade e garantia às condições de trabalho, há outras características que deveriam também ser levadas em conta e permear essa modalidade: a) “características do alunado”; b) “seus interesses”; e, c) “condições de vida”. Tais atributos, ainda que mencionados pelas políticas de Educação de Jovens e Adultos, compõem um segundo plano e a formação para o trabalho aparece como substrato dos vários programas nacionais de promoção e incentivo dessa modalidade de educação. 3
TENDÊNCIA
TECNICISTA
DA
ECONOMIA
CAPITALISTA
NEOLIBERAL NA EJA Não é de se estranhar os rumos tecnicistas que os programas de Educação de Jovens e Adultos tomam em nosso país. A realidade global na qual nos encontramos imersos o sistema econômico vigente e a política neoliberalista dessa sociedade global, cuja tônica está em ditar prerrogativas de existência aos estados nacionais, tem também subjugado os sistemas e modalidades de ensino a atenderem as demandas que o sistema capitalista produz, colocando a educação como sua serva. Giddens (1991) conceitua o capitalismo como “sistema de produção de mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem posse de propriedade, esta relação formando o eixo principal de um sistema de classes” (GIDDENS, 1991, p. 53). O capitalismo, por sua vez, adotado como sistema econômico, produz as “sociedades capitalistas [...] subtipo específico das sociedades modernas [...] com diversas características institucionais específicas” (GIDDENS, 1991, p. 54). Entre essas características institucionais específicas da sociedade capitalista, destaca-se a “autonomia condicionada” do estado pela sua dependência de acúmulo de capital sobre o qual não exerce completo domínio (GIDDENS, 1991, p. 54). Na condição de estado-nação4, sine qua non para ser considerada sociedade capitalista, o Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
“O estado-nação é a unidade políticoterritorial própria do capitalismo. Embora tenha naturalmente pontos de contacto com o império pré-capitalista, dele diferencia-se essencialmente porque a nação busca, no seu território, se constituir em uma sociedade nacional integrada e voltada para o desenvolvimento econômico, enquanto oligarquias dominantes nos impérios não sabem o que seja o desenvolvimento econômico, e não buscam integrar econômica e culturalmente suas colônias das quais apenas exigem o pagamento de impostos (GELLNER, 1983). Uma das razões pelas quais podemos ver a globalização como o estágio atual e, portanto, mais avançado do capitalismo, é o fato de que neste início de século XXI o globo terrestre está, pela primeira vez, totalmente coberto por estados-nação” (BRESSER-PEREIRA, 2008, p. 4-5).
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estado cede às interferências exógenas, dando lugar e legitimação a normativos advindos de um sistema dominante cujo controle não está nos limites nacionais. Para Wallerstein (1974), "O capitalismo foi desde o começo um assunto da economia mundial e não dos estados-nação... O capital nunca cedeu às suas aspirações de ser determinado por limites nacionais" (WALLERSTEIN, 1974 apud GIDDENS, 1991, p.64). Assim, o capital exerce uma supremacia, um poderio, sobre os propósitos particulares de cada estado-nação. No campo educacional, os modelos de formação recentes veem-se submetidos a essa dinâmica capitalista ainda que tentem um desvencilhamento propondo novos modelos, recaem sobre esses novos modelos as influências mercadológicas. Para Soares (2012), os dispositivos legais relativos à educação seguem um formalismo5 neoliberal vigente nos países de terceiro mundo, sendo, a lei, elemento essencial para que o capitalismo se consolide na sociedade. Entra, nesse arcabouço de leis, o Plano Nacional de Educação. Segundo a autora, em relação às particularidades da Modalidade da EJA esta nova LDB reforça o compromisso formal do Estado com o direito a educação para todos, mas recorre às parcerias para efetivação das ações na EJA, reafirma esta educação voltada para a reposição da escolaridade, concebe o aluno da EJA como trabalhador, mas mantém caracterização de ensino supletivo, conservando os aspectos ideológicos de que para trabalhadores é suficiente uma educação compensatória, resumida e consequentemente empobrecida, contribuindo de forma significativa para seu esvaziamento no interior do sistema público (Art. 4, 5, 37 e 38) (SOARES, 2012, p.5). “O formalismo [...] é a diferença entre a conduta concreta e a norma que estabelece como essa conduta deveria ser, sem que tal diferença implique punição para o infrator da norma, ou seja, a diferença entre o que a lei diz e aquilo que acontece de fato, sem que isso gere punição para o infrator da lei. [...] A existência do formalismo [...] faz com que as instituições e as pessoas possam dar, negar, vetar e consentir, ou seja, o fato de ocorrer o desrespeito a algumas leis, dentro de uma dada sociedade, faz com que haja uma generalização da desconfiança em torno da validade de todas as demais leis daquela sociedade” (MOTA; ALCADIPANI, 1999, p.9).
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Guimarães (2012) elucida essa tendência tecnicista na formação de Jovens e Adultos, aludida por Soares (2012), dentro do modelo de política de educação e formação para a competitividade, um modelo formativo que atribui à educação um papel meramente instrumental a serviço da formação de mão de obra em atendimento às demandas capitalistas. As políticas de educação e formação para a competitividade, fomentadas pelo Estado e por organizações supra e internacionais, têm como prioridades o aumento da empregabilidade, da produtividade, da competitividade, da eficácia, da eficiência e da modernização econômica, a partir de lógicas de programa. Nelas, o desenvolvimento do setor produtivo e das organizações de trabalho é fulcral (GRIFFIN, 1999a e 1999b). Consequentemente, valorizam-se os recursos humanos, sendo a educação perspetivada como um instrumento de promoção do capital humano, da qualidade do trabalho, de cariz técnico e racional (GUIMARÃES, 2012, 72).
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Ainda nessa linha de uma tendência tecnicista, outro modelo de política de Educação de Jovens e Adultos, que Guimarães (2012) apresenta, são as políticas de modernização e de educação para a conformidade social que centram-se em particular nos níveis regionais e/ou nacionais e assentam no estabelecimento de patamares mínimos de educação, de caráter universal e obrigatório, e no desenvolvimento de conhecimentos e capacidades de natureza funcional e útil ao desenvolvimento econômico. Por isso, visam a manutenção do status quo, tal como procuram “disciplinar os adultos e educar para obedecer” (SANZ FERNÁNDEZ, 2006). São políticas que apostam na educação como um direito social, numa lógica de serviço público, tendo igualmente como finalidade a formação mínima da mão de obra, a partir de prioridades de modernização social e econômica (LIMA, 2008 apud GUIMARÃES, 2012, 71).
Essas políticas de modernização e de educação para a conformidade social, ainda que de âmbito regional, não conseguem se desvincular do pensamento economicista, ainda que pretendam ver a educação sob uma ótica social, valorizando o conhecimento escolar como conhecimento sobrepoente aos demais conhecimentos. Sobre o caráter reparador que tem a Educação de Jovens e Adultos, como apresenta Soares (2011) com vistas aos documentos legais da EJA, e Oliveira (2007) também os alude na sua abordagem sobre currículo, ao tratar sobre o entendimento dominante que “educação de jovens e adultos é aquela que se volta para atividades educativas compensatórias, ou seja, para a escolarização de pessoas que não tiveram a oportunidade de acesso a escolarização regular prevista na legislação” (OLIVEIRA, 2007, p. 86). Ainda que as visões sobre as políticas de Educação de Jovens e Adultos no contexto capitalista neoliberalista sejam diversas, os autores aqui apresentados conformam que há uma presença marcante do caráter tecnicista em todas elas, até mesmo pela dificuldade de se pensar uma política que diferia da realidade presente de um sistema dominante. 4 FENDAS E SENDAS PARA O DESVENCILHAMENTO DA TENDÊNCIA TECNICISTA DA ECONOMIA CAPITALISTA NEOLIBERAL NA EJA A discussão deste tópico neste artigo não entra em contradição com o tópico anterior, que afirma que a tendência tecnicista que rumou a programas governamentais e políticas de Educação de Jovens e Adultos, é um olhar para esses mesmos programas e políticas com um olhar de desvencilhamento. Procura destacar algumas discussões que valorizam a formação menos tecnicista e mais humana Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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dentro das mesmas propostas que na concretização enviesam pelo tecnicismo para atender demandas. O fato de em um mesmo programa apontar uma formação integral para os Jovens e Adultos na discursiva e dar ênfase à formação tecnicista já nos coloca em uma posição de enxergar que tais programas são “fragmentados com problemas de concepção pedagógica e metodológica” (FRIEDRICH et al., 2010. p. 404). Retomando a discussão das proposições para a Educação de Jovens e Adultos, preditas no parágrafo primeiro do artigo 37 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em seu parágrafo primeiro, no que se refere à asseguridade gratuita ao público jovem e adulto de “oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho” (BRASIL, 1996), tendo discutido nos tópicos anteriores a acentuação que se tem dado ao longo da última década do século XX e na primeira década do século XXI, adentrando também nesta segunda década, nota-se que, juntamente com essa tendência tecnicista de preparo para o trabalho já abordados, as outras características que deveriam também permear essa modalidade: a) “características do alunado”; b) “seus interesses”; e, c) “condições de vida”, não passam despercebidas. Os documentos legais, embora deleguem um espaço maior reservado a garantir condições e preparo para o trabalho, abordam esses atributos, ainda que parece um pouco distantes do que a prática educacional vem nos dizer. O documento do Ministério da Educação com orientações para a VI Conferência Internacional de Educação de Adultos – CONFITEA –, por exemplo, no item “quanto às políticas públicas” para a EJA recomenda: 8. Fomentar a participação da sociedade na definição de políticas públicas para a EJA em todos os níveis de governo, de forma a contemplar reais necessidades dos alunos no que se refere a currículo, metodologia, avaliação, idade de ingresso, duração de cursos, criando possibilidades de práticas alternativas de ensino e aprendizagem (BRASIL, 2009, p. 46).
Ainda que o mesmo documento no mesmo item “quanto às políticas públicas”, nos seus 23 fascículos, cinco deles relacionam a EJA à formação técnica e ou pelo trabalho. A aparição dos demais atributos nessas recomendações, mesmo que não com a mesma intensidade e frequência, indica a possibilidade de se pensar Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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diferente em uma educação que se desvencilhe da formação meramente mercadológica. Outro exemplo é o Documento Base do PROEJA (2007), que traz uma discursiva sobre a formação humana para a Educação de Jovens e Adultos que se traduz numa educação que visa o trabalho enquanto atividade humana, mas não se envincilha ao trabalho, colocando a educação como mero instrumento. [...] o que realmente se pretende é a formação humana, no seu sentido lato, com acesso ao universo de saberes e conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos historicamente pela humanidade, integrada a uma formação profissional que permita compreender o mundo, compreender-se no mundo e nele atuar na busca de melhoria das próprias condições de vida e da construção de uma sociedade socialmente justa. A perspectiva precisa ser, portanto, de formação na vida e para a vida e não apenas de qualificação do mercado ou para ele. Por esse entendimento, não se pode subsumir a cidadania à inclusão no “mercado de trabalho”, mas assumir a formação do cidadão que produz, pelo trabalho, a si e o mundo. Esse largo mundo do trabalho [...] força o mundo contemporâneo a rever a própria noção de trabalho (e de desenvolvimento) como inexoravelmente ligada à revolução industrial. [...] Nesse sentido, a discussão acerca da identidade “trabalhador” precisa ser matizada por outros aspectos da vida, aspectos constituintes e constitutivos dos sujeitos jovens e adultos como a religiosidade, a família e a participação social e política nos mais diversos grupos culturais [...] A formação humana aqui tratada impõe produzir um arcabouço reflexivo que não atrele mecanicamente educação-economia, mas que expresse uma política pública de educação profissional integrada com a educação básica para jovens e adultos como direito, em um projeto nacional de desenvolvimento soberano, frente aos desafios de inclusão social e da globalização econômica (BRASIL, 2007, p. 15-16).
As afirmações da necessidade de uma formação humana mais densa e completa proposta no PROEJA, ‘uma formação na vida e para a vida’, confirmam que os gritos de luta dos defensores de uma Educação de Jovens e Adultos, que baseie, de fato, na realidade desses sujeitos e que, de fato atendam seus anseios, estão sendo ouvidos e transliterados na lei. O que falta, porém, é que se disseminem modelos de promoção desse tipo de formação já suscitados isoladamente. As fendas deixadas nos documentos que regulamentam e orientam a formação de jovens e adultos para uma formação mais completa apresenta algumas sendas que já vêm sendo debatidas nos eventos da EJA, realizados no campo de discussão acadêmica, sendo duas delas significativas no que diz respeito a essa mudança do viés de formação tecnicista. A primeira delas é a flexibilidade curricular. A abertura para que se pense um currículo da EJA mais contextualizado e próximo aos seus sujeitos. O caminho para esse desvencilhamento, via construção de um currículo que atenda a uma formação Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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mais ampla, que dialogue a realidade desses sujeitos da EJA, tem sido muito pouco explorado em suas possibilidades, como afirma Oliveira (2007): o que percebemos é que os critérios e modos de seleção e organização curricular não buscam dialogar nem com os saberes nem com os desejos e expectativas dos jovens a que se destinam, permanecendo enclausurados nas certezas de uma “ciência” que, em nome de suas supostas objetividade e neutralidade, abdica de se comunicar com o mundo das pessoas (OLIVEIRA, 2007, p. 91).
A organização de um currículo que fuja dessa dinâmica de imposição perpassa em atender aquilo que a própria Lei nº 9.394/96 prediz no que se refere a proporcionar uma formação que olhe para as características do alunado, seus interesses e suas condições de vida e que “respondam às necessidades de formação de sujeitos sociais muito diversos” (DI PIERRO, 2005, p. 1131). A segunda senda é a formação dos docentes para atuarem na Educação de Jovens e Adultos. Esse é um caminho que possibilita maior mudança na formação dos sujeitos da EJA. As especificidades da EJA têm sido debatidas nos fóruns dessa modalidade de ensino e, cada vez mais, os debatedores dessa temática defendem uma formação inicial e continuada dos educadores que nela atuam (DI PIERRO, 2005, p. 1131-1132), a fim de entender melhor o espaço onde se inserem e podem atuar de forma significativa. A formação de docentes para atuarem ou que atuam na EJA, ainda que passando por grandes dificuldades de instituição e consolidação como espaços, decorrentes de vários fatores, a saber: a persistência da visão equivocada que concebe a educação de jovens e adultos como território provisório sempre aberto à improvisação; a precariedade do mercado de trabalho, que não proporciona a construção de carreiras profissionais; e o escasso envolvimento das instituições de ensino superior com um campo educativo de pouco prestígio e baixo grau de formalização (PIERRO, 2005, p. 1132)
constitui um lugar fecundo de promoção de desvencilhamento da formação tecnicista ainda vinculado a EJA. 5 O SENTIDO DA FORMAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO PENSAMENTO FREIREANO NA OBRA PEDAGOGIA DA INDIGNAÇÃO O lugar fecundo que é dado aos educadores para poderem fazer o diferencial, sobretudo no que diz respeito à busca de uma prática educativa que promova a Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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formação e não a repetição de conteúdos e técnicas, foi, desde muito tempo, bandeira de luta de Paulo Freire, que, como educador, em meados do século XX, defendia uma nova postura nas formas de pensar e de executar a educação escolar para adultos. Na obra Pedagogia da Indignação, Freire (2000) traz um discurso claro sobre a significação da educação e seu papel transformador na sociedade. Tal papel só faz sentido quando a educação é pensada na multiplicidade, na universalidade e na isonomia, não fazendo pesar sobre ela ideologia de classes, grupos ou gêneros. A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo. A educação tem sentido porque mulheres e homens aprenderam que é aprendendo que se fazem e se refazem, porque mulheres e homens se puderam assumir como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem. A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação (FREIRE, 2000, p. 20).
É essencialmente dessa obra que seguem as discussões deste tópico. No subtítulo desafios da educação de adultos ante a nova reestruturação tecnológica, Freire retoma alguns de seus posicionamentos sobre a Educação de Jovens e Adultos, buscando, à luz dos novos tempos e das novas configurações de mundo, resgatar a essência da educação, sobretudo para essa modalidade de ensino. Em face da prática educativa tecnicista, que muito acompanhara a educação de adultos, Freire (2000) apresentou veementemente suas críticas. Jamais me satisfez uma inteligência tecnicista da prática educativa. Não importa que ela se dê no empenho de organização de um grupo de indivíduos, numa experiência de combate à praga de formigas ou de luta contra a erosão ou no esforço de alfabetização ou na coordenação de seminários na pós-graduação de uma universidade. Daí, por isso mesmo, que sempre tenha entendido a alfabetização como um ato criador a que os alfabetizandos devem comparecer como sujeitos, capazes de conhecer e não como puras incidências do trabalho docente dos alfabetizadores (FREIRE, 2000, p. 40).
A valorização do aluno da educação de adultos como sujeito de participação no seu processo de alfabetização é, para Freire, um ato necessário. A omissão desse sujeito, seja por parte do sistema, seja por parte do educador, equivale a desmerecer toda a trajetória desse aluno e colocá-lo no anonimato, no ostracismo. Como sujeito, o aluno da Educação de Jovens e Adultos, seja na alfabetização, seja em qualquer outra etapa, faz parte de um processo formativo que não encerra pela finalização desta ou daquela etapa. A Educação do Adulto constitui um processo de formação Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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permeado de valores e de aspirações desse público sobre o que esperam de si mesmo e da educação que buscam. Sacristan (1998) traz uma complementaridade ao pensamento freireano ao destacar que “a modelagem científica de ideia de sujeito da educação e dos processos educativos esquece uma “conotação ilustrada moderna fundamental [...]: que a educação é um instrumento para a liberdade e a autonomia do sujeito” (SACRISTAN, 1998, p.172). Essa “conotação ilustrada moderna fundamental [...] talvez seja o desafio do programa de progresso que mais precisamos descobrir”, afirma Sacristan (Idem). Potencializar, portanto, esses sujeitos na Educação de Adultos faz-se por uma prática educativa, que entenda os processos educativos como etapas de complementaridade e capaz de promover a mudança buscada por cada sujeito6. A prática educativa que separa o processo de alfabetização do processo de educação, como se constituíssem de temáticas independentes sem correlação, aparece nas críticas freireanas como uma inconcepção para o seu pensamento. Jamais pude pensar a prática educativa, de que a educação de adultos e a alfabetização são capítulos, intocada pela questão dos valores, portanto da ética, pela questão dos sonhos e da utopia, quer dizer, das opções políticas, pela questão do conhecimento e da boniteza, isto é, da gnosiologia e da estética (FREIRE, 2000, p. 40).
A educação pensada como processo também é responsável por abarcar a dimensão política, uma dimensão que, muitas vezes, é colocada como dicotomizante da Educação. A educação é reconhecida, por Freire (2000), como um instrumento, uma arma de denúncia e anúncio. Denúncia, quando reveladora das duras realidades vividas; anúncio, quando promove a possibilidade de mudança da realidade denunciada. Assim, a relação de consciência e mundo na educação deve ser dialética, em que leve o indivíduo a entender-se como sujeito consciente, inserido num contexto, numa realidade, no mundo. É na inserção no mundo e não na adaptação a ele que nos tornamos seres históricos e éticos, capazes de optar, de decidir, de romper. A postura crítica da consciência é tão importante na luta política em defesa da seriedade no trato da coisa pública quanto na apreensão da substantividade do objeto no processo de conhecer (FREIRE, 2000, p. 41).
A educação de adultos, ainda nas configurações dos novos tempos e dos avanços tecnológicos, deve ser capaz de realizar – ou ao menos mediar – mudança. Não importam as configurações de que tipo de educação de adultos está sendo Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Entende-se por essa mudança buscada os objetivos, os sonhos, que levaram os sujeitos da Educação de Adultos ao retorno à educação. Não se ignora, aqui, que exista, na EJA , um público de adolescente que foram para essa modalidade somente porque entrou na faixa etária aceitável a modalidade e os sistema de ensino simplesmente os realocou (SCHNEIDER; FONSECA, 2013).
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pensada, dizia Freire (2000), “a prática educativa será tão mais eficaz quanto, possibilitando aos educandos o acesso a conhecimentos fundamentais ao campo em que se formam os desafie a construir uma compreensão crítica de sua presença no mundo” (FREIRE, 2000, p 41-42). Portanto, a prática educativa é que promove a mudança necessária para que não se conceba, e, se concebida, para que não vigore uma educação em que ensinar técnicas seja mais importante ou relevante que ensinar a pensar. A certeza de que “mudar é difícil, mas não impossível” (FREIRE, 2000, p. 42) é exigência que se coloca indispensável à educação. A educação, porém, não se resume a acomodar-se à realidade, mas intervir-se nela. Essa mudança só se faz com a formação, capaz de dialogar capacitação técnico-científica e o exercício da cidadania. Da realidade emerge que se valorizem técnicas e aprendizados puramente executáveis, e não se pode fugir dessa realidade. Não é possível fugir à realidade e alimentar apenas sonhos e utopias. A realidade é algo com a qual a educação tem que trabalhar. A mera transferência de saberes, fruto da visão “pragmático-tecnicista”, e por ela valorizada ganha espaço e, ainda que a valorização e a exigência da realidade seja uma educação que “melhor adapte o homem e a mulher ao mundo tal qual está sendo” (FREIRE, 2000, 42), o que, para Freire, não se pode aceitar na educação é o fatalismo pragmático de se deixar levar pelo fluxo, pelos acontecimentos, sem críticas, indiferença à realidade. A mim que sempre recusei as explicações mecanicistas da História e da consciência, a euforia neoliberal me encontra onde sempre estive. Mais radical, nenhuma sombra de sectarismo, por isso mais aberto, mais tolerante, mais indulgente comigo mesmo e com os outros. Mas tão decidido quanto antes na luta por uma educação que, enquanto ato de conhecimento, não apenas se centre no ensino dos conteúdos, mas que desafie o educando a aventurar-se no exercício de não só falar da mudança do mundo, mas de com ela realmente comprometer-se. Por isso é que, para mim, um dos conteúdos essenciais de qualquer programa educativo, de sintaxe, de biologia, de física, de matemática, de ciências sociais é o que possibilita a discussão da natureza mutável da realidade natural como da histórica e vê homens e mulheres como seres não apenas capazes de se adaptar ao mundo, mas, sobretudo de mudá-lo. Seres curiosos, atuantes, falantes, criadores (FREIRE, 2000, p. 42).
As críticas de Freire ao tipo de educação que forme adaptadores é direta. Esse tipo de educação apresenta-se como fruto da subordinação da educação à economia (LIMA, 2005). Nessa concepção, “a educação passa a integrar-se numa indústria de serviços, num mercado de fornecedores em competição” (LIMA, 2005, p. 81), que, assim como Freire defende, uma “educação crítica para a cidadania democrática” que Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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contribua para “a ampliação dos actores participantes na deliberação democrática e esta ampliação acarretará, por sua vez, uma ainda maior diversidade cultural (LIMA, 2005, p. 75). Freire dá alguns indicativos da Educação de Jovens e Adultos de que se precisa, apontando para uma educação crítica, ao afirmar: Me parece demasiado óbvio que a educação de que precisamos, capaz de formar pessoas críticas, de raciocínio rápido, com sentido do risco, curiosas, indagadoras não pode ser a que exercita a memorização mecânica dos educandos. A que “treina”, em lugar de formar. Não pode ser a que “deposita” conteúdos na cabeça “vazia” dos educandos, mas a que, pelo contrário, os desafia a pensar certo. Por isso, é a que coloca ao educador ou educadora a tarefa de, ensinando conteúdos aos educandos, ensinar-lhes a pensar criticamente (FREIRE, 2000, p 45).
Essa educação crítica, que ocupa uma das categorias de análises das políticas educacionais de jovens e adultos a partir de 1999 (GUIMARÃES, 2012), soma-se a“iniciativas que desafiam o status quo, traduzem-se em oportunidades que visam a transformação social” (GUIMARÃES, 2012, p.71), promovendo a participação social, a inclusão, e “estimulam a discussão dos problemas e das necessidades sociais, educativas e culturais pelos próprios indivíduos, bem como fomentam a procura coletiva de soluções” (ibidem). No fundo, a educação de adultos hoje como a educação em geral não podem prescindir do exercício de pensar criticamente a própria técnica. O convívio com as técnicas a que não falte a vigilância ética implica uma reflexão radical, jamais cavilosa, sobre o ser humano, sobre sua presença no mundo e com o mundo (FREIRE, 2000, p 46).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Educação de Jovens e Adultos teve, nas duas últimas décadas passadas e na corrente década, grandes avanços na sua consolidação como política pública de educação, alcançando o reconhecido status de modalidade de ensino, referendado nacionalmente. O presente trabalho propôs refletir sobre os sentidos que essa modalidade de ensino tomou – ou manteve – no contexto socioeconômico da última década do século XX a meados da segunda década do século XXI. Foi realizada uma revisão bibliográfica, apresentando discussões dos marcos legais, de alguns programas governamentais para a modalidade de ensino em estudo, Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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procurando entender como o sistema econômico vigente influenciou e influencia no modelo educacional proposto e oferecido à Educação de Jovens e Adultos. A redemocratização do país representou para a Educação de Jovens e Adultos a oportunidade de se fazer presente nas discussões de políticas públicas educacionais de forma a deixar-se destacar pela sua peculiaridade e pelos indicativos da sua identidade, entretanto os dispositivos da Lei nº 9.394/96 sozinhos não foram suficientemente capazes de fazer com que a identidade da EJA se consolidasse, mesmo sendo essa legislação um indicativo de grande avanço da temática. O sistema econômico globalizado, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, consolidou-se como ordenador dos rumos das macropolíticas nacionais e internacionais. A influência do capitalismo neoliberal sobre o campo da educação, especialmente a educação de Jovens e Adultos, em que o público é parte da população economicamente ativa do país, reflete-se, tendenciosamente, nos programas governamentais propostos a essa modalidade de ensino, tonificando ações que valorizavam a formação para o trabalho num modelo tecnicista de educação. Os programas governamentais para a EJA – Projeto Escola de Fábrica, Programa Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM), Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) –, que marcaram a primeira década dos anos 2000, apesar de não negarem na sua formulação a necessidade de uma Educação de Jovens e Adultos voltada à formação integral, eram exemplos claros da tonificação da valorização tecnicista. As fendas deixadas pelas políticas de se pensar numa educação crítica proporcionaram caminhos diversos de discussões da EJA em vários campos donde suscitaram defensores de uma educação que levasse em conta os sujeitos da modalidade. Esses caminhos representaram rupturas que possibilitaram e possibilitarão, a essa modalidade, novas práticas que pode se desvencilhar da tendência tecnicista sistêmica. As concepções freireanas da Educação de Adultos retomam um lugar de destaque para se pensar em uma educação crítica de formação de sujeitos ativos na realidade concreta da sociedade em que se vive, capazes de não somente “adaptaremse” aos arranjos do sistema vigente, mas de intervirem nessa realidade e modificá-la. Assim, este trabalho conclui reiterando a concepção freireana de que o sentido da Educação está em “formar pessoas críticas”. E essa educação será tão eficaz quanto mais não se constituir somente de tendências mercadológicas e sim Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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como propositora, capaz de dialogar e suscitar novos modelos de agir e interagir na sociedade.
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LUDICIDADE: O JOGO E A BRINCADEIRA NA LINGUAGEM DA DANÇA Mariana Marques Kellermann RESUMO Este artigo propõe reflexão sobre a importância do desenvolvimento psicomotor no ensino-aprendizagem da dança, seja nos conteúdos apresentados pela escola formal, seja nas escolas de dança que se interessam pelos estudos da percepção corporal e por seu desenvolvimento lúdico como fio condutor para a compreensão de um ser integrado. O objetivo é mapear jogos e brincadeiras surgidos da intensidade e da espontaneidade nas aulas de dança com crianças de 7 a 9 anos de idade que pretendiam ingressar em Cursos de Formação para Bailarinos na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA) em 2003, na cidade de Belém do Pará. Palavras-Chave: Educação lúdica. Corpo. Dança. Movimento. ABSTRACT This article proposes a reflection towards the importance of the psychomotor development in the teaching/learning of dance, be it in the regular school curricula or in the dance schools interested in body perception and its ludic development as guidance to the understanding of an integrated being. The objective is to map games and plays springing from the intensity and spontaneity in dance classes with 7-to-9 year old children, who intended to enter training courses for ballet dancers at the Federal University of Pará’s Drama and Dance School (ETDUFPA) in 2003, Belém city, state of Pará. Keywords: Edutainment; Body; Dance; Movement.
Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Bacharel em Direito, pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 1977), Atriz/Bailarina, Professora do Curso Técnico de dança, InterpreteCriador (ETDUFPA), Curso de Licenciatura em Dança da (UFPA), Especialista na Consciência Corporal/Dança (FAP/PR ,1999), Msc. nas Artes Cênicas (UFBA), Doutora nas Artes Cênicas (UFBA), Coordenadora/ Pesquisadora do projeto de pesquisa “Educação Lúdica” (CNPQ). 106
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1 AS JUNIANAS E SUAS BRINCADEIRAS: RITMO E HISTÓRIA PARA AS INTERPRETAÇÕES As festas juninas simbolizam o imaginário coletivo da sociedade. É uma forma de as pessoas se sentirem participantes de uma mesma comunidade emocional. É como se a pessoa estivesse celebrando o prazer daquele pertencimento, daquela maneira de sentir que é comum a todos. João de Jesus Paes Loureiro (2011)
Existem versões que apontam a origem da festa junina em países católicos da Europa. No princípio, a festa era chamada de joanina, pois estava ligada ao nascimento de João Batista no dia 24 de junho. Segundo o relato bíblico, Isabel, prima de Maria (Nossa Senhora), ao saber que estava esperando um bebê, foi ao seu encontro para contar-lhe a boa nova. Seu bebê se chamaria João Batista. Todavia, Maria quis saber como faria para ser avisada quando a criança tivesse nascido. Naquele tempo, sem muita opção de comunicação, combinaram que o sinal de comunicação do nascimento seria uma fogueira. Lá de longe, Nossa Senhora avistou a fumaça e logo depois viu a fogueira. Ela então sorriu e, compreendendo a mensagem, foi visitá-la. Encontrou-a com um belo bebê nos braços e assim começou a ser festejado o dia de São João, com mastro, fogueira, foguete, muita dança e muita comida. Para nós, brasileiros, a festa junina chegou por intermédio dos portugueses ainda durante o período colonial. Nessa época, havia grande influência de elementos culturais portugueses, chineses, espanhóis e franceses. E dos franceses é que deriva a quadrilha. Embora constantemente renovada, não se perde de sua origem francesa, basta ver, como diz Loureiro (2011), sua evolução coreográfica repleta de palavras da língua francesa como anarriê e avancê. Também de lá veio a grande influência das danças marcadas. Já a tradição de soltar fogos veio da China, região onde teria surgido a manipulação da pólvora para a fabricação de fogos. Da Península Ibérica teriam vindo as danças das fitas, muito comuns em Portugal e na Espanha. Esses elementos culturais foram se misturando com os elementos culturais indígenas, africanos e europeus, nas diversas regiões do país, tomando características particulares em cada uma delas. Em Belém, a festa junina, por muito tempo, era comemorada nos terreiros e lá encontrávamos as fogueiras feitas de tora de madeira, geralmente muito grande. Em sua volta, faziam-se juras de amizade, anunciavam ser madrinha ou padrinho de Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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alguém. As quadrilhas iam se apresentando e assim as casas em volta do terreiro (de chão batido, de terra) iam oferecendo as comidas e as bebidas. Hoje, nas ruas de Belém, mais desenvolvidas, não se pode mais ter a fogueira, ou seja, somente faz-se de conta que a fogueira está acesa e penduram-se as bandeirinhas de plástico. 1.1 A coreografia: as junianas e suas brincadeiras A partir do processo criativo desenvolvido com as alunas da Oficina do Preparatório de Dança da ETDUFPA, selecionei alguns movimentos experimentados por elas com os exercícios ministrados em sala de aula, para a montagem de As Junianas e suas brincadeiras. Iniciei os trabalhos pedindo que as alunas se dividissem em grupo e que cada grupo utilizasse os brinquedos escolhidos por elas no jogo de identificação de objetos. A divisão foi assim disposta: grupo de três meninas ficou com as marionetes do boi-bumbá e uma das meninas era a Catirina (personagem dessa história). Devido a essa divisão, achei importante abrir um precedente na aula para contar para as alunas, com ajuda de suas mães, a história do boi-bumbá, ou bumbá-meu-boi e quem era Catirina. Desta vez, foi a avozinha de uma das meninas que nos deu a honra de contar essa história. Entretanto, senti necessidade de contar para as alunas que o boi-bumbá é uma dança dramática e que está presente em várias de nossas festividades como no Natal e nas festas juninas e que tem características diferentes recebendo, inclusive, denominações distintas de acordo com a localidade em que é apresentado. No Piauí e no Maranhão, chamam-no bumba-meu-boi; na Amazônia, boi-bumbá; em Santa Catarina, boi de mamão; no Recife, ele é o boi-calemba; e no Estado do Rio de Janeiro, é conhecido como folguedo do boi. No embalo dessas informações, vovozinha começou a contar a história. Assim começou a narrar: Catirina era uma mulher que esperando bebê sentiu uma vontade incontrolável de comer a língua do boi. Seu marido, pai Francisco, resolveu atender ao desejo da mulher e matou o primeiro boi que encontrou. Logo depois o dono do boi apareceu e ficou muito aborrecido ao ver seu animal ali, estendido, inerte, morto.
Segundo a vovozinha, para sorte de pai Francisco, aparece um curandeiro que ressuscita o boi e, aí, então, a partir desse momento, todo mundo ficou muito alegre e começou a dançar. Essa história serviu para que as alunas fossem imaginar (depois de tirarem Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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suas dúvidas sobre o boi-bumbá), uma história para contar com suas marionetes e sua Catirina (personagem vivido por uma aluna do grupo de três). Outras duas meninas formaram o grupo “anjos caipiras”, que tinha como objeto cênico cestos de vime (que suas mães enfeitaram à moda caipira do Estado do Pará, com muitas fitas coloridas e patchouli), para transportar folhas secas que elas espalhavam pelo espaço do palco. Esse era o grupo que iniciava a coreografia. Um terceiro grupo foi formado por mais seis alunas – “grupo das rosas”, que surgiu num laboratório em que as alunas utilizaram rosas de papel crepom como objeto cênico. Finalmente, eu e uma de minhas alunas assistentes formamos o 4º grupo e fizemos o grupo das “varas das fitas”.
Foto 1 - Alunas dançando a quadrilha: As Junianas e suas brincadeiras
Fonte: Fotografia da autora, 2003
1.2 O roteiro A cena começava com duas cadeiras no palco e quando os anjos caipiras invadiam o espaço, andando solenemente enquanto espalhavam as folhas pelo chão que caíam flutuantes, eles subiam nas cadeiras e continuavam a jogar folhas que, no plano alto, faziam suas evoluções até cair no chão. Costurando a cena, entrava o grupo de duas meninas que, entre a fumaça do palco, tornavam-se figuras oníricas, dando à cena um sentido de sonho. Cada uma dessas caipiras levava um boi-bumbá na mão enquanto que a terceira componente andava em serpentina, em volta das Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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dançarinas do boi e, com movimentos frenéticos, representava o desejo de Catirina de comer a língua do boi. Seus corpos eram a extensão do objeto cênico, ou seja, emprestavam seus movimentos para os bailados dos bois, o que causava a impressão que juntos flutuavam. O “grupo das rosas” (de papel crepom em variadas cores) se movimentava em andadas, atravessava o palco, aproximando de seus corpos seus objetos cênicos, num ponto próximo, para depois continuar andando pelo espaço, afastando-se à procura de um ponto bem distante do primeiro experimentado e, com isso, entrelaçava-se à cena. Por fim, entrava o grupo das varas de fitas, nos colocando cada uma de um lado do espaço, proporcionando com isso que as alunas pudessem nos ver e continuassem plenas em suas criações, em suas invenções, em suas brincadeiras. A nossa coreografia (minha e de minha aluna-assistente) entrava no palco para fechar o círculo da dança, ou seja, éramos as últimas. A música era de São João, mas não dançávamos em seu ritmo, não o seguíamos, era como se fosse um ritmo de fundo, ritmo/ambiente. Faziam as alunas seus ritmos individualizados, entre saltitos, saltados, girados, intercalando seus deslocamentos entre movimentos leves e flutuantes e muitas vezes arriscando uma pausa (que elas chamavam estátua), para que as outras que estavam também em cena pudessem passar entre seus corpos ali pausados com seus bois-bumbás em movimentos sinuosos, como numa reza que culminava com nossas varas coloridas que marcavam um ponto fixo no espaço e quando se deslocavam, criavam a cada passo um novo espaço. 1.3 Critérios avaliativos dos ensaios e da coreografia Para a culminância do projeto, organizei ficha analítica com critérios avaliativos no que diz respeito à sociabilidade e disciplina durante os ensaios, na hora do espetáculo e após o mesmo. Concluí, por meio de observações, que no momento da coreografia as alunas mantiveram-se calmas e concentradas. No que diz respeito à orientação espacial, as alunas demonstraram segurança ao atravessar o espaço do palco, demonstrando que entendiam o que estavam interpretando e puderam curtir as marcas coreográficas num jogo harmônico, num jogo de alegria, num jogo espelho. Quanto à preparação física apresentada em sala de aula para o desenvolvimento da coreografia, ela proporcionou o aporte fisiológico necessário. Com as atividades lúdicas, que eram compostas de muitas brincadeiras, as alunas Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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demonstravam que sentiam grande prazer em dançar a quadrilha, pois a maioria já havia dançado esse ritmo em suas escolas, todavia, a novidade da quadrilha em questão ficou por conta do uso dos brinquedos (que considero, objetos cênicos), havendo, dessa forma, uma explosão de espontaneidade em termos de jogos e brincadeiras. O trabalho coreográfico, por ter sido explorado por meio de jogos e brincadeiras, desenvolveu o relacionamento do grupo, a segurança, a confiança e, principalmente, o sentimento de cooperação. Acredito que devido a isso o grupo conseguiu dançar com mais desenvoltura e viveu com mais plenitude a experiência de apresentar-se ao público com uma coreografia.
No caminhar de meus experimentos e descobertas, observei que muitas vezes durante o ensaio se houvesse muita repetição das células coreográficas, diminuía a energia que deveria fazer-se presente na hora do jogo, dando lugar ao desinteresse. Reflexões feitas depois que terminei de trabalhar com as alunas no primeiro semestre de 2003 fizeram-me compreender o quanto é importante permanecer com o jogo até que o interesse se mostre pelos praticantes (SPOLIN, 2010), como, também, compreendi a importância de se trabalhar com o jogo corporal do aluno, de relacioná-lo com o espaço, estimular o jogo com o outro, para principalmente perceber o outro. Segundo Ramos (2007, p.53), “por meio dos jogos faz-se que as pessoas não passem pela vida sem notar que existe um espaço que é ao mesmo tempo limitado e amplo”. Em sala de aula, deveria desfazer-me daquela velha forma de ensinar, de aprender, da relação professor-aluno, pois passei a perceber que é muito mais importante ser parceira na experiência. Segundo Spolin (2010, p.27), “insistir muito na apresentação mata a vitalidade do jogo e provoca perguntas ansiosas”. Muitas alunas ficavam perguntando: “como vamos fazer isso professora?”. Comecei a perceber que também não era muito interessante contar como fazer e sim tomar a iniciativa de fazer, ou seja, de experimentar. Pensando assim, passei a analisar e construir os dados que foram se arquitetando e com os resultados organizei nova oficina para continuar desenvolvendo a percepção corporal das crianças que haviam se matriculado na oficina para que no ano seguinte pudessem ser distribuídas em sala de aula do Curso Experimental de Formação para Bailarino da ETDUFPA. Como primeiro passo a dar nessa direção, pensei sobre não trazer mais aulas prontas de minha casa, pois conclui com as observações diagnosticadas que foi muito importante perceber as crianças no dia-a-dia da sala de aula e, dessa forma, Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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compreender como trabalhar cada obstáculo encontrado, mudando o já planejado para em seguida apontar e trabalhar a necessidade apresentada pelo grupo. Compartilho com as ideias de Spolin (2010) de que é por meio do aumento da capacidade de experimentar livremente que as potencialidades afloram. Argumenta também o autor que o estimulador desse processo é quem deve possibilitar ao aluno de dança descobrir seu movimento, sua presença, sua coreografia, sua dança. Pensando nisso, selecionei os seguintes jogos para que as alunas pudessem desenvolver as atividades lúdicas e finalmente mostrar os efeitos que causaram a prática dessas atividades em seus desenvolvimentos corporal e artístico. Seguidamente descrevo e comento alguns jogos selecionados.
2 O PROCESSO JOGO/DANÇA A criatividade infantil é uma semente que contém em si tudo o que o adulto vai realizar. Fayga Ostrower (1987) A conscientização do movimento, por meio da busca da corporeidade consciente do ser humano, possibilita a quem a pratica tornar-se mestre de si mesmo. Sua principal função é direcionar com estímulos diretos, esse autoconhecimento para que cada um descubra, por si só, todas as possibilidades. Ramos (2007)
A partir da diagnose do estudo, conclui que as crianças em questão deveriam
desenvolver atividades lúdicas mais específicas e assim resolvi continuar a aprofundar os jogos que foram selecionados da prática do primeiro semestre, pois a revisão serviu para que compreendesse que ali se abriu mais uma oportunidade de introduzir criteriosamente a ludicidade em meus conhecimentos como docente; sendo que dessa vez o carro-chefe para a tarefa de continuar estudando o corpo foi mais precisamente entender o que as atividades lúdicas poderiam possibilitar em termos de percepção corporal. As alunas deveriam mostrar com seus gestos os efeitos deixados pelas práticas dessas atividades e, dessa forma, como diz Luckesi (2000), mostrar em suas ações como está se construindo para seu desenvolvimento integral. Pensando assim, uni ao conhecimento do movimento jogos que permitissem ao aluno sentir-se inteiro na atividade e pudesse cada vez mais criar espontaneamente, selecionando para aquele momento os jogos teatrais, baseados na metodologia de Spolin (2010), os quais contribuíram para o aumento da percepção corporal, para o desenvolvimento motor e para descobertas de habilidades e de possibilidades. Não estou dizendo que seja regra, mas acredito que sejam os jogos Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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teatrais excelentes colaboradores para desenvolver a rapidez de raciocínio, instigando o aluno a encontrar soluções rápidas para situações que se apresentam e também por acreditar serem descobertas que as crianças levariam para vida toda (SPOLIN, 2010). Mantive também incluídos nas práticas desse período os exercícios do Sistema Laban/ Bartenieff, visto que os preparatórios e os seis básicos (os Fundamentos Corporais Bartenieff), segundo Fernandes (2002), são exercícios, que além de conscientizarem o praticante de sua postura, facilitam a movimentação, melhoram a expressão corporal em diversas técnicas de dança e de teatro. Facilitam na experimentação para a composição coreográfica, trabalham o desenvolvimento neurofisiológico (preventivo e curativo), fisioterapia e dançaterapia (FERNANDES, 2002, p. 58);
Continuei utilizando a improvisação 1 como processo de criação, no sentido de fomentar as investigações das alunas, delas com elas próprias, dando-lhes a oportunidade de experienciar uma movimentação fruto de suas criações, o que me oportunizou entender como se apresentava a capacidade de cada uma delas de interiorizar2. Obedecendo aos resultados da avaliação diagnóstica obtida na prática do primeiro semestre de 2003, selecionei os seguintes jogos para serem desenvolvidos como atividades lúdicas no segundo semestre do mesmo ano.
2.1 Jogo da brincadeira com a respiração Como possibilidades de mais descobertas de como mover o corpo. Acredito que por ter iniciado meus conhecimentos como bailarina na dança moderna, sabia da importância da improvisação em dança, principalmente quando se pensa em mostrar a diferença de se mover o corpo em uma dança clássica e como se pode movêlo em outros tipos de dança, ou seja, aprendi como aluna de dança moderna que nos treinamentos a improvisação é amplamente utilizada durante o processo de criação e de conscientização corporal e possibilita a criatividade e a criação.
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Objetivos: Favorecer o contato da criança com a sua respiração (entendimento da inspiração e expiração); Estimular com esse procedimento o conhecimento da criança sobre seu próprio corpo – segmento corporal, eixo corporal, parte dura (ossos), parte mole (músculos). Foco: Respiração como fio condutor para iniciar as atividades de sala de aula. Descrição: O exercício era feito com a criança inicialmente deitada no chão pronunciando as vogais. Cada vogal era colocada em uma parte do corpo, sendo a vogal I colocada no centro da cabeça, a vogal E colocada na garganta, a vogal A no tórax, a vogal O no centro do corpo e a vogal U na genitália. Para cada respiração, a Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
É tomar conhecimento do seu corpo todo e das partes que o compõem.
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criança deveria ir associando uma vogal com uma parte de seu corpo. Tal exercício faz parte do Sistema Laban/Bartinieff (2002) que tem a respiração como suporte para o movimento corporal. Comentários sobre a vivência do jogo: No primeiro momento do exercício, o foco estava na movimentação do fluxo da respiração e, por isso, nas primeiras aulas com o treinamento da respiração, comecei chamando atenção das crianças para o movimento do ar, fazendo-as experimentar o ar que entra (inspiração) e o ar que sai (expiração), cuidando para que elas tomassem consciência do ato da respiração. Para as aulas seguintes introduzi o jogo respiratório. Para isto, iniciei o jogo pedindo que todas as alunas estivessem sentadas no chão e repetissem juntas as vogais. Nas primeiras aulas, comecei pelas as vogais I e E. Mostrava às alunas que se colocassem suas mãos na cabeça perceberiam a vibração da vogal I. Fiz o mesmo processo com a letra E e pedi que colocassem suas mãos em suas gargantas e sentissem a vibração de tal vogal. Na aula seguinte, ainda sentadas, passei a percepção dessas alunas para as vogais A – que fica em torno do tórax – e da vogal O. Pedi que colocassem suas mãos em torno do abdômen. Em seguida, solicitei que exercitassem a vogal U na região da genitália. Nas aulas seguintes, iniciaram a experimentação da respiração deitadas no chão e assim fui, ao longo do treinamento, estimulando a consciência respiratória até chegar na posição em pé. Os exercícios respiratórios tornaram-se uma brincadeira entre as alunas que, por sua vez, associaram o som produzido pelas vogais a uma música. Esses exercícios passaram a fazer parte do aquecimento das aulas, pois observei que com a sua feitura as alunas acordavam seus corpos trazendo-os para o presente, colocandoos aptos para a aula que iria se iniciar, aumentando com isso a concentração e a energia corporal. Com a respiração, a consciência corporal das alunas era estimulada inundando seus corpos, preenchendo-o de vitalidade, tornando-as mais perceptivas no que diz respeito às sensações geradas em seu espaço interno. Respirar através das vogais significa sentir sensações diferentes e, por isso, a cada aula era feito o exercício de maneira diferente. A prática do exercício, inicialmente, foi feita individualmente. Depois as alunas passaram a praticar em pares em que uma dizia a vogal e a outra experimentava (com a mão, ou outras partes do corpo) a vibração da vogal pronunciada, ao mesmo tempo, que tomava conhecimento das partes do corpo através do toque. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Conforme foi avançando o conhecimento sobre o corpo e a respiração, as alunas também praticavam a respiração caminhando pelo espaço e finalmente alternando a letra e as observações das partes do corpo. Entretanto, observei que a maioria das alunas respirava muito forte e com isso inflava em demasia o pulmão fazendo com isso o levantamento dos ombros. Praticava a respiração com muita força, e a expiração era feita bruscamente, fazendo com que o ar saísse muito rapidamente do pulmão e não conseguisse sentir a relação entre a contração do abdômen, impulso do diafragma e pressão aérea pulmonar dinamizada. Segundo Martins (2008), se há impulsos muito fortes no abdômen, ocorre uma pressão aérea subglótica fortíssima que gera ataques vocais bruscos 3. Ao longo do estudo e devido às observações feitas, passei a trazer a carta do Sistema Locomotor4 que possibilitou as alunas a observarem como a respiração ia se deslocando internamente por seus corpos, como também, a entender suas anatomias e fisiologias corporais, como, por exemplo, perceberem e imaginarem o movimento que faziam com a inspiração e a expiração, ou seja, como entrava e saia o ar de seus pulmões e onde se localizavam. Por se tratar de um estudo longitudinal (ter trabalhado um único grupo durante oito meses), tive oportunidade de perceber que o importante para as alunas não era somente entender sua fisiologia pelo plano mental e sim que se possibilitasse por meio dos exercícios respiratórios perceberem por si só as harmonias de suas dinâmicas fisiológicas (MARTINS 2008). Com esse estudo, pude observar que as alunas tomaram consciência de suas partes do corpo e passaram também a observálas e relacioná-las com o espaço ao redor. Lembro-me de que em uma das discussões finais da aula uma aluna disse: “tia, minha cabeça parece uma bola de jogar futebol, e é muito pesada”, outras perceberam tocando o corpo da colega que o corpo é feito de partes duras (músculos) e moles (articulações) e que os ossos que compõem o esqueleto são uns longos outros curtos. Percebi com essa prática que em qualquer idade conciliar respiração e movimento é muito difícil e que a solução talvez, seja estimular a concentração, liberando a respiração, deixando-a fluir de acordo com a resposta sinestésica do movimento. Segundo Fernandes (2002), o ator-bailarino (no caso deste estudo, o aluno de dança) na inspiração se prepara para o movimento, expandindo e permitindo a respiração profunda. Na expiração, usa o diafragma para engajar o Iliopsoas e o Quadrado Lombar numa Corrente de Movimento até os músculos profundos do quadril. Esse suporte facilita toda transferência de Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Segundo a autora, ataque vocal brusco, ou golpe de glote, acontece quando os sons iniciados são tão bruscos que ocorre uma contração abrupta dos músculos adutores da vibração da prega vogal (MARTINS, 2008, p.26).
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Mapa anatômico que apresenta o esqueleto. Apresentei esta carta para que as alunas pudessem perceber por onde se processava a respiração feita com as vogais (A, E, I, O, U) e começassem a pensar suas anatomias corporais.
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peso corporal, desde a simples flexão coxofemoral até a mudança de nível sentando, levantando, caminhando, interagindo com o espaço tridimensional e de volta ao chão (FERNANDES, 2002, p. 41).
O jogo de brincar com a respiração também possibilitou, com o uso da vogal A, estimular nas alunas o entendimento de que o corpo se divide em membros superiores e inferiores e que eles podem se mover independente um do outro, ou podem se mover ao mesmo tempo (Foto 2) como se fosse um bloco. Isso contribuiu para que as alunas passassem a ter mais cuidado com o corpo do outro e os toques serviram para estabelecer entre elas afetividade e respeito pelo manejo do corpo do outro. Descobriram que a letra A é capaz de comandar a sonorização dos membros superiores com os inferiores e que cada uma tem seu modo próprio de provocar esta movimentação. Foto 2 - Meninas praticando exercícios do sistema Laban/ Bartenieff de percepção dos membros superiores e inferiores
Fonte: Fotografia da autora, 2003
Nossas aulas eram finalizadas com as alunas em círculo e discutíamos sobre as facilidades e dificuldades encontradas nos exercícios, como também as descobertas que elas fizeram. 2.2 Jogo brincando com as ações corporais Objetivo: Desenvolver as aptidões perceptivas como meio de ajustamento psicomotor. Foco: Percepção do próprio corpo e do espaço/tempo/peso/fluência do movimento. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Descrição: Os exercícios eram feitos por meio das andadas no espaço, que consistia em as alunas andarem pelo espaço de sala de aula sem obstáculos. A cada exercício era escolhida uma ação corporal que poderia ser a de saltar, girar, cair, expandir, recolher, deslocar, inclinar, parar, torcer, transferir peso, gesticular/isolar. Comentário da vivência: Quando acabava o aquecimento com as vogais, pedia que as alunas começassem a andar pela sala de aula. Inicialmente, com uma dinâmica de andar normal, ou seja, como elas andavam na rua, no seu cotidiano. Essas aulas eram acompanhadas com as palmas que nas primeiras aulas eram feitas por mim e pelas duas alunas assistentes que me pediram para participar da experiência do estudo, pois trabalhavam com crianças. Nas primeiras aulas, observei que as alunas andavam muito em aglomerado e a qualquer momento se davam de encontro, o que fazia com que elas perdessem a concentração. A estrutura espacial se desenvolve na criança a partir do conhecimento adquirido em relação ao seu corpo e ao espaço que ocupa, resultando em uma melhor locomoção espacial, organização do espaço que ocupa e maior domínio de seu gesto. Segundo Lê Boulch (1982), a tomada de percepção da situação de seu próprio corpo em um meio ambiente é lugar da orientação que pode ter em relação às pessoas e às coisas. Compreendendo a orientação feita pelo autor, passei a mostrar que o espaço não poderia ficar sem ninguém, não podia ficar vazio, assim que surgissem os buracos no espaço, deveriam estar atentas e se colocarem naquele lugar. Com esse procedimento, que começou a se repetir mais acirradamente nas aulas seguintes, consegui que as alunas percebessem mais o espaço em que estavam se deslocando e o que estava aos seus redores. Iniciaram a entender que existem mil maneiras de se jogar, o que me fez perceber que com esse entendimento criaram mais liberdade para se movimentarem “projetando formas para outras direções no espaço total” (RAMOS, 2007 p. 44). As palmas para essa prática foram fundamentais. No início, a instrução era: três palmas e as alunas paravam de andar e só podiam sair do estado de estátua quando escutassem a palavra mexer. Em seguida, em cada parada demonstravam que podiam realizar uma das ações mencionadas acima. Esses exercícios foram fundamentais no aprendizado das crianças da oficina. Primeiro porque brincavam de fazer brinquedo com seu próprio corpo e depois porque na ação de torcer, por exemplo, começaram a experienciar o espaço e sua tridimensionalidade, pontuando Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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com seus corpos, na tentativa de executar a ação de torcer os níveis do espaço, galgando os primeiros passos para o estudo do onde (espaço). Na brincadeira com as ações, também foram introduzidos por meio das andadas (marcha) o salto e o giro. Entretanto, nessas duas ações, a dificuldade para a faixa etária era o giro. Sempre que tentava girar, a maioria das alunas perdia o equilíbrio. Todavia, para não desanimá-las, e castrar a espontaneidade de tentar o girar mesmo ainda com medo de cair, comecei a estimulá-las a utilizarem o cair como forma de voltar ao equilíbrio, possibilitando mais uma vez que vivenciassem o nível do espaço (alto e baixo) e eixo corporal e a confiança em si mesma. A ação de saltar era a brincadeira mais natural para as alunas, haja vista suas faixas etárias. Portanto, nas andadas, quando as palmas ordenavam saltar, a sala explodia em milhões de forma de saltos diferentes. O subir e descer no espaço cada vez mais proporcionava a elas impulsos. Começavam a entender que seus corpos podiam ser o brinquedo e que isso as levava a grandes descobertas, inclusive, sobre o equilíbrio. Geralmente, no final das aulas, à volta a calmaria iniciava-se com a desaceleração dos passos até chegar ao deitar no chão e tomarem em seus corpos a forma da letra X, favorecendo que elas experimentassem toda a extensão de seus corpos para finalmente transformarem-se na letra C. 2.3 Jogo vamos desenhar Objetivo: Aferir o conhecimento e a experiência motora que a criança tem da sua imagem corporal. Foco: Nível de noção e reconhecimento do corpo. Descrição: Recurso metodológico composto de pré-teste e teste baseado no desenho da figura humana. Comentário da vivência:
Nos estudos do primeiro semestre de 2003, a brincadeira do Vamos desenhar foi de grande importância para dar início ao estudo da consciência corporal com as alunas da oficina do Curso Preparatório de Dança na ETDUFPA. Selecionei esse recurso metodológico para ser usado na investigação por se tratar de uma tarefa de fácil execução e pelo gosto que a criança demonstra na realização dos desenhos. Dessa forma, foi possível obter informação sobre a evolução da percepção corporal Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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das crianças do estudo tornando-se importante recurso que me prestou auxílio na decisão e organização dos estudos sobre as atividades lúdicas que seriam processadas nos estudos do semestre. Na primeira vez que foi utilizado esse recurso, estávamos em sala de aula de dança. Após o aquecimento corporal, apresentei às alunas o material para desenhar (composto de caixa de lápis de cor, papel branco, cartolina, borracha, tinta guache e alguns pincéis). No caso específico deste estudo, o primeiro desenho pedido foi o desenho de uma pessoa (desenho da figura humana). Para essa realização, utilizei a sala de dança para que as alunas pudessem ficar espalhadas, cada uma com seu material, evitando, ao máximo, que uma aluna tomasse como referência o desenho da outra. Não estipulei tempo determinado e deixei que se colocassem como escolhessem, ou seja, deitada, sentada no chão ou em cadeira, ficou a critério da criança a escolha. No momento, interessava-me perceber como se comportavam nessas horas mais livres. Qualquer informação sobre aquelas crianças para mim eram importantes, pois precisava conhecê-las. Queria me inteirar de suas vontades, de seus hábitos, de suas preferências, ações/reações. Nas primeiras aulas, queria aproximálas e, no caso, o desenho foi fundamental como recurso de formação do grupo. Depois descobri que foi muito além, porque foi também o recurso que aproximou família, professor e escola. Por meio dos primeiros desenhos pude entender como a criança da Oficina do Preparatório de Dança via a sua própria imagem corporal. Assim, pude detectar a carência no conhecimento corporal como o todo, pontuando inicialmente o segmento corporal e o eixo corporal. Aplicava o recurso do desenho no final de cada mês de trabalho e, dessa forma, fui aferindo, por meio dos desenhos, a evolução de cada criança em relação à consciência corporal. Foram experiências que me fizeram encaminhar para o segundo semestre uma prática que falasse mais de ludicidade, que oferecesse práticas mais espontâneas. Esse recurso serviu para que pudesse entender como as crianças se relacionavam em suas casas, suas escolas, como se sentiam estudando dança, enfim, o que estavam achando (naquele tempo) do mundo que as cercava. Solicitei que desenhassem suas casas, suas famílias, escolas e amigos, informações dadas de maneira lúdica que serviram também como instrumento de entendimento sobre seus avanços corporais. Esses desenhos, juntos com outros recursos metodológicos, como teste Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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psicomotor (conhecer o padrão motor de cada criança) e formulário de entrevistas (anamnese), tinham como proposta levantar dados da vida das crianças, incluindo o modo que realizavam suas brincadeiras, ou seja, se na escola, se com amigos ou sozinhas, para quê. O objetivo era, com base nas informações, que eu pudesse organizar aula prazerosa, criativa e motivadora. Queria antes de tudo conquistá-las como professora, queria que frequentassem minhas aulas. As sessões de desenho na pesquisa foram contempladas nas atividades extraclasses e serviram também como ponte de exercício de socialização e de afetividade. As alunas nesses encontros passaram a demonstrar mais harmonia em suas comunicações com os pares. Demonstraram ter muito prazer de estarem ali participando daquele momento e isso era percebido pelo carinho com que cuidavam do material que usavam para desenhar. Foi também o fio condutor para fazer com que os pais e responsáveis pelas alunas participassem do estudo e com isso conseguimos criar um clima entre alunas, professoras e pais, de muita afetividade, de amor, de harmonia. A escola pode, sim, ser inovadora de comportamentos e com isso preparar-se para os desafios do mundo globalizante. Apresento aqui alguns desenhos e suas evoluções.
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Foto 3 - Desenhos de uma aluna da Oficina Preparatória de Dança
Fonte: Reprodução fotográfica da autora, 2003 Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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2.4 Jogo conversando sobre dança Objetivo: Aprimorar conhecimento sobre a dança. Foco: Dança clássica, dança moderna, dança folclórica. Descrição: Apresentação às alunas e a seus pais amostra de filmes de dança na ETDUFPA. Comentário da vivência:
A ideia de apresentar filmes sobre dança às alunas e a seus pais partiu do momento em que percebi que conheciam pouco sobre a dança. Isso aconteceu no momento da primeira reunião que tive com os genitores das crianças para explicar como se desenvolveria as oficinas do Curso Preparatório de Dança. Observei que a maioria dos pais não aceitava outro tipo de dança que não fosse a dança clássica5. Todavia, mesmo escolhendo o balé clássico como favorito, descobri que muitos daqueles que estavam agarrados à ideia de que somente balé clássico é dança, nunca haviam assistido a um concerto de tal dança e imaginei que nem pudessem fazer ideia do que fosse uma dança moderna, muito menos quem fosse Pina Bausch. Claro que essas conclusões surgiram de nossas conversas e assim, no encontro seguinte, resolvi fazer uma surpresa: selecionei peças do repertório do balé clássico como Gisele e Quebra Nozes. Comentamos sobre a dança clássica, como também contei as histórias dos repertórios mostrados. No encontro seguinte, dando continuidade à história da dança, apresentei filmes sobre dança moderna. Selecionei um grupo de bailarinas interpretando solos de Isadora Duncan. Nas aulas seguintes, continuei trilhando a história da dança comentando sobre Martha Graham e apresentei filmes como Lamentation. Surpreendi-me quando uma das mães me perguntou: “professora porque esta bailarina se contorce tanto, parece sofrer muito?” Expliquei que a bailarina protestava com seu próprio corpo o seu tempo. Comentaram sobre o figurino usado por Graham e também comentei que aquele traje cênico usado na coreografia era para contrapor seus movimentos, usando as diagonais. Eram movimentos de súplica, de piedade, não de dor; mas o movimento parecia querer preencher algo que estava faltando.
No final da amostra, contei-lhes como surgiu a dança moderna e aproveitamos para refletir sobre o período clássico da dança, como também divagamos sobre o modernismo, sobre a liberdade de se expressar com o corpo, Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Acredito que além da falta de conhecimento sobre a dança e virem de um ambiente em que por um tempo o balé clássico foi tido como dança de verdade. (Em Belém, as pessoas só iam assistir espetáculo de dança se fosse de balé clássico (influência da apresentação de Anna Pavlova, 1830, em Belém do Pará Teatro da Paz). Quando era de dança moderna, um pós-moderno, o teatro era vazio. Às vezes, no espetáculo de dança moderna, ou de dança-teatro comparecia a classe artística. A maioria tinha fé no balé clássico, pois acreditava que modelasse suas filhas que os ajudasse a educá-las. Mais calmas, menos ansiosas, mais atenciosas, menos preguiçosas. As mães sonhavam com meninas que tivessem um comportamento feminino e muitas me disseram “tomara que esta menina melhore seu modo de andar e comece a reparar por onde anda, gostaria que fosse mais elegante”. Todavia, como professora, naquele momento interessava-me exatamente pelo contrário. Precisava que as alunas esquecessem-se de como procediam em suas casas ou escola, pelo menos para aquele início, no processo. Queria que despertassem para seus corpos e fossem acompanhando suas próprias mudanças. Não queria que ficassem contidas, incomodadas por não poderem colocar para fora suas emoções. Não queria ter alunos crianças dançando sem vida sem saber o que estavam fazendo e principalmente, sem curtirem o que estavam contando com seus corpos (tanto em coreografia, como em sala de aula). Queria alunos expandidos que tirassem de seus interiores seus movimentos, que criassem seus espaços internos, individuais e fossem transformando em crianças longe de censuras e gozadoras de uma comunicação prazerosa e imediata (LOBATO, 2011, p.122).
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sobre a liberdade de criar. Aproveitei o tema e as convidei para assistirem ao ensaio de uma coreografia dos alunos do sexto ano de dança da ETDUFPA. Era um trabalho de dança folclórica sobre os movimentos do carimbo e do lundu. Terminamos a aula no quintal da ETDUFPA, reunidas sob a velha, amiga e companheira mangueira. Continuamos a falar de dança, aproveitando do entusiasmo das crianças pelas danças que haviam conhecido. Ficaram impressionadas com um filme em que a bailarina vivia Isadora Duncan e mostrava com o seu corpo os movimentos que uma folha faz no espaço, quando vem caindo de sua árvore. Isadora fazia do seu corpo um corpo-folha. A empolgação (tanto de minha parte como das delas) foi tanta que esquecemos que a aula tinha terminado. Mas com consentimento de seus responsáveis, prosseguimos a atividade com mais perguntas sobre a dança moderna. Percebi que histórias desse período da dança ganhou a simpatia das alunas que vibraram quando viram Isadora (neste mesmo dia no filme) virando fogo, ou dançando, feito labaredas. Falei da importância dessa bailarina para que existisse a dança moderna e contei-lhes um pouco sobre sua vida trágica. Pouco a pouco fomos trabalhando para que a ideia de só existir uma maneira de dançar não se processava mais. Pensei que informar sobre a dança e sua evolução para pais e alunas foi o instrumento que apresentei para ajudá-los a vencerem seus preconceitos sobre a questão do movimentar, sobre a questão dançar, mais principalmente, sobre a questão do brincar. 2.5 Jogo do tempo Objetivo: Estimular a percepção da duração e variação da velocidade do tempo. Foco: Dinâmica do tempo (acelerado, desacelerado, repentino), ritmo. Descrição: O exercício com o fator tempo variava a velocidade do movimento que ia se tornando acelerado ou desacelerado. Comentário da vivência: Com uma aula de dança, iniciei o teste psicomotor com as crianças da oficina. Entretanto, uma dança sem estilo, sem padrão, criada por cada criança. Como professora, entrei na dança com elas e movimentava-me de acordo com os Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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sentimentos que a música ia provocando em meu corpo. As alunas ficaram mais seguras nessa brincadeira com minha presença, embora a reação do início tenha sido a de rirem do meu jeito de dançar6, mas depois cada uma começou a dançar livremente e entraram na mesma energia. A maioria fazia movimentos que pareciam do balé clássico. Outras procuravam desajeitadamente um movimento e algumas tentavam imitar a dança que eu executava freneticamente. No final da música, que era de percussão, estávamos devidamente aquecidas para darmos prosseguimento aos exercícios de acelerar e desacelerar o tempo do movimento, começando com passos normais, acelerando pouco a pouco até chegar à corrida. Em seguida a esse exercício bastante aeróbico, que deixava as alunas eufóricas e alegres, trabalhei a lateralidade, ou seja, um lado e o outro do corpo em movimento7. Por meio das palmas, controlava o tempo, dizia se o tempo era rápido ou lento, e também ditava o ritmo e o ordenava livre, contido ou sinuoso. A esse jogo, no segundo semestre, acrescentei o jogo um ponto perto, um ponto longe que auxiliava as crianças exercitarem suas cinesferas8, ou seja, expandindo o corpo como se buscasse o ponto mais longe no espaço e ao mesmo tempo encolhendo seu corpo, experimentando o ponto mais próximo do seu corpo. Essa imaginação era aguçada nas alunas com as palavras dentro e fora. No movimentar da cinesfera, quando um grupo estava perto do ponto central, o outro, afastava-se. Nesse vai e vem, pedia estátua a elas que imediatamente correspondiam à brincadeira. Começaram a perceber que havia uma variação no tempo do movimento que estavam praticando. E que, dependendo do exercício, o movimento se tornava gradualmente mais rápido ou mais devagar, ou seja, acelerado quando ficava cada vez mais rápido e desacelerado quando ficava cada vez mais lento. Nas práticas da segunda oficina, para a brincadeira de explorar o tempo do movimento, acrescentei à brincadeira usar palavras. O jogo consistia em dizê-las em diferentes velocidades. Lembro que a palavra socorro foi dita em diferentes velocidades e com isso variava a intenção de pronunciá-la. Como jogar com a cinesfera me pareceu ter sido para elas bem divertido, passei a perguntar quem lembra como fazia com seu corpo quando era bebê, ou quem já prestou atenção aos movimentos dos bebês, que podia ser um irmãozinho, ou vizinho? Logo uma aluna me disse: professora, meu irmãozinho é bem pequenininho e ele faz assim, olhe! Então, ela deitou-se ao chão encolhendo Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Procurava movimentar-me quebrando bem o corpo, meio sacudindo os seguimentos corporais, mostran¬dome desfocada enquanto uso do espaço, mas muitas vezes contida, pausada.
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Descobrindo a lateralidade não no sentido de direito e esquerdo do corpo, mas no sentido de troca de peso, de um lado e do outro, como um pêndulo, no sentido do movimento.
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Segundo Rangel (2005), cinesfera é a esfera dentro da qual acontece o movimento. Também é denominada Kinesfera (p.32). Cada agente tem sua própria cinesfera a qual se relaciona somente a ele. Essa esfera do espaço cerca o corpo, esteja ele em movimento ou em mobilidade. É delimitada pelo alcance dos mem¬bros e de outras partes do corpo do agente quando se esticam para longe do centro do corpo, em qualquer direção, a partir de um ponto de apoio (p.33).
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suas pernas, esticando e se desdobrando, imitando como os bebês se movimentam. Com essas imitações comecei a estimular a percepção de quando o bebê se movimenta. Essa brincadeira também servia para que com essa demonstração feita uma a uma (o bebê que ela tinha observado), as alunas que assistiam repetissem os mesmos movimentos. Acrescentado ao fator tempo a afinidade espacial, pedi que imitassem um bebê tentando andar e elas me mostraram o bebê que ia quase correndo para frente ou tentando andar para trás, mas que caia no chão. Esse movimento que passamos a chamá-lo bebê serviu para que compreendessem que quando crescem o movimento do bebê, (abriam e desdobravam o corpo) está tendo seu volume aumentado e que quando encolhido (fechando e dobrando), o volume é diminuído (FERNANDES, 2002). A partir desses exercícios, passei a insistir com os exercícios que as levassem a ter contato como o chão. Solicitei que as alunas deixassem seus corpos ainda no chão e que fossem se transformando na letra X e com isso, como diz Fernandes (2002,
p. 44), começaram a experienciar a respiração celular que consiste
exatamente no enchimento e esvaziamento corporais trazendo vida a todo corpo. O corpo vibra com a reverberação da respiração. Isso as fez sentir mais vigorosas, mais corajosas. Nas práticas sobre o tempo, considerei os exercícios imitando os bebês e as andadas como os mais flexíveis e criativos tanto para o meu aprendizado como professora como para o aprendizado de meus alunos no que diz respeito à percepção temporal. As variações advindas desses laboratórios de andadas e rolamentos eram muitas e a essas atrelei as brincadeiras de andar comandada pelo ombro. Nesse exercício, referi-me à questão da lateralidade (que em casa aprenderam que seria usar a mão direita ou a esquerda) e fazia com elas, comandadas por seus ombros, andassem para um lado e para o outro percebendo o peso de seus corpos. O mesmo acontecendo quando caminhavam para frente ou para trás no espaço, experienciando a ação de transferir o peso do corpo de um lado para o outro, descobrindo seus equilíbrios e desequilíbrios. Quando discutíamos no final das aulas, fazia questão de descobrir com elas, além de suas dificuldades de compreensão de praticar os exercícios, denominações para alguns desses exercícios, como no caso do imitando os movimentos dos bebês, ou do imitando o X que virou a estrela do mar. Compreendi que era muito importante fazer o exercício com a criança, mas associá-lo sempre a uma imagem. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Assim como também entendi que viravam exercícios/repertório se precisasse usá-los como parte de coreografia (as andadas, a estátua, os rolamentos, são exemplos desses). Com a imagem da estrela do mar na memória, as alunas começaram a perceber que o abdômen irradiava força para o corpo todo, ou seja, descobriram com essa brincadeira que a respiração irradiava as seis pontas de seus corpos, ajudando-as a perceber que essas seis pontas da estrela do mar são: duas mãos, dois pés, cabeça e cauda (FERNANDES, 2002 p. 45). Descobriram que quando faziam seus corpos de bolinha aproximavam a cabeça de seus cóccix e com isso ganhavam várias formas de velocidade ao se locomoverem, principalmente no nível baixo do espaço. Quando a aula sobre o tempo começava com uma dança/improvisada, na maioria das vezes, isso as estimulava para que, no final, também terminassem dançando. Essa dança sempre era de improviso, ou seja, sem combinar, algo inesperado e inacabado, vivendo o aqui e o agora da experiência. Geralmente iniciava com a dança do ombro. Tal dança fazia todo mundo pensar e deslocá-lo. Isso forçava sempre que andassem para frente ou para trás. A mesma coisa acontecia com a dança do pescoço. Era uma forma de aquecimento que usava no início das aulas para que as alunas fossem pensando em cada parte de seus corpos. Fazíamos muito a dança de fazer rotação com os punhos ou com os tornozelos, ou aquelas com uma perna só, alternando direita e esquerda. Depois passaram a praticar o jogo em pares. 2.6 Jogo vamos nos deslocar Objetivo: Propiciar que as alunas conheçam mais variedades de deslocamento no espaço, no tempo. Foco: O corpo como o todo (partes = cabeça, tronco, membros e superfície), ação corporal, ritmo, coordenação global, dinâmica geral. Descrição: Aquecimento (brincando de respirar com as vogais), seguido dos rolamentos até chegar à posição de pé. Andando pelo espaço, com um peso leve, ou firme, acelerando e desacelerando o tempo do movimento que dependendo da ação dos esforços, poderia ser quanto ao espaço direto, ou indireto, com uma fluência livre ou Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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controlada. Comentário da vivência: Denominei essas aulas deslocamento, pois, além de termos que nos deslocar espacialmente (mudamos de sala de aula para a caixa preta, ou Teatro Claudio Barradas), precisamos nos deslocar no tempo (passamos a ter aulas também no sábado). Solicitei mais uma vez a participação dos pais, pois como nossas aulas eram somente duas vezes na semana, senti necessidade de mais tempo para a prática dos exercícios com as crianças. Essas aulas começavam às 14h e terminavam às 18h, sempre aos sábados. Nas práticas das aulas de sábado, utilizei bastante o chão como elemento de um alto grau de importância para a percepção dos eixos corporais. Corpo no chão e trabalhando a respiração com sonorização foram exercícios fundamentais para que as crianças, por meio das vogais, pudessem brincar na tridimensionalidade do espaço até chegar no nível alto para iniciarem a realizar a sequência (I, E, A, O, U), levando cada respiração e o tato para os órgãos indicados. Muitas foram as brincadeiras surgidas com as ações do esforço. As alunas se faziam de pássaros e passeavam pela sala combinado seu corpo com a palavra flutuante, bem como brincando de imitar o pulo do sapo que era feito de uma maneira tão enérgica que muitas vezes fui capaz de perceber como pareciam presas no chão e de repente leves no espaço. O interessante do exercício era que cada uma das alunas era o sapo que tinha escolhido ser. Para o deslize do corpo, as alunas experimentaram a cobra e para se chacoalhar as alunas imaginaram limpar uma casa usando o espanador como objeto imaginário para tal limpeza. Falavam que era assim que suas mães faziam. Assim, a cada sábado, colocava uma ação nova de esforço como pressionar e socar e, passo a passo, fui conseguindo que as alunas misturassem suas ações de esforço e começassem a aproveitar as sequências que uniam à coreografia. Primeiro pedi que misturassem suas ações em pares, depois em trio e assim fui criando comigo as sequências coreográficas que denominei
As junianas e suas
brincadeiras. O jogo do deslocamento, além de ter se colocado como um elemento da composição coreográfica fundamental para a montagem coreográfica, também trabalhou o ritmo, a coordenação global, a dinâmica geral, bem como ajudou para o entendimento da estruturação da coreografia. Com a prática do exercício passamos a Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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alertar as alunas sobre o que era um espaço vazio, ou do cuidado que deveriam ter para não atropelarem a vez da colega, na dança, mas conseguissem se comunicar harmonicamente no espaço com as brincadeiras. Esse jogo nos deslocou também em direção à sala de objetos cênicos, que chamamos a caixa preta, e possibilitou que as alunas pudessem conhecer nossa sala de brinquedos que denominei a sala das ilusões. Ali estavam guardados cenários, objetos cênicos, bem como vestuário que sempre eram reutilizados em outras peças de teatro ou de dança. Eu e minhas alunas, num dos sábados, passamos a escolher o que dali poderia fazer parte do cenário da coreografia As junianas e suas brincadeiras. Conseguimos para compor nosso cenário: duas cadeiras, tecidos e restos de fitas coloridas. Também as meninas escolheram colher de pau, panelas e algumas bonecas de pano que por ali se encontravam. Esses objetos conseguidos na sala preta, ou das ilusões foram utilizados em nossas aulas como obstáculos para as andadas no espaço. Afinal, se eram objetos que iriam participar da coreografia, as alunas precisavam conhecê-los melhor e, dessa forma, descobrir por elas mesmas como utilizá-los, mas principalmente como superálos como obstáculo. As cadeiras ora ficavam deitadas no espaço, ora eram colocadas de outra forma. As alunas, às vezes, passavam por cima das cadeiras, outras vezes sentavam nelas, giravam em torno. Deslocamo-nos também no sentido musical, pois como apresentaríamos nossa coreografia, num projeto denominado Feira Junina da ETDUFPA, passamos a ouvir músicas da época e, assim, também escolhemos juntas a música que faria parte da coreografia. Como o tempo de sábado era bastante longo para nossos encontros (passávamos a tarde toda juntas), terminávamos sempre as aulas em círculo com as alunas cantando trechos de músicas que lhes trouxessem uma lembrança. O jogo de cantar uma música que lhe traga uma recordação iniciava no momento em que eu tocava em uma aluna que deveria começar a jogar. Também todas deveriam manter os olhos fechados e assim iam cantando a música que era escolhida por elas, mediante um acontecimento que poderia ser: lembranças de suas casas, situações vividas nas escolas, seja o que fosse, mas que tivesse um significado, que representasse algo para elas, algo significante para suas vidas, algo que tocassem seus âmagos. Percebi que iniciava a ler aqueles corpos.
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2.7 Jogo identificação de objetos Objetivo: Estimular a sensibilidade do tato, descobrindo com os olhos fechados qual é o objeto apresentado. Foco: Forma, textura e cor do objeto. Descrição: Alunas ordenam-se em pé e em círculo. Uma delas é chamada para o centro, onde fica com as mãos para trás, de olhos vendados. A coordenadora põe um objeto real na mão da jogadora. Usando apenas o sentido do tato, a jogadora deve identificar o objeto. Quando a jogadora identificar o objeto, pode olhar para ele. Então outra jogadora é chamada para o centro e recebe um novo objeto para identificar. Comentário da vivência:
O jogo, além de ter divertido imensamente a nós todas, deu oportunidade para que as alunas vivenciassem mais os brinquedos que fariam parte da coreografia. Dessa vez, fui eu quem trouxe para elas os brinquedos que pensava em oferecer para imaginarem comigo a coreografia. No dia da aula, deixei para entrar em sala quando elas e minhas alunas/assistentes já estivessem presentes. Quando abri a porta e dei um passo para dentro da sala de aula, todas as alunas grandes e pequenas correram em minha direção para saber que saco era aquele (lembrava o de papai Noel) que eu estava trazendo. Era uma surpresa, mas também uma brincadeira. No saco, sem que elas soubessem, trazia mastros com fita (que lembravam os mastros carregados pelos brincantes do boi-bumbá), duas marionetes que eram do boi-bumbá, um saco com folhas secas de uma árvore da rua, cestos de palha enfeitados com fitas, asas de anjos (aquelas que usam no Círio de Nazaré, no carro dos milagres), rosas de várias cores de papel crepom. Dentro do saco havia onze objetos relacionados com a coreografia As junianas e suas brincadeiras, mas nenhuma delas sabia que objetos eram aqueles. Quando dava o objeto na mão da aluna que vinha até o centro eu perguntava: para que serve este objeto? Qual é a sua cor? Principalmente quando percebia que a aluna estava perdida ao descrever o objeto, tateando. Spolin (2010) diz que embora seus jogos estejam dispostos em seu fichário em sequência, podem ser usados de forma flexível quando se trata de necessidades instrucionais específicas. No caso, utilizei o Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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jogo em questão porque acreditei que iria ajudar as crianças entenderem o que era a coreografia (o que queríamos contar), o que era a quadrilha (que tipo de dança), sua origem e como era organizada e executada em Belém do Pará. Nesse dia, as alunas tiveram outra surpresa. Duas mães se organizaram (sem que as filhas soubessem) e providenciaram os vestidos para a quadrilha. Dessa maneira, fiquei sabendo que todas já haviam participado de festa de São João e de quadrilha. Terminamos a aula numa dança de São João, com as meninas vestidas com vestidos caipiras e experimentando os objetos selecionados. Foto 4 - Meninas escolhendo objetos cênicos para a coreografia As Junianas e suas brincadeiras
Fonte : Fotografia da autora, 2003.
2.8 Jogo das historinhas sem palavras Objetivo: Estimular o uso do gestual, prescindindo da palavra para contar uma história. Foco: Forma de comunicação. Descrição: Alunas em círculo. Uma aluna vai ao centro e forma um gestual e fica parada (estátua) para que as outras que estão no círculo possam imaginar o que aquela aluna está dizendo com aquela pose. De interpretação à interpretação, as alunas vão se Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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unindo e, finalmente, quando todas estão em cena, termina o jogo para começar novamente acrescentando-se novas propostas. Comentário da vivência: O jogo das historinhas sem palavras era um jogo que acontecia para finalizar a aula. O exercício consistia em um círculo em que uma aluna voluntária ia até ao centro e mostrava com movimentos como estava sentindo seu corpo naquele momento que acabava de ser despertado pelos exercícios praticados. Queria que as alunas pensassem seus corpos integralmente, como um todo, mas também como partes. Nesse jogo, utilizava também objetos cênicos. Às vezes, pendurava um tecido no teto e pedia a elas que fizessem uma historinha sem palavras, mas incluindo o objeto cênico. Em algumas vezes esses exercícios eram feitos com a aluna que ia até o centro da cena e contava sem falar como estava se sentindo naquele momento. As outras que estavam no círculo observavam o que a do centro fazia inclusive aqueles movimentos que fazemos, mas não temos consciência de que fazemos. Quem olha vê, quem faz não percebe. Com a prática dessa brincadeira, essa percepção foi se tornando mais aguçada e isso nos ajudou muito na montagem da peça do final do ano. Interessava-me que observassem o que a aluna no centro estava dizendo com seu corpo e que depois de compreendido repetissem juntas com o criador do movimento inicial. Esse exercício permitia que elas tomassem decisão e, por isso, tomava cuidado no início para que elas pensassem no espaço e pudessem diversificar os níveis do espaço quando contavam a história. No primeiro semestre, faziam pouca variação no espaço, ou faziam quase tudo no nível alto, ou uma ou outra aluna ariscava-se a experimentar seu corpo no nível médio do espaço. No segundo semestre, utilizei o jogo em quase todas as aulas. Para que se movimentassem, precisavam aumentar a suas capacidades de percepção no sentido de descobrirem seu espaço pessoal e, consequentemente, descobrissem o espaço individual dos outros. Tinha necessidade que elas se conectassem. Foi um jogo importante no desenvolvimento da concentração das alunas, pois praticando-o terminavam pensando em seu corpo enquanto que os outros que olhavam se deliciavam com a expressividade do que estava no centro do círculo, tendo que em seguida repetir o movimento imitando inclusive a expressividade do modelo. Era um jogo muito divertido e as alunas adoravam fazê-lo. Todas queriam experimentar, dizer alguma coisa com seu corpo. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Foto 5 - Aluna contando uma História sem palávras com auxílio doobjeto cênico
Fonte : Fotografia da autora, 2003.
2.9 Jogo do olho no corpo Objetivo: Propiciar às alunas nova forma de mover seus corpos no espaço e tempo. Foco: Segmento corporal, eixo corporal, equilíbrio. Descrição: O grupo todo coloca um olho no lugar em que o coordenador mandar colocar, ou seja, mão, pés, pernas, braços, ombro, sola do pé, costas, abdômen, cabeça. O aluno começa a olhar o espaço com esse olho e pode ser colocado em qualquer parte do seu corpo. Comentário da vivência: No exercício o aquecimento começava pelo chão, seguido das andadas até chegar num ponto em que todo o grupo parava. Cada um no lugar que escolhia no espaço. O exercício iniciava-se a partir da voz de comando a mover-se pela sala sendo levado por um olho que queria ver tudo o que tinha na sala de aula. Olho esse Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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que impulsionava o aluno a experimentar, a mover seu corpo em todos os níveis do espaço até que ouvissem a palavra troca. Esse exercício possibilitou melhorar o equilíbrio das alunas, pois dependendo de onde era colocado o olho, exigia que elas mantivessem mais concentração para a realização da tarefa. Ao longo dessa prática, passei a usar a música e deixei que as alunas livremente colocassem o olho no lugar que elas escolhessem. Dessa forma, passei a integrar o grupo. A maior dificuldade acontecia quando colocava o olho na pélvis, como também centralizado na nuca. As próprias alunas decidiram ver com o olho o corpo do outro e, dessa forma, terminaram trabalhando individualmente, em dupla e coletivamente. O exercício permitiu que as alunas se aproximassem mais umas das outras e também auxiliou as mais tímidas a entrarem no jogo, bem como visualizassem de forma variada o espaço. Dessa forma, pude dizer a elas que o corpo quando adquire uma posição está olhando para todos os lados do espaço e, quando dançamos, não devemos esquecer que o corpo tem olhos para todas as direções do espaço. Por isso, deve ser expressivo em todas as direções. Todavia, com tensões e intenções diferentes. 2.10 Jogo o animal que sou Objetivo: Propiciar ao aluno observar movimento, ritmo e características físicas reais dos animais. Foco: Ritmo corporal, expressão facial e som vocal de seu animal. Descrição: O grupo todo, se possível, deve ser levado ao zoológico ou fazenda para observar o movimento, ritmo e características físicas reais dos animais – o osso e as estruturas raciais são tão importantes como observação quanto ao mais óbvio movimento. Dessa forma, os alunos terão uma impressão real para recapturar e não simplesmente observar uma figura de um livro. A generalização deve ser evitada para que o exercício tenha valor. Separadamente cada aluna decide qual animal vai retratar. As alunas não precisam discutir sua escolha entre si. Cada aluna deve assumir exatamente as qualidades físicas de seu animal e mover-se peço espaço da sala de aula. As alunas devem ser relaxadas para poderem observar os animais com Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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tranquilidade. Quando as alunas tiverem se entregado totalmente para as qualidades do animal e tiverem captado novos ritmos corporais, peça que façam os sons desses animais. Continuar a instrução até que tenham desaparecido as resistências, e sons e movimentos corporais estejam integrados. Comentário da vivência: O jogo foi bastante curtido pelas alunas. Como no primeiro semestre de 2003, no segundo, continuamos com os encontros extraclasse (professor, pais e alunos). Decidimos nos deslocar para fazermos o jogo. Várias foram as tardes em que visitamos o Parque Zoobotânico, do Museu Paraense Emílio Goeldi, com as crianças da oficina. Foto 6 – Visita ao Parque Zoobotânico
Fonte: Fotografia da autora, 2003.
Geralmente, quando ia me deslocar para fora da escola, pedia que pelo menos duas mães nos acompanhassem. Assim, podíamos dividir com elas o cuidado com o deslocamento das crianças, embora o local visitado ficasse a poucos passos da escola de dança. Praticamente só precisávamos atravessar a rua para estarmos no parque. Entretanto, dias antes da visita, precisava oficializar junto à escola e junto ao parque a realização do laboratório que iniciava por uma Solicitação de Visitação. Nessa Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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solicitação, deveriam constar o nome da escola visitante, nomes dos alunos e dos professores e responsáveis envolvidos. Deveriam ser especificado o horário, visto que as visitações eram feitas de acordo com o regulamentado. Nos dias de sair da escola organizava com as mães o que as crianças deveriam trazer de casa para que pudéssemos permanecer no local (no Museu) durante um horário prolongado na tarde do dia escolhido. Preparadas, saíamos com as crianças rumo ao parque. Solicitava que as mães as ajudassem a se colocar em fila indiana. Dessa forma, os adultos ali presentes (eu, uma de minhas alunas assistentes e duas mães) portávamos as alunas para aventurarem-se naquela reserva que, além de conter um acervo indígena valiosíssimo, oferecia a apreciação de animais. Eu tomava todo cuidado para que nada fora do esquema traçado viesse a acontecer com as crianças na trajetória. Organizei e entreguei às duas mães, que se ofereceram para colaborar nesta investigação, uma ficha na qual constaria como as alunas deveriam fazer suas averiguações a partir do animal escolhido. As alunas ficavam horas observando os animais. A maioria escolheu os pássaros, levinhos e flutuantes com seus andares quicados, saltitantes e rápidos [serelepes]. Outras observaram a onça, principalmente a pantera negra, que fazia com que gritassem quando esta chegava perto da jaula e rosnava mais ferozmente que um gato, fazendo com que as crianças e o público recuassem. O animal parecia enfurecido e andava de um lado para outro sem parar. Às vezes, parava, mas logo em seguida levantava e demonstrava-se irritado com as visitas. Uma aluna que fez a mesma observação, no caso da onça, disse-nos: “sabe o que é tia? É que a onça não gosta de todo mundo olhando para ela. Acho que ela gostaria de ficar na selva e não presa naquela gaiola”. Ficaram apaixonadas pelos macacos, mas se divertiram muito com as lontras (que pareciam muito alegres mergulhando de quando em quando na água, sem falar nas araras, no tatu, no tamanduá (que levava horas para se locomover de um lugar para outro com suas pernas tortas e unhas imensas). Na aula seguinte, pedi que mostrassem em círculo, em sala de aula, que animal havia escolhido. Como tinham incorporado em seus corpos as características e o som que o animal fazia, solicitei que pensassem como esses movimentos que elas haviam selecionado poderiam virar uma dança. Falando assim consegui que uma aluna experimentasse o animal da outra e fosse criando movimentos em que, ao longo do treinamento, viraram sequências para seus aquecimentos,antes que começassem os jogos teatrais. As observações feitas no zoológico com os animais serviram para que Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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tomassem consciências das diferenças. Começaram com as dos animais e terminaram descobrindo suas próprias. Isso surgia quando trabalhavam em pares. Começaram a perceber que também fisicamente eram diferentes, inclusive o modo de andar. Umas andavam mais sacudindo os braços para frente e para trás, outras moviam lateralmente. Percebi também que nas aulas de dança, quando praticadas com a música, cada uma achava seu ritmo e modo se movimentar. Iniciamos, dessa maneira, a discussão sobre individualidade e diferenças. Foto 7 - Meninas praticando O jogo do animal que sou em sala de aula da ETDUFPA
Fonte: Fotografia da autora, 2003.
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS (IN)CONCLUSÕES Terminar é o mais difícil de tudo, mas, mesmo assim, e a desistência que proporciona a única experiência verdadeira de liberdade. Então o fim, torna-se mais uma vez o começo e a vida tem mais uma palavra. Peter Brook
Com o Processo Jogo/Dança foi iniciado com as alunas um processo para a preparação do imprevisto, pois nas cenas da dança em questão tiveram que resolver muitas situações que surgiram na hora da apresentação que não haviam combinado, como foi o caso de espalhar folhas pelo chão da cena, improvisando o caminho que atravessariam o espaço e assim surgiu: o serpentiado em linha reta, em giros, quebrado, ou feito em zig-zag. Sabe-se que foi possível a improvisação porque aquelas alunas estavam com seus corpos livres, respirando, fluindo, em que a atenção está presente, pois um corpo tenso não escuta e não olha. Serviram, também, para que eu compreendesse que um professor não se faz apenas de conhecimento de conteúdo. Há necessidade principalmente de amor e é preciso que sejamos sensíveis na forma de transmiti-lo, para que, como diz Melo (1997, p. 64), “o processo educacional seja vivido com base de competência, responsabilidade, respeito e satisfação”. A partir deste estudo com crianças, passei a experimentar o Processo Jogo/Dança com alunos adolescentes e adultos e a defender que o fenômeno da ludicidade foca a experiência como uma experiência interna do sujeito que a vivencia.
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KAIL, Michèle. Aquisição de linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. 118p. Tradução de Márcio Marcionilo. Resenha de: PERINI-SANTOS, P. Aquisição de linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
1 INTRODUÇÃO A Introdução apresenta conceitos básicos. Kail reafirma que a linguagem é habilidade exclusiva à espécie humana, que as etapas de sua maturação acompanham o desenvolvimento do cérebro e que por volta dos 4 anos as crianças dominam as estruturas básicas da língua materna. A autora também faz alusão à dicotomia inato vs. adquirido que, segundo ela, persiste na agenda de debates por falta de bons testes sobre a relação entre a genética e o meio-ambiente. É também na Introdução que são esquematicamente expostos os métodos de pesquisa sobre a aquisição da linguagem hoje em curso. A autora os separa em 4 grupos: (1) Percepção Precoce da Linguagem, (2) Métodos de Estudo da Percepção da Linguagem, (3) Métodos de Estudo da Produção da Linguagem e (4) Produção Induzida em Situação Experimental. Cada exposição metodológica é acompanhada por notas de pé-de-página que remetem a artigos publicados em revistas especializadas. Vejamos. As práticas de pesquisa do grupo (1) “Percepção Precoce da Linguagem” são: a) reatividade cardíaca fetal − experimentos sobre o processamento dos sons de bebês dos últimos 3 meses de gestação até o nascimento. São monitoradas as reações cardíacas do feto diante da exposição à “mudança de sons por meio de um altofalante colocado sobre a barriga da mãe” (p. 14); b) sucção de alta amplitude − este método é aplicado em crianças com até 4 meses. A variação do número de sucções não-nutritivas indicam “a capacidade de discriminação auditiva por parte do recém-nascido” (p. 15) ; c) rotação da cabeça − observa-se a reação de rotação da cabeça da criança diante de sons costumeiros ou novos; método próprio para crianças a partir do quarto mês. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
Aquisição de Linguagem de Michèle Kail é uma boa indicação de leitura para graduandos e graduandas em Letras, Pedagogia e Fonoaudiologia. Em um texto muito denso, a autora discorre sobre um tema central para profissionais das áreas da linguagem e da educação que é ainda tratado de forma tímida pela universidade brasileira. Apresentarei o livro seguindo a ordem dos capítulos e subcapítulos que o compõem. 139
Resenha: Aquisição de linguagem - Michele Kail
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Em (2) “Métodos de Estudo da Percepção da Linguagem”, o livro elenca as seguintes técnicas: a) técnica de mímica das ações − técnica aplicada a crianças com mais de dois anos. Observa-se o que fazem os infantes com os objetos a eles disponibilizados depois de escutarem uma frase; b) técnica de apontar imagens − os informantes devem indicar a imagem que corresponde à ação narrada; c) técnica intermodal da fixação preferencial do olhar − observa-se se a direção da atenção da criança que escuta um enunciado e vê diferentes imagens em telas distintas é coerente; d) técnica looking while listening − procedimento experimental com objetivo semelhante ao anterior. Gravam-se os movimentos oculares da criança investigada. As crianças que “têm vocabulário mais extenso e capacidades de memorização mais extensas” são mais rápidas na associação entre enunciado e imagem (p. 18) ; e) técnica eye tracking − acompanha os movimentos oculares das crianças durante a escuta de enunciados; f) métodos de imageamento cerebral: os exames de Ressonância Magnética e de Tomografia por Emissão de Prótons dão acesso à dinâmica sináptica e sanguínea do cérebro. Essa forma de pesquisa por meio de exames é valiosa porque, além de indicar o timing do processamento da linguagem, é marcante “para o estudo do conjunto das funções cognitivas” (p. 19). Sobre os (3) “Métodos de Estudo da Produção da Linguagem”, a autora alude ao fato de hoje ser possível gravar, armazenar, processar e transferir dados por meio dos recursos da informática. Dois procedimentos metodológicos são apresentados: a) análise de corpus: CHILDES (Child Language Data Exchage System) − os estudos de corpora infantis tiveram início nos anos 1980 com os trabalhos de Brian MacWhintney e Catherine Snow. São apresentadas duas formas de pesquisa: a longitudinal, que “corresponde à evolução da linguagem de uma mesma criança [...] em um longo período de tempo” (p. 21), e a transversal, que é feita com grupos de crianças de diferentes perfis. Nos dois casos a coleta de dados é feita em situações de uso espontâneo. Os dados coletados são anotados e etiquetados de Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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acordo com protocolos internacionais; o que permite o intercâmbio entre pesquisadores de diferentes línguas; b) questionários parentais e estudos normativos: CDI (Communicative Development Inventory) − procedimento complementar ao anterior. Através de questionários fechados, os pais indicam quais são os itens lexicais usados pelos filhos. Os dados são distribuídos em categorias lexicais e semânticas. A última seção da Introdução traz comentários sobre as limitações dos estudos com a (4) “Produção da Linguagem em Situação Experimental com Crianças”. A autora relata que é “muito difícil operacionalizar antes dos 3 anos a produção induzida” (p. 23). 2 PRIMEIRO CAPÍTULO: DOS SONS ÀS PALAVRAS Este capítulo relata como ocorre a aprendizagem da percepção e da produção linguística. 2.1 Sobre a percepção precoce Entre o primeiro e o quarto mês, os bebês discriminam a diferença entre algumas categorias fonêmicas básicas, como (ba/pa). Aos 6 meses, reconhecem contrastes sonoros que não acontecem em sua língua materna. Dois meses mais tarde, esses contrastes já não serão mais percebidos. A etapa seguinte concerne à percepção dos índices prosódicos. Essa capacidade dita fonotática integra a descoberta dos limites das palavras. Por volta dos 9 meses, os bebês se servem da prosódia para demarcar os limites entre as proposições frasais e com 18 meses estão habilitados a reconhecer os constituintes sintáticos básicos. 2.2 Sobre a produção precoce O balbucio de sílabas simples, constituídas por sequências consoantes oclusivas labiais e vogais neutras, acontece entre o sexto e o nono mês. As primeiras palavras começam a ser produzidas entre o primeiro e o segundo ano. Predominam as formas foneticamente simples ou simplificadas, como “quiido” no lugar de “querido” e ”chola” no lugar de “chora”. Entre o 12o e 36o meses, ocorre uma “explosão lexical”. Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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A evolução do número de palavras produzidas tem as seguintes médias: 30 aos 14 meses; 60 aos 15; 175 aos 20, e 530 aos 30 meses. Nessa etapa há uma defasagem entre o número de palavras produzidas pelos bebês; o que faz com que os gestos das crianças desempenhem papel marcante em sua comunicação. Ainda neste capítulo, Aquisição da Linguagem discorre sobre a estrutura do léxico infantil. De forma esquemática, as categorias propostas são: a) desenvolvimento das classes de palavras − segundo dados obtidos através de CDI, com idade entre 18 e 20 meses, predomina o uso de nomes: 60% das palavras são substantivos, seguidos por verbos e adjetivos, com 15%, e 5% são itens gramaticais; b) estruturação do léxico e variabilidade interlínguas − apesar de se aludir a um esquema “supostamente universal”, notam-se valores diferentes entre os idiomas: junto às crianças inglesas com 30 meses, as formas mais frequentes são nominais; na língua coreana prevalece o uso das formas verbais; c) estruturação do léxico e variabilidade de estilo de aquisição − a autora cita duas dicotomias nos estilos da aprendizagem:
Estilo referencial, com maior uso de nomes de objetos e substantivos comuns vs. expressivo, com maior variação lexical e uso de expressões fixas e dêiticos;
Estilo analítico, caracterizado pela ocorrência de “unidades linguísticas de tamanho menor, segmentadas com exatidão” vs. holístico, quando prevalecem “unidades mais extensas e pouco analisadas” (p. 40).
(b) Implicações das diferenças individuais no desenvolvimento − médias à parte, pode haver discrepâncias individuais na produção e na compreensão de itens lexicais. Há casos de crianças que compreendem 200 palavras, mas não produzem nenhuma. Ainda neste primeiro capítulo, é considerada a relação entre os significantes e os significados. Analisa-se como a criança lida com a intensão e a extensão dos termos usados. Um infante pode usar a palavra “bola” para se referir ao objeto que reconhece ou para expressar seu desejo ter acesso a um deles; pode usar “carro” para se referir ao automóvel de uso particular da família ou a um caminhão, que tem traços comuns com o veículo citado. Sobre o desenvolvimento lexical da criança, Kail considera Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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alguns aspectos explicativos: a) princípio do contraste ou da exclusividade mútua − um mesmo objeto não pode ter dois nomes. Uma palavra nova tem sentido se e somente se essa nomear um objeto novo para a criança. Assim, a maçaneta de uma porta será nomeada como tal quando a criança reconhecer que a “maçaneta” é uma parte da porta e não a porta ela mesma; b) teoria dos protótipos − há três níveis categoriais a serem considerados, o superordenado, o básico e o subordinado: animais > aves > pardais. A aprendizagem lexical parece ocorrer prioritariamente a partir do primeiro ou do segundo nível nominativo; c) esquemas de acontecimentos − processo semelhante, os nomes dados às práticas cotidianas das crianças partem de formas mais genéricas para formas mais específicas; d) LDC (Linguagem Dirigida à Criança) ou o papel do input no desenvolvimento do léxico − há aqueles que frisam o papel central das trocas linguísticas entre mãe e filhos e outros que sustentam ser secundária a influência desses diálogos no desenvolvimento lexical infantil, legando maior importância às trocas poliádicas, i.e., com outros interlocutores. 3
SEGUNDO
CAPÍTULO:
DA
EMERGÊNCIA
DA
SINTAXE
ÀS
CONSTRUÇÕES GRAMATICAIS O primeiro elemento da sintaxe infantil diz respeito à morfologia. Sua aprendizagem tem início no decorrer do segundo ano e se baseia na observação entonacional e funcional. A autora organiza sua apresentação sobre a aquisição da sintaxe em três tópicos: (1) Abordagens Teóricas da Aquisição da Linguagem, (2) Primeiros Marcos da Aquisição da Linguagem e (3) Emergência e Interpretação da Frase Simples. No tópico (1) “Abordagens Teóricas da Aquisição da Linguagem” são contrapostos projetos teóricos antagônicos. De um lado, tem-se a proposta inatista, marcada pelas ideias chomskiana e, de outro, estão “concepções variadas que enfatizam a interação entre a aprendizagem da linguagem e as restrições biológicas e sociais” (p. 50). Vejamos de forma esquemática o que apresenta a autora:
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a) Abordagens estruturais − a gramática universal: desde seu inicio nos anos 1960, a proposta inatista não sofreu muitas mudanças em seus postulados a seguir listados:
É possível gerar um volume infinito de frases a partir de um conjunto finito de morfemas e palavras;
A quantidade de input que recebe a criança é ínfimo diante da produção linguística que essa é capaz de gerar; a esse postulado dá-se a alcunha de “argumento da pobreza de estímulo”;
As frases geradas podem ser “encaixadas” dentro de outras; isso permite a construção de frases hipotéticas de tamanho infinito;
Essa habilidade é inata – universal, portanto – e não é afetada pelo ambiente linguístico ou por razões exógenas. As diferenças existentes entre as línguas são parametrizadas dentro de um espectro de princípios, que são as combinações morfossintáticas potenciais em uma dada língua.
b) Abordagens estruturais − as teorias do bootstrapping: a exposição linguística “fornece pontes de acesso a outros níveis de organização linguística” (p. 54). A descoberta de valores semânticos, sintáticos, prosódicos e morfológicos ocorre de forma integrada. Ou seja, as crianças fazem associações entre a sintaxe, a semântica, a morfologia e os ambientes sentenciais e prosódicos vividos por elas; c) Abordagens funcionalistas − questiona-se o inatismo. A gramática é aprendida no decorrer de um processo gradual e complexo de amadurecimento. O meioambiente, o corpo e a cognição são elementos que orquestram a evolução do desempenho linguístico. Para Dan Slobin (1977), existe uma gramática básica infantil. As funções de agente, instrumento e paciente, por exemplo, são constantes nas línguas, porque fazem parte de um repertório cognitivo comum a todos falantes. As especificidades da forma e da operacionalidade das expressões são aprendidas no decorrer de suas experiências linguísticas de acordo com vários princípios, como por exemplo:
A atenção à ordem das palavras: a primeira interpretação infantil de sentenças OVS (voz passiva) do português reconhece a ordem canônica SVO (voz ativa);
A atenção ao final das palavras: nas línguas em que prevalecem as formas
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prefixais nas composições mórficas, presta-se mais atenção aos sufixos prepostos. Por oposição, crianças que falam línguas que tendem à posposição sufixal ficam mais atentas ao final das palavras;
O Modelo de Competição (MC): as variações estatísticas do input fazem parte do desenvolvimento das línguas; o MC aplica-se a crianças e a adultos.
Esses e outros elementos interativos, que fazem parte da abordagem funcionalista, rementem à ideia das gramáticas das línguas serem construções. De forma progressiva, a criança molda a sua gramática, que nada tem de inata. As ditas “regras gramaticais” não são regras; são práticas que se estabelecem com o passar do tempo e experiência comunicativa. Parte-se da aplicação de “regras” provisórias autorizadas pelo uso comunicativo e chega-se às formas regulares do idioma em uso. As crianças escutam e falam “eu caí”, “eu saí”, “eu comi” e, por inferência, falam “eu fazi”. Essa forma irregular será substituída pela idiossincrasia “eu fiz” porque a primeira formulação não é autorizada pelo uso ao seu redor. No subcapítulo (2) “Primeiros Marcos da Aquisição Sintática”, Kail discorre sobre a metodologia de pesquisa aplicada à percepção e à produção linguística. Entre os trabalhos apresentados, destaca-se a noção de Mean Lenght Utterance (MLU) de Roger Brown (1973). Vejamos o que é a MLU. Na sentença “Tu comes bananas”, a MLU tem valor 5: são 3 palavras e 2 marcações mórficas em “s”: uma verbal e uma nominal. Em “Tu só comes bananas amarelas maduras”, a MLU é 9: são 5 palavras, 1 marcação verbal e 3 marcações nominais. A amplitude da MLU varia de acordo com o estágio de aprendizagem. Com idade entre 12 e 26 meses, as crianças estão no estágio 1, cuja MLU varia entre 1 e 2. Até o estágio 5, entre 41 e 46 meses, a MLU corresponde à variação média de 3,5 a 4,5. Apesar de reconhecer pertinência na proposta, o livro reverbera críticas a ela feitas que ressaltam a impossibilidade de sua aplicação comparativa interlínguas dada a variedade tipológica dos idiomas. O tópico (3) “Emergência e Interpretação da Frase Simples a Partir dos 2 anos” assume novamente como base teórico-descritiva a obra de Slobin (1985). O pesquisador refuta a ideia de haver uma fórmula sintática de base. As primeiras frases infantis são expressões sentenciais construídas a partir do repertório sintático da língua usada pela criança e por seus próximos. O mesmo raciocínio vale para a interpretação emergente dos novos falantes. O Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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que conta é a interpretação dos índices próprios a cada língua: “Para os falantes do inglês, a ordem das palavras é um índice (...) dominante, assim como o é a preposição acusativa (...) em espanhol e em hebraico” (p. 69). Dito de outra forma, não se aprende a sintaxe simplesmente, mas aprende-se a reconhecer e a interpretar os traços próprios à organização sintática de cada língua. 4 TERCEIRO CAPÍTULO:
CAPACIDADES
CONVERSACIONAIS
E
DISCURSIVAS DA CRIANÇA “Adquirir a linguagem consiste, para a criança, em aprender e em pôr em ato as unidades essenciais de sua língua materna” (p. 75). Não é apenas o conhecimento das peças da linguagem que caracteriza a habilidade linguística. As crianças aprendem a se comunicar em situações sociais com os intuitos de pedir algo, de chamar a atenção, de argumentar, de manter a conversa e de fazer um relato. Ou seja, a criança desenvolve a competência pragmática discursiva. Sobre o amadurecimento pragmático, são propostas três seções: (1) Contextos Sociocomunicativos da Aquisição Precoce, (2) Desen-volvimento da Pragmática dos Enunciados e (3) Desenvolvimento das Atividades Discursivas. O primeiro tópico (1) “Contextos Sociodiscursivos da Aquisição Precoce” faz referência às respostas geneticamente programadas que permitem as interações primitivas. O recém-nascido “reconhece” a voz e o cheiro da mãe e se mostra sensível aos rostos humanos “para os quais se volta espontaneamente” (p. 77). A partir do primeiro ano já se nota o uso da “sinalização dual”, i.e., a criança associa gestos e olhares que indicam sua percepção de objetos com a demanda de atenção em um movimento comunicativo. Sobre as primeiras formas de comunicação, a autora discorre sobre quatro aspectos: a) atenção conjunta: olhar e apontar − a atenção conjunta entre a criança e a mãe é um dos precursores centrais da aquisição da linguagem. O bebê olha (e aponta) para um objeto que também está na mira do olhar da mãe. Entre os 9 e 12 meses, a criança começa a procurar o objeto para o qual a mãe olha e ou aponta. A partir dos dois anos, a criança passa a produzir sons e gestos dirigidos a um objeto ou a um acontecimento. “Vários estudos” – a autora refere-se a Michael Tomasello (1986) – “demonstram que as crianças mais frequentemente envolvidas em episódios de atenção conjunta adquirem seu Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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vocabulário mais rapidamente” (p. 78) ; b) tomada de Turno − a alternância entre fala e silêncio entre mãe e bebê tem início no terceiro mês. Posto que essa forma de troca de turno ocorre também entre crianças e pais surdos, indica-se que o reconhecimento do momento de fala deve-se ao reconhecimento visual; c) formatos de Interação − ao falar sobre a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), Lev Vygostky (2008) afirma que o significado das palavras não é “imutável”, ou seja, o que intenta dizer uma criança pode ser a mesma coisa que pensaria um adulto diante a mesma palavra. Quando o infante diz “banana”, isso pode significar o reconhecimento da fruta, o desejo de comê-la ou pode remeter a alguma outra situação associada ao som ou ao alimento (essa visão interacionista também é cara para Jerome Bruner) ; d) retomada Imitativas e Interpretações − ao contrário do que se pensa, é a mãe que imita os sons da criança. O bebê imita os gestos e expressões faciais. As retomadas imitativas infantis tomam dimensão linguística a partir do segundo ano. Essa relação de troca tem caráter recíproco, é parte integrante da Linguagem Dirigida à Criança (LDC) e influencia a aquisição lexical. Na seção (2) “Desenvolvimento da Pragmática dos Enunciados”, discorre-se sobre o uso social da linguagem. A autora ressalta que limitação do espaço destinado ao tema justificando a escolha de apenas dois tópicos a serem examinados. Ressalta também que essa escolha levou em conta o fato de esses estudos se servirem “de ampla base de dados experimentais”(p. 82). a) Processamento das pressuposições na criança − a discussão aqui proposta ecoa a controvérsia que difere as pressuposições lógicas e as pressuposições pragmáticas. Sobre os períodos precoces da aquisição fala-se em dois aspectos:
A psicogênese das pressuposições psicológicas: são consideradas a etapas piagetianas do desenvolvimento. No período sensório-motor, entre zero e 18 meses, a criança reconhece um elemento como figura − o objeto que lhe chama mais a atenção − e pressupõe como o fundo a situação na qual este se encaixa. No período pré-operatório, dos 18 meses aos 4 anos, já são feitas suposições sobre o falante, sobre o ouvinte e sobre o momento e a situação do enunciado. Aqui a criança percebe que foi alguém que falou algo em determinada situação. Na etapa das operações concretas, entre os
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4 e os 7 anos, a criança ‘pensa antes de falar’ e pode escolher “quais aspectos da mensagem devem ser modificados ou suspensos” (p. 83);
O processamento das pressuposições linguísticas: a interpretação de pressuposições estritamente textuais, como é caso de se pressupor que alguém bebia quando se diz que este parou de beber, começa a ocorrer aos 7 anos, e mesmo assim, de forma parcial. As situações inferenciais mais complexas
que
envolvem
diferentes
interpretações
lógicas
são
interpretadas após os 10 anos de idade. b) Atos de fala: em contextos comunicativos particulares, os enunciados podem gerar atos de fala como pedidos, promessas e ordens. A partir deste postulado proposto por por John Austin e, depois, por John Searle, o livro descreve como esse feito comunicativo ocorre junto às crianças:
A produção de pedidos (especificamente sobre pedir esclarecimento): os “quê’s” “um quê’s” aparecem muito precocemente, a partir do primeiro ano; as partículas interrogativas mais exatas como “onde” e “quando” são mais tardias, aos 3 anos. A distinção entre pedido e favor acontece aos 4 anos quando, aliás, começam a serem usadas fórmulas de gentileza como “por favor” ;
As promessas: a formulação e a compreensão das promessas remetem a uma situação comunicativa de destaque na relação pais e filhos. Sua expressão faz uso de recursos multidimensionais; são usadas formas verbais, adverbiais temporais e espaciais, e contextos de enunciação que geram promessas. Interessante: a forma futura perifrástica, como “vou arrumar o quarto” ocorre por volta dos 3 ou 4 anos, e é anterior ao futuro simples: “arrumarei o quarto”.
A última parte deste capítulo trata do (3) “Desenvolvimento das Atividades Discursivas”. A lida com o discurso exige saber usar a linguagem de forma descontextualizada; exige saber fazer referência a situações e a personagens que não estão presentes no momento da enunciação. Entre os 2 e 6 anos, a criança desenvolve progressivamente a capacidade de se referir a entes sem o uso de dêiticos e a fazer referências intradiscursivas, ou seja, a falar sobre o que o outro falou (Kail se refere a este fenômeno como “deslocamento da referência”). Segundo a autora, “a narração é particularmente propícia à evidenciação das atividades encontradas pela criança pequena no deslocamento da referência” (p. 89). Consideremos o que diz a autora em Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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tópicos: a) coerência e Coesão nas Narrativas − entre os 4 e os 12 anos, as crianças amadurecem a coerência de seus relatos narrativos observando a cronologia do fato narrado – como um passeio com a família, por exemplo – e a coesão nas escolhas das formas linguísticas que indicam a informação nova e a informação já conhecida; b) referência pessoal: introdução e manutenção da referência − não há consenso sobre a idade em que as crianças dominam “o sistema referencial do adulto” (p. 91). Fala-se que isso ocorre aos 3 anos ou entre os 6 e os 12 anos. O que causa tamanha divergência é a natureza, o tema e a estrutura do texto usado nos estudos: podem ser textos acompanhados por imagens, textos que relatam histórias conhecidas, que falem de forma genérica ou específica e ainda que não tenham alguma particularidade suficientemente marcante para modificar a lida infantil com a narrativa; c) referência temporal e espacial − estudos intralinguísticos indicam que esta tem desenvolvimento tardio, por volta dos 7 anos; d) regulação metacognitiva do discurso narrativo − a pesquisa mais conhecida sobre o tema é proposta por Annette Karmiloff-Smith (1992). A ideia é: a coesão discursiva se desenvolve a partir dos 6 anos, quando a criança “toma a própria linguagem como objeto de reflexão” (p. 93). Em uma narração que tem “o pato” como personagem central, o uso de “o pato, ele... nele... com ele...” indica a passagem da referência nominal direta para as formas pronominais. 5 QUARTO CAPÍTULO: AQUISIÇÃO ATÍPICA DA LINGUAGEM O livro apresenta quatro situações em que a aquisição da linguagem é atípica em função de deficiências cognitiva ou sensorial; são elas: (1) Aquisição da Linguagem pelas Crianças Surdas, (2) Distúrbios Específicos da Linguagem: a Disfasia, (3) Perfis Dissociados da Linguagem e da Cognição, e (4) Lesões Cerebrais Precoces e Plasticidade Neurocognitiva. Vejamos as situações apresentadas. Em (1) “Aquisição da Linguagem pelas Crianças Surdas”, o livro refere-se ao fato de a população de crianças surdas ser bastante heterogênea no que tange o grau de deficiência, a forma de comunicação e a incidência da surdez nos pais e nos irmãos. A autora cita pesquisas desenvolvidas com crianças surdas que sinalizam na Língua Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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Americana de Sinais (ASL), na Língua de Sinais Francesa (LSF) e na Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Sobre a aquisição da linguagem por crianças surdas, são apresentados os seguintes tópicos: a) língua de sinais e percurso de aquisição: as crianças cujos pais são surdos adquirem a linguagem de forma semelhante aos ouvintes. O balbucio manual começa entre os 7 e 11 meses; por volta dos 12 aos 15 meses, ocorrem gestos dêiticos; e com um ano e meio de vida, o vocabulário gestual infantil da criança surda compreende entre 20 e 40 itens; b) algumas especificidades − do signo icônico ao signo gestual: há especificidades. O domínio das sinalizações experimenta uma etapa de confusão quando a criança migra do uso gestual icônico para o uso gestual linguístico (diria eu: convencional). A autora cita especificamente o uso dos dêiticos “eu” e “você(s)” ; c) variabilidade das situações de aprendizagem − concerne a alternância entre o sistema falado e o sistema sinalizado. Essa bimodalidade pode gerar resultados cognitivos positivos, mas pode também tornar as crianças parcialmente inábeis nas duas modalidades. d) “bilinguismo” de crianças surdas − como as línguas sinalizadas não dispõem de registro escrito, necessariamente o letramento da criança surda é “bilíngue”: expressão escrita vs. expressão sinalizada; e) implante coclear − a questão do implante desta prótese eletrônica que estimula o nervo auditivo deve ir além do debate “contra vs. a favor”. Mesmo que a informação fonética imperfeita fornecida pelo aparelho produza ambiguidade entre palavras de fonação próxima, ela desempenha um papel importante na oralização e na leitura labial. Além disso, questiona-se a ideia de ser a percepção da fala estritamente auditiva, uma vez que a expressão facial participa da interpretação dos sons. O chamado “efeito McGurk” (cf. McGurk e MacDonald, 1976) indica que a percepção da produção sonora é audiovisual. Por isso, a oferta fonética propiciada pelo implante deve ser explorada pelos surdos oralizados. Outros aspectos importantes sobre o implante coclear: (a) a idade do implante, preferencialmente antes dos 2 anos; e (b) a habilitação de uso. Sobre (2) “Os Distúrbios Específicos da Linguagem: a Disfasia”. Disfasia Revista @rquivo Brasileiro de Educação, Belo Horizonte, vol.6, jan-jun, 2016.
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refere-se a limitações crônicas no desenvolvimento da linguagem que ocorrem em crianças que não têm déficits mentais, sensoriais, motores ou problemas no aparelho fonador. A disfasia atinge 5% da população infantil e é mais frequente entre meninos do que entre meninas. Na seção seguinte, (3) “Perfis Dissociados da Linguagem e da Cognição”, Michèle Kail elenca duas patologias: a) síndrome de Williams − é uma patologia genética rara com incidência de 1/20.000. A SW preserva intactas algumas habilidades cognitivas mesmo que haja déficits no desempenho e no desenvolvimento linguístico; b) síndrome de Down ou trissomia 21− de incidência mais frequente (1/700), a SD é igualmente marcada por uma dissociação entre linguagem e cognição, haja vista que comparativamente o desempenho linguístico de pessoas com trissomia é mais preservado do que as suas habilidades de reconhecimento espacial, por exemplo. A
última
seção,
(4)
“Lesões
Cerebrais
Precoces
e
Plasticidade
Neurocognitiva”, expõe o debate sobre a plasticidade do cérebro. Como o capítulo tem como tema as situações de atipicidade, fala-se sobre as condições de recuperação, reorganização do sistema neurológico e superação das afasias após lesões sofridas pelas crianças. A obra é uma importante referência para estudiosos da aquisição da linguagem. Não deixem de ler!
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